MOTO-PERPÉTUO

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MOTO-PERPÉTUO
MOTO-PERPÉTUO
[DEUTSCHER, Guy. “Perpetual Motion”, Capítulo 2 do livro The Unfolding of Language. New
York, Metropolitan Books, 2005, pp. 45-72. Tradução: Marcos Bagno, outubro de 2006 —
divulgação proibida]
Eppur si muove!
E todavia ela se move!
(Galileu Galilei, 1632)
Existe uma história sobre um inglês, um francês e um alemão que estão
discutindo os méritos de suas respectivas línguas. O alemão começa dizendo:
“O alemon, é claro, é o melhor língva. É o língva do lógika e do filosofia, e pode
komunikar kon grande klaretza até as idéias mais komplexas”. “Bof”, dá de
ombros o francês, “mas o frrancês, o frrancês é a langue do amur! Em frrancês,
podemos trransmitir todas as sutilezas do romance com elegance e
perspicace”. O inglês pondera a questão por um instante e então diz: “Yes,
amigos, tudo isso está very well. Mas pensem na coisa dessa maneira.
Peguem a palavra spoon, por exemplo. Ora, vocês franceses chamam isso de
cuillère. E como é que vocês, germanos, chamam? Uma Löffel. Mas em
english, é chamada simplesmente de spoon. E quando você pára e pensa
nisso... não é exatamente o que é?”
A razão por que o argumento do inglês é evidentemente ultrajante é que os
nomes que usamos para as coisas não têm nenhuma relação inerente com as
próprias coisas. Os nomes são inteiramente arbitrários, e é por isso que Löffel
ou cuillère é uma designação tão boa para
quanto spoon ou colher. E
mesmo que você ainda tenha alguma sensação persistente de que há alguma
coisa especialmente spoonish em
, então é bom saber que mesmo em
inglês uma spoon nem sempre foi uma spoon...
No século XIV, apareceu em inglês uma obra monumental, uma história do
universo em sete volumes chamada Polychronicon (tradução de uma obra em
latim de um monge de Cheshire chamado Higden). Em algum lugar no fundo
do volume cinco, o Polychronicon descreve como o imperador Carlos Magno
levou dez anos inteiros construindo uma ponte de madeira sobre o Reno. Mas
um dia, pouco antes da morte de Carlos Magno, a ponte foi destruída por
tamanho incêndio que dentro de três horas, “nought oon spone” podia ser vista
flutuando sobre as águas. “Not one spoon” [“nem uma colher”]...? Bem, o
Polychronicon não estava realmente muito interessado em talheres. Naquela
época, spoon significava simplesmente um pedaço fino de madeira, uma farpa
ou uma lasca.
Inicialmente, parece esquisito que o significado de spoon [“colher”] tenha
conseguido mudar tanto num período de tempo relativamente curto. Além
disso, esses saltos mortais no significado podem parecer estranhos ao próprio
objetivo da língua, isto é, oferecer um sistema estável de convenções que
permitem a comunicação coerente. Pois como os falantes podem, em toda
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confiança, veicular seus pensamentos uns aos outros se o sentido das palavras
que eles usam pode mudar subitamente? Portanto, pode ser ainda mais
surpreendente saber que o salto de significado que spoon realizou não é de
jeito algum um evento raro. Quando se inspeciona a história da língua ― de
qualquer língua ―, logo se descobre que a mudança não é a exceção, mas a
regra.
Este capítulo se destinará a expor aquilo que impulsiona as transformações em
todas as áreas da língua, e a revelar como as mudanças podem ocorrer sem
causar severos danos à comunicação efetiva. E, ao fim e ao cabo, os motivos
por trás do moto-perpétuo da língua nos apontarão a trilha certa para entender
os mecanismos da criação lingüística.
►▪►▪◄▪◄
Quando a gente pensa em línguas que são muito diferentes da nossa, temos a
tendência a imaginar línguas exóticas de rincões longínquos do planeta. Mas a
estranheza pode ser encontrada bem mais perto de casa, quando se
perambula pelo tempo. A língua inglesa, ou melhor, os vários “ingleses” do
último milênio, é uma testemunha tão boa quanto qualquer outra para a
variabilidade crônica da língua, e um meio efetivo de se apreciar a extensão
das mudanças é observar como um documento supostamente imutável sofreu
mutações ao longo dos séculos. Aqui vai um breve excerto do livro do Gênesis,
que conta a história do Dilúvio:
Inglês por volta de 2000
The Lord regretted having made humankind on the earth... So the Lord
said: ‘I will wipe the human beings I have created off the face of the earth,
people together with animals and reptiles and birds of the air, because I
regret having made them’...
And God said to Noah: ‘Make yourself and ark of gopher wood... and
cover it inside with pitch. For my part, I am going to bring a flood of waters
on the earth, to destroy all flesh in which there is the breath of life.’
Do inglês moderno, ainda que literário, vamos agora saltar quatro séculos atrás
no tempo, até o ano de 1604, quando o rei Jaime I, recém-instalado no trono da
Inglaterra, e desejando acalmar a disputa religiosa que tinha grassado no reino
por mais de um século, encarregou os maiores sábios do país de produzir uma
tradução da Bíblia no inglês daqueles dias. Quarenta e sete eruditos laboraram
sobre o texto pelo período, biblicamente adequado, de sete anos, até que,
finalmente, em 1611, se publicou aquela que veio a ser conhecida como a
Versão do Rei Jaime [King James Version]:
Inglês por volta de 1600 (Versão do Rei Jaime)
It repented the Lord that he made man on the earth... And the Lord said:
‘I will destroy man whom I haue created from the face of the earth, both
man, and beast, and the creeping thing, and the foules of the aire, for it
repenth me that I haue made them.’
And God said vnto Noah: ‘Make thee an arke of gopher wood... and
[thou] shalt pitch it within and without with pitch. And behold, I, euen I, doe
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bring a flood of waters vpon the earth, to destroy all flesh wherein is the
breath of life.’
Por causa do prestígio duradouro da Versão do Rei Jaime, sua língua ainda
parece bastante familiar, exceto por um thee ou thou aqui e acolá. Mas se
alguém se aventurar um pouco mais atrás no tempo, dois séculos antes do rei
Jaime encarregar seu grupo de eruditos, a viagem logo fica um pouco mais
árdua. A primeira tradução integral da Bíblia em inglês foi empreendida perto
do final do século XIV por um grupo de eruditos heréticos chefiados por John
Wycliffe, um precursor da Reforma protestante que desafiava a autoridade da
Igreja. Wycliffe e seus sócios trabalharam para verter a Bíblia no vernáculo da
época, para tornar a “lei de Deus” acessível a qualquer um que soubesse ler ―
um empreendimento audacioso para a época. Sua tradução apareceu
finalmente por volta de 1390, poucos anos depois da morte de Wycliffe:
Inglês por volta de 1400 (Bíblia de Wycliffe)
It forthouзt  him that he had made man in erthe. ‘I shal do awey’, he
seith, ‘man, whom I made of nouзt, fro the face of the erthe, fro man vnto
thingis hauynge soule, fro crepynge beest vnto fowles of heuen; forsothe it
othenkith me to haue maad hem.’
He seide to Noe: ‘Make to thee an ark of planed trees; and with ynne
and with one thow shal diзten it with glew. Se, I shal lede to watres of a
flood vpon the erthe, and I shal slee al flehs in the which spiryt fo ljif is.’
A Bíblia de Wycliffe pode ter sido a primeira Bíblia completa a aparecer em
inglês, mas algumas partes da Bíblia já tinham sido vertidas ao inglês quatro
séculos antes. Uma das primeiras traduções inglesas foi feita na virada do
primeiro milênio, por Ælfric, abade de Eynsham. Ælfric foi celebrado como o
maior prosador da Inglaterra anglo-saxônica, mas para falantes do inglês
moderno sua língua pode parecer um tanto quanto esquisita:
Inglês por volta de 1000 (Tradução de Ælfric)
Gode ofðuhte ða ðæt he mann geworhte ofer eorðan... And cwæð: ‘Ic
adylgie ðone man, ðe ic gesceop, fram ðære eordðan ansyne, fram ðam
men oð ða nytenu, fram ðam slincendum oð ða fugelas: me ofðingð soðlice
ðæt ic hi worhte.’
And God cwæð ða to Noe: ‘Wyrc ðe nu ane arc of aheawenum bordum
and clæmst wiðdinnan and wiðutan mid tyrwan. Efne ic gebringe flodes
wæteru ofer eorðan, ðæt ic ofslea eal flæsc on ðam ðe is lifes gast.’
Os quatro trechos acima revelam a instabilidade teimosa da “língua inglesa”
nos últimos mil anos e ilustram o modo como ela tem mudado completamente.
Geoffrey Chaucer, um contemporâneo de Wycliffe, tinha aguda consciência da
mutabilidade da língua e a descreveu belamente em sua obra Troilus and
Criseyde:

A letra з corresponde ao gh da ortografia moderna: forthou зt = forthought. Naquela época, era
pronunciada como o ch do escocês loch ou do alemão Buch. A letra ð corresponde ao th da
ortografia moderna.
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Ye knowe eek that in forme of speche is chaunge
With-inne a thousand yeer, and wordes tho
That hadden pris, now wonder nyce and straunge
Us thinketh hem; and yet they spake hem so,
And spedde as wel in love as men now do.
[Tu sabes também que na forma de falar houve mudança
em mil anos, e as palavras que naquele tempo
tinham valor agora surpreendem bizarras e estranhas
a nós que nelas refletimos; e contudo eles as falavam então
e tinham êxito no amor tanto quanto os homens de agora.]
E, como que para provar sua tese, o inglês de Chaucer (e de Wycliffe) ― de
apenas meio milênio atrás ― já nos parece “nyce and straunge” [“bizarro e
estranho”]. Mas retroceda todo um “thousand yeer” [“milênio”]: o inglês de
Ælfric não é apenas estranho ― parece holandês macarrônico. Num lapso de
apenas trinta gerações, o “inglês” passou por uma retífica tão violenta que
aquilo que deveria ser uma e a mesma língua mal se deixa reconhecer. De
fato, a língua de Ælfric parece tão absolutamente estrangeira que alguém pode
querer argumentos convincentes para aceitar que ela tenha qualquer coisa a
ver com o inglês. No entanto, numa inspeção mais minuciosa, e com uma glosa
palavra-por-palavra em inglês moderno, revela-se que os dois “ingleses” têm
muito mais em comum do que parece à primeira vista:
Gode
to.God
ofthuhte
displeased
tha thæt
then that
he mann geworhte
he man wrought
ofer eorthan,
over earth
And cwæth: Ic adylgie thone man, the ic ge-sceop, fram thære
And said
I destroy the
man that I shaped
from the
eorthan ansyne fram tham men oth tha nytenus, fram slincendum
earth’s face
from the men to the beasts, from crawlers
oth tha fugelas
to the fowls
Armados com esta glosa, pode ficar mais fácil aceitarmos que a língua de
Ælfric e o inglês moderno realmente representam dois estágios da mesma
língua. Umas poucas palavras são idênticas (and, he, men), e outras um tanto
quanto (ofer, ‘over’; fram, ‘from’) ou pelo menos perto o bastante para serem
identificáveis: eorthan (‘earth’), geworhte (‘wrought’), cwerth (‘quoth’), fugelas
(‘fowls’). Mesmo assim, o reconhecimento de que a língua de Ælfric realmente
era o “inglês” de um milênio atrás só faz a extensão das mudanças parecer
ainda mais desconcertante.
Talvez o aspecto mais surpreendente do inglês de Ælfric seja o fato de que,
como o latim, ele possuía um complexo sistema de casos e gêneros, de modo
que os nomes e até o artigo definido the tinham uma gama de formas
diferentes, a depender de seu papel na oração e de seu gênero e número.
Considere apenas quantas formas diferentes o artigo the podia assumir
somente nas três breves linhas do trecho bíblico acima: thone man (‘the man’);
fram thære eorthan ansyne (‘from the earth’s face’), fram tham men (‘from the
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men’), oth tha nytenu (‘to the animals’). Acrescente a isso que os gêneros dos
nomes eram tão erráticos quanto em alemão hoje em dia (‘earth’ era feminino,
por exemplo, mas ‘stone’ era masculino) [...] Para dar uma idéia do labirinto de
formas diferentes no inglês da época de Ælfric, mostramos abaixo o conjunto
de terminações de uma classe de nomes:
SINGULAR
thæt wæter- ‘the water’
tham wæter-e ‘to the water’
thæs wæter-es ‘of the water’
PLURAL
tha wæter-u
tham wæter-um
thara wæter-a
‘the waters’
‘to the waters’
‘of the waters’
É o sistema de casos, talvez, mais do que qualquer outra coisa, que faz a
língua de Ælfric parecer tão exótica, ao passo que o inglês de Wycliffe parece
muito menos peculiar, sobretudo porque por volta de 1400 o sistema de casos
tinha se desintegrado quase completamente. Mas embora o colapso do
sistema de casos tenha sido uma enorme convulsão na história do inglês, essa
não foi de jeito algum a única mudança. Basta comparar uma frase curta das
quatro passagens bíblicas acima para comprovar que nenhuma área do inglês
permaneceu quieta por muito tempo:
~ 1000: me ofðingð soðlice ðæt ic hi worhte
~ 1400: forsothe it othenkith me to haue maad hem
~ 1600: for it repenth me that I haue made them
~ 2000: because I regret having made them
A primeira coisa que se nota é como as palavras vêm e vão ao longo dos
séculos, com palavras mais velhas (como worhte, “criado”) desaparecendo e
sendo substituídas por novas (maad). A expressão de desgosto, por exemplo,
parece ter sido particularmente temperamental. Ælfric usa um verbo corrente
na época e diz me ofthingth (“me desagrada”), mas em 1400 o verbo ofthink
tinha começado a soar um tanto antiquado. Wycliffe ainda podia esperar que
seus leitores entendessem it othenkith me, mas em 1600 este verbo já tinha
sido esquecido há muito tempo, e no lugar dele se usou it repenteth me. Hoje,
o verbo repent ainda é facilmente reconhecível, mas apesar disso ele parece
um tanto deslocado naquele contexto particular. A partir do século XVII, repent
sofreu uma inversão completa de papel: o que os tradutores do rei Jaime
entendiam com it repenteth me é o que hoje traduziríamos como I repent (ou
regret) it  .
Mas não é apenas o significado das palavras que muda com o tempo. Alguns
dos aspectos básicos da estrutura do inglês, como a convenção da ordem das
palavras, também parecem ter estado bastante instáveis. Vimos antes que a
ordem das palavras desempenha um papel crucial no inglês moderno, já que é

Observe-se que o mesmo aconteceu com o verbo aborrecer em português. Em traduções
antigas da Bíblia encontramos: “Deus aborrece o pecador”, para o que hoje expressaríamos
por: “O pecador aborrece a Deus” (ou “Deus se aborrece com o pecador”). Além da inversão do
papel sintático (Deus, na primeira ocorrência, é sujeito e na segunda é objeto direto), o verbo
sofreu uma atenuação semântica: no primeiro caso, aborrecer significa “ter horror a”, enquanto
no segundo significa apenas “desgostar-se, ficar contrariado” (N. T.).
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a única maneira de distinguir o sujeito (que vem antes do verbo) do objeto (que
vem depois). Mas observe a ordem das palavras no trecho de Ælfric: me
ofthingth, ‘me displeases’ [“me desagrada”] (por ‘it displeases me’), e ic hi
worhte, ‘I them made’ [“eu os fiz”] (por ‘I made them’). Claramente, a idéia de
Ælfric sobre onde as palavras deviam ficar era diferente da nossa.
Por fim, a pronúncia das palavras inglesas também perambulou e se extraviou
ao longo dos séculos, mas essas perambulações estão apenas parcialmente
espelhadas nos trechos acima, por causa da natureza conservadora do
sistema de escrita. Só em alguns poucos casos, como na palavra ic do trecho
de Ælfric, as mudanças na pronúncia podem ser vislumbradas pela grafia. No
século X, ic se pronunciava mais ou menos como {itch}, mas por volta de 1400
o {tch} final tinha desaparecido, e a palavra veio a ser pronunciada {i} (como
em bee) e, assim, a ser escrita apenas I. No sistema da escrita, I ficou com a
mesma aparência desde então, mas a pronúncia real de I continuou a zanzar.
Durante o século XV, ocorreu uma convulsão na pronúncia de muitas vogais do
inglês, aquilo que os lingüistas chamam de “a Grande Mutação Vocálica” [Great
English Vowel Shift]. Como parte dessa mutação, todo {i} longo se transformou
em {ey} (como no moderno day), de modo que lá pelo século XVI a palavra I
passou a ser pronunciada {ey}. E lá pelo século XVIII, {ey} mudou novamente
para a pronúncia moderna {ay}.
A maioria das mudanças na pronúncia, entretanto, está mascarada pela
ortografia  . Por razões culturais que são alheias à própria língua falada, o
sistema ortográfico que usamos hoje em inglês permaneceu essencialmente
congelado por ao menos 400 anos, muito embora a pronúncia continuasse a
mudar durante esse período. Assim, quem comparar o trecho do rei Jaime com
a tradução moderna pode facilmente ficar com a impressão de que por alguma
razão as mudanças na pronúncia sofreram uma interrupção abrupta depois de
1611. Mas isso é apenas uma ilusão. Tome, por exemplo, a frase ‘flood of
waters to destroy all flesh’. Os tradutores do rei Jaime grafaram essa frase
exatamente como nós fazemos (ou, mais precisamente, nós grafamos
exatamente como eles faziam). Mas, de fato, a maioria das palavras nessa
frase soavam bastante diferente naquela época. Em 1611, a palavra flood
rimava com good; waters tinham um {r} audível e era pronunciada mais ou
menos com as vogais da moderna {matters}; e a palavra all soava como nossa
palavra {owl}  .

A ortografia do português também oculta as mudanças ocorridas na pronúncia da língua. As
vogais átonas finais -e e -o, que hoje pronunciamos [-i] e [-u], eram pronunciadas [-e] e [-o] no
português medieval. Os grupos ge e gi eram pronunciados [dže] e [dži]; ce e ci representavam
as pronúncias [tse] e [tsi] e o ç, [ts]; o dígrafo ch se pronunciava [tš], a letra z se pronunciava
[dz]... A conservação de alguns traços dessa ortografia medieval é que explica as dificuldades
atuais dos falantes de português na hora de escrever palavras com J/G, CH/X, S/Z, S/Ç etc. (N.
T.)

A palavra flood, no inglês moderno, se pronuncia “flâd”, portanto não rima com good (que se
pronuncia “gud”). O r em final de sílaba e de palavra não se pronuncia em geral no inglês
britânico; a vogal a de waters sofreu assimilação da semivogal /w/, por isso atualmente se
pronuncia como um “ó”; e all não se pronuncia mais como {owl} e sim como {ól} (N. T.).
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O sistema ortográfico congelado também esconde mudanças de pronúncia que
ocorreram ainda mais recentemente. Quando está lendo Jane Austen [17751817] ou George Eliot [1819-1880], por exemplo, a pessoa é tentada a imaginar
que suas personagens falavam exatamente como os atores da BBC em roupas
de época. A realidade era bem diferente, no entanto. Em 1902, o crítico de arte
Charles Eastlake se lembrava da fala dos “velhos camaradas” de quarenta
anos antes, pessoas nascidas por volta de 1800 (a geração de Darwin e
Disraeli), que deviam estar na adolescência quando os romances de Jane
Austen foram publicados. E particularmente quando ele se refere à fala
refinada das classes cultas, a pronúncia de várias palavras pode parecer um
tanto surpreendente hoje em dia:
Homens na idade madura podem se lembrar de várias palavras que na
conversa dos velhos camaradas de quarenta anos atrás soam estranhas
para os ouvidos atuais. Em geral eles ficam muito obleeged [e não
oblayged, ‘agradecidos’ - OBLIGED] por um favor. Referiam-se
afetuosamente às suas darters [e não dóters, ‘filhas’ - DAUGHTERS],
falavam de relógios de guld [e não gold, ‘ouro’], ou de uma visita recente a
Room [e não Rome, ‘Roma’]; mencionavam que tinham visto o Duk [e não
dyuk, ‘duque’ - DUKE] de Wellington no Hyde Park no último Tusday [e não
tyusdey, ‘terça-feira’ – TUESDAY] e que ele tinha o hábito de cavalgar às
sivin [e não seven, ‘sete’] horas. Falavam de Muntague Square [e não
Montague] e do St Tummus’s ‘Ospital [e não Thomas Hospital].
Apresentavam-se a seus anfitriões como os ‘umble [e não humble –
‘humilde’] criados deles e admiravam sua coleção de chayney [e não china
– ‘porcelana chinesa’], especialmente o vaso de azul Prushian [e não
prâshian, ‘prussiano’ – PRUSSIAN].
Assim, embora as convenções da ortografia possam não ter mudado muito em
quase quatro séculos, as perambulações da pronúncia continuaram a despeito
disso. E é exatamente por isso que a ortografia inglesa é tão infamemente
irracional. Basta tentar ler o seguinte poema em voz alta e o mais depressa que
puder:
I take it you already know
Of tough and bough and cough and dough?
Others may stumble, but not you,
On hiccough, thorough, lough, and through?
Well done! And now you wish perhaps
To learn of less familiar traps?
Beware of heard, a dreadful word
That looks like beard and sounds like bird.
And dead ― it’s said like bed, not bead ―
For goodness sake, don’t call it ‘deed’.
Watch out for meat and great and threat
(They rhyme with suite and straight and debt):
A moth is not a moth in mother,
Nor both in bother, broth in brother.
And here is not a match for there
Nor dear and fear for bear and pear.
And then there’s dose and rose and lose ―
Just look them up ― and goose and choose,
And cork and work, and word and sword,
And do and go, and thwart and cart ―
Come! Come! I’ve hardly made a start!
(do Manchester Guardian, 1954)
Por isso, realmente, é injusto dizer que a ortografia inglesa não é um retrato fiel
da fala. Ela é ― só que retrata a fala do século XVI.
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Está claro, portanto, que nenhum canto da língua inglesa ficou protegido das
mudanças: sons, significados e estruturas, tudo parece ter sofrido de uma
curiosa incapacidade de ficar quieto. A inconstância do inglês pode parecer
surpreendente e excêntrica, e alguém pode se sentir tentado a pôr a culpa
disso em alguma vicissitude particular de seus falantes: a sede de viagens de
uma nação marinheira, talvez, ou os efeitos perturbadores do molho de hortelã.
Infelizmente, a razão é muito mais prosaica, já que não existe nada de especial
no inglês a esse respeito ― così fan tutte. Quando se percorre a trilha de
qualquer outra língua com uma história suficientemente longa, um quadro
semelhante se desenrola. Mil anos podem ser “como ontem, um dia que se vai”
para o Salmista, mas para a língua alemã foi tempo suficiente para vaguear:
ALEMÃO ~ ANO 1000
Uuanda fóre dînen ougon zênstunt zênzech iaro sint
samo so der gésterîgo dag, der feruáren ist.
Vnde so éin uuáhta.
ALEMÃO ~ ANO 2000
Denn tausend Jahre sind in deinen Augen
wie der gestrige Tag, wenn er vergangen ist,
und wie eine Wache in der Nacht.
Mil anos, a teus olhos,
são como ontem, um dia que se vai,
como uma hora da noite.
(Salmo 90: 4)
E o também o francês não andou se comportando lá muito bem:
LATIM TARDIO ~ ANO 400
Quia mille anni in oculis tuis
sicut dies hesterna
quae pertransiit
et vigilia nocturna.
FRANCÊS ~ ANO 1200
Kar mil an devant les tuens oilz
ensement cume li jurz d’ier
chi trespassa,
e la guarde en nuit.
FRANCÊS ~ ANO 2000
Car mille ans, à tes yeux,
sont comme le jour d’hier
quand il est passé,
et comme une veille dans la nuit.
A simples verdade é que todas as línguas mudam, o tempo todo ― as únicas
línguas estáticas são as línguas mortas.
►▪►▪◄▪◄
As mudanças dramáticas nas línguas se revelarão importantes, primeiro e
antes de tudo, porque fornecerão as chaves principais para entender como
podem surgir estruturas lingüísticas complexas. Mas, como um bônus extra, o
moto-perpétuo da língua também resolve outro problema: o balbucio de Babel.
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É transparente que as línguas não precisam de nenhuma intervenção divina
para proliferar, pois tendo a mínima chance (e tempo suficiente) elas se
multiplicam bem alegremente por conta própria. Imagine dois grupos que vivem
em duas aldeias vizinhas, falando variedades semelhantes de uma língua. Com
o passar do tempo, sua língua sofre constantes transformações, mas enquanto
as duas comunidades permanecerem em íntimo contato, suas variedades vão
mudar no mesmo compasso: a inovação numa aldeia logo se difundirá para a
outra, por causa da necessidade de comunicação. Agora suponha que um dos
grupos saia vagando em busca de terras melhores e perca todo contato com os
falantes da outra aldeia. A língua dos dois grupos começará então a caminhar
em direções diferentes, porque não haverá nada para manter as mudanças no
mesmo compasso. Por fim, suas variedades terão se afastado de tal maneira
que não mais serão mutuamente inteligíveis e, assim, se transformarão em
línguas diferentes.
Por falar nisso, a decisão sobre quando começar a chamar essas variedades
de “línguas” diferentes, em vez de “dialetos” da mesma língua, freqüentemente
envolve fatores que pouco têm a ver com a real distância lingüística entre elas.
Um lingüista americano  gracejou certa vez que “uma língua é um dialeto com
exército e marinha”, e sua tese é ilustrada por casos recentes como o do sérvio
e do croata que, antes do desmoronamento da antiga Iugoslávia, eram
considerados como dialetos de uma língua, o servo-croata, mas que depois
disso foram de repente proclamados como línguas diferentes. Assim, ao fim e
ao cabo, a decisão sobre se algo é uma língua ou um dialeto repousa naquilo
que os próprios falantes consideram que seja. Mas, numa perspectiva
puramente lingüística, e por razões práticas, quando duas variedades do que
antes costumava ser a mesma língua não são mais mutuamente inteligíveis,
elas podem ser chamadas de línguas diferentes.
A diversidade lingüística, portanto, é uma conseqüência direta da dispersão
geográfica e da propensão da língua para a mudança. A afirmação bíblica de
que existiu uma única língua primordial não é, em si mesma, improvável, pois é
bastante possível que houvesse somente uma língua, falada em algum lugar
da África oriental, há talvez cem mil anos atrás. Mas ainda que seja este o
caso, a fragmentação dessa língua deve ter tido motivos muito mais prosaicos
do que a ira de Deus em Babel. Quando grupos diferentes começaram a se
separar, seguindo seu próprio caminho e se estabelecendo pelo mundo afora,
suas línguas mudaram de modos diferentes. Assim, a enorme diversidade de
línguas no mundo de hoje simplesmente reflete o longo tempo que as línguas
tiveram para se transformar independentemente umas das outras.
Os diferentes períodos de separação entre as línguas também explicam por
que algumas línguas são muito mais próximas entre si do que outras. O inglês,
por exemplo, é mais parecido com o sueco, o islandês, o holandês e o alemão
do que com o polonês, o albanês, o punjabi, o persa, o turco, o ioruba ou o
chinês:

Max Weinreich (1893-1969) (N. T.).
10
inglês:
sueco:
islandês:
holandês:
alemão:
Give us
Giv oss
Gef oss
Geef ons
Gib uns
this day
i
dag
í
dag
heden
heute
our
vårt
vort
ons
unser
daily
dagliga
daglegt
dagelijks
tägliches
polonês:
albanês:
punjabi:
persa:
Chleba naszego powszedniego daj nam dzisiaj
Bukën tonë të përditëshme jepna neve sot
Sāḍī gujar jogī roṭī aj sānūn dih
Nān-e-rūzīne-ye-mārā dar īn rūz be-mā bebakhš
turco:
chinês:
ioruba:
Bugün bize gündelik ekmeğimizi ver
Wŏmen rìyòng de yìnshí jīnrì cìgěi wŏmen
Fun wa li onj̣ẹ ōjọ wa lomi
bread
bröd
brauð
brood
Brot
Árvore genealógica das línguas indo-européias
A razão por que o inglês, o holandês, o alemão e as línguas escandinavas se
parecem tanto é que todas elas descendem de um ancestral pré-histórico, que
os lingüistas hoje chamam de proto-germânico, pois de fato todas elas eram
uma e a mesma língua até o início do primeiro milênio depois de Cristo. (O
termo “proto” é uma designação que os lingüistas usam para se referir a uma
suposta língua pré-histórica da qual surgiram várias descendentes atestadas.)
Mas assim que as tribos germânicas começaram a se espalhar a partir de suas
terras nativas originais no sul da Escandinávia e ao longo do litoral do Mar do
Norte e do Báltico, suas variedades de fala gradualmente começaram a
divergir, até que finalmente se tornaram línguas diferentes.
O inglês e as línguas germânicas são, por seu turno, aparentadas ― mais
distantemente ― a várias outras línguas da Europa e da Ásia. Ao fim e ao
cabo, elas remontam ao mesmo ancestral comum do italiano, do francês, do
espanhol, do português, do irlandês, do galês, do russo, do lituano, do polonês,
do grego, do albanês e até mesmo do armênio, do persa, do híndi e do punjabi.
Essa língua pré-histórica ancestral, provavelmente falada cerca de 6.000 anos
atrás, é chamada pelos lingüistas de proto-indo-europeu, porque nos primeiros
milênios antes de Cristo os descendentes de seus falantes se espalharam por
uma área que se estende desde a Índia até a Europa. Por isso, embora possa
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não ser imediatamente evidente a olho nu, o segundo grupo de línguas da lista
acima (polonês, albanês, punjabi e persa) são todas parentes do inglês, ainda
que um tanto distantes, e são descendentes do mesmo antepassado. Mas
como o inglês e o persa, por exemplo, devem ter começado a se afastar há
pelo menos seis mil anos, as duas línguas divergem tanto que só algumas
palavras básicas do persa são ainda imediatamente identificáveis (por
exemplo, pedar [father, ‘pai’], dokhtar [daughter, ‘filha’] ou do [two, ‘dois’]).
Assim, a olho nu, as frases do persa ou do albanês acima parecem tão
diferentes do inglês quanto as do turco ou do ioruba, que não são
descendentes do proto-indo-europeu.
►▪►▪◄▪◄
Não deve ter sobrado, a esta altura, mais nenhum lugar para a menor dúvida
de que a mutabilidade não é um vício secreto do inglês ou de qualquer outra
língua em particular, mas uma epidemia de proporções universais. Apesar
disso, a constatação de que a mudança é uma enfermidade crônica que afeta
todas as línguas apenas exacerba uma questão fundamental ― por quê? Por
que as línguas estão constantemente em movimento, por que elas
simplesmente não tomam jeito e ficam quietinhas?
A primeira reação pode ser a de que a resposta é luminosamente óbvia. O
mundo à nossa volta está mudando o tempo todo e, naturalmente, a língua tem
que mudar com ele. A língua precisa estar em dia com as novas realidades,
novas tecnologias e novas idéias, dos arados às impressoras a laser, e do
politicamente correto ao SMS, e é por isso que ela muda sempre. Esta linha de
argumento pode parece atraente a princípio, mas, quando a gente olha para as
mudanças reais mais de perto, o quadro se torna muito mais complicado.
Tome-se, por exemplo, essa breve frase extraída das passagens citadas mais
atrás:
~ ano 1000:
~ ano 2000:
me ofthingth sothlice thæt ic hi worhte
I regret having made them
Que novas invenções ou novas idéias poderiam ter estado por trás das
diferenças aqui? Que nova tecnologia, por exemplo, pode ter disparado a
mudança de sons de ic {itch} para I {ay}? E que nova ideologia é responsável
pela troca na ordem das palavras, de ‘them made’ (hi worhte) para ‘made
them’?
Ou então vamos ver a questão pelo outro lado e examinar uma língua livre do
fardo da hi-tech e até mesmo do arado. O mbabaram foi outrora a língua de
uma pequena tribo aborígine no nordeste de Queensland (Austrália), cerca de
cinqüenta milhas a sudoeste de Cairns. Nos anos 1930 um antropólogo
registrou uma lista com algumas palavras do mbabaram, que pareciam
inteiramente diferentes não só das línguas vizinhas da região, mas de todas as
outras línguas aborígines do continente australiano ― era como se a tribo
mbabaram tivesse caído de pára-quedas na floresta tropical do norte da
Austrália, vinda de algum lugar distante, e existiu até mesmo a teoria de que os
mbabaram eram aparentados com os extintos tasmanianos, milhares de
12
quilômetros ao sul. Nos anos 1960, quando um lingüista começou a coletar
mais dados sobre a língua junto ao punhado de gente velha que ainda
conseguia se lembrar dela (a última pessoa que sabia falar o mbabaram
morreu em 1972), a natureza decididamente “não-australiana” da língua
pareceu, a princípio, ser mesmo confirmada. E foi necessária alguma
engenhosidade para reconhecer que o mbabaram era, de fato, intimamente
aparentado às línguas das tribos vizinhas, só que esse parentesco tinha ficado
totalmente obscurecido pelas mudanças radicais na pronúncia que aquela
língua tinha sofrido em algum estágio de sua história: sílabas inteiras tinham
sido arrancadas e novas vogais tinham brotado, de modo que, só para dar um
exemplo, uma palavra originalmente pronunciada gudaga acabou em
mbabaram como dog (que, por pura coincidência, quer dizer exatamente... dog
[‘cão’]).
Ora, se uma língua supostamente muda apenas para ficar em dia com arados
e impressoras a laser, então por que a língua de uma pequena tribo de
caçadores-coletores, que nunca ultrapassaram o estágio tecnológico da idade
da pedra, deveria ser tão instável? Fica evidente, portanto, que nossa primeira
explicação “óbvia” de por que a língua permanece mudando não é tão
convincente afinal. Mesmo que algumas mudanças na língua ocorram a fim de
adequá-la a realidades mutantes, elas constituem somente uma parte menor
das transformações gerais que as línguas sofrem. O volume principal de
mudanças tem que derivar de razões inteiramente diferentes.
Há um segundo colocado na lista das explicações “óbvias” de por que a língua
muda tanto, e é a questão do contato. É fácil imaginar que as línguas mudam
somente porque seus falantes entram em contato com falantes de outras
línguas ou dialetos e começam a tomar palavras e expressões emprestadas
uns dos outros. Essa linha de raciocínio é especialmente tentadora no caso do
inglês, já que, embora seja uma língua germânica, quase metade de seu
vocabulário não é de origem germânica, mas emprestado de várias outras
línguas, sobretudo o francês normando e o latim. Mas embora o contato, “fique
em dia com seus amigos”, por assim dizer, seja sem dúvida alguma a fonte de
muitas mudanças e, portanto, uma explicação muito melhor do que “fique em
dia com a impressora a laser”, ele ainda não pode ser considerado responsável
pelas mudanças radicais em absolutamente todas as línguas, sobretudo
aquelas cujos falantes pouco estiveram expostos a outras línguas. E, além
disso, mesmo no caso do inglês, certamente uma das línguas mais cobiçosas,
um rápido olhar sobre as mudanças, digamos, de ic {itch} para {i} para {ey}
para {ay}, logo revelará que muitas delas simplesmente não podem ser
atribuídas ao empréstimo.
Finalmente, uma terceira explicação “óbvia” de por que a língua deve mudar
tanto é que as pessoas são criaturas progressistas que valorizam a novidade e
o aperfeiçoamento e, assim, se dispõem a tentar renovar e aperfeiçoar a
língua. Mas essa idéia não leva a lugar nenhum. Como vamos ver no próximo
capítulo, quando as pessoas se dignam pensar sobre as mudanças, elas
geralmente as consideram como um grande perigo para a língua (e também
para a sociedade, senão para toda a civilização) e as condenam como
negligência, desmazelo ou erro puro e simples. Quando muito, o peso da
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censura e da autoridade conspira para impedir que a língua mude. E todavia
ela se move!
►▪►▪►▪◄▪◄▪◄
Todas as explicações óbvias, por conseguinte, não dão conta da grande
amplitude das mudanças. Parece que as línguas não precisam nem dos
contatos e empréstimos nem da parafernália dos arados para se transformar,
pois elas continuam mudando, mesmo sem a menor provocação, e mesmo a
despeito das melhores intenções das pessoas. Mas se todas essas razões
externas falham na explicação das mudanças, então deve haver alguma coisa
na língua mesma que a torna tão vacilante. Deve haver alguma coisa
inerentemente instável no próprio modo como nós nos comunicamos, algum
elemento de volatilidade que empurra a língua para um estado de inquietação
interna e lhe provoca comichão nos pés. Mas o quê?
O enigma da mudança tem sido um dos quebra-cabeças permanentes do
estudo da linguagem, e preocupou os lingüistas durante todo o século XIX e
primeira metade do XX. Mas somente nas últimas décadas os lingüistas
finalmente conseguiram fazer progressos significativos para resolvê-lo. Como
qualquer respeitável história de suspense, o mistério da mudança mostrou ter
três elementos principais: um suspeito ― quem está de fato por trás das
mudanças? ―; um motivo ― por que quem quer que esteja fazendo isso está
fazendo isso? ―; e por fim, a questão mais difícil de todas, a escapada ―
como é que os perpetradores saem por aí com essas mudanças impunemente
sem causar danos devastadores à comunicação?
Rastrear o suspeito pode, de início, parecer uma missão um tanto árdua já que
é bastante difícil imaginar alguém que esteja realmente tentando mudar a
língua (você está?). Mas a identificação revela ser de uma absoluta
simplicidade, já que embora ninguém em particular esteja mudando a língua, o
fato é que somos todos nós que provocamos as mudanças, mesmo que nunca
queiramos isso. Tem um grande número de coisas que as pessoas provocam
sem ter intenção. Basta pensar nos engarrafamentos. Ninguém jamais saiu de
casa para sua locomoção diária com o firme propósito de criar um
engarrafamento e, no entanto, cada motorista contribui para o
congestionamento ao acrescentar um carro mais a uma avenida já superlotada.
Mas as mudanças involuntárias nem sempre têm que ser prejudiciais. Imagine
dois edifícios públicos com um terreno coberto de mato separando-os. A única
calçada que liga os prédios faz um longo trajeto ao redor do terreno, de modo
que as pessoas que têm de andar de um prédio para o outro começam a cruzar
o terreno para atalhar. A primeira pessoa a fazer isso tenta abrir sua trilha
através da grama alta, e as pessoas que vêm depois percebem que a trilha
aberta pela primeira pessoa é o jeito mais convidativo de atravessar o mato, já
que parte da grama e dos arbustos já foram esmagados. À medida que mais e
mais gente cruza o terreno, mais e mais vegetação é pisada e assim,
finalmente, a trilha se transforma num caminho limpo e liso. A questão é que
ninguém em particular criou esse caminho, e ninguém em particular sequer
pretendeu criá-lo. A trilha não emergiu de algum projeto de paisagismo urbano,
mas das ações espontâneas acumuladas dos atalhadores, que estavam, cada
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um, seguindo seus próprios motivos egoístas ao tomar o caminho mais fácil e
mais rápido.
As mudanças na língua emergem de um modo bastante semelhante, pelo
acúmulo de ações involuntárias. Essas ações decorrem de motivos
inteiramente egoístas, e não de qualquer projeto para transformar a língua.
Mas quais poderiam ser esses motivos? Esta é uma questão muito mais
complicada e, para lhe fazer justiça, ela nos ocupará nos próximos capítulos.
Mas, na essência, os motivos para a mudança podem ser encapsulados na
tríade economia, expressividade e analogia.
A economia se refere à tendência a poupar esforços e está por trás dos atalhos
que os falantes freqüentemente tomam na pronúncia. Como veremos no
próximo capítulo, quando esses atalhos se acumulam eles podem criar novos
sons, exatamente como a trilha nova que atravessa o mato. A expressividade
tem a ver com as tentativas dos falantes de alcançar maior efeito para seus
enunciados e estender sua gama de sentidos. Uma área em que somos
particularmente expressivos é em dizer “não”. Um simples “não”
freqüentemente é considerado fraco demais para veicular a profundidade do
nosso desentusiasmo, por isso, para garantir que o efeito correto seja obtido,
nós engordamos o “não” com “não mesmo”, “nem um pingo”, “de jeito nenhum”,
“nem sonhando”, “nem que a vaca tussa”, e por aí vai. Mas, como veremos
mais tarde, os resultados dessa hipérbole podem freqüentemente ser
autodestrutivos, já que a repetição das frases enfáticas pode causar um
processo inflacionário que desvaloriza tal moeda.
O terceiro motivo para a mudança, a analogia, é uma forma abreviada de
designar a nossa ânsia mental por ordem, a necessidade instintiva dos falantes
de encontrar regularidade na língua. Os efeitos da analogia são mais evidentes
nos erros das criancinhas, como em “eu fazi” ou “se eu sesse”, que são
simplesmente tentativas de introduzir regularidade em áreas da língua que são
bastante desorganizadas. Muitos desses “erros” são corrigidos enquanto as
crianças crescem, mas algumas inovações acabam pegando. No passado, por
exemplo, existiam muito mais plurais irregulares em inglês: um bōc (‘book’),
dois bēc; uma hand, duas hend; um eye, dois eyn; uma cow, várias kine. Mas,
gradualmente, “erros” como “hands” se insinuaram por analogia com o -s do
padrão regular do plural. Assim, bēc foi substituído pelo “incorreto” bokes
(‘books’) durante o século XIII, eyn foi substituído por eyes no século XIV, kine
por cows no século XVI.
[...] Por enquanto, e mesmo sem entrar em todos os detalhes, as razões para a
crônica inquietação interna da língua devem estar começando a entrar em foco.
Forças diferentes, impulsionadas por diferentes motivos, ficam puxando e
empurrando a língua em diferentes direções e, num sistema tão complexo,
esses trancos constantes fazem com que o todo nunca permaneça tranqüilo.
►▪►▪◄▪◄
Tendo formado uma idéia do suspeito e dos motivos, sobra-nos a terceira e
mais intrigante parte do mistério: como é que os falantes permitem que a língua
saia por aí mudando o tempo todo? Por que as mudanças não são refreadas e
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interrompidas em sua trajetória? À primeira vista, parece haver todas as razões
do mundo para que a sociedade nunca permitisse que as mudanças
ocorressem. Afinal, o propósito primordial da língua é permitir a comunicação
efetiva, um fluxo de idéias e informações entre as mentes. E uma vez que os
nomes que usamos para as coisas são apenas convenções arbitrárias (pá seria
um nome tão bom para uma colher quanto colher para uma pá), o único modo
de obter a comunicação coerente é todos e cada um concordarem com o
sistema de convenções e aderirem a ele. Assim, se as regras e regulamentos
da língua puderem ficar mudando o tempo todo, certamente seu propósito
essencial estará ameaçado. O inglês, por exemplo, mudou quase além do
reconhecimento em menos de trinta gerações, mas como essa mutação pôde
ocorrer sem causar um colapso na comunicação no meio do caminho?
Basta pensar sobre os efeitos da mudança em outros sistemas complexos para
captar a gravidade da ameaça. Imagine só o que seria dirigir se o código de
trânsito ficasse mudando enquanto você estivesse na estrada. Tem uma
história que ouvi uma vez na Noruega sobre o que aconteceu algumas décadas
atrás, quando o sistema de tráfego na vizinha Suécia sofreu uma completa
reorganização. Originalmente, o suecos dirigiam do lado esquerdo, mas como
todos os países vizinhos dirigiam do lado direito, o governo decidiu que a
Suécia devia se atualizar. A mudança foi estabelecida para um dia de 1967, e
uma maciça campanha publicitária foi lançada para informar os motoristas
sobre a mudança iminente. Mas à medida que se aproximava a data fatídica, o
governo ficou nervoso, temendo que ocorresse um caos nos primeiros dias
depois da mudança. Assim, conta a história, decidiu-se às pressas revisar os
planos e assumir uma tática mais suave. Na primeira semana, somente os
caminhões e ônibus dirigiriam pela direita, e todo o resto continuaria dirigindo
pela esquerda...
Apócrifa ou não, as implicações dessa história são claras. Evidentemente, os
falantes não podem todos de uma vez trocar de uma forma para outra
exatamente no mesmo momento — então, como é que não ocorrem colisões
fatais? Se as regras do sistema de comunicação podem ficar mudando, por
que não existem sérios mal-entendidos na época em que as mudanças estão
acontecendo? Veja a mudança no verbo repent, que deu um salto mortal em
seu significado, de modo que quando um falante do século XVII dizia it
repenteth me, o que ele realmente queria dizer não era “isso arrepende-me”,
mas sim “eu me arrependo disso”. Como essa mudança de direção pôde
acontecer sem causar acidentes pelo caminho?
A princípio, alguém pode imaginar que esse estranho salto mortal só foi
possível porque repent é uma palavra bastante rara, usada em contextos
restritos. Talvez não tenham ocorrido perdas totais porque a mudança se deu
em alguma estradinha deserta do interior, mas certamente tal mudança de
direção seria impensável numa auto-estrada movimentada. Portanto, pode ser
surpreendente que diversos outros verbos tenham dado um salto mortal
semelhante em inglês, inclusive o verbo like que de jeito nenhum é uma
estradinha do interior. Suponhamos que alguém queira traduzir em inglês
moderno a seguinte frase do século XV: “This is my loved son that liketh me”. A
tradução óbvia iria pelo caminho de “this is my beloved son who likes me” [“este
é o meu amado filho que gosta de mim”]. Mas essa seria a opção mais
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redondamente errada, pois o que a frase realmente quer dizer é “this is my
beloved son, whom I like” [“este é meu amado filho, de quem eu gosto”].
Originalmente, o verbo like não era um sinônimo mais fraco de love, mas
significava “agradar” ou “dar prazer a”, por isso a frase “he liketh me”
significava “ele me é agradável”, ou no sentido moderno de like: “I like him” [“eu
gosto dele”]. Esse sentido mais antigo de like ainda era freqüentemente usado
por Shakespeare na virada do século XVII:
HOST: The
JULIA: You
music likes you not?
mistake; the musician likes me not.
(The Two Gentlemen of Verona)
Traduzido em inglês moderno, o diálogo significaria:
HOST: Don’t you like the music?
JULIA: You’re wrong, I don’t like the
musician.
Mas hoje o antigo sentido parece totalmente estranho. Em algum momento, em
plena luz do dia, o verbo like ― sem dúvida um dos mais comuns e essenciais
verbos da língua inglesa ― saltou de um sentido para o outro, obviamente sem
criar toda uma série de comédias histriônicas da vida real sobre quem
realmente gosta de quem.
►▪►▪◄▪◄
O significado das palavras não é a única área da língua onde se pode esperar
que tais mudanças desmontem as engrenagens da comunicação, pois
transformações radicais na pronúncia deveriam sem dúvida ser igualmente
obstrutivas. Imagine, por exemplo, uma mudança nos sons que, em seu
caminho, transformasse sistematicamente todo p num f. Mesmo supondo que
houvesse um motivo absolutamente bom para essa mudança (não vamos nos
preocupar agora sobre que motivo poderia ser), dá para imaginar que os
censores permitiriam que essa transformação atingisse o inglês? Acaso parece
provável que, num período de cinqüenta anos, as pessoas respeitáveis
começarão a assistir falestras, ir a fique-niques no farque e dizer à mesa, com
toda a seriedade, coisas como: “me fasse o fão, for favor”? Sem dúvida, uma
mudança assim jamais seria tolerada, pois, senão, como alguém conseguiria
fazer a diferença entre fonte e ponte, ficar e picar, esfera e espera?
No entanto, por mais improvável que pareça, essa exata mudança de p para f
já aconteceu, não em alguma exótica língua tribal, mas no inglês mesmo,
embora num passado bem distante. Dê uma olhada na seguinte lista de
palavras inglesas e em seus correspondentes em dinamarquês, italiano e
português:
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INGLÊS
DINAMARQUÊS
father
fish
foot
for
few
first
fader
fisk
fod
for
få
først
ITALIANO
PORTUGUÊS
padre
pesce
piede
per
poco
primo
pai
peixe
pé
por
pouco
primeiro
As palavras em cada linha são claramente “cognatas” (derivam da mesma raiz
do ancestral pré-histórico das quatro línguas, o proto-indo-europeu), de modo
que qualquer diferença de pronúncia entre elas deve ser conseqüência de
mudanças sonoras que ocorreram na história individual de cada língua. E
embora algumas outras mudanças sejam evidentes, uma diferença se destaca
em particular: sempre onde em italiano e português aparece um p, em inglês e
dinamarquês aparece um f. Comparando cognatos desse tipo em todas as
línguas-filhas do proto-indo-europeu, os lingüistas deduziram que todas as
palavras acima começaram originalmente com um p: fish, por exemplo, era
*peisk ou *pisk em proto-indo-europeu, e foot era *ped. (O asterisco é uma
convenção usada para marcar palavras que não são atestadas em documentos
reais, mas reconstruídas com base em comparações entre as línguas-filhas.) E
enquanto o português e o italiano ainda conservam o p inicial primitivo, na
história do inglês e do dinamarquês (e, de fato, de todas as línguas
germânicas), os p de algum modo se transmudaram em f.
Duzentos anos atrás, os lingüistas já tinham descoberto que uma mudança de
p para f devia ter ocorrido em germânico, mas por quase um século e meio eles
não puderam sacar como essa mudança tinha se processado. Afinal, por que
essa transformação seria mais viável em tempos pré-históricos do que na
época atual? Num esforço por descobrir como essas mudanças podiam
ocorrer, os lingüistas tentaram vasculhar os registros históricos em busca de
pistas. A mudança germânica de p para f jaz perdida na pré-história, é claro, de
modo que, obviamente, ela não podia ser observada diretamente. Mas mesmo
quando os lingüistas buscaram indícios de mudanças sonoras ocorridas
durante o período histórico, descobriram, para sua consternação, que por
algum motivo as mudanças nunca poderiam ser observadas em progresso.
Tudo o que se podia traçar a partir dos registros era um estágio antes que uma
dada mudança começasse e um estágio algumas gerações mais tarde, depois
que a mudança estava completada. Os registros pareciam jamais esclarecer o
elusivo processo intermediário, quando as transformações estavam de fato
ocorrendo.
Os lingüistas do século XIX criaram uma brilhante teoria para sair daquele
apuro e para explicar por que não conseguiam agarrar aquelas mudanças
sonoras no ato. Tentar observar mudanças sonoras, afirmavam eles, era como
tentar observar uma árvore crescendo: o progresso da mudança é tão lento
que o olho nu só consegue detectá-la comparando a língua em dois pontos
distantes no tempo. Os falantes começaram com um p de verdade e, então, ao
longo de gerações ― alegava a teoria ―, o som avançou uma polegada rumo
a algo só um pouquinho próximo de um f e, depois, mais um pouquinho
próximo até que, um século ou mais depois, o som finalmente atingiu um f real.
Em 1933, Leonard Bloomfield, o principal lingüista americano da época,
18
sintetizou com firmeza essa visão: “O processo de mudança lingüística jamais
foi observado diretamente”, assegurava ele a seus leitores. “Tal observação,
com nossos equipamentos atuais, é inconcebível”. A teoria era duplamente
atraente porque, num só golpe, conseguia explicar não só por que os lingüistas
não podiam observar as mudanças em progresso, mas também, antes de tudo,
como as mudanças podiam acontecer. Como as mudanças aconteciam lenta e
imperceptivemente, os falantes não eram confundidos por elas e, de fato, eles
nem sequer as percebiam e, assim, ninguém tentava interrompê-las em sua
marcha.
Por mais engenhosa que fosse, a teoria apresentava apenas um pequeno
inconveniente: não tinha nenhum fundamento na realidade. Embora as vogais
possam ser capazes de deslizar continuamente de uma para outra, com
consoantes como p e f essa idéia não faz o menor sentido, pois onde é que
estão todos os sons fantasmas que supostamente existem em algum lugar
entre as duas? Mesmo admitindo que a combinação pf possa ser reconhecida
como um marco no meio do caminho entre p e f, como deveria ser pronunciado
o som que fica a dois terços do caminho? Existem muitíssimas línguas que têm
um p, outras (bem menos) que têm um f, mas por que é que ninguém encontra
línguas que bem neste momento apresentem um som que esteja a cinco
sextos do caminho entre os dois?
É fácil zombar da teoria da mudança sonora gradual, mas por décadas
ninguém conseguiu apresentar uma alternativa melhor. Até que, de repente, se
descobriu que a solução tinha estado o tempo todo bem debaixo do nariz de
todo mundo. É claro que é possível observar as mudanças em progresso ― a
gente só precisa saber para onde olhar. Somente nos anos 1960  os lingüistas
finalmente se deram conta de que, para observar as mudanças sorrateiras em
ação, não precisavam mergulhar nos registros antigos, mas sair às ruas e ouvir
o que estava acontecendo no aqui-agora. E assim que os lingüistas
começaram, enfim, a compreender o que se passava ao seu redor, a resposta
não demorou a chegar.
Pense novamente na mudança de p para f, que parece tão implausível hoje em
dia. Se eu previsse que daqui a cinqüenta anos os jornais trarão a manchete:
“o novo fresidente da refública tomou fosse ontem no falácio”, alguém poderia,
não sem razão, desdenhar dessa previsão. Mas vamos agora testar um
prognóstico diferente: sugiro que daqui a cinqüenta anos o th do inglês se
transformará num f, de modo que as pessoas dirão: “It’s going to funder on
Fursday, I fink” [“Acho que vai trovejar quinta-feira”]. Você trataria essa
previsão com o mesmo ceticismo? Com toda probabilidade, não trataria, e a

Embora o autor não os nomeie explicitamente, ele está se referindo aqui aos sociolingüistas,
sobretudo a William Labov e a seu mestre, Uriel Weinreich, que, na década de 1960,
começaram a questionar os postulados clássicos da lingüística histórica e demonstraram
empiricamente que era possível observar a mudança em curso e, a partir daí, postular uma
nova teoria da mudança lingüística. O texto fundador dessa nova postura é Fundamentos
empíricos para uma teoria da mudança lingüística, assinado por Weinreich, Labov e Herzog,
publicado em 1968 [tradução brasileira de Marcos Bagno, publicada em 2006 pela Parábola
Editorial, São Paulo] (N. T.).
19
razão para isso é a solução do mistério de como a mudança pode ocorrer na
língua.
Se você tem familiaridade com o modo como o inglês é falado no Reino Unido,
saberá que já hoje em dia algumas pessoas dizem fink e Fursday. Essas
pronúncias já fazem parte do inglês, ou pelo menos do inglês de algumas
pessoas. E como elas já são uma parte da variação estabelecida, é muito mais
fácil imaginar como essas pronúncias poderão um dia se tornar a norma: elas
simplesmente se tornarão mais e mais comuns e, por fim, ganharão a dianteira.
A chave para o mistério da mudança é, portanto, a variação. A língua não é
uma entidade monolítica, rígida, mas um sistema difuso, flexível, com uma
enorme quantidade de variação “sincrônica” (isto é, variação em qualquer
ponto da linha do tempo). Existe variação na fala das pessoas de regiões
diferentes, de idades diferentes, de sexos diferentes, de classes sociais
diferentes, de profissões diferentes. Uma mesma pessoa, aliás, pode usar
formas diferentes dependendo das circunstâncias: fink com os amigos no bar,
mas think com o chefe no escritório. E é por meio da variação que as
mudanças na língua ocorrem, pois o que realmente muda com o tempo são as
freqüências das formas concorrentes. Por isso, se em alguma data futura o
inglês se mover de th para f, não será depois de um longo período durante o
qual o som th gradualmente foi chegando mais perto e mais perto do f. Será
simplesmente porque mais e mais gente dirá f em vez de th, até que por fim o
th se tornará tão raro que as pessoas nem se lembrarão mais dele.
De fato, se pudéssemos dar um pulinho no passado e vagar pelas ruas de uma
aldeia germânica, digamos lá por volta de 400 a.C., bem quando p estava
mudando para f, sem dúvida nós ouviríamos as duas pronúncias lado a lado.
Gente mais velha e mais refinada poderia dizer pisk (‘peixe’), mas a galera
mais jovem e o pessoal antenado diria fisk. Com toda probabilidade também,
ouviríamos as gerações mais velhas esbravejar contra a pronúncia
desmazelada e vulgar dos jovens. Mas se ficássemos ali por mais uma ou duas
gerações, ouviríamos cada vez menos gente dizer pisk e cada vez mais gente
dizer pisk até que, finalmente, ninguém mais teria a menor idéia do que era um
pisk.
Essa resposta para explicar como as mudanças conseguem se propagar na
língua pode parecer bastante insolente. Para falar sem rodeios, estou
afirmando que as pessoas conseguem lidar com o caos da mudança ao longo
dos anos (isto é, com a “variação diacrônica”) simplesmente porque elas
conseguem lidar com o caos ainda maior da variação sincrônica, a diversidade
em qualquer ponto do tempo. A capacidade de lidar com a variação sincrônica
é uma parte essencial do nosso saber lingüístico. A gente consegue lidar não
só com Thursday e Fursday, mas também com eether e eyether, dreamed e
dreamt, shedule e skedule, am I not? e aren’t I? e milhares de outras variações
em sons, significados e estruturas  . Quando o assunto é língua, nós todos

Poderíamos pensar também em centenas de exemplos de variação sincrônica no português
brasileiro atual, prenúncios de prováveis mudanças futuras: eu fêcho ~ eu fécho; eu rôbo ~ eu
róbo; o filme de que eu gosto ~ o filme que eu gosto; um lugar bom de morar ~ um lugar bom
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somos motoristas incrivelmente bons ― nós todos fomos treinados para correr
nas ruas de Nápoles, e é por isso que não colidimos de frente uns com os
outros o tempo todo.
Se você duvida que suas próprias habilidades de motorista de fato mereçam
esses cumprimentos, pense no seguinte caso, bem simples. Suponha que você
vê duas velhinhas saindo de um teatro e que da animada conversa delas você
pesca a palavra wicked! [“cruel”]. É claro que você automaticamente vai
presumir que aquelas senhoras reprovaram o espetáculo de ponta a ponta.
Mas se logo atrás das velhinhas vierem duas adolescentes e uma delas disser
wicked!, você provavelmente interpretará de outro modo a avaliação delas  .
Daqui a cem anos, quando o significado original de wicked tiver sido totalmente
esquecido, as pessoas ficarão admiradas com o fato de algum dia ter sido
possível que uma palavra que significava “cruel, ruim, perverso” tenha mudado
seu sentido para “maravilhoso” tão depressa. Mas para nós, que estamos no
meio da coisa, a variação não parece causar tanta aflição. Nós deduzimos o
sentido extraindo informações do contexto, daquilo que sabemos sobre o
falante e do que inferimos sobre suas intenções. E, na maioria dos casos,
deduzimos certo. Às vezes, os sentidos contraditórios até andam lado a lado
por séculos: uma palavra como fast, que começou sua carreira significando
algo como “seguro, firme” ou “que não se move”, mais tarde desenvolveu o
sentido contrário de “rápido, veloz”. Ambos os sentidos sobreviveram até o dia
de hoje, mas nós ainda conseguimos lidar com eles muito bem, aparentemente
sem atropelos mais sérios.
[...] Exatamente as mesmas habilidades devem ter permitido aos falantes do
passado lidar com aquelas mudanças que, em retrospectiva, parecem tão
improváveis. Pense de novo no acrobático verbo like, por exemplo. Para
ouvidos modernos, a mudança de it likes me para I like it parece improvável,
mas na perspectiva do século XVII era só mais um caso de variação sincrônica.
Shakespeare pode ter usado like nos sentido mais antigo (“the musician likes
me not”), mas de fato ele também usa like nos sentido moderno (e acrobático).
[...] Os ouvintes da época de Shakespeare podem ter empregado as mesmas
habilidades para resolver a questão de quem gosta de quem, tal como nós
decidimos o sentido de wicked ou fast. À medida que o século XVII avançava,
porém, o sentido mais antigo de like se tornou mais raro e, por fim,
desapareceu completamente. Como não estamos mais acostumados a lidar
com aquele caso particular de variação, a mudança de significado parece uma
guinada brusca numa avenida movimentada. Mas, para os falantes de então, o
desaparecimento gradual do antigo sentido mal deve ter sido notado. [...]
de se morar; ele foi reprovado na escola ~ ele reprovou na escola; deixa-me ver ~ deixa eu ver
e assim por diante. (N. T.)

O mesmo ocorre, no português brasileiro, com termos como “detonar”, “sinistro”, “mau”,
“cruel” etc. que, na linguagem das gerações mais novas, têm sentidos positivos, exatamente
contrários aos sentidos originais das palavras (N. T.).

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