A brasilidade e a identidade latino-americana em

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A brasilidade e a identidade latino-americana em
A BRASILIDADE E A IDENTIDADE LATINO-AMERICANA EM UTOPIA
SELVAGEM
THE BRAZILIAN AND LATIN AMERICAN IDENTITY IN UTOPIA SELVAGEM
Carla Edila Santos da Rosa Silveira1
RESUMO: Neste ensaio, discutimos algumas concepções de Darcy Ribeiro sobre a matriz étnica
do brasileiro que compõe os personagens do romance Utopia Selvagem. Consideramos que o autor
não abandona a visão antropológica ao escrever sua narrativa. Nossa reflexão baseia-se em
pressupostos desenvolvidos por esse antropólogo em O povo brasileiro: a formação e o sentido do
Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: fábula, identidade, alteridade
ABSTRACT: In this essay, we discuss some Darcy Ribeiro's conceptions about brazilian ethnic
basis that form the Utopia Selvagem romance's characters. We consider the author don't leave the
anthropological view when he write his narrative. Our reflection is based on assumptions
developed by this anthropologue in O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil.
KEYWORDS: fable, identity, alterity
Introdução
Na autobiografia Confissões, Ribeiro (1997, p. 514-515) evidencia o tratamento dado às
questões identitárias na sua terceira obra de ficção: “(...) Utopia Selvagem é uma espécie de fábula
brincalhona, em que, parodiando textos clássicos e caricaturando posturas ideológicas, retrato o
Brasil e a América Latina.” Além disso, acrescenta que, nesse romance, trata com índios de papel
semelhantes a Macunaíma, os quais “servem para discutir temas e teses muito civilizadas, tal como
a cristandade e a conversão, o machismo e o feminismo, a vida e a morte, o saber e a erudição, a
pátria e o militarismo, o socialismo e a liberdade.”
O elo de ligação com o romance Macunaíma já transparece no título do primeiro capítulo de
Utopia Selvagem, denominado “Icamiabas”. Também a trajetória do protagonista Pitum apresenta
certa similaridade com aquela do herói sem nenhum caráter. Para Bernd (1992, p. 51), “a fábula,
de Darcy Ribeiro, dá continuidade ao doído lamento de Macunaíma diante da inocência perdida”.
1
Mestranda em Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras; Departamento de Lingüística, Letras Clássicas e
Vernáculas; Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes; UFPR, Curitiba, PR, Brasil. [email protected].
Carla Edila Santos da Rosa Silveira – [email protected]
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A fábula põe em cena as três etnias formadoras do Brasil através, por exemplo, dos
personagens: Icamiabas e Calibã (o índio americano), Pitum (o negro africano) e as monjas Uxa e
Tivi (o branco europeu). Dentre tantos outros aspectos, Bernd (ibidem, p. 53) salienta a
percepção sobre Utopia Selvagem, “uma metáfora criada por Darcy Ribeiro para expressar sua
visão sobre a afirmação da identidade cultural latino-americana, como identidade de segundo
grau, ou seja, a que se constrói sem negar as diferenças do outro (... )”
Não é difícil reconhecer a dessacralização de paradigmáticos textos indianistas, como a
obra poética de Gonçalves Dias e a trilogia alencariana (O Guarani, Iracema e Ubirajara) na escrita
darciniana. Com tal processo, o romancista reverte a tendência de autores românticos que
inventaram índios vazios de brasilidade, visando à projeção de espécies de fantoches na posição
de nossos ancestrais míticos ou objetos de sacrifício que não conviveram com o escravo negro e
mantiveram contato pacífico com o colonizador branco.
O caminho a seguir neste ensaio leva a uma releitura de Utopia Selvagem, cujas reflexões
advém de pressupostos desenvolvidos pelo autor no campo da Antropologia, especialmente na
obra O povo brasileiro: formação e o sentido do Brasil. A intenção é desdobrar as concepções do
romancista – que não abandona a visão antropológica ao ficcionalizar – em relação à matriz
étnica do brasileiro na composição dos personagens do romance publicado em 1983.
1.
Um primeiro olhar sobre Utopia Selvagem
No ensaio Colônia, Culto e Cultura, Bosi (1992, p. 11) introduz sua reflexão acerca das três
questões a partir de recurso retórico em que explora a etimologia e a significação dos elementos
lingüísticos sob a alegação: “Começar pelas palavras talvez não seja coisa vã. As relações entre os
fenômenos deixam marcas no corpo da linguagem. As palavras cultura, culto e colonização derivam
do mesmo verbo latino colo, cujo particípio passado é cultus e o particípio futuro é culturus.” (grifos
do autor). Tal qual faz Bosi – teórico engajado na discussão em torno do processo de formação
do povo e das instituições brasileiras – ajustamos a direção de um primeiro olhar sobre o
insinuante título do terceiro romance de Darcy Ribeiro: Utopia Selvagem: Saudades da Inocência
Perdida: Uma Fábula. À primeira vista, a combinação dos elementos lingüísticos do título provoca
um efeito curioso – sobretudo o sintagma nominal Utopia Selvagem – no que diz respeito à
unidade semântica e às relações intertextuais que possibilita.
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Pelas acepções de Silveira Bueno (1982), o termo utopia vem do grego: ou (não) + topos
(lugar) e, por essa etimologia, tem o significado primeiro de lugar que não existe. Há outras
significações possíveis tais como fantasia, delírio, quimera ou projeto irrealizável. Além disso, o
núcleo nominal utopia é modificado pelo adjetivo selvagem que, dentre tantos outros
significados, quer dizer não civilizado, bárbaro e silvícola. Um terceiro elemento lingüístico a
destacar do título é o aposto Uma Fábula. Considerando a conceituação de fábula enquanto
narração alegórica, cujos personagens são animais e cujo propósito é apresentar uma lição moral,
podemos então pressupor as intenções do autor com essa obra: rir, criticar, denunciar e
conscientizar, mas acerca de quê?
Ao observarmos a afinidade semântica entre os três termos (utopia, selvagem e fábula),
temos o anúncio de que o percurso narrativo poderá seguir pelos caminhos da fantasia, do
maravilhoso ou do fantástico em busca de uma Inocência Perdida ou do que já pode ser entendido
como a identidade nacional, outrora, adulterada de um “não lugar não civilizado” ao olhar
estrangeiro. Desse modo, a história do Brasil e da América Latina – por ser comum – compõe a
Utopia concebida sob a perspectiva inclusiva de um político, educador, sociólogo e antropólogo.
A julgar pelo título que remete a idealismo, ao mito do bon sauvage, a Rousseau, ao processo
colonizatório e às idéias românticas, podemos esperar do relato darciniano a realização da
proposta modernista de contestação e reversão da estética literária com a finalidade de mostrar
quem é o verdadeiro brasileiro. Uma mostra disto está no subcapítulo Sururucagem (p. 33):
Esgotados e enjoados do esforço de simular ser quem
não somos, aprendemos, afinal, a lavar os olhos e compor espelhos para nos ver. Neles nossa figura surge
debuxada no Guesa, em Macunaíma e, sobretudo, no
Grito Antropofágico (...)
2. Pitum e as Icamiabas
A tribo das guerreiras amazonas – as Icamiabas - constitui o espaço inicial onde se encontra
aprisionado o protagonista Gasparino Carvalhal (Pitum entre elas), um tenente do Exército, de
origem gaúcha e etnia negra. Tendo em vista esses três atributos, admitimos o herói darciniano
enquanto a representação metonímica do componente negro do conjunto de etnias brasileiras.
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O personagem central chega à “tribo feminil” porque atravessa uma “cortina cinzenta de
chuva” existente sobre a margem de um rio grande, supostamente o rio Amazonas. Nessas
condições, o herói adentra e escapa do mundo das guerreiras machas. O curioso trânsito de
Pitum não apresenta uma explicação racional na narrativa e, por ser assim, podemos considerá-lo
um acontecimento maravilhoso. A propósito, trata-se de um aspecto adequado ao universo
indígena, onde predomina a visão mítica de mundo, e à estrutura narrativa do gênero fábula.
As Icamiabas são índias guerreiras que vivem organizadas num matriarcado. Como o de
Pindorama proposto por Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago? Por que não? No universo
maravilhoso, tudo é possível. Nessa tribo, não há outros homens além daquele capturado para ser
o prenhador ou reprodutor. Uma das características das amazonas, destacada pela digressão do
narrador intruso, é a importância vital da guerra na comunidade indígena:
Compreenda o leitor que o sistema de vida delas
condiciona fatalmente esta ideologia, tal como o nosso
induz a mais altas idéias. Para elas, a guerra é honra
e é desporte. É sua forma entretida de caçar machos
que valham a pena para a função reprodutiva. Sendo
uma operação sexual, esta guerra desportiva, além de
lúdica, fica até erótica. (p. 66)
Oriundo de outra organização social, o protagonista não compreende o sentido da “guerra
orgiástica” das Icamiabas nem do rito antropofágico decorrente dessa prática desportiva. Por esse
motivo, teme a morte iminente e passa a chamar as índias de canibalas. Na percepção do
protagonista, não há diferença entre o canibalismo animal – devoração de outro da mesma
espécie – e o antropofagismo indígena – cerimônia ritualística de expressão da religiosidade.
Em diálogo constante com o leitor, o romancista estabelece um contraponto entre os
valores do mundo selvagem das índias e o civilizado de Pitum. Há a dessacralização de
concepções referentes à guerra e ao antropofagismo em diversas passagens da narrativa. Nesse
sentido, recebemos o esclarecimento de que aquela jamais serviu como forma de dominação ao
índio e de que este último celebra a revigoração moral da indianidade através da absorção da
bravura do guerreiro entregue em sacrifício que não teme a morte.
Ao centralizar o foco narrativo em ações de um personagem negro – escravizado,
massacrado no passado e, hoje, marginalizado –, o autor viabiliza o conhecimento e a reflexão
sobre a história do Brasil a partir da ótica do colonizado. Além disso, dignifica a contribuição da
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parcela negra na formação social, histórica e cultural do país. Parece ser por essa razão que o
herói dispõe de uma posição privilegiada na sociedade, pois ele não é um negro qualquer, mas um
militar de carreira.
O tenente Gasparino Carvalhal é o “sururucador oficial” das Icamiabas. Dessa função
social do protagonista, há muito que dizer. Se recuperarmos o texto de Macunaíma, perceberemos
a variação de um mesmo tema em Utopia Selvagem: a miscigenação ou a identidade plural do
brasileiro. No que concerne à Macunaíma, Bosi (1988, p. 128) chama a atenção para uma das
motivações para a narrativa de Mário de Andrade:
O desejo não menos imperioso de pensar o povo brasileiro, nossa gente,
percorrendo as trilhas cruzadas ou superpostas da sua existência selvagem,
colonial e moderna, à procura de uma identidade quem de tão plural que é,
beira a surpresa e a indeterminação, daí ser o herói sem nenhum caráter. (grifo
do autor)
Considerando os interesses comuns de Darcy Ribeiro e Mário de Andrade, encontramos
condições de traçar um paralelo entre as configurações dos protagonistas, tendo de um lado o
tenente aprisionado, dominado e, literalmente, usado como objeto de antropofagia sexual com o
fim legítimo da procriação; de outro, o herói sem nenhum caráter, livre e dominador, que escolhe
as parceiras sexuais.
Não poderia haver deboche e denúncia melhores da selvageria praticada pelo colonizador –
católico, conhecedor e temeroso das leis divinas – contra o ameríndio. Por exemplo, a índia foi
capturada para o sexo, a procriação, o trabalho agrícola e o cativeiro doméstico.
Improvisadamente, ela supriu a falta da mulher branca para os usurpadores instalados na colônia,
segundo Ribeiro (2001, p. 146), durante muito tempo, “a mulher indígena veio plasmando o povo
brasileiro em seu papel de principal geratriz étnica”. Com essa configuração, ocorre a primeira
fase de mestiçagem no Brasil, da qual surgem os primeiros espécimes híbridos da brasilidade, em
sua maioria, mamelucos resultantes do cruzamento forçoso entre o branco e a índia.
A alteridade de Pitum provoca estranhamento entre as guerreiras. As índias não escondem
a rejeição das diferenças do outro (um homem negro) presente naquela “tribo mulheril” que não
se submete ao poderio masculino. Percebemos com exatidão a não-aceitação do negro na ocasião
em que as amazonas esfregam o corpo do tenente, durante o banho, por pensarem que ele
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estivesse pintado de preto. Qualquer semelhança com o processo de branqueamento pelo qual
Macunaíma passa não é mera coincidência.
Toda essa alegoria denuncia uma especificidade do preconceito racial no Brasil, via de
regra, anulado quando o negro é de nível social privilegiado ou quando o mulato é “tão clarinho”
a ponto de ser reconhecido como branco. Dentre os diversos sentidos moralizantes da fábula
darciniana, ressaltamos o deboche à expectativa de clareamento do negro, metaforizada pela
reação negativa das Icamiabas que transparece uma espécie de esperança que parece estar inscrita
culturalmente em parte de nossa sociedade.
Aos poucos, o tenente Carvalhal é indianizado, pois, sem contestação, tem os cabelos
alisados com urucum e o corpo emplumado, conforme nos descreve o narrador: “Assim vive
Pitum, sempre nu, com seu coité no coco e com o corpo todo pintado e adornado de enfeites de
pena” (p. 19). Outra transformação efetuada no corpo do protagonista é a depelagem, a “primeira
bruteza selvagem” praticada contra o tenente:
Não deixavam é nascer pentelhos no preto. Nem o
pelame do sovaco escapou. Na moda delas isto é nojo
inadmissível. Não tendo, de nascença, pentelhame nenhum no corpo, não querem também nenhum fio nele.
― Nisso são impossíveis. Arrancam pela raiz um a
um e ainda passam cinza quente ni mim para não nascer mais. (p. 19)
A prática da depelagem completa a cadeia de metáforas composta para falar dos processos
de aculturação e, subseqüente, deculturação sofridos pelo índio, negro e branco desde os
primeiros contatos estabelecidos na colônia. Ribeiro (ibidem, p. 205) vê no processo de
deculturação a causa da desindianização dos índios, da desafricanização dos negros e da
deseuropeização dos brancos. Por assim dizer, a população brasileira se formou das sobras
humanas de tais processos. Todos perderam referências identitárias: o índio usando roupas,
espelhos e rezando; o negro, confinado nas senzalas e afastado dos familiares, só conseguiu
guardar na lembrança resquícios da cultura africana; o branco infiltrado nas tribos e favorecido
pelo cunhadismo. Todos abandonaram involuntariamente os traços da própria singularidade para
constituírem o mosaico cultural do Brasil.
Com o passar do tempo, o personagem Pitum chega ao entendimento de que o
comportamento das índias reflete uma “questão de moda ou costume. E moda não se discute”
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(p. 20). Com essa reflexão, fica evidenciado o apelo à aceitação e ao respeito das diferenças
culturais. O romancista imprime na voz do herói a compreensão de que a cultura é algo
convencionado no meio social em que surge e, por essa razão, não pode ser questionada por
quem não se insere nesse contexto, por quem não tem a vivência e não conhece a significação de
cada uso e costume, enfim, por quem é estrangeiro.
Contrariando a tradição literária, como todo texto modernista que se preze, a figura central
de Utopia Selvagem é um negro em constante movimentação na diegese. O trânsito do herói é
marcado por indagações quanto ao seu lugar no mundo, quanto à própria existência e quanto aos
“outros” com quem se relaciona. Percebemos o manifesto de uma resignação do personagem
nesta passagem: “― Repenso isso todo dia, toda hora, forçando a memória. Quem sabe se essas
recordações mantêm meu sisos nos gonzos? Sem isto perco o juízo, acabo achando que nasci pra
prenhar índia” (p. 43). Sem dúvida, o discurso do protagonista indicia a crise de identidade vivida
pelos escravos (negro e índio) e exploradores europeus (branco). O abrupto deslocamento
espacial por que passaram os três elementos étnicos deixou-os marcados pelos sentimentos de
perda do passado e incerteza do futuro.
2.
As monjas, Calibã e Orelhão
As monjas Uxa e Tivi vivem na Galíbia, uma tribo normal aos olhos do protagonista,
porque é formada por homens, mulheres e crianças. Uxa é a monja velhusca, pentecostal,
moralizadora, que crocheta roupas para esconder as vergonhas dos índios. Tivi é a missionária
mais nova, católica, conciliadora e sonha com a conversão do chefe Calibã que insiste em tentála. As duas religiosas brancas encarnam “a grande missão do homem branco como herói
civilizador e cristianizador.” (Ribeiro, ibidem, p. 178). Na segunda parte da narrativa, o
protagonista encontra as monjas:
Quando pôs os olhos nas brancarronas vestidas de
zuarte Pitum se deu por salvo. Eram a própria salvação, na cara de duas santas missionárias: hão de me
socorrer! Chegando mais perto, pôs a boca no mundo:
― Ei, donas, socorro! Me salvem, estes caras açabam comigo.” (p. 79).
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No entanto, as personagens brancas repelem o negro capturado pelos índios Galibis e
tratam imediatamente de cobrir as vergonhas dele. Uxa e Tivi sabem que o capturado é brasileiro
como elas, porém não admitem. A fala de uma delas demonstra o reflexo repulsivo: “― Preto é.
Mas brasileiro também é: civilizado” (p. 79). A repulsão também fica evidente no momento em
que o chefe Calibã, desconfiado, pergunta se o tenente pertence à mesma nação das missionárias
e estas “então, confessam, envergonhadas, que apesar de homem, de preto e de nuelo, Pitum era
gente delas: patrício brasileiro” (p. 80).
Fazendo jus ao papel de moralizadora, a religiosa Uxa repreende o herói para que ele não
ande nu entre os Galibis, visto que é um civilizado. Pitum argumenta que todos os índios andam
sem roupa. Nesta ocasião, ela explica-lhe que os índios não andam nus, têm pudor, não se
sentindo à vontade sem as vestimentas minúsculas que costumam usar. Mais uma vez,
identificamos a crítica às primeiras concepções acerca do modo de vida do ameríndio, fundadas
em teorias adequadas para explicar o contexto do Velho Mundo.
As monjas vivem a contar aos Galibis como é a vida no Brasil delas. Na verdade, iludem os
indígenas, pois só falam absurdos com os quais Pitum discorda: “― Não pode haver um Brasil
assim ― diz ele. ― Certamente não há mesmo. Será invenção delas. ― E se pergunta: ― para que
fantasiam tanto? Que é que lucram com isso? A quem é que querem enganar?” (p. 94). São com
questões dessa natureza que o protagonista contesta a postura das missionárias.
A princípio, Pitum não participa das sessões de ilusionismo das missionárias, só escuta.
Pela constante postura de ouvinte do protagonista, os Galibis atribuem-lhe a alcunha de Orelhão.
Isto se dá no subcapítulo denominado Brasis, em que a disparidade social do país é discutida,
sendo colocada na esteira dos malefícios contraídos, no passado, por força do colonialismo
português. No presente, poucos conseguem reconhecer no imperialismo norte-americano o fator
de aniquilação da perspectiva de equiparação do desnivelamento social no Brasil e no restante
dos países subdesenvolvidos.
Uxa e Tivi impedem o casamento de Orelhão (ex-Pitum) com uma índia Galibi,
justificando que a realização dessa união desmoraliza o civilizado, já que este passaria a ser índio
após o enlace. Por trás desse discurso castrador, esconde-se a idéia de que a miscigenação é
degradante para o branco. Para as religiosas, a diferenciação étnica implica impedimento para esse
tipo de relação – o cunhadismo –, que o colonizador tanto desejou por facilitar a exploração e o
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recrutamento de mão-de-obra escrava. A origem da brasilidade é explicada através do
cunhadismo por Ribeiro (ibidem, p. 81):
A instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro foi
o cunhadismo, velho uso indígena de incorporar estranhos à sua
comunidade. Consistia em lhes dar uma índia, como esposa. Assim
que ele a assumisse, estabelecia, automaticamente, mil laços que o
aparentavam com todos os membros do grupo. (grifo do autor)
Em Utopia Selvagem, o narrador acrescenta que esse costume é uma demonstração da
etiqueta Galibi, a cortesia da qual muitos portugueses tiraram proveito. Para as missionárias,
significa a degeneração do civilizado, ou seja, da etnia branca.
O fracasso do intento missionário é reconhecido por Uxa, uma vez que ela lamenta o
desinteresse dos “selvagens letrados” pela leitura bíblica bem como a opção falha por alfabetizar
índios adultos, difíceis de moldar. Segundo o lamento da monja, as duas só conseguiram que os
índios escrevessem bilhetes com as bobagens que pensam. Disso decorre a ridicularização do
indígena, do seu modo de ver o mundo que, para o branco colonizador, é simples, tolo, bobo,
inferior, entretanto, autêntico.
Já que destacamos a observação de Uxa que remonta ao fracasso do projeto jesuítico,
vejamos como se deu essa situação para postularmos uma interpretação das pretensões do autor
na referida passagem. Inicialmente, os jesuítas auxiliaram o processo civilizatório no Brasil,
desempenhando a função de aliciadores de índios para os colonizadores. Cheios de
arrependimento, optaram por seguir o exemplo de missões desenvolvidas no Paraguai e
empreenderam “um projeto utópico de reconstrução intencional da vida social dos índios
destribalizados.” (RIBEIRO, ibidem, p. 54).
Dentre as revelações de uma postura contestatória da verdade histórica, destacamos esta:
“Só é de perguntar se será caridoso da parte destas monjas tirar os Galibis da Inocência, para lhes
dar a palavra de Deus. Pensando que dão de graça a Salvação, elas não estariam obrando um
preço terrível? Não estariam abrindo pra esses pobres índios as portas do Inferno?” (p. 130). De
fato, a conversão indígena não só fracassou, mas também resultou na desgraça dos
destribalizados, uma vez que os jesuítas foram os grandes causadores do desaparecimento da
população indígena na costa brasileira. Milhares de índios morreram combatendo o colonizador
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português – desfavorável ao projeto jesuítico – ou infectados por doenças transmitidas pelo
homem branco, incluindo-se nesse rol os próprios padres jesuítas.
O personagem Calibã é o tuxaua (chefe guerreiro) que comanda a Galíbia, tribo onde as
duas monjas realizam trabalho missionário. A autoridade máxima dos Galibis, um índio gago,
alimenta o sonho de viajar para o Brasil das monjas, pensando não ser o mesmo de Orelhão, à
procura de medicamentos para a gagueira. Mesmo sem garantia de cura, o chefe da Galíbia quer
experimentar “os doze remédios que curam todas as doenças que merecem ser curadas” (p. 139).
Estamos mais uma vez diante de uma alegoria peculiar, cujas interpretações auxiliam na
definição do caráter desse elemento indígena. Isto posto, tomamos a gagueira do tuxaua
enquanto metonímia das enfermidades trazidas pelo colonizador, contra os quais o organismo do
indígena não teve anticorpos. Na época, não houve remédio ou qualquer solução civilizada capaz
de evitar a dizimação dos autóctones. Já o interesse fascinado do chefe pelo mundo civilizado
revela uma predisposição à aculturação. Em outro episódio da fábula, o índio prova
forçosamente uma roupa (calça e camisa) feita pela monja Tivi, sendo que, mais tarde, ele passa a
usar uma das peças (a camisa).
A viagem de Calibã é o assunto principal das reuniões realizadas no Clube dos Homens.
Nesses encontros, o chefe descreve o Brasil das monjas aos companheiros, conforme a
compreensão reduzida das conversas com as religiosas. Até parece uma alusão aos primeiros
viajantes que vieram inspecionar a colônia a fim de remeterem à Europa inventários da riqueza
material do território invadido. Tais documentos não serviram para outra coisa além da distorção
do caráter dos nativos que viviam na América. Graças a esses escritos, o ameríndio recebeu os
rótulos de selvagem, pagão, imoral e inocente, sendo assim, o povo perfeito para ser submetido
ao processo civilizatório e à cristianização.
Inconformado com as disparidades existentes na nação de Orelhão e das monjas, o tuxaua
tanto insiste que acaba descobrindo a mentira dos “três representantes da cristandade e da
civilização no meio da indianidade.” Ofendido, o chefe explicita duas questões que o intrigam.
Uma referente à diferença étnica entre o tenente negro e as monjas brancas: “― Sempre
desconfiei: ele tão preto, vocês tão brancas. Não podiam ser do mesmo povo.” (p. 173). E a mais
revoltante para o índio, relativa à suposição de que o objetivo real da missão das monjas na
Galíbia é roubar as almas dos indígenas. A indignação é tanta que Calibã chega a dizer: “― É ou
não é? Conquistar alma não é o ofício nojento de vocês? E este maricas aí, o, que é que ele busca
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aqui?” (p. 174). No discurso desse sujeito indígena ou desse brasileiro, verificamos o juízo de que
o colonizador fez de tudo para esconder a colonização, realizada por meio de escravidão e
genocídio, atrás da bandeira da fé católica.
4. Quem somos nós? Brasileiros e latino-americanos.
O enigma da brasilidade e da identidade latino-americana, fantasiado em Utopia Selvagem,
tem solução na aceitação da pluralidade étnica existente no bloco marginalizado do continente
americano. A subserviência cultural, estabelecida desde a implantação do processo colonizatório,
deixou a marca irreversível da mestiçagem. Desse violento contato entre civilizados e selvagens,
resultou a transfiguração étnica (RIBEIRO, op. cit) de seres inocentes (índios e negros), alheios
ao imperialismo europeu, como se vê nesta passagem da narrativa que nos instiga à reflexão:
“Nosso enigma é muitíssimo mais complicado. Começa com a tenebrosa invasão civilizadora. Mil
povos únicos, saídos virgens da mão do Criador, com suas mil caras e falas próprias, são
dissolvidos no tacho com milhões de pituns, para fundar a Nova Roma multitudinária.” (p. 32)
Do contrário, não haveria necessidade de o narrador explicitar os questionamentos: ―
Quem somos nós? Nós mesmos? Eles? Ninguém?”ou “― Quem somos nós, se não somos
europeus, nem somos índios, senão uma espécie intermediária, entre aborígenes e espanhóis?”(p.
32). As respostas estão na face e no sangue de cada latino-americano. Estão no caráter múltiplo (e
nem por isso menos importante) do povo mestiço que, mais tarde, ainda submeteu-se aos anos
de chumbo da ditadura militar, vendo novamente a invasão do seu espaço por estrangeiros
prometendo o “milagre econômico” advindos da instalação de multinacionais. Período para os
brasileiros em que, nas palavras de Habert (1996, p. 17), o milagre foi sobreviver à tamanha crise
econômica decorrente do crescimento da dívida externa. Assinalamos ser esse o contexto
histórico ironicamente descortinado em Utopia Selvagem.
Passados alguns séculos, trocamos o rótulo de selvagens pelo de subdesenvolvidos, em vias
de desenvolvimento ou mesmo emergentes. Passado algum tempo, Pitum ou Orelhão, as monjas
e os índios Galibis adquirem formas animalescas e, transfigurados, assumem novas identidades
no espaço geográfico da Galíbia, que se transforma numa ilha voadora. Ao final da fábula, todos
se embriagam com o Caapi (“a Droga Forte” preparada pelo pajé Cunhãmbebe) e a verdade
humana, ou melhor, a identidade nacional aflora do interior de cada um dos elementos étnicos
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sob a forma de “santos bichos falantes” (p. 197). Nesse sentido, ocorre a afirmação da identidade
de segundo grau (BERND, 1992), depreendida, por exemplo, de atitudes da personagem Tivi:
Na aldeia, mergulhada no barato, Tivi, toda tristeza, cantarola bêbada:
Capineiro de meu pai...
Nãomecortes... nãomecor... nãome...
Enquanto isto tira fora o seio direito e espreme para
esguichar leite na cara de Calibã.
De repente, se alumbra toda e aí se vê e se aceita.
Entra na dança alucinada e nela se desfaz gritando,
se desvestindo. Já nua, nuela em pêlo, mas agarrada
ainda no rosário enrolado ao redor do pescoço, comclama:
― Sururucatu, Sururucatu ― e ainda não tinha suru-
rucado. (p. 193)
5. Considerações finais
Chegamos ao final da caminhada com a impressão de termos confirmado as
pressuposições indiciadas no título do romance e apresentadas na introdução deste ensaio.
Retomando as reflexões inicias, ressaltamos que a composição de uma fábula prescinde o
processo alegórico e a função moralizadora, o que se dá na obra de Darcy Ribeiro através de seu
propósito inegável de mostrar que o brasileiro é múltiplo porque descende de três etnias de igual
valor tal qual os outros povos latino-americanos. Baseados na nossa releitura de Utopia Selvagem,
podemos apontar que o viés histórico, dito oficial, não passa da afirmação de fatos convenientes
à imagem altiva de nossos opressores. Os relatores do discurso oficioso crêem e fazem crer na
realidade dos acontecimentos como se contassem uma fábula e, por conseguinte, fogem do
compromisso com a autenticidade de nosso caráter nacional.
Convicto de que “A alegria é a prova dos nove”, Darcy Ribeiro constrói personagens caricatos
para que possamos nos reconhecer e nos aceitar dentro da especificidade que nos torna
múltiplos. Da fábula Utopia Selvagem, fica a moral de que só a aceitação das raízes étnicas leva à
afirmação consciente da alteridade, da brasilidade, da identidade latino-americana.
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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Mário. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 32. ed. Belo Horizonte/Rio
de Janeiro: Livraria Garnier, 2001.
ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In: SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latinoamericanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: EDUSP: Iluminuras:
FAPESP, 1995.
BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. 1. ed. Porto Alegre: Ed. Da Universidade,
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Carla Edila Santos da Rosa Silveira – [email protected]

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