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O GRANDE LAGO ARTIFICIAL E AS MEMÓRIAS DE UMA ALDEIA
SUBMERSA - DO PROCESSO DE DESTERRITORIALIZAÇÃO AO
PROCESSO DE RETERRITORIALIZAÇÃO: O CASO DA ALDEIA DA LUZ
(ALENTEJO, PORTUGAL)
Aline Abrantes1
[email protected]
RESUMO
A desterritorialização é um problema actual. O sentimento de pertença que nos une a um
território está sujeito a diversos riscos tais como: guerras, crise económica, catástrofes naturais
ou neste caso, devido à construção de uma barragem.
No caso da barragem de Alqueva (Alentejo, Portugal), para uns esse empreendimento é
sinónimo de factor estratégico para o desenvolvimento do Alentejo e para outros é visto como
um elefante branco com impactes inaceitáveis.
A partir deste último elemento, pretendemos analisar de forma geográfica os efeitos na
população da aldeia da Luz, uma vez que esta viu-se “obrigada” a sair do seu território para um
outro território (a nova aldeia da Luz) planeado e construído de raiz, em consequência da
construção da barragem de Alqueva.
Palavras-chave: Desterritorialização; Reterritorialização; Barragem de Alqueva; Aldeia da
Luz.
ABSTRACT
The deterritorialization is a current problem. The sense of belonging that binds us to a
territory is subject to various risks such as war, economic crisis, natural disasters or in
this case, due to the construction of a dam.
In the case of the Alqueva Dam (Alentejo, Portugal) for a project that is synonymous
with strategic factor for the development of the Alentejo and for others it is seen as a
white elephant with unacceptable impacts.
From this last element, we intend to analyze it geographically the effects on the
population of the village of Light, as this was seen "forced" to leave its territory to
another territory (the new village of Luz) planned and constructed root as a result of
the construction of the dam alqueva.
Keywords: Deterritorialization, Repossession, Alqueva Dam, Village of Luz.
1
Mestre em Geografia (Ordenamento do Território e Desenvolvimento), pela Universidade de Coimbra
(Portugal).
INTRODUÇÃO
O artigo centra-se no contexto das alterações sócio - espaciais, devido à
desterritorialização e reterritorialização da população da Luz, consequência do
empreendimento da barragem de Alqueva. Devido a esta construção os habitantes são
“forçados” a abandonar o seu território. O problema desta deslocação acontece devido
aos laços que as populações criam com o espaço. Neste sentido, o território é visto
como um factor identitário, onde as populações têm as suas habitações, os seus terrenos
e o seu quotidiano. Citando Oliveira (2011:6), “o simples facto de vivermos num
determinado espaço, identifica-nos, distingue-nos e pode até condicionar-nos
socialmente”.
A construção da barragem altera o sentimento afectivo que une o homem ao seu
território – topofilia. Citando Reino (2005: 2), “esta ‘mudança’, não é apenas uma
simples mudança física de uma casa para uma nova casa, de um local para um outro
local”. Existem aspectos sócio - culturais, simbólicos e identitários que estão inerentes a
toda a população residente. A construção da barragem de Alqueva desempenha o papel
de pivô em todo este processo de ‘mudança’. Isto significa que a barragem de Alqueva
constitui o "detonador" de toda esta problemática. Com o sentimento de pertença
destruído, os moradores deixam a antiga aldeia e vão para a nova aldeia da luz que é
construída de raiz. Isto acarretou um novo problema, pois contribuiu para a
desconfiança, a inveja ou até mesmo cobiça por parte dos habitantes. Este problema de
cariz social aconteceu devido à atribuição das novas habitações. Os luzenses com menos
posses receberam boas casas, lucrando de certa forma com a barragem, enquanto
aqueles que tinham mais rendimentos sentem que não ganharam assim tanto com esta
construção. Este problema como outros problemas sociais, como por exemplo o
desaparecimento das ruas características da velha aldeia e a transladação do cemitério
serão problemas explorados neste artigo.
A nível de metodologia utilizada incide sobre pesquisa bibliográfica, e autores como
João Luís Fernandes, Rogério Haesbaert, Ana Oliveira e Clara Saraiva são autores que
utilizei com alguma frequência para a construção deste trabalho. O artigo é constituído
por quatro importantes pontos: no primeiro ponto trato o conceito de desterritorialização
e faço referência no caso particular das barragens, referindo que as barragens eram
vistas como desenvolvimento e crescimento económico de um país, mas as políticas
administradas eram pouco activas no que tocava a problemas sociais e ambientais; no
segundo ponto a barragem de Alqueva, sendo o elemento central; o penúltimo ponto
faço referência à desterritorialização da população da aldeia da Luz e o último ponto
incide sobre o processo de reterritorialização onde faço alusão a vários problemas
sociais devido ao empreendimento da barragem.
1. Conceito e geografia da desterritorialização das comunidades humanas - O caso
particular das barragens
Explorando a ideia de Oliveira (2011:11), “o ser humano necessita de um território,
necessita de um recurso físico, de um espaço onde este mantenha uma relação, sendo
por fonte de rendimento, quer sendo pelo sentimento de pertença e / ou segurança que
esse espaço transmite”. Por outro lado, o ser humano necessita de se territorializar, de
possuir um espaço e de se identificar com o mesmo. Todavia, as adversidades
conduzem a riscos na relação entre o homem e o território, contribuindo para uma
relação débil, pondo em causa a topofilia, isto é, o sentimento afectivo que une o
homem ao seu território. Segundo Tuan (2007: 130), a topofilia “é um neologismo, útil
na medida em que pode ser definida de forma ampla para incluir todos os laços
emocionais entre os seres humanos e o ambiente físico.” A partir do momento que
existe uma quebra entre as relações do homem com o seu território, estamos perante
processos de desterritorialização.
Haesbaert et al. (s/d:1), cita Gilles Deleuze que nos elucidam o conceito de
desterritorialização, “ (...) construímos um conceito de que gosto muito, o de
desterritorialização. (...) precisamos às vezes inventar uma palavra bárbara para dar
conta de uma noção com pretensão nova. A noção com pretensão nova é que não há
território sem um vetor de saída do território, e não há saída do território, ou seja,
desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra
parte”.
A quebra topofílica que anteriormente se mencionou pode ocorrer in situ, onde não
existe alterações das referências de localização do sujeito por exemplo, a construção de
uma via rápida que impede a mobilidade ou a doença e o envelhecimento, quando os
serviços de apoio não são satisfatórios. Mas também pode ocorrer ex situ que implica
uma deslocação do sujeito entretanto desterritorializado. A desterritorialização ex situ, é
a mais frequente e consiste num dos maiores problemas de desenvolvimento da
actualidade e também no gerador de vulnerabilidade e pobreza, casos de Guerras civis,
crises ambientais lentas – desertificação, ou até catástrofes naturais (naturais ou
antrópicas) são alguns dos possíveis exemplos para este tipo de desterritorialização
(Fernandes, 2008).
Apesar das consequências positivas que possibilitaram a produção de energia renovável,
da disponibilidade de água para a irrigação ou outros consumos onde a carência de água
era um problema real, as deslocações de comunidades humanas representam um dos
maiores efeitos negativos devido à construção de barragens, tendo um impacte de
grande dimensão no ambiente (Fernandes, 2008).
Fernandes (2008: 7) refere que a “construção de barragens, um dos mais importantes
meios de artificialização rápida e, na escala temporal da vida humana, irreversível, da
superfície terrestre. Provocando mudanças radicais no ambiente, as barragens, sobretudo
as de grande dimensão, submergem vales, alteram regimes climáticos, inundam terrenos
agrícolas e florestais e podem, como ocorreu em muitos casos, submergir núcleos de
povoamento com consequências directas na desterritorialização de comunidades
autóctones que, deste modo, se vêm forçadas a abandonar os respectivos territórios
pessoais”. Como é o caso da população da aldeia da Luz.
Oliveira (2011: 30), menciona que os “processos de desterritorialização provocados pela
construção de barragens, conduzem em alguns casos, à posterior localização dos
indivíduos em meios urbanos, contribuindo para o aumento das cidades”. A autora
remata com Haesbaert (2004), onde este caracteriza como sendo “aglomerados móveis
de exclusão”. Estes aglomerados, criam “processos desequilibrados de urbanização,
fazendo aumentar cidades que perderam urbanidade, como ocorre em muitas metrópoles
gigantes do globo” (Fernandes, 2008:11).
É certo, que o “modelo de desenvolvimento presente na construção de grandes projectos
de desenvolvimento como é o caso das barragens alterou-se. Até determinado período
tratava-se de um modelo difusionista, que procurava obter desenvolvimento através de
um único ponto - a barragem, hoje em dia, já se assiste a um modelo de
desenvolvimento de base mais territorialista” (Oliveira, 2011: 30).
Este modelo, é caracterizado por Fonseca et. al, (s/d: 46), sendo um “processo baseado
no aproveitamento dos recursos locais e numa perspectiva de maior voluntarismo e de
envolvimento das entidades locais no aproveitamento desses recursos. As actuais
políticas de desenvolvimento regional pugnam por estes princípios ao preconizarem
modelos inovadores e específicos de rentabilização das potencialidades locais para os
territórios mais desvitalizados.”
Citando Fernandes (2008: 8), “o cinema e a literatura têm sido meios de denúncia sobre
as construções de barragens que “empurram grupos humanos para o ciclo de pobreza”.
Nas obras literárias, Machado (1999), Lobato Faria (2000) ou Edric (2006), envolveram
personagens em ambientes de mudança, acompanharam vidas humanas em contextos de
enchimento de vales e desaparecimento de territórios de vida, processo também
reflectido por Jia Zhang-Ke (2007), no filme Still Life – Natureza Morta, que
acompanha as mudanças sociais e paisagísticas que ocorrem com o desaparecimento da
cidade chinesa de Fengjie sob as águas da Barragem das Três Gargantas.”
Assim sendo, “os processos de desterritorialização decorrentes da construção de
barragens são um factor negativo destes empreendimentos, levando a que algumas
populações reivindiquem o seu afecto ao território através da criação de movimentos
sociais” (Oliveira, 2011: 32).
2. Barragem de Alqueva – apresentação geral do processo
Reino, et. al. (2006:1) referem que “ao longo do século XX, o conceito de
desenvolvimento e crescimento económico dos países esteve ligado à construção de
grandes barragens, porém as políticas administradas não tinham preocupação com os
problemas sociais e ambientais que daí adviessem. O aproveitamento da água, enquanto
recurso essencial para a manutenção da vida e sua sustentabilidade, ia ficando um pouco
à mercê dos caprichos da Natureza, pelo que a sua utilização, armazenamento e
racionalização são prioritários, sobretudo numa região onde os períodos de seca
prolongados sempre se fizeram sentir.”
Neste seguimento, Lousada (2010: 21), refere que, “a água é um bem natural precioso
por escassa e pela qualidade frequentemente inadequada para o abastecimento humano.
Será necessária a construção de barragens para regularizar os cursos de água e optimizar
a disponibilidade da mesma.”
A construção da barragem de Alqueva (Imagem 1) proporcionou o nascimento do
maior lago artificial da Europa e alterou profundamente a paisagem. Neste seguimento,
André (2012:29) elucida-nos “que o primeiro projecto enquanto “Empreendimento de
Fins Múltiplos” para a criação de lago artificial data 1957, altura em que foi criado o
plano de Rega do Alentejo. Este projecto, realizado sob o governo ditatorial do Estado
Novo, teve como principal propósito o combate do êxodo rural, abrindo oportunidade
para a “colonização interna”, através do estabelecimento de famílias de agricultores na
região e obtenção de mão-de-obra no interior alentejano. Neste contexto social, a
revolução de 25 de Abril de 1974 veio alterar de certo modo a visão e o projecto para o
mundo rural, dando lugar a uma Reforma Agrária (de 1975) conduzida pelo proletariado
rural e apoiada pelo Movimento das Forças Armadas”.
Oliveira (2011: 56), menciona que “em 1975, o governo decidiu avançar com o
projecto. No entanto, passados três anos, todas as obras são interrompidas. O
empreendimento entrou, numa fase de avaliações e novos estudos. O governo decidiu
retomar o projecto em 1993, ano em que é criada a Comissão Instaladora da Empresa de
Alqueva (CIEA), que viria a dar lugar à EDIA – Empresa de Desenvolvimento e InfraEstruturas de Alqueva, S.A. Foi então decretado (Decreto-Lei nº 33/95, de 11 de
Fevereiro) que o Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva representava uma obra
de interesse nacional com os seguintes componentes: Barragem de Alqueva; Barragem
de Pedrógão; Sistema de adução de água para consumo público; Rede primária de rega;
Redes secundária e terciária de rega.”
Finalmente, em Maio de 1998 começam as primeiras betonagens e somente em 2002
fica concluído o corpo principal da barragem. O seu enchimento data a 8 de Fevereiro
de 2002 e no ano de 2004 é inaugurada a central hidroeléctrica. “A 1 de Janeiro de
2010, a albufeira de Alqueva registou o nível de água com a cota 150,17 metros acima
do nível do mar, o que corresponde a 91 por cento da sua capacidade máxima; Em 12 de
Janeiro o nível de água armazenada atingiu a cota máxima de 152 metros, um metro
abaixo do nível de máxima cheia para que albufeira está preparada. Trata-se de um
volume de água armazenada de 4.150 hectómetros cúbicos” (André, 2012: 31).
A barragem foi construída na bacia hidrográfica do Rio Guadiana e situada entre os
distritos de Évora e Beja (Imagem 2). Actualmente, é o maior lago artificial da Europa.
O Grande Lago estende-se por 83 km ao longo dos concelhos de Moura, Mourão,
Portel, Reguengos de Monsaraz e Alandroal (André, 2012: 31).
Segundo MELO (2009: 1), “Alqueva é um dos maiores empreendimentos já realizados
em Portugal. É certamente o mais polémico, o mais emblemático deste estilo de
desenvolvimento, o causador de maiores impactes ambientais e de mais medidas para a
sua mitigação, num século XX recheado de obras públicas mais ou menos
problemáticas.”
Imagem 1 – Barragem de Alqueva
Fonte: autora
Imagem 2 – Albufeira da Barragem de Alqueva
Fonte: Oliveira, A., Processo de desterritorialização e
filiação ao lugar – o caso da Aldeia da Luz, Faculdade
de Letras, Universidade de Coimbra, 2011: 58
3. Aldeia da Luz – Processo de desterritorialização
A aldeia da Luz localiza-se na freguesia da Luz do concelho de Mourão, pertencente è
NUT II Alentejo, e sub – região Alentejo Central.
Desde o primeiro projecto para a construção da barragem em 1957 a submersão da
aldeia da Luz era uma possibilidade. Oliveira (2011:91) salienta que “no decorrer dos
anos, foram equacionadas várias opções para o empreendimento: encher até à cota 152
(sendo a actual) ou à cota 138, ou ainda a construção de diques em redor da aldeia para
a sua protecção. Optando-se pelo enchimento da albufeira até à cota 152, elaboraram
três hipóteses: a construção de uma aldeia de raiz nos montes de Juliôa dos Pássaros de
Cima, ou a deslocalização para as imediações de Mourão ou então a construção de
diques. A hipótese que prevaleceu, resultado de um inquérito informal feito à população
pela Junta de Freguesia da Luz foi a deslocação da população para Montes da Juliôa e
dos Pássaros de cima, a cerca de 2kms da aldeia submersa.”
“A aldeia da luz submergida pelo empreendimento da barragem, apresentava cerca de
370 habitantes à data da remoção do velho aglomerado” (Fernandes, 2008: 17) e em
2011 a população existente na nova aldeia era de 290 habitantes (INE), caracterizada
por uma população muito envelhecida.
O que teve mais significado para a população que se viu obrigada a abandonar o seu
território foi a transladação dos corpos do cemitério da antiga aldeia para a nova aldeia.
A população da aldeia da luz “decidiu que a mudança dos seus mortos deveria anteceder
a dos vivos - “não abandonariam as suas alminhas”, o cemitério foi integralmente
trasladado em Julho de 2002. No dia 22 de Junho de 2002 houve uma missa na Igreja
matriz, seguida por uma cerimónia religiosa no velho cemitério, presidida pelo bispo
auxiliar de Évora. (…) A trasladação iniciou-se no dia 28 de Junho e durou treze dias;
foram mudados uma média de doze corpos por dia. Os féretros saíam em carro fúnebre
do velho cemitério e seguiam por uma estrada exterior ao núcleo populacional, de modo
a evitar o trauma colectivo que constituiria o desfile diário de doze a vinte funerais pelo
meio da aldeia” (Saraiva, 2003: 110).
O novo cemitério teve em conta as características da antiga necrópole. Os “ocos” são
uma característica daquela área. São sepulturas exteriores, os corpos não têm contacto
com a terra, logo existe um processo de decomposição aeróbio.
Citando Saraiva (2003: 112), “mexer na comunidade dos mortos foi também tocar na
memória sagrada de uma aldeia, que ultrapassou os restos mortais individualmente
identificados que foram trasladados. Este processo desencadeou uma catarse colectiva e
um sentimento de solidariedade derivada do sentimento da união na dor. Com os seus
mortos no novo espaço só restava aos luzenses aceitarem com resignação que os vivos
se mudassem também.”
4. (Nova) aldeia da Luz – processo de reterritorialização
Para Leite (2009: 4), o conceito de reterritorialização “consiste no processo de
sedentarização dos sujeitos em mobilidade, que passa pela ocupação de um espaço –
físico, geográfico, mas também construído social e subjectivamente – a partir do qual os
sujeitos sediam a sua vida, reconstroem as suas identidades, as suas redes sociais, as
suas actividades – profissionais, religiosas, artísticas, sociais, ou outras”.
Seguindo a ideia de Fernandes (2008: 18), “em muitos casos, sobretudo em regiões de
Desenvolvimento Humano médio mais baixo, as transformações nos espaços rurais,
pelas barragens ou outros projectos, conduzem a uma urbanização repentina e pouco
planeada, forçando a um difícil processo de reterritorialização agora em espaços
urbanos pouco preparados para o efeito”. Fernandes (2008: 19), cita Ryszard
Kapuscinski (2000: 309) que descreve assim este processo: “A guerra e a seca levam à
desertificação das aldeias e empurraram os seus habitantes para as cidades. Este foi um
processo que se arrastou durante anos, envolveu milhões, dezenas de milhões de
pessoas. Em Angola e no Sudão, na Somália e no Chade, na verdade um pouco por toda
a parte. Instalemo-nos na cidade! Era este o grito de esperança e salvação, mas também
de desespero. É que, nas cidades, estas pessoas não tinham ninguém à sua espera,
ninguém os tinha chamado. Tinham ido lá parar movidos pelo medo, mobilizando as
últimas forças, à procura de abrigo, sobrevivência. (…) Não lhes serve de nada ir para a
cidade e, depois de irem, já não podem voltar à aldeia. Não têm nada que possam
cultivar, não têm gado, não podem produzir absolutamente nada. Não têm morada, nem
dinheiro, nem documentos. Perderam as suas casas, muitos perderam também a família.
Não têm ninguém a quem se dirigir para protestar, não têm ninguém de quem possam
esperar o que quer que seja”.
A casa dita tradicional da antiga aldeia da Luz foi substituída por materiais e técnicas de
construção mais recentes. É notório que em qualquer localidade, um indivíduo que
tenha mais posses económicas possuam melhores habitações. Todavia, a construção da
nova Luz albergou inveja e desconfiança entre os luzenses uma vez que todos os
habitantes foram indemnizados e a população com poucas posses acabou por beneficiar
com esta mudança.
Citando Oliveira (2011:113), “a estandardização da habitação e a semelhança do
exterior das diferentes casas vieram diminuir de forma muito significativa as diferenças
sociais e económicas que se encontravam patentes na antiga aldeia.”
A morfologia das ruas alterou a vida social. A antiga aldeia da Luz era uma aldeia
caracterizada pela não existência de passeios e pelas estradas serem estreitas. Na nova
aldeia, os passeios e as ruas obedecem a normas que afastam os habitantes dos seus
vizinhos, dificultando a comunicação.
Um costume bastante vincado na população de algumas aldeias alentejanas, entre as
quais a aldeia da Luz, consiste em se sentarem nos portados ou em cadeiras em frente às
portas de suas casas nas noites quentes de verão para falarem com os seus vizinhos.
Com o alargamento dos passeios isso tornou-se difícil de acontecer. As ruas estreitas e
desordenadas desapareceram dando lugar a uma nova aldeia mais homogeneizada e com
uma arquitectura mais moderna. Tal pode ser observado na Imagem 3.
Imagem 3 - Homogeneidade das construções habitacionais e passeios largos
Fonte: Doutor João Luís Fernandes
Oliveira (2011:119) reforça a ideia dos luzenses em relação à antiga aldeia: “a antiga
aldeia “era mais juntinha” e continha inúmeros equipamentos e infra – estruturas
comunitárias, como por exemplo o tanque comunitário. Existia um outro tipo de
convívio “havia sempre gente na rua””. Durante a viagem de campo evidenciou-se a
ausência de população, os poucos cafés que havia estavam fechados - sendo fortes
locais para a socialização, e aos meus olhos era uma aldeia “construída”, transmitia a
ideia de que faltava algo e relativamente à semelhança com a antiga aldeia é muito
pouca.
Na velha aldeia havia fontanários, tendo um deles sido transladado para a nova aldeia
(Imagem 4). É necessário ter atenção de como uma fonte é um símbolo forte numa área
onde a escassez de água é dominante.
Imagem 4- Fontanário da nova aldeia da Luz
Fonte: autora
Outra transladação diz respeito à igreja matriz que remontava ao século XV (Imagem
5).
Imagem 5 – Igreja matriz da nova aldeia da Luz
Fonte: autora
Também foi possível ver o Museu da Luz, sendo uma infra-estrutura da nova aldeia da
Luz, como se pode ver na Imagem 6. O museu foi fundado em 2003, e o seu principal
objectivo resume-se de uma certa forma, em preservar as memórias da velha aldeia e
das actividades que nela predominavam.
Imagem 6 – Museu da Luz
Fonte: autora
Citando Saraiva (2003: 129) “se o ano de 2002 foi o ano em que tudo se fazia “pela
última vez na velha aldeia”, o ano de 2003 era o “ano em que tudo se faz tudo pela
primeira vez na nova aldeia”.
O processo de territorialização é um processo complexo - existe uma perda, tanto
material, como simbólico, como sentimental. Essa “quebra” de sentimento perante um
lugar leva a que não se sintam “acolhidos” no novo espaço. Não existe sentimento, não
existe uma referência, não existe o território que consideravam ser a sua casa. O
problema de não se sentirem parte integrante do novo território foi evidenciada em
grande parte da bibliografia mencionada e Citando Saraiva (2009: 129), “a aldeia nova
não é aldeia – não tem alma”, resta esperar que, (…) os luzenses refaçam as suas almas
e encontrem também o seu sossego de vida à medida que vão (re) criando a alma da sua
nova aldeia”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi notório, a desterritorialização não é um processo novo, porém continua a
deixar marcas na população que se vê obrigada a abandonar o seu território. O processo
de desterritorialização tem sempre o processo de reterritorialização associado.
Quando existe a “mudança” de um território para outro acaba por se perder a identidade
que o homem tinha em relação ao lugar. No caso da aldeia da Luz, a construção da
barragem levou a desterritorialização dos luzenses. No geral, a construção de barragens
vai ter um impacto muito forte na paisagem, sobretudo a montante destas provocando
inundações e submersões do território. No caso da barragem de Alqueva proporcionou o
nascimento do maior lago artificial da Europa e também não é possível imaginar o
Alentejo do futuro sem ter em conta esta nova morfologia. É claro que nem tudo foi
negativo, a construção da barragem foi um dos maiores empreendimentos de Portugal,
mitigou os problemas da escassez de água e gerou turismo.
Todavia, como foi dito no artigo, a mudança para a nova aldeia trouxe conflitos,
discussões e desconfianças, motivadas pelas condições das novas casas. A população
que já tinha boas casas antes de ir para a nova aldeia sentiram que tinha ganho pouco
com a “mudança” para a nova Luz.
Também o facto da morfologia da nova Luz ter sofrido alterações veio reduzir a
densidade de relações sociais. O costume de se sentarem à porta durante as noites
quentes de Verão acabou por mudar, as ruas estão mais largas e os vizinhos mais
afastados, contribuindo para a perda da comunicação e da relação entre eles.
Penso que o desagrado por irem para outro espaço e a transladação do cemitério foram
os aspectos que uniram a população num determinado momento.
Como refere Oliveira (2011: 141), “as pessoas não ganham vínculo com um novo
território só porque são forçadas a residir nele. A relação de topofilia vai muito para
além de se habitar em determinado lugar. Topofilia é o vínculo, o laço, o apego, o afecto
que temos para com determinado território, diríamos que, sobretudo com o simbólico,
‘jogando’ mais com a parte emocional do que com a racional, a importância de
sentirmos uma segurança extrema”.
Deste modo, o apego, o sentimento de pertença a um determinado território não se
transfere para outro. A topofilia mantém-se e é por isso que o processo de
desterritorialização/reterritorialização é tão complexo.
Hoje em dia, a velha aldeia está submersa e algumas das suas recordações podem ser
vistas no Museu da Luz, da nova aldeia ou então contadas pelos luzenses. Neste sentido,
e em modo conclusivo, “a população da luz viveu, sobretudo na última década, perante
a irreversibilidade e inevitabilidade de um processo, a sensação de perda de um passado
que o futuro, se existir, só existirá sob a representação de memórias” (Reino, 2005: 1).
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