Ballesteros - Instituto Gestalt de São Paulo
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Ballesteros - Instituto Gestalt de São Paulo
INSTITUTO GESTALT DE SÃO PAULO MARINA BALLESTEROS EPIFANIO A Angústia do Psicoterapeuta como Instrumento de Trabalho: Uma Reflexão em Gestalt-Terapia São Paulo 2012 MARINA BALLESTEROS EPIFANIO A Angústia do Psicoterapeuta como Instrumento de Trabalho: Uma reflexão em Gestalt-Terapia Trabalho de Conclusão da Formação em Gestalt-Terapia apresentado ao Instituto Gestalt de São Paulo Orientadoras: Ana Paula Campos Lima Myrian Bove Fernandes São Paulo 2012 Agradecimentos A Luiz Lilienthal, pela presença, incentivo, paciência e, principalmente, por escolher me acompanhar no meu processo de crescimento. A Myrian Bove Fernandes, pelo interesse, carinho e disponibilidade para fertilizar minhas sementes. A Maria Regina de Freitas Gergull, pelo acolhimento, profissionalismo e oportunidade de ter contato com sua humildade e humanidade. A Marcelo Borges, por compartilhar momentos quando este trabalho estava ganhando forma e pelo respeito nas ocasiões que necessitei. Sumário 1. Introdução 2 2. Conhecendo o Campo de Trabalho 7 3. Angústia 12 3.1. Angústia e o Ciclo de Contato 14 3.2. Contextualizando a Angústia 17 4. Discussão de Casos 20 Não Quero Escolher 20 Aiko 27 Águia 31 Luara 33 5. Conclusão 35 6. Referências Bibliográficas 38 1 1. Introdução – Você sabe o que quero ser? – perguntei a ela. – Sabe o que eu queria ser?... ... – Você conhece aquela cantiga: “Se alguém agarra alguém atravessando o campo de centeio”? Eu queria... - A cantiga é “Se alguém encontra alguém atravessando o campo de centeio”! – ela disse. – É dum poema do Robert Burns. ... Mas ela tinha razão. É mesmo “Se alguém encontra alguém atravessando o campo de centeio”. Mas eu não sabia direito. - Pensei que era “Se alguém agarra alguém” – falei. – Seja lá como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto – quer dizer ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo... Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer (Salinger, 1951, pg. 147). O trecho acima me tocou profundamente. Há algum tempo tento compreender a diferença entre agarrar o cliente para não deixá-lo cair e encontrá-lo, respeitando seu direito de escolha e possibilidades. Há alguns anos circulo pelo tema do crescimento por meio da relação psicoterápica. Estudei temas como amor na relação terapêutica, relação dialógica e li questionamentos que me encantaram enquanto possibilidade de ser uma boa psicoterapeuta-pessoa: [...] para dar conta dessa profissão só mesmo sendo inquieta e muito sensível. É justamente essa inquietude que nos move. A sensibilidade nos faz diminuir o passo e escutar com atenção (Juliano, 1999, p.114). No entanto, encontro breves citações no que se refere a angústia do psicoterapeuta enquanto confirmação da sua fragilidade: 2 [...] O interessante é que nunca contei a ela a natureza do meu problema de contratransferência, conforme eu o compreendia. Tivemos diversas sessões tensas, as quais eu aguardava, com a respiração presa, para ver se eu realmente poderia tomar conta do problema sem a sua ajuda (Hycner; Jacobs, 1997, p. 213-214). O Psicoterapeuta, assim como o médico, é visto, muitas vezes, como alguém que tem o “poder de cura”, alguém que terá a resposta para estancar a dor do seu cliente. Dessa maneira, a fragilidade do profissional parece ser encarada como despreparo para lidar com determinadas situações, mas pode ser uma ferramenta para a construção do vínculo terapêutico. A humanidade do profissional o iguala a seu cliente e permite a coresponsabilização pelo processo psicoterápico, sem que um seja o possuidor da verdade e o outro passivo para seguir as lições pré-definidas. Escolhi uma linha teórica que compreende a necessidade do psicólogo abrir espaço para fazer com e não para o cliente por meio de atitudes como 1. Presença (o terapeuta mostra-se inteiro na relação, sendo autêntico), 2. Inclusão (sentir o que o outro sente sem perder a si mesmo de vista) e 3. Confirmação (suspensão de valores e préconceitos para a aceitação do outro como ele realmente é, independente de concordar ou não com ele). Mas o que me inquieta são os sentimentos contrastantes ao entendimento da teoria. Nem sempre conseguimos praticar o que estudamos. A impotência, a insegurança, a vergonha, a raiva, são algumas das emoções que podem ser despertadas na relação psicoterápica. Como nós, profissionais, lidamos com as emoções no momento em que estas emergem? O contexto onde escolhemos trabalhar pode propiciar mais ou menos situações em que precisemos lidar com essas emoções. Escolhemos a área de trabalho de acordo com nossas necessidades explícitas e implícitas. Quando escolhemos trabalhar em um ambiente hostil, estamos nos propondo a lidar com situações de tensão e, consequentemente, exercitar nossas capacidades para lidar com as emoções da melhor maneira possível para nosso crescimento e desenvolvimento de habilidades. Iniciei minha carreira atuando em locais que realizavam tratamento para a Dependência de Drogas. Deparei-me com situações em que o limite entre o eu e o outro é tênue. 3 Trabalhei em uma instituição particular cujo tratamento era dedicado para uma maioria de pessoas internadas involuntariamente, ou seja, foram internadas pela família, contra a sua própria vontade, por oferecerem riscos a si próprias e a outros. Neste ambiente lidei com mentiras, manipulações, violência física e verbal. É gratificante quando consigo criar um vínculo com o cliente, quando ele passa a confiar em mim e quando eu acredito no seu potencial. Uma das atribuições do trabalho com dependentes químicos em regime de internação é criar condições para que a relação possa florescer dentro de um ambiente que pode ser sentido como hostil. Citarei, ao longo desta monografia, algumas passagens que me emocionaram pela beleza do compartilhar e do amor terapêutico. No entanto, sinto-me resistente diante das pessoas que não permitem minha aproximação, principalmente quando estou diante de suas manipulações, mentiras e ofensas. É triste e angustiante (valência negativa) sentir que tenho dificuldade para me aproximar quando encontro determinadas pessoas, seja pelas mazelas humanas das quais não estou livre, como orgulho, vaidade, raiva ou pela minha recusa em aceitar que essas pessoas não respondem assertivamente a determinadas situações porque não aprenderam a olhar para o outro, porque estão alienadas de si mesmas. Falo, neste instante, da minha necessidade de transformar a maneira como vivencio a angustia (valência negativa para positiva), aprender a ser tolerante e fazer o que é possível diante de situações que dependem da escolha do outro, sem que eu me sinta impelida a fazer valer o meu valor, reforçando um ambiente hostil. A não-violência não existe se apenas amamos aqueles que nos amam. Só há não-violência quando amamos aqueles que nos odeiam. Sei como é difícil assumir essa grande lei do amor. Mas todas as coisas grandes e boas não são difíceis de realizar? O amor a quem nos odeia é o mais difícil de tudo (Gandhi). Para ilustrar, partilho uma experiência de mediação de conflito entre pessoas internadas na referida instituição de internação compulsória. Era comum lidar com situações em que algumas internas prejudicavam outras quando aquelas não tinham seu desejo satisfeito. Em uma ocasião, fui procurada por A. que informou estar sendo ameaçada por B. porque não queria beijá-la. B. informou que 4 plantaria uma prova de roubo para que A., como consequência do ato de roubo, perdesse a visita dos pais. Esses conflitos eram habituais e, em uma instituição cuja metodologia de trabalho responde aos comportamentos com punições ou gratificações, é comum não identificar quem fala a verdade. O resultado era o aumento das minhas defesas, pois tinha o senso de “justiça” aguçado, desejando a punição de B. - no caso ilustrado - pela tentativa de prejudicar deliberadamente A., apenas por não ter seu desejo satisfeito. Eu voltava minhas energias para tentar impor um limite. As pessoas tóxicas podem contaminar o nosso ambiente, provocando náusea, mal-estar, vampirizando a vida alheia, roubando nossa energia e nos tornando impotentes, inclusive para trabalhar com elas, que requerem tantos cuidados. Trabalham justamente contra tudo o que mais necessitam. E ainda assim, com toda a dificuldade que o trabalho terapêutico apresenta, precisam também de atendimento, afinal não podemos viver só de fadas; as bruxas, com maiores e melhores motivos, precisam ser atendidas (Juliano, 1999, p. 115). Conscientizei-me de minha intolerância e sentia-me culpada: Eu “deveria” abrir espaço para entender e aceitar algumas pessoas que eu atendia. A raiva que sentia, com freqüência, era direcionada para a tentativa de mostrar ou impor os limites e, minha postura tornava-se rígida e defendida. Estava agarrando outras pessoas, porque eu não queria que caíssem. Dedicava-me a elas exaustivamente. Observo que a angústia se faz presente em minha experiência quando não aceito a escolha do outro e tento, incansavelmente, fazer com que ele perceba de maneira diferente. O resultado pode variar entre a impotência ou a onipotência, que me mobilizam, em geral, a afastar-me ou a me misturar com o cliente. Como gestalt-terapeuta, porém, acredito que por meio de um trabalho de ampliação de awareness – estado em que a pessoa “sabe o que faz, como faz, que tem alternativas e escolhe ser como é” (Yontef, 1998, p. 31) – tais defesas, assim como outras que o psicoterapeuta venha a empregar, podem ser melhor direcionadas, possibilitando intervenções mais eficazes e, assim, serem compreendidas como aspectos 5 que desempenham papel fundamental na relação psicoterapêutica. Tentarei refletir e discutir sobre isso ao longo deste trabalho. A partir de tais considerações, o objetivo desse trabalho é propiciar uma reflexão sobre nossas escolhas, enquanto Gestalt-terapeutas, em contextos de alta vulnerabilidade. Ao compartilhar minhas experiências, desejo contribuir para o questionamento do profissional que se percebe angustiado diante de clientes que colocam a própria existência em risco. Um olhar atento às possibilidades de escolha do psicólogo, no decorrer de um processo psicoterapêutico, poderá servir de instrumento para a auto-avaliação, busca por aperfeiçoamento técnico e, principalmente, à valorização das vivências singulares. 6 2. Conhecendo o Campo de Trabalho Faz-se necessário a descrição dos ambientes onde desenvolvi meu trabalho. É importante que o leitor se aproxime da minha forma de vivenciar os acontecimentos. Para tanto, esse trabalho levará em consideração as figuras que elegi como fundamentais para a compreensão. Desenvolvi estágio supervisionado no último ano da Faculdade de Psicologia, pelo período de um ano, em uma comunidade terapêutica. Local para onde retornei, após quase três anos, como Psicóloga. O tratamento oferecido nesta instituição é direcionado, predominantemente, para pessoas que fazem uso abusivo de álcool e/ ou outras drogas ou já preenchem critério diagnóstico para Dependência, bem como comorbidades associadas. Esse local, inicialmente, oferecia internação em regime misto, ou seja, o tratamento era dirigido para ambos os sexos. Passados dois meses do início do meu trabalho como Psicóloga, foi inaugurado outro espaço – que chamarei de Unidade II - com o objetivo de oferecer tratamento, exclusivamente, para a população feminina, já que foi observada a necessidade de se focar em demandas específicas a cada gênero. Existiu um período de transição – aproximadamente dois meses - em que algumas pacientes da unidade I foram transferidas para a unidade II. Nessa época, a população da Unidade I, predominantemente masculina, contava, ainda, com a presença de três mulheres que não aceitaram a transferência. Após a alta dessas pacientes, permaneci desenvolvendo o trabalho, por mais dois meses, com a população exclusivamente masculina. Fui, então, transferida para a unidade feminina e lá colaborei por oito meses. O regime de tratamento de internação pode ser voluntário – quando a pessoa é responsável pela própria internação – ou involuntário – quando os responsáveis legais tomam a iniciativa e se responsabilizam pela internação. A maioria expressiva das pessoas que atendi era internada involuntariamente e permanecia no local pelo período aproximado de quatro meses, tendo chegado, em alguns casos, até nove meses. Na unidade mista os grupos terapêuticos e as atividades de lazer eram heterogêneos. No entanto, os dormitórios, homogêneos, eram separados em duas alas. Cada quarto poderia ser reestruturado, de acordo com o número de pacientes internados, comportando de três a sete pessoas. 7 A Unidade II oferecia dormitórios duplos, triplos e coletivos. Estes comportavam até cinco pessoas. O método de tratamento seguia os mesmos padrões nas duas unidades. Os pacientes eram frequentemente mudados de quarto, fosse pela necessidade da comunidade acomodar as pessoas recém-chegadas ou para minimizar conflitos de relacionamento entre os clientes. A evolução do tratamento estava condicionada à avaliação feita pela equipe técnica, a qual era composta por um médico psiquiatra, três psicólogos e uma enfermeira. Éramos auxiliados por um ou dois consultores em dependência química, um professor de Educação Física, uma artista plástica, um ou dois auxiliares de enfermagem por turno, dois ou três monitores de pátio por turno e auxiliares de cozinha e serviços gerais. A avaliação era realizada em reunião semanal pelos psicólogos, enfermeira, consultor em Dependência Química e pela responsável de “Relações Humanas” (que tinha contato frequente com as famílias). Algumas reuniões contavam com a presença do médico psiquiatra, professor de educação física e monitores de pátio. A avaliação era feita de acordo com regras estabelecidas no início do tratamento. Participação nas atividades, arrumação dos objetos pessoais e comportamento adequado às regras eram os requisitos fundamentais para a pontuação semanal. Esta pontuação era contada de forma decrescente de dez a zero ponto. Caso a pontuação pré-estabelecida (mínimo de oito pontos) não fosse atingida, a pessoa em tratamento perdia o direito a ligação telefônica – liberada uma vez por semana com supervisão da psicologia – e possíveis visitas dos familiares, que aconteciam de uma a duas vezes por mês, pelo período máximo de uma hora, somente após o primeiro mês de internação. O processo de ressocialização que consistia na volta gradual da pessoa para casa com o objetivo de avaliar a readaptação no contexto social – a pessoa poderia passar o final de semana ou dez dias em casa e depois retornar para a internação para o término do tratamento – também poderia ser perdido de acordo com a avaliação semanal. As atividades desenvolvidas na grade como pré-requisito para avaliação eram: • Grupos psicoterapêuticos; • Dinâmicas grupais; • Atividades desenvolvidas pela artista plástica; • Atividade física supervisionada; • Grupos de reflexão realizados pelos próprios pacientes; 8 • Atividades sobre espiritualidade (sem religião estabelecida) e • Atividades desenvolvidas pelos Conselheiros em Dependência Química – responsáveis pela programação dos “Doze Passos” dos Alcoólicos e Narcóticos Anônimos. Sua tarefa abrange o auxílio no desenvolvimento das metas a serem estabelecidas pelo paciente e a prevenção de recaída, segundo um enfoque cognitivo-comportamental. Outras atividades oferecidas que não eram computadas eram: • Atendimento psiquiátrico (semanal ou quinzenal); • Atendimento psicológico individual (duas vezes por semana) e • Atendimento diário pela equipe da Enfermagem. As regras estabelecidas para os funcionários e as alterações de projeto terapêutico dos pacientes propostos pela responsável de “Relações Humanas” nas reuniões de avaliação semanais eram fatores de conflitos constantes entre a visão de saúde e a visão administrativa que interferia nos procedimentos técnicos. Outro fator de conflito eram as atribuições do psicólogo. Iniciei meu trabalho nesta empresa com carga horária semanal de 40 horas mais um plantão mensal de quatro horas aos finais de semana. No entanto, solicitei redução de carga horária para 30 horas semanais mais o plantão mensal. Cada psicólogo tinha as seguintes atribuições: • Atendimento psicológico de 12 pacientes, em média, que deveriam ser atendidos duas vezes na semana; • Um grupo terapêutico semanal; • Atendimentos telefônicos, duas vezes por semana, com duração de duas horas (Esse tempo era dividido entre o contato telefônico feito pelos familiares para o psicólogo, com o objetivo de obter informações sobre o processo dos pacientes e posterior contato telefônico supervisionado entre familiares e pacientes). A regra de atendimento supervisionado foi estipulada para evitar que a família sofresse tentativas de manipulação pelo paciente; • Visitas familiares assistidas; • Reunião técnica semanal com duração média de 2h30’ e • Mediação dos conflitos constantes entre os pacientes ou entre eles e os funcionários. 9 Os conflitos existentes entre pacientes e clínica estavam, invariavelmente, ligados às regras estabelecidas. Cito alguns exemplos a seguir: 1) Reclamação sobre a qualidade e a quantidade da comida servida. Os pacientes queixavam-se sobre a gordura e repetição da mistura, além da pouca quantidade de frutas no café da manhã ou, ainda, sobre não poder repetir a sobremesa que era, comumente, servida em copinho de café. Era comum ouvir de pacientes e de familiares que se pagava muito bem para o tipo de serviço alimentar oferecido. A queixa sobre alimentação ocorria nas duas Unidades. No entanto, havia maior incidência de reclamação na Unidade II. A administração justificava a preocupação com desperdício (que realmente ocorria) e o cuidado com a compulsão alimentar. Esse último fato não poderia ser justificado, pois as clientes poderiam recorrer a cantina (local onde cada família disponibilizava um valor diário para ser consumido). 2) O serviço de cantina permitia que houvesse troca entre pacientes. Aqueles que não tivessem valores disponíveis, seja porque a família não liberou ou porque perderam pontuação para ter direito de retirar os produtos, faziam trocas com pacientes que tinham o direito. Essas trocas poderiam ocorrer com alimentação, cigarros de tabaco e roupas. Pela dinâmica do local, a intervenção da equipe técnica para tentar solucionar esses problemas era habitual. No entanto, dificilmente identificávamos a raiz do problema, fato que culminava em punições coletivas e desconfiança. 3) A equipe técnica era vista pelo grupo como extensão das regras da clínica, fato que dificultava a criação do vínculo de confiança. Isso era denunciado, por exemplo, quando o paciente não tinha privacidade para conversar ao telefone ou receber visita do familiar sem a presença de um psicólogo. Minha postura, nesses casos, dependia do grau de confiança na relação, da evolução do cliente no processo e do entendimento da família sobre a manipulação. As visitas eram fator de estresse no trabalho, pois, dependendo do desenrolar do encontro, a família poderia pedir alta para o paciente. Existia forte pressão administrativa para que isso não ocorresse. Minhas ferramentas sempre foram utilizar as mesmas palavras com familiar e cliente, diminuindo as chances para interpretações errôneas e manipulações. O foco deveria estar em como o cliente reage às situações adversas, sem que eu precisasse justificar questões administrativas que deveriam ser discutidas com a área específica. Os casos escolhidos para apresentar neste trabalho sofreram influências do contexto descrito acima. A minha relação com essas pacientes foi permeada de questões contraditórias 10 entre minhas crenças, minha técnica e visão de Homem e minhas incertezas sobre qual poderia ser o melhor caminho a ser seguido diante das inter-relações do campo. 11 3. Angústia Agrada-me refletir sobre a angustia por meio de considerações da filosofia existencial-humanista. A concepção de que o homem só pode existir em relação é fundamental para entendermos os conceitos de liberdade e responsabilidade, ambos atrelados a angustia. A idéia de coexistência define o relacionamento entre indivíduos como essencial. A existência não se basta a si mesma, é necessário transcendê-la por meio da coexistência (Chalita, G. 2005, pg. 356). A busca pela liberdade é condição de nossa existência. No entanto, é também, uma utopia. Pois, ao entrarmos em relação com o meio, deparamo-nos com a liberdade do outro. Não somos inteiramente livres. Temos uma fronteira entre Eu – Mundo. O conceito de fronteira sugere que, ao entrarmos em contato com as possibilidades de escolha para satisfazermos nossas necessidades, confrontamo-nos com nossa humanidade, ou seja, com a impotência, a finitude, com a impossibilidade de sermos onipresentes. Por estarmos em relação, nossas escolhas afetam o meio e este nos afeta. [...] o ser humano não pode encontrar a si mesmo sem coexistir, o que equivale a reconhecer que a realidade e a ordem do mundo dependem essencialmente de seus vínculos com os outros (Chalita, G. 2005, pg. 356). É consenso que a palavra “responsabilidade” significa habilidade em responder. Quando nos debruçamos sobre nossas experiências, prestando atenção na maneira como escolhemos e nos resultados que obtemos, passamos a desenvolver estratégias mais elaboradas para escolher como vivenciar determinada situação. Conforme nos tornamos mais responsáveis, nossas possibilidades se ampliam, pois nos tornamos conscientes de como afetamos e somos afetados pelo meio e, sobre o grau de satisfação ou sofrimento que produzimos a nós mesmos - de acordo com o sentido dado por nós. Nas palavras de Sartre: “O essencial não é o que se fez do Homem, mas o que ele fez do que fizeram dele” (Ginger, 1987 p.41 apud Masquelier, 2003, p.23). 12 Ainda que possamos prever alguns resultados, nunca teremos certeza sobre as consequências das escolhas e, em muitos momentos, não temos clareza a respeito de nossas necessidades, que podem ser confusas ou conflituosas. Sendo assim, a liberdade de escolha pode gerar angústia. Sobre a angústia, Kierkegaard dirá ainda que a saída da ignorância para a autoconsciência é o que conduz o humano até ela, por confrontá-lo com a insegurança da pura possibilidade - a liberdade (Peres, M.B; Holanda, A.F., p.5, 2003). É necessário ampliar a awareness para que uma escolha possa ser feita de forma livre, em que a pessoa tenha conhecimento sobre o que a atormenta ou aflige em uma situação. Dessa maneira, a escolha promoverá a transformação. No primeiro momento, a angústia proveniente da liberdade de escolha parece remeter a paralisação, pois não há foco. Mas por ter a contingência de ser resolvida, pela inquietude presente, impulsiona à busca de um sentido, da melhor resposta possível a ser dada à situação angustiante. Só vivenciando esta experiência de dor o homem poderá chegar à vivência da angústia como mobilização, como abertura para a mudança, “positivando” a experiência de ter possibilidades e escolhas. A não-negação das polaridades permite a consciência da totalidade do organismo, cujo funcionamento inclui a tensão constante em busca da autoregulação, na qual reside o conceito de saúde em Gestalt-Terapia. Neste sentido, a angústia pode ser entendida como esta tensão que mobiliza o organismo no sentido de auto-regular-se (Peres, M.B; Holanda, A.F., p.10, 2003). A angústia parece estar presente em um momento que é necessário uma ação, ou seja, a pessoa percebe uma situação de emergência ou alerta e tem consciência que necessita responder, mas paralisa momentaneamente, pois não está aware para escolher qual a melhor ação possível para aquela situação. 13 3.1. Angústia e o Ciclo de Contato Acredito que a compreensão da vivência de angústia possa ser ampliada pelo tema do Ciclo de Contato proposto pela Gestalt-Terapia, razão por que me proponho a desenvolvê-lo nas próximas linhas. Para satisfazer uma necessidade que emerge como figura, é necessário vivenciar as etapas do contato. São elas: Sensação, consciência, mobilização de energia, ação, contato final e retraimento. Neste processo, existem as “funções de contato” ou defesas que podem ser utilizadas de forma fluída e criativa ou cristalizada (quando não estamos aware, são usadas mecanicamente e a energia é desviada). Cada função de contato é utilizada de acordo com a etapa do ciclo onde o contato foi interrompido. As funções de contato ou defesas atualmente estudadas são: confluência, fixação, dessensibilização, deflexão, introjeção, projeção, profexão, retroflexão, egotismo. Elegi algumas delas para comentar. Mas é necessário aprofundar na retroflexão. Esta função é essencial para a compreensão deste trabalho no que se refere à angústia em sua relação com o ciclo de contato. Confluência: É um estado em que a pessoa não se diferencia do meio. As fronteiras estão tão abertas que as identidades se misturam. A pessoa “busca diminuir as diferenças para aumentar a sensação de pertencimento” (Antloga, C.S.X, p.40, 2003). Deflexão: Capacidade de a pessoa retirar a energia de situações difíceis e tomar distanciamento, evitando contato direto. Lima e cols. (2006) colocam que em situações muito tóxicas, a deflexão pode ser um instrumento de resiliência, podendo utilizar o humor como estratégia para enxergar as coisas por uma perspectiva menos dolorosa. Antloga coloca que o “uso de estratégias, como fala excessiva, para evitar-se chegar ao ponto central, ao que importa de fato” é uma forma de bloqueio, já que “o defletor investe as energias de modo inadequado e ineficaz, de forma que esses esforços não lhe rendem recompensas” (Antloga, C.S.X, p.37, 2003). 14 Introjeção: Quando a pessoa incorpora aspectos do meio, mas não os assimila. É uma fase natural da aprendizagem. No entanto, “como bloqueio, refere-se a aceitação passiva e indiscriminada de ideias e elementos estranhos, vindos de fora da fronteira de contato. Estes elementos tomam, para o indivíduo, a conotação de verdade absoluta e ele segue os preceitos de forma criteriosa” (Antloga, C.S.X, p.38, 2003). Projeção: Quando a pessoa atribui ao meio seus próprios elementos. Nessa situação, a pessoa não assume a responsabilidade pelo que é seu, experimentando a desconfiança para com os outros. Proflexão: Quando a pessoa faz ao outro aquilo que gostaria que fizessem para ela, acreditando que o outro é capaz de suprir suas necessidades. A energia é dirigida para fora, mas na expectativa de uma resposta previsível do outro. Há, na base desse tipo de comportamento, um dentimento de falta de suporte interno, como se o outro tivesse os caminhos para a realização e a felicidade. Busca-se, no outro, aquilo que se necessita, e que está dentro de si mesmo (Antloga, C.S.X, p.35, 2003). Retroflexão: Pode ocorrer de forma funcional em situações que a pessoa experimenta a sensação de perigo: Se ocorre apenas ocasionalmente, pode ser um recurso importante de enfrentamento. Isso porque muitas vezes não é possível mudar o ambiente. Um indivíduo, por exemplo, que consegue reconhecer os momentos em que não adianta pedir por ajuda porque esta não virá e retroflete, fazendo, então, o que tem que fazer por si mesmo, terá feito algo importante para se manter resiliente (Lima, A.P. e colaboradores, p. 55, 2006). Mas também pode acontecer de forma cristalizada: A retroflexão é compreendida como um bloqueio que interrompe o contato no momento da interação, significando que a pessoa dispensa o contato com o outro, voltando para si mesmo uma energia que seria naturalmente dirigida para a relação. Essa dinâmica parece envolver um tipo de individualismo muito presente e valorizado no mundo contemporâneo: auto-suficiência, autocontrole, a necessidade permanente de ocupação e atividade, a crença de que o outro não está disponível e, portanto: – “eu 15 preciso resolver meus problemas sozinho, deixa que eu resolvo” (Alvim, M.B.; Bomben, E.; Carvalho, N., pg.183, 2010). A angústia parece estar localizada antes da ação, na etapa de mobilização de energia e, quando não estamos aware, a energia não parece seguir o fluxo de forma fluída. Ou seja, existe um bloqueio e, a retroflexão passa a ser utilizada de forma cristalizada. Dessa maneira, não é possível experimentar a satisfação/ fechamento da figura. Egotismo: Quando a pessoa bloqueia a espontaneidade por tentar ter o controle da situação. Usa muitas racionalizações e limita o contato com o meio. “...para que o contato final ocorra, a espontaneidade deve poder suceder à deliberação: é preciso se permitir relaxar o controle, se soltar e ter a coragem de se comprometer” (Struchiner, C. D., pg.39, 2008). O ambiente deixa de ser uma fonte de nutrição e trocas possíveis e passa a ser algo a ser dominado: o foco do egotista não é mais contatar para crescer, mas conhecer para controlar [...] Como o processo do self é obstruído, o contato não finaliza e não se obtém a satisfação no meio, mas em si mesmo. A satisfação possível do estilo egotista, portanto, está na vaidade, na autonomia e na autosuficiência (Struchiner, C. D., pg.40, 2008). 16 3.2. Contextualizando a Angústia As angústias sentidas pelos profissionais da saúde raramente são explicitadas. No entanto, são elas que nos impulsionam a tomar decisões. Escolhi comunicar as angústias que vivenciei em meu cotidiano como Gestaltterapeuta, pois em muitos momentos questiono minha conduta. Este questionamento está ligado com atitudes extremas diante de situações de conflito e até de risco de vida do outro. Compartilho com honestidade minhas angústias, experiências e questionamentos e faço um convite à reflexão das possibilidades de escolha e do sentido dado a elas. As intervenções do Gestalt-terapeuta requerem cuidado1 e, para tanto, é preciso entender o que o inquieta. Ou seja, o cliente necessita ser acompanhado em sua singularidade e, o encontro entre ambos, tenderá a ser satisfatório caso o profissional atente para como a singularidade do cliente o afeta. É por meio das vivências que o profissional poderá ficar aware para resolver sua angustia. Quanto mais a pessoa nega sua experiência – sentimentos, emoções, pensamentos, ações, desejos – maior o estado de paralisação e fechamento que gera para si mesma, entrando em um ciclo de manutenção do estado de ausência de saúde. Negar a sensação de estar angustiado significa interromper o contato com uma parte de si mesmo (Holanda, A.F.; Peres, M.B., 2004, pg. 9). Grifo meu. Quando li o trecho do livro “O apanhador no campo de centeio” em que o personagem falava em passar o dia inteiro agarrando as pessoas para que elas não caíssem, lembrei de clientes que passaram pela minha vida e que, por meio de seu 1 Ao pesquisar o significado da palavra cuidado no Novo Dicionário Aurélio - para verificar se o seu emprego condizia com o sentido que pretendia dar a frase - encontrei: 3. Diligência, desvelo, zelo. No entanto, tive grata surpresa ao ler: 5. Inquietação de espírito. 17 processo psicoterapêutico, fizeram com que eu me defrontasse com as polaridades controle X descontrole; certo X errado; rigor X brandura. A retroflexão como bloqueio pode conceber “... pessoas constantemente batalhando contra si próprias, se impondo regras rígidas, com um sistema exacerbado de autocontrole, vivendo em constante conflito, sem saber o que é delas e o que não é” (Alvim, M.B.; Bomben, E.; Carvalho, N., pg.185, 2010). O vínculo com alguns clientes facilitou que eu contatasse minhas polaridades. Inúmeras experiências foram palco para que eu acreditasse na necessidade de “fazer” com que o cliente percebesse que o caminho escolhido era prejudicial. A minha tentativa era ou, de vez em quando, ainda é, impedir que essa pessoa se desintegre. Talvez minha atitude seja reforçada por se tratar de questões de risco eminente que requerem intervenção imediata como, por exemplo, o uso nocivo de drogas e suas conseqüências para a existência dessas pessoas e de seus familiares. Para facilitar a compreensão da minha angústia diante dessas situações vou utilizar o ofício dos Bombeiros como meio de reflexão e posteriormente descreverei minhas vivências. Esta escolha foi feita pela constatação de que este profissional lida com o risco eminente de morte e sua ação produz efeitos concretos, o que facilita a transição para vivências subjetivas. Pensemos sobre as seguintes questões: O que faz um bombeiro quando um prédio está pegando fogo e existem pessoas dentro dele? Sabemos que este profissional é tecnicamente preparado para enfrentar essa situação e que só entrará no prédio caso sua equipe avalie essa ação como uma possibilidade. No entanto, com todo o conhecimento e técnica, ele está totalmente seguro de que sairá do prédio sem nenhuma lesão? Ele entra no prédio sabendo que enfrenta o risco de não salvar a vida dos outros e que coloca a sua em risco. Este saber não o impede de entrar no prédio e, possivelmente, sair com queimaduras. Considero importante fazer um adendo para localizar o leitor no meu histórico pessoal. Esse trabalho começou a ser elaborado há quatro anos. Não conseguia desenvolver o capítulo conceitual sobre angustia. Tive crises de raiva, apaguei muitas 18 páginas que não faziam sentido e fiz inúmeras pausas. Entre uma pausa e outra, fiz entrevistas com psicólogos com o objetivo de encontrar respostas para a angústia sentida pelos psicoterapeutas. Desisti dessa ideia ao perceber que só eu poderia responder a angústia sentida por mim. Então, selecionei quatro casos que atendi na clínica de tratamento para dependentes químicos. Estes casos tiveram aspectos afetivos importantes e possibilitaram questionamentos acerca das minhas angustias e interrupções de contato. A angústia está presente quando ajo baseada no conceito de certo X errado, quando tento dar conta – sozinha - de uma situação difícil e não aceito algo diferente do meu conceito. O meu caminho conhecido é, de acordo com a analogia, entrar em prédios que pegam fogo. Saio queimada, resgato algumas vítimas e não me pergunto se eu quero continuar a correr esse risco, procurando pessoas que eu não consigo alcançar. Agia como se fosse minha obrigação, o “correto” a ser feito e o resultado, ainda que não fosse claro, atendia os meus valores (ser corajosa e importante para o outro). [...] o indivíduo se divide e age manipulando a si próprio como se fosse o meio. O controle, que antes era exercido por outro, se internaliza. O poder disciplinar é produto das instituições coletivas, mas elas agem individualizando, isolando e vigiando o sujeito individual (Hall, 2003, p. 43). “Eu” passo a ser o meu próprio capataz, que “me” obrigo a correr, trabalhar, produzir, brilhar. Sinto-me necessário, importante, insubstituível, poderoso, independente. E sofro: depressão, [...], stress (Alvim, M.B.; Bomben, E.; Carvalho, N., pg.186, 2010). Adiante veremos as descrições de casos atendidos por mim. Considerando as situações em que minhas defesas contribuíram para o ajustamento criativo e quando permaneceram cristalizadas, faremos a discussão sobre o direcionamento dado aos casos. 19 4. Discussão de Casos Não Quero Escolher Inicio a discussão desse caso pelo processo de escolha do nome que protege a identidade da cliente. Quando solicitei que escolhesse uma palavra que substituísse o seu nome, para uso neste trabalho, ela respondeu: Então, não quero escolher, vou dar umas dicas e se você gostar de algum você usa, está bem assim? Eu pensei em: Vitória, Constância, Fênix, Perseverança, Realismo (Dezembro de 2009). Ao ler sua resposta tive clareza de como eu queria nomeá-la, pois, para mim, a expressão “Não quero escolher” reflete a maneira pela qual ela vivencia algumas situações. Não Quero Escolher, 27 anos, sexo feminino, foi internada involuntariamente pela família. Fazia uso abusivo de cocaína e mesclado (crack e maconha), tendo prejuízos em todas as esferas de sua vida. Mostrava-se interessada no tratamento, mas tinha comportamentos incoerentes. Um episódio que evidencia essa incoerência se deu quando apontei seu comportamento de julgar outros pacientes sem perceber que agia de forma semelhante. Ao dizer que era contra o uso de armas e violência cuja apologia era feita por outros pacientes, fazia gestos manuais imitando um revólver em cada mão e o tom de voz aumentava. Lembrei-me da “linguagem dos manos”. Imitei seus gestos e disse que sua fala era contraditória a maneira pela qual se expressava. Recordo-me que esta intervenção fez sentido para a cliente que, posteriormente, disse que eu enxergava e ouvia coisas além do que era comunicado. Encaro este acontecimento como o marco de sua disponibilidade para que construíssemos uma relação de confiança. Passamos a olhar para suas escolhas de maneira que ela tivesse a possibilidade de se perceber como responsável por suas perdas, pois, até então, a família era a única responsável por seu sofrimento de estar internada e longe do seu filho de dois anos. 20 Não Quero Escolher entregava-me citações do Fernando Pessoa com frequência. Demonstrou interesse por filosofia. Leu alguma coisa sobre Nietzsche. Fez anotações sobre solidão. Entre as anotações entregou-me a seguinte: [...] Ele quer apenas o SIM, a aceitação da escolha; nada do NÃO, da renúncia. Ele ilude a si mesmo: faz escolhas, mas se recusa a ser aquele que escolhe (Autor desconhecido). Certa vez, pedi para que tentasse escrever algo seu. Transcrevo parte destes pensamentos: Ás vezes, a sensibilidade do outro sobre o Eu, ou os pontos que tornam conflitos, as análises é que fazem me abrir, me conhecer; justamente esse abrir que se mistura. Quanto mais me deixo invadir mais me sinto conhecedora e talvez seja uma tendência natural que, a partir do momento que me deixo entrar/aproximar (fato que bloqueio muito), uma parte do outro está em mim e é nessa hora que o limite é tênue, pois o trabalho de confiança é uma via de mão dupla (Não Quero Escolher, dezembro de 2007). Tal reflexão confirma minha percepção quanto a ambivalência dessa cliente, que se mostrava sedutora e ao mesmo tempo desconfiada. Dizia que eu era muito importante para o seu tratamento, mas burlava regras da clínica e omitia fatos que pudessem trazer conseqüências negativas para si. Eu ficava insegura quando sentia que era necessário negar suas vontades. Eu tinha um grande desgaste de energia para escolher quando flexibilizar regras e quão produtivo seria isso para o seu “tratamento”. A palavra “produtivo” está ligada às minhas inúmeras tentativas de ajudá-la a escolher de maneira assertiva. Era necessário cuidar para não fazer suas vontades, já que eu ficava insegura quando sentia que negá-la poderia significar perder sua confiança. Noto, agora, como eu fui responsável pelo meu desgaste de energia, já que minhas atitudes refletiam minha não-aceitação quando as escolhas da cliente não seguiam o padrão que eu considerava “bom” para ela. Certa vez, uma equipe de televisão teve autorização para fazer uma reportagem sobre o tratamento da Dependência Química na clínica. Eles garantiram aos pacientes que estes não seriam identificados pela imagem ou voz. No entanto, “Não quero escolher” se mostrou 21 inconformada. Os outros pacientes começaram a ficar agitados. Isso fez com que alguns profissionais tomassem a atitude de medicá-la. Eu sentia que aquilo colocaria seu tratamento em risco. Medicá-la de forma invasiva aumentaria sua revolta. Então, tomei a decisão de convencê-la a se acalmar. Fiz algumas concessões e, após longo desgaste, ela se acalmou. Lembro de ter ido embora cansada e preocupada que ela colocasse sua saída de Natal a perder. Hoje percebo que estava “agarrando” esta cliente, “brincando” com minha onipotência. Nessa ocasião, Não Quero Escolher agiu assertivamente. No entanto, eu não percebia que estava tentando controlar suas atitudes. Agarrá-la significava tentar incansavelmente resolver os problemas. Mas eu não os resolvia (porque isso estava além do meu desejo e ação). Então, surgiam outras situações-limite em que eu poderia agarrá-la novamente, em mais uma tentativa de fazer com que ela escolhesse formas mais saudáveis de lidar com as situações. A seguir, relato episódio que marcou o início do meu processo de supervisão, que foi fundamental para que eu diferenciasse minhas expectativas da demanda real da cliente, suas possibilidades e escolhas. Após a alta médica do tratamento no regime de internação, esta cliente escolheu iniciar psicoterapia comigo, no meu consultório. A relação tinha mudado. Não tínhamos mais a interferência das regras institucionais a serem seguidas. Em curto espaço de tempo contou-me a respeito de uma recaída. Lembro-me de ter voltado para casa triste e desanimada para fazer o que tinha programado para minha sexta-feira à noite. Percebi que estava tentando fazer mais do que podia por ela e decidi levar adiante a minha programação, procurando não pensar mais na cliente. No entanto, após cinco minutos da minha chegada ao local aonde iria me divertir, desmaiei. A relação entre os fatos era nítida para mim. Eu não tinha o controle nem sobre o que eu poderia suportar. Consegui organizar-me para continuar atendendo. A supervisão possibilitou, entre outras coisas, a reflexão sobre o fenômeno da codependência: É uma doença emocional. Uma pessoa codependente é aquela que deixa o comportamento de outra pessoa controlar o seu e que fica, por seu turno obcecada em controlar o comportamento desta outra pessoa (Orth, A.P.S., 2005. Glossário, p. X). 22 Eu tinha dificuldade em lidar com sua solicitação para sermos amigas, para fazermos a sessão fora do consultório. Eu tinha clareza de que não poderia ajudá-la dessa maneira, já que minha tendência, naquele momento, era agarrá-la a cada situação-limite e eu não tinha autosuporte para isso. Ela pôde manifestar sua frustração em relação ao que eu estava disposta a oferecer quando X. (paciente que teve alta antes de Não Quero Escolher) contou que voltou a ser internada por vários meses na mesma clínica após ter recaído. Não Quero Escolher referiu ter sentido raiva por eu não ter contado, apesar de saber qual era o meu papel. O reconhecimento de que eu não agiria conforme sua expectativa contribuiu para que fossemos definindo os papéis de cada uma na relação. Questionou-me sobre a possibilidade de eu indicar para sua família que a internassem contra a sua vontade. Respondi que isso seria possível, dependendo do risco de suas ações para sua vida ou de outros, mas que esse seria o último recurso e não seria feito sem seu conhecimento. Havia pouco comprometimento da cliente com o seu processo. Deixei de fazer concessões. Informei que aumentaria o valor da sessão, pois o valor estava defasado. Ela pediu tempo para pensar, queria fazer psicoterapia a cada 15 dias - apesar de não ter dificuldades financeiras (comprou moto, pagou viagens). Neguei a possibilidade. Passadas duas semanas do seu pedido para adiar a decisão sobre a continuidade ou não da psicoterapia, chegou 40 minutos atrasada para a sessão e justificou ter passado o dia todo dormindo em um hotel, pois havia usado droga na noite anterior. Repeti uma fala que, em outra ocasião, ela já havia deixado claro não ter gostado. Afirmei que se ela não parasse, iria morrer. Não Quero Escolher não avisou sobre a decisão de parar a psicoterapia. Mas, na última sessão que compareceu, li dois trechos do livro “O Apanhador no Campo de Centeio” para ela: Aí, bolei o que é que eu devia fazer: ia fingir que era surdo-mudo. Desse modo, não precisava ter nenhuma conversa imbecil e inútil com ninguém. Se alguém quisesse me dizer alguma coisa, teria de escrever o troço num pedaço de papel e me entregar. Depois de algum tempo iam ficar um bocado aporrinhados de ter que fazer tudo isso, e aí eu nunca mais precisaria conversar pelo resto da minha vida. Todo mundo ia pensar que eu era só um infeliz dum filho da mãe surdo-mudo, e iam me deixar em paz sozinho. Me deixavam botar gasolina e óleo na droga dos carros deles, e me pagavam um salário para fazer isso. Com o dinheiro que fosse ganhando, construiria uma cabaninha para mim em algum lugar e viveria lá o resto da vida. Ia fazer a 23 cabana bem pertinho de uma floresta, mas não dentro da mata, porque ia fazer questão de ter a casa ensolarada pra burro o tempo todo. Cozinharia minha própria comida e mais tarde, se quisesse casar ou coisa parecida, ia encontrar uma garota bonita, também surdo-muda, e nos casaríamos. Ela viria viver comigo na cabana e, se quisesse me dizer alguma coisa, teria de escrever numa porcaria dum pedaço de papel, como todo mundo (Salinger, cap. 25, 1951). Grifo meu. Os trechos sublinhados chamaram minha atenção pela maneira que o personagem se relaciona com o mundo. Ele anseia por contato, por calor. No entanto, dificulta a aproximação das pessoas. Mesmo aquelas com quem se relaciona afetivamente necessitam gastar muita energia para conseguir contatá-lo. Coloquei para a cliente que a identifiquei com esse personagem e expliquei o motivo. Ela confirmou minha percepção. Por fim, fiz a leitura do seguinte parágrafo: A essa altura, já era mais ou menos meio-dia e dez, e por isso voltei para junto da porta, para esperar pela Phoebe. Pensei que aquela podia ser a última vez que eu ia vê-la. Ela ou qualquer dos meus parentes. Imaginei que provavelmente os veria outra vez, mas muitos anos depois. Poderia voltar para casa quando tivesse uns trinta e cinco anos - pensei - caso alguém ficasse doente e quisesse me ver antes de morrer, mas só assim eu deixaria a cabana e voltaria. Sabia que minha mãe ia ficar nervosa pra chuchu e ia começar a chorar e a me pedir que ficasse em casa, que não voltasse para minha cabana, mas eu iria embora de qualquer maneira. Ia bancar o superior. Ia acalmar minha mãe e aí atravessava a sala, tirava a cigarreira do bolso e acendia um cigarro - tudo isso com a maior calma. Diria a eles que me visitassem algum dia, se tivessem vontade, mas não ia insistir nem nada. Uma coisa eu ia fazer: ia deixar que a Phoebe fosse me visitar no verão e nas férias da Páscoa e do Natal. E deixaria o D.B. passar algum tempo comigo, se ele quisesse um lugar simpático e quieto para escrever. Só que não ia poder escrever nenhum filme na minha cabana só contos e romances. Ia estabelecer essa regra, que ninguém podia fazer nada de falso quando me visitasse. Se alguém tentasse fazer qualquer coisa falsa, ia ter que ir embora (Salinger, cap. 25, 1951).Grifo meu. Intuitivamente este trecho foi lido como um encerramento. Lembro-me de ter me emocionado. Quando choro em uma sessão sinto dificuldade para direcionar minha emoção de 24 forma produtiva para o processo. Sinto-me incomodada, deslocada. Torno-me figura. Não consegui conter o choro quando li o trecho sublinhado. E psicólogo que chora em sessão não é visto com bons olhos. Neste sentido vale identificar como fiquei angustiada e bloqueei o contato. Retrofleti, sentindo a necessidade de conter a emoção. Apesar de compreender a identificação com o texto lido, não pude aceitar minha impotência diante da situação. Num cenário competitivo e refratário às diferenças, não há acolhimento, não há espaço público em qualquer grau para a manifestação de fraquezas, de impossibilidades, tampouco de impotência, o que contribui para a geração nas pessoas de um movimento de isolamento e contenção que se reflete no corpo: adoecimento e sofrimento. Ao nos sentirmos amedrontados diante de um mundo que não nos oferece espaço para ser com nossas diferenças, recuamos e evitamos o conflito, ao qual pacificamos prematuramente. Passamos a compartilhar exatamente os mesmos valores já instituídos. Nossa dimensão criativa, espontânea, genuína fenece aos poucos em nome da homogeneidade. (Alvim, pg186, 2010) Ainda assim, não poderia mais agarrá-la. Queria encontrá-la, mas não conhecia outra maneira de ajudar. Apesar de eu estar disponível, era necessário que ela também estivesse. As necessidades não são só de outros. Em nível mais profundo, elas pertencem, refletem e falam de uma situação que também correspondem às minhas necessidades. Assim como quem vem me procurar vem em busca de ajuda, eu também preciso dele para expressar minha capacidade de ajudar (Juliano, Jean Clark, 1999). Quando penso nesta relação e faço um paralelo com o ofício dos bombeiros, percebo minhas queimaduras e tenho consciência de que a técnica não ensina como se relacionar com o cliente e nem qual o caminho a percorrer diante da angústia. Eu fui testando minhas possibilidades e percebi que a aceitação e a admiração direcionadas a mim não poderiam interferir no processo de maneira que eu sentisse medo de quebrar o vínculo afetivo por causa 25 de alguma intervenção. Às vezes, era necessário confrontá-la e isso demandava muita energia, pois eu tinha medo de que fosse embora. Descobri que frustrar suas expectativas em relação a mim e, ao mesmo tempo, respeitar sua escolha de como viver era um exercício, ainda que dolorido, de amor e crescimento pessoal e profissional. 26 Aiko Aiko, 32 anos, sexo feminino, internada voluntariamente por abuso de álcool. Tive informação prévia de que ela havia fugido da clínica em uma internação anterior e fora encontrada inconsciente por uso de álcool em uma importante avenida na cidade de São Paulo. Seu nível de exigência com si própria e com os outros era alto. Uma das primeiras coisas que lembro ter ouvido de AiKo foi “Eu coloco fé em você”. Essa frase é um exemplo de situação que desencadeava angústia. Talvez eu não tivesse clareza do quanto cobrava de mim mesma para não falhar com essa cliente. Colocava-me disponível, mas sentia que era um trabalho que demandava muita energia e constante autoavaliação para identificar se eu estava tentando atender suas expectativas. Logo no início do tratamento, Aiko colocou que necessitaria ficar internada por maior período do que o tempo de quatro meses inicialmente proposto pelo programa da clínica. Sentime testada, já que era freqüente ouvir dos pacientes que “a clínica” manipulava os familiares para manter as pessoas internadas pelo máximo de tempo possível. Recordo-me de ter respondido que era muito cedo para avaliar isso. Na clínica, sentir-me testada era comum. Eu sentia que precisava agir sozinha para descobrir as “verdades” dos conflitos e que em muitas situações, os clientes que eu queria ajudar eram os mesmos que queriam me manipular para atingirem seus objetivos. Na retroflexão, a pessoa enrijece sua fronteira de contato com o meio, restringe o seu mundo ao seu próprio universo psicológico. Acredita que pode fazer melhor sozinha aquilo que poderia fazer com a ajuda do outro. O outro é visto com desconfiança, uma vez que no passado ele não pôde contar com ninguém para agir espontaneamente na direção da satisfação de suas necessidades. Sua melhor solução – no sentido da boa forma – foi aprender a fazer tudo sozinha e acreditar que não pode contar com ninguém, deve se bastar (Alvim, p.184-185, 2010). No entanto, conforme o tempo passou, pude notar que a solicitação de Aiko era coerente com suas atitudes, pois a clínica era considerada um fator de proteção para suas recaídas. 27 Apesar de a cliente sentir segurança em ambiente de internação, conforme foi criando auto-suporte, ela pôde se responsabilizar pelas próprias escolhas. Deu-se “alta”, ato que, no início do tratamento, era impensável. Antes, ela verbalizava o desejo de sair da clínica com “alta médica”. Acredito que as trocas afetivas entre nós e o trabalho de confiança mutuo (criado pela maneira como lidamos com as dificuldades inerentes ao ambiente) foram fatores que facilitaram o processo para que Aiko começasse a acreditar no próprio potencial. Ela compartilhou momentos de dor, medo e dúvidas. Sentiu-se segura e acolhida. Passado muito tempo do término do processo psicoterapêutico, Aiko escreveu - em um contexto relacional não-profissional: A primeira vez que eu a vi, e me dirigi a você, foi com as seguintes palavras: ‘Eu coloco fé em você’ (lembra?!). Então conheci a Marina que sabe se impor, cresce aparentando ter dois metros de altura, cara de brava quase tão assustadora quanto a do meu pai... Mas o tempo foi passando, e eu descobri... o quanto uma profissional pode ser... perceptiva e sensível. ...Você me ensinou uma lição MUITO IMPORTANTE na minha vida... ‘Tem coração esse caminho?’ E que todos os caminhos só valem a pena se COMPARTILHADOS (Aiko, abril de 2009). No entanto, os testes que eu sentia ser submetida cujo resultado, no meu entendimento, era ser aprovada ou reprovada, falhar em suas expectativas ou continuar sendo reconhecida pelo meu trabalho aconteceram em outros momentos e fizeram parte da maneira pela qual construímos nossa relação. Abaixo coloco duas situações que mobilizaram minha angústia e a maneira como lidei com ela: 1) Certa vez, Aiko passou reto por mim, fez uma expressão de desdém. Não entendi o motivo, já que tínhamos tido uma sessão produtiva no dia anterior. Questionei-me sobre a maneira pela qual deveria me dirigir a ela. Chamei-a e ela passou por mim sem responder. Lembro de ter sido dura ao pedir que parasse e explicasse o que tinha acontecido. Eu acreditava ter o direito de saber o que estava acontecendo. Ela explicou que não tinha gostado de uma decisão tomada pela equipe. A coordenadora acreditava que Aiko deveria ter sessões de atendimento familiar (com o pai). Em nossas sessões individuais já tínhamos conversado sobre sua percepção de que isso era ineficaz. Dessa maneira, a decisão da coordenadora contrariava seu desejo e, também, a minha avaliação. 28 Esse episódio evidencia a interferência institucional no processo psicoterapêutico. No entanto, apesar da minha discordância em relação a esse procedimento, eu precisava manter a decisão institucional, para não expor a falta de coesão da equipe. Durante nossa conversa, sobre a decisão tomada pela equipe, evitei focar a queixa principal em relação aos possíveis atendimentos familiares e trouxe a reflexão sobre nosso relacionamento e a maneira como ela estava respondendo a situação. Falamos sobre a necessidade de ouvir o lado da outra pessoa para uma relação ser construída embasada em respeito e sobre a forma como lidamos quando uma expectativa é frustrada. Porém, os atendimentos familiares ocorreram e a psicóloga coordenadora exigiu minha participação. Estávamos presentes: eu, Aiko, seu pai e a coordenadora. Evitei fazer intervenções, já que o foco dado pela coordenadora era diferente do que eu vinha trabalhando individualmente. Fui questionada por Aiko durante uma sessão de grupo. Colocou – diante das outras pacientes - sua incompreensão e manifestou sua desaprovação em relação a minha atitude. Paralelo à sua reprovação eu vivenciava raiva em relação à coordenadora. Eu não consegui, no primeiro momento, priorizar o que seria produtivo para Aiko. Esse episódio rendeu uma “briga de egos” em que Aiko fora deixada de lado em nome da defesa da “melhor intervenção” defendida por mim em discordância da intervenção defendida pela coordenadora. Por não saber lidar com o que fugia do meu controle e, por conseqüência, não enxergar novas possibilidades, defendi-me atacando a coordenadora. Em uma das conversas entre mim e a coordenadora, esta falou sobre seus anos de experiência, sobre como eu perceberia isso quando chegasse lá e que eu não era “nada humilde”. Retruquei dizendo de maneira dura e sem os argumentos necessários, que ela não era nada ética. Minha postura agressiva parecia contribuir para que eu me sentisse no controle. Não ter o controle parecia remeter a minha incapacidade como profissional. Então, eu projetei essa crença nela. Ela era inábil. Na dinâmica retrofletora, como discutimos, há alienação do self e auto-agressão, processo relacionado à introjeção de normas. Apesar da resignação, nota-se a partir da experiência clínica, que o perfil retroflector mais predominante é, no entanto, de pessoas dinâmicas, realizadoras e energéticas. É possível que tal identificação com a autoridade forte transforme-se em arrogância. Conforme descrevem os autores, a agressividade emprestada para essa autoridade interna é a arrogância de alguém que foi humilhado. A energia que seria dirigida para o ambiente de forma saudável passa a ser investida em uma necessidade de pequenas 29 vitórias com o objetivo de exercitar a autoridade “fictícia” e afirmar o próprio valor. A pessoa pode tornar-se extremamente competitiva, tendo que ganhar todas as discussões, todas as pequenas batalhas cotidianas, pois o fundamental já foi perdido. O vazio torna-se presente, retornando na forma dessas pequenas vitórias (Alvim, p.185, 2010). Ao analisar essa situação consigo perceber que eu escolho caminhos que demandam muito desgaste de energia e pouca efetividade no resultado. Concomitante às minhas discordâncias da coordenadora, eu continuava o trabalho com Aiko. O que tornava possível o processo psicoterapêutico era o vínculo afetivo. Pensar no que era produtivo para ela foi o caminho que escolhi seguir dali em diante. Os encontros com o pai possibilitaram reflexões sobre as expectativas que Aiko depositava nele e os comportamentos auto-destrutivos com que ela, algumas vezes, lançou mão para testar o amor dele. 2) Aiko era uma paciente “exemplar”. Participava das atividades, disponibilizava-se para ajudar outras pessoas. Mas por apresentar-se melancólica, a preocupação da equipe era direcionada mais para possíveis tentativas de suicídio do que para uma recaída ao abuso de álcool. Quando saiu para passar alguns dias em casa, no processo de ressocialização, voltou “recaída”. Tinha feito uso de álcool. Em uma ocasião, ela estava triste e com medo. Falou alguma coisa sobre sua situação. Não pensei sobre qual seria minha intervenção, mas, com naturalidade, contei a seguinte piada: “Qual é o peixe suicida?... Aaaaaatuumm”. Ela riu e disse: “Só você, Marina”. Esse episódio foi lembrado muitas vezes com leveza e alegria. Esse foi um momento compartilhado em que eu não tentei atender às suas expectativas ou definir minha intervenção pelo que “deveria” ser feito, como, por exemplo, abordar a questão do suicídio. Acredito que tenha usado o humor como uma forma saudável de defletir. Foi funcional. 30 Águia Águia, 23 anos, sexo feminino, foi internada involuntariamente por uso abusivo de maconha e anfetaminas. Mostrava-se impulsiva e dramática, com necessidade de atenção. A equipe de enfermagem se mostrava irritada com seu comportamento e solicitou minha intervenção para que a paciente pudesse sair da observação da enfermaria, onde estava desde que chegara. Em nosso primeiro contato, sentia-me impaciente e focada na sua maneira de se expressar. Lembro-me de fazer perguntas diretas e pontuações curtas enquanto explicava as regras da clínica, procurando ser objetiva. Águia reagiu: “Não gosto da maneira como fala comigo. Você não acredita no que estou falando, seu tom é de superioridade.” sic. Nesse período, eu já me questionava sobre minha postura rígida em relação ao que eu entendia como manipulação. Eu agi, no primeiro momento com esta cliente, de maneira que ela percebesse que não me enganaria. Águia apontou minha atitude de não confirmação. Comecei a prestar atenção na maneira como eu me dirigia a ela. Sua pontuação permitiu que eu sentisse liberdade para ser honesta, sem precisar repetir um padrão defensivo. Senti-me confirmada pelo seu olhar. E assumi a responsabilidade. Lembro de ter pensado: “Vamos começar de novo”. Eu pude atualizar a situação, colocando-me no “aqui-agora”. Encostei-me à cadeira - estava curvada para frente - e relaxei. Pudemos, a partir de então, desenvolver o vínculo terapêutico de maneira que eu a confrontasse, quando necessário, com respeito. Muitas vezes, sua maneira de se expressar – infantilizada – despertava em outras pessoas: irritação (relatada por enfermeira) ou controle (demonstrado pela mãe). Por exemplo: ao ver Águia em uma visita – após três meses de internação – a primeira atitude da mãe foi repreendê-la por seu comportamento. Águia estava chorando, eufórica e irrequieta quando os familiares chegaram. Pegou o rolo de papel higiênico e desenrolou rapidamente uma quantidade excessiva de papel sem prestar atenção. A mãe chamou-lhe atenção por seu comportamento. No mesmo instante, Águia fechou o sorriso. O respeito que desenvolvi por sua singularidade ajudou-me a intervir, posteriormente, com a mãe. Esta confirmou ter dificuldade para estabelecer trocas afetivas com Águia. Sentia que seu papel era ensinar o caminho “certo”. Minha angustia, nesse caso, foi desencadeada por uma identificação com a cliente. Existia uma necessidade em ser aceita pelo meio e, para conseguir isso, agia de acordo com o 31 que o meio esperava dela. Para fazer parte do grupo da clínica tinha atitudes incoerentes com a percepção que tinha de si própria. Em uma ocasião, Águia perdeu o direito de receber o telefonema da família. A mãe questionou-me, pois não compreendia a perda de pontuação repentina da filha. Isso aconteceu porque Águia teve determinados comportamentos que a aproximavam do grupo de pacientes que não aderiam ao tratamento. Minhas intervenções estavam direcionadas para que Águia percebesse o seu potencial. Sentia a necessidade de agarrá-la quando eu percebia que ela não aproveitava o próprio potencial. Era comum que eu dedicasse muita energia em longas conversas (apagando incêndios), até que eu sentisse a segurança ilusória de que ela voltaria a mostrar atitudes assertivas. O meu último dia de trabalho na clínica precedeu em um dia a alta da cliente. Surpreendi-me com a emoção despertada na despedida. Não contive o choro. Era gratificante ver que a confiança que ela sentia em mim proporcionou reflexões que culminaram no seu amadurecimento. Continuava a se expressar de forma eufórica e teatral... Singular. Mas a visão que tinha de si mesma e de seu potencial mudara. De alguma maneira, eu também pude confiar no meu potencial. Transcrevo parte de sua carta de despedida entregue a mim: Valorizo hoje cada momento de aprendizado que passamos juntas, cada palavra, cada ‘puxão de orelha’, cada emoção, descobertas e sorrisos. Você confiou em mim, acreditou no meu potencial, não passou a mão em minha cabeça, mas me deu conselhos assertivos, me deu apoio, abraço amigo e isso para mim foi ser uma psicóloga (Águia, dezembro de 2008). 32 Luara Fui informada sobre a segunda internação involuntária de paciente de sexo feminino, com idade aproximada de 22 anos que fazia uso abusivo de crack. Soube que era violenta, tendo causado muitos problemas anteriormente. Lembro de ter conversado com a equipe administrativa e direção da unidade sobre a falta de estrutura física para recebermos tal cliente. No entanto, o contrato de nove meses de internação havia sido assinado. Outra psicóloga da equipe, que já a conhecia, ficou responsável por seu atendimento individual. Meu contato com Luara se restringia às atividades de grupo. No entanto, “senti-me obrigada” – escolhi interferir em um episódio que ela ameaçou fisicamente outras pacientes e começou a gritar com a equipe. Depois de alguma tentativa em convencê-la a se acalmar, sua psicóloga pediu para o monitor levá-la a enfermaria e afastou-se. A inércia dos profissionais para lidar com ela tornou-se nítida e ela se recusou a ir espontaneamente para a enfermaria. A contenção não foi feita e eu a questionei, olhando em seus olhos, sobre o motivo de ela agir daquela maneira. Convidei-a para conversar e não para ameaçar. Quando olhei em seus olhos, senti medo. Dei-me conta do risco, percebi que estava sendo desafiadora. Nesse instante fui para a enfermaria. Luara pediu para o monitor deixá-la fumar um cigarro (tabaco) antes de descer, ainda sem ser contida. Ao perceber a demora, eu e a enfermeira reforçamos o pedido ao monitor, que deixou a paciente entrar sozinha na sala. Eu estava de costas para a porta e senti uma forte pancada na cabeça. Atordoada, levantei a cabeça sem entender o que tinha acontecido. Olhei para a paciente e percebi que tinha levado um murro. Então, ela se deixou ser medicada. Para Luara, o conflito foi resolvido naquele momento. Ao avaliar esse caso, deparo-me novamente com minha onipotência/impotência. Minha interferência no caso foi desencadeada por um desejo de colocar limites. Eu queria resolver, mesmo não sendo a psicóloga que a acompanhava individualmente. Enquanto ela dizia, gritando, que ninguém a impediria de fumar a pedra dela, que iria matar alguém, eu afirmei que quando estivesse na rua poderia fazer o que quisesse, mas na clínica iríamos tentar ajudá-la. Questionei-a sobre a maneira pela qual ela estava acostumada a ser ouvida e sobre o medo que ela provocava nas pessoas. Inicialmente, minha fala pareceu fazer sentido, mas ela não estava escutando. Após o acontecimento, verifiquei que minha postura evidenciava uma tentativa de agarrá-la, mas eu estava com raiva dela. Ao contrário de outras experiências, ela não estava disponível para refletir sobre o que eu tinha a dizer. E eu não estava disponível para aceitar sua 33 maneira de responder. Não existia vínculo terapêutico e minhas palavras foram vazias. O que estava em evidência era a identificação entre agressores. 34 5. Conclusão Foi um desafio falar dos meus próprios bloqueios neste trabalho. Acredito que a grande maioria das pessoas que escolhem estudar Psicologia desejam se colocar a serviço do outro. Mas descobrem, ao longo da jornada, que estão a serviço de si mesmas também. Como acompanhar o crescimento do outro se não sou capaz de cuidar do meu crescimento? É necessário coragem para olhar para a própria sombra. Mais ainda... É imperativo! Uma grande amiga costumava dizer que a coragem nada mais é do que o medo com a espada na mão. Se não formos capazes de lidar com nossos fantasmas, corremos o risco de automatizar nosso fazer, procurando encaixar pessoas em teorias, projetando nossas sombras e, alienados de nós mesmos, entraremos em um processo de evitação da dor, da angústia e, consequentemente, do crescimento pessoal. O psicólogo necessita olhar para suas dores e reavaliar atitudes, caso deseje trabalhar verdadeiramente a serviço do outro. Precisa identificar suas limitações e motivações. O homem é uma corda esticada entre o animal e o super-homem: uma corda por cima do abismo; perigosa travessia. Perigoso Caminhar; perigoso olhar para trás, perigoso parar e tremer. O que é de grande valor no homem é o fato de ser uma ponte e não um fim; o que se pode amar no homem é ele ser uma passagem e um acabamento (Nietzsche,Tradução de José Mendes de Souza, 2002, IV, pg. 16 e 17). Os momentos de emergência, de conflitos, requerem agilidade de pensamento, calma e intuição. No momento que ficamos alerta e as emoções afloram, estamos inteiros, desnudos. Aqui, escolher o melhor caminho possível depende de como estou, agora. O resultado de qualquer escolha afetará a todos os envolvidos, mas o significado dado ao resultado é singular e não é estático, uma vez que esse resultado tem potencial para a transformação, ou seja, pode indicar a abertura de uma nova necessidade. 35 Minhas intervenções, relativas aos casos estudados, eram constantemente avaliadas por mim como adequadas ou inadequadas, fato que gerava angustia sobre qual caminho poderia ser seguido. A pessoa que retroflete não pode enfrentar a situação porque tem medo de ferir e ser ferido, destruir ou ser destruído. Possivelmente, experimentou situações nas quais não pôde dar vazão aos seus impulsos ou se sentiu inadequada e culpada quando manifestou raiva ou agressividade, por exemplo (Alvim, M.B.; Bomben, E.; Carvalho, N., pg.184, 2010). Lidar com a sensação de inadequação é tarefa dolorida. E reavaliar conceitos cristalizados tornou-se urgente para que eu consiga descobrir outras maneiras de perceber minhas vivências. Goldstein definia a auto-regulação organísmica como uma forma do organismo de interagir com o mundo, segundo a qual o organismo pode se atualizar, respeitando a sua natureza, do melhor modo possível. Este lidar com o meio pode se dar tanto através de reações de aceitação e adaptação a este, quanto também através de ações de rejeição e fuga do mesmo. Quanto à continuidade do sistema é ameaçada pelo contato com o meio, a retirada do contato é uma tentativa de adaptação do organismo. Esta noção de fuga, de resistência, como respostas também de equilibração, é claramente levada para o campo conceitual da Gestalt terapia (Lima, P.V. A, 2005). Dessa maneira, a sensação de inadequação pode ser entendida, agora, após quatro anos do inicio desse trabalho, como a atitude que foi possível naquele momento. Posso valorizar minhas experiências, pois elas proporcionaram grande ampliação de consciência e, por meio de novas relações, começo a entender que minhas batalhas estão a serviço da criação, da superação e transformação. Quando temos uma figura que solicita fechamento, precisamos olhar para o fundo, para as sombras, que nos ajudam na busca do auto-conhecimento. Em outras palavras, é pelas perdas que paramos e nos damos a chance de reavaliar nossos passos; de olhar para nossa condição de ser-no-mundo, na qual o viver implica em compreender que somos finitos. Compreender é liberar energia para outras necessidades (Fukumitsu, p. 81, 2004)” 36 Entre os longos intervalos na elaboração deste trabalho, revi conceitos e a compreensão foi ampliada. Então, ao reler a frase que escrevi no exemplo do ofício dos bombeiros: “Este saber não o impede de entrar no prédio e, possivelmente, sair com queimaduras” ampliei minha awareness. Agora, sinto-me livre, pois descobri que “ele escolhe entrar no prédio e aceita a possibilidade de sair queimado”. Digo-lhe então que ele seja bom consigo, pois percebo que somente quando nos autorizamos a sentir aquilo que mais nos amedronta é que atualizamos as potencialidades e fortalecemos os recursos pessoais. Sendo assim, podemos transformar a falta de fé na vida, as reclamações e os “deverias” em pedidos e afirmações (Fukumitsu, p.28, 2008). A dor que enfrenta ao cuidar de suas queimaduras e o processo para lidar com as perdas não podem ser anulados. Mas, ao compartilhar suas vivências poderá encontrar ferramentas para elaborar suas perdas. O desafio é descobrir como honrar a dor, enquanto recuperamos a fé e nossa esperança de viver (Fukumitsu, p. 27, 2008). 37 6. Referências Bibliográficas ALVIM, M. B.; BOMBEM, E.; CARVALHO, N. “Pode deixar que eu resolvo!” – Retroflexão e contemporaneidade. Revista da Abordagem Gestáltica – XVI (2), pg. 183-188, jul-dez, 2010. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rag/v16n2/v16n2a08.pdf ANTLOGA, C. S. X; MENDES, A.M. (orientadora). Estilo de contato da Organização com o funcionário e prazer e sofrimento no trabalho: Estudo de caso em uma empresa de material de construção no Distrito Federal. Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia - Distrito Federal, 2003. AURÉLIO, B. H. F. Novo Dicionário da Língua Portuguesa – 1ª edição. Ed. Nova Fronteira. Rio de Janeiro CHALITA, G. 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