O PATHOS CORPÓREO NA OBRA PICTÓRICA DE JULIO GALÁN

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O PATHOS CORPÓREO NA OBRA PICTÓRICA DE JULIO GALÁN
1
O
PATHOS
CORPÓREO
NA
OBRA
PICTÓRICA DE JULIO GALÁN
Héctor Pérez-Rincón
Em um Congresso de Psicopatologia que tem
como
tema
“Dietética,
Corpo,
Pathos”,
preocupações complexas que descrevem muito
bem
o
mundo
contemporâneo,
me
pareceu
conveniente apresentar para reflexão a obra do
pintor mexicano Julio Galán, o artista de Coahuila
morto aos 47 anos em 2006, que se destaca com
especial brilho dentro do rico campo da pintura
mexicana contemporânea.
2
O seu desaparecimento precoce, em plena
atividade
criativa
e
no
auge
da
sua
fama
internacional, tem chamado a atenção de um
público mais amplo do que aquele que até então
conhecia as suas obras, e tem gerado novos
estudos e novas exposições. Além de uma nova
avaliação no mercado de arte.
A obra de Julio Galán — independentemente do
juízo que tem merecido por parte da crítica de
Arte, que tem as suas próprias leis e enfoques —
oferece um especial interesse para a psicologia da
criatividade e da psicopatologia da expressão, em
vista
da
sua
temática
especial.
Os
aspectos
autorreferenciais, que constituem o leit motiv da
3
sua produção, e o uso recorrente de certos
elementos pictóricos impõem a necessidade de se
recorrer a conceitos de índole psicológica para
tratar de compreendê-la e explicá-la. Como tem
ocorrido com outros artistas plásticos, a presença
de um conteúdo aparentemente existencial, um
narcisismo
muitos
extremo,
críticos
a
tem
tentar
levado
naturalmente
uma
aproximação
patográfica, mas a evidência monotemática que se
mostra sobre a tela, se torna nesse caso, como em
outras produções artísticas, uma armadilha e um
perigo. A vida e a obra não são em todos os
momentos vasos comunicantes, e no fenômeno
complexo da criação artística verdadeira há uma
4
liberdade na escolha da técnica e da seleção
formal, na qual o criador não depende mecânica e
obrigatoriamente de seus conflitos internos, de
suas paixões ou de seus vícios. Ignorando toda a
vida e a personalidade de um pintor, a obra
concluída, por si mesma, em si mesma, adquire um
valor próprio, independente, completo, irredutível a
outros critérios que não sejam estritamente de
estesia e estética. O espectador que é confrontado
com a obra de Julio Galán não pode permanecer
impassível, mesmo sentindo alguma rejeição sobre
o seu conteúdo. Em frente a ela é acometido de
choque emocional, produto da maestria de sua
técnica.
5
No entanto, como tem acontecido com outros
artistas, Julio Galán não permaneceu ausente do
espetáculo de sua criação, não se ocultou atrás
dela, não forçou a se buscar somente nela o
segredo da sua inspiração. Junto a uma obra
naturalmente
provocativa,
emitiu
sobre
ela
opiniões não isentas de paradoxos, se mostrando
como um personagem, ele também como um
produto de sua imaginação. Posou para uma série
de fotos ambíguas, equívocas, decadentes, uma
atitude com tendências a „épater le bourgeois’
(surpreender o burguês), já muito fora de tempo e
de lugar, encenando uma performance provocante.
Esta construção de sua própria imagem como uma
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figura pública, quando colocada em paralelo com a
inegável força estética de sua elaborada criação
pictórica,
adquire
uma
condição
bem
mais
melancólica e quase clownesca, basicamente algo
infantil e grosseiro.
Da contemplação da obra surgem temas de
reflexão, aos quais se podem acrescentar algumas
opiniões expressadas pelo próprio artista e por
seus
estudiosos.
O
risco
neste
caso,
como
acontecido com Frida Kahlo, é a construção de
opiniões tão ingênuas quanto rígidas, superficiais,
esquemáticas, que conduzam a abordagens banais
que impeçam ver a profundidade tanto da obra em
7
si como do processo de sua geração. Não é ocioso
repetir que, ao contrário da crítica que estuda a
obra como produto artístico, o que a psicologia e a
psicopatologia da expressão pretendem é analisar
o processo de criação e os elementos mentais que
a obra encarna, sejam, ou não, esses elementos os
que habitavam o artista. Neste caso, às vezes,
pode-se cair na tentação de pensar que o Galán
figura pública tentava se parecer nessas fotos —
que de longe evocam as de Yukio Mishima — com o
onipresente
Julio
de
seus
quadros,
em
um
dramático jogo de especulação em que a “outra
realidade”, a da obra de arte, para usar o conceito
proustiano,
assume
a
primazia.
Assim,
se
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estabelece entre ambos os Julios, o diabólico jogo
do “retrato de Dorian Grey”, pois sobre a tela a sua
imagem idealizada permanecerá em um perpétuo
estado de adolescência e juventude, congeladas
como o centro de sua criação, origem e finalidade
da obra, ao mesmo tempo inspiração e exorcismo.
A referência a Yukio Mishima não é supérfluo.
Galán realiza sobre a tela um processo semelhante
ao que o frágil Hiraoka construiu no ginásio de
esporte, outra corporalidade e outro nome, o
pseudônimo torna-se uma máscara. No caso do
grande romancista japonês assistimos à apoteose
de um narcisismo mórbido, que recria na fotografia
o ícone do martírio erotizado de São Sebastião, por
9
meio de um body building impregnado de pulsão
da
morte.
A
contemporânea
glorificação
do
corpo
exibicionista
masculino,
pelas
exigências da publicidade, tem levado a imagem do
soldado romano a um terreno ambíguo, que talvez
seja alheio aos pressupostos artísticos de Guido
Reni, de El Greco, de Mantegna, de Tiepolo, de
Ximeno e Planes, de Suvée, de José de Ribera, de
Rubens,
de
Tiziano
Vecellio,
de
Botticelli,
de
Antonello da Messina, entre outros.
Já mencionamos a obra de Frida Kahlo, outro
ícone
da
pintura
mexicana,
com
a
qual
se
comparou a produção de Julio Galán. Não se pode
evitar
então
de
referir-se
a
ela.
Talvez
nos
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proporcione ferramentas para compreender a obra
de Galán. Nos anos recentes assistimos a um
generalizado,
fridomânico.
onipresente
Haverá
em
e
excessivo
breve
culto
também
uma
galanomania? Aos que encontraram semelhanças
entre eles, o próprio artista respondeu com uma
frase
que
deveria
ter
posto
em
guarda
os
psiquiatras e psicólogos. Disse Galán, referindo-se
a
Kahlo:
“a
sua
obra
é
resultado
de
seus
sofrimentos físicos, a minha é fruto de meus
sofrimentos emocionais”. Em guarda, sim, tanto
para estudar ambas as obras cuidadosamente
como para evitar a armadilha do facilismo. Em
Frida Kahlo tudo gira em torno de um corpo
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martirizado. Há realmente uma alma martirizada
em Julio Galán? Nos dois pintores o corpo está
obsessivamente presente, participando ativamente
“e muito”, como dizia Santa Teresa falando de seus
êxtases. Em ambos está presente em algum
momento
uma
atmosfera
realmente
macabra.
Françoise Duvignaud escreveu em „Le corps de
l’effroi’ que “o horror começa quando o corpo
humano torna-se um objeto — objeto mutilado —
por efeito de uma metamorfose”. A experiência de
sua própria corporalidade como objeto mutilado se
converteu no leitmotiv da criação pictórica de
Kahlo.
Nela
progressiva,
assistimos
somática,
a
uma
porém
metamorfose
esta
não
é
a
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tradução direta da sua vida pessoal, como se
acreditava, e sim a criação livre de uma artista que
havia descoberto nas telas — convertidas em um
espelho simbólico — uma Frida paralela que devia
sustentar com a própria vida, no mundo da Arte, a
outra Frida enterrada nas graves limitações da
doença. O seu célebre quadro “As duas Fridas”
mostra de uma maneira brilhante tal dicotomia,
que não é a de uma dissociação histérica ou de
uma ambivalência psicótica, e sim o exemplo da
possibilidade de alcançar outra realidade, na qual
os corpos, mesmo martirizados, podem gozar da
epifania da Arte.
13
Alguns críticos têm destacado também na
produção destes pintores a influência do retábulo
popular mexicano ou o ex-voto. O que em a artista
de Coyoacán é um recurso válido de arte popular,
em o artista de Múzquiz se trata bem mais de um
voluntário uso de elementos kitsch com sentido
irônico e de autoflagelação.
A monotemática exuberância visual da obra de
Galán tornou impossível aos seus exegetas escapar
de opiniões e correlações de índole psicológica. Por
exemplo, muitas das opiniões de um de seus
estudiosos
mais
ilustre,
Guillermo
Sepúlveda,
curador de algumas de suas exposições, têm
verdadeiros enfoques diagnósticos: “O pintor vivia
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atormentado e se afogava em sua própria imagem;
sempre pensava nele mesmo...”, “A sua pintura é
existencial,
animicamente
autobiográfica,
carregada de solidão e desejo, como uma obra
aberta
com
infinitas
leituras,
paradoxos
e
ambiguidades. É um ponto de referência claro do
momento atual e da conduta humana, que reflete
as caóticas mudanças em todas as áreas da sua
atividade”.
Outros
destacaram
como
características: a solidão, a dor, os sonhos, a
fragilidade do ser humano, a capacidade de amar e
o medo da realidade, rótulos algo genéricos e
ambíguos que poderiam se aplicar a uma boa parte
da pintura do século XX.
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Em uma entrevista realizada por Luis Mario
Schneider em 1993, na Cidade de Monterrey, Julio
Galán proporcionou algumas pistas interessantes
que devem ser analisadas com precaução, mas que
têm
ajudado
a
construir
um
arcabouço
interpretativo para o uso daqueles que creem,
inocentemente, que um artista pode expressar e
explicar totalmente com palavras e conceitos a
alquimia íntima de seu processo criativo. Isto quer
dizer que muito mais além do que o artista pode
dizer sobre a sua obra, há um aspecto interno,
neuropsicológico e motivacional que escapa à sua
compreensão e, com maior razão, à compreensão
dos críticos.
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LMS: — As suas crises foram tão graves que
em algum momento, na sua adolescência por
exemplo, o levaram a pensar em suicídio como
uma possibilidade de fuga?
JG: — Sim, não só na adolescência, mas desde
a
infância
foram
momentos
cruciais
que
me
fizeram pensar nessa ideia, e a angústia não me
abandonou de todo. Desde então parece que eu
caminho no fio de uma navalha. Cada quadro que
faço leva o sofrimento do primeiro, sigo sentindo o
mesmo temor, me afeta inclusive na escolha das
cores, como misturá-las, tenho dúvidas sobre o
que quero. Vivo nessa constante repetição. Assim é
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minha vida, mas isto é natural quando se busca
coisas novas.
— Sinto que as pessoas que conhecem você,
ou as que o intuem através da sua pintura, têm a
impressão de que você é uma pessoa misteriosa e
enigmática.
Ainda
há
outras
que
percebem
agressividade na sua produção: O que você acha
disso?
— Sim, existe, levo isso comigo desde que
nasci, para mim é natural. Posso ser muito
complicado ou muito mais simples, ao mesmo
tempo sou muito adaptável, muito profissional,
muito organizado. A raiva poderia ser comigo
mesmo, não? Embora sempre lute contra essa
18
parte de minha pessoa. Posso ser disciplinado ou
posso ir ao lado contrário e me afundar. Embora eu
acredite estar em um bom meio termo, exerço um
certo controle sobre mim. Aonde deixo que aflore o
„descontrole‟
é
na
minha
pintura.
Sobre
o
enigmático e misterioso nela penso que as pessoas
têm razão, que meus quadros são um reflexo
dessa
parte
personalidade.
com
Para
poucos
ser
freios
franco,
da
minha
não
estou
completamente seguro disso.
[…]
—
Alberto
Como
Ruy
você
qualificaria a
Sánchez
a
sua
classifica
pintura?
como
“fundamentalismo fantástico”, outros a identificam
19
diretamente com o surrealismo. Há críticos que a
associam inclusive com outras vanguardas. Vamos
tratar de elucidar isso. Você se acha um pintor
fantástico ou surrealista?
— Não sou um pintor fantástico. Talvez de
alguma maneira esteja um pouco na rota do
surrealismo. Provavelmente no metafísico. Acima
de tudo eu sinto a minha pintura, como você me
dizia, muito autobiográfica. O que acontece é que
ela é bem disfarçada, como eu mesmo gosto de
disfarçar a mim mesmo. As pessoas não têm por
que saber tanto de mim. Sim, há uma máscara,
não sei como explicar isso, mas muita gente
também diz que minha arte é feita de uma maneira
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muito sofisticada. Eu vejo os meus temas muito
ásperos porque sou eu que os crio, mas, sim, estão
disfarçados com cores, compensados com cores
suaves, com uma harmonia colorista para atenuar
o rigor.
— Então você finge na pintura?
— Soa estranho, mas insisto no disfarce. Não
quero que seja tão óbvio o que estou sentindo já
que é muito forte, por isso cubro minha pintura
com uma espécie de véu, no entanto, permito que
ainda assim se possa intuir o que sinto, só um
pouco.
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Depois destas confissões que são como ele
mesmo afirma, as de uma máscara, podemos
perceber o eco da ideia do poeta mexicano Jorge
Cuesta: “a Arte é sempre a arte de mentir…”
Nessa entrevista Galán forneceu a Schneider a
seguinte confissão: “Devo à pintura o fato de me
sentir
vivo,
ela
me
deu
a
razão
da
minha
existência, deu-me algo a dizer aos outros”. Em
outra ocasião havia dito: “Não sei o que é querer,
nem sei o que é ser querido. Não tenho claro esse
sentimento. A única coisa que tenho claro é minha
pintura.
Estou
instrumento”.
sujeito
à
inspiração,
sou
um
22
O tema do artista como instrumento de outros
poderes
é
oportuno
estabeleceu
quando
diante
Galán
do
fato
expressou
que
se
que
o
verdadeiro autor de sua obra não era outro senão o
boneco Morelio, fantoche do século XIX, algo
cadavérico, seu predileto, que supervisionava com
ele, como outro Eu de uma infância congelada, a
curadoria de suas exposições. Em uma tela de
onirismo
angustiante,
Morelio
contempla
com
soberba e desprezo o seu minúsculo intérprete.
A
obra
deste
pintor
de
duas
faces,
ambíguo, aberto, metáfora viva de “As duas Fridas”
paradigmáticas, uma referência obrigatória, ocupa
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por direito próprio um lugar peculiar dentro da
longa tradição da Nudez na pintura ocidental.
Por isso, ao contemplá-la, o crítico de Arte não
pode senão recordar a definição do pathos que fez
Kenneth Clark em seu célebre tratado sobre A
Nudez:
A
nudez
que
expressa
à
energia
exalta o corpo vitorioso. Hércules triunfa
nos trabalhos que lhe foram impostos, o
atleta triunfa sobre a gravidade e a
inércia. Porém existe igualmente uma
nudez que expressa a derrota. O corpo
admirável que parecia sólido e sereno é
vencido pela dor. O homem potente cuja
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força ultrapassava todos os obstáculos é
vencido pelo destino. Hércules triunfante
se converte em “Samson Agonistes”. Esta
encarnação da nudez, que eu chamo de
pathos, expressa sempre esta mesma
ideia de que o homem, pelo seu orgulho,
provocou a cólera dos deuses. E já que
podemos interpretá-lo como o triunfo do
divino
sobre
o
mundo
material,
a
consequência desta ideia é que o homem,
sim deseja conservar a sua posição, “um
pouco mais abaixo do que os anjos”, deve
sacrificar o corpo e não o espírito.
25
Isto entendeu muito bem a jornalista e
crítica
argentina
Victoria
Verlichak
quando
escreveu:
A sua obra é um ataque ao espírito,
às emoções. A partir da sua esplêndida,
dolorosa e sensual pintura o artista habita
a
contradição,
tem
o
prazer
na
ambiguidade. Revela-se e se esconde ao
mesmo tempo. É capaz de exibir até as
suas vísceras, enquanto faz crescer o
enigma. Executa uma pintura atrevida
carregada de drama, somente aliviada por
toques
de
humor.
[…]
Um
episódio
26
ocorrido há vários anos parece descrevêlo corretamente. Diante do pavor que lhe
causava
se
encontrar
com
os
rostos
ansiosos dos presentes à inauguração de
uma de suas amostras em Nova York,
decidiu ir incógnito, vestido de mulher.
Ninguém
se
deu
conta.
Quis
se
resguardar, todos pensaram que havia
faltado ao evento.
No entanto, dentro deste jogo de duplas e
presenças especulares temos que considerar a obra
de outro pintor mexicano que nos remete à de Julio
Galán,
pois
compartilha
com
ela
a
temática
27
narcisista, homoerótica, exibicionista, desafiadora:
o vera-cruzense Nahum Zenil.
mesma
forma,
porém
de
Nele ocorre da
uma maneira
mais
evidente, uma associação fridesca e uma obsessiva
autorreferência sem disfarce algum. A fronteira
entre
o
erotismo
e
a
pornografia
se
dilui
frequentemente nele. Zenil deu um passo que
Galán não se atreveu a dar. Na produção pictórica
de
ambos
semelhanças
os
e
artistas
é
diferenças
inspiração,
não
somente
formações
acadêmicas,
possível
na
forma
atribuíveis
mas
encontrar
e
na
às
suas
também
aos
diferentes temperamentos, decorrentes estes, em
uma boa medida, das suas diferenças de origem
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social e geográficas. Um representa o imaginário
burguês do Norte branco, próspero, que olha o
poderoso país vizinho, enquanto que o outro traduz
o imaginário popular da Costa do Golfo, mestiço,
nada afortunado, preocupado em manter a rica e
multiétnica tradição vernacular e de se nutrir das
raízes primordiais.
As
obras
mencionados
desses
parecem
três
pintores
levar
para
mexicanos
a
tela
a
conhecida ideia freudiana de uma oposição entre a
libido do Ego, ou a libido narcisista, e a libido do
objeto, podendo a primeira, em seu excesso,
sobrecarregar o Ego e separar o sujeito do mundo
exterior. A partir dessa colocação é que Freud
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analisa o caso do Presidente Schreber e apresenta
as
relações
entre
libido
narcisista,
homossexualidade e paranoia.
Na produção de Julio Galán há uma obra
singular
que,
predominante
sem
que
a
afastar-se
do
caracteriza,
inclui
tema
um
elemento que não haveria de se repetir. Nesta, o
personagem habitual sofre, mais por transtorno do
que por angústia, a agressão de uma espécie de
um monstruoso siamês toracópago de proporções
diminutas. Qual é o significado desta invasão
teratológica? A pintura evoca a um espectador
sensível, apesar das diferenças de forma e de
30
técnica,
algo
do
pathos
dos
corpos
metamorfoseados de Francis Bacon, um artista
cuja obra e cuja biografia são um paradigma da
pulsão da morte. É o Desejo egodistônico que
assalta o artista? É a culpa que luta por emergir do
seu interior e tenta substituir o corpo erotizado por
uma espécie de intercâmbio dantesco, como a
serpente rouba o corpo do ladrão no „Inferno,
canto XXIV‟? Ou é o drama do artista que luta com
a fonte de inspiração, como Jacob com o anjo, para
dar forma a algo que surge no mais profundo de
seu ser, em seu hemisfério direito, e que deve ser
traduzido do inefável ao comunicável por meio do
misterioso processo da simbolexia?
31
A Arte como salvação, produto de uma vontade
ou de uma floração das partes obscuras do
cérebro,
pulsão da vida e
pulsão da morte,
sublimação e destruição, Verdade e dissimulação,
terapia e disciplina, exibicionismo e escamoteação,
comunicação e sigilo, o pintor evoca a obscura
dialética entre a experiência inefável e o domínio
de uma técnica de onde brota toda a criação
artística. De maneira obsessiva, circular, se impõe
a Julio Galán a temática do desejo impossível de
satisfazer, que surge do seu narcisismo açucarado
e
sua
puerilidade
kitsch,
da
nostalgia
desse
adolescente algo bochechudo e ambíguo que nunca
32
quis deixar de ser, do erotismo entre estereotipado
e sádico, que em si mesmo se esgota e a si mesmo
enclausura.
Um
crítico
mordaz
e
anancástico
poderia inclusive aplicar a Galán a mesma tirada
espirituosa do músico mexicano Carlos Chávez
quando disse, a propósito das mais de 100
sinfonias de Joseph Hyden: “Coitado, escreveu a
mesma sinfonia mais de 100 vezes”. O drama da
obra pictórica de Julio Galán — não me atreveria a
assegurar que também da sua vida — se situa em
outro nível e o pathos de seu narcisismo merece a
definição de Ovídio:
Se cupit inprudens et qui probat ipse probatur,
33
Dunmque petit petitur pariterque accendit et
ardet.
A si se deseja, imprudente, e o que aprova, ele
mesmo
se
aprova,
e
enquanto
procura
é
procurado, e ao mesmo tempo incendeia e se
queima.
Metamorfoses, III, 425.

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