A família do ponto de vista antropológico

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A família do ponto de vista antropológico
Área de Integração
A família
O parentesco do ponto de vista antropológico
O estudo das relações de parentesco e a sua importância na organização social dos grupos
humanos tem sido, há muito, um tema de incontornável interesse para as ciências sociais e
humanas, em particular para a antropologia.
Ao analisarem os diferentes modos de organização das sociedades em diversas regiões do
mundo, os antropólogos têm revelado a existência de uma multiplicidade de formas, estruturas
familiares e sistemas de parentesco, cujo estudo tem permitido aprofundar o conhecimento
científico sobre as razões culturais e contextuais que estão na base do desenvolvimento de
determinados modelos em determinados grupos e/ou zonas geográficas.
No século XIX, o etnólogo americano Lewis Morgan, ao estudar as relações de parentesco dos
Iroqueses (um grupo indígena norte-americano), deparou-se com uma organização social do
tipo matrilinear (reconhecimento da descendência apenas pela linha materna) e matrilocal
(fixação da residência do casal em casa dos pais da noiva, após o casamento). A observação
desta relação (matrilocalidade – matrilinearidade) foi também encontrada noutras tribos norteamericanas (ex: os Hopi e os Tlingit) e da Índia (ex: os Khasi) e foi sendo, posteriormente,
confirmada através dos resultados de outras investigações, noutras regiões do mundo.
Em 1937, o antropólogo norte-americano George Peter Murdock, professor da Universidade de
Yale, iniciou um projeto de catalogação de dados antropológicos e sociológicos sobre diversas
sociedades e culturas do planeta. Ao todo, foram classificadas mais de mil sociedades e culturas
diferentes. Neste trabalho, Murdock conclui que as sociedades matrilocais – matrilineares são
uma minoria e que, estatisticamente, o tipo mais comum de organização social dos grupos
domésticos assenta numa estrutura patrilocal – patrilinear (71% das culturas estudadas),
isto é, sociedades com formas de residência e de descendência centradas nos homens.
É de salientar, no entanto, que os tipos de organização social acima descritos, nada têm a ver
com o modo como a autoridade é exercida dentro da família, apesar destes dois aspetos serem
frequentemente confundidos. Neste sentido, quando se trata de analisar quem detém o poder
no agregado doméstico, é possível distinguir dois tipos de família: a família patriarcal
(famílias onde os homens detêm o poder sobre todos os outros elementos) ou a família
matriarcal (quando a autoridade pertence às mulheres). Contrariamente ao que possa pensarse, o facto de uma sociedade ser matrilinear não significa que o poder esteja nas mãos da
mulher. Muitos antropólogos afirmam, inclusivamente, que o matriarcado, enquanto modelo
de autoridade, nunca existiu em nenhuma sociedade, tendo sido registados, apenas, alguns
casos pontuais de mulheres que alcançaram lugares de poder e comando. As sociedades
matrilocais – matrilineares estudadas apresentam, por isso, um sistema de autoridade
predominantemente patriarcal onde, muitas vezes, é o tio materno (o irmão da mãe) que
assume as funções de chefe de família (um dos casos mais conhecidos é o dos habitantes das
ilhas Trobriand, na Papua Nova Guiné, estudados no início do século XX pelo antropólogo
Bronislaw Malinowski).
Nas sociedades modernas ocidentais, a relação entre as "regras de residência" e as "regras de
filiação", reflete-se de uma forma distinta da que se verifica nas sociedades ditas primitivas.
Reconhece-se, atualmente, que tanto nos Estados Unidos da América como na Europa, o padrão
de residência vigente é a neolocalidade (do grego néos, "novo"), ou seja, geralmente, após o
casamento, o casal fixa o domicílio num local diferente da residência dos pais. Também a
bilinearidade (reconhecimento conjunto da linha materna e paterna) parece estar amplamente
difundida nas sociedades modernas, havendo uma tendência para uma maior aceitação desta
face aos modelos mais tradicionais de filiação unilinear.
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Apesar destas mudanças, no que toca à autoridade, muitas famílias continuam a apresentar um
modelo de autoridade patriarcal, fruto do peso da tradição na organização da vida familiar.
Um outro aspeto importante na análise das relações de parentesco e organização social dos
grupos domésticos diz respeito às "regras de casamento", em particular, à prática da
monogamia e da poligamia.
O casamento monogâmico – situação em que um homem só pode desposar uma mulher e
vice-versa – é um fenómeno bastante difundido e terá surgido nas sociedades primitivas,
provavelmente, por razões económicas (ex: na sociedade asteca, embora a poligamia fosse
habitual entre a aristocracia, o mesmo não acontecia entre os indivíduos pertencentes ao povo,
onde os casamentos eram monogâmicos, devido à carência de recursos). Atualmente, nas
sociedades ocidentais impõe-se a monogamia de direito, isto é, a proibição legal de estar
casado(a) com mais do que uma pessoa em simultâneo. Por outro lado, quando falamos de
poligamia, estamos, na verdade, a referir-nos a duas situações distintas: a poliandria –
situação em que é permitido à mulher casar com vários homens – e a poligenia – situação em
que é permitido ao homem casar com várias mulheres.
A poliandria é um sistema de casamento comum nas regiões do Tibete e do Nepal, podendo
ser explicada por fatores de ordem ocupacional e geográfica. Nesta região, a principal atividade
económica dos homens consiste em trabalharem como carregadores ou guias de caravanas,
atravessando a pé os Himalaias, o que faz com que os homens estejam ausentes, por períodos
muito prolongados de tempo. Para não ficar sozinha, é normal uma mulher casar com dois ou
mais homens, irmãos entre si (poliandria fraternal). Desta forma, a proteção da mulher é
sempre assegurada por um dos maridos, que permanece em casa enquanto o(s) outro(s)
irmãos se encontram a trabalhar. Outro exemplo de poliandria pode ser encontrado em
sociedades onde se pratica (ou praticava) o infanticídio feminino. Este costume ancestral,
frequente em algumas etnias do sul da Índia (ex: os Tóda), faz com que o número de homens
naquelas sociedades seja muito superior ao número de mulheres disponíveis, proporcionando,
assim o estabelecimento de casamentos poliândricos.
Estatisticamente, são poucas as sociedades que adotam a poliandria, sendo a situação de
poligenia – um homem que casa com várias mulheres – o fenómeno mais frequente no quadro
dos casamentos poligâmicos. O exemplo mais paradigmático é, certamente, o dos países
muçulmanos, onde esta prática se fundamenta na seguinte passagem do texto sagrado do
Corão:
Se temerdes ser injustos no trato com os órfãos, podereis desposar duas, três ou quatro das que vos
aprouver, entre as mulheres. Mas, se temerdes não poder ser equitativos para com elas, casai, então, com
uma só, ou conformai-vos com o que tender à mão. Isso é o mais adequado, para evitar que cometais
injustiças. (Sura IV, versículo 3)
Neste sentido, apesar de se ter a ideia que todos os homens muçulmanos têm várias mulheres,
tal não corresponde à realidade. Atualmente, na sociedade islâmica, a poligenia é praticada
apenas por uma minoria, constituída por aqueles que detêm maiores riquezas e/ou posições
religiosas mais conservadoras e tradicionais. A poligenia é também frequente nalgumas tribos
da África subsariana, como é o caso dos Zulu, uma sociedade agrícola da África do Sul, para
quem o facto de ter várias mulheres, eleva o estatuto social da família. Para além disso, a
inclusão de novos membros (mulheres) na família através do casamento, é perspetivado como
uma importante vantagem e uma fonte acrescida de rendimentos, devido ao aumento do
número de indivíduos disponíveis para trabalhar na terra.
Para concluir, podemos dizer que apesar de a família ser um fenómeno universal, presente
em todas as sociedades humanas, as formas de organização social assumidas e praticadas
diferem muito de cultura para cultura, em virtude dos diversos fatores (económicos, culturais,
religiosos ou outros) a que cada sociedade se encontra sujeita.
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