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Universidade Federal do ABC – UFABC CONFLITOS SOCIAIS ____________ Ana Flávia S. Aguiar Leonardo Galardinovic Alves Rodrigo Rueda Berneira Prof. Dra. Camila N. C. Dias São Bernardo do Campo Outubro/2013 1 Comunidade boliviana em São Paulo: histórico e dinâmicas culturais O antropólogo Sidney Antonio da Silva (2012), que por anos militara na Pastoral do Migrante, ligada à Igreja Católica, faz um breve relato da trajetória de imigração Bolívia-São Paulo. Segundo ele, até os anos de 1980, a imigração boliviana tinha um forte componente de indivíduos estudados, que buscavam no Brasil melhores salários e condições sociais. Houve um forte êxodo de médicos, engenheiros, técnicos, etc.. Estes estavam dispersos pela cidade de São Paulo e presentes, inclusive, em cidades da Região Metropolitana. A partir dos anos de 1990, contudo, ampliou-se o fluxo de imigrantes pouco qualificados, concentrados em regiões centrais da cidade (Pari, Brás, Bom Retiro e imediações), objetivando trabalhar na indústria têxtil da região. Neste período, a produção fabril da moda passa cada vez mais a ser terceirizada, e confecções pertencentes a, além de brasileiros, comunidades coreana, judaica, libanesa e até mesmo boliviana ou paraguaia passam a produzir para o comércio direto (em locais como “feirinha da madrugada”, Brás, Rua José Paulino, etc.) ou para grandes marcas. A condição vulnerável dos trabalhadores bolivianos instalados na cidade, aliada ao surgimento de figuras que ganham dinheiro por meio do recrutamento de bolivianos para a imigração e à constante pauta negativa gerada por fiscalizações do Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho, mídia e ONGs gerou certo estigma da comunidade. Essa imagem estigmatizada fez com que surgissem tentativas de melhoria das impressões em relação à população boliviana na cidade, por meio de festas e celebrações. A Feira Kantuta, realizada dominicalmente na praça de mesmo nome é um exemplo. Tal feira, originalmente, estava situada na Praça Padre Bento, em frente à Igreja Matriz do Pari. Conflitos constantes com moradores locais, que realizaram abaixo-assinado pedindo a remoção da festividade, levaram a prefeitura a situar a feira em outra praça, que acabou ganhando o nome de Kantuta, flor típica do altiplano boliviano, cujas cores são as mesmas da bandeira daquele país. Outra festa do calendário da comunidade é a comemoração religiosa católica das Virgens de Copacabana e 2 Urkupiña, as padroeiras nacional e de Cochabamba, respectivamente. As festas religiosas (com boa dose de sincretismo, tendo incorporado elementos da religiosidade pré-colombiana) coincidem com a data da independência nacional, dando caráter também cívico à data. Os festejos são patrocinados pelo Consulado Boliviano. Tensões e aceitação O francês Dominique Vidal (2012) relata dinâmicas de convivência e os modelos de alteridade com os quais os bolivianos são identificados no caso paulistano. Um caso emblemático detensões para com os imigrantes é o episódio da nacionalização do gás natural por parte do governo Evo Morales. Há relatos de hostilidade aos imigrantes associando-os à imagem de “país ladrão”. Além disso, crianças são hostilizadas pelo sotaque e aparência de “índios”. Entretanto, via de regra, bolivianos relatam sua convivência no Brasil como pouco hostil. A Argentina, que no século XX viveu uma onda de migração boliviana, é relatada como, em oposição ao Brasil, um país “branco e racista”, enquanto aqui haveria uma nação “mestiça e acolhedora”. Há relatos, inclusive, de que haveria menos preconceito aqui do que entre os próprios bolivianos: os descendentes de europeus, habitantes da “Media Luna”, ligados à sojicultura brasileira, seriam preconceituosos em relação à maioria de ascendência indígena, habitantes do altiplano. Não obstante a convivência descomplicada, em comparação a outros fluxos migratórios pelo mundo, os bolivianos de São Paulo seriam permeados por um sentimento de alteridade que se daria por três identificações. A primeira é a que os identifica com “índios”. Tal caracterização se daria, segundo o autor, devido não ao fenótipo, que também estaria presente no Brasil, mas devido ao corte de cabelo, roupas, postura corporal e modos de expressão. A segunda é a que os liga à cultura – bastante ligada à ideia de “índios”, haveria uma identificação deste povo em costumes, música e danças típicas, com raízes pré-colombianas, ligada à ideia de “bom selvagem”, e usada pela Igreja Católica em seu proselitismo. A terceira e, na visão de Vidal, a mais importante, seria o estigma de “escravidão”. Aqui, o autor acredita que, por mais precárias 3 que sejam algumas das condições de trabalho nas oficinas de costura, como as jornadas de mais de doze horas por seis dias semanais, ou condições precárias de infraestrutura das oficinas, não se pode falar em escravidão devido à existência de um “mercado livre” de trabalho, à impossibilidade de existência de cativeiro em uma cidade como São Paulo e a não existência de uma rede de tráfico de pessoas significativa. A ideia de trabalho escravo que está por trás das afirmativas de Dominique Vidal é bastante ligada ao tipo de escravidão existente até o século XIX. Concluindo, o autor postula algumas teorias que estariam por trás do fato de a presença boliviana nos bairros centrais não se dar em sentido autóctone, de “guetificação”. Em primeiro lugar, diferentemente da imigração boliviana para a Argentina, onde o trabalho disputado era nos empregos domésticos e construção civil, aqui, os postos de trabalho objetivados pelos imigrantes não despertam interesse dos brasileiros devido às condições precárias. O autor relata o depoimento de uma faxineira que afirma que, mesmo ganhando menos, prefere suas condições “não escravas”, afirmando tal realidade pertencer somente ao passado familiar, à sua bisavó, possivelmente. Em segundo lugar, haveria um comportamento por parte da comunidade que favoreceria sua aceitação: seriam dedicados ao trabalho, pouco afeitos a polêmicas e “fofocas”, silenciosos, ligados à própria família – comportamentos socialmente aceitos, ligados a expectativas morais e de convívio comunitário. Por último, o autor ressalta o fato de os bairros do Brás, do Bom Retiro, da Mooca e do Pari serem, historicamente, zonas de migração e imigração. Assim, comunidades mais (italianos e libaneses) ou menos (nordestinos e coreanos) integradas ao tecido social urbano passaram por essa região, e a atual presença massiva de nordestinos, ainda hoje vítimas de discriminação pelos paulistanos “nativos” e pelas comunidades mais integradas (descendentes de europeus, principalmente), não qualificaria a vizinhança como “proprietária” que se ressentiria da presença andina. 4 Discurso, negação e preconceito: Bolivianos em São Paulo O artigo foca na existência de discursos característicos dos imigrantes bolivianos na cidade de São Paulo, principalmente no que se refere ao racismo, xenofobia, e conflitos entre brasileiros X bolivianos e bolivianos X bolivianos. A negação da existência desse discurso racista por parte de grupos étnicos majoritários e da sociedade hospedeira tem sido considerado como a forma moderna do racismo. A pesquisa realizada se deu por dois grupos distintos, um composto por 24 brasileiros estudantes de graduação entre 18 e 50 anos e o outro grupo composto por 15 bolivianos. Todos foram submetidos a entrevistas para analise da pratica discursiva dos indivíduos desses grupos. A analise dos discursos permite compreender como as pessoas agem em relação a si mesma e em relação aos outros. Assim, apesar da analise do discurso individual não refletir um padrão de comportamento, quando analisadas em conjunto é possível trassar um parâmetro das atitudes e práticas sociais envolvidas nesses grupos. É posto que a negação é uma forma de discurso usada hoje em dia como forma de lidar com ações e políticas condenadas moral e ideologicamente pela sociedade em geral, como no caso dos discursos xenofóbicos e racistas que embora sejam veemente negados persistem na sociedade. Passando para a analise das entrevistas; quando os brasileiros falam dos bolivianos vê-se sempre a imagem do país com receptivo à imigrantes, como o povo brasileiro sendo sempre bem receptivo e respeitoso com as diversidades e que isso não ocorre com os brasileiros que estão no exterior, uma forma de mitigação dos problemas enfrentados pelos imigrantes bolivianos. Foi também evidenciado o uso de várias expressões discursivas negativas quando se referia aos imigrantes onde os bolivianos são vistos como pobres economicamente, porém culturalmente ricos. Quando são os bolivianos a falarem sobre os brasileiros vê-se a existência de uma forte predileção por estes, elogiando-os e negativando a 5 imagem de outros bolivianos, onde apresentam muitos conflitos internos ao grupo de imigrantes. É falado também sobre o problema dos esteriótipos, de que são todos analfabetos, indígenas, que de alguma forma não eram bem vistos pela própria sociedade e por isso tiveram de imigrar. A segunda geração de bolivianos na cidadede São Paulo A vinda de imigrantes sul-americanos para São Paulo começou a partir dos nos 50, com a vinda de estudantes bolivianos e peruanos que vieram se especializar no Brasil, por meio de acordos bilaterais entre o Brasil e esses países. A partir das décadas de 60 e 70 essa imigração se acentuou por fatores políticos e econômicos. Nesse período a América Latina em sua maioria estava sob regimes militares e o Brasil passava por um forte crescimento econômico, motivando assim a maior imigração para as regiões fronteiriças e para as regiões metropolitanas do país, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro. A criação do MERCOSUL mais adiante também favoreceria a imigração para o Brasil, tanto que na década de 1990-2000 40% dos imigrantes que vieram para o Brasil eram de países membros do MERCOSUL. A questão da Segunda Geração de imigrantes se dá no momento em que os imigrantes se estabelecem no país e constroem sua vida e família. A segunda geração seriam os filhos desses imigrantes que nasceram ou chegaram muito novos no país receptor, desse modo o estudo dessa geração representa os efeitos de longo prazo da imigração, tanto para o país receptor quanto para os imigrantes da primeira geração. Questões como a adoção de hábitos culturais do país de origem dos pais e a forma como essa segunda geração se insere como detentores de direitos/cidadãos no país receptor. A questão da adoção por parte da segunda geração dos hábitos culturais do país de origem de seus pais leva a um conflito de adaptação entre a cultura desejada pela família. e a cultura imposta/vivida no país receptor. 6 Além dessas questões os imigrantes também tem de lidar com a pouca oferta de trabalho para imigrantes, principalmente os ilegais, que comumente são sujeitos a menores salários e portanto menores chances de mobilidade social; no entanto isso também gera conflitos com os ingressantes no mercado de trabalho nativos do país receptor, que ou ficam com os cargos de maior valor agregado e salários ou tem de competir com os imigrantes e receberem baixos salários. Na cidade de São Paulo, nas regiões centrais a presença de crianças e adolescentes da Segunda Geração é muito expressiva, chegando a 50% dos alunos em algumas escolas públicas da cidade, no entanto são poucos os dados que se tem sobre eles. Pelo Censo do IBGE de 2000 residiam em São Paulo 7722 bolivianos e tinham 5824 filhos, dos quais 4887 são da segunda geração. Dessa segunda geração 24,5% nunca frequentou a escola, 18,6% já frequentou e 56,9% iam regularmente para escola ou creche. Isso nos dá a idéia da necessidade de um melhor conhecimento sobre essa população imigrante e seus descendentes, de modo a evitar a constante exploração a que estão submetidos, assim como propiciar o pleno desenvolvimento dessa população e permitir a obtenção de melhores condições de vida, principalmente para as crianças e adolescentes que devem ter maiores possibilidades de acesso e permanencia nas escolas e assim conseguirem empregos de melhor remuneração e qualificação. Bolivianos no Brasil e o discurso da mídia jornalística O artigo busca evidenciar o uso constante de discursos negativos e estereotipados quando se tratam de noticias envolvendo bolivianos dentro do que é transmitido pela mídia. Sabe-se que a mídia não tem o poder de formulação de opinião, mas pode indicar sobre aquilo que uma pessoa colocará sua atenção, podendo influenciar a sua opinião, mas nunca dá-la já feita. Aquilo que é noticiado geralmente refere-se a um evento específico, de modo que os leitores podem 7 construir suas opiniões através de várias fontes diferentes, interpretando os fatos de forma subjetiva, de acordo com suas próprias experiências e conhecimentos. Isso no entanto não impede a formação de modelos socialmente compartilhados. A ação da mídia se dá nesses modelos, e de forma a transmitir os valores dos emissores de notícias, assim como agem no controle daquilo que será veiculado ou não, de certo modo controlando/censurando o acesso do público à informação. Seguindo esse ponto o artigo passa a analisar algumas matérias jornalisticas veiculadas ao longo de um período de tempo com o objetivo de se analisar a forma como é expressa a 'figura' dos bolivianos. A partir da analise vê-se a incidência de temas que os ligue à violência, drogas e contrabando, quando não se refere à situações de humilhação e exploração, como nos recorrentes casos de trabalho em situação análoga a de escravidão. Essa veiculação continua de aspectos negativos quanto aos bolivianos serve para reafirmar os estereótipos negativos a eles associados. Isso de alguma forma dá base para que a população em geral associe esses fatos negativos isolados a toda a população boliviana aqui residente, ignorando eventuais práticas positivas por eles realizadas, de modo que a presença deles passa a ser veiculada como algo negativo para o desenvolvimento do país e da cidade de São Paulo. Atualidades Apesar da imagem negativa retratada constantemente pela mídia temos também iniciativas populares que buscam colocar a pauta das reivindicações dos imigrantes na arena pública. Em Agosto de 2013, por exemplo, após a morte de uma criança Boliviana de 5 anos, seus compatriotas organizaram protestos nas ruas da cidade de São Paulo pedindo por mais segurança aos estrangeiros que aqui vivem. Com a visibilidade do caso e a comoção causada, foi feito um acordo entre a Caixa Econômica Federal e a Prefeitura da Cidade (mediados pela 8 Secretaria de Direitos Humanos) para a facilitação de abertura de contas corrente para Imigrantes do Mercosul. Eles tem dificuldades em apresentar comprovantes de residência, documento necessário para o processo. Com esse empecilho os Bolivianos tendem a guardar seus dinheiros em casa, e portanto, passaram a ser alvo de assaltos. Com o novo sistema eles poderão abrir conta com o CPF e o pedido de Registro Nacional de Estrangeiro, podendo usufruir de micro crédito e caderneta de poupança A Arena Pública em coprodução com a Grão Filmes realizou um breve documentário que busca mostrar como vive a segunda geração de Bolivianos em São Paulo. O documentário intitulado “100% Boliviano, mano” acompanha a vida de um homem de 15 anos, que mora e trabalha no Bom Retiro em um quarto de uma construção que abriga diversas famílias Bolivianas. O trabalho quase-escravo ao qual os Bolivianos foram/são submetidos foi explorado pela mídia porém o momento passou e a segunda geração de Bolivianos não teve atenção televisiva. O que vemos no documentário é um cotidiano de preconceito de pessoas que tem interesse em permanecer no Brasil, mas não em trabalhar com costura em fábricas de roupas. O debate acerca das condições de vida e todo o processo de migração do Bolivianos ao Brasil alimentou o debate sobre a reformulação do Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80, com as alterações da Lei 6.984/81). A Secretaria Nacional de Justiça formou um grupo de especialistas que tem como objetivo apresentar uma proposta de anteprojeto de lei. 9 Bibliografia MANETTA, Alex. Bolivianos no Brasil e o discurso da mídia jornalística. In BAENINGER, Rosana (Org.). Imigração Boliviana no Brasil. Campinas: Núcleo de Estudos de População – NEPO/UNICAMP; Fapesp; CNPq; Unfpa, 2012. OLIVEIRA, Gabriela Camargo de; BAENINGER, Rosana. A segunda geração de bolivianos na cidade de São Paulo. In BAENINGER, Rosana (Org.). Imigração Boliviana no Brasil. Campinas: Núcleo de Estudos de População – NEPO/UNICAMP; Fapesp; CNPq; Unfpa, 2012. SILVA, Sidney Antonio. Bolivianos em São Paulo. Dinâmica cultural e processos identitários. In BAENINGER, Rosana (Org.). Imigração Boliviana no Brasil. Campinas: Núcleo de Estudos de População – NEPO/UNICAMP; Fapesp; CNPq; Unfpa, 2012. SIMAI, Szilvia; BAENINGER, Rosana. Discurso, negação e preconceito: bolivianos em São Paulo. In BAENINGER, Rosana (Org.). Imigração boliviana no Brasil. Campinas: Núcleo de Estudos de População – NEPO/UNICAMP; Fapesp; CNPq; Unfpa, 2012. VIDAL, Dominique. Convivência, alteridade e identificações. Brasileiros e bolivianos nos bairros centrais de São Paulo. In BAENINGER, Rosana (Org.). Imigração Boliviana no Brasil. Campinas: Núcleo de Estudos de População – NEPO/UNICAMP; Fapesp; CNPq; Unfpa, 2012. 10