A Ascética Tomista - Instituto Sapientia de Filosofia

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A Ascética Tomista - Instituto Sapientia de Filosofia
A Ascética Tomista
A Ascética Tomista
Fonte: http://www.aquinate.net/portal/Tomismo/Teologia/tomismo-ascetica.html
por Paulo Faitanin - UFF
1. Origem e definição: Oriunda da palavra ascese (do grego áskesis, eos), a ascética
significa comumente a prática da ascese, ou seja, de exercício físico ou de alguma atividade,
arte. Chama-se
ascetismo
a doutrina que se refere a toda prática ascética. Na filosofia grega é comum o relato da
ascese como exercício físico, moral e intelectual para o aperfeiçoamento do homem. Os
gregos a utilizavam como sinônimo de exercício e com a finalidade de alcançar alguma
perfeição, não necessariamente espiritual.
2. A novidade Cristã: No Cristianismo a ‘ascética’ adquiriu um significado novo. A ascética
cristã supunha igualmente a prática constante de exercício, mas não estritamente físico e
intelectual, mas, sobretudo,
moral, seja para a aquisição de virtudes, seja
para a superação de vícios, cujo resultado era a
purificação
ou
purgação
dos vícios do corpo e da alma. Outra novidade da ascética cristã, com relação à prática
ascética pagã e de outras religiões (ascese judaica, islâmica e hindu) é a de valer-se da
ascese como efetivo exercício moral que não assenta o seu princípio só na busca de
purificação corporal e alcance de sua perfeição natural, mas principalmente na busca de
purificação espiritual e alcance de sua perfeição sobrenatural. Mas a maior novidade é o
fundamento da ascética: a
caridade
. A caridade é o bem perfeito do espírito que excede a todos os bens.
3. A diferença da ascese cristã: Diferente da ascese pagã, a cristã não depositava só na
força da natureza humana o êxito de purificação. Ela também supunha um auxílio
sobrenatural: a
graça. Obviamente, a graça não se
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desvincula, na vida do cristão, da constância na
oração
. Por isso, a oração, forma parte da vida ascética cristã. Assim como não seria suficiente só o
esforço natural do exercício corpóreo do homem para adquirir a perfeição sobrenatural do
espírito, também não bastaria só a graça dada no auxílio da perfeição sobrenatural do
espírito humano, se não houvesse o devido esforço natural do exercício humano, exceto se
Deus o quisesse e o permitisse, por via extraordinária. Aqui se aplica muito bem a sentença
de que a graça dada ao homem supõe o seu efetivo exercício da natureza. Constitui, pois,
uma falácia afirmar, sem mais, que a saúde do corpo implica na da alma. A ascética cristã
visa sobremaneira à saúde da alma, que consiste nesta vida, pela fé, buscar a santidade pela
constante conversão a Deus, pela purificaação da alma, culminando ainda nesta vida de
iluminação e certa união com Deus, prolongada na próxima, pela posse da santidade ao
vê-Lo face a face. Portanto, a ascética não é o fim, mas o meio pelo qual se chega ao fim:
a santidade
. E fundamentalmente nisso difere a ascética cristã da pagã grega e a das demais religiões,
que também se valem ou se valeram da ascese como meio de purificação e de busca de
alguma perfeição para a vida do homem.
4. A ascética na Teologia cristã: Não raro, por causa do pragmatismo inserido no ensino
teológico ou mesmo o
r
elativismo
, a doutrina ascética cristã não só tem sofrido descaso, mas, pior ainda, substituída, às
vezes, por doutrinas ascéticas não cristãs, quando não até trocada pelas asceses pagãs.
Têm-se notícias de práticas hindus na vida de oração, como do controle da atenção pelo
domínio da atenção auditiva e respiratória. Estes meios ou instrumentos físicos podem
efetivamente ser úteis, desde que não adotados sob a forma e finalidade que são na ascese
hindu. A ioga é exercício físico com projeção de purificação espiritual, mas a purificação
almejada não se identifica com a cristã, em que Deus não é personificado ou identificado com
o próprio eu do asceta hindu. O mesmo se diga de outras religiões e mesmo de prática pagãs.
Mas isso não significa que tais asceses não sejam eficientes para os fins aos quais são
utilizadas, mas significa que não correspondem plenamente ao fim do cristianismo, cuja
ascética transcende àqueles fins, a saber, o bem do corpo, a aquisição de uma virtude para a
alma, de um bem físico qualquer, pois visa a contemplação do próprio Deus, seja no outro,
ainda nesta vida, pelo amor ao próximo, seja no próprio Deus, face a face, na outra vida, sem
mescla ou confusão de que o meu eu se divinize ou que Deus se individualize em mim.
Sabemos que de nada vale uma virtude se falta a caridade e de nada vale a robustez e a
beleza de um corpo se a alma padece profundos vícios. Por isso a ascese cristã orienta-se
pela caridade para o fim que é a contemplação de Deus no próximo e do próprio Deus em si.
No Cristianismo, a ascética forma parte da
Teologia
como a doutrina que exorta, ensina, orienta à mortificação dos vícios e à aquisição e prática
das virtudes. Insere-se especialmente na
Teologia Moral
, mas estende-se basicamente em toda doutrina teológica e é tratada especialmente em
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Espiritualidade
em
Teologia Ascética e Mística
. No contexto da Teologia Moral e da doutrina da Espiritualidade cristã a ascética traduz
muito bem as seguintes palavras de Cristo: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’
entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos
céus... Assim, todo aquele que ouve essas minhas palavras e as põe em prática será
comparado ao homem sensato que construiu sua casa sobre rocha” (Mt, 7, 21-24). A ascese
cristã é, pois, o exercício da fé. Ora, como a fé é infinita em dons, diversos poderãos ser os
exercícios ascéticos, diversos os modos, embora um mesmo é o seu conteúdo: o conteúdo da
fé. Em outras palavras, uma mesma fé, mas muitos modos diversos de exercício desta
mesma fé. Por isso, nem todas as espiritualidades abraçam do mesmo modo uma mesma
prática ascética, embora se exija um mínimo comum para todas: a entrega de si por amor ao
próximo e primeiramente a Deus – a caridade, que é sempre livre e benfazeja.
5. Nas Sagradas Escrituras: A ascese é exortada no AT, onde após a queda do primeiro
homem, todos os homens são chamados pelo esforço de superação da dor, da miséria
humana a purificar-se pela virtude, indo ao encontro do sofrimento, descobrindo-o em seu
valor sobrenatural, revelador do caminho, como se relata, por exemplo, no livro de Jó. No
NT
, a ascese de São João Batista é pedagógica para inserir-nos no mistério ascético de Cristo,
que não dispensa a ascese, a disciplina e a cruz, coroa ascética, para quem o deseja seguir
(Mt 16, 24). É o que bem sintetiza São Paulo com a luta espiritual, pela disciplina – ascese –
do corpo. Mas o Apóstolo ressalva: ‘revesti-vos da armadura de Deus’ (Ef 10,12) o que bem
clarifica a necessidade da
graça
. Uma nota também fundamental e complementar à caridade – que torna a ascese cristã
substancialmente diferente das não cristãs – é a
liberdade
em assumir este exercício de purificação do corpo e do espírito por amor a Cristo, cujo
mistério pascal é modelo ascético do cristão. Em síntese, essa participação voluntária, livre e
por amor de buscar constantemente superar os vícios, no modelo da morte salvífica de
Cristo, que é o fundamento do sacramento do Batismo e a causa motora da ascese cristã,
que deve ser aceita como um exercício contínuo de morrer em Cristo (1 Cor 15,31). Na
Patrística, os Padres apostólicos comparam com certa freqüência a figura do cristão com a do
atleta, como em Clemente Romano em sua obra
Ad Cor
. 5. 1 e, inclusive, Inácio de Antioquia em sua célebre
Ad Pol
. 1,3; 2,3; 3,1. Este ascetismo culmina com a proposta de disciplina monástica em que a
mortificação, a penitência, o jejum, a abstinência e até mesmo o martírio modelam o
ascetismo. Contudo a teoria da penitência – a ascética enquanto ensinamento – é sempre
menos importante do que o ato da penitência – a ascese enquanto prática – de tal modo, que
a ascese é mais importante para a vida do cristão do que só o conhecimento da doutrina
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ascética, exceto se esta complementa e enriquece àquela. Em todo caso, em matéria de vida
cristã, para quem busca a perfeição, nunca é de mais saber para por em prática, embora
haja uma fronteira entre a teoria e a prática, no que tange às questões morais, dadas as
circunstâncias que envolvem o ato humano individual, pois o ato de justiça, embora possua a
mesma forma, nunca é a mesma matéria, já que a justiça de João é semelhante à justiça
praticada por Pedro só quanto à forma, mas nunca quanto às mesmas circunstâncias
individuais. O
Magistério da Igreja
sintetiza todo o legado cristão ao afirmar que a ascese vincula-se à fidelidade da promessa do
Batismo (CIC n. 2340), referindo-se ao domínio da vontade (CIC n. 1734) e ao progresso da
vida espiritual (CIC n. 2015).
6. Ascética em Santo Tomás de Aquino: Apesar de todo movimento cristão com base na mo
rtificação
que vastamente foi desenvolvido na Escolástica, muito seguramente ninguém tratou mais da
ascética
do que Santo Tomás de Aquino. Não obstante, é curioso notar que ele não se valha desta
palavra, em seu
Corpus
, nem desenvolveu um tratado sistemático exclusivamente com este título, embora tenha
tratado vastamente deste tema sob outros nomes. Para se ter uma exata idéia, a palavra
askesis
ocorre apenas uma vez em toda a sua obra [
Sententia Ethic
., lib. 9 l. 10 n. 15.]. Vale recordar que houve também movimentos embrionários na
Escolástica que preponderantemente tenderam mais para a
mística
, abrindo um foço de distanciamento entre a ascética e a mística.
Santo Tomás é doutor em espiritualidade, pois assim como aproximou a razão da fé,
aproximou também a ascese da mística. Ambas as aproximações anteriores podem ser
resumidas analogicamente com a da alma ao corpo, pois ele propôs, a partir desta
aproximação, a purificação da alma pela disciplina do corpo e a perfeição do corpo pela
contemplação da alma. Mesmo em seu pensamento filosófico exala o odor da doutrina
espiritual, porque também aproximou a
metafísica da
mística
. É próprio dizer, sob este aspecto, que o filósofo, na busca da perfeição espiritual por meio da
filosofia, aspira pela
ascese
filosófica
(purificação da alma pela superação dos obstáculos advindos pela aprendizagem de idéias
contrárias à verdade) a uma
metafísica
mística
(adesão e contemplação da verdade da razão que não é contrária à verdade revelada ou
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infusa). Se o conteúdo natural da razão não é contrário ao conteúdo sobrenatural da fé, esta
aproximação é válida, porque é verdadeira, com bem nota Jacques Maritain em suas
conexões entre metafísica e mística [
Les Degrés du Savoir
. Paris: Desclée de Brouwer, 1947, pp. 561-573].
Ora, o ápice da mística consiste na contemplação, pelo auxílio da graça infusa. Contudo,
porque a graça supõe o exercício pleno da natureza humana, sobremaneira da razão, Tomás
estabelece uma ordenação natural da ascética para a mística. Muito provavelmente os
autores que separaram ambas as doutrinas o fizeram por tal motivo: não compreenderam a
harmonia que há entre razão e fé, natureza e graça. De fato, o
quietismo
, que colocava exclusivamente a perfeição cristã na aspiração da prática mística, em
detrimento da ascética, punha só na graça, sem o comprometimento do exercício ou da
prática de virtudes, a razão da perfeição cristã. Mas isto parece contrariar a doutrina
agostiniana, exímio doutor da graça, que nos ensina que a graça supõe a natureza. Neste
sentido, natureza e graça, atuando em união, melhor dispõem o homem para a perfeição da
vida espiritual.
Por este motivo, a ascética orienta-se, pois, naturalmente para a mística, porque nesta
encontra o ponto de encontro e de união íntima com Deus, que é o que configura a
vida interior
e a santidade do homem. Mas não se trata de uma via estritamente sobrenatural, mas de uma
vida que começa pela via natural purgativa, beneficiada sobrenaturalmente, segundo o amor e
a graça divinas [
STh
. II-II, q. 184, a. 3] e atinge uma perfeita união com Deus.
A essência da doutrina ascética tomasiana encontra-se em seu trato de Moral, especialmente
na
Suma
Teológica
,
II-II. Mas ele tratou do tema em diversas obras:
Comentários aos quatro livros das Sentenças
;
Comentários aos Salmos
;
Comentários aos Livros de Jó
;
Comentários ao Livro Cântico dos Cânticos
;
Comentários ao Evangelho de São Mateus
;
Comentários ao Evangelho de São João
;
Comentários às Cartas de São Paulo
; nos opúsculos:
Sobre a perfeição da vida espiritual
;
Exposição sobre o Credo
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;
Comentário ao Pai Nosso
;
Comentário à Ave-Maria
;
Ofício do Santíssimo Sacramento
. Sem sombras de dúvidas, é na parte sobre a Moral da Suma onde encontramos um
excelente e original resumo acerca da doutrina ascética.
B. Mondin assegura que a palavra que mais se aproxima do sentido que guarda o termo
‘ascese’ no contexto tomasiano é abstinência [Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San
Tommaso d’Aquino
. Bologna: ESD, 2000,
verbete Ascética/Astinenza, pp. 72-73]. De fato, a ascese assegura-se fundamentalmente
pela abstinência, pois ela mesma, enquanto tal, é uma prática ascética, fundamento de muitas
outras, como o
jejum, a cast
idade
,a
penitência
, a
mortificação
e inclusive o
martírio
etc. Portanto, em Tomás, o sentido de
abstinência
cumpre satisfatoriamente o amplo sentido cristão que envolve a palavra
ascese
.
Nestes termos, podemos dizer, de um modo geral, que a ascese para Santo Tomás é a
prática de purificação da alma, mediante a renúncia e disciplina dos prazeres do corpo, pelo
domínio da vontade, correção e retidão das paixões
.
A mística é a docilidade da alma ao Espírito Santo, por meio da qual se obtém a
contemplação que se dá mediante a infusão de graças e dons que revelam à alma os
mistérios da fé, estabelecendo-lhe por uma via unitiva, sua união com Deus, a partir da qual
se lhe advêm, não necessariamente, outras graças extraordinárias, como as visões e
revelações, que às vezes, acompanham a contemplação infusa
.
Contudo, deve ser advertida a possibilidade extraordinária de que, de uma só vez, o converso
passe de imediato pela via purgativa do espírito, sem demora, e atinja instantaneamente a via
iluminativa
e
unitiva
. Recorde-se que este não é o caminho
ordinário
, em que se vai do menos ao mais, mas de uma via
extraordinária
, como no caso da conversão de Paulo de Tarso, que pelo mistério da ressurreição de Cristo,
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pôde adquirir de imediato não só a conversão, mas também dons e graças que o colocaram
mais rapidamente na
via iluminativa
e
unitiva
, sem que com isso, ele não praticasse a ascese e exortasse a necessidade e importância da
mesma para todos quantos quisessem seguir a Cristo. O
êxtase
do espírito – característica comum da vivência da via unitiva pelos místicos – não exclui, na
condição de caminhantes nesta vida, a
contínua ascese
, pelo contrário a corrobora ainda mais, como aprendemos da vida dos santos.
Ora, como o papel das virtudes no contexto tomasiano cumpre exatamente a purificação dos
prazeres pela disciplina na aquisição e prática das virtudes, esta função coincide, ela mesma,
com a prática ascética. As quatro virtudes cardeais são a base da prática ascética natural. A
virtude da temperança ocupa especial lugar para a prática da ascese, pois a abstinência, o
jejum e outras virtudes são justamente virtudes anexas à temperança.
Entender a ascese muito relacionada com a virtude da temperança não foge à regra grega
original, em que se estabelecia como exercício, prática habitual, a virtude, como meio de
aperfeiçoamento e de purificação da alma. Há, no entanto, uma diferença: para Tomás este
habitual exercício se desenvolve mais plenamente a partir do auxílio sobrenatural da graça,
algo desconhecido para os representantes da filosofia grega. Para os filósofos gregos a
virtude natural – resultado do esforço meramente humano – é suficiente para levar o homem à
perfeição e purificação da alma. Em síntese, segundo o Aquinate requer-se certo auxílio
sobrenatural – as virtudes teologais e os dons do Espírito Santo – para alcançar a purificação
sobrenatural da alma, pois só pela prática natural não se alcançaria nem mesma a
adequadamente purificação natural, pois a graça, bem para a alma, é necessariamente, bem
para o corpo, mas o que resulta num bem para o corpo, não o é necessariamente para a
alma.
O itinerário da alma para Deus, segundo Santo Tomás de Aquino, se desenvolve em duas
etapas: a
via ascética ou purgativa que se dá pela purificação
da alma e
a via mística,
que se dá pela
via iluminativa
e pela
via unitiva
ou da união da alma com Deus pela infusão de dons e graças na alma. É na união da alma
com Deus onde se dá a
contemplação
pela infusão dos dons. A contemplação consiste, mediante estes dons, obter a visão de Deus,
contemplá-lO.
Os mestres em espiritualidade tomistas, em especial Reginaldo Garrigou-Lagrange [Les Trois
âges de la vie intérieure, prélude de celle du Ciel
. Paris: Cerf, 1938], estão de acordo que são estas três vias que conduzem a alma para Deus:
via purgativa
(iniciantes),
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via iluminativa
(perseverantes que progridem) e
via unitiva
(perfeitos que contemplam, pela infusão dos dons do Espírito Santo, a perfeição divina). A
Teologia Ascética
trata estritamente da
via purgativa
. Santo Tomás de Aquino refere-se explicitamente ao que a tradição denominou
ascética
, quando fala da perfeição da caridade nesta vida, à qual se chega pelo
crescimento espiritual
, como quando um homem se
abstém
até das coisas lícitas para entregar-se mais livremente ao serviço de Deus [
STh
. II-II, q. 184, a. 3, ad. 3]. Ora, como se trata de um
crescimento espiritual
convém que seja tratado, primeiramente, do
alimento
que promove este crescimento ou das
fontes
que o promovem e, depois, da disposição do espírito a este alimento, adesão e obstáculos.
6.1. As fontes de purificação e a disposição da alma: a) O acesso à vida interior: O
Aquinate nos ensina que o homem tem, desde o nascimento, uma certa perfeição natural,
própria de sua espécie e uma outra que lhe advém pelo crescimento, própria do indivíduo [
STh
. II-II, q. 184, a. 3, ad. 3]. Uma é a perfeição natural da alma, a racionalidade, e a outra é
advinda pelo crescimento individual do corpo, sua individualidade. Juntas, ambas as
perfeições, se complementam para constituírem uma única natureza, neste indivíduo, de tal
maneira que a sua natureza não é só nem a perfeição da alma nem a do corpo, mas a união
substancial de ambas as perfeições na união de alma e corpo que constitui uma substância
individual de natureza racional:
pessoa
. Isto significa que aquilo que se acrescenta à natureza, mesmo a modo de acidente, como
altura, peso, cor etc., acrescentam-se como algo positivo à perfeição da própria natureza,
como todas aquelas notas individuais de cada indivíduo, constituem, de algum modo, alguma
perfeição para a natureza. Neste aspecto, há a perfeição essencial e a acidental da natureza.
A diferença é que a essencial é inata, no sentido de criada com a natureza, e a acidental
acrescida à natureza, no sentido de que se lhe advém. Haveria a hipótese de existir alguma
perfeição que não viesse do interior da natureza mas pudesse aperfeiçoá-la essencialmente?
Não é contrário à perfeição inata de uma natureza possa ser beneficiada em sua própria
perfeição por uma que lhe fosse dada desde fora. Portanto, é possível que uma perfeição
aperfeiçoa uma outra natural, como quando à perfeição da nutrição de uma planta pela
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fotossíntese, lhe seja essencial a água para que ela se dê plenamente enquanto tal.
b) A necessidade de perfeição acrescida à natureza: Com relação ao ser humano difere
quanto a natureza da perfeição acrescida, pois em primeiro lugar, não se trata de uma
perfeição material nem acidental.. Neste sentido, seria uma perfeição espiritual e que tivesse
força essencial sobre a própria natureza. Sendo assim, esta perfeição só poderia ter sua
origem desde o próprio criador da natureza espiritual do homem, pois o homem não poderia
dar a si mesmo algo de que carecesse e que lhe aperfeiçoasse mais. Isto dado ao homem
foi denominado de dom e graça: dom, porque foi dado e graça, porque foi dado sem nada
exigir em contrapartida. Corrobora para a necessidade de que a perfeição humana possa
ser beneficiada externamente o fato de que na pessoa humana, nenhuma perfeição se dá
acabada desde o seu início, senão que se dá gradativamente, como se percebe no
desenvolvimento do embrião, da concepção ao nascimento e do nascimento ao
envelhecimento. Ora, a natureza humana, embora possua sua perfeição específica – a razão
– ela não é uma perfeição dada total e plenamente acabada de imediato, trata-se de uma
perfeição perfectível
. Uma perfeição perfectível é a que pode crescer e desenvolver. Mas tal perfeição na pessoa
humana, pela via normal, está condicionada a realizar-se enquanto a alma esteja unida ao
corpo, porque a perfeição da alma, nesta vida, depende para manifestar-se e desenvolver-se
de que a alma esteja unida ao seu corpo, onde, possa gradativamente, atingir certo grau de
perfeição superior. Ora, a perfeição própria da alma, que é de natureza espiritual, é
alcançar a perfeição da vida espiritual, porque sua vida é espiritual. Mas alcançá-la não
quando estivesse separada do corpo, mas já agora enquanto ainda esteja a ele unida. Por
isso, Tomás nos ensina que a alma é mais perfeita quando unida ao corpo do que quando se
separa dele, porque ela foi criada para existir unida ao corpo. Isso fundamenta a promessa
da ressurreição no fim dos tempos. Ademais, a alma espiritual, porque não é um puro espírito,
como os anjos, só aperfeiçoa a sua perfeição, na ordem natural, quando está unida ao corpo
e nele e com ele pode conseguir alguma perfeição superior, segundo esta mesma ordem
natural, já que toda perfeição advinda depois da separação, lhe é necessariamente dada só
de modo sobrenatural e extraordinário. Ora, se a alma humana é de natureza espiritual, ela,
por ter sido criada para unir-se ao seu corpo, guarda na criação de sua natureza espiritual
alguma perfeição semelhante à do Criador e inclinação ao próprio Criador. Por isso se diz
que ela foi criada à imagem e semelhança de Deus, porque em sua natureza encontram-se
similitudes às perfeições da natureza divina.
Isto faz com que, de alguma maneira, a alma
encontre a fonte de toda a sua perfeição, na natureza divina que a criou. Do mesmo modo,
isto faz também que a alma humana esteja, sob qualquer aspecto, relacionada com o
Criador. É claro que se esta alma busca unir-se a Deus, porque se sente ordenada a Ele, e
porque por natureza participa de alguma perfeição de Sua natureza, ela se orienta
naturalmente em Sua direção. Esta orientação natural encontra-se inscrita em toda e
qualquer alma humana, mas ela não é suficiente para que a alma por si mesma chegue à
contemplação do Criador. Isso se deve à desordem da concupiscência, cuja culpa original
apagada pelo Batismo não exime a natureza de padecer as penas, as conseqüências da
culpa originária. Mesmo depois do Batismo, o homem precisa permanecer constantemente
com este auxílio divino, ampliado sobremaneira com o mistério da encarnação, paixão e
ressurreição de Cristo.
Por isso, a perfeição própria do homem é a aquela adquirida pela
alma e que a encontra só em Deus. A perfeição da alma é a do corpo, porque é ela que dá a
vida ao corpo. Ora, a vida que ela possui é dom dado gratuitamente por Deus no ato de sua
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criação. Neste sentido, o que ela tem, ela o recebeu de Deus e o que recebeu é o que ela
informa ao corpo.
Se for rejeitado certo bem, se escolhe afastar-se de quem lhe deu. É
certo, portanto, que quem se afasta de Deus, rejeita os seus bens. Ora, a vida é um bem que
Deus deu gratuitamente ao homem. Não aperfeiçoá-la segundo outros dons, na constante
aproximação de Deus, significa rejeitá-la. O dom da vida que a alma espiritual tem em si, o
tem porque o recebeu gratuitamente de Deus. Este dom é o que primeiramente torna a alma
humana semelhante a Deus. Por isso, cultiva-la em sua similitude à Deus é propriamente
unir-se a Deus, assemelhar-se a Deus, segundo a perfeição natural de seu ser. Nesta busca
incessante de assemelhar-se a Deus consiste a perfeição da vida espiritual cristã. E como
isso não se dá senão gradativamente, exceto desígnio de Deus para alguém, toda alma
humana nesta vida anseia por este crescimento espiritual. Deve espantar-nos quantos
homens desconhecem este caminho, por estarem ainda presos às condições decorrentes da
concupiscência que lhe privam do crescimento espiritual. O começo desta retomada da
orientação dá-se pela conversão, que dá acesso ao início da vida interior.
c) Conclusão: Portanto, se desejamos conhecer a perfeição da vida espiritual devemos
conhecer não só que ela se dá em graus, mas também que ela necessita de auxílio
extraordinário, de perfeição espiritual acrescida à natureza, que lhe aperfeiçoe no que lhe é
próprio e lhe disponha mais adequadamente para o seu fim; por isso, de algo que lhe oriente
substancialmente para o seu fim. Há uma via ordinária, natural, que é condicional, mas
insuficiente e uma que se lhe acresce, extraordinária, sobrenatural, suficiente. Quanto aos
graus de perfeição ordinários supõem-se aquisição e constância na prática das virtudes
morais; quanto aos graus de perfeição extraordinários, acrescidos à natureza, supõem-se não
só a constância da prática das virtudes morais, mas também a disposição e docilidade para
aquisição das virtudes teologais e de outros dons infusos pelo Espírito Santo na natureza
humana.
A perfeição da vida espiritual da pessoa humana, ainda nesta vida, depende de
ambos os graus de perfeição. E dado que a perfeição da alma é a do próprio corpo, se a
perfeição da alma é espiritual, esta também deverá ser a do próprio corpo. Neste sentido, a
perfeição do corpo deve ser a de alcançar a perfeição da própria alma e não o contrário.
Ora a perfeição da própria alma é, na vida atual, primeiramente conhecer a fonte de todos os
dons que não só lhe aperfeiçoem, mas também que lhe purifiquem de tudo quanto lhe possa
ter privadou não só de sua perfeição própria, mas também das que não pôde receber e gozar
em razão desta condição e secundariamente, a disposição da alma espiritual para estes dons,
seja quanto ao conhecimento delas, quanto à vontade de recebê-las e a condição de
colocá-las em prática. Para os que se iniciam nesta jornada, normalmente o que ocorre
quando da conversão, isto é apenas o começo do
acesso à vida interior, ou
seja, o início de uma conversa íntima e franca com Deus.
6.1.1. As fontes espirituais: Como vimos acima, com relação à consecução da perfeição
espiritual nesta vida, há graus. Ninguém nasce perfeito, quanto à vida espiritual. Por isso é
importante saber a real e natural disposição da alma para esta perfeição espiritual nesta vida,
já que a
ascética é justamente o caminho de purificação da
alma nesta vida, mediante a disciplina do corpo pela prática de virtudes. Ora, sabemos que
sem o auxílio divino, mesmo a alma mais virtuosa, ela não alcançaria só, pelo único esforço
ordinário e natural humano, o grau de perfeição espiritual. Por isso, é primeiramente
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necessário saber quais são as fontes extraordinárias e sobrenaturais que auxiliem a alma
nesta via de purificação. Contudo, porque tais fontes podem ser interiores e exteriores, cabe
primeiramente considerar umas e outras para melhor discernir o modo como melhor dispor a
alma para usufruí-las.
***
P.S.: Agradecemos o Instituto e a Revista Aquinate pela permissão de postagem de seus
artigos e matérias ( www.aquinate.net ) em nosso site.
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