Ler on-line - Revista Historien

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS FONTES
INQUISITORIAIS12
Felipe Augusto Barreto Rangel3
Resumo: Os registros inquisitoriais possuem grande relevância para as novas reflexões
acerca das vivências das colônias atlânticas do mundo moderno, revelando uma série de
elementos especiais para os estudos socioculturais, desvelando trajetórias, sujeitos
atípicos e situações diversas. Experiências dos mais distintos extratos sociais são
protagonizadas neste corpus documental, produzido no âmbito de uma série de
movimentações, intercaladas por repressões e resistências, envolvendo a atuação
institucional das inquisições. Nosso objetivo neste trabalho é refletir sobre algumas das
transformações pelas quais o campo do conhecimento histórico passou, pensando a
inserção da documentação inquisitorial como contributo especial nesse processo,
ampliando, ainda mais, os objetos, métodos e abordagens historiográficas. Para tanto,
iremos destacar alguns autores que utilizaram este material em suas pesquisas,
refletindo sobre aspectos de suas respectivas produções.
Palavras-chave: Inquisição. Historiografia. Fontes.
Abstract: The inquisitorial records have great relevance for new reflections on the
experiences of the Atlantic colonies of the modern world, revealing a number of special
elements for socio-cultural studies, unveiling trajectories, subject atypical and different
situations. Experiences of the different social classes are led this documentary corpus,
produced under a series of movements, interspersed by repression and resistance,
involving the performance of institutional inquisitions. Our goal in this paper is to
discuss some of the transformations for which the field of historical knowledge went,
thinking the insertion of inquisitorial documentation as a special contribution to this
process, expanding further, objects, methods and historiographical approaches. To do
so, we will highlight some authors who used this material in his research, reflecting on
aspects of their respective productions.
Keywords: Inquisition. Historiography. Sources.
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Recebido em 16/05/2014. Aprovado em 11/08/2014.
Este texto foi elaborado a partir das produções das disciplinas Teoria e Metodologia da História, Tópicos
em História Social da Cultura e Tópicos em História Regional e Local, desenvolvidas durante os dois
primeiros semestres do Mestrado em História da Universidade Estadual de Feira de Santana, PGH –UEFS.
3 Graduado em Licenciatura em História – UNEB. Mestrando em História pelo Programa de Pós Graduação
em História na Universidade Estadual de Feira de Santana, PGH-UEFS. Bolsista da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB. E-mail: [email protected].
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Historien (Petrolina). ano 5. n. 10. Jan/Jun 2014: 200-215.
Algumas considerações sobre fontes inquisitoriais
Um dos grandes méritos das documentações jurisdicionais é a evidência, mesmo
com as devidas ressalvas, de personagens que não ocupavam grandes postos na vida
social, sejam religiosos ou civis, e que não eram destaque nas premissas de perfil
positivista. São relativamente escassas as fontes que tratam dos comportamentos e
atitudes de indivíduos dos segmentos populares do passado, para além das produções
destes instrumentos de repressão social e religiosa. E foi, justamente, a própria tentativa
de reprimir desvios, de alçada religiosa ou não, que possibilitou o registro
pormenorizado, muitas vezes, das práticas cotidianas de determinados indivíduos.
Tornando-se, assim, material de suma importância para a pesquisa histórica.
Existiram diversas inquisições pela Europa: a Medieval, fundada em 1184; a
Espanhola, de 1478; a Portuguesa, de 1536; e a Romana, em 1542. A Inquisição
portuguesa, instituição geradora das fontes as quais nos debruçamos, foi criada na
primeira metade do século XVI, através da bula Cum ad nihil magis, promulgada pelo
papa Paulo III. Dentre os objetivos mais proeminentes que levaram Portugal a solicitar a
Roma a implantação desta instituição em seus domínios, destaca-se, primeiramente, o
desejo de controlar os cristãos-novos, ou judeus convertidos, súditos do rei, ao se
rastrear as heresias (MARCOCCI; PAIVA, 2013, pp. 23-30). Com os desbravamentos
ultramarinos, o contato com povos de culturas diversas, e ainda os ares turbulentos da
Reforma protestante, Portugal procurou controlar a cultura, a sociedade e a religião.
Pretendeu assim, “mudar o reino, arrancando-lhe os pecados e sintonizando-o com os
cânones da verdade da fé, tal como preceituada pela Igreja de Roma” (MARCOCCI;
PAIVA, 2013, p. 77). Com o tempo, outros crimes de cunho moral e religioso foram
incorporados, como a sodomia, blasfêmia, feitiçaria, entre outros. A Coroa e a Igreja
mantinham íntimas relações no âmbito inquisitorial, ou, como nos fala Stuart Schwartz,
“a Inquisição buscou impor a ortodoxia e a exclusividade religiosa como assunto de
política de Estado” (SCHWARTZ, 2009, p. 27). Os desvios da fé tinham grande impacto
em um Estado em que os ritos da Igreja católica legitimavam as ações da Coroa.
Destacam-se, na produção inquisitorial, os regimentos, tratados demonológicos,
manuais diversos e os éditos de fé, que continham os preceitos da base normativa
institucional; além dos compêndios de denunciação e diligências das visitações, os
cadernos do promotor e os processos completos, que, por tratarem diretamente de réus
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e testemunhas, das mais diferentes origens, apresentam uma riqueza maior de
elementos, contextuais e cotidianos, que os primeiros. Vale ressaltar que só destacamos
estes por serem mais recorrentes no uso enquanto fontes históricas. Ainda existe uma
imensa gama de outros documentos avulsos ou incompletos, recheando os arquivos,
como cartas, pareceres, pedidos de habilitação e correspondências. (CALAINHO;
TAVARES, 2012)
A riqueza destas informações, caras ao ofício do historiador, ao tratar do
cotidiano das camadas populares, foram registradas de forma indireta. Tendo em vista
que, na elaboração de um processo, por exemplo, diversas pessoas tornavam-se
depoentes, registrando uma série de elementos circundantes à realidade do possível réu.
Para além do crime propriamente dito, o contexto em que este foi efetuado deveria ser
evidenciado também, considerando a possibilidade de outros participantes serem
autuados, além de se objetivar conhecer de onde vinham as ideias de cunho herético.
Figura, então, como parte de uma realidade documentada, que fornecia subsídios para
que a própria ação dos religiosos se configurasse nos moldes da efetivação do crime.
Dentre as possibilidades destes caminhos, a partir de novos olhares sobre esta
documentação, o movimento dos Annales, no início do século XX, merece ser citado.
Mesmo considerando que o uso de fontes inquisitoriais na pesquisa histórica fosse bem
anterior que o movimento. Os Annales possibilitaram o que podemos tratar como uma
renovação da historiografia, ao contrapor a história dita “historicizante” a uma
necessidade de problematização e crítica ao conhecimento, através, também, da
aproximação com outras ciências sociais. Esse movimento abriu espaço para novos
sujeitos, objetos e abordagens, além de mostrar a existência de outros caminhos, longe
de uma perspectiva unicamente político-estatal. Peter Burke, ao explorar alguns dos
novos campos da então nascente história cultural, aponta que, nos últimos tempos,
“muitas áreas da vida humana, antes consideradas inalteráveis foram reivindicadas
como territórios do historiador” (BURKE, 2000, p. 41). As ciências sociais se
desenvolviam em diversas direções, surgindo a necessidade dos historiadores de
expandirem também suas fronteiras.
Diferente dos caminhos de uma escrita positivista, com seu “discurso do
acontecimento”, privilegiando grandes homens e eventos - tratando de uma “verdade”
presente no documento, em que cabia ao historiador apenas resgatá-la - estas novas
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perspectivas permitiram que indivíduos simples ganhassem cena e figurassem como
ponto central. Estas análises não necessariamente se circunscrevem apenas a um local,
mas revelam dimensões mais amplas, temporal e espacialmente. Vale dizer, sobre a
história positivista, que nem todas as suas premissas foram ultrapassadas: o rigor nos
métodos de investigação, por exemplo, é uma de suas grandes heranças para a
historiografia atual.
Os grandes trabalhos de referência, que utilizaram fontes inquisitoriais e que
trataremos aqui, por ventura ou não, confundem-se com uma nova perspectiva de
análise, inaugurada por historiadores italianos, chamada de micro-história. São obras
que se tornaram notáveis justamente pelo trato diferenciado que deram os seus autores
ao material histórico, em grande parte ancorados em documentações inquisitoriais
variadas. Carlo Ginzburg, expoente da micro-história italiana, Giovanni Levi, pertencente
a mesma estirpe do autor anterior, e Emmanuel Le Roy Ladurie, historiador francês da
segunda geração dos Annales, apresentam trabalhos bastante significativos, apontando
diferentes caminhos para a escrita de uma história baseada em documentações
jurisdicionais, com perspectivas de abordagens relativamente distintas. Narrativas
envolvendo trajetórias de indivíduos e vilarejos figuram com destaque, alterando-se
escalas de tempo e espaço, no intuito de, partindo de pequenos fragmentos de um
passado registrado, revelar movimentações “maiores”, digamos assim.
Obra fundamental, que deu maior visibilidade para esse tipo de documentação,
além de provocar a configuração de um método especial de análise – o método indiciário
-, partindo de questões minúsculas, foi O Queijo e os Vermes, do historiador italiano Carlo
Ginzburg. A narrativa construída pelo autor enfatiza as vivências do moleiro friuliano,
Domenico Scandella, conhecido como Mennochio, denunciado e investigado pelo Santo
Ofício italiano, no século XVI, por suas proposições heréticas, ou, melhor dizendo, sua
forma especial de interpretar os preceitos religiosos. Munido da ideia de circularidade
cultural, burilada por Mikhail Bakhtin, o autor analisa as informações presentes nos
processos movidos contra Mennochio (foram dois, em períodos distintos), percebendo
os diversos fios que teciam, de forma extremamente particular, a sua concepção de uma
cosmogonia religiosa, regente de todo o universo. A partir daí o autor formula e discute a
sua ideia de circularidade, na qual as culturas ditas populares e letradas possuíam
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grande interação, de forma circular: de baixo para cima e de cima para baixo
(GINZBURG, 2006, p. 10).
Ginzburg nos ensina que o papel das fontes não é ilustrar as proposições do
historiador, mas fornecer elementos que possibilitem a problematização de um real.
Partindo desta premissa, não nos debruçamos sob o passado tal como ele foi, mas sobre
um discurso que foi construído sobre este passado, cabendo a nós extrair os indícios e
analisar as entrelinhas. O autor discute, de forma bastante significativa, o caráter
etnográfico das documentações inquisitoriais, ao trazerem em seu cerne fragmentos de
um cotidiano, como dito anteriormente.
Uma das grandes questões que permeia o uso das fontes inquisitoriais é a
natureza na qual foram produzidas, baseadas na disseminação de medos pedagógicos,
individuais e coletivos. A exposição, em locais públicos, dos sambenitos – roupas usadas
pelos réus durante os Autos de Fé -, os temores em torno das Visitações, os períodos da
graça, o próprio conhecimento de determinados procedimentos utilizados nas
investigações, como a tortura – que não era uma pena, mas um dos instrumentos dos
inquéritos, visando se extrair uma verdade em determinados casos -, e na busca
constante do segredo e sigilo, são pontos relevantes na condução dos processos e
denunciações. Segundo Marcocci e Paiva, a partir do século XVII, “o Santo Ofício
preparou questionários detalhados para os diversos tipos de crimes, destinados a
uniformizar procedimentos, procurando encontrar padrões de avaliação das respostas”
(MARCOCCI; PAIVA, 2013, p. 198). Deste modo, buscava-se uma especialização nas
ações, para que os delitos fossem encontrados da forma mais exata possível. Vale dizer
ainda que alguns documentos, como tratados demonológicos e sessões regimentais,
eram produzidos a partir da combinação destas informações das investigações de réus.
Diversos pesquisadores se debruçaram sobre estes pontos, analisando questões
técnicas do funcionamento inquisitorial. Mostraram que nem sempre a intransigência
imperava, nem sempre os procedimentos eram seguidos, e o segredo guardado. “Nem
sempre as sentenças eram viciadas e arbitrárias, e nem sempre, para os inquisidores,
mais valia condenar um inocente do que libertar um culpado” (MARCOCCI; PAIVA, 2013,
p. 201). De todo modo, na sanha de se desencravar das memórias os fundamentos de
possíveis heresias praticadas, como os lendários sabás de algumas partes da Europa,
muitos inocentes se perdiam entre os discursos, acabando por confessar situações que
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Algumas considerações sobre fontes inquisitoriais
eram interpretadas à luz de uma demonização pelos inquisidores. Torturas físicas,
cansaço e pressão psicológica faziam com que, nas palavras de Ginzburg, as respostas
dos investigados fossem um “eco” das questões feitas pelos religiosos (GINZBURG,
1990/1991).
Ginzburg nos alerta sobre as concepções exageradas, e deformantes, que
cercaram o material inquisitorial durante longo tempo. Diz que “O fato de uma fonte não
ser “objetiva” (mas nem mesmo um inventário é “objetivo”) não significa que seja
inutilizável. (...) Mesmo uma documentação exígua, dispersa e renitente pode, portanto,
ser aproveitada” (GINZBURG, 2006, p. 16). Os filtros e distorções não são mérito apenas
para com as fontes geradas em contextos de repressão, com no caso das inquisições.
Toda fonte deve ser analisada e problematizada detalhadamente, e este foi um dos
grandes ensinamentos dos Annales, no que concerne à crítica documental. Neste ponto,
Stuart Schwartz, em seu mais recente trabalho, baseado em fontes inquisitoriais, nos diz
que
As próprias condições em que foram obtidos os depoimentos, inclusive a
disparidade de poder entre o indivíduo e a Igreja, a sombra constante de
uma ameaça implícita de tortura, o diálogo desigual entre os
inquisidores cultos e os prisioneiros muitas vezes analfabetos, e as
múltiplas estratégias dos acusados, dos acusadores e das testemunhas
complicam o uso desses registros. Nem sempre as confissões eram
necessariamente expressões de uma verdadeira crença, e tampouco as
denúncias e acusações vinham isentas de outras motivações. Muitas
vezes o valor dos documentos consiste não só na veracidade de uma
determinada denúncia ou na precisão da defesa como também, em igual
medida, na revelação do quadro mental dos inquisidores e dos réus
(SCHWARTZ, 2009a, p. 27).
Ginzburg defende a proposta de que se a documentação de cunho inquisitorial
permite reconstruir as vivências de personalidades individuais, biografias, por exemplo,
é absurdo descartá-las em nome, apenas, de abordagens das massas anônimas.
Acrescenta ainda que “Alguns estudos biográficos mostraram que um indivíduo
medíocre, destituído de interesse por si mesmo – e justamente por isso representativo -,
pode ser pesquisado como se fosse um microcosmo de um estrato social inteiro de
determinado período histórico” (GINZBURG, 2006, p. 20). E foi justamente isto que ele
fez ao trabalhar com os processos referentes ao moleiro friuliano.
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Em seu célebre artigo Sinais: Raízes de um paradigma indiciário, Ginzburg
apresenta o método indiciário, numa proposta de sustentar teoricamente os trabalhos
aos quais já havia se dedicado. Vale dizer que, as obras produzidas pelo autor, em que
ele utiliza esta metodologia, são anteriores à escrita deste artigo, o que confere a ele um
caráter de “justificação teórica fundante” para o novo método de pesquisa.4 Baseado nas
perspectivas epistemológicas de alguns estudiosos do final do século XIX – como Morelli,
Holmes e Freud. Ginzburg, exemplificando sua proposta com base no método morelliano
de crítica artística – de Giovanni Morelli, da década de 1870 – aponta que,
Os museus, dizia Morelli, estão cheios de quadros atribuídos de maneira
incorreta. Mas devolver cada quadro ao seu verdadeiro autor é difícil:
muitíssimas vezes encontramo-nos frente a obras não-assinadas, talvez
repintadas ou num mal estado de conservação. Nessas condições, é
indispensável poder distinguir os originais das cópias. Para tanto,
porém (dizia Morelli), é preciso não basear, como normalmente se faz,
em características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis, dos
quadros: os olhos erguidos para o céu dos personagens de Purigino, o
sorriso dos de Leonardo, e assim por diante. Pelo contrário, é necessário
examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados
pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das
orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés (GINZBURG,
1989, p. 144).
O trecho acima nos revela, seguindo apenas um dos autores trabalhados por
Ginzburg, os termos de um método de análise voltado para a distinção de obras de arte.
Para a disciplina histórica, o autor molda um novo paradigma, no qual os pequenos
detalhes, ditos negligenciáveis, presentes na documentação, podem ser elementos
reveladores para se pensar âncoras de determinados contextos, em diversas escalas.
Neste sentido, Ronaldo Vainfas nos alerta que “É necessário perceber as crenças e
comportamentos cotidianos conectados à sociedade, economia e política” (VAINFAS,
2002, p. 90). Não é o detalhe pelo detalhe, mas o indício, compondo um intrincado
mosaico de relações sociais, econômicas, culturais etc. Assim, afirma Ginzburg no
mesmo trabalho, comparando então o fazer historiográfico ao conhecimento médico e
Obras publicadas, cronologicamente: Os andarilhos do bem, em 1966; O Queijo e os Vermes, em 1976;
História Noturna, em 1979. O artigo Sinais, que explica a estrutura do indiciarismo, foi escrito e inserido na
coletânea Mitos, Emblemas e Sinais, datada de 1989. Foi elaborado, então, 10 anos após a escrita de seus
maiores trabalhos acerca das crenças religiosas populares no início da Época Moderna. (Todas as
referências se encontram no final do trabalho.)
4
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até mesmo venatório, que “o conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjectural”
(GINZBURG, 1989, p. 157).
Nas perspectivas pré-Annales, o historiador tinha a função de recuperar grandes
eventos e, através da documentação, que na maioria das vezes compreendia ao aparelho
estatal, conduzir uma narrativa legitimadora de determinados processos políticos
oficiais. “Aqui, nessa ênfase ao Estado, sujeito histórico universal, aparece ainda, e
claramente, a influência das filosofias da história” (REIS, 2004, p. 16). Ginzburg mostra
um movimento inverso, ao apresentar a importância e a necessidade de se construir
outras metodologias, próprias para a escrita da história. Uma história de repressões
inquisitoriais, de inquietações camponesas, de domínio religioso, revelando elementos
de uma cultura popular em relativa circularidade, com interseções, ainda, com as outras
ciências sociais.
Basicamente, esse novo formato de história, compreendendo os âmbitos
cultural e social, atuou em três frentes de reformulações: novos problemas, ao trazer a
própria história para discussão, inclusive em seu estatuto científico; novas abordagens,
enriquecendo os setores tradicionais da história, não se circunscrevendo apenas à elite
política e econômica; e novos objetos, diversificando o campo epistemológico do ofício
do historiador (CAIRE-JABINET, 2003). O contexto histórico mundial havia se
modificado, no início do século XX, e diante da pluralidade de culturas humanas, bem
como da própria crise que a disciplina apresentava, se fez necessário mudar também a
forma de escrita, de reconstituição de um passado. Assim, de forma bastante clara, João
Carlos Reis aponta que o programa dos Annales consistiu na
interdisciplinaridade, a mudança dos objetos de pesquisa, que passavam
a ser as estruturas econômico-social-mental, a mudança na estrutura da
explicação-compreensão em história, a mudança no conceito de fonte
histórica e, sobretudo, embasando todas as propostas anteriores, a
mudança do conceito de tempo histórico, que agora consiste,
fundamentalmente, na superação estrutural do evento (REIS, 2004, pp.
77 – 78).
O segundo estudo em destaque, de Emmanuel Le Roy Ladurie, Montaillou,
povoado occitânico, possui grande relevância também neste contexto, trabalhando numa
perspectiva histórico-antropológica. O autor, utilizando os escritos do bispo Jacques
Fournier, quando este era integrante do corpo inquisitorial, objetivou reconstruir parte
das vivências dos indivíduos de determinada região, seu mundo mental e material,
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partindo dos elementos cotidianos registrados nos inquéritos. Segundo ele, “As
confissões estão escoradas, assentadas, nas descrições fornecidas pelos acusados sobre
suas ‘fatias de vida’, cotidianas e substanciais” (LE ROY LADURIE, 1997, p. 17). A
Inquisição, atuante na região de Montaillou, vila do Languedoc ao sul da França, durante
a década de 1320, buscou os rastros do catarismo - espécie de movimento de cunho
cristão, considerado herético pela Igreja católica, por se misturar em tradições tidas
como pagãs.5 O autor contextualiza Montaillou de uma forma especial, pois se preocupa
mais com a narrativa e o potencial etnográfico das fontes que com as questões mais
ligadas à Igreja, ao feudalismo ou ao próprio catarismo (VAINFAS, 2002, p. 50). Estes
pontos só aparecem implicitamente no texto, misturados a minúsculas frações da vida
daquele povoado, refletindo as configurações culturais a partir de composições sociais.
O trabalho de Le Roy Ladurie permite refletir sobre diversos elementos
especiais das fontes inquisitoriais para a escrita da história, ao cruzá-las com outros
registros. Em primeiro, podemos destacar a importância da feitura da fonte. Para iniciar
a sua análise, o autor produz toda uma investigação sobre as trajetórias do religioso
Jacques Fournier, responsável pelas inquirições, para entender elementos de sua
mentalidade, formação e produção. A partir da reconstrução da trajetória física e
intelectual do religioso é que as configurações de “sua Montaillou” são elaboradas:
“torturava-os pouco; interrogava-os com minúcia e demora de tempo, a fim de acossar
no meio deles a heresia cátara, ou simplesmente o desvio com relação ao catolicismo
oficial” (LE ROY LADURIE, 1997, p. 11).
Ambos produziram, em perspectivas diferenciadas, logicamente, etnografias. Se
por um lado Jacques Fournier investigava elementos da heresia cátara, por outro,
Emmanuel Le Roy Ladurie analisou os seus registros lançando luz ao que se armazenou,
para além da heresia. Evocamos novamente Ginzburg, que, ao tratar de sua experiência
de pesquisa nos acervos inquisitoriais, nos diz que o “testemunho ilusório que os
inquisidores estavam tentando arrancar dos réus não era diferente, no fim das contas,
daquilo que nós estamos procurando; [...] eu me sentia como se observasse por sobre os
ombros dos juízes, seguindo as suas pegadas” (GINZBURG, 1990/1991, p. 12). Em suas
formulações, inquisidores se transformaram em antropólogos.
A Inquisição italiana se fez presente pelo Languedoc entre as décadas de 1240 a 1250, e em 1318 a 1326.
A região era conhecida como “terra prometida do erro.” (LE ROY LADURIE, 1997, p. 13.)
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Emmanuel Le Roy Ladurie produziu uma reflexão incisiva sobre as fontes.
Aponta que “Todo estudo histórico deve ou deveria começar por uma crítica das fontes”
(LE ROY LADURIE, p. 12). A qualidade do documento reside justamente na existência do
empenho do bispo Jacques Fournier em rastrear as posturas desviantes e conduzir os
interrogatórios. O religioso se empenhou na elaboração do dossiê, guardando-o consigo
até quando foi papa, e depositando, posteriormente, na Biblioteca do Vaticano,
permanecendo até os dias de hoje. É uma documentação bastante farta, contabilizando
um total de 578 interrogatórios. Vale dizer, que nem todas as pesquisas, empreendidas
em bases inquisitoriais, obtém tanto sucesso na busca documental como a deste autor.
Para determinados lugares e situações, a documentação inquisitorial pode ser
extremamente escasso, levando o historiador a lançar mão de outros recursos. Os
motivos se justificam desde a pouca atenção dos tribunais em um período específico, ou
ausência de ministros para desbravar determinada situação, ou mesmo a falta de
cuidado e conservação, o que levou inúmeros maços com registros singulares a serem
destruídos através do tempo.
Nesta obra, as intercalações de escalas, de casos individuais (biografias) e
eventos coletivos, aparecem de diversas formas. Em alguns momentos o autor, mesmo
tratando do século XIII, avança ao século XVII, em imensas progressões, para explicar
determinadas situações, pela própria carência de fontes. Num dos casos
Nossos documentos, como disse, falam-nos sobretudo, nessa matéria, da
autoridade pública e da senhoria local, que pertencem, ambos, ao conde
de Foix; assim como dos representantes que este tem no lugar: o
castelão, militar; e o bailio, judiciário (em princípio). Em compensação, a
mesma documentação, habitualmente tagarela, é muda quanto aos
direitos senhoriais de Montaillou. Precisamos remediar esta carência; e,
para isso, consultar esse ou aquele dossiê de época tardia. Uma
excelente investigação de 1672 indica que o rei da França é senhor de
Montaillou, enquanto sucessor legítimo dos direitos dos antigos condes
de Foix. (LE ROY LADURIE, 1997, p. 40)
Assim, o grande desafio que o autor coloca é justamente o trato das fontes. O
historiador deve se tornar íntimo delas, entendendo os seus processos de elaboração,
imergindo-as em seus respectivos contextos, para depois pensar nas problemáticas de
seu objeto e na construção de sua narrativa. Montaillou apresenta uma escrita de
história que atravessa estruturas territoriais e temporais, relativamente longas,
partindo de pequenos depoimentos cotidianos agrupados. Como dito anteriormente, a
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documentação eleita pelo autor foi privilegiada, pelo seu imenso volume, mas esta
proposta pode ser utilizada em outras circunstâncias, em apenas um processo
individual, por exemplo, já que
Um processo da Inquisição, dependendo da heresia ou do herege em
causa, pode alcançar mais de mil fólios manuscritos, cuja leitura exige
conhecimentos paleográficos e pesquisa paralela de tipo filológico e/ou
vocabular, considerando as alterações de uma mesma língua nos
últimos 400 ou 500 anos. Além disso, o processo inquisitorial não é um
prontuário homogêneo com indicação fria e explícita de informações,
senão um dossiê complexo, composto de peças variadas. Há documentos
administrativos inerentes à processualística inquisitorial prevista nos
regimentos; há pareceres de funcionários especializados, a exemplo dos
qualificadores, no caso de ser necessária a identificação e refutação de
proposições heréticas, nos quais não raro ocorrem citações eruditas e
em latim; há documentos resultantes das diligências mandadas fazer
pelos inquisidores, nas quais são arguidas testemunhas em número
variado, por vezes sobre um detalhe das acusações contra o réu ou
relativo às suas contraditas; há os documentos acusatórios dos
denunciantes ou mesmo confissões de cumplices que contém delações –
em regra trasladados e incluídas no dossiê; há libelos acusatórios,
contraditas de procuradores e, sobretudo, documentos relacionados aos
interrogatórios – havendo por vezes inúmeras sessões de inquirição IN
GENERE e IN SPECIE, consistindo essas peças na maior evidência da
relação dialógica estabelecida entre juiz e réu em um processo
inquisitorial ou de tipo inquisitorial. (VAINFAS, 2002, pp. 100 – 101)
Apesar de longa a citação acima, acreditamos na pertinência de ser colocada na
íntegra, já que sistematiza de forma especial a natureza, em suas diversas sessões e
camadas, de um processo inquisitorial. Diversas mãos participam da escrita destas
partes, algumas se repetindo de documento para documento, permitindo a identificação
de posturas individuais com relação aos delitos, entendimentos e termos de quem
estava “filtrando” as informações que eram extraídas, regendo o ritual de inquirição.
Nesta perspectiva, a documentação permite reconstruir indivíduos anônimos
em seus respectivos contextos, sejam acusados ou acusadores. Em meio às inquirições e
denúncias, de acusados e testemunhas, perfilam elementos do cotidiano nos registros,
compondo um mosaico interessante do que poderiam ser as vivências dos indivíduos
investigados; e eram diversas as motivações que levavam as pessoas à alçada das
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Algumas considerações sobre fontes inquisitoriais
inquisições: tensões, inimizades, conflitos entre senhores e escravos etc.6 Vale lembrar
que esta movimentação, esse registro, era permeada por diversas estratégias
discursivas, tanto dos réus, que visavam se livrar das garras repressoras da religião,
quanto dos próprios inquiridores que, obstinadamente, montavam aparatos discursivos
– questionários regimentados, como dito anteriormente, objetivando vasculhar a
memória dos réus. Os discursos eram elaborados dentro de estruturas já existentes,
pois existiam manuais, ou sessões dentro dos próprios regimentos, instruindo as
inquirições. Com isso,
O desejo de verdade por parte dos inquisidores (a verdade deles,
naturalmente) produziu um testemunho extremamente rico para nós –
profundamente distorcido, todavia, pelas pressões psicológicas e físicas
que representavam um papel tão poderoso nos processos de feitiçaria
(GINZBURG, 1990/1991, p. 12).
Forneciam informações, mesmo que cotejadas, das relações estabelecidas em
dado período. A estas lacunas, cabe ao historiador lançar mão de uma imaginação
histórica, construída através de pesquisas significativas em torno das possibilidades em
um determinado período. Um bom exemplo destas estratégias é perceptível na obra de
João José Reis, Domingos Sodré, sacerdote africano, fortemente questionada pela ousadia
de sua estrutura narrativa. O autor não utiliza documentações inquisitoriais, no entanto
suas reflexões acerca das fontes, em geral, são válidas para nossa discussão. João Reis
reflete sobre a repressão aos candomblés na Bahia oitocentista, o convívio de escravos e
libertos, dentre outras questões, através das vivências de um celebre africano. Não
utiliza fontes inquisitoriais, como dito, mas processos crimes, entre outras. Vale dizer
que estas duas documentações – processos inquisitoriais e processos crimes - possuem
natureza semelhante em sua estrutura, e figuram, também, entre os materiais de
destaque das perspectivas socioculturais.
Na ausência de fontes, em alguns momentos, revelando-se ainda a tenuidade da
narrativa, João José Reis lança mão de reconstruções de cenários, incluindo outros
personagens, enquanto integrantes daquela mesma realidade. Em um dos momentos,
diz ele que “A greve de 1857 foi mais um movimento no qual Domingos, se fosse
ganhador, poderia ter entrado. Se não o fez, decerto conhecia africanos que sim”7 (REIS,
6
Sobre este ponto, ver alguns exemplos de situações no capítulo Deflagração de conflitos. (SOUZA, 2009, pp.
258 – 300)
7 Grifo nosso.
Historien (Petrolina). ano 5. n. 10. Jan/Jun 2014: 200-215.
Felipe Augusto Barreto Rangel
2008, p. 90). Assim, a intercalação de casos diversos, compondo cenários, através da
imaginação histórica, revela alguns dos atuais caminhos da escrita da história. O autor
diz ainda, no epílogo da obra, para não nos distanciarmos muito de nossos objetivos, que
“É possível fazer dessas histórias pessoais uma estratégia para entender o processo
histórico que constituiu o mundo moderno” (REIS, 2008, p. 315).
Neste sentido, as fórmulas e estruturas clássicas de escrita foram dilatando seus
horizontes. Por um lado, o campo de ação do historiador cresceu significativamente, por
outro, algumas crises se configuraram, diante da diluição de certas fronteiras que
conferiam estatuto à disciplina perante as outras ciências sociais. No entanto, um forte
movimento, de caráter empírico, colocando a análise das fontes em primeiro plano,
confere uma trilha segura às perspectivas do historiador, já que “a qualidade da
produção histórica depende do questionário elaborado pelo historiador; a validade das
respostas obtidas remete, para além dos procedimentos empregados, à pertinência da
documentação mobilizada em relação às questões propostas” (BOUTIER; JULIA, 1998, p.
38).
Giovanni Levi, por seu turno, discute as vivências socioculturais de pequenos
vilarejos da região do Piemonte italiano, no século XVII. As fontes que utiliza são
documentos de exorcismos, produzidos pelo religioso Giovan Battista Chiesa, vigário de
Santena, que visitou, em campanha, diversas localidades da região. Através dos contatos
estabelecidos nas vilas, os registros foram tomando as formas das vivências locais, como
num espelho, ao qual o reflexo se apresenta, só que se alterando de acordo com
elementos como grau, distância e luminosidade.
As transformações sociais da região foram exploradas pelo autor, ao reunir os
registros dos exorcismos com documentações latifundiárias e paroquiais. De forma
semelhante a Emmanuel Le Roy Ladurie, o que percebemos são diversas camadas
compondo este formato de escrita, que vão, paulatinamente, se desprendendo das
limitações de situações localizadas, para entender movimentações mais amplas – como o
esfacelamento do sistema feudal, as novas configurações hierárquicas e os níveis de
transformação religiosa. No entanto, as situações específicas apresentadas pelas fontes
não servem unicamente como ponto de partida, perdendo-se no desenrolar das tramas.
Os indivíduos e situações sobrevivem nesta intensa alteração de escalas, conferindo
nivelamentos ao que poderia se transformar em uma estrutura abstrata.
212
Algumas considerações sobre fontes inquisitoriais
Ronaldo Vainfas, ao discutir os meandros dos modelos de história macrossocial
e a microanálise, aponta que
No caso da história geral ou macrossocial, perde-se de vista a história
vivida, a experiência concreta dos indivíduos, em favor de sujeitos
sociais abstratos; perde-se a vivacidade e dramaticidade dos enredos
singulares face às dinâmicas generalizantes. [...] No caso da microanálise
a história se torna capaz de funcionar como a “ciência do vivido”,
oferecendo ao leitor universos sociais que forçosamente escapam ao
olhar macroanalítico – e nem por isso são menos verdadeiros ou reais
(VAINFAS, 2002, p. 149).
Assim, torna-se pertinente pensar a realidade histórica a partir de pequenos
pontos de análise, estudos de caso, por exemplo, de forma a dar visibilidade a pequenas
movimentações sociais, não menos importantes para a História. Os processos
inquisitoriais são elementos importantes, devido ao seu valor etnográfico, dentro destes
caminhos teórico-metodológicos, pois revelam, muitas vezes, a partir de pequenas
situações, reflexos indiciários de todo um contexto em determinado período. Os relatos
não se revelam deslocados de um contexto mais amplo, capaz de lhes fornecer
sustentação suficiente.
Não muito distante de nós, no caso brasileiro, é consenso que a obra fundadora
das mentalidades foi O Diabo e a Terra de Santa Cruz, de Laura de Mello e Souza (2009).
Com fontes inquisitoriais e devassas eclesiásticas, a autora reconstrói o universo da
feitiçaria e da religiosidade popular americana durante o período colonial. Interessante
perceber como tardiamente, no Brasil, estas renovações historiográficas, que já
pululavam na França, chegaram. As mentalidades começaram a balizar as pesquisas em
1960, enquanto só na década de 80 o referido trabalho é escrito. O período ditatorial
brasileiro foi uma das causas desta paralização historiográfica, que permitiu ao
marxismo a ocupação de lugar destacável nas produções do país.
A autora utiliza a mesma noção de circularidade cultural de Ginzburg,
apontando a fusão de crenças em território americano, não sendo possível enquadrar
determinada prática em um sistema cultural específico. O mérito da obra seria não
apenas pensar religião em seu sentido dogmático, mas tratar de uma cotidianidade
imersa nestas demandas particulares, e que foram registradas pela Inquisição
portuguesa. Relações escravistas, males do corpo, demandas sociais de diversas ordens,
são questões que são levantadas nesta obra.
Historien (Petrolina). ano 5. n. 10. Jan/Jun 2014: 200-215.
Felipe Augusto Barreto Rangel
À guisa de conclusão, retomando alguns pontos, percebemos que o papel da
fonte supera as dimensões de ilustração de um dado período. Elas, sustentadas nas
proposições do pesquisador, fornecem elementos que possibilitam a problematização de
um real. Partindo ainda da premissa de que – abandonando algumas das ideias
positivistas – não nos debruçamos sob o passado, mas sim sobre um discurso que foi
construído sobre o passado e que nos aparece a ser transformado em fonte.
Inevitavelmente, o discurso histórico é subjetivo, mas não está completamente distante
da realidade. “Trata-se de uma construção mental imaginária, de uma “invenção”, mas
que é preciso procurar fundar sobre bases firmes, vestígios rigorosamente, testemunhos
precisos, exatos, na medida do possível” (REIS, 2004, pp. 102 - 103).
Por fim, acreditamos na importância da reflexão acerca da formatação de
estudos como os apontados acima. As críticas a trabalhos como estes, que se sustentam,
muitas vezes, em métodos qualitativos, alegam o perigo de se pensar sociedades a partir
de sujeitos atípicos. Estes casos não estão desligados do seu mundo social de origem, por
mais excepcionais que sejam as trajetórias. Cabe ao pesquisador estabelecer uma
estrutura compreensiva de seus recortes, munido de clareza teórica e metodológica,
para poder decifrar os indícios realmente pertinentes. Quantidades não definem, em
regra, o mérito a uma pesquisa. Nas palavras de Ginzburg, “Uma leitura atenta de um
número relativamente pequeno de textos, relacionados com uma crença possivelmente
circunscrita, pode ser mais compensadora (penso eu) do que uma acumulação maciça de
documentação repetitiva” (GINZBURG, 1990/1991, p. 20).
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