relações entre os saberes de jovens e adultos e a etnomatemática

Transcrição

relações entre os saberes de jovens e adultos e a etnomatemática
RELAÇÕES ENTRE OS SABERES DE JOVENS E ADULTOS E A
ETNOMATEMÁTICA
Maria Cecília de Castello Branco Fantinato (Coordenadora)
Alexis Silveira
Andréa Thees
Gisele Americo Soares
Raphael Gualter Peixoto
Wellington Rodrigues Galvão
RESUMO
Esta oficina aborda parte de uma pesquisa em andamento, desenvolvida coletivamente
pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemática da Faculdade de Educação da
Universidade Federal Fluminense, o qual é coordenado pela Prof. Dra. Maria Cecília de
Castello Branco Fantinato. Tem como objetivo apresentar a relação entre os saberes
discentes, em especial na Educação de Jovens e Adultos (EJA), e as práticas docentes
considerando a perspectiva etnomatemática. Durante a oficina, pretendemos explorar
duas situações problema vivenciadas pelos professores/pesquisadores do grupo com
alunos da EJA. Com o intuito de enriquecer a oficina, os participantes serão agrupados
para leitura e análise das situações problema. Após este momento, abriremos um espaço
para a discussão e críticas. Iremos refletir sobre algumas formas de estabelecer diálogo
entre a diversidade de saberes matemáticos, presentes no cotidiano e trazidos pelos
alunos, e as possíveis mediações do professor sob a lente de princípios da
etnomatemática. Procuraremos identificar as contribuições para o processo de
aprendizagem matemático de uma formação continuada, dentro da perspectiva
etnomatemática, para os professores de educação de jovens e adultos. Para finalizar,
apresentaremos o referencial teórico da pesquisa voltado a esta modalidade de ensino,
bem como algumas articulações que possibilitam compreender a especificidade da
prática docente na EJA.
PALAVRAS-CHAVE: etnomatemática; educação de jovens e adultos; prática docente;
saberes discentes
2
Apresentação
A proposta desse trabalho é de indagar sobre o espaço que os saberes discentes
ocupam nas diferentes práticas docentes, apontando para reflexão de que os primeiros
nem sempre são privilegiados pelo segundo.
A pesquisadora Domite (2004, p. 419) já nos colocou isto, alertando-nos de que
“o educando não tem estado de todo fora das propostas de formação de professores, mas
também não está dentro”. Assim, influenciados por esta reflexão é que propomos
analisar a importância para as práticas destes referidos saberes.
Em nossas práticas docentes precisamos não só compreender os modos de
construção de conhecimentos dos educandos, seus processos cognitivos, mas também,
entender os significados a eles atribuídos, os valores implicados nessa construção e até
mesmo sua função social (Fantinato, 2004). Essa compreensão deve ocorrer sem a
desvinculação entre os saberes escolares e os saberes não escolares, adquiridos nas
práticas cotidianas, uma vez que esta integração possibilita a aprendizagem de novos
saberes matemáticos.
Apoiados na singularidade do Programa Etnomatemática encontramos algumas
pistas que nos auxiliaram a pensar sobre os saberes discentes e a cultura cotidiana nas
práticas docentes. De acordo com D’Ambrosio (2001, p. 60) a Etnomatemática se
expressa “na arte ou técnica de conhecer, entender, explicar, aprender para saber e fazer
como resposta a necessidades de sobrevivência e de transcendência em diferentes
ambientes naturais, sociais e culturais.” Dessa forma, esta proposta sinaliza para a
possibilidade de aproximação entre os eixos instituídos pelos saberes discentes e as
práticas docentes. Estamos cientes, entretanto, de que trabalhar em Etnomatemática
numa perspectiva educacional significa lidar com a contradição posta entre a
matemática escolar, homogênea, e a diversidade de saberes matemáticos presentes nas
salas de aula e assim, a Etnomatemática não se constitui numa panacéia pedagógica.
Neste trabalho, iremos refletir sobre algumas possibilidades de estabelecer diálogos
entre essa diversidade de saberes matemáticos, mediados pela figura do professor.
(Fantinato & Santos, 2007).
Apoiados nas contribuições teóricas deixadas por Monteiro, Ribeiro e Domite,
2004, p.31, através de uma compreensão etnomatemática que “reclama por uma
transformação na organização escolar, nas relações tempo/espaço, na inclusão de
espaços para a diversidade, para a valorização do saber cotidiano”, podemos integrar
3
tanto os constructos populares docentes, oriundos de um lado de suas relações sociais,
do saber-fazer adquirido em seu percurso de escolarização, bem como dos saberes
adquiridos no contato com seu grupo de alunos, com os seus saberes científicos,
oriundos da formação acadêmica inicial e continuada. Assim, estes saberes do cotidiano
devem contribuir e propiciar a contextualização daqueles saberes escolares, ambos
devem estar a serviço de uma prática que propicie o diálogo e contribua para a
valorização social e para ação crítica de todos os sujeitos envolvidos no processo
ensino-aprendizagem.
É nesse sentido, que apontamos para o fato de que o professor deve elaborar e
validar seu saber dentro da própria situação de trabalho, no seu cotidiano diário. Esta
posição está apoiada na concepção defendida por Tardif (2002), de que o saber docente é
fruto de uma construção realizada durante a ação, uma vez que seus conhecimentos são
fortemente contextualizados e enraízam-se na situação em que agem.
Portanto, queremos defender que os saberes discentes intervêm nas ações
docentes. Estas práticas docentes devem refletir e tomar como referencial também a
cultura discente, apontando para uma dialogicidade (Freire, 1974) que interfira na forma
de apreender dos alunos e na forma de ensinar dos professores. Acreditamos que o
trabalho na perspectiva etnomatemática pode propiciar um processo de legitimação em
via de mão-dupla, no sentido de que , ao dar voz a seus alunos, os professores também
estão sendo legitimados em seus saberes docentes (Fantinato & Santos, 2007).
Objetivos
É nossa intenção, nesta oficina:
Refletir sobre a importância de se considerar os saberes discentes e a cultura
cotidiana nas práticas docentes.
Discutir alguns princípios da perspectiva etnomatemática.
Metodologia
A oficina será desenvolvida em dois momentos: no primeiro pretendemos
explorar situações problema vivenciadas pelos professores e professoras que compõem o
Grupo de Etnomatemática, da UFF, abrindo um espaço para posterior discussão; no
segundo momento, refletiremos sobre as possibilidades de articulação do Programa
Etnomatemática com os saberes discentes e as práticas docentes.
4
Apresentaremos, a seguir, as atividades que serão analisadas pelos participantes
da oficina.
Atividade 1: “Joelton, você é pedreiro?” (Schneider, 2010)
O professor Gilberto se dirige ao quadro-negro e inicia a aula direcionando o olhar para o
aluno Joelton, que está sentado na primeira carteira da fileira, o que o deixa muito
próximo ao quadro-negro:
Professor Gilberto: Você é pedreiro, não?
Joelton: Sou.
E, enquanto desenha no quadro um retângulo e indica as medidas de seu comprimento
pergunta:
5m
4m
Professor Gilberto: Para colocar um piso, sem rodapé, quantas caixas de dois metros
você vai precisar?
Roberto: Vinte metros!
Professor Gilberto [olhando para Joelton]: Imagine que a Sonia chamou você para
colocar um piso em sua casa...
Enquanto o professor Gilberto está atento ao Joelton, chegam outros alunos e alunas:
Joane, Luciani e Albanice começam a conversar animadamente. Albanice, que se senta,
também, assim como Joelton, na primeira carteira de sua fileira, e está mais perto do
professor e de Joelton, ao perceber que o professor Gilberto colocara um problema no
quadro, interrompe a conversa com Joane e Luciani e tenta participar arriscando uma
resposta:
Albanice: Quatro? Cinco?
Como não obtém retorno do professor, que dirige a palavra e o olhar exclusivamente para
o aluno Joelton, Albanice desiste da participação.
Joelton, porém, não consegue responder e parece angustiado. O professor Gilberto muda
de estratégia: dirige-se ao quadro, aponta para a figura do retângulo e as medidas e faz
5
uma pergunta em voz alta, dirigindo o olhar para “a turma”, mas focalizando,
novamente, ao final da pergunta, o aluno Joelton:
Professor Gilberto: De quantas caixas de dois metros você precisa para fazer isso?
Joelton [falando baixinho e olhando somente para o professor Gilberto]: Vinte?
Professor Gilberto [olhando para “a turma”]: Quantas vezes o dois cabe no vinte?
Albanice: Uma? Duas?
Roberto: Vinte?
Joelton: Vinte?
Roberto: Dez! São dez!
Professor Gilberto: Cada caixa tem dois metros, então, se vou cobrir vinte metros, de
quantas caixas vou precisar?
E a seguir escreve no quadro:
2+2+2+2+2+2+2+2+2+2
Professor Gilberto [contando, ordenadamente, cada número dois que escreveu no
quadro]: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez.
Joelton, sem sair de seu lugar, chama o professor e fala baixinho:
Joelton: Eu não preciso fazer conta. Eu só preciso saber a área que vou cobrir. O
vendedor da loja de material é que faz... Tem caixa de um e meio, tem caixa de dois...
Professor Gilberto [volta ao quadro e fala alto]: Mas, não é bom deixar sobrar alguma
coisa? Não tem sempre quebra de alguns pisos?
Joelton [fala alto]: Sim. Uma sobra de dois dá.
Professor Gilberto [escrevendo no quadro]: E se eu tiver onze por dois? [enquanto fala o
professor apaga as medidas dos lados do retângulo que foi desenhado no quadro e as
substitui por esses novos valores]. Qual deverá ser a minha sobra?
Joelton: A mesma! Dois metros!
Professor Gilberto: Qual é a área do retângulo?
Joelton: Vinte e dois metros.
Professor Gilberto: Então? Qual deve ser a minha sobra?
Joelton: A mesma! Dois metros bastam!
Joelton e o professor Gilberto continuam discutindo a questão da sobra.
6
Atividade 2: A divisão de Maria (relato do professor André Gils, PEJA/SME-RJ)
O fato aconteceu numa aula de Matemática na EJA com alunos que cursam a 1ª
Unidade de Progressão do Bloco I, correspondente ao sexto ano do Ensino Fundamental.
O conteúdo ministrado era divisão dos números naturais e seus métodos de resolução,
longo e curto. Após algumas situações problemas, o professor propôs a seguinte divisão:
12015 : 10 =
Uma das alunas, de nome Maria, efetuou a conta usando o seguinte processo:
Após observar, explique o que Maria fez?
Considerações Finais
A docência, diante do que apresentamos, está em constante (re)construção e é
(re)significada
nos fazeres cotidianos do professor. Essa construção que se dá na
relação da experiência, deve manifestar-se também na formação inicial e continuada
bem como nas dinâmicas estabelecidas entre discentes e docentes nos espaços de
aprendizagem.
Dessa forma, apontamos que os saberes discentes, formais e não-formais, são
elementos fundamentais às práticas docentes nos processos de ensinar e aprender.
Assim, nessa perspectiva compreendemos que o Programa Etnomatemática pode
contribuir com o docente, fornecendo-lhe elementos que possibilite a articulação dos
saberes, trazidos e a aprender, e indicando um caminho ao professor na direção desta
compreensão onde os saberes não-formais sejam utilizados como elemento facilitador
de novas aprendizagens.
Considerar os saberes discentes no planejamento da ação pedagógica pode
favorecer a apreensão significativa dos conteúdos escolares além de apontar para a
construção de uma prática docente marcada pelo diálogo e pelo respeito, onde aluno e
7
professor interagem simultaneamente na/para a construção do conhecimento
matemático.
Referências Bibliográficas
D’ AMBRÓSIO, U. Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade. Belo
Horizonte. Autêntica, 2001.
DOMITE, M. C. S.. Da compreensão sobre formação de professores e professoras numa
perspectiva etnomatemática. In: G. Knijnik, F. Wanderer, F. & C. J. Oliveira
(orgs). Etnomatemática: currículo e formação de professores. Santa Cruz do
Sul: EDUNISC, 2004.
FANTINATO, M. C.C.B. Contribuições da etnomatemática na educação de jovens e
adultos: algumas reflexões iniciais. In: J. P. M. Ribeiro, M. C. S. Domite & R.
Ferreira (orgs). Etnomatemática: papel, valor e significado. Porto Alegre, RS.
Zouk, 2004.
FANTINATO, M. C. C. B. & SANTOS, R. K. Etnomatemática e prática docente na
educação de jovens e adultos. Anais do IX ENEM. Belo Horizonte, 2007.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
MONTEIRO, A., OREY, D. & DOMITE, M. C. S. . Etnomatemática: papel, valor e
significado. In: J. P. M. Ribeiro, M. C. S. Domite & R. Ferreira (orgs).
Etnomatemática: papel, valor e significado. Porto Alegre, RS. Zouk, 2004.
SCHNEIDER, S. M. Esse é o meu lugar... Esse não é o meu lugar: relações geracionais
e práticas de numeramento na escola de EJA. Tese de Doutorado - Faculdade
de Educação da UFMG, Belo Horizonte, 2010.
SILVEIRA, A. Uma Proposta de Motivação das Aulas de Matemática de Classes de
EJA Através da Resolução de Problemas. Monografia da Especialização em
Ensino de Matemática – Instituto de Matemática da UFRJ, Rio de Janeiro,
2007.
SILVEIRA, A. Resolução de Problemas e Etnomatemática em Classes de
Educação de Jovens e Adultos. Monografia da Especialização em
Matemática para Professores do Ensino Médio e Fundamental Instituto de
Matemática da UFF. Niterói, 2009.
TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 8ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2002.

Documentos relacionados

Texto revisado final

Texto revisado final Entendemos que apesar das distinções apresentadas sobre o ensino e a prática do professor, podemos perceber atualmente na formação de professores uma mistura dos vários modelos de formação, onde di...

Leia mais

Etnomatemática e formação de professores: no meio do caminho

Etnomatemática e formação de professores: no meio do caminho caminho (da sala de aula) há impasses1 Maria do Carmo Santos Domite Universidade de São Paulo, Brasil [email protected] Resumo2 A intenção nesta palestra é a de um olhar para trás no sentido de fa...

Leia mais