Afonia e gagueira: a voz soletrada no corpo

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Afonia e gagueira: a voz soletrada no corpo
Latusa digital – ano 5 – N° 32 – fevereiro de 2008
Afonia e gagueira: a voz soletrada no corpo*
Ana Martha Wilson Maia (relatora)
Cherubina de Cicco
Márcia Zucchi
Mirta Zbrun
Regina de La Roque
Rejane Maurell**
Em seus estudos iniciais sobre a histeria, Freud relata um caso de afonia,
ilustrando a dupla função da laringe – órgão fonador e órgão sexual – na
constituição do sintoma. Rosalia H. queixa-se que sua voz foge ao controle de
alguns compassos, acompanhada da sensação de sufocamento e de constrição
da garganta. Freud atribui essa “falha na voz” a uma conversão histérica e
relaciona a contratura das cordas vocais à história da paciente.
Rosalia H. perdeu os pais cedo e passou a viver com uma tia que possuía
muitos filhos e um marido que os tratava com violência. Quando a tia faleceu,
passou a cuidar das crianças, embora continuasse sentindo desprezo pelo tio.
Os sintomas apareceram nessa época: “toda vez que tinha que refrear uma
resposta, ou se forçava a ficar quieta em face de algum insulto, sentia a
garganta arranhar e apertar, e perdia a voz”1. Estes sintomas apareceram
depois associados ao canto: um professor havia lhe dito que poderia utilizar
sua bela voz profissionalmente e, pensando em se tornar independente, ela
*
Trabalho apresentado na Mesa simultânea 1 das XVIII Jornadas Clínicas da EBP-Rio em
02/11/2007.
**
Cartel do CLAC composto por Ana Martha Wilson Maia (relatora), Cherubina de Cicco, Márcia
Zucchi, Mirta Zbrun, Regina de La Roque e Rejane Maurell
1
FREUD, S.- “Estudos sobre histeria”. Em: Obras Completas, vol II. Rio de Janeiro: Imago.
1976, p.219.
1
decidiu iniciar as aulas. Muitas vezes, após presenciar uma cena violenta saía
escondido e com a constrição na garganta.
Em um primeiro tempo, temos a afasia como resposta à voz que deve
emudecer diante de uma cena. O formigamento nos dedos das mãos inaugura
o segundo tempo do sintoma. Essa moça mudou-se para Viena, para a casa de
um tio que, encantado com sua voz, pedia que cantasse ao piano. Sua esposa
supunha um interesse dele maior pela sobrinha e ficava muito incomodada
com suas “apresentações”. Além disso, a sobrinha representava o luto por sua
vocação perdida já que ela própria abdicara de seu dom para o canto. Desse
modo, Rosalia H. evitava cantar e tocar piano na presença da tia.
Na cena que desencadeou o surgimento do novo sintoma, o formigamento nos
dedos, seu tio lhe pediu que “tocasse algo”; ela sentou ao piano e, tendo sido
surpreendida pela tia, fechou a tampa do piano e jogou fora a partitura. Esse
sintoma foi associado a uma cena de sedução na infância: “seu tio mau, que
sofria de reumatismo, pedira-lhe que massageasse suas costas e ela não
ousou recuar. Na ocasião estava deitado na cama e de súbito lançou fora as
roupas da cama, deu um salto, tentou agarrá-la e fazê-la deitar-se. A
massagem naturalmente não foi concluída e um momento depois ela escapou’
e trancou-se em seu quarto”.2
A irritação da laringe e a constrição da garganta, assim como as alfinetadas
nas pontas dos dedos, indicam a presença da voz como objeto soletrado no
corpo. Em O Seminário, livro 10: a angústia, Lacan captura as cinco formas do
objeto a através de uma lógica encarnada. O objeto a se inscreve no
formalismo lógico como irredutível, como o não formalizado da estrutura. A
voz, como parte da carne que permanece aprisionada na máquina formal, fica
irrecuperável para sempre como objeto perdido, objeto causa de desejo. Nas
palavras de Lacan: “não se trata do corpo como algo que nos permita explicar
tudo, por uma espécie de esboço da harmonia do Umwelt com o Innenwelt,
2
Idem, ibidem, p. 221.
2
mas é que sempre há no corpo, em virtude desse engajamento na dialética
significante, algo de separado, algo de sacrificado, algo de inerte, que é a libra
de carne”3. Aqui ele aponta para o que desenvolveu posteriormente a partir de
O Seminário, livro 20: mais ainda, e que se consagrou, graças às referências
de Miller, como clínica do real. No Seminário 10, o objeto deixa de ser pensado
como imagem, ou mesmo como um significante que designa a falta na
imagem, passando a ser pensado como perdas no próprio corpo do sujeito.
Uma jovem mulher demanda atendimento e a primeira consulta circunscreve
seu sintoma: a gagueira que a impede de trabalhar é o “resto” de um abuso
sexual que sofreu de seu tio quando tinha 11 anos de idade4. Seus pais
participam arduamente de uma doutrina religiosa e optaram, na época, por
nada fazer com o fato. Até o momento atual, o tio freqüenta a casa dos pais e
participa das reuniões familiares como se nada tivesse acontecido. Como
Rosalia H., esta jovem deve silenciar.
Ela casa-se, em um primeiro casamento, com um rapaz que possui uma forte
ligação com a mãe, permitindo que esta comande a organização de sua casa, o
que faz a jovem sentir-se invadida, mas sem poder “falar” sobre o assunto. Ela
volta então para a casa dos pais com uma filha, que tem agora 5 anos de
idade.
O início do tratamento é marcado por uma intervenção que circunscreve o
sintoma. Queixa-se do que nomeia “abuso sexual” como aquilo que a impede
de ser feliz, de se tornar independente. “Ele me tirou sangue”. Em uma
primeira intervenção, digo: “mas ele não lhe tirou tudo”. A partir daí, passa a
falar de sua posição em seu segundo casamento, a de ser mulher de um
homem que havia lhe dito, revoltado, que se estivesse no lugar de seu pai,
teria expulsado o tio de sua casa e o agredido fisicamente. De certo modo, o
segundo marido ocupa o lugar de “pai protetor”. Por isso, seus pedidos e
3
4
LACAN, J.- O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 242.
Este atendimento foi realizado no CLAC.
3
reclamações têm uma dimensão absoluta sobre ela, os quais procura
responder plenamente como garantia de amor. Ele tem uma ex-mulher e uma
filha adolescente, cujas raras presenças a fazem sentir como se estivesse
perdendo seu lugar. Ele regula o tamanho do seu decote, o comprimento de
sua saia, fato que comenta com uma mistura de prazer e angústia. Isso
ameniza a ameaça de ser visada pelo outro sedutor, um homem para quem ela
ocupa o lugar de objeto de desejo. Mas, por outro lado, como ficar no lugar de
objeto no desejo do marido? Daí as Outras mulheres, não só a ex-mulher,
serem constantes rivais, com as quais não pode disputar por se sentir feia,
gorda, gaga.
Se de um lado, há a voz como objeto que apaga o sujeito na infância, quando
os pais lhe ordenaram que não falasse mais sobre o abuso, de outro, há a
entrada do objeto voz no circuito pulsional em sua face amorosa, a entrada no
circuito da fantasia.
Dominado pela mãe, o primeiro marido não tinha voz, portanto, não se
prestava ao reencontro do que ela perdera. Já o laço libidinal com o segundo
marido passa pela voz: ele diz o que deve ser feito, lhe demanda coisas, dá
ordens, determina o tamanho dos decotes; ações que talvez tenham
importância pela voz que as emite.
Esta jovem histérica tem um bebê que está com 4 meses de idade que traz em
todas suas sessões. Algumas vezes, traz também sua filha. Depois do período
das férias ela retorna na mesma posição queixosa, reivindicativa, reclamando
das repetições do marido. Em uma segunda intervenção, digo que pode
escolher viver com ele de outro jeito, ou viver sem ele, mas como faz, só pode
ficar mesmo insatisfeita. Ela adoece, liga avisando que teve um “princípio de
pneumonia”. Volta com o cabelo pintado e mais magra. Começa a fazer
salgados, que vende na calçada da rua em que mora.
4
Esta jovem traz invariavelmente seu “objetinho” (o filho) à sessão e a analista
marca uma separação ao anunciar as férias. Quando retorna queixosa, a
analista aponta que não há como não se separar, não há como não perder
algo. Sua resposta é no corpo: um “princípio de pneumonia” revela a
proximidade que a voz tem com os pulmões. E, então, ela volta tendo cedido
algo de seu gozo histérico.
Em uma das últimas sessões, observo que alguma coisa está diferente em sua
voz: não ouço mais o início da palavra longamente arrastado, até a parada
para respirar fundo, e o controlado recomeço da fala. Consideramos, então,
que um ciclo teria se concluído. Todavia, ela falta à última sessão. Telefono e
ela relata que foi no velório de um amigo. Agradece a oportunidade de ser
atendida, menciona as mudanças que conseguiu fazer e se refere à sessão que
faltou como sendo o final.
A redução do sintoma com uma perda relativa de gozo pôde ajudar o sujeito a
desatar algum nó e inventar um novo caminho de vida. No entanto, em um
brevíssimo instante, a gagueira se faz presente ao telefone, talvez indicando a
divisão do sujeito e o que resta de enigmático sobre seu gozo.
Quem sabe essa jovem mulher, que teve acesso à experiência psicanalítica por
meio de um tratamento gratuito e por tempo limitado, que conseguiu modificar
de algum modo sua relação com seu sintoma, queira dar prosseguimento a
essa experiência?
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