sem graus de separação

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sem graus de separação
sem graus de separação
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sem graus de separação
Noga Sklar
sem graus de separação
1ª Edição
POD
Petrópolis
KBR
2012
Edição de texto KBR
Editoração KBR
Capa KBR sobre desenho de Gustav Klimt - Seminu reclinado virado para a direita, 1914 (Arquivo Google)
Copyright © 2012 Noga Sklar
Todos os direitos reservados à autora.
ISBN: 978-85-8180-065-3
KBR Editora Digital Ltda.
www.kbrdigital.com.br
[email protected]
55|24|2222.3491
B869- Literatura Brasileira
Noga Sklar é editora, escritora e cronista. Nasceu em
Tibérias, Israel, em 1952. Graduou-se como arquiteta no
Rio de Janeiro e desde 2004 dedica-se com exclusividade
à literatura. Fundadora da KBR Editora Digital, vive atualmente com seu marido Alan Sklar nas montanhas de Petrópolis, RJ, Brasil, onde escreve seus livros e edita os títulos da KBR.
Email: [email protected]
Para A.
Se eu não for por mim, quem será?
Se sou só por mim, o que é que eu sou?
E se não for agora, quando?
Talmud, Pirkei Avot, 1:2
Nota da autora... e editora
sem graus de separação, assim, tudo em minúscula, é a reedição de meu
romance Hierosgamos, meu segundo livro publicado, uma “bíblia” erótica de nome difícil que na época estava à frente de seu tempo, eu acho,
e pouca gente leu. Teve uma edição reduzida em 2006, eu estava com
medo, ainda mineira, desconfiada, reprimida, mas, para meu alívio,
quando o reli com o olho de editora (na época eu era apenas escritora,
mas hoje, quando vos escrevo, tenho três anos de vida de editora na
KBR, 100 títulos editados e uma vasta prática adquirida), achei melhor
ainda, ufa. É meu presente de bodas pra vocês.
Na época fui bastante criticada porque o livro “tinha muito diálogo”, ou não passava de uma “masturbação a dois”, de duas, uma: ou
quem o leu era muito moralista ou não entendia de amor via skype,
coisas que, creio, com o tempo tenham se diluído.
Outra crítica feroz foi que vou construindo o clima e, na hora H
— que para eles é a Hora do Encontro Ao Vivo —, sou rápida e rasteira,
mas, gente, o livro não é sobre sexo ao vivo, mas sobre sexo na internet,
entenderam?
O que se seguiu (nem digo “na vida real”, pois somos da época
em que real e virtual, principalmente com o advento do Facebook, são
cada vez mais uma e a mesma coisa) fica ainda mais fácil de entender
se vocês ficarem sabendo que Alan e eu estamos juntos há oito anos, e
por isso o presente de bodas que citei acima. Já transamos intensamente
bem mais de mil vezes depois disso, contamos no começo, mas depois
relaxamos. Então quantas são não posso contar.
A quem fizer questão de saber, digo, de ler como foi nosso casamento depois deste auspicioso início, informo que Hierosgamos foi
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Noga Sklar
seguido por outros seis livros até agora, e entre Alan e eu não há por
enquanto o risco, nem grau nenhum de separação.
Boa leitura, e não se esqueçam, amor e sexo são das melhores
coisas desta vida, pois “é deles que vêm as crianças”, Alan acrescenta,
teclando no skype no primeiro andar de nossa casa em Corrêas, que,
aliás, entre outras coisas, está perfeitamente descrita no livro, “que tal
essa como profecia”?
Noga Sklar
Petrópolis, 7 de outubro de 2012
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Sumário
Nota da autora... e editora • 11
Prefácio • 15
Quer saber o que eu acho desses sites de
encontro? • 17
1. Encontro • 19
Segunda-feira, 15 de novembro • 19
Terça-feira, 16 de novembro • 21
Quarta-feira, 17 de novembro • 23
Sexta-feira, 19 de novembro • 25
Sábado, 20 de novembro • 26
Segunda-feira, 22 de novembro • 28
Terça-feira, 23 de novembro • 30
Quarta-feira, 24 de novembro • 37
Quinta-feira, 25 de novembro • 42
Sexta-feira, 26 de novembro • 42
Sábado, 27 de novembro • 43
Domingo, 28 de novembro • 44
Segunda-feira, 29 de novembro • 44
Terça-feira, 30 de novembro • 52
Quarta-feira, 1o de dezembro • 64
Terça-feira, 2 de dezembro • 79
Sexta-feira, 3 de dezembro • 81
Sábado, 4 de dezembro • 88
Domingo, 5 de dezembro • 89
Segunda-feira, 6 de dezembro • 89
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2. Êxtase • 99
Terça-feira, 7 de dezembro • 99
Quarta-feira, 8 de dezembro • 112
Quinta-feira, 9 de dezembro • 126
Sexta-feira, 10 de dezembro • 132
Sábado, 11 de dezembro • 144
Domingo, 12 de dezembro • 145
Segunda-feira, 13 de dezembro • 148
Terça-feira, 14 de dezembro • 160
Quarta-feira, 15 de dezembro (um mês
intenso) • 167
Quinta-feira, 16 de dezembro • 174
Sexta-feira, 17 de dezembro • 186
Sábado, 18 de dezembro • 202
Domingo, 19 de dezembro • 203
Segunda-feira, 20 de dezembro • 205
Terça-feira, 21 de dezembro • 223
Quarta-feira, 22 de dezembro • 232
Quinta-feira, 23 de dezembro • 245
3. Fusão • 251
Sexta-feira, 24 de dezembro • 251
Sábado, 25 de dezembro • 255
25 de dezembro. Ainda. • 256
Domingo, 26 de dezembro • 256
Segunda-feira, 27 de dezembro. É hoje. • 256
Are you Noga? • 259
Prefácio
O amor é forte, é como a morte! Cruel como o abismo é a paixão,
suas chamas são chamas de fogo, uma faísca de Javé!
(Ct, 8,6)
Noga Sklar confessa que não é o virtual a linha de força de sua ficção, mas o real, descrito sem preconceitos. Do naipe de escritores que
mesclam, de maneira desvelada, vida e literatura, nos adianta que seu
romance é também autobiográfico. Penso que se desnudou em demasia,
todavia, nos faz cúmplices na catarse vivida pelo gratificante encontro
virtual, que se findou real. E o real vivido nos é entregue na forma lírica,
sedutora e sensual de sem graus de separação.
Depois de dois maridos, nenhum filho, anos de um “luto infindável”, no limbo, ela sonha com a sorte de um amor tranquilo, e ele está
online: um americano formado em literatura inglesa, que fez mestrado
no Neguev, um filósofo romântico, que fala francês, hebraico e mestre
em inglês, com alma de artista e sutilmente irônico.
Vivem quarenta e dois dias de intensos diálogos, onde afloram
as profundas inquietações de Noga, com ênfase em sua formação transcultural, espírito e sensibilidade. Nos defrontamos com a corajosa judia
que deixou de jejuar no Yom Kipur, disposta a quebrar regras, e nos
seduz com sua história de amor. Com despudorada narrativa erótica, da
pele à cona, brinca com palavras de múltiplos sentidos, e nos desperta
para o desejo de também construir uma vida de amor.
De personagem de Almodóvar transforma-se na morena do
Cântico dos Cânticos; mostra-nos seu lado brilhante, numa disposição
surpreendente para se apaixonar. Como é tímida, faz amor em inglês, e
prova a doçura do leite e do mel, eretz zavat halav, como Semadar, na
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Noga Sklar
cama com Salomão. Não se contentando em viver apenas um amor platônico e virtual, por suas trilhas secas, com a cona pingando de úmida,
lança-se sobre o mar, dividindo-o; e voa milhas para compreender o
dinamismo e a essência do amor, que se perpetua de frente para o Cristo
Redentor, no Alto Leblon.
Henrique Chagas, escritor e editor do portal literário Verdes Trigos
(www.verdestrigos.org)
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Quer saber o que eu acho desses sites de
encontro?
Não tenho a menor paciência pra preencher aqueles perfis babacas. Minhas preferências são exóticas: sou vegetariana, gosto de música clássica
e mais ainda, de silêncio. Não curto campeões de bilheteria, nem disco
mais vendido. No meu windows não tem game nenhum. Vai ver, é porque já passei dos 50, e apesar de viver grudada no monitor, uso a rede
o tempo todo pra pesquisar, só trabalhar. Não minto: é aí que começa a
ficar difícil fazer sucesso em sala de chat. Se eu for logo admitindo que
sou baixinha, em forma “pra minha idade”, e que procuro um relacionamento sério depois de dois casamentos fracassados (um deles em 1997,
pela internet), já danço logo de cara.
Estou aqui, viva. Sou amor, sou energia, sou eu, sou você. Somos
parte de um todo único, mergulhados no oceano coletivo das mentes humanas.
Foi o máximo que consegui chegar perto de uma apresentação
pessoal — de me deixar catalogar com a maior má vontade —, porque sou capricorniana, não desisto nunca. Pra ser sincera, minha vida
está uma merda. Estou sozinha, saio pouco, não transo há mais de seis
anos. Desde que me separei do Marcos, venho amargando um luto infindável por meu sonho de alma gêmea: morto e enterrado. Vendi o
apartamento que eu tinha e investi o dinheiro num fundo; vim morar
com minha mãe senil. Nunca nos demos muito bem... mas achei mais
prático, já que ela me ocupa em horário integral — a saúde piorando
um bocado nos últimos meses —, e mesmo trabalhando em casa quase
não me sobra tempo, imagine pra namorar... De vez em quando bate
um desespero, e é nesses momentos, por pura falta de opção, que reno| 19 |
Noga Sklar
vo minha fé nos encontros virtuais: um jeito de conhecer alguém sem
sair de casa, e por email, modéstia à parte, eu me garanto. Escrevo bem.
Me divirto demais com um papo de sedução, não tenho problema pra
me deixar levar. Faço poesia, faço mistério, envolvo. Pena que eu raramente encontre alguém que me interesse, que me inspire, desperte esta
dama da noite que se cansou de espalhar perfume à toa e foi dormir...
em cama de solteiro, na casa da mamãe. Me conformei com a solidão,
verdade, pelo menos enquanto ela estiver viva. Por mais que eu pense não vejo outra saída, até parece que desisti precocemente de viver...
Mas esta tarde, afogada no spam do JDate, resolvi dar uma circulada por
lá. Injetei o marketing agressivo deles na veia do meu desânimo, só pra
arejar... e dei de cara com um candidato bem bonitinho, aqui do Leblon
mesmo. Dei um alô pra ele online — sem me associar — e desliguei.
Será que vai ser amanhã? Meu dia de Meg Ryan?
Boa-noite, mãe. Boa-noite, Noga.
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1. Encontro
Segunda-feira, 15 de novembro
Apesar do feriado, acordei cedo. Antes de sair pra correr ligo o computador, só pra baixar emails. Opa! Tenho mensagem do JDate! Mas
não custo a descobrir que pra ler preciso gastar 35 dólares, pagar pelo
mês inteiro de uso. Hesito... meio cética meio seduzida pela esperança
— fraquinha — de melhorar o futuro... Gasto? ou não? Decido arriscar:
digito os dados do cartão de crédito e... estou dentro! A ilusão, porém,
dura menos de cinco minutos: o email é de outro cara, um americano...
achando graça no meu perfil insignificante, eu, hein?... Além do mais,
fui clara: NÃO QUERO ME MUDAR. Em todo o caso, já que estou
aqui, não custa dar uma olhada no tal de Isaac, com seu nome judeu e
um olhar estranho, meio de banda. Mas de imbecil ele não tem nada:
Muito, très inteligente... Formado, literatura inglesa. Mestrado no
deserto do Neguev... Morei em Paris, Amsterdã... Joalheria em Waikiki
durante dez anos... O pacífico sul, visão beatífica, quintessencial, natureza em sua máxima beleza. Fui comerciante, atacadista de pedras preciosas... Em 1985 fui ao Taiti comprar pérolas negras, negociei pedras em
Bangkok... Comprei 30 alqueires no meio do mato — o lago de Walden
e seu mito romântico — meia milha de estrada de terra, floresta, riacho,
lagoa, etc... Vendi... Invernos de Indiana, a morte da alma (ou de como
a realidade e o mito raramente coincidem)... Dois filhos lindos... Sou naturalista, um filósofo romântico. Vivi em São Francisco, no alto de Telegraph Hill. Fiz teatro de improvisação no verão de 1968... Violão clássico,
ex-mímico... Falo francês, hebraico, sou mestre em inglês, dei aulas por
alguns minutos... Poeta, artista, sutilmente irônico... Mench... bom pai...
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Noga Sklar
Um esteta... consciente, determinado. Levei a vida do jeito que quis, fiz 40
antes de ter meus filhos... que conferem à minha existência um significado
profundo: um norte, o centro da alegria interior. As mulheres que tive foram pintoras, artistas, inteligentes... criativas e brilhantes. Ennui... o tédio
chegando... Tempo de levantar âncora, cruzar o horizonte.
Huummm, interessante. Vou em frente.
Par perfeito: inteligente, irônica, poeta, artista, forte, viajada, equilibrada, em forma, espiritualmente desenvolvida... consciente do judaísmo.
Relacionamento ideal: um toque de graça, baseado em força e não em
carência... autônoma, que não dependa do outro... hierosgamos, tão verdadeiro... o transcendental, a beleza possível entre um homem e uma mulher... equilíbrio, equivalência, mútuos centros de gravidade... no centro
da consciência... o tantra... a manifestação da graça, luz compartilhada...
sem sombras... abertura total... sem medo.
Gente! Sou eu! Resolvo abrir a janela do chat e... coincidência: o
estranho está online.
— O nome é Alan: [email protected].
Dou meu email. Não falo quase nada, mas ele se anima:
Noga: existir em estado transcendental (transcender o mundano,
o urbano... as coisas feitas pelo homem)... O Eu comparado ao orgânico,
ao que está vivo, o universo e por consequência o universal... Deus... Viver
em estado de êxtase... o idílico... o beatífico... Que criação do homem chega aos pés da maravilha de um riacho? De uma salamandra? De um recém-nascido, que graça... na vida, na natureza. Estar no Haleakala (casa
do sol), o ponto mais alto da terra em relação ao fundo do mar... O que se
pode fazer de importante? Já está tudo feito. Viver aberto para o amor...
em harmonia na eternidade... Limpar a cabeça da idiotice do ter, do consumir... Vislumbrar o aqui, o agora, a beleza extasiante do todo... São estes
alguns elementos que caracterizam o naturalista filosófico... o romântico
idealista... o poeta/artista. A primeira universidade que frequentei foi a
UCLA... Fiz o curso básico de medicina, trabalhei aos 17 — no laboratório de neurofisiologia — dissecando invertebrados, tudo tão sem sentido...
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sem graus de separação
A poesia, a filosofia, a literatura... é que despertavam meu interesse. Um
existencialista: somos o que fazemos... E depois Paris... Amsterdã... Jerusalém... a vida para se viver, o amor... Conhecer o amor para conhecer
Deus...
Embarco na conversa dele. Penso muito em Deus, Alan, que pra
mim é isto: um mar de energia com a consciência humana mergulhada nele. Melhor: nossas mentes conscientes fundidas numa só, emitindo energia. Quanto ao amor... é o prazer magnético, o sentido da vida
consciente. Graças a ele nos encontramos nesta vasta rede humana... Me
pergunto também sobre a realidade... Gosto, como você, de refletir, de
explorar, de desvendar... de trocar ideias só pra curtir.
A questão da realidade é autoevidente. Você sabe o que é quando
a experimenta... É estar no centro do universo, na presença de Deus... no
eterno momento do óbvio... do que se manifesta, a inteligência por trás da
mera aparência... Extraordinário é quando o despertar conjuga o princípio feminino: o eu testemunhando o Eu. O caminho da meditação, Satori... 1996... chegando de Paris, numa galeria de arte em Los Angeles,
três da manhã... nada pra descobrir... A dúvida nos isola, e separados do
todo vivemos no sonho. Como cientista, passei os sete anos seguintes tentando entender a experiência, do ponto de vista lógico, acadêmico... me
encontrei no deserto do Neguev, numa meia-noite qualquer de dezembro,
sob um vento de 130 quilômetros... Fui entrando no redemoinho até estar
cercado de temporal por todos os lados. Molhado, derrubado, gritei: heinani! Estou aqui! O que queres de mim? E no silêncio da tempestade não
houve resposta alguma... agradeci... a metafísica toda me cansou demais,
algo que só se compreende pelo coração... Há que entregar-se a mente, o
intelecto... um ato de fé: assim como o amor.
Terça-feira, 16 de novembro
Entrando atrasada na sala de chat, não o encontrei. Eu já vinha elaborando assuntos: nossa, Alan. Impressionada com você. Tive experiên| 23 |
Noga Sklar
cias místicas e escrevi sobre isso: hoje em dia estou mais durona, menos sonhadora... a sensibilidade, no entanto, começa a reclamar. Vou de
email mesmo: ontem à noite sonhei que corria, sem parar, no meio de
uma multidão. De repente, todo mundo sumiu, levando junto a inesgotável energia que eu sentia... Acordei muito bem disposta. Me conta
mais... Je t’embrasse.
Minha cara: muito interessante, os corredores e você... Todos corremos sozinhos... Estranho valorizar no sonho a presença alheia, ou que
outros possam, de alguma forma, te energizar... Que você acordou contente... parece sugerir que dispensa permissão para ser independente: a afirmação do eu, mas quem sou eu pra dizer... De qualquer forma, acho uma
delícia me corresponder contigo... Quanto a moi, estou em St Augustine,
Flórida. Sou fabricante e atacadista de joias... Me recupero de um grande
amor... uma pintora: Katherine Miller... e do jeito que o amor tem de rasgar o eu... deixar para trás a casca do eu, dilacerar a alma... me deixou em
frangalhos: estou no limbo, minha cara, mas o amor é o amor, vale a pena
o luto... estarei curado em breve... Crio meus filhos à distância... o mais
velho — há dois anos na universidade — passou dois meses comigo a caminho da marinha... um ser especial que amo muito. O outro está na High
School, acabou de abater um alce de nove pontos e 120 quilos... Trabalho
na loja do meu irmão, que já foi minha... vendi pra ele no ano passado,
e aguardo o fim desta fase, os filhos crescidos, a alma recuperada... Se é
por amor, toda a dor vale a pena... e no entanto, convalesço em lentidão
excruciante... A vida sem amor não faz sentido algum... Je t’aime.
Incrível, Alan, como a vida pode mudar de um dia para outro,
enquanto a gente dorme. Me associei ao JDate, pra ler uma mensagem
só: a sua. Tive dois maridos, nenhum filho. Meu segundo casamento foi
um lindo conto de fadas... que acabou em pesadelo. Encontrei o Marcos
online, há sete anos... nos apaixonamos rapidamente... um mês depois
nos encontramos ao vivo, e logo estávamos casados. Fui morar com ele
em Brasília, deixando pra trás a casa, o trabalho, os amigos, a família. Na
lua-de-mel alugamos um carro e viajamos pela Califórnia: eu e aquele
homem maravilhoso... mas disfuncional em relacionamentos, arquite| 24 |
sem graus de separação
to famoso (também já fui arquiteta um dia, designer famosa...), dava
aulas na universidade. Sei bem onde é o limbo, já estive lá, não se está
nem vivo nem morto, só vagando na névoa... esperando alguma porta se
abrir. E por falar nisso, busquei Katherine Miller no google: belo trabalho, bela mulher. E daí? De minha parte, mesmo meio quieta, continuo
procurando o meu amante tântrico...
Quarta-feira, 17 de novembro
É bem verdade que a vida pode quebrar, de repente, a monotonia
cotidiana... com toques de sincronicidade... diz o email dele, logo de manhã. O homem não falha. Foi por sorte que recebi teu recado. Se você não
entrasse online, com seu “Oi, Alan”, nunca teríamos falado. Mil desculpas
por não te encontrar ontem... Quem sabe hoje, lá pelas três... Amor e limbo... Quanto mais profundo o amor mais densa a névoa da separação,
esperando o eu emergir... Fluindo, como gotas de mercúrio sob a força da
gravidade. Morceau par morceau, o eu ferido desperta... Et maintenant?
Califórnia... Tantas histórias... No inverno em Tahoe, fugindo pra casar, a
lua cheia no lago... meia-noite, o fogo na lareira... a manhã embranquecida pela neve... Eu tinha este acordo comigo mesmo, de acreditar que o
impulso inicial (de casar) era a expressão mais elevada da existência, e
apesar da dúvida martelando a mente, fui até o final, ao cartório... o juiz
estava fora, em Carson City: fim da história. 1967, que ano incrível... O
teatro da mente, Herman Hesse, São Francisco... Busquei você na internet... sois múltipla, Noga. Espero falar contigo em breve. Je t’embrasse...
“Oi, Alan”: benditas palavras! Faço uma ideia de como era bom,
morar na Califórnia nos anos 1960, 70. Nossa base cultural estava lá, e
até mesmo a magia oriental chegava a nós através do filtro da cultura
americana. O Brasil penava sob a ditadura, e o descompasso era grande... Pra assistir a bons filmes, ou peças, ou ir a concertos... só viajando. Tudo era censurado aqui! Pra classe artística, pior ainda. Enquanto
a América cantava nas ruas a liberdade de Hair, a gente mal podia se
expressar, sem internet nem nada... você sabe (risos). Bem mais tarde,
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Noga Sklar
em 1994, me envolvi aqui no Rio com um “xamã urbano” do Novo México. Comecei como intérprete nos workshops dele, trabalhei com ele
em Santa Fé. Influenciada pela estética indígena americana, criei joias
usando couro, dentes, chifres — símbolos animais. Quis me mudar para
os Estados Unidos... mas não tive uma oportunidade boa. Eu diria até
que as minhas memórias mais fortes, emocionais e espirituais, estão
em inglês... É por isso que a língua sai fácil, ainda mais pra expressar
sentimentos, impressões. Ouvi-lo falar, direto da fonte... nossa! Curti
demais. Os anos 1960 foram de enlouquecer, ele conta: mind-blowing
magic. Por 40 anos tentou entendê-los... do Taiti, do Pacifico Sul... até o
meio do mato. Trabalhou com grupos de terapia, foi ator... Aprendeu a
ler a mente... sentir o que não era dito... Viveu nas entrelinhas, evitou a
loucura. Adora os filhos:
São minhas obras primas... Me dei ao luxo de passar o tempo inteiro, todo dia, nutrindo a existência deles... A primeira palavra do meu
mais velho, em Waikiki Beach, foi: uau!
Conta que ensinou a eles fidelidade a si próprios, a nunca ceder... nunca fazer nada que os obrigue a mentir.
Tanta gente não vive a própria vida... passa pelo mundo sonhando... separada de si pela ilusão da existência.
E meu retrato no JDate, ele quer saber: é recente?
Cresci na Califórnia... e superei. Tão comum ser condicionado por
seu meio, não fazer ideia da realidade fora de seu mundo... confundir linguagem com fatos... Sempre me interessei pelo inusitado, o que continua
existindo apesar da nossa opinião: amar, nascer, Deus... respirar... descascar a aparência, como uma cebola, até descobrir o essencial... o eterno
agora. Viver é fazer o bem... não fazer mal...
Meu retrato, feito em estúdio, é de alguns meses atrás. Resolvo
ser honesta com ele, e mando outra imagem: eu e meu nariz judeu há
cinco minutos, mal iluminados e registrados numa máquina péssima.
Se quero mesmo que ele goste de mim, melhor desistir desta... Cabelo
ao natural, poucos fios brancos, óculos só pra navegar — normalmente
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sem graus de separação
lente de contato (uma só, vista cansada... me explico). Peço pra ver uma
foto e digo que o amo.
Sexta-feira, 19 de novembro
Que tal um software de comunicação instantânea, Alan? Pra gente se falar fora do JDate? A foto ele não manda, mas esclarece: usa
barba às vezes, atualmente sans barb. Fala do trabalho e do padrasto
dos filhos, um cientista de foguetes de Michigan que leva os meninos pra caçar. Prefiro homem sem barba, detesto caçadas e militares.
Tu me plaît, ele me escreve, mas não gosta da joia que mostrei, mais
parece um sino de vaca: não deu pra ver as pedras... e o peso? 25 gramas, só para vacas bem ricas, e nem barulho faz... gostei do fio de couro... e as pedras, são móveis? cravadas num chatão? ou num pedaço de
charneira? é, pesada demais, com ímãs e uma placa inoxidável dentro.
Fiz a peça — me justifico —antes de descobrir que o melhor jeito de usar ímãs
é explorar a atração entre os pólos... a vida é pesquisa, descoberta, evolução.
As pedras que escolhi — há quem afirme — atraem o amor, a alma gêmea.
Quanto ao serviço militar, ele explica que o filho tem uma bolsa de
estudos de 40 mil dólares na marinha, e pela frente uma carreira de
engenheiro hidráulico de aeronaves. Comenta que os jovens americanos costumam dar trabalho, arriscam a vida; a marinha oferece proteção. Se o Daniel resolveu ser piloto, que Deus o proteja, tomara que ele se dê bem... na verdade não prestei muita atenção...
Não é piloto, ele me corrige: é aviação naval. O ambiente da caça é essencialmente masculino, eles comem a presa... não era minha intenção te causar repulsa... Lembra que sou vegetariana, e diz que gostou da foto. Pede
pra eu baixar o MSN, fica poético. Fala do sol, da brisa fresca e de promessas, de Aquário... É o signo dele, e eu fazendo o maior esforço pra evitar
o assunto! Alan! Cadê a foto? Quantos anos você tem? Sou xamã, meu
querido, entendo o aspecto sagrado da caça. É mitzvá aproveitar todas as
partes do animal, mas se for pra comer, prefiro ser vegetariana. Quer provar o meu cardápio? Ah! Mitzvá. Ele fica contente com o termo judaico.
Shabat shalom... pratiquei a disciplina por quase 30 anos. No sé| 27 |
Noga Sklar
timo dia, interromper toda ação... Aceitar o sagrado conscientemente... Pão e vinho ao cair da noite, evitar a superficialidade, reciclar a alma... O ritual ancestral... velas acesas... a santidade: a última mulher com quem a compartilhei foi Katherine, quel dommage... sinto tanta falta... Acho o schull basicamente desnecessário... Uma peregrinação anual me basta, somente em Yom Kipur. De minha parte, desisti completamente da religião há uns três anos.
No primeiro Yom Kipur sem jejum, esperei que Deus me derrubasse
com um raio... mas sobrevivi, e mudei de opinião a respeito (de Deus).
Não curto religião, mas aceito acender uma vela de vez em quando,
tomar um banho de imersão bem quente com você... celebrar o sagrado, santa vibração amorosa. Sim, temos muito em comum. Não é
que eu confie em astrologia, é mais como diversão... uma boa e bela
fonte de pensamento simbólico, Alan: me manda logo os teus dados.
Como nunca tive filhos, arrisco dizer que minha obra-prima sou eu
mesma. Sendo uma mulher passional, vivi intensamente; estou equilibrada agora, levando uma vida simples, mas com princípios firmes.
Acredito, como ele, que só pode ter sucesso um relacionamento entre
pessoas fortes, independentes, querendo compartilhar tudo. Sou corajosa, muito transparente (uma opção difícil, às vezes). Em janeiro faço 53,
e apesar de nunca sair bem na foto, pareço mais jovem do que realmente
sou. Muito ativa e saudável, flexível, sem botox nem silicone, e muito
menos chumbo na cabeça (por causa da tintura, entende? — afirmo,
meio séria meio de brincadeira — deve ser por isso que os homens são
mais inteligentes...). Tenho um corpo agradável, quente, tratado com
carinho, e planejo viver até os 150. Não consigo que ele fale de si próprio: não do Alan-de-Waikiki, nem do Alan-pai-de-dois-garotos, Alan-ex-pintorafamosakatherine, mas do Alan hoje, Alan fora do limbo,
se permitindo ser feliz: segundo capítulo de Alan. Procurávamos um
relacionamento, mas nem tanto... Acreditamos ser possível encontrar
alguém, mas será que existe? Apesar de hesitante, feliz ao me descobrir
assim, pronta pra sonhar, recomeçar, me animar: disposta a amar de
novo, a ser intensa e inteira de novo, outra vez me sentir muito viva.
Te amo, Alan. Ok. Pronta pra teclar.
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sem graus de separação
Sábado, 20 de novembro
Boker tov. Será que exagerei, gente, comentando sobre o Shabat? Será
que fui racional demais? Me afastei da religião faz pouco... e o rompimento ainda dói. Quando casei com o Marcos, decidimos seguir o ritual, incluindo as sete voltas tradicionais ao redor da noiva, muito emocionante mesmo. Em Brasília, a primeira providência na família Grinbaum foi celebrar o Rosh Hashaná... preparar um jantar judaico, sim,
sei cozinhar como a vovó fazia, mas acho a comida gordurosa e nada
saudável. Quer mesmo saber? Sim, continuo casada. Judeu praticante é
meio chauvinista, não? Mulher não vale grande coisa... o divórcio é até
permitido, mas é tão doloroso, complicado e caro... e ainda por cima,
não tenho a menor ideia do paradeiro de ex-marido, pra pedir que assine o (des)compromisso. Olha aí um bom motivo pra ser contrária à
fé, às tradições... Como a cerimônia não teve efeito civil, sou legalmente solteira, ou melhor: divorciada do primeiro marido, uma vida muita
longa pra contar em meia dúzia de palavras. Ele me conta que é místico,
na tradição dos essênios... peregrinação a Israel? Só em último recurso...
o ritual resulta em consciência — é ele quem diz — e os totens judaicos
são tão bons quanto quaisquer outros, olha o exemplo da estrela-de-davi, essencialmente o yin e o yang na solução dos opostos... E por aí vai.
Encaro comida como remédio e não me apego a nada, o mundo
esgarça a alma... Pra viver como um monge compre o mosteiro, o que justifica o riacho, a floresta, a lagoa... os 30 alqueires do meu retiro. Devemos
estar sozinhos para encarar Deus, não em grupo... O ritual do Shabat,
para mim, é uma garrafa de vinho, uma chalá... nada mais. Suficiente
para interromper o fluxo, um ponto decimal marcando um começo, e ao
mesmo tempo um fim. Casamento é isto, Noga, consciência compartilhada... Luz compartilhada, sem sombras... Te amo.
Sinto muito que ele não esteja online agora, querido Alan...
Concordo com ele em tudo... nada a acrescentar. Acabei de assistir ao
“Antes do Pôr-do-Sol” e chorei um bocado... Me identifiquei um pouco
com o moço, um pouco com a moça — totalmente dona de seu tempo
— moradora, como eu mesma fui, de uma casa très charmant... A diferença é que, pensando bem, no meu passado não existe ninguém assim,
que eu sonhe em reencontrar, ou que tenha significado tanto a ponto de
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Noga Sklar
eu sentir que a vida pra mim parou ali. Tudo o que quero são momentos inesquecíveis num futuro próximo, hoje, agora... E acho isso muito
bom. Meu jeito de ser mística é ter deixado pra trás muitas linguagens:
uma opção espiritual meio hesitante no momento... Não sei bem o quê,
ou onde procurar... Então o encontro par hazard, e começamos esta troca... estou contente, e por enquanto basta. Espero te encontrar online
nas próximas horas, meu amor...
Segunda-feira, 22 de novembro
Cara Noga: espero que esteja bem, soou meio triste neste último... chorosa...
solitária. Sei bem do que está falando... Li o artigo que você me mandou
sobre Deus, genética e crença... Deixar o intelecto de lado — através de meditação e disciplina — é, como tudo o mais, um aprendizado... A tendência
a se preocupar com isso, sim, é certamente genética... como a inteligência...
Cada um experimenta a consciência de Deus do jeito que pode, do jeito
que dá. A vivência mística... como parte da parafernália humana é rara,
e por isso o xamã, o tzadik... o assombrar-se... o suspender-se a mente... o
despertar-se o ser. Ansioso por teclar com você no chat, como é que se faz?
Alan! Já instalei o soft... Te amo. Estou online.
— oi!
— meu Deus, Noga, as maravilhas da comunidade intelectual
no Vale do Silício!
Me espanto: você nunca experimentou? Nem eu. Curti muito,
no fim de semana, falar com uma amiga! Como foi ele que recomendou,
achei que já era expert, mas não. Foi essa a estreia.
— incrível...
— no fim de semana senti sua falta, Alan.
— fiquei fora do ar... trabalho e tudo mais... mas aqui estou, nesta brilhante segunda... comparecendo de manhã cedo.
Sobre o “Antes do Pôr-do-Sol”, com Ethan Hawke e Julie Delpy:
em outro filme de nove anos atrás, com os mesmos atores, um homem e
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uma mulher se conhecem no trem noturno para Viena. Passam a noite
juntos, e combinam um encontro dali a seis meses, que nunca acontece... Meio por acaso se reencontram, nove anos depois — é o segundo
filme —, os mesmos atores, desta vez mais velhos (como os personagens). Passam juntos poucas horas em Paris, antes do voo dele: puro
diálogo e um passeio pelas ruas, não vou contar o final. Adoro caminhar
em Paris, ele diz.
— tem algum tema em especial ou é só o relacionamento? no
gênero filme noir, meio depressivo, mais para o bermaniano?
— não, depressivo não... é forte, romântico, cheio de luz. com
um final profundo, mas feliz.
— bergman, não berman, desculpe... não sei se vou ver, mas
mesmo assistindo (a não ser que seja um suspense ou um policial) quero saber o fim agora... profundo... sempre gosto do profundo... a vida é,
na maior parte do tempo, como um inseto esmagado: sem profundidade nenhuma.
— há certamente um tema, Alan, e você? gosta de cinema? além
de policial? ou de suspense? eu adoro, mas já vi todo o Bergman que
merecia... e desisti de Fassbinder pouco antes dele morrer.
— sim, sou grande fã, voraz... gosto de bom cinema... por volta
de 68 escrevi o roteiro de alguns filmes, até me ofereceram emprego na
escola de cinema da UCLA... mas eram os anos 1960, e por isso... em vez
de aceitar, fiquei morando num barco em Sausalito.
— e curtiu muito? filmou a experiência?
— qual? SF? só na memória... a vida em si já era um filme...
Eu amava São Francisco nos anos 1970, mas ao voltar lá há seis
anos já não gostei tanto. Prefiro Los Angeles com as praias, as salas de
concerto, os museus. Para ele, a vida é assim mesmo... Morou em North
Beach, no alto da Telegraph Hill... pode ficar com o resto da cidade, ele
diz. Tenho uma pergunta.
— adoro Chinatown... eu costumava andar por lá às 2 da manhã
fazendo mímica, o rosto pintado de branco... em câmera lenta, destoando completamente dos chineses hiperativos. pergunte.
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Noga Sklar
— o que você acha da gente se encontrar?
— ei, Noga, pensando em quê?
Posso tirar uns dias no fim do ano, e realmente preciso de férias.
Andei pensando, verdade, em passar uma semana na Flórida... Mas ele
hesita.
— nem sei bem o que está acontecendo hoje... Daniel no fim do
treinamento naval perto de Chicago, a formatura deve ser nessa época...
parece tão estranho, Noga, trocar o espaço virtual da mente pela realidade da carne...
— e você prefere o quê? tela ou carne? de qualquer jeito pretendo viajar, alugar um carro, sei lá... os voos já quase lotados e eu adoraria... te encontrar.
— vou ter que desligar daqui a pouco... mas sim, prefiro a realidade à ilusão. Trabalho no computador a tarde toda, então... apareça
de novo, eu digo, e confira as datas. Se tiver vontade de me encontrar, é
claro.
— sois quixotesca... é, fim de ano nos Keys, pode ser... um encontro poderia ser bom, mas sou crítico demais... com teu eu tenho
tudo a ver, com tua alma, mas... e se eu não gostar da fisionomia? seria
uma decepção, querida, tenho mesmo que ir... falamos amanhã.
Depois de desligar ainda mando email: não tenho medo nenhum, Alan. Se eu te decepcionar, podemos sempre ser amigos virtuais,
não? Tá certo, Alan, até logo, desconectou tão de repente... nem terminei o que estava dizendo... Será que eu te assustei? Pode ser sim, que eu
tenha sido meio precipitada. Mas você... será que pretende repetir ao
vivo aquele filme... Não lembro agora o nome, ele escritor em Londres,
ela bibliotecária nos Estados Unidos? Ou o contrário, não tenho certeza... Só sei que eles nunca se encontram, ficam na correspondência e só.
É uma oportunidade, nada mais que isso. Se eu te encontrasse, as férias
seriam ótimas: gosto mesmo de você, e isto pra mim é raro... Te amo.
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sem graus de separação
Terça-feira, 23 de novembro
Minha querida Noga, não quero nunca te fazer sofrer... É fácil para mim
te amar... mas ao fazer amor... quem é que vou tocar, vou beijar? A tua
carne eu já não sei... que corpo é este teu? Será como a figura leve e magra
que imagino, ao olhar tua foto no site? Me lembrou tanto essa pintora
marroquina que amei, em Israel, 1/3 de século atrás... Ou bem diferente?
(a Katherine é corredora, uma esportista) Posso me comprometer conversando, amar tua consciência, a velocidade da tua mente... Mas se eu não
for capaz em pessoa, devido ao meu agudo senso estético crítico... arrisco a
síndrome de “menos que uma mosca que eu não pude amar”... E não, não
quero me responsabilizar por isto.
Como é que ele sabe que não sou magra nem leve? Engraçado
é que eu já disse que corro, tudo bem: uma atleta da terceira idade, não
mais que dez ou 12 km por dia, nem tanto uma velocista (risos). E sobre
fazer amor... já não falamos disto? Do amante tântrico? (no perfil dele,
foi o termo tantra que me atraiu)
Talvez a gente acabe nem se topando — eu disse topando, não
tocando, mas claro que quis dizer trepando — embora os corpos, isso
eu garanto: vão se amar tanto quanto as mentes. Mesmo que eu só tenha
visto dele uma foto mínima, e ainda por cima de barba. Quanto a mim,
com certeza, sou melhor in vivo do que in vitro, e uma amante fogosa.
E ele? Como é que poderia se comprometer (ou não), sem sequer se
arriscar? Se enlevar? Ou se decepcionar?
Sei como ele se sente. Para amantes virtuais, tais obstáculos são
mais do que normais, quer dizer, nem tenho tanta experiência assim:
troquei emails poéticos certa vez por mais de um mês; quando finalmente encontrei o cara... chegamos a ir pro motel, mas fiquei com vontade de vomitar e tive que ir embora. Apesar dele mal ter me tocado, me
senti suja por vários dias. Um outro rapaz que conheci online me pareceu interessante; marcamos encontro num restaurante... mas ao vê-lo
de longe eu já quis sumir, bem. Foi um papo rápido, doloroso... e tchau.
Acabei desistindo, apagando os perfis todos (mas como boa capricorniana... insisti nunzinho só...).
Por outro lado, com meu ex-marido Marcos a história foi outra.
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Noga Sklar
Voei duas horas, muito nervosa, para conhecê-lo, e quando pus os olhos
nele... foi amor à primeira vista (depois do amor ao primeiro email). Na
verdade, nunca acreditei que fosse possível encontrar alguém legal nesses sites de namoro, um lugar pra gente chata e cafona, não pra mulheres
de grife como eu (risos). Mas se acabei aqui, por que não ele? E como o
Alan nunca... nunca encontrei ninguém tão similar a mim...
— Alan, te amo... Com mais tesão ainda do que antes (risos).
Andei fazendo as contas... quantos anos você tem? 57 não fecha mesmo,
confessa, anda!
— tenho 60.
Todo mundo tem segredos, não? Quanto ao encontro, não quero que ele se preocupe: vou ficar no hotel, e ele aparece se quiser. Ou
posso visitá-lo em St. Augustine... praquele almoço tranquilo com jazz
que ele sugere no perfil. Assumo a responsabilidade por tudo, até por
nós dois; quanto a não gostar dele... bem, querido, vou te dizer: duvido. Considerando, é claro, quem me escreve... TENHO que arriscar, ou
nunca mais vou dormir em paz.
Minha cara Noga, que segredos você tem? Pensei que não tínhamos escondido nada... Sim, despertamos um ao outro... mas vontade de
vomitar... tenho que rezar pra isso não acontecer. Posso te amar, fazer
amor com você em prosa e verso... mas ao vivo, qui est toi? “Tenho um
corpo quente”, quer dizer o quê?
— só quis te provocar... quer dizer um corpo macio, confortável,
capaz de muito prazer. eu disse que morava sozinha, não foi? bem, não
deixa de ser verdade. e nunca disse que vomitei... só que tive vontade,
porque o parceiro era mesmo nojento e ainda por cima, casado (as pessoas mentem muito na internet). vamos falar de tantra. você pratica?
— só quando faço amor... se não há consciência cósmica, que
graça tem? um monte de carne... e quanto à forma? é isto que você quer
dizer com confortável, macio, capaz de prazer? ou esteticamente erótico?
— iiiissso... nunca fiz amor só pra me divertir, sei que no sexo
a gente se abre e não iria arriscar... mas quanto a você? imagine, se não
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sem graus de separação
passar de um gordinho metido...
— ao fazer amor existe entrega, ou com certeza não é tântrico...
os corpos integrados, completamente imóveis... conscientes... como se
fôssemos um... dois... um... gordinho? estou bem longe de ser gordinho... uma forma leve, ossos e músculos entrelaçados, suspiro e suor.
beijo, língua, pele, outro suspiro. o tempo presente paralisado no momento... a consciência encarnada. sou forte demais pra você, é disso que
tenho medo.
— ai, Alan, para, basta de sexo virtual... ou não consigo esperar
um mês. sempre sonhei com esse tipo de calma... mas experimentar que
é bom, nunca. tive um amante que se dizia tântrico, um meditador... e
nada. nada. engraçado é que há alguns anos descrevi numa nota o meu
parceiro ideal: você escrito, só que morando no Rio. forte demais pra
mim? mas se eu levanto peso todo dia, meu amor... sou forte à beça, e
ando louca pra sentir teu braço em volta de mim. sai tão natural o amor
em inglês... como se eu tivesse nascido pra isso.
— sim. é de paixão que falo, e de mente. morar no Rio não, não
moro: é aí que bate o ponto.
St. Augustine, hum, já pesquisei, cidade histórica na Flórida,
uma gracinha perto de Orlando, já sei, Alan... que você falava de paixão
(quis mesmo provocar), mas escuta: só posso viajar entre o Natal e o
Ano Novo, quando está todo o mundo de férias; a agência tem um bloqueio pra 27/12, o preço é bem bom, e só restam dez lugares.
Sei tudo sobre a paixão: “Nancy costumava estar bem viva, cultivava a paixão como um poço entre os seios”, então como e quando, Noga?
É o encanto do virtual, e eu não faço ideia... Muito pouco, frente às possibilidades do universo... Quanto à relação entre o descrito e o físico, a
passagem do ideal (a palavra) à sua manifestação: é o que se chama vida,
pelo menos deixa eu ver uma boa foto.
Aahhh, fotos. Tão traiçoeiras... — as primeiras bem ruins, mas
prometo tentar de novo — e a dele, que não chega nunca? Será que ele
não vai deixar? Que eu veja a perfeita imagem dele, antes de correr o
risco?
— vou te mandar uma sim, amanhã ou depois, assim que eu
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Noga Sklar
arrumar um scanner.
— e eu, pra compensar... vou te mandar um poema erótico. traduzir poesia é duro mas vou tentar, porque você merece.
— poesia é o que vale... só me resta te achar nas entrelinhas: a
dança da mente que bem dançamos/ o eu que espera se expor na imagem/ real qual pensas senão no sonho/ que bem tocamos a dança da
vida/ ah... que voe o texto/ ao eu que vos fala/ deitado em núpcias no
leito morno/ ó ser ó doce ó alma insana/ ó ser molhado/ que lábios...
que seios.../ eu penso em ti.
Caramba, um personal shakespeare! Estou pasma, Alan, de quatro... Que intuição a minha, hein? E nesses perfis cretinos, dá pra confiar? Retribuir é que não vai ser fácil, meio injusto até, sendo eu uma
estrangeira... improvisando numa língua estranha.
Sem poesia, a vida é nada... ars poetica — ele diz — e quanto aos
perfis cretinos, foi num deles que te descobri, e ao teu sabor erótico. Só
mesmo você, Alan, pra adivinhar a essência num texto daqueles, impaciente, totalmente sem fé... mas sutilmente revelador.
— e expresso ali para quem lê, qual asa em cor de rara flor...
— oh, Alan, me ouves rir, de puro prazer? mas diga... você realmeeeeente viu tudo isso assim, logo de cara?
— é claro... ou por que me incomodaria? agora tenho que ir,
querida, me digas tu adeus... pra que não me julgues rude...
— tá certo, meu bem. uma bela, maravilhosa noite pra você.
Graças a ele me lembrei de mim, do que sou capaz, de aspectos do
eu há muito adormecidos: uma vez despertos, não dá pra anestesiá-los
de novo. Apesar da linda vista pro mar não estou na minha casa, e mesmo
tendo optado pela simplicidade, um bom design faz muita falta nesta sala.
Moro com minha mãe idosa, que precisa de acompanhante mas não
aceita que eu contrate uma: mulher irascível, crítica demais, controladora... grande ironia... que eu seja obrigada a discutir com ela a
data do dia e outras maluquices... Trabalho em casa e quase não saio:
malho na academia, faço as compras no mercado e volto correndo. Como único lazer devoro dvds, uma personagem de Almodóvar, isso sim, sempre à beira de um ataque de nervos. Se me conso| 36 |
sem graus de separação
lo, é pensando que na minha ausência as coisas talvez se acomodem...
Ando carente de um bom desafio, de voos mais altos, e posso soar aflita às
vezes, com um olhar meio triste nas fotos. Mas o lado meu que você despertou é brilhante, Alan, livre pensador e cheio de energia... com uma vontade de viver enorme, e uma disposição surpreendente pra se apaixonar...
Eis aí uma razão pra que eu te ame tanto.
Adorei teclar com você, e quando conectamos, quase ouvi você
rindo. Você está aí? De volta online? Euzinha aqui ralando um bocado,
pra traduzir o texto erótico... mais fácil seria escrever algo novo... motivação é que não falta, e já sairia em inglês.
— parece que voltei, não? pois abra o coração e fale. as palavras
virão, senão do pensamento, quem sabe do impulso: confie no improviso. você traduz tão bem, até parece uma nativa da língua.
— é querido, mas em linguagem simbólica, e ainda por cima
com metáforas... não é nada fácil. o português é uma língua rica, como
o francês, mas brincar com palavras, em múltiplos sentidos... é outra
coisa. além do mais, não escrevo poesia há tempos... só mesmo apaixonada.
— é este justamente o ponto: simbolismo e metáfora excedem
a gramática. se a linguagem do corpo é bem mais simples, a mente no
entanto inclui tudo, e evolui sempre como um ser em si, não mero pensamento... o ser intrínseco é conectado ao eterno, e o instinto, multidimensional... a arte em si contém os significados todos, planejados ou
não... fazer arte é ser capaz de perceber a arte... é no espontâneo que
repousa a perfeição da existência. esqueça então a mente, que percebe
e pensa... e deixe a emoção falar. encontrar o ritmo pode ser duro, pra
não mencionar um significado simbólico, que faça justiça ao original.
— sim, motek, com certeza tua percepção não é rasa. falávamos
de traduzir poemas, lembra? ritmo é básico sim, serás capaz de acompanhar o meu?
— sim, te acompanho e você a mim... sou rápido. não creio que
rima ou métrica resistam à tradução do portugês... conserva-se no máximo o sentido original. verbalize então o ímpeto, e evite o pensar... deixa o eu falar sem censura, e veja onde vai dar... em poesia, eis onde! o
sentir tem um ritmo próprio, imposto à linguagem propriamente dita.
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Noga Sklar
Nunca passei tanto tempo em tela de chat. A dinâmica verbal
online me provoca essa impressão de bagunça, a resposta adiada... Ele
pergunta se quero desligar, se estou com fome ou coisa parecida. Não
estou, ele acha que são seis horas, mas aqui são nove e já jantei há um
tempão. Sempre achei teclar meio chato, quer dizer, achava, já com ele...
é de enlouquecer. Ele concorda, acha íntimo falar assim, apesar de só
com Katherine ter experimentado antes... Acredita que é uma forma
de penetrar, fundo no ser do outro. Deve ser por isso que é tão legal
este namoro, cibernético, internacional (acabei de descobrir)... É mente
aberta, é intimidade total... é como conversar conectado ao corpo do
outro, envolvidos num abraço... Vou pra cama antes das dez e acordo
bem cedo, será que ele também? Gosta de madrugar na pista de corrida? Por quê? Você quer dizer boa-noite e tchau? — ele pergunta.
Não quero. Só estou descrevendo hábitos, depois dessa conversa mole
será que eu consigo adormecer? Nas três primeiras noites não deu, de
jeito nenhum. Pra dormir, digo, e eu nem sabia bem porquê, já que mal
o conhecia... A intimidade tem disso, uma energia especial, a mente
aberta que é do tantra... o universo fluindo através de nós... Ai, para, por
favor — ele pede — não vá perder o fôlego. E ele, será que se sente assim,
cheio de energia? Mesmo praticamente insone, nunca corri tão bem...
nas primeiras noites, quero dizer... como no sonho, correndo sem parar
e não me cansando nunca.
É sim, coisa rara... eu falar com alguém em tal clima de
intimidade... Faz um bom tempo, e você tão disposta, Noga. São poucos os
que conseguem se abrir, que dirá compartilhar o eu, a amplitude, os vários
modos de ser... Lineares, é o que são, nem sempre poetas ou viajantes...
Tampouco amantes ou místicos, buscadores de Deus... ou tzadiks. Quem
fala é responsável pelo que diz... mas o ouvinte costuma ouvir o que quer, e
como quer... Frequentemente imaturo ou superficial, já eu... posso te deitar
aqui e abrir-te as pernas, pousar os lábios no meio delas... te provar... e te
abraçar.
— sim, querido... pode vir, nunca transei online antes, e você?
faz sempre sexo pela internet? pelo menos dispensa a camisinha...
— que lindo... uma adulta... eu não, na internet nunca... só estive
com Katherine, e mesmo assim por alto... não, mas se me sinto íntimo
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de alguém, em qualquer mídia continuo me sentindo íntimo. sou capaz
de intimidade e pronto. manejo bem a língua, o toque, e você tão próxima, desejando tanto, sem medo nenhum de se relacionar...
— é... a intimidade é rara... passei por dois maridos e nunca
tive... sou temida, geralmente incompreendida, mas com você, tão parecido comigo... não tenho medo de soar estranha. quem mais perderia
tempo, trocando poesia na internet? voltemos aos lábios... quase sinto
no arrepio do braço o teu impulso elétrico...
— já faz tempo que não faço amor assim, tão completamente...
quem me dera beijar-te, pressionar o corpo contra o teu, escorregar por
entre as tuas coxas corpo adentro enquanto me agarras com força... molhada, apaixonada... beijar-te os seios, teus mamilos duros... que cheiro!
que braços! que pernas! trançadas nas minhas, que gosto o teu, a tua
língua úmida...
— emocionada demais, Alan, e como te toco... com que doçura, te amando lentamente... rompendo o silêncio, somente os sons do
amor... horas, querido, te adorando, tua pele colada na minha, brincando com teus pelos, os de cima, os de baixo... úmida só de te ouvir.
— sim... horas... lindas palavras... respirando juntos, a carne
molhada e quente, meu pau crescendo quando penso em ti... e se eu
entrasse agora? ahhh... darling Noga... eu gozo em ti. a gente escreve
bem o amor.
— nossa, Alan! e como foi que isso aconteceu? me explique, tão
de repente!
— achei que estava ali pra mim desde o começo... ou não? quando li teu texto e era poético... sobre a pele e tudo o mais... me conectei
contigo intimamente... você nunca falou de amor? poética assim com
outro?
— ora, meu amor, só rindo bem alto agora, e de puro gozo, você
quer dizer o quê? ali pra você? se até hoje eu era virgem... virtual, digo,
até você me deflorar na tela! poética sim, raramente... já imaginei um
encontro de almas antes, mas explícita assim nunca...
— pouco se fala do ato de amor, de comunicar o amor... claro
e sem pudor... a inteligência... como eu amo a inteligência, estou indo,
falamos amanhã... te amo.
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