fotografia

Transcrição

fotografia
www.revista365.com
distribuição gratuita # 31
CA
ANA QUEIROZ
ANABELA BRAVO
CO
MILO CASTELO BRAN
HÉLIO TEIXEIRA
MADALENA SILVA
MIGUEL MARQUES
PAULO MOREIRAS
PEDRO MIGUEL
MADALENA SILVA
NTOS
SÓNIA MORAIS SA
A PRIMEIRA REVISTA DE DISTRIBUIÇÃO GRATUITA QUE NÃO VALE ABSOLUTAMENTE NADA.
O Outono vai entrando devagarinho,
como quem não quer coisa, e cá estamos com
mais um antidepressivo número da nossa
revista contra os traumas pós-férias, agora
que os chapéus de sol voltam à reclusão das
garagens, das arrecadações, e as toalhas de
praia temáticas – Cristiano Ronaldo, Calvin &
Hobbes, bandeiras nacionais (variantes Brasil,
Inglaterra, Estados Unidos, Portugal), Ferrari,
Fiat 500 – regressam aos baús para um sono
de meses, com certeza ruminando sonhos de
areia, pés descalços, descuidos de mostarda,
leite Ucal, Santal de manga-laranja, Minis,
água dos Fastio, creme de bolas de berlim, e
acho que já perceberam a ideia.
Aqui encontrarão textos dos
repetentes Ana Queiroz, Miguel Marques,
Pedro Miguel; dos estreantes – pelo menos
nas nossas páginas – Hélio Teixeira, Madalena
Silva, da jornalista Sónia Morais Santos que se
arrisca na ficção, e do escritor Paulo Moreiras
que acabou de lançar o seu segundo romance
(«Os Dias de Saturno», edição Quidnovi). Por
fim, e dedicado aos hipocondríacos – agora
que nos aproximamos do anunciado auge da
gripe A –, um magnífico texto do magnífico
Camilo Castelo Branco (parece bajulice, mas
não é).
EDITORIAL
Boas leituras; ver-nos-emos de novo
nos arredores do Inverno, mais coisa menos
coisa.
António Gregório
365
01
DIRECTOR
Fernando Alvim
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EDITOR
António Gregório
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EDITOR ADJUNTO
Carina Fonseca
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EDITORES HONORÁRIOS
Vasco Barreto
José Luís Peixoto
GRAFISMO
Homem Invisível
DEPARTAMENTO INTERNACIONAL
Pedro Lourenço
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DEPARTAMENTO ASSINATURAS
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INTERNET
Raio X — Publicidade e Marketing
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CÚMPLICES
Alex Gozblau, Asli Kolcu, Ana Queiroz, Anabela Bravo, Anastasia Tikhonova, Camilo Castelo Branco,
Elif Karakoç, Hélio Teixeira, Katherina Velasquez, Madalena Silva, Micael Póvoa,
Miguel Marques, Paulo Moreiras, Pedro Miguel, Philip Flesh, Sónia Morais Santos
ENDEREÇO
Apartado 15154,
1074 - 004 Lisboa
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PROPRIEDADE
Cego, surdo e mudo
— produções multimedia
MECENAS
Robin Hood
CAPA
Alex Gozblau
365
02
01 Editorial 04 Cúmplices 06 Camilo Castelo Branco Mania e hipocondria 10 Pedro Miguel “Welcome my son to
the machine” 14 Anabela Bravo Quatro retratos 16
Madalena Silva A Viúva 24 Ana Queiroz O ladrão de crianças
32 Cine 365 Faster Pussycat! Kill! Kill! 34 Hélio Teixeira
Perdidos & Roubados 36 Clara Ferreira Alves O Sonho 40
Miguel Marques O filho e a guitarra 40 Miguel Marques O
filho e a guitarra 46 Sónia Morais Santos Debaixo do
sobretudo 52 Paulo Moreiras A suprema conquista
fotografia Asli Kolcu
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03
Ana Queiroz tem 21 anos, frequenta o último ano do curso de Cinema na Escola Superior de
Teatro e Cinema. Foi seleccionada entre os Jovens Criadores de 2008 na categoria de Literatura e, no futuro, deseja trabalhar nessa área, bem como na de Cinema.
Camilo Castelo Branco viveu entre 1825 e 1890. Tem uma obra vastíssima e é um dos mais
importantes escritores da língua portuguesa. Já anteriormente havíamos publicado nesta
revista o texto «Maria! Não Me Mates, Que Sou Tua Mãe!».
Fernando Miguel Santos nasceu há vinte e um anos, em Gaia, estima-se que desde essa altura,
ou até antes, tenha começado a desejar ser escritor. Em 2006, lançou o romance Aldeia de Luz
e, desde então, não fala de outra coisa. Como não pode lançar livros diariamente lançou um
site: www.fernandomiguelsantos.com.
Hélio Teixeira é licenciado em Linguas e Literaruras Modernas no Porto, o escritor-clown-performer Hélio Teixeira foi seleccionado para a Mostra Nacional Jovens Criadores 2008, encontrando-se neste momento numa residência artística a expensas próprias em Lisboa.
Madalena Silva nasceu em 1956, na Parede, e embora pudesse ter sido uma menina da Linha
preferiu desalinhar e foi viver para o deserto a sul do Tejo. Por necessidade, enveredou pela
notável carreira de funcionária pública. Por gosto, e para respirar, encenou peças, pinta e
escreve coisas. Aos 40 anos licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas; aos 50 foi fazer
um mestrado em Edição de Texto; quando fizer 60 espera receber o Pulitzer – dispensa o
Nobel. Defende que nem todos os políticos são trafulhas e acredita que ainda é possível
mudar o mundo. Até hoje, nunca tinha publicado nada. A partir de hoje pretende nunca mais
parar. É autora do blogue www.agavetadaescrita.blogspot.com
Mariel Reis nasceu no Rio de Janeiro, em 1976. Entre diversas participações em antologias, é
autor dos livros «Linha de Recuo e outras estórias» (Edição Paradoxo) e «John Fante Trabalha
no Esquimó» (Edição Caliban).
Miguel Marques nasceu em Lisboa em 1978. Formado em Psicologia, tem colaborado amiúde
na 365, e tem trabalhos publicados na colectânea «Jovens Escritores» (edição 101 Noites).
Paulo Moreiras nasceu em Maputo, em 1969. É autor, entre outras obras, do romance «A
Demanda de D. Fuas Bragatela» (Temas & Debates, 2002) e, acabado de lançar, «Os Dias de
Saturno» (Quidnovi, 2009).
Pedro Miguel nasceu em Viseu, há 33 anos. Vive em Leiria, claro. Escreve no projecto «É sextafeira, foge comigo» (www.myspace.com/sextacomigo) e passa música sob o nome dj Schmeichael.
Sónia Morais Santos é jornalista, editora executiva da Time Out Lisboa. «Debaixo do Sobretudo» é a sua estreia na ficção.
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Mania e hipocondria
Camilo Castelo Branco
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Certo maníaco imaginava que tinha morrido, e rogava aos
parente e amigos que o enterrassem, porque o seu corpo começava
a apodrecer. Três vezes, dentro de um ano, o atacou semelhante mania. Amortalharam-no e fingiram que o levavam ao cemitério; porém, no caminho, estavam uns homens pactuados com os parentes à
espera do saimento; e, quando a tumba ia passando, começaram a
dizer em voz alta:
– Ora, graças a Deus, que morreu finalmente aquele velhaco, aquele biltre, aquele perversíssimo celerado!
O maníaco, ouvindo os insultos, irou-se grandemente, e
respondeu:
– Canalhões! se eu estivesse vivo, castigar-vos-ia a bengaladas, para vos ensinar a não ter má-língua; infelizmente estou morto;
e os mortos não se vingam.
Replicaram os homens que não lhe tinham medo, e desafiaram-no renovando as injúrias.
Então o maníaco, erguendo-se de golpe, desembaraçou-se
da mortalha, e correu atrás dos homens, que o receberam a murros,
e tantos lhe pregaram na cabeça que lhe puseram fora de lá a ideia
que o atormentava.
O doente recolheu-se a casa bastante contuso; mas curado;
e, porque havia três dias que jejuava, comeu à tripa-forra.
Este caso, e outro da mesma seriedade, vêm referidos em
um livro científico e mui circunspecto ultimamente publicado em
França. É a Higiene das Dores, por Mr. A. Debay. Os franceses, ao
mesmo tempo que nos ilustram, alegram a gente com estas passagens que não são vulgares entre os maníacos portugueses.
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Um hipocondríaco farto e rico imaginou-se doentíssimo, e
resolveu nunca sair do seu quarto. Dormia, comia e bebia como se
quer; mas sofria horrorosamente por todo o corpo; devia morrer de
morte afrontosa; estava ulcerado e gangrenado; pedia que o não
atormentassem, etc.
Fez quanto pôde para se curar; consultou os sonâmbulos
mais acreditados; encarapuçou-se com um barrete encerado; tomou
banhos egípcios, e pôs sobre o estômago uma cataplasma egípcia:
tudo inútil. Depois experimentou o racachout, a revalenta, a mostarda branca, com igual resultado. A mostarda branca, que cura toda a
gente, fez-lhe mal a ele. Por último, e em recurso extremo, tomou
preparados de ferro, de cobre, de ouro, bezoartos orientais, o cachundé chinês, o telekamapala dos selvagens americanos, e nada de
novo. Sempre doentíssimo. Recorreu à escova eléctrica, ao restaurador da vida. Tudo em vão. Parece incrível uma cousa tão verdadeira!
A conversação deste sujeito versa sempre sob o mesmo assunto: a sua moléstia. Se alguém consegue distraí-lo por momentos,
esquece-se o homem dos seus atrozes flagícios.
Indo o médico visitá-lo uma manhã, queixava-se ele de que
não podia estender a perna direita; e, para mostrar a dificuldade que
sentia, estendia a perna.
– Então o senhor que mais quer? – perguntou o médico.
– Valha-me Deus, queria fazer isto! – e levantava a perna
com a maior presteza e facilidade.
O médico desatou às gargalhadas; e o doente, caindo em si,
riu-se também. Esta aventura distraiu-o, e pôs cobro às lamúrias.
Doutra vez, queixava-se ao médico de falta de apetite (comia como quatro), e de se estar marasmando.
Ora, o homem tinha tão boas cores e tão proeminente abdómen que o médico não pôde suster o riso. O doentinho, afrontado
pela galhofa do médico, pediu explicações.
– Antes de lastimar-se, olhe para a sua barriga – disse o
médico.
– É verdade! – disse pasmadamente o enfermo – é verdade!
eu não tinha reparado.
E ou por estar convencido ou por imitação, riu-se também com o
médico.
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Este livro da Higiene das Dores não é dos mais imprestáveis
no catálogo da biblioteca médica. Há moléstias nevropáticas que se
modificam pela explosão das lágrimas, outras pelo espirro, e algumas
pelas convulsões do riso.
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As visitas entraram pela casa adentro sem se fazerem
anunciar. Era uma vivenda respeitável, burguesa, enorme, com um hall de entrada do
tamanho de um T3 como aqueles que há no bairro Marais cá em Paris. A governanta
estava de folga, um direito relativamente virgem naquela mansão, mesmo para a
gerente das outras criadas que tinha educado os filhos dos senhores como se fossem os
seus, e se calhar, um ou dois, a julgar pelo atrevimento dos seus olhos claros, até
eram.
A modernice continuava com o jardineiro também
ausente e com licença de paternidade, fruto dos encontros outrora furtivos com a
florista mais próxima, entre girassóis, amores-perfeitos, malmequeres e carrinhos de
mão, o que lhe custava de quando em vez umas rosas semi-murchas bem na entrada
principal do casarão, e a devida reprimenda por parte da já citada governadora ou lá o
que era.
Nem de propósito: o motorista tinha levado os carros à
inspecção (apesar de ser fim de semana e de ninguém dar por isso) e os caseiros que
viviam no anexo, já tinham morrido sem que ninguém desse por nada.
Era Sábado, Dia Internacional do Refugiado, num fim de
tarde quente em Junho, na véspera de começar oficialmente o Verão, que é como quem
diz – e assim é que está correcto – a poucas horas do solstício de Verão e da entrada do
Sol no signo de Caranguejo.
O pai estava na biblioteca de tronco nu, na desbunda, a
ler ficção americana, não tinha dado por isso, mas nem tinha sequer almoçado. A mãe,
num clássico fora de moda, de rolos na cabeça e de robe, andava pela casa
apressadamente, para a tinta do cabelo secar mais depressa devido à aparente corrente
de ar provocada por ela.
A filha adolescente estava no quarto com os headphones
metidos nas orelhas, a ouvir a banda de garagem do namorado e não deu por nada.
Podiam derrubar paredes, matar a família inteira, que não daria por isso… bons
headphones de marca alemã que isolavam tudo com o único inconveniente de fazerem
suar os ouvidos com a sua esponja mole e confortável.
O pai lembrou-se de ir comer qualquer coisa, a mãe
passava por ali a alta velocidade e a filha tinha decidido ir dar um mergulho na
piscina.
Encontraram-se todos no hall de entrada.
As visitas já lá estavam.
O embaraço foi grande.
O riso nervoso da madame visitante não ajudou e ainda
por cima falava mal por causa de uma trombose ocorrida há uns anos e agora usava um
aparelho nos dentes porque se lhe tinha deslocado um maxilar quando caiu na banheira.
Ninguém percebeu a historia nem o facto de ela se queixar que aquilo estava muito
apertado e lhe causava uma sensação na espinha muito irritante que ela própria não
tinha talento para explicar.
O olhar do gentleman visitante para o interior do robe
um pouco decotado da dona da casa caiu mal em toda a comitiva e a culpa foi do raio
da criancinha de olhos claros que gosta de abrir a porta seja a quem for quando tocam
à campainha.
“welcome my son
to the machine”
Pedro Miguel
fotografia Elif Karakoç
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As visitas entraram pela casa adentro sem se fazerem
anunciar. Era uma vivenda respeitável, burguesa, enorme, com
um hall de entrada do tamanho de um T3 como aqueles que há
no bairro Marais cá em Paris. A governanta estava de folga, um
direito relativamente virgem naquela mansão, mesmo para a gerente das outras criadas que tinha educado os filhos dos senhores
como se fossem os seus, e se calhar, um ou dois, a julgar pelo atrevimento dos seus olhos claros, até eram.
A modernice continuava com o jardineiro também ausente e com licença de paternidade, fruto dos encontros outrora
furtivos com a florista mais próxima, entre girassóis, amores-perfeitos, malmequeres e carrinhos de mão, o que lhe custava de
quando em vez umas rosas semi-murchas bem na entrada principal do casarão, e a devida reprimenda por parte da já citada governadora ou lá o que era.
Nem de propósito: o motorista tinha levado os carros à
inspecção (apesar de ser fim de semana e de ninguém dar por
isso) e os caseiros que viviam no anexo, já tinham morrido sem
que ninguém desse por nada.
Era Sábado, Dia Internacional do Refugiado, num fim de
tarde quente em Junho, na véspera de começar oficialmente o
Verão, que é como quem diz – e assim é que está correcto – a
poucas horas do solstício de Verão e da entrada do Sol no signo
de Caranguejo.
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O pai estava na biblioteca de tronco nu, na desbunda, a
ler ficção americana, não tinha dado por isso, mas nem tinha sequer almoçado. A mãe, num clássico fora de moda, de rolos na
cabeça e de robe, andava pela casa apressadamente, para a tinta
do cabelo secar mais depressa devido à aparente corrente de ar
provocada por ela.
A filha adolescente estava no quarto com os headphones metidos nas orelhas, a ouvir a banda de garagem do namorado e não deu por nada. Podiam derrubar paredes, matar a família
inteira, que não daria por isso… bons headphones de marca alemã que isolavam tudo com o único inconveniente de fazerem
suar os ouvidos com a sua esponja mole e confortável.
O pai lembrou-se de ir comer qualquer coisa, a mãe passava por ali a alta velocidade e a filha tinha decidido ir dar um
mergulho na piscina.
Encontraram-se todos no hall de entrada.
As visitas já lá estavam.
O embaraço foi grande.
O riso nervoso da madame visitante não ajudou e ainda
por cima falava mal por causa de uma trombose ocorrida há uns
anos e agora usava um aparelho nos dentes porque se lhe tinha
deslocado um maxilar quando caiu na banheira. Ninguém percebeu a historia nem o facto de ela se queixar que aquilo estava
muito apertado e lhe causava uma sensação na espinha muito irritante que ela própria não tinha talento para explicar.
O olhar do gentleman visitante para o interior do robe
um pouco decotado da dona da casa caiu mal em toda a comitiva
e a culpa foi do raio da criancinha de olhos claros que gosta de
abrir a porta seja a quem for quando tocam à campainha.
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ANABELA BRAVO Quatro retratos
Madalena Silva
A Viúva
fotografia
Katherina Velasquez
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Dona Cândida era ainda uma mulher interessante
quando enviuvou. Os belos olhos verdes amendoados sempre
haviam sido o seu melhor atributo e nem os rios de lágrimas
amargas que a partida do falecido desencadeara tinham conseguido manchar a limpidez do verde e o amendoado das formas.
Quanto ao resto, não havia sinal digno de nota. Algumas rugas, não muitas, um peso claramente superior ao desejável, o cabelo curto e espesso pintado num tom a oscilar entre o
caju e o ameixa escuro e os dedos pequenos e sapudos cobertos
de anéis de imitação com grandes pedras de vidro colorido.
Ao ver-se sozinha nas suas cinco assoalhadas antigas
em Campo de Ourique, obrigada ao uso do preto por força das
conveniências sociais – pelo menos durante um ano como mandavam as regras do luto de viuvez – Dona Cândida passou por
várias fases: primeiro revoltou-se com a situação, acusando
Deus de lhe pregar tamanha partida; depois voltou as suas recriminações para o defunto que não soubera resguardar a saúde e levara uma vida de libertinagem e excessos, de álcoois e
tabacos, de gorduras variadas e toda a qualidade de desmandos
alimentares, até entupir definitivamente as artérias e cair redondo e desamparado à porta de casa após esforçar o coração
na íngreme jornada até ao 4º andar, sem elevador.
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Também conheceu a etapa em que se autoflagelou por não ter sabido impor-se, obrigá-lo a
dietas, a caminhadas saudáveis, a vigilâncias regulares pelo médico de família.
Por fim, quando já era passado meio ano, a
dor foi amainando e Dona Cândida aprendeu a conviver com o seu novo estado civil. Começou por comprar uma blusa preta com pintinhas brancas e uma
saia cinzenta. Depois, como precisava de mudar de
roupa, a compra seguinte já foi um vestido com uns
laivos de amarelo. Estava claramente a “aliviar o
luto”, mesmo sem perfazer o protocolar prazo de
um ano. De manhã, antes de sair de casa para comprar o pão, uns legumes ou uma fruta, olhava-se ao
espelho e pincelava as maçãs do rosto e o nariz com
um cheirinho de pó-de-arroz numa tonalidade de
pêssego maduro que lhe dava um ar corado e saudável e ligava muito bem com os olhos verdes amendoados.
A primeira vez que foi sozinha à matiné
nas Amoreiras, custou-lhe horrores e sentiu-se uma
pecadora sem nome. Na segunda vez já respirou melhor e a partir da terceira insistência decidiu prazenteiramente instituir aquele hábito assentando numa
ida semanal ao cinema.
Foi num domingo à tarde – tinha ela ido
passear até à beira rio, apanhar sol frente aos Jerónimos e comer dois pastéis de Belém com um chá de
camomila – que conheceu Abel, antigo sargento da
marinha, aposentado com uma pensão muito jeitosa, divorciado, sem filhos, com residência nos Olivais,
proprietário de um Renault 21 Nevada cinzento-escuro que, não fora o design algo antiquado, ninguém diria estar na sua posse há mais de vinte anos
de tão estimado que era.
Foi ele que meteu conversa e se apresentou. Ela achou-o simpático e deu-lhe corda. Conversa
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puxa conversa, combinaram no mesmo sítio e à mesma hora para o domingo seguinte. E atrás desse domingo veio um outro e ainda um outro antes de ser
marcado um primeiro encontro mais formal, com direito a jantar e fados e guitarradas, numa casa muito
conhecida, em Alfama.
Embora não se podendo considerar que tivesse sido um espinhoso calvário, também não foi a
coisa mais fácil do mundo para Abel conseguir que
Dona Cândida o convidasse a jantar em sua casa. Por
essa altura, ela esperava ansiosamente por um pedido para avançarem para uma etapa mais formal da
relação.
Recebeu-o com sorrisos, amabilidade e um
assado no forno a libertar um tal aroma pela escada
abaixo que ainda ele não tinha chegado ao patamar
do 2º andar e já os seus sentidos estavam em alerta
total. No final do jantar, Abel estava rendido e absolutamente convencido que encontrara a mulher da
sua vida, com quem tinha de casar rapidamente, antes que alguém aparecesse e se antecipasse.
Estavam sentados na sala em frente da televisão, em silêncio satisfeito, a ver um documentário sobre os rituais de acasalamento dos elefantes no
National Geographic e a bebericar golinhos de licor
de figo, quando Dona Cândida começou a sentir algum incómodo. Queria descalçar os sapatos, desapertar o soutien, tirar a cinta, “pôr-se à vontade”,
mas a presença do convidado inibia-a.
Franziu o sobrolho, olhando para ele de esguelha. Era um belo homem, não havia dúvida. Alto,
seco de carnes, o cabelo a grisalhar sobre as fontes.
Mas não passava disso.
Mentalmente reviu os últimos dois meses,
depois de se terem conhecido. Os encontros, as saídas, os jantares. Feitas as contas e os somatórios, não
tinham ido ver um único filme escolhido por si, não
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gostara de nenhum dos restaurantes onde a levara, não
apreciara especialmente a noite de fados. Ele quisera
falar de livros mas ela nunca lera Lobo Antunes nem Jorge Amado que ele idolatrava e ele não suportava Paulo
Coelho que ainda era o único autor que, lá de vez em
quando, Dona Cândida conseguia ler.
A estas desarmonias foi juntando outras que
buscou no fundo da memória recente: o anel que ele
usava no dedo mindinho, os sapatos demasiado bicudos
para o seu gosto, o aftershave de perfume adocicado.
O perfil sombrio do companheiro sentado a
seu lado foi-se avolumando na sua imaginação de uma
tal maneira que Dona Cândida deu consigo a pensar
que metera um estranho em casa, que estava a correr
um risco terrível, que podia ser assassinada, quem diabo
seria o homem, Meu Deus, o que é que eu fiz? e Meu
Deus, o que é que eu faço agora? será que ele já percebeu, será que ele me vai propor alguma indecência, se o
apanho a olhar-me com segundas intenções dou-lhe
com o candeeiro em cheio nas ventas, e por aí fora. Deixou de prestar atenção ao documentário e ficou sem
saber o que fazia a elefante fêmea depois da cópula.
Mas também, em boa verdade, não era coisa que lhe
interessasse.
De modo que – seria perto da meia-noite –
quando Abel, talvez embalado pelos rituais de acasalamento dos elefantes, lhe perguntou se ela não estava a
pensar em refazer a sua vida, Dona Cândida respondeulhe peremptoriamente que a sua vida estava refeita. O
que ela não tinha era intenção de voltar a desfazê-la.
Como ele parecesse não ter percebido, ela acrescentou
mais dois ou três esclarecimentos, foi dizendo que sim
senhora, que ele até era simpático, mas nunca na vida, e
estava bem assim e já era tarde, e os vizinhos iam falar,
e mais isto e mais aquilo e foi-se levantando e andando
para a porta.
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Cinco minutos depois, Abel, ao volante
do seu Renault 21 Nevada cinzento-escuro, fazia
um esforço para perceber o que lhe tinha acontecido mas sem obter grandes resultados.
No 4º andar em Campo de Ourique,
Dona Cândida finalmente descalçou-se, tirou a
lingerie que a atabafava, vestiu um robe e
deitou-se no sofá pondo os pezinhos gordos
sobre uma almofada para melhorar a circulação.
Sintonizou um canal de filmes e recostou-se,
a preguiçar e a bebericar golinhos de licor
de figo.
À cautela, deixou de ir apanhar sol
para os Jerónimos e passou a frequentar o
Parque das Nações.
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O Ladrão de Crianças
Ana Queiroz
fotografia Micael Póvoa
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Estou arrependido. Não tenho perdão possível, nem quero
ter. Se Deus tivesse misericórdia de mim e me dissesse, Filho és comigo, handeicáiasteias, podes estar ao meu lado para todo o sempre,
Matava, roubava e destruía nesse preciso momento e terminava a tarefa com um belo e hábil suicídio, daqueles bem feios, de meter medo.
Depois de cometer um tríplice rechonchudo de pecados, duvido que
esse Deus me quisesse perdoar; até porque me parece provável que se
transformasse num animal chifrudo logo no primeiro embate com a
minha pessoa, ou pelo menos, na ideia que tenho de Chifrudo, obra
da desgraça: um homem-animal, ESPÉCIE IRREAL, com cornos bem retorcidos e olhos gelados. Por isso, e para evitar qualquer tipo de perdão, estou determinado a cometer todos os pecados possíveis, um por
um, até chegar onde quero. É infinitamente ou muito (íssimo) provável que ele seja uma criatura incoerente, capaz de abolir a questão da
transgressão irreparável por uma única grande falta, para passar a
considerar números; e então parece-me mais sensato precaver-me e
avançar de peito feito e olhos semicerrados adelante para o Inferno.
O único problema é que estou numa cela, precisamente por causa do
“Não roubarás”. E não estou com esperança de sair daqui tão cedo,
Muito pelo contrário, posso vir a apodrecer neste preciso quadradinho. Ou talvez não, talvez vos esteja a esconder informação, ou simplesmente a armar-me em Drama Queen, como ouvi alguém dizer da
cela ao lado. Mas isto é como tudo, meus amigos; Encontramos sempre uma luz ao fundo do túnel… Passo a contar-vos um pequeno segredo para que a nossa intimidade cresça …Ouço vozes!, E as vozes
que ouço são de génio e neste preciso momento estão a congeminar
uma fuga para a minha gloriosa pessoa. Gostava que vocês pudessem
ouvir o que eu ouço, mas não partilho estes murmúrios com ninguém
e também não me parece que estes tipos queiram falar convosco. É
preciso sujar as mãos para que eles nos notem, é preciso voltar a sujálas com cuidado logo a seguir, e só depois é que temos a possibilidade
de um ear contact esquivo, fugaz, fugidio ou efémero.
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A este ponto digo-vos, sinceramente, Não me interessa que
vos pareça louco; o que me interessa é que estes tipos me vão ajudar
a sair daqui e que, de resto, tenho melhores amigos que vocês! Ainda
não vos disse precisamente o que me trouxe aqui e faz-me espécie
que a pergunta não venha da vossa parte e que me obriguem a cogitar sobre o assunto quando não fazia intenções de pensar no que
quer que fosse. A vossa imposição é uma tremenda falta de cortesia,
e por isso acho que não merecem saber nada a meu respeito. Aliás, só
continuo a escrever porque estou à espera que os meus amigos concretizem a tão esperada fuga e não tenho o que fazer. Já parti a última cadeira que me puseram aqui; agora resta-me falar-vos, e por mais
desinteressante que a minha tarefa seja, é o que tenho. Mas se querem mesmo saber… O que andam a dizer a meu respeito é que roubava crianças! A esta altura não sei se é bem verdade, mas eles dizem
que sim, e por algum motivo acredito piamente no maldito mexerico.
Não sei o que me poderia levar a fazer tal coisa, mas certo, Roubava
crianças! Estou por tudo… pronto a carregar a culpa do mundo de
boca fechada e cabeça baixa. Nem tenho intenções de reclamar porque na verdade roubava mesmo crianças, e uma vez cheguei a dar
uma tareia aos pais das pobres criaturas. Mas o que podia fazer? Pagavam-me bem e quem as comprava precisava de companhia. Acabava por trocar a infelicidade de um lugar para outro. Mas vamos fingir
que mudamos de conversa… Quando tinha 14 anos fui a uma profetiza com a minha mãe. Meti-me entre a multidão, mais para trás, com
medo que ela me olhasse nos olhos. E como não podia deixar de ser, a
macaca velha encarou-me logo com aquele olhar dos infernos, e disseme entre risos, Handeicáiasteias, vão-te conhecer, vais ser conhecido,
filhinho, Deus diz. Handeicáiasteias, Basta ser quem és; vais andar de
boca em boca e todos conhecerão o teu nome; O teu nome será entre
todos Handeicáiasteias. E agora toda a gente me conhece e toda a
gente diz que sou o Ladrão de Crianças. O que de facto é verdade,
claro está. Se eu soubesse o que é a amargura do arrependimento,
aquele sentimento que ouvi descrito vezes sem conta, podia dizer que
estou de facto arrependido. É claro que o digo na mesma à espera que
me chegue a febre da consciência, mas às vezes acho que me devia
deixar ao silêncio.
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Tenho que me organizar de uma vez por todas. Vou começar por fazer uma lista dos pecados que já cometi, de preferência por
ordem alfabética para me organizar com a maior perfeição. É complicado transgredir nesta cela, não só pela falta de espaço e condições
logísticas, mas também pela inoportuna ausência de pessoas. Só vejo
uma mão peluda a passar-me um tabuleiro de comida pela portinha
do cão, e às vezes nem se digna a aparecer. Deve ficar a jogar às cartas
ou a outro jogo qualquer, que só tem que ser básico pelo aspecto da
coisa. Mas vamos recuar... Ia-me esquecendo da lista bem ordenadinha dos pecados que já cometi. Mas que raio! Não tenho a cabeça no
lugar... não há papel nem lápis, nem nada que me valha. Sou um cão
abandonado. Quando mais preciso menos tenho, estou por minha
conta. Já devia ter percebido que ninguém me vai ajudar. Sou um
verme, um pobre verme, e nada tenho para me vangloriar. Nem tive
tempo de deixar um rebento na terra. Com isto dos roubos, acabava
por saltar de mulher para mulher, de cidade para cidade, e não tive
tempo para ter uma família. Voltava todos os meses a Mughler, não só
porque era uma terra fértil, mas porque era lá que estava a mulher
mais doce que alguma vez vi. Fico entusiamado só de me lembrar
dela. Apetece-me descrevê-la com minúcia e fazer das minhas logo a
seguir, mas não quero dividir estas imagens com vocês porque tenho
a certeza que iam começar a fantasiar com ela. Antes que se apaixonem, vou mudar de assunto, mas esquivamente, sem darem por isso.
Ela é só minha, tirem o sentido daí. É demasiado bela para as vossas
mãozinhas. Já chega, parem de olhar para mim e para as minhas recordações, cambada de cães. Desviem o olhar e os dentes da minha
alma. Vamos mudar de assunto de uma vez por todas! Já não vos suporto. O que vos interessa neste preciso momento é a minha grandiosa missão. Pelas minhas contas, falta-me pouco para estar completamente corrupto, mas já vos ponho a par de tudo, se tiver paciência.
Ou então despacho já esta fábula sem paciência nenhuma. Já fiz falso
testemunho de mais de mil pessoas, se a memória não me falha, e o
adultério? Nem se fala... A bela e doce Clara de Mughler devia ser
casada há mais de sete anos! Ciumento como sou, admirava-me a calma pesadona que me percorria o corpo quando a deixava perto de
casa nos braços de outro. Mas a verdade é que nunca tinha a certeza
se ia voltar à cidade e, de resto, agradava-me a correria incerta de ci365
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dade em cidade, de mulher em mulher. Devia ser trágico para ela, ou
pelo menos conforta-me acreditar nisso. Nem sequer me lembro dela,
só vos estou a falar do assunto porque o tempo passa mais depressa
quando há conversa. Pelas minhas contas, entre estes pecados e outros que ainda não vos revelei, faltam-me dois. Tenho que arranjar
maneira de fazer uma escultura, de preferência daquelas Shivas Indianas cheias de braços e outros apetrechos que façam da figura mais
que uma pessoa, ou algo de aberrante, obviamente grave. Confesso
que é o que julgo, que quantos mais braços, maior o pecado e se isto
não fizer sentido para vocês como acho que não faz, azar! Não me
façam perguntas nem questionem as minhas ideias. Não estou certo
de tudo o que digo, nem de metade; só tenho a certeza de que não é
sobre o real e o que faz sentido que querem ouvir. Ora bem, vamos
avançar, o outro pecado que me falta cometer é o assassinato. Por
azar, não matei nenhum dos miúdos que roubei. E bem me apetecia
fazê-lo, especialmente quando abriam as goelas e perguntavam pela
mamã e pelo papá. E surpreendentemente, não estou a ver ninguém
que possa matar. Podia fazer estragos na mão peluda do guarda, mas
era uma perda de tempo e sinceramente não me apetece matar ninguém. Tenho que ter gosto no que faço e isso do assassinato não me
atrai nem um bocado; O que é um problema grave, bem difícil de
encarar para quem quer transgredir de todas as maneiras e feitios.
Estava a pensar que talvez fosse melhor compensar noutros pecadinhos que ainda não tenha cometido. Se calhar vou pedir carne de camelo ou coruja, ou de outro animal qualquer que a bíblia proíba.
Afinal de contas sou o prisioneiro mais ilustre que alguma vez passou
por aqui. São capazes de me negar o pedido, mas logo que chegue a
hora da refeição vou fazer um escabeche e aí tenho a certeza que
voltam atrás. Enquanto isso, tenho mesmo que arranjar uma solução
pragmática para compensar estes problemas com o assassinato, mas
estou a ver que não há nada a fazer... Mas sim, é isso mesmo... que
golpe de génio! Sou um homem afortunado pela inteligência. Em vez
de estar à espera dos meus amigos para sair daqui e saltar para a marreca de um fracote qualquer de espada em punho e olhos cegos, dou
cabo de mim mesmo e acabo com esta historieta de uma vez por todas. É uma ideia simples e eficaz e não me venham dizer que dá pelo
nome de suic... porque sempre fiz o que me deu na telha e posso dar365
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lhe o nome que bem entender. Aposto que não estavam à espera
desta, nem eu estava! E confesso-vos já que estou radiante com a
ideia. Vou dar cabo do meu pobre corpo... Claro está, Se tivesse espada dava cabo do meu corpo e disto tudo. Mas como é que me pude
esquecer que não tenho nada? Nem espada, nem ajuda! Nem a voz
dos meus amigos. Desapareceram todos! Deixaram-me sozinho e agora tenho que me desenvencilhar destes entraves absurdos. Neste momento parece-me mais sensato esperar; tenho longos anos de espera
pela frente, por isso deve surgir-me alguma coisa, um momento qualquer que me proporcione esta transgressão. Talvez volte a ouvir falar
dos meus amigos. Tenho a certeza que vão voltar e ajudar-me nesta
causa. Se desapareceram antes de me ajudar na fuga é porque nunca
fizeram intenções disso, mas desta vez vou convencê-los, já que a causa é mais nobre. Mas o que é que um senhor como eu faz nestas alturas? Vou tentar pensar em alguma coisa óbvia e rápida dado o meu
historial de ladrão. Bom, vamos pelo caminho mais fácil ou o único
possível dada a ausência de elementos cortantes e perigosos neste
espaço despidinho... Não vos interessa saber qual é. Enquanto os meus
amigos não vêm estou tentado a inventar uma história; só tenho que
exercitar a mente enquanto o faço, para que possa decorar tudo de
trás para a frente, de frente para trás, já que não tenho papel nem
caneta.
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Perdidos & Roubados
Hélio Teixeira
fotografia Philip Flesh
Ela chamava-se Maria. Maria Luísa Santos da Costa. Era o
que dizia o seu B.I.
Ameacei-a de morte e ela deu-me a carteira para a mão.
A arma era falsa, mas ninguém notava.
Levei a carteira para casa. Tirei o dinheiro e meti-o ao bolso de trás das calças.
Os documentos, rasguei-os e deitei-os ao lixo. Fiquei só
com o B.I. e com um papel onde tinha uma morada. A dela, esperava eu.
Maria Luísa era bonita. Eu achei que sim. Pendurei o B.I.
no quadro de cortiça junto aos outros.
Masturbei-me a pensar nela. Pensei que a tinha deitado
ao chão e lhe tinha tirado a roupa e estava a fodê-la. Soube-me
bem.
Limpei as mãos à camisa e olhei de novo a morada. Rasguei-a e deitei os papelinhos ao lixo. Não valia a pena meter-me em
confusões por causa de uma foda.
A polícia apareceu nessa noite. Bateram à porta e disseram para abrir, porque tinham um mandato. Eu saltei pela janela.
Eles iam arrombar a porta.
Ainda me lembrava da morada da Maria Luísa. Se ela me
tinha chibado, ia pagar caro.
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Toquei à campainha e do outro lado respondeu uma voz
masculina.
– A Maria Luísa está? – Perguntei.
– Quem quer saber?
– Mau… Está ou não?
– Já disse: quem quer saber?
– Eu é que faço as perguntas, velho!
Não respondeu e eu parti o vidro da porta e abri-a por
dentro. Subi as escadas até ao primeiro andar e dirigi-me para o
apartamento D.
Bati sem parar até alguém abrir a porta. Estava com a corrente metida. Não percebi se era homem ou mulher. Estava escuro.
-– Que quer você?
– A Maria Luísa!
O velho ligou a luz.
– Filho?
- Pai…?
Tinham passado 12 anos. Ele fugiu para Espanha com uma
puta. Eu tinha 16 anos e não me importei mais com ele. Abandonou
a minha mãe doente. Morreu passados uns meses de cancro.
– É uma puta também?
– Quem? – Disse ele confuso.
– A Maria Luísa?
-– Não conheço ninguém com esse nome. Como é que me
encontraste, filho?
– Abre o raio da porta!
Ele abriu. Procurei no resto da casa. Não havia ninguém.
Nem sinais de presença de uma mulher. Será que me enganei?
Achava que não. Tenho uma boa memória.
Aquela era a morada. Hesitei. Errar é humano, pensei. Era
isso, de certeza que me tinha enganado, e, que puta de coincidência, encontrei o meu velho.
Ele queria falar comigo, mas eu estava para poucas conversas com ele. Esperei que ele me perguntasse por ela:
– E a tua mãe? Como está?
Dei-lhe um soco e um pontapé nos tomates.
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– Morreu. Ela estava doente, não te lembras?
Ele não falava. Só gemia de dor.
– Eu também estou doente – ele disse – por isso é que
voltei, para vos encontrar e pedir desculpa. Tenho cancro na próstata.
– Azar.
Ao descer as escadas vi um carro da polícia a parar em
frente ao prédio. E a Maria Luísa a sair de lá de dentro.
Escondi-me no vão escuro. A polícia deixou-a e foi embora. Ela tocou a uma campainha. Alguém lhe deve ter respondido,
porque ela entrou.
Ao subir as escadas olhou para trás, para os estilhaços de
vidro no chão, e foi aí que eu a apanhei facilmente.
Tapei-lhe a boca e enfiei-lhe a mão dentro das cuecas. Ela
resistia e eu começava a ficar cansado. Disse-lhe que a matava se ela
não deixasse.
Foi mais triste assim, com ela a chorar. Não me consegui
vir.
Larguei-a e ela ficou ali deitada, a chorar cada vez mais.
– Foste tu que me chibaste à moina, cadela?
Acho que ela respondeu não. Não percebi bem, no meio
daquela choradeira e fungadela. De qualquer modo devia estar a
mentir.
– Como é que a polícia me descobriu? Diz-me senão matote já aqui.
Ela disse que não sabia. Apertei-lhe o pescoço até ela querer falar.
– Deixaste cair a carteira ao fugir…
Procurei imediatamente a minha carteira nos bolsos do
casaco de cabedal. Tinha razão, a puta! Não tinha a carteira comigo!
– Filha da puta! Estúpido!
Mandei um murro na parede e fiquei a olhar para ela,
com sangue a escorrer-me da mão.
Ia descendo as escadas e lembrei-me. Olhei para trás:
– O que vinhas fazer aqui afinal? Moras aqui?
Ela só chorava. Nunca vi ninguém a soluçar tanto.
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– Responde ou vou aí apertar-te o pescoço outra vez.
– Não! – Estava cheia de medo – Não me faças mal.
– Estou à espera.
– Vim ver o meu pai. O meu verdadeiro pai. Ele está a
morrer de cancro. Não nos faças mal por favor…
Ela sentou-se na cadeira e disse
Tive um sonho, esta noite. Um sonho só com homens. O
primeiro era o meu pai, que estava a discutir com a minha mãe.
Parecia outra vez a minha infância. A minha mãe pedia ao meu pai
para não sair de casa e para ficar e ele ameaçava que se ia embora.
Ela agarrava-o e ele despegava-se. Ela implorava e ele negava-se.
Depois eu avançava para ele e dizia-lhe para se decidir, ali e já. Ou
ia, e nunca mais voltava, ou ficava e nunca mais saía. Ele olhava
para mim com medo e eu controlava-o através desse medo. Ficou
sem saber o que fazer, durante muito tempo, e depois fui eu que o
obriguei a sair. Expulsei-o de casa. O que a minha mãe nunca teve
coragem de fazer. Ele foi. Não o deixei olhar para trás.
A seguir, sem se mexer na cadeira, imobilizada pelas palavras, ela continuou
Depois era o meu marido, ex-marido, para dizer a verdade. Ele não sabia escolher, havia duas mulheres, eu e a outra. Por
um lado ele queria-me a mim, porque era mulher dele e ele tinha
medo das consequências, de perder os filhos, de sair de casa. Por
outro lado, queria a outra, porque estava apaixonado embora
desconfiasse daquela paixão. Passava as noites em claro, a tentar
decidir. Isto na vida, na minha vida. No meu sonho desta noite, era
eu que decidia por ele, era eu que mandava. Pu-lo fora, violentamente. Roupa pela janela, malas a voar, porta escancarada. E tudo
isto sem um grito, uma lágrima, um gemido, um pedido. Tudo em
silêncio, a frio. Exactamente o contrário do que aconteceu há anos,
quando ele me quis deixar. Quando chorei, gemi, usei os filhos contra ele a meu favor. Ficámos juntos mais uns anos, até ao divórcio.
E tantas vezes desejei que ele se tivesse ido embora. Tinha sido
melhor. Desta vez, no sonho, senti-me bem, como não me sentia há
anos, desde a morte do meu pai. Eu detestava o meu pai.
Agora ela mexeu uma mão, acariciou a face, puxou uns
fios de cabelo. Suspirou de leve.
E no sonho, a seguir, era o meu filho. O meu único rapaz.
O meu preferido, nunca gostei de ter raparigas. O mundo não gosta de raparigas. No sonho, o meu filho regressava a casa. Era como
se nunca tivesse saído. No dia em que ele morreu, lembro-me de
que andava inquieta desde manhã, ia à janela, as coisas caíam-me
das mãos. Instinto de mãe. Quando eram onze da noite e ele ainda
não tinha regressado soube logo que qualquer coisa tinha acontecido. Quando o telefone tocou, antes de me falarem no desastre e
no carro desfeito eu já sabia a verdade. Sabia que ele tinha saído de
manhã com os amigos e que nunca mais voltaria. Desde esse dia
tenho estado como morta, você sabe bem, como morta. Nunca perdoei ao meu marido, quis o divórcio, mas ele não teve a culpa, ninguém teve culpa. O horror não tem culpados.
Ela sorriu, pela primeira vez em vinte anos
Você conhece estas histórias, você sabe bem como elas
nunca tinham fim. Até esta noite. Esta noite tive um sonho e sentime bem ao acordar. Expulsei quem devia, fiquei com o meu filho.
Vi-o como ele seria hoje, com 38 anos, e não como era quando morreu, um rapaz. Vi um homem, bonito. Como ele seria. Acha que
preciso de cá voltar? Acho que nunca mais cá volto.
Ela levantou-se da cadeira, devagarinho. E saiu do consultório.
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es
Miguel Marqu
O FILHO E A GUITARRA
fotografia Micael Póvoa
s
A mãe diz que o tio é maluco da cabeça só porque se mete a
fazer caretas quando fica a tomar conta de mim. A mãe também
diz que o tio é maluco doutros sítios, que não é só da cabeça, mas
quando ele começa a fazer caretas ela cala-se e não diz nada e
fica a olhar para ele como quando olha para mim se calho portarme mal ou deixo cair alguma coisa no chão. O tio é assim muito alto e gorducho e tem uma cara esquisita, muito vermelha,
muito redonda, muito gorducha, e quando se põe a fazer caretas
fica igualzinho a um sapo cheio de ar e começa a fazer barulhos
com a boca como se estivesse a lavar os dentes antes de ir para
a cama. Eu nunca me porto mal nem deixo cair muitas coisas ao
chão quando estou ao pé do tio porque ele porta-se sempre pior
do que eu, pelo menos é o que a mãe diz quando ele dorme cá em
casa. Mas a mãe também diz que estamos bem um para o outro e
que se calhar o melhor era contratá-lo para ele fazer por mim enquanto ela está a trabalhar. A mãe trabalha muito e o pai farta-se
de mandar vir com ela porque diz que um dia ela ainda se há-de
matar por causa da porcaria do trabalho. Não sei se o trabalho da
mãe é uma porcaria, ela nunca me levou com ela ao sítio onde
trabalha, mas às vezes vem de lá com um cheiro a azedo e quando
chega a casa senta-se na cozinha e queixa-se que está cansada e
esquece-se de me aquecer o leite e de me ajudar com os cadernos.
Às vezes vem com a cara toda a suar e limpa-a depressa com o
lenço assim que entro na cozinha e me chego perto da mesa onde
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corrigimos os cadernos. Nessas alturas diz-me logo para me ir embora e que é só um bocadinho enquanto se despacha a fazer a comida. A mãe também faz caretas quando se senta na cozinha, mas
não são tão boas como as do tio. As caretas dela não fazem rir e
tenho impressão que a fazem suar ainda mais, porque fica com as
bochechas todas molhadas e esconde os olhos para o suor não entrar lá para dentro porque senão depois faz-lhe comichão e ardelhe na vista como o meu champô quando tomo banho. Acho que
o pai não gosta lá muito do tio. O pai chama maluquinho ao tio
quando ele não está aqui ao pé da gente, e às sextas-feiras ouço
o pai e a mãe zangarem-se um com o outro de dentro do quarto
ou na sala de jantar por causa do tio vir cá passar todos os fins-desemana, todos os Natais e as férias grandes. A mãe diz que o tio
não tem mais ninguém, que não tem para onde ir, que não tem
culpa nenhuma, que foi Deus quem quis que ele fosse assim, que
é responsabilidade dela, mais ou menos como eu sou responsabilidade dele quando ele fica a tomar conta de mim e brincamos os
dois sozinhos a fazer caretas um ao outro, só que a mãe não faz
caretas de propósito para ele, só quando o tio se fecha no quarto
que era da avó e agora passou a ser o quarto dele aos fins-de-semana e se põe a gritar, a portar-se mal e a deixar cair mais coisas
no chão do que eu deixei cair para aí na minha vida inteira. Nesses
dias, o pai telefona para a ambulância e a ambulância vem buscar
o tio e já houve vezes em que vieram também os bombeiros com
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um machado para deitarem abaixo a porta do quarto que era da
avó e agora é o quarto do tio aos fins-de-semana. Houve uma noite em que os bombeiros e a ambulância vieram buscá-lo porque
ele não abria a porta a ninguém e, quando entraram no quarto,
o tio estava despido e tinha feito chichi e cocó no chão e em cima
da cama e o pai mandou-me ir para o quarto e ralhou-me para
eu não sair de lá nem por nada deste mundo, senão levava uma
nalgada que ia ver, e eu só tive tempo de perguntar à mãe por
que é que o tio não tinha ido à casa de banho e se não havia fraldas daquelas de usar e deitar fora que me compravam quando eu
era pequeno. A mãe fez uma careta estranha e ficou com a cara
a suar assim muito muito, estava com as bochechas cheiinhas de
água e assoou-se com força a um lenço, mais parecia que estava
com gripe. Não sei se tinha saído do trabalho há pouco tempo,
mas também me mandou embora e tapou os olhos com o lenço e
depois tapou a boca também com o lenço, mas isso acho que foi
para não me pegar a gripe. O tio estava nu e pôs-se a mexer na
pilinha dele, que é mais pequena e fininha que a pilinha do pai, e
a mãe pediu ao tio para ele parar de mexer na pilinha mas ele fez
de conta que não a ouviu e atirou o cocó que estava no chão para
cima do bombeiro que usava capacete e o bombeiro chamou-lhe
nomes e a seguir vieram outros bombeiros para o ajudarem a limpar o cocó e puseram-se a conversar todos juntos com o tio. O
tio estava a falar coisas que não se percebia lá muito bem o que
eram e tinha pêlos na barriga e nas pernas e, às tantas, os pêlos
ficaram cheios de cocó e os bombeiros perguntaram se ele não
tinha vergonha de fazer aquelas figuras, de ser assim tão porco,
tão badalhoco, como a mãe também diz de mim quando entorno
a sopa para fora do prato, e aí o tio pôs-se de gatas e encostouse a um cantinho escuro e fingiu que era um cão quando está
triste a ladrar. Depois só vi os homens da ambulância prenderem
o tio com um fato de astronauta e vi-o imitar as caretas que faz
quando brinca comigo na cozinha e os homens tinham as caras
como os maus que aparecem nos desenhos animados e agarraram
nele pelas mangas do fato de astronauta e vi que as mangas não
tinham braços lá dentro, e os homens enfiaram-no na ambulância
e o tio parecia igualzinho a um sapo com a boca cheia até ao fim
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da água de lavar os dentes. Eu fui para o meu quarto e, da janela
do quarto, vi o tio lá em baixo a ser levado pelos homens com cara
de mau e a mãe despediu-se do tio e disse-lhe qualquer coisa que
não se ouviu porque o tio estava a berrar muito alto, tão alto que
os bombeiros e os senhores da ambulância mandaram-no calar e
o pai mandou-me ir para dentro, disse para eu sair da janela do
quarto, senão ia ver como elas me mordiam. Quando a ambulância foi embora a mãe entrou em casa ainda mais cansada do que
quando vem do trabalho e sentou-se na cozinha, na mesa onde
corrigimos os cadernos, e explicou-me que o tio não era mau, que
a culpa não era dele, que ele era boa pessoa e gostava muito de
mim, mas tinha uma coisa dentro dele que não o deixava ser feliz
sempre, era assim como um anjo que ficou sem as asas e às vezes
precisava de cantar para espantar os anjos maus que andam de
roda dele. O pai veio logo por trás e disse que, se o tio fosse um
anjo, só se fosse um anjo maluco, e que nem os anjinhos no céu
estavam para aturar as cantorias de um maluco daqueles. O tio
também canta quando faz caretas, e toca numa guitarra velha
que a mãe tem no guarda-fatos, debaixo dos meus pijamas. As
músicas que o tio canta falam de histórias que eu não percebo,
o pai até diz que não são para a minha idade, mas há uma que
ele canta que acho que é sobre estar triste e sozinho, e a mãe
também sabe essa música, porque, agora que o pai vai embora
e o tio ficou no sítio onde curam anjos malucos, ela toca sempre
essa música na hora de eu ir dormir, e quando a música acaba faz
uma careta quase igual às caretas do tio e fica assim a suar muito
muito, e o suor sai-lhe dos olhos e ela coça os olhos com os dedos
e esfrega-os com o lenço porque sente impressão na vista como se
fosse a espuma que faz chorar os olhos quando tenho de tomar
banho.
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E então ele vociferou:
— Pois eu estou-me positivamente cagando para esta família.
E saiu.
Não foi só a palavra que nos deixou em
choque, os garfos no ar, a caminho das bocas, estáticos como se alguém tivesse, subitamente, carregado na tecla Pause, congelando assim toda a acção.
Não foi só a palavra, jamais proferida por aquela
boca, de onde nunca saía uma incorrecção. Foi o
tom definitivo, foi o adjectivo pomposo colocado
atrás do verbo cagar, o modo teatral com que abandonou a sala, o nojo com que ainda mirou as loiças
Companhia das Índias dispostas na cristaleira Luís
XV.
De então para cá, o pai nunca mais foi o
mesmo.
Lembro-me de ser um senhor. Quando me
ia buscar ao colégio, recostado no banco de trás do
carro conduzido pelo fiel Augusto, os meus colegas
e os professores paravam para nos ver passar. O
meu pai era um homem alto, enorme, de chapéu de
feltro e sobretudo. Era capaz de jurar que nunca
largava o sobretudo cinza, nem mesmo no Verão, e
aquela imponência dele dava-me uma boa sombra,
um conforto.
Não falava muito, o pai. Mas sentir aquela
mão na minha mão bastava-me, então. Sentia-me o
rapaz mais importante do mundo. A minha mão
perdida dentro do conforto dos seus dedos.
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Ninguém nunca soube o que provocou a mudança. A mãe
irritava-o, claro, com as suas manias da limpeza e da ordem. De
resto, conseguia dar cabo dos nervos de todos, empregadas incluídas, que nunca limpavam suficientemente bem, que nunca sabiam
o sítio das coisas, que nunca mereciam – na sua opinião – o dinheiro
que lhes pagávamos. Talvez tenha sido isso. Agora que penso no
assunto, uns dias antes da frase com que mudou a nossa vida, a mãe
tinha-me ligado num pranto:
— O seu pai… - começou, soluçando. – O seu pai pegou
em tudo o que estava na estante e jogou ao chão. Está louco. Saiu
daqui a dizer que ia escolher o bordel mais imundo da cidade e que
só voltava quando se sentisse suficientemente sujo e… e… vivo.
Fui até lá. Com efeito, tive dificuldade em reconhecer a
sala onde cresci. Onde antes havia ordem (e que ordem!), agora
reinava o caos. Nem um único livro ou objecto de decoração estava
no sítio. Havia cacos por toda a parte e a mãe ameaçava ter uma
síncope.
— Já viu, António? Já viu isto? O seu pai… o seu pai.
Horas mais tarde – já as minhas irmãs estavam lá em casa,
tentando consolar a mãe – chegou ele. Desgrenhado, com marcas
de baton nos colarinhos e um cheiro a perfume reles. Olhou para
mim, riu-se alarvemente e disse:
- António, há um sítio que tem de conhecer. Se quer sentir-se vivo.
Agora, se me dão licença, vou dormir. Dói-me num sítio que não
posso revelar. – E saiu com uma gargalhada gutural.
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Dois dias depois, mais calmo, disse-me:
— António, a sua mãe desespera-me. Enlouquece-me. Devia divorciar-se da Teresa, essa puta neurótica que claramente lhe
inferniza a vida. Se eu fosse mais novo… Agora já não faz sentido
separar-me da sua mãe. Um homem precisa de companhia, para
quando for velho. Mas a verdade, filho [ele nunca me tinha tratado
por filho], é que não suporto mais vê-la levantar-se 15 vezes por
noite para ajeitar o saleiro ou a moldura, 2 milímetros para a direita ou para a esquerda, porque para ela nunca estão na posição
absolutamente correcta. É patético, filho [a segunda vez, na mesma
frase]. É patético e triste.
De modo que foi este episódio o que antecedeu o outro,
derradeiro, em que o pai disse a frase lapidar:
— Pois eu estou-me positivamente cagando para esta família.
Depois desse dia, nunca mais foi o mesmo homem. Por
vezes, duvidava mesmo que fosse, ainda, um homem. Começou
logo no dia seguinte, a sua incursão pela loucura. Acordou, despiuse para tomar banho mas, em vez de seguir para o duche, dirigiu-se
para a cozinha. As empregadas não queriam acreditar. O senhor
engenheiro estava em pelota junto ao lava-loiças. E, como se não
bastasse, ainda se roçou pela mais nova, revelando de imediato
uma espantosa erecção.
— Qualquer dia ensino-te umas coisas.
A rapariga ruboresceu e foi incapaz de proferir uma palavra. A imagem daquele membro hirto encostado a si aterrorizava-a.
Ninguém foi capaz de contar nada à mãe. Fui eu quem ouviu o relato atabalhoado das mulheres. E tem sido essa a minha vida. Ouvir
queixas sobre o meu pai. O senhor engenheiro. O distinto senhor
de sobretudo.
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Entre as várias que tem feito nos últimos meses – sim, que
não tarda e vai fazer um ano que nos brindou com o statement com
que nos mudou a existência – entre as várias pérolas, dizia, destacase a ideia peregrina de mijar para uma garrafa de litro e meio, com
que anda todo o dia debaixo do braço.
— Temos de poupar, António. A crise está bera. Temos de
começar pelo básico, pela água. Ora, se eu puxo o autoclismo de
cada vez que mijo [outra palavra impossível para o pai, no tempo
em que não tinha perdido o juízo] – e eu mijo muito, filho[de novo]
– a conta da água vai ser astronómica! Além dos problemas ambientais, claro. Assim, ando com esta garrafa e só despejo quando
estiver cheia. Hã? De génio!
Isso e o dia em que me cruzei com uma puta no corredor são as
cenas que me ocorrem assim de repente, agora que falamos nisso.
Sim, uma puta. A mãe transida na sala, a tremer, e a puta a sair do
quarto deles, ainda a ajeitar a roupa, e atirando um beijinho provocador para a sala.
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— Isto é demais para mim, António! O seu pai foi longe
demais! Ele ou eu, alguém vai ter de sair desta casa!
Logo de seguida, o pai apareceu na sala, e sou capaz de
jurar que veio de braguilha aberta de propósito para a chocar.
— Então, filha? – perguntou com um suspiro quando desabou no sofá – O que é o almoço? Estou cá com um apetite! De
touro!
E por isso, doutor, não sei. Não sei que lhe diga. A mãe
emagrece a olhos vistos, tenho para mim que qualquer dia desaparece entre uma puta e uma garrafa de litro e meio de mijo. As minhas irmãs nunca mais foram lá a casa, desde que o pai as recebeu
de tanga de tigre e as quis convencer a urinar para dentro de garrafas de plástico. A empregada mais nova fugiu e nunca mais ninguém soube do seu paradeiro desde que o pai lhe apareceu todo
nu na cama, dizendo ser o professor que dar tautau à menina se ela
não aprendesse a lição. E até a vizinhança cortou relações com a
família desde que descobriram que era ele, o respeitável senhor
engenheiro, quem andava a pintar palavras de ordem nos carros
estacionados na garagem do prédio: “Forniquem já antes que a
vida vos fornique”. De modo que não sei, doutor. Não sei o que
faça. Sinto-me perdido. E o pior é que, às vezes, acho-lhe graça. Às
vezes acho que o entendo. Toda a vida foi o senhor engenheiro, o
homem imponente de sobretudo. Agora fartou-se. Abriu o sobretudo, se me faço entender. E eu há alturas em que tenho vontade
de fazer o mesmo.
*Este conto é parte de um romance que a jornalista Sónia
Morais Santos há-de escrever um dia e que, pelo andar (lento) da
carruagem, será certamente uma obra póstuma.
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Paulo Moreiras
A Suprema Conquista
Fotografia Anastasia Tikhonova
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Sempre me diverti a olhar para os miúdos a correrem atrás dos pombos, ali no Rossio. É como se corressem
atrás de um sonho e, sem o saberem, vão ganhando confiança nos seus primeiros passos.
Também eu vinha todos os dias correr atrás dos
meus pombos, melhor dizendo, atrás das minhas pombinhas.
Correr é uma força de expressão, que por elas preferia esperar sentado, que a pouco e pouco as ditas iam poisando.
Deviam ser dez horas, como em todas aquelas manhãs, e tinha acabado de chegar do ginásio. Tal como uma
boa hora e meia de exercício, também eu não dispensava um
lauto e nutritivo pequeno-almoço ali na Pastelaria Suíça. E
eles já sabiam qual era a minha dieta predilecta: uma salada
de espargos e alcaparras, um iogurte magro, um sumo de cereais e meia meloa, rematados com um belo café com espuma
e um polvilho de canela; afrodisíaco o bastante para me deixar bem disposto o resto do dia.
Do ritual matinal faziam também parte o jornal e a
consulta aos classificados. Naqueles tempos gostava de saber
o que andavam a manobrar os meus concorrentes, se já tinham congeminado outras estratégias ou mudado de paleio,
que é como quem diz, arranjado novo slogan, que naquele
negócio o marketing era ferramenta indispensável.
Entre o iogurte e a meloa, apercebi-me de que tudo
estava calmo, igual aos outros dias. Não havia novo galo na
capoeira e os que por lá andavam mantinham a mesma cantiga. Lembro-me de que fiquei mais descansado.
Pouco depois, chegava o Pirrocho, o engraxate, que
era outra das coisas que não podia dispensar todos os dias:
engraxar o meu belo sapatinho Made in Portugal, mas com
design italiano. Elas gostavam.
Entre uma e outra escovadela fomos trocando uns
dedos de prosa. Fazia parte da estratégia.
O Pirrocho era um sujeito engraçado, tipicamente
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lisboeta e malandreco de esquina, alto quanto bastasse, magro da pinga, e com uma mosca debaixo do lábio, que melhor
lhe acentuava a lábia que executava com grande mestria perante as turistas que andavam perdidas pelas ruas da Baixa. O
Pirrocho era um marialva dos quatro costados. Do pouco que
sabia sobre ele, já fora taxista, depois passara a barbeiro e
agora andava a plastificar documentos e a engraxar sapatos.
Uma coisa é certa: estava muito habituado a ouvir e, principalmente, a passar depois a mensagem, que era aquilo que
me interessava, e sem lhe acrescentar mais vírgula. O que ele
não perdoava era o comentário mordaz, mas isso só ajudava
a melhor compreender o cenário. Como lhe dei sempre uma
boa gorjeta, Pirrocho dava-me conta das notícias que corriam
então pelo burgo, principalmente daquelas que interessavam
ao meu negócio.
Segundo ele não havia nada de novo, andava tudo
muito calmo, estranhamente calmo.
— Isto anda numa calmaria de morte, doutor Pascoal, até assusta... — desabafava o Pirrocho, enquanto me retirava os resguardos dos sapatos. Tinha terminado.
— Sabes, Pirrocho, para mim, felizmente, há sempre trabalho, pois o amor é como a morte, toca a todos.
Pirrocho anuiu afirmativamente, de palma aberta,
enquanto lhe depositava os merecidos honorários. Acabou
de arrumar as ferramentas na caixa e despediu-se afectuosamente:
— Até amanhã, camarada!
Foi coisa que nunca entendi, isso do camarada. Talvez resquícios da actividade taxista. O certo é que já era hora
de ir pegar no batente.
Mas aposto que o meu amável leitor está curioso.
Quer que eu lhe conte tudo. Com certeza. Aqui segue o fio da
meada.
Naqueles tempos tinha um negócio muito peculiar:
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fazer certas pessoas felizes, por instantes, por breves instantes, tudo dependia do contrato.
O meu negócio era fazer certas mulheres felizes.
Aparecia nas suas vidas, dava-lhes um certo colorido, e depois
de cumprida a missão ficava disponível para outra cliente.
Tudo sem grandes complicações ou choradinhos. Não é que
fosse muito rentável, mas deixava-me feliz, imensamente feliz. E tudo para mim era lucro, como mais tarde tive ocasião
de constatar.
A esta altura estará o amável leitor a pensar: «Este
tipo está para aqui cheio de alarde, mas não era nada mais do
que um gigolo!» Não se precipite. Nem tudo o que reluz é
ouro, e neste meu negócio nada era aquilo que parecia.
O que conferia particularidade à minha empresa
era o objecto em si, a alma do meu negócio: as mulheres
feias. Sim, é verdade, as mulheres feias. Sempre me senti fascinado pelas feias, por aquelas que ninguém quer, ou a quem
se vaticina uma vida miserável e solitária. É uma atracção desmedida e inaudita que não consigo explicar. Ferve-me na
massa do sangue. Uma transcendência. Talvez numa vida anterior os meus desígnios tenham sido opostos. Não sei. Aquilo
que sei é que sou feliz e isso basta-me.
Recordo que sempre fui assim. Mesmo na minha infância, tive notável inclinação para aquelas minhas tias feias,
como há em todas as famílias, aquelas solteironas e bexigosas, de mal-amado bigode, com grandes óculos e assaz andrajosas, de quem ninguém se aproximava ou sequer convidava.
Apareciam apenas por alturas de um casamento, baptizado
ou funeral. Não sei porquê, mas elas também correspondiam
à minha dedicação, ofertando-me maravilhosas prendas, que
deixavam todos os meus primos roídos de inveja. Mas, acredite amável leitor, nunca fiz isso por interesse, nunca. Sentiame profundamente atraído por elas, pela sua solidão e pelo
amor que tinham dentro de si.
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E foi na escola que me comecei a aperceber do fosso que se criava à volta das raparigas feias. Na sua companhia
ninguém queria andar, a não ser outras miúdas feias, e ninguém com elas queria namorar. Foi então que senti uma espécie de chamamento para esta missão. As minhas namoradas sempre foram feias e todos me achincalhavam, mas nunca
lhes liguei pevide. Tanto eu como elas nos sentíamos imensamente felizes. E assim ganhei confiança em mim, nos meus
atributos, que é logo meio caminho andado para a felicidade.
Comecei a educar-me e a cultivar-me em termos de leitura e
dediquei-me ao estudo da psicologia humana, para melhor
gizar as minhas estratégias.
Ao chegar à faculdade optei por seguir filosofia,
maluqueiras, e aí conheci mais umas quantas garotas feias.
Deixei de ter tempo para estudar, que as solicitações eram em
tão grande número que acabei por desistir do curso. Entretanto, meus pais, que nunca entenderam esta minha natural
predisposição para as mulheres feias, e em virtude dos maus
resultados escolares, fecharam-me a torneira da mesada, deixando-me assim na contingência de encontrar uma outra
fonte de rendimento e sustento. Depois de andar a saltar de
emprego em emprego, onde só encontrei mulheres bonitas,
decidi abrir este negócio. Era uma natural consequência dos
meus propósitos, além de que me garantiria uma estável e
saudável sobrevivência, continuando a ser feliz. Que mais poderia desejar?
Sempre me considerei um homem bonito, sem
grandes vaidades, mas com presença, charmoso, com uma
boa conversa e sólida cultura geral. E, acima de tudo, era um
bom ouvinte, coisa que elas adoravam.
Na minha vida as mulheres bonitas eram um tormento, não só porque não me largavam, mas constantemente me assediavam com atrevidos convites. Contudo, faltavalhes aquele algo mais, aquela centelha que despertava em
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mim a paixão e o amor. É certo que a minha actividade é efémera, mas é como me sinto melhor, proporcionando felicidade ao máximo número de mulheres possível.
«A Ilha do Tesouro», assim se chamava a minha firma, ficava em Lisboa, na Travessa do Fala Só, num primeiro
andar, muito próximo do elevador da Glória. Por vezes, quando estava no escritório e farto de arrumar papeladas, aproveitava para descer aos Restauradores ou ir às Portas de Santo
Antão para beber uma ginjinha. Uma pausa que muitas vezes
resultava num novo conhecimento. Porque este negócio também não era assim tão fácil. Muitas clientes sentiam-se retraídas e inibiam-se de entrar no prédio e subir ao escritório,
com vergonha dos olhares ou comentários. Mas para isso
também tinha solução. De quando em vez ia até à varanda,
fingindo descansar, e numas poucas miradas conseguia aperceber-me se alguma hesitante por ali passarinhava. Topam-se
facilmente. Quando isso acontecia descia a beber uma ginjinha. Para elas era mais fácil abordarem-me na rua, como um
transeunte perdido a perguntar uma qualquer informação.
Já muitos contratos estabeleci assim, em plena rua. A discrição e a confiança são máximas.
Também nunca me preocupei muito em saber se os
vizinhos sabiam aquilo que naqueles tempos fazia. Agora
que lhes intrigava aquela ilha do tesouro, lá isso intrigava.
«Importações e exportações» era o que costumava dizer, e
com esta se calavam, com aquelas caras de saloio desconfiado.
Naquele dia, ao chegar ao escritório encontrei a caixa de correio cheia, como todos os dias. «Mais matéria para
ler e arquivar», pensei, e nisto cheguei a perder manhãs inteiras. Mas valia a pena. Nunca desprezar um contacto. O arquivo é fundamental.
Abri a janela, e ao lado acabava de passar o eléctrico da Glória, com os seus ganidos de ferro velho. Liguei o
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computador e nisto uma grande explosão abalou todo o edifício. Os armários caíram com grande estrondo para o chão
do escritório e eu, que mal me havia sentado, fui projectado
contra a parede juntamente com a cadeira. Os vidros dos quadros da parede estilhaçaram-se. Aquilo parecia o fim do mundo ou o início de uma guerra. No meio da confusão, penso
que bati com a cabeça na parede, o que me provocou grandes dores e tonturas. Ao longe só ouvia gritos e coisas ainda
a cair. Todo o meu escritório estava danificado e o prédio envolto numa grande nuvem de poeira, que entrou de rompante pela janela aberta, sujando ainda mais tudo à minha volta.
Pouco tempo depois, toda aquela agitação parecia
ter amainado. Levantei-me macambúzio e passei a mão pela
nuca. Fiquei com os dedos cheios de sangue.
— Mas que merda afinal foi esta?
Dirigi-me à casa de banho para passar água pela
ferida e tentar perceber a gravidade da contusão. Enquanto
me ia lavando, alguém entrou no escritório e chamou por
mim.
— Já vou, só um momento.
Mas quem seria? Talvez os bombeiros ou algum dos
meus bisbilhoteiros vizinhos a querer tirar nabos da púcara.
Acabei de me limpar e, ainda mal refeito daquela confusão,
saí de toalha na mão.
Qual não foi o meu espanto, quando cheguei à sala,
que uma senhora de belo porte e muito bem trajada aguardava por mim.
— É o doutor Pascoal Benevides? — perguntou com
uma voz medonha e algo cavernosa. — Queria falar consigo.
O meu amável leitor nem vai acreditar. Tinha ali perante mim a mulher mais feia que em vida minha tive oportunidade de conhecer. Senhores, que coisa tão feia. Mas ao
mesmo tempo, e num lampejo de espírito, percebi aquela
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hierofania. Estava perante a mulher mais feia do mundo, que
sempre desejei conhecer. O supremo desafio que alguma vez
almejei. Como devem entender, em todos os mesteres há
grandes objectivos a atingir, e, para mim, a mulher mais feia
do mundo era um deles.
Devo ter ficado um tanto abalado com a epifania,
porque a senhora chamou-me à realidade, resgatando-me
dos meus mais
ardentes desejos.
— Gostaria muito de falar consigo, se não estiver a incomodar.
— Com certeza.
Apressei-me a arranjar-lhe uma cadeira, mas o escritório estava completamente de pantanas. Com esta maravilhosa aparição até me esqueci do que havia acontecido. Apenas estava preocupado com aquela senhora.
— Perdoe-me toda esta desarrumação, mas não sei
o que sucedeu.
Tentava ir limpando o pó da cadeira e da secretária
e proporcionar-lhe a maior comodidade possível. A senhora
revelou uma distinta elegância e educação, não se incomodando com aquela desgraça. Um ligeiro tremer das mãos denotava algum nervosismo.
— Não se preocupe, estou bem.
Quando finalmente me sentei, a senhora falou de
chofre:
— Quero que me faça feliz!
Os meus olhos brilharam de alegria. Naquele momento era aquilo mesmo que queria ouvir.
— Estou aqui para isso.
— Sou uma mulher só e infeliz e, como pode notar,
não sou propriamente um modelo de mulher, e no mundo de
hoje não é fácil ser-se feio.
— Não se apoquente, esqueça que está neste mundo, as regras aqui são outras.
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— Mas há uma outra coisa que deve saber. — A senhora começou a soluçar e retirou da pequena malinha que
trazia a tiracolo um lenço, tentando reter alguma lágrima
furtiva. — Nunca consegui manter uma relação durante muito tempo. Uma coisa trágica...
Parou a limpar novamente os olhos e pude então
reparar nas suas mãos. Eram esguias, esbranquiçadas e esqueléticas. Ligeiras manchas castanhas salpicadas amiúde davamlhe um pouco de cor. As unhas estavam muito bem arranjadas, pontiagudas, como se gostasse de arranhar o parceiro
nos seus jogos de sedução.
— Acabam todos por morrer! Uma tragédia. Não
sei mais o que fazer, estou desesperada.
Com este novo dado quedei-me pensativo. Ora ali
estava um caso estranhíssimo, porém, aquela seria para mim
a suprema conquista. Tinha todos os ingredientes possíveis
para isso e o meu corpo fervilhava já doido de emoção e excitação. Se eu soubesse...
— Não sei que fatalismo me persegue, mas nunca
ninguém sobreviveu comigo. — Voltou a limpar cuidadosamente a face. — Não pense que sou maluca ou uma assassina,
nada disso, é o meu karma...
— Compreendo, compreendo.
— Não queria que aceitasse este caso, desconhecendo essa fatalidade da minha vida. E a única coisa que peço é
um pouco de felicidade.
Tinha escutado o suficiente e a morte é sempre um
desafio. A senhora havia-me convencido.
— Aceito o seu caso, pois a felicidade é algo em que
devemos sempre acreditar.
Por ora, a minha narrativa aqui se interrompe, amável leitor, como deverá compreender. A confidencialidade é
uma garantia e uma exigência do meu trabalho. Por outro
lado, não me convém muito revelar as estratégias de que me
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servi para lidar com este curioso caso. O segredo é a alma do
negócio.
O certo é que os dias que se seguiram foram de
amor, carinho e felicidade. E neste caso, apliquei todo o meu
saber e toda a minha experiência e não sei por que estranho
fado, a nossa relação desenrolou-se às mil maravilhas. Nada
daquela negregada fatalidade que a acompanhava pareceu
existir. Éramos um para o outro, em união, em comunhão, em
harmonia.
Certo dia, ela aproximou-se com a ternura que a
caracterizava e disse-me:
— Sabes, tenho uma coisa para te dizer.
A forma coloquial como dispunha a conversa deixou-me curioso.
— Obrigado, Pascoal. A felicidade era para mim
uma coisa desconhecida, pela primeira vez na vida fui feliz e
este é um sentimento estranho.
— São coisas que acontecem...
— Mas já está na hora de tu partires.
— O que é que queres dizer com isso?
— Nada, apenas que te vou deixar viver.
— O quê?
— Até à próxima, voltaremos a encontrar-nos...
Nada daquilo fazia sentido. Só depois compreendi,
quando acordei no hospital, o que verdadeiramente tinha sucedido. Aqueles que me rodeavam, os médicos, rejubilavam
de alegria. Tinha, felizmente, saído do coma.
Hoje divirto-me a escrever histórias e a olhar os miúdos a correrem atrás dos pombos, como se corressem atrás
de um sonho, atrás da vida. Tal como eu.
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Tinha?
E então:
…sou ou não sou?
Um cabrão?
Um amigo das estepes?
Um percebe?
A solução da manigância no meu seio,
O mundo da puta nas mãos.
Porquê agora?
Se eu não me meti com nada;
Muito menos com ninguém.
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