mario drumond - Café Novo Mundo

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mario drumond - Café Novo Mundo
O ESPLENDOR DO IMPÉRIO
MARIO DRUMOND
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O esplendor do Império
Mario Drumond
Escrito entre 11 de setembro e 30 de dezembro de 2008.
Belo Horizonte – Brasil
Revisão
Frederico de Oliveira
Novela em forma de emeio
(Suplemento Literário da Gazeta em forma de emeio)
O esplendor do Império
Mario Drumond
33 capítulos publicados ao ritmo de um capítulo por dia, todos os dias.
Da série “Escritos anti-imperialistas”
Escrita entre 11 de setembro e 30 de dezembro de 2008.
Belo Horizonte – Brasil
Revisão: Frederico de Oliveira
Capítulo 1
Enquanto se ajeitava na poltrona, Taquinho não conseguia se conter de tanta
felicidade e ria à toa consigo mesmo. Era a primeira vez que viajava de avião, fato
que ampliava a emoção daquela viagem e coroava de sucesso cinco anos de batalhas
e ralações. Fazia 23 anos justamente nesse dia que acabava de eleger como o mais
feliz de sua vida, ao afivelar e apertar o cinto de segurança. Taquinho dera de
presente a si mesmo a realização de um grande sonho: ele decolava de Brasília em
vôo direto para Nova York, cidade que para ele era a capital do paraíso na Terra.
De lá não pretendia retornar tão cedo, tinha tudo planejado. É verdade que o sonho
começara a ser acalentado bem antes; desde criança Taquinho alimentava sua
admiração pelo país do hambúrguer e do hot dog, e nunca lhe faltou estímulo para
isso, desde as primeiras revistas em quadrinhos, brinquedos, desenhos animados e
jogos eletrônicos até as inúmeras mídias atuais, impressas e eletrônicas. Mas a data
inicial de sua concretização ele atribuía ao dia em que completou 18 anos.
A partir de então, se tornou o dono de seu nariz e não precisava mais da assinatura
dos pais para tomar decisões. De imediato, transferiu-se para o horário noturno de
uma escola pública onde completou o curso secundário sem o menor esforço e
decidiu que, se um dia ingressasse numa universidade, isto se daria nos EUA. Assim,
o dinheiro que o pai enviava para pagar a escola particular ele guardava numa conta
de poupança para o seu grande projeto. E tinha o dia inteiro disponível para ralar de
bicicleta, fazendo entregas e serviços de office-boy, com o que apurava um bom
dinheiro que também ia para a mesma conta.
Taquinho chegou a evitar namoradas para não gastar o dinheiro que economizava e
não comprometer o futuro de seu projeto. Quase não gastava de suas economias, e
tinha de se conter para ir uma só vez por semana ao McDonald’s, sempre aos
sábados à noite, e devorar o seu sanduíche predileto, o “quarteirão-com-queijo”,
acompanhado de meio litro de Coca Cola. No mais, valia-se da comidinha caseira de
dona Lourdes, sua mãe, costureira afamada pelo talento em tudo o que dizia respeito
a agulha, linha e tesoura, com o que tirava o suficiente para sustentar uma vida
modesta mas digna, para ela e o filho. Moravam na casa que fora do pai dela, o avô
Pedro, falecido há pouco mais de seis anos (do embarque de Taquinho) e que
também fora mestre dos mesmos dons que a filha herdou, e deixou fama de melhor
alfaiate da região. O avô Pedro fora para Taquinho um pai e um amigo, porque o
marido de dona Lourdes, seu Eustáquio, oficial mecânico da Vale do Rio Doce, era
um pai ausente na vida dele; um zero à esquerda que, quando muito, aparecia uma
vez por mês, num fim-de-semana, e só garantia o mencionado dinheiro para pagar a
escola e uma muito irregular ajuda à esposa para o pagamento das contas da casa.
A casa era a mesma em que nascera dona Lourdes, logo quando o pai dela a
adquirira, no início dos anos 50; uma casa pequena de três quartos, um tanto
envelhecida, mas conservada com carinho e asseio, e que ocupava um terreno
relativamente grande, rodeada de quintal, varandinha e jardim. Ficava na paróquia da
Igreja de N. S. Lourdes, a santa que deu o nome e tornou-se padroeira da mãe de
Taquinho, e da qual ela manteve-se devota, como Filha de Maria e voluntária do Lar
das Crianças, entidade beneficente mantida pela casa paroquial. Sua mãe, dona Laila,
morrera do parto, no mesmo dia em que lhe dera à luz, e seu Pedro não mais se
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casou, dedicando-se somente ao ofício e à filha única, com a valiosa ajuda da velha
negra Honória, empregada da casa, babá e mãe substituta da menina até se despedir
da vida, pouco depois de Lourdes completar quinze anos. Na época da aquisição da
casa, era ali um subúrbio pobre. Hoje é o Bairro de Lourdes, bairro quase central e de
classe média próspera da cidade de Governador Valadares, em Minas Gerais.
Dali, Taquinho saía de bicicleta todas as manhãs, de segunda a sexta, fizesse sol ou
chuva, voltava para almoçar com a mãe, fazia uma breve sesta, e de novo ia pedalar
cidade afora até às cinco ou seis da tarde. Nem todas as noites ele ia à escola, só
quando necessário para não perder o ano. Assistia ao jornal e a um ou outro capítulo
de novela na televisão com sua mãe, conversavam um pouco e depois ia para o seu
quarto burilar o plano de viagem. Dona Lourdes não era contra, mas também não era
entusiasta dos planos do filho. Às vezes, ela citava o pai, que vivera as agruras da
emigração em vários países, inclusive os Estados Unidos, onde vivera, criança, no
início dos anos 30, e lá comera o “pão que o diabo amassou”: “se tem um paraíso na
Terra” – dizia seu Pedro – “ele está bem aqui, no Brasil”. Taquinho retrucava que os
tempos eram outros e que agora, se tivesse nascido nos EUA, ele poderia até ser um
astronauta da NASA. – “Que futuro tenho aqui, nessa merda de cidade?” –
questionava Taquinho, embaraçando a desconfiada mãe.
Mas os planos de Taquinho não eram como os de muitos de seus concidadãos e
colegas de entusiasmo com a metrópole. Não, não era o caso dele o modelo de
Mozart (pronunciavam Mozár), um exemplo célebre na cidade, que fora com a mão
na frente e a outra atrás e se deu bem trabalhando no setor de mudanças no interior
do país, onde agora vive numa cidadezinha ostentando casa cafonérrima com piscina,
mulher loura e filharada gorda. De lá, fica enviando fotos que circulam na cidade
toda, como se para fazer inveja. Até levou os pais, que não se adaptaram e acabaram
voltando para Valadares.
Os planos de Taquinho eram ambiciosos. Foram minuciosamente detalhados ao
longo de três anos, junto com um funcionário de uma agência de turismo que era
experiente no negócio e até ficou seu amigo, tendo lhe dado dicas muito boas.
Taquinho queria chegar pela porta da frente, no aeroporto John F. Kennedy, em
Nova York, onde pretendia fixar residência e só voltar ao Brasil vez ou outra,
curtindo umas férias. Pensava também em levar a sua mãe algum tempo depois de lá
se estabelecer, e tirá-la de uma vez por todas da vidinha provinciana em que a via,
desperdiçando talento de costureira.
E ia com uma grana razoável, não chegaria lá na pindaíba, dependendo de favores.
Comprara um big pacote turístico de seis mil dólares e levava mais quatro mil para
os gastos iniciais. Calculara tudo como se fosse um investimento, era esperto e
inteligente.
O pacote era para três meses de permanência (para mais que isto não conseguiria
visto) e incluía curso intensivo de inglês (o amigo tinha lhe dado a dica: aprender
inglês lá e não gastar com cursinhos mixurucas daqui, que não adiantam nada: “Você
chega lá e nem sabe dar bom dia”). O curso duraria um mês inteiro e era em Orlando,
na Flórida, onde ficava a Disneyworld (conhecê-la era sonho que ele cultivava desde
que se entendia por gente), também incluída no pacote, com dois fins-de-semana de
hospedagem em hotel da própria Disney, ingressos para atrações pré-escolhidas e
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direito a acompanhante na primeira estadia (ele convidara um amigo que morava em
Nova York, o qual se oferecera para ser o seu guia introdutor na metrópole). Ao fim
do curso, calhava exatamente a realização de outro sonho há muito acalentado: um
show ao vivo de Madonna, que estava agendado em Washington, DC, onde
encontraria de novo o amigo e depois iriam juntos para Nova York, de trem. Tudo já
no pacote, o curso, as passagens, os hotéis, a alimentação, os ingressos do show, etc.
Ao fim de um mês, se nada mais desse certo, ele teria realizado a metade do seu
grande sonho: conhecer a Disney, aprender inglês e ver Madonna. E teria ainda
quatro mil dólares e dois meses para realizar a outra metade: ser cidadão da
“América” (que era como ele e os “colegas” valadarenses chamavam os EUA).
O maior problema seria o de conseguir o visto, mas deu tudo certo. Ele dera sorte,
pois tinha nascido em Belo Horizonte, onde os pais, logo após se casarem, vieram
residir para que seu Eustáquio fizesse o treinamento na Vale, e aqui pensavam
estabelecer-se em definitivo. A agência de turismo tinha seus macetes, e conseguiu
um atestado de residência “laranja” para ele em BH. Governador Valadares, para o
consulado, todo mundo sabia, era nome “mais sujo do que pau de galinheiro” e não
podia constar do pedido, ou o visto não saía. Resolvido isto, para Taquinho havia
outro risco, pequeno, segundo o agente - o seu próprio nome: José Eustáquio Raghid
Varela. O Raghid materno poderia dar galho, por isto só ia por extenso onde não
podia estar de outra forma; no mais, era José Eustáquio R. Varela. Taquinho passou
dois dias acampado na fila que se formava na porta do consulado dos EUA, no Rio
de Janeiro, debaixo de um calor de 40 graus e tremendo de medo. Mas, outra vez,
deu sorte. Foi atendido por um brasileiro substituto e relapso que mal conferiu a
documentação, lhe fez umas três perguntas cujas respostas Taquinho tinha ensaiadas
e na ponta da língua, e concedeu-lhe o almejado visto.
Taquinho relaxou enquanto sentia a força da aeronave decolando, o ar fluido se
tornando sólido e o poder dos motores distanciando-o do solo que ele observava pela
janelinha, sem desgrudar, vendo as coisas diminuindo de tamanho, as pessoas
virando formiguinhas... eis então as primeiras nuvens passando, e ele sobre o imenso
colchão branco banhado de sol. Pôs os óculos escuros, recostou-se na poltrona e
começou a repassar os planos: chegaria numa terça de madrugada e teria até o
amanhecer para se desvencilhar da alfândega. Tomaria um táxi até o endereço do
amigo cicerone, cuja chave do apartamento lhe seria deixada com uma amiga que
trabalhava na caixa de uma lanchonete, ao lado da entrada do prédio. Descansaria até
o fim da tarde, e, quando o amigo chegasse do trabalho, decidiriam o que fazer na
primeira noite. Nos dias seguintes, junto com o amigo (que providenciara uma
licença no serviço), compras de roupas, agasalhos, tênis, etc, e o laptop que seria,
enfim, o seu primeiro e ansiado PC (Taquinho às vezes usava o computador da
agência de turismo e tinha algum traquejo na máquina). Na sexta, ônibus para
Orlando e a Disneyworld. Na segunda, o amigo retornaria a NY e ele começaria o
curso de inglês na Universidade da Flórida, onde ficaria hospedado. Ao fim do curso,
ônibus para Washington, reencontraria com o amigo, iriam ver Madonna e, depois,
trem para Nova York e a alvorada da sua vida!
Num determinado momento, quando sobrevoavam o imenso mar verde da
Amazônia, foi anunciada uma inesperada escala em Manaus para checagem da
aeronave. Os passageiros demonstraram temores, mas, para Taquinho, que não tinha
nenhum medo de avião, o maior problema era o desacerto de seus planos que um
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atraso maior poderia causar. “Essas empresas brasileiras” – pensou atazanado – “bem
que eu queria uma empresa americana; mas o preço do pacote subiria quase mil
dólares!” De fato, não deu outra. Em Manaus, depois de interminável espera, foram
avisados que a aeronave não poderia prosseguir. Outra aeronave seria alocada para o
vôo e só estaria disponível no dia seguinte de manhã. “A empresa se encarregaria da
hospedagem e alimentação dos passageiros até o novo embarque” – disse uma
funcionária aos passageiros.
Porém, Taquinho, astuto, durante a espera reparou que um vôo da American Airlines
decolaria de Manaus para Nova York ainda naquela noite, e deu uma sapeada no
balcão da empresa, levando uma conversa com o seu pessoal. Lá ficou sabendo que
ainda havia lugares e, se a empresa dele autorizasse, ele embarcaria. Taquinho tinha
boa lábia e levou um lero com o gerente da empresa brasileira convencendo-o de que
era melhor negócio embarcá-lo do que bancar a sua estadia em Manaus. O gerente
topou, o negócio foi feito, foram providenciados os papéis, a bagagem foi trocada de
avião, e Taquinho embarcou.
Foi um vôo perfeito que pousou no aeroporto John F. Kennedy, de Nova York,
exatamente às 08h45 (hora local) do dia 11 de setembro de 2001.
Capítulo 2
Para estranheza dos passageiros, a maioria deles brasileiros com experiência na
viagem, a aeronave taxiava para longe da estação de desembarque. Um aviso da
cabine explicou que se tratava de uma “inspeção de rotina” a ser realizada num dos
hangares da companhia, depois do que a aeronave prosseguiria para o desembarque.
Estacionados dentro do imenso hangar, os passageiros viram entrar no avião seis
homens vestidos de macacões brancos (tipo de proteção contra epidemias) como se
fossem bizarros astronautas, cada um com sua “bomba de flit” com que borrifavam
todo o ambiente interno da cabine de passageiros, incluindo os próprios, criando uma
névoa de spray mal cheiroso.
Ninguém dava um pio, e Taquinho, considerando natural a “medida de segurança”,
só se preocupava com mais esse atraso. A moça da lanchonete era brasileira e largava
o serviço às 15h. Estava combinado que, se houvesse atraso, ela deixaria a chave do
apartamento com a dona da lanchonete. Mas Taquinho torcia para encontrar a
brasileira com quem se comunicaria à vontade, e ela tinha se comprometido em leválo até o apartamento. Isso evitaria problemas com portarias e outras chateações. E
até, dependendo do jeitão dela, talvez uma boa trepada inaugurando a sua entrada no
paraíso. O amigo tinha enviado um e-mail para a agência de turismo explicando tudo
e incluiu um texto em inglês para ser exibido no caso de desencontro com a
brasileira. Porém, Taquinho queria mesmo era o plano A.
Enquanto meditava em tais opções, percebeu que um dos “astronautas”, já pela
segunda vez, parara diante dele, que ocupava poltrona de corredor neste vôo, e o
observara detidamente. Terminada a “inspeção”, surgiram dois policiais
uniformizados que foram diretamente à poltrona de Taquinho, um dos quais falou
com ele em inglês num tom ríspido e autoritário. O passageiro vizinho, sabendo que
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Taquinho não o entenderia, disse a ele que o policial lhe ordenava para que o
acompanhasse e aconselhou-o a não se preocupar, se estivesse, é claro, com os
documentos em ordem e sem “sujeira” nas bagagens, pois aquilo às vezes ocorria.
Taquinho pegou sua sacola, saiu com os policiais até o carro de polícia estacionado
perto do avião, quando este começava a ser rebocado para fora do hangar. Ali, com
gestos bruscos e palavras ininteligíveis para Taquinho, revistaram-no, pegaram-lhe a
bagagem de mão, a carteira, o cinto onde escondia os 300 dólares que levara em
dinheiro, o ticket de bagagem, e o fizeram entrar no banco de trás do carro. Bastante
desconcertado e sem dar uma palavra, ele foi levado a um edifício anexo à estação
principal. Lá chegando, seguiu os policiais em passos apressados por labirínticos
corredores até uma espécie de sala de espera, de paredes nuas e sem nenhuma janela,
onde o deixaram sozinho. Minutos depois apareceu um funcionário na sala
imediatamente ao lado, separada da dele por uma divisória de vidro através do qual
Taquinho observou-o entregando o ticket a outro homem – que entrou e saiu
apressado – e revirando sobre uma comprida bancada a sua sacola de mão e o
conteúdo da carteira, os documentos pessoais, o dinheiro trocado. Sem pressa, o
homem examinou o passaporte e falou com alguém no telefone portátil. Depois,
passou a examinar os demais documentos, a papelada e a bagulhada que Taquinho
trazia na sacola.
Só restava a Taquinho sentar e esperar... e dar adeus a seus planos A, B, C e etc para
aquele dia. Passaram-se horas, o homem há muito tinha saído da sala deixando as
coisas dele espalhadas sobre a bancada, quando Taquinho viu o que pegara o seu
ticket chegar com sua mala de viagem e deixá-la sob a bancada. Um tempo depois
(Taquinho não tinha relógio) outros policiais introduziram na sala de espera um
grupo de quatro jovens árabes, usando turbantes e túnicas coloridas, aparentemente
estudantes em excursão. Eles entraram e sentaram-se, humildes, bem comportados.
Foi observando-os que Taquinho começou a perceber por que estava ali. Não pela
descendência da mãe, neta de libaneses emigrados (o avô Pedro nascera na França),
mas pela do pai, brasileiro quase mulato, era extraordinária a semelhança que
Taquinho constatava entre si e aqueles jovens árabes. De fato, Taquinho tinha traços
bem mouros na sua constituição física e na cor morena de sua pele. Se lhe pusessem
uma túnica e um turbante, passaria por um autêntico mustafá.
Uma espera infinita se passou para a pequena platéia que assistia, muda, a tudo o que
ocorria no outro cômodo. Observaram o funcionário revirar a mala de Taquinho,
pondo abaixo a caprichosa arrumação de dona Lourdes e espalhando roupas, cuecas,
sapatos, meias e agasalhos desordenadamente sobre a bancada, da qual rolaram as
duas latas de feijoada e da qual caíram com estardalhaço as duas de goiabada. Viram
o entra e sai de homens e mulheres trazendo as bagagens dos companheiros de
revista e outros e outras levarem e trazerem as coisas de Taquinho (as latas não
retornaram, ele reparou). Eis que, de repente, saíram todos de lá, a porta da sala de
espera se abriu e um novo homem, de terno, entrou e se dirigiu a Taquinho num
péssimo português com sotaque de gringo: - “Você, ir aqui!”
Taquinho foi até a outra sala, aliviado por enfim ter alguém que falasse ainda que
muito mal a sua língua, e ao entrar o homem foi disparando: “Estar todo no ordem
parra você. Pegar seus cosas o quanto rápido pôrque eles mais ir revistar e non ter
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sala mais. Estar todo full! Hoje dia hard, você saber...” Taquinho não vacilou, e
jogou tudo para dentro da mala e da sacola de qualquer jeito, desprezando toda a
estratégia de arrumação de bagagem que vinha com a assessoria do seu amigo da
agência de viagens e o amor de dona Lourdes. Pôs as miudezas, os documentos, o
cinto com o dinheiro, os cheques de viagem, a carteira, os papéis e os babilaques na
sacola, e as roupas, sapatos, agasalhos, etc, na mala, forçando-as para fechá-las o
mais rápido que podia. Enquanto isso o homem ia falando: “Os lata de comer non
dexarro entrar. Os papel and documento eles tirar cópia e você non sair do
itinerrárrio que declarrô, você entender? Agorra, ir comigo, eu indicar você o saguon
do aerroporto.” Taquinho seguiu o homem levando a sacola e puxando a mala com
rodilhas pelos labirintos do edifício até que o homem abriu uma porta larga e disselhe: “Welcome, descurpe, bienvenido, você estar nos Estados Unidos de Amérrica!
Bye and good luck!”
Ufa!!! Era uma sensação de alívio entrar finalmente com as bagagens no saguão do
aeroporto John F. Kennedy, livre para ir onde quisesse. Um grande relógio digital
mostrava 11h40 p.m. Santo Deus! – pensou Taquinho, ao perceber o tempo perdido e
a hora imprópria para se chegar em qualquer lugar. Teve a idéia de procurar um
balcão de empresa brasileira para ter com quem falar e reorganizar os planos com
alguma orientação local, e depois comer algo, pois estava mais que faminto; na
alfândega pôde apenas tomar água num bebedouro de corredor. Observou uns
logotipos conhecidos no lado oposto do saguão e se dirigiu para lá. Foi quando se
deu conta da atmosfera esquisita que o cercava, algo de tenso no ar, algo que notara
também na longa espera da revista. Parecia que o aeroporto estava parado, um
movimento anormal, com pessoas nervosas andando de um lado para o outro,
homens uniformizados, policiais, soldados do exército e muitos funcionários de
segurança, ao que lhe parecia. Quase ninguém com pinta de turista ou de passageiro
em trânsito, mendigos e vagabundos aqui e acolá, e sirenes zunindo, inúmeras, do
lado de fora. Neste momento viu num telão uma cena de aviões se chocando com as
Torres Gêmeas de Nova York e imaginou que fosse um novo filme catástrofe em
lançamento.
A cena se repetia com insistência e quando ele, distraído por ela, decidiu parar para
observá-la melhor, um pivete de bonezinho invertido de cor verde (foi só o que ele
pôde ver) veio por detrás e garfou-lhe a sacola de mão, saindo em disparada no
saguão. Taquinho ficou pálido de susto e, sem titubear, largou a mala e correu atrás
do garoto pensando no desastre que seria se ele ficasse ali sem documentos e sem um
tostão furado! O garoto ia como um corisco driblando as pessoas e ele disparado na
cola do pivete. De repente, sentiu como se o teto tivesse desabado sobre seu corpo;
quatro policiais enormes caíram em cima de Taquinho e, aos berros, o deitaram no
chão com brutalidade para então o algemarem. A partir daí, ele só se lembra de ser
jogado num camburão onde três outros homens mal encarados se encontravam
agrilhoados. – Que enrascada! – pensou, sentindo no corpo as dores das cacetadas
que tomou até chegar ali, exausto e bufando.
Uma seqüência de eventos tenebrosos tomou conta da vida de Taquinho desde então,
difíceis de pôr em ordem numa memória lógica. Ele não se lembrava, por exemplo,
se os três homens tinham sido retirados do camburão antes ou depois dele.
Lembrava-se, numa nuvem de fumo, estar numa sala hermeticamente fechada, na
qual não se ouvia um só ruído externo, sob uma lâmpada quente e forte, rodeado de
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homens que ao mesmo tempo o espancavam e o observavam, comparando-o com
uma foto impressa num papel. Marcou-o, como num pesadelo, um deles, ao que
parecia o chefe da gangue, por ter aberto sua boca para ver seus dentes e por ter sido
o que balançou a cabeça afirmativamente ao compará-lo ao retrato. Sem a menor
idéia de quanto tempo depois, Taquinho acordou com um gosto horrível na boca,
tremendo de frio, deitado e algemado a um catre em local escuro duma embarcação,
a qual percebia pelo ruído do motor e o balanço nas águas. Por uma escotilha bem
alta, às vezes penetravam flashes de luzes fortes, como as dos raios de uma
tempestade, que lhe possibilitavam ver-se num porão de um barco, entre outros
catres com pessoas deitadas e igualmente algemadas.
Sua lucidez só retornaria plena quando fora obrigado a deixar a embarcação,
acorrentado a oito companheiros de infortúnio, entre os quais um dos estudantes
árabes que encontrara na alfândega. No amanhecer iluminado de um pequeno porto
para ele desconhecido, a luz fazia doer-lhe a visão. Custou a acostumar seus olhos, e
quando isto se deu, Taquinho enxergou uma placa escrita em inglês, na qual uma das
palavras ele sabia muito bem o que significava. Só que sempre mantivera esse
conhecimento o mais distante possível da sua consciência, eis por que a palavra
agora aflorava de dentro dele e tomava de assalto toda ela e todo o seu ser com tal
força e violência que transbordou nas lágrimas do pranto convulso que nele desatou:
GUANTÂNAMO.
Capítulo 3
Dona Lourdes e suas três novas amigas, conhecidas na cidade como “as quatro
viúvas”, acabaram o almoço que semanalmente faziam em rodízio na casa de cada
uma (desta vez, não era na casa dela) e, como de costume, viam o jornal da TV. A
passagem de ano 2004/2005 havia sido há três dias e as notícias ainda eram os fogos
de artifício por todo o país, com destaque para os de Copacabana. Depois, veio o
bloco das “internacionais”, que dona Lourdes achava o mais aborrecido porque
sempre lhe provocava a lembrança do desaparecimento de Taquinho. Surge a vinheta
da Guerra no Iraque, e dona Lourdes via as imagens que a seguiam como se fossem
sempre as mesmas, todos os dias: soldados super-equipados e armados até os dentes
correndo para um lado, homens encapuzados e maltrapilhos armados de espingardas
correndo para o outro, ruínas em cenários muito semelhantes aos dos bairros
periféricos de sua cidade. Desta feita, algo de especial acontecera, a julgar pelo
destaque das chamadas e a ênfase do locutor: um terrível “ataque terrorista suicida”
ao restaurante de uma base importante dos EUA, em Bagdá, causara grande número
de mortos entre oficiais das “tropas aliadas” – mais de 20 mortos já confirmados e
centenas de feridos, informava, visivelmente consternado, o locutor.
Terminado o jornal, as amigas deram início ao convescote de fofocas, conversa fiada
e comentários sobre a situação delas, que às vezes iam até o escurecer nestas últimas
reuniões em que o baixo astral que rondava as anteriores (não entre elas) havia sido
em boa parte superado, pois curado pelo tempo e pelo arrefecimento das dores e
dissabores que, de um momento para o outro, assolaram as vidas das pobres
mulheres. Para dona Lourdes tudo isso era novo, ela nunca tivera amigas, sempre
tivera freguesas, que eram amigas também, mas era diferente. Fazia pouco mais de
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um ano que se conheciam, pois ficaram viúvas no mesmo dia em que seus maridos
morreram vítimas do desabamento de uma mina de ouro no interior da Bahia. O
acidente fora tão brutal que não foi possível recuperar os corpos dos doze homens
que vitimou: mais de 40 metros de terra os cobriam em local de tão difícil quanto
perigoso acesso por causa de deslizamentos e novos desabamentos que continuaram
a suceder. Toda a equipe de seu Eustáquio, que ali fazia manutenção de
equipamentos, ficou lá, sepultada para sempre, incluindo ele e os maridos das três
amigas.
Porém, elas só vieram a se conhecer alguns dias depois do acidente, num escritório
de contabilidade. Foi a contadora-chefe do escritório que, depois de lamentar o
falecimento dos maridos e de ler uma curta mensagem de pêsames em nome do
diretor e de todo o pessoal do escritório, deu às viúvas a inusitada notícia de que seus
maridos não eram empregados da Vale do Rio Doce desde 1999. Eram
“terceirizados”. A contadora teve de explicar o que isto significava: apesar de todos
terem sido antigos funcionários da Vale, ela havia sido “privatizada” (outro termo
que requereu uma breve explicação) e dispensou os funcionários de salários mais
altos, indenizando-os por acordo e induzindo-os a que formassem empresas próprias,
as quais foram em seguida contratadas pela Vale.
Percebendo que as explicações pouco adiantavam, a contadora passou às questões
mais práticas e palpáveis para as viúvas: elas não teriam direito à pensão que
acreditavam ter, e eram herdeiras da empresa na mesma proporção acionária
estabelecida na sua constituição: seu Eustáquio, o mais antigo e a mais alta retirada,
possuía 40%, os demais, 20% cada um.
Mas a última notícia não significava boa notícia – continuou a contadora,
visivelmente embaraçada ao dar tantas más novas às pobres senhoras: seus maridos
não tinham experiência empresarial e não fizeram uma administração competente da
empresa que constituíram. Isto queria dizer que não cumpriam corretamente com as
obrigações estatutárias, legais e fiscais. Para resumir: a empresa estava seriamente
endividada com quase todas as receitas públicas, alguns bancos, fornecedores e
outros credores.
Além disso, a cada vez mais desconfortável portadora das más novas informou que
os falecidos mantinham relações “informais” e duradouras com mulheres da região
onde ficava a mina, uma das quais já se manifestara por telefone, dizendo que falava
em nome das demais, pedindo informações e sugerindo disposição para reivindicar
eventuais direitos, inclusive falando de filhos. O diretor do escritório determinou que
nenhuma informação fosse dada sem autorização dos novos sócios da empresa ou
sem ordem judicial.
Finalmente, ela comunicou às viúvas que os papéis da empresa que herdaram
estavam até aquele momento sob custódia do escritório, incluindo as
correspondências, pois a sede da empresa era em sala alugada no mesmo prédio, e,
como os sócios poucas vezes iam lá, o escritório dela era autorizado a recolher e
abrir as correspondências comerciais. Avisou-lhes também que o escritório
estabelecera o prazo de um mês para solucionar a questão da continuidade de seus
serviços e, caso decidissem interrompê-los, não seriam cobrados os honorários em
atraso. O mesmo era oferecido para o contrato de locação da sala ocupada pela
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empresa, de propriedade do diretor do escritório, e quanto aos aluguéis pendentes.
Aconselhou-as a procurarem um advogado que as orientasse e se colocou à
disposição para fornecer a elas ou a seus prepostos toda informação e colaboração
que estivesse ao alcance do escritório. Outra vez, lamentou o falecimento dos
maridos e encerrou a reunião.
Nem é preciso dizer em que estado ficaram as pobres viúvas com tantas más notícias
em cascata. Nenhuma sabia de nada, nada mesmo, sobre tudo aquilo que a contadora
lhes relatara. Sequer desconfiavam. Atônitas e desorientadas, logo caiu sobre elas o
inferno da civilização e seus conhecidos capetas: visitas inoportunas de cobradores,
oficiais de justiça e fiscais de receitas públicas, cartas de cobranças e ameaças,
protestos em cartórios, intimações de penhora e arrestos de bens e propriedades,
chancelas de entidades e siglas para elas indecifráveis como COFINS, PASEP, PIS,
IRRF, ISSQN, INSS, FGTS, SERASA e outras sopas de letras de esfomeadas
burocracias públicas, bancárias, do Poder Judiciário, de casas comerciais e de outros
negócios particulares de que nunca tinham ouvido falar. Até a polícia apareceu na
residência de uma delas por causa de um cheque sem fundos emitido pelo marido em
favor de um comerciante da cidade.
Livrou-as desse inferno o advogado Benedito Gusmão, que elas apelidaram de “São
Benedito”. Dr. Gusmão era considerado a maior autoridade em direito civil da região
e era sócio majoritário do mais respeitado escritório de advogados da cidade. Velho
getulista de opinião e de coração, espirituoso, raposa afamada das lides forenses,
nunca entrara na política, mas vivia cercado de políticos por todos os lados, que lhe
pediam a benção... e os conselhos, claro. Diziam que era afilhado de batismo do
governador Benedito Valadares, o patrono do município. Sua esposa era uma das
melhores freguesas de dona Lourdes e o intimou a entrar no caso.
A primeira e única reunião que as viúvas fizeram com a presença dele foi numa mesa
imensa do seu luxuoso escritório. Cada viúva levou o homem que tinha no momento
para apoiá-la. Uma levou o pai, outra o irmão e a outra o cunhado. Dona Lourdes
levou padre Antonio, pároco da Igreja de Lourdes e amigo dela de antiga data, como
também de Dr. Gusmão. A contadora levou um auxiliar para ajudá-la com as caixas
de papéis.
Dr. Gusmão recebeu-as com gentileza, cumprimentou demoradamente a cada uma e
as apresentou aos dois advogados que deveriam cuidar do caso. Foi uma longa mas
muito profícua reunião, na qual todos os fatos foram minuciosamente bem descritos,
detalhados e resgatados graças à competência profissional dos advogados e da
contadora. Durante os depoimentos e debates, Dr. Gusmão não deu uma palavra,
apenas ouviu. No final de tudo, um dos advogados se dirigiu a ele perguntando sobre
a sua opinião. Dr. Gusmão, sem ser teatral nem afetado, foi categórico na resposta:
“O que uma pátria vendida é capaz de fazer contra o seu povo trabalhador!” –
exclamou, com emoção sincera. E completou: - “Agora é saber o que resta nela de
justiça de que possamos nos valer. O caso é nosso e sem ônus para as viúvas;
inclusive, as custas serão cobertas pelo escritório. Tentaremos reavê-las e cobrir
nossos honorários com as futuras indenizações dos responsáveis por tais ignomínias,
se ainda tiver vida legal neste país ao menos uma linha do Direito Civil”.
O caso ficou célebre. Enfrentando os mais afamados escritórios de advogados da
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capital, do Rio e de São Paulo, contratados pela Vale, e os das receitas públicas
envolvidas, o “escritório de Valadares”, como ficou conhecido em Brasília,
conseguiu reverter toda a carga de prepotência, desgraças e injustiças que se
produziram covardemente contra as viúvas na degradação política e legislativa em
que se havia metido o país. À Vale e aos entes governamentais retornaram, em
dobro, as responsabilidades, os deveres e os ônus que, em suas mutretas sórdidas,
jogaram sob o lombo, a vida e a morte daqueles trabalhadores. Uma a uma, as
liminares iam sendo concedidas, e não havia instância acima, por mais acossada
fosse pelas poderosas contra-partes, que as derrubasse. Até o direito das “amantes”
estava em vias de ser contemplado. Quando iniciamos este capítulo, as viúvas
celebravam a manutenção da última liminar no TSJ, ainda antes das férias forenses
do final de 2004. E já se debatia a possibilidade de um bom acordo com a Vale.
Desapareceram como “por milagre” (daí o “São Benedito”) todos os capetas que as
acossavam, em pessoa e pelos correios, e corria na cidade que as “quatro viúvas”
iriam se tornar viúvas ricas. Isto tranqüilizou e ampliou o círculo de solidariedade
que em volta delas vinha se formando desde o trágico falecimento dos maridos. Foi
tal a solidariedade comunitária, além das ajudas de parentes e amigos e da ajuda
mútua que, entre elas, passaram a cultivar, que as permitiu vencer com dignidade as
dificuldades morais, materiais e financeiras que a tragédia lhes trouxe, de sopetão.
Capítulo 4
Dona Lourdes decidiu ir embora mais cedo (ainda estamos na reunião das viúvas que
iniciou o capítulo anterior). Alguma coisa dispersava a sua atenção nas conversas, e
ela não parava de pensar em Taquinho. Aproveitou a chegada dos filhos da anfitriã,
que vinham trazidos pelos tios, e despediu-se.
Como sempre, ela ia a pé para casa. Gostava de caminhar e naquela hora, pois
estando o sol já bem inclinado, quase a se pôr, a calorenta cidade refrescava-se um
pouco. Ela optou por não passar pelo centro e ir pela margem do rio, subindo o Doce
que corria caudaloso e bonito nessa época. Era um caminho quase sem movimento, o
que lhe evitaria pessoas que a reconhecessem. Ficara muito conhecida na cidade e
não se aborrecia em ser abordada por seus admiradores, sempre amáveis, solidários,
mas naquele momento preferia estar só.
Com 51 anos, ela era pelo menos dez anos mais velha que as outras viúvas, e fez-se
de porta-voz delas no decurso da tragédia. Apesar de a imprensa ter abafado o
acidente, a local não pode fazê-lo, pois quatro concidadãos estavam entre as vítimas.
Incentivadas por um jornal da cidade, chegaram a promover os enterros simbólicos
dos quatro maridos, e dona Lourdes deu entrevistas a jornais, rádios e televisões.
Elogiou seu Eustáquio, um bom homem, honesto e trabalhador, 55 anos, nascido em
Almenara e órfão desde menino, quando os pais faleceram do mal de Chagas. Veio
para Valadares como carregador de uma equipe de geólogos e ali, depois de ser
explorado quase como um escravo, conseguiu se livrar de seus “donos” e se
estabelecer como garimpeiro autônomo no negócio de pedras, o que lhe valeu os
recursos para estudar, passar no concurso da Vale do Rio Doce e realizar seu sonho
de casar e ter filho. Era estimado e respeitado na empresa, na qual chegou a oficial
mecânico “Classe A”. Ela não entendia como uma empresa podia tratar assim a
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família de um empregado que deu tanto de seu suor e a própria vida por ela. Orientou
as outras viúvas para que não descontassem suas decepções nas memórias dos
maridos, o que seria negativo para elas e os filhos, ainda crianças, e daria asas às más
línguas na cidade. Além disso, somava-se ao seu infortúnio o desaparecimento de
Taquinho, outro fato que havia comovido a cidade poucos anos antes. Era
comentário geral a firmeza de caráter e a força de espírito com que a infeliz senhora
enfrentava tantos sofrimentos.
O mês de janeiro ela considerava o mês de férias das costureiras, e eis que dona
Lourdes, folgada de costura, ia sem pressa, apreciando a beleza do Rio Doce,
recordando a da Ilha dos Araújos antes de ser estragada pela especulação imobiliária
e pensando se passava na igreja para rezar por Taquinho.
Há muito ela se considerava a única pessoa no mundo a alimentar esperanças de que
Taquinho estivesse vivo. Ela acreditava nos sinais e era convicta de que o filho único
não deixaria este mundo longe dela sem emitir um sinal forte e bem nítido na sua
direção.
Recordava as aflições iniciais pela falta de notícias dele desde que se despediram
numa madrugada em que ela fora levá-lo, de táxi, até a rodoviária. Ele esbanjava
felicidade, e ela disfarçava o mau pressentimento que, então, atribuía a receios bobos
de mãe provinciana na primeira vez que o filho ia para longe. Lembrava-se de tudo,
nos detalhes. Não dormira no terceiro dia de silêncio do filho e no quarto dia estava
cedo na porta da agência de viagens, antes que o primeiro funcionário chegasse para
abri-la. Todos só falavam das torres gêmeas e do atentado de Nova York. Suspeitavase que Taquinho poderia ter sido uma das vítimas, o apartamento onde ficaria
hospedado não era muito longe de lá. Mas o amigo da agência tinha certeza que não;
o avião em que ele embarcou em Brasília não chegara a Nova York, como previsto.
Tivera de pousar em Manaus e, no dia seguinte, pouco depois de seu substituto
decolar, os pilotos receberam ordem de retornar por causa do atentado. Porém,
Taquinho não se encontrava entre os passageiros que desembarcaram de volta a
Brasília. Informações até então não confirmadas davam conta de que ele embarcara,
de Manaus, num vôo da American Airlines para NY. Se isto fosse verdade, tal vôo só
chegaria lá na hora ou pouco depois das catástrofes, e Taquinho não poderia estar nas
imediações das torres.
Mais tempo passou e “o pai de Taquinho” (era como dona Lourdes se referia a seu
Eustáquio, na intimidade, desde que ela decidira mudar-se de BH para Valadares
com o filho) conseguira uma carona para os EUA num avião da Vale, e lá iria se
encontrar com os amigos de Taquinho. Estes se cotizaram e contrataram uma
investigação particular de um advogado brasileiro em NY, a qual Eustáquio
acompanhou em parte. A “Lei Patriota” já estava em vigor, o que, segundo o
advogado, prejudicava muito a exaustividade da investigação; alguns setores do
governo estavam desobrigados de dar informações “em nome da segurança
nacional”.
Ficou provado que Taquinho chegara bem a Nova York e recebera tratamento
especial da alfândega, que checou com rigor a sua documentação e bagagens.
Eustáquio esteve com um funcionário gringo que falava mal o Português e lhe disse
ter sido ele, pessoalmente, que acompanhara Taquinho até o saguão do aeroporto. A
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alfândega forneceu ao advogado cópias das cópias que tirara dos documentos dele
para facilitar as buscas. A polícia de NY informou que eram nulas as chances dele ter
sido preso, nada constava nos registros. Naquele dia muito conturbado, a ordem era
de só deter os não documentados. Sabiam que a alfândega trabalhava em alerta
vermelho desde cedo, de modo que um carimbo dela, de mesma data, funcionava
como salvo conduto em NY. Os policiais eram instruídos a liberar de imediato e sem
mais perguntas todo estrangeiro que o exibisse.
Mas o fato é que não havia sequer um vestígio do rapaz depois que ele entrou no
saguão do aeroporto. Nenhum funcionário presente naquela noite o reconheceu pelas
fotos. Não esteve em balcões de companhias aéreas, em lanchonetes, bancas de
revistas, etc. Taxistas e choferes de ônibus não o viram. O metrô estava fechado.
Taquinho desapareceu com suas bagagens e documentos, sem deixar pistas. Nenhum
hotel, pensão ou albergue o teria registrado. Hospitais, clínicas, cadeias e até
necrotérios, idem. Seus cheques de viagem ficaram intactos, não retirou um centavo.
Entre as especulações mais aceitas como prováveis estava a de ele ter sido
seqüestrado por assaltantes ao deixar o aeroporto e, por ter resistido, foi assassinado
e seu corpo jogado em algum lugar ainda não descoberto.
Passado um ano, o banco emitente dos cheques de viagem autorizou a devolução do
dinheiro aos pais de Taquinho. A agência também devolveria o saldo não utilizado
do pacote turístico, deduzidos os impostos pagos e os valores não estornáveis, e o
amigo da agência procurou dona Lourdes para a tramitação. Ela estabeleceu que o
dinheiro, ao todo cerca de seis mil dólares, fosse convertido em reais e colocado na
conta de poupança do filho, e que só a assinatura dela ou do filho poderiam,
independentemente, movimentar a conta. Ela queria que o dinheiro ficasse rendendo
até que o filho retornasse, “pois poderia precisar dele”. E, mesmo tendo atravessado
as agruras financeiras pelas quais passou dois anos depois, dona Lourdes não tirou
nem um centavo daquela conta.
Ao chegar à igreja, viu que estava fechada e lembrou-se de que era uma terça-feira
do mês de janeiro, mês em que, de segunda a quarta, a igreja só abria de manhã.
Em seguida, ao dobrar a esquina da rua da igreja com a sua, ela viu, a uma distância
de quase duas quadras, um automóvel estacionando diante de sua casa. Dele desceu o
homem que o dirigia e colocou alguma coisa na caixa de correio. Não conhecia o
homem, nem ele a ela. Puderam ver-se um ao outro, de perto, quando dona Lourdes
atravessou a rua bem na frente do carro dele parado num sinal fechado. Era bem
vestido, bigodudo, de traços mouros, e dirigia carro alugado com adesivo da locadora
do aeroporto de Valadares. Apressou o passo, aflita, tentando não pensar mas
pensando que aquilo teria a ver com Taquinho. Não sabia bem porque pensava assim,
talvez por não ser o homem do tipo dos que a procuravam em conseqüência das
confusões do “pai de Taquinho”.
Depois de pegar o espesso envelope pardo na caixa de correio, as mãos de dona
Lourdes tremiam tanto que o seu molhe de chaves caiu duas vezes ao chão antes que
lograsse enfiar a chave na fechadura para abrir a porta da casa. Tinha reconhecido,
no endereçamento do envelope, a letra bonita e inconfundível de Taquinho.
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Capítulo 5
O envelope era de papel resistente, vinha muito bem lacrado e não trazia nome e
endereço do remetente. Era subscrito a “Lourdes Raghid Varela”. No outro lado do
envelope vinha o seu endereço. Tudo em letras grandes e grossas, escritas com
“pincel atômico” preto. Dona Lourdes sentou-se afobada na mesa de jantar para abrilo e teve de se concentrar para cortar bem rente, com tesoura, a aresta superior do
envelope, de forma a não ferir nem um mínimo o conteúdo. Suas mãos ainda
tremiam, e ela nem se permitiu trocar a roupa e os sapatos como em geral fazia ao
chegar da rua. Sabia que as notícias não eram boas, estas muito raramente chegam
através de estranhos. Mas só a perspectiva real e imediata da retomada de contato
com o filho, qualquer que fosse a situação, era para ela o fim de um doloroso
suplício; ainda que pudesse significar o começo de outro.
De dentro do envelope ela retirou todo o conteúdo de uma vez: duas folhas de papel
ofício comum, desses de copiadoras, manuscritas por Taquinho nos dois lados do
papel e um outro envelope um pouco menor em tamanho, mas muito mais pesado e
recheado, que vinha subscrito pelo filho a seu pai, “Eustáquio Marcondes Varela”.
Nas duas primeiras linhas depois do “Querida mamãe”, ela teve de se valer de um
lenço para enxugar as lágrimas que lhe embaçavam a visão. Nelas, Taquinho avisava
que se ela as estivesse lendo era porque ele já tinha partido dessa vida para a outra
que ela sabia melhor que ele qual era. O que vinha a seguir surpreendeu dona
Lourdes a cada palavra, cada linha. Todos que conheciam Taquinho sabiam que ele
levava jeito para escrever. Era bom de composição desde o grupo escolar. Não foram
um nem dois professores que o aconselharam a praticar mais e a informaram do
talento promissor do filho, um talento espontâneo e digno de ser estimulado. Mas o
filho nunca deu bola aos elogios, não cultivava o dom, nem acreditava nele como
algo de valor, que se devesse levar a sério.
Porém, tinha facilidade; aos doze anos já ajudava dona Lourdes na redação de
folhetos, mensagens e textos para o Lar das Crianças, e, pouco mais tarde, até nos
discursos que ela fazia em certos eventos e festas da instituição. Mas o fazia, deixava
bem claro, só para ajudá-la. Fora disso, não pegava na pena para nada, e ainda pedia
à mãe que não falasse a ninguém sobre isso, muito menos a seus amigos. Padre
Antonio atribuía tal falta de interesse de Taquinho às deficiências absurdas das atuais
escolas secundárias particulares e públicas e à alienação em que mergulhara a
geração dele na insensatez do consumismo e na obsessão pelos Estados Unidos que,
“especialmente em Valadares”, segundo ele, “há causado mais estragos do que
qualquer uma das sete pragas do Egito”.
Mas aquelas duas folhas não estavam preenchidas pelo menino que ela conhecia, o
que se recusava à leitura de livros mais profundos, debochava da dedicação aos
estudos e se dizia indiferente aos jornais, à cultura, à religião e à política; o jovem
que, em fases mais recentes, parecia fazer questão de se exibir com banalidades,
insensibilidade, ausência de idéias e de visão de mundo. “Justiça seja feita”, pensava
dona Lourdes, nunca vira Taquinho se rebaixar à grosseria. Na opinião dela, isto se
tornara comum entre os jovens. Expressões chulas, obscenidades, xingamentos
gratuitos entre outras degenerações de linguagem, ela notava cada dia mais
freqüentes na vida social, na juventude e até na televisão.
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Em sua carta, Taquinho se desculpava por não ter levado em consideração as
opiniões e os conselhos da mãe, que ali adjetivava de “sábios”. Já nos parágrafos
iniciais da carta, para espanto da religiosa mãe, ele escreve: “Conheci, enfim, o que é
a misericórdia”, e pede a ela que, apesar de tudo o que tenha ocorrido a ele, mesmo
que aos olhos dela possa parecer injusto, “jamais duvide da misericórdia de Deus”.
Fazia considerações sobre os equívocos e as enganações de que se tornou “vítima
fácil pela soberba do jovem alienado e egoísta que me permiti ser em Valadares” (...)
“Só fiz criar ilusões para mim mesmo: onde pensava ser o paraíso, encontrei o
inferno”. É quase toda a carta um mea culpa, um ato de contrição e de humildade,
sincero e emotivo, que levava dona Lourdes a prantos sucessivos ao mesmo tempo
em que se enchia de orgulho do filho por vê-lo capaz de se expressar com tal nobreza
de linguagem. Taquinho falando de amor!? “Foi onde presenciei grande sofrimento
humano que senti, de verdade, o amor ao próximo e do próximo; ali pude ver a luz,
mas a alegria era impossível. Vovô Pedro tinha razão, o paraíso, se existir, estará aí,
em nosso país. Nós, brasileiros, é que nunca soubemos desfrutá-lo e valorizá-lo”.
Há momentos de especulações filosóficas, ideológicas e teológicas. O garoto se
atrevia a propor considerações ousadas quanto ao sentimento humano do tempo e do
espaço que, para ele, eram percebidos “mais por seus valores quantitativos que
qualitativos”. Atribuía tal equívoco ao predomínio do que ele chamava “a sociedade
do ter” sobre “a sociedade do ser”. Dizia também que todas as religiões sinceras são
na verdade respostas a uma mesma e única divindade por parte de culturas e
civilizações distintas. Coisas que, no contexto do discurso e das análises do
missivista, dona Lourdes não alcançava por inteiro, o que a levou a pensar num
posterior concurso de padre Antonio para ajudá-la a decifrar. A parte final era uma
delicada e carinhosa despedida, um novo pedido de perdão e um pedido enfático
(quase ameaçador) de que ela entregasse o outro envelope a seu pai sem abri-lo.
Assinava-a assim: “De algum lugar do Planeta Terra, em 24 de dezembro de 2004,
José Eustáquio Raghid Varela, seu filho”. Esta era a primeira vez que ela via o
Raghid por extenso na assinatura de Taquinho, desde que ele começara a assinar por
si mesmo o nome completo.
“Infelizmente, meu filho, e, com certeza, para mim mesma” – pensou dona Lourdes –
“quem agora abre os envelopes endereçados a seu pai, é a sua mãe”.
As mãos dela já não eram trêmulas, ao deslacrar o segundo envelope da mesma
maneira que o primeiro. Dele puxou uma folha de papel manuscrita dos dois lados e
um terceiro envelope, pesado de tão cheio, igualmente bem lacrado como os
anteriores, assim subscrito: “A quem interessar possa”.
“A meu pai, Eustáquio” o filho se dirigia num tom mais frio e menos emotivo, mas
também revelador de um novo Taquinho. Sem julgar nem condenar o pai, o filho o
advertia “da falta de diálogo e da grande distância que o tempo realizou entre nós,
afastando-nos um do outro, paulatinamente, sem que nada fizéssemos em contrário”.
A si o missivista, sim, se culpava “pela indiferença com que sempre encarei tudo o
que vinha de você”. Porém, declarava que nunca deixara de amá-lo e respeitá-lo,
ainda que não tivesse aprendido ou aceitado a tempo de poder manifestar
pessoalmente tais sentimentos. Como o fez também na carta da mãe, cita momentos
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íntimos ou particulares que lhe foram marcantes, os quais não caberiam neste
resumo.
No final, pede perdão, despede-se e dá as instruções sobre o terceiro envelope, que
autorizava o pai a abrir “se achasse que devia, desde que não expusesse o conteúdo à
minha mãe ou, caso ache que deva expô-lo, que encontre meios de fazê-lo com um
mínimo de sofrimento para ela”.
Explicava que era o relato de tudo o que ele viveu desde a sua chegada nos EUA,
feito com supervisão jurídica e dentro de normas forenses para ser apresentado como
prova perante tribunais internacionais que haviam se instalado em alguns lugares do
mundo para julgar violações a direitos humanos. Segundo os que supervisionaram a
redação, o documento teria mais chances de aceitação e credibilidade se fosse
encaminhado a partir de seus pais, os maiores prejudicados, depois dele próprio,
pelos fatos que denuncia, e, portanto, os mais legítimos demandantes. O pai deveria
encontrar alguém de confiança (Taquinho sugeria padre Antonio) que pudesse fazêlo tramitar nesses tribunais, com segurança legal e proteção para os demandantes,
preservando-lhes sigilo processual e de identidade.
Assinava a carta da mesma forma e com a mesma data da outra.
Dona Lourdes levantou-se da mesa com o envelope nas mãos e sentou-se na poltrona
em que costumava assistir jornais e novelas na televisão. Não chorava, mas tinha no
rosto tenso e enrugado a expressão do medo de tomar ela própria uma decisão que o
filho encarregara ao falecido marido. Olhava para aquele terceiro e último envelope,
endereçado “a quem interessar possa”, e via nele o maior dilema de toda a sua vida.
Capítulo 6
A pobre senhora não sabia o que fazer. Não estava acostumada e nem gostava de
tomar decisões importantes. Lembrou-se de que a última decisão importante que
tomara em sua vida foi a de deixar Belo Horizonte com Taquinho para voltar a morar
com o pai em Valadares. E demorou quase dois anos para tomá-la desde que pensou
nela pela primeira vez. Quando o fez, o marido estava de viagem, e ela comunicoulhe por telefone. Disse a ele que não estava se separando, mas voltando para a sua
cidade, onde tinha trabalho e a companhia do pai. O marido retrucou que ficaria mais
difícil encontrarem-se, porque naquela época não havia vôos de carreira para
Valadares, e isto complicava as coisas para ele no emprego. Mesmo assim, ela fez as
malas, pegou Taquinho e foi para a casa do pai.
Foi uma decisão acertada, pensava ela. Desde o nascimento de Taquinho, suas
relações com o marido foram se atenuando, e só não se separaram por não ter havido
motivos que chegassem ao seu conhecimento, nem necessidade de rompimento.
Parecia-lhes que a vinda do filho como que cumprira as metas existenciais de ambos
e deviam então se deixar livres para que cada um pudesse seguir o próprio caminho.
Isso não queria dizer que o amor que os uniu não era verdadeiro: dona Lourdes pôde
aferir isto pela dor que sentiu pela morte dele. Talvez significasse que a vida em
comum, para eles, não se tornara necessária mais.
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Mas, naquele momento em que tinha em mãos o terceiro envelope enviado pelo
filho, o primeiro pensamento dela foi para a falta que lhe fazia o marido. Desde a
gravidez e o parto, ela nunca sentira tanto a falta dele como agora. Teria ela forças
suficientes para suportar o que lhe trazia o conteúdo? Como ela gostaria de
simplesmente obedecer às instruções do filho, passar ao marido o segundo envelope
e sequer ter sabido da existência do terceiro, a não ser que o marido achasse
conveniente. Estava claro que o filho a conhecia bem e sabia que ela faria isso sem
pestanejar, dona Lourdes não era bisbilhoteira e era respeitosa com os segredos
alheios, incluindo os do filho e do marido. A carta que veio endereçada a ela a
satisfizera. Apesar de trazer-lhe a imensurável dor ao informar-lhe da morte do filho
e não dar pistas do paradeiro dele; era plena de amor e nobreza. E isto, diante da
impossibilidade de reavê-lo entre seus braços, era-lhe reconfortante, afagava o seu
coração de mãe e, de certa forma, a consolava.
Mas, o que fazer agora? Era claro que José Eustáquio (ela não sabia por que, mas
começou a pensar no filho pelo nome próprio, e não pelo apelido, desde uma das
enésimas leituras da carta dirigida a ela) conhecia pouco o pai, por pensar que havia
possibilidade de que ele recebesse o terceiro envelope e o passasse a outras pessoas
sem tomar conhecimento do conteúdo. Nem era por bisbilhotice ou por ser curioso;
Eustáquio jamais entregaria a alguém qualquer coisa sem saber exatamente o que
estaria entregando, muito menos um envelope cujo conteúdo era de autoria do filho,
há tanto tempo desaparecido. Era o que ele costumava chamar de “procedimento”,
palavra que usava muito, em diversas ocasiões e nas mais diferentes situações, mas
que dona Lourdes sabia que tinha a ver com o ofício dele, pois apareceu no seu
vocabulário na época do curso na Vale, em Belo Horizonte.
Ela sabia exatamente qual seria o “procedimento” do marido: – “não tenho vocação
de carteiro”, costumava ele dizer se alguém lhe pedisse para levar algo sem, contudo,
informá-lo do que se tratava. Ela agora se perguntava se teria obrigação de fazer o
mesmo. De acordo com os advogados, ela teria essa obrigação, mas não se sentia ali
diante de um problema jurídico, e, sim, de um problema de consciência. O filho não
queria que ela tivesse acesso àquele conteúdo, e ela desejava muito obedecê-lo. Por
outro lado, amava e era inelutavelmente vinculada aos destinos de ambos, filho e
marido, e se via obrigada a assumi-los. Foi assim depois da morte de Eustáquio,
quando teve de conhecer pessoalmente a própria rival e o que se passara entre ela e
seu marido; e pensava se deveria ser assim agora, com o passado do filho, José
Eustáquio.
Imersa na surpresa desde que abrira o primeiro envelope e, depois, no dilema que lhe
trazia, dona Lourdes nem percebeu o passar das horas. Era mais de meia noite e ela
tinha tomado dois comprimidos de calmante no momento em que leu pela primeira
vez as duas linhas iniciais da carta do filho, com as mãos trêmulas e o coração
disparado. O efeito das pílulas e o cansaço de um dia agitado somaram-se para fazêla dormir sem que percebesse, mesmo com toda aquela excitação e contra sua
vontade. Despertou com a campainha tocando forte. Levantou-se assustada, um
pouco desorientada e foi até a porta, da qual abriu a escotilha. Era seu Jaime, o
padeiro, que todos os dias deixava o leite e o pão na varandinha, bem à sua porta:
- Desculpe se a incomodei, dona Lourdes, mas vi a luz acesa, a janela aberta e
estranhei. Tomei a liberdade de espiar pela janela e vi a senhora na poltrona, vestida
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com roupa de sair e calçando sapatos de salto. Aí me assustei, a senhora parecia estar
desmaiada, por isso achei melhor tocar. A senhora está bem?
Dona Lourdes retrucou agradecendo a atenção dele, e tranqüilizou-o:
- É só cansaço, seu Jaime, devo estar ficando velha! Que horas são?
- Quase cinco. De fato, a senhora me parece cansada, espero que esteja bem e se
recupere.
Ela agradeceu mais uma vez, abriu a porta, pegou o leite e o pão, e, por delicadeza,
esperou seu Jaime se afastar em sua bicicleta, despedindo-se pela troca de acenos. Ao
fechar a porta, reparou no péssimo estado em que estava, toda amarrotada e
despenteada. Resolveu trocar a roupa, lavar o rosto e tomar o café da manhã para se
recuperar. Neste meio tempo decidira-se: ia abrir o envelope e ler tudo o que havia
nele, linha por linha.
Capítulo 7
Um maço de 22 folhas de papel perfuradas e amarradas com barbante, encapado com
cartolina parda como nos processos judiciais, foi retirado do temível envelope pela
mãe do jovem missivista.
Na capa, em caneta hidrocor vermelha com a letra do autor, vinha o título do
documento: “Declaração, feita de memória e próprio punho pelo brasileiro José
Eustáquio Raghid Varela, do que lhe ocorreu no período de 11 de setembro de 2001
até a presente data”. A seguir, o mesmo título parecia a dona Lourdes vir repetido em
inglês e em árabe por outra caligrafia que não a do filho. Mas ela arregalou os olhos
e levou uma das mãos à boca, estupefata, quando leu, em português, igualmente
seguido pelos dois outros idiomas, o local e data do escrito: “Bagdá, 24 de dezembro
de 2004.”
“Santos Deus!” – exclamou em voz alta, sem ser capaz de se conter por tamanha
surpresa.
Para o leitor, que conheceu o resumo de parte do relato nos dois primeiros capítulos
desta história, a surpresa não deve ter sido tão grande. Sabemos do vínculo macabro
que há entre aquele pedaço usurpado à ilha de Cuba e a infeliz cidade referida
naquela datação, inclusive por ela abrigar uma prisão tão terrivelmente célebre como
Abu Ghraib.
Porém, para a pobre mãe... nem se diga! Ela se preparara da melhor maneira que lhe
fora possível. Tomara um bom banho, café da manhã reforçado com frutas e fora à
missa das seis rezar pela alma do filho e pedir forças a Deus para suportar o desafio.
Sabia que naquela hora a missa não seria de padre Antonio e não encontraria
conhecidos que lhe fizessem desconcentrar-se da missão que havia imposto a si
mesma. Só ao retornar - sentada na mesma cadeira da mesa de jantar em que abrira
os outros envelopes é que, munida de tesoura, uma caixa de lenços de papel que
trouxera da drogaria e com os óculos bem limpos e ajustados -, abriu o envelope.
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Das 22 folhas, 19 estavam completamente preenchidas nos dois lados pelo texto
principal, feito em letra miúda e com um mínimo de espaço entre linhas, mas no
capricho, com caneta esferográfica de cor verde (os anteriores eram com o mesmo
tipo de caneta de cor azul). Eram numeradas por folha, na parte direita superior da
página de frente de cada uma, sempre com os respectivos números colocados dentro
de um pequeno círculo.
O texto começava pela identificação do declarante, a mais completa que lhe fora
possível fazer de memória: “Eu, José Eustáquio Raghid Varela, brasileiro, solteiro,
etc... declaro, a quem interessar possa, o seguinte:”. Seguia-se o texto corrido,
parágrafo por parágrafo, assinalados por uma pequena entrada na primeira linha, sem
mais cesuras nem divisões destacadas. O conteúdo, rigorosamente composto em
ordem cronológica e, ao que parece, com supervisão ou assessoramento de quem
possuía domínio de normas jurídicas, inclusive com a menção de datas e horas certas
ou prováveis em alguns dos parágrafos, poderia ser dividido em três grandes partes
fundamentais, como a seguir veremos. As três últimas folhas eram de anexos ao texto
principal, sobre os quais saberemos mais à frente.
A primeira parte continha o relato detalhado desde a saída de Brasília até a chegada
na prisão de Guantânamo, sobre o qual já sabemos o suficiente para seguirmos em
nossa história. Ocupava quase quatro folhas inteiras (sete páginas e três quartos).
A segunda parte, a mais volumosa, ocupando quase oito folhas (15 páginas e tanto),
continha o relato detalhado da estadia do desventurado autor naquele inferno sem
poesia. Um inferno em que o maior castigo, segundo ele, era o de não poder morrer
nem ficar louco. Avançada tecnologia médica, farmacêutica e hospitalar era aplicada
aos prisioneiros para que as torturas obtivessem o máximo de sofrimento possível
sem que a vítima ultrapassasse os dois limites. Se isto ocorresse seria, para os
algozes, uma falha tão grave quanto a fuga do prisioneiro. Devemos saltar toda essa
parte. Deixemos linhas como tais para os processos que haverão de correr nos
tribunais existentes e futuros e que, com os auspícios de uma outra realidade mais
favorável à vida humana nesta Terra, farão punir com Justiça esses criminosos
desalmados e colocar os responsáveis diretos e indiretos por tamanhas atrocidades
em seus devidos lugares (ou infernos).
A terceira e última parte era o relato de Taquinho (dona Lourdes voltou a lembrar-se
dele pelo apelido, tão logo começou a leitura) a partir do momento em que acordou
com o mesmo gosto ruim na boca e quase tão desorientado quando se descobriu
numa lancha militar indo para Guantânamo. Desta outra vez, a sensação era a de
estar na poltrona muito reclinada de uma aeronave, em pleno vôo, que o levava para
longe do inferno no qual, calculara depois, perdera quase três anos de sua jovem
existência. Esta parte contém o que poderia o autor relatar da história que vamos
descrever a partir do próximo capítulo, pois, neste, ainda temos de dar espaço aos
anexos e um tempo para dona Lourdes, que demorou mais de vinte horas seguidas
para ler tudo o que ali havia para ser lido em nosso idioma. A caixa de lenços de
papel lhe fora suficiente só para as três primeiras horas de leitura e, antes da metade
da segunda parte, com certeza a mais difícil para ela, já se valera de todos os lenços
de pano que possuía, os quais havia disposto ao seu lado, numa cestinha de costura,
quando se acabaram os de papel.
22
Deixemos só a pobre senhora em seu pranto imerecido, com a nossa solidariedade e
pesar, e continuemos, pois devemos também preparar-nos para a penosa travessia,
ainda que nunca tão difícil para nós quanto o fora para ela.
No primeiro anexo havia uma luminosa reflexão ao mesmo tempo filosófica e
confessional do próprio Taquinho, quase poética, a respeito de tudo o que se passara
com ele e sobre a decisão que havia tomado para o futuro imediato. Nele, consumiu a
página de frente e dois terços do verso da folha que lhe coube.
O segundo era um depoimento do preceptor de Taquinho na sua conversão, ou
melhor, sua iniciação na religião muçulmana, de corte sunita. Apesar do batismo e a
cultura cristã de origem, o novo discípulo do Islã confessara ao preceptor que jamais
se iniciara ou praticara no credo cristão, exceto quando criança e por indução de sua
mãe, considerando-se, mesmo, um completo ignorante de quase tudo a respeito.
Vinha escrito em perfeito Português, quase castiço, com encômios sinceros ao
discípulo, pois não disfarçavam a admiração do preceptor pelas virtudes que
encontrara no espírito e na vida interior do iniciado. Assinava com o codinome
Shakir (grato, agradecido) e codinominava seu discípulo de Faraj (cura, melhoria),
significados estes que informou também entre parênteses ao mencioná-los pela
primeira vez no corpo do texto. Conciso e preciso, o texto é de autoria de quem
domina plenamente a linguagem escrita e ocupava, bem diagramado, quase toda a
página de frente com letras boas, de calígrafo, e linhas bem espaçadas
O terceiro trazia os atestados de próprio punho de duas testemunhas que ouviram
todo o texto lido pelo próprio declarante e traduzido, simultaneamente, para o árabe
por seu preceptor, bem como o viram escrevendo o documento em diversas ocasiões.
Um deles era escrito em árabe e o outro em bom Português-Brasileiro; ambos
vertidos para o inglês. Por razões de segurança, as testemunhas não se identificavam,
exceto por rubricas ilegíveis, mas se comprometiam a fazê-lo diante de tribunais e
mediante compromisso de sigilo judicial. Os atestados, e respectivas versões para o
inglês, vinham escritos em letras miúdas e apertadas entrelinhas, ocupando só a
página de frente da folha.
Os anexos foram escritos em caneta esferográfica de cor verde, exceto o do que se
codinominava Shakir, que era escrito também na cor verde, mas a caneta tinteiro, no
pleno domínio de seu manuseio, o que se podia perceber pelo sofisticado traçado das
letras, das serifas e do uso dos traços finos e grossos de requintado calígrafo.
Capítulo 8
Taquinho sentiu o impacto forte do pouso mal feito da aeronave, sem saber o que
havia do lado de fora, nem se era noite ou dia, pois todas as janelas estavam fechadas
e a penumbra de poucas luzes internas dominava o ambiente. Pouco depois da
aterrissagem, mais luzes internas se acenderam e ele pôde ver outras poltronas como
a dele à sua frente, algumas ocupadas. Percebeu-se vestido com uma só túnica de
tecido vulgar que ia até seus pés sobre o corpo nu. Calçava umas sandálias velhas de
couro cru, podia vê-las e senti-las. Passou-se algum tempo com a aeronave parada no
solo quando, enfim, ele escutou vozes e a movimentação de pessoas. Um dos
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carcereiros do setor onde ficara em Guantânamo se aproximou e, rude como sempre
fora com ele, tirou as algemas que lhe prendiam na poltrona e ordenou-lhe que o
acompanhasse.
Para surpresa de Taquinho, não lhe foram recolocadas as algemas. Durante o tempo
na prisão, aprendera inglês apenas o suficiente para saber que ordens lhe estavam
sendo dadas e como cumpri-las. Praticamente não podia abrir a boca para falar
enquanto esteve lá, pois sempre que tentara fazê-lo, apanhara como um cachorro.
Seguindo o carcereiro, desceu pela porta traseira da aeronave e se viu dentro de um
hangar com carros estacionados. Obrigaram-no a entrar e a se sentar no banco do
meio de uma velha Kombi com dois homens no banco de trás e o motorista ao
volante, todos em trajes civis. Nada de algemas.
A Kombi arrancou para fora do hangar e só então Taquinho viu o céu de um
amanhecer um pouco nublado sobre a paisagem das adjacências de um aeroporto.
Por cerca de meia hora, o veículo percorreu ruas e estradas de terra, quase
desabitadas, de uma região arenosa e desértica, até que, em determinado ponto,
estacionou. Os dois homens que iam atrás abriram a porta lateral da Kombi, e
empurraram-no para fora. E foram embora.
“Enfim, estou autorizado a morrer”, pensou o jovem ao se ver só naquela paisagem
desolada. A certa distância, longe da estrada, viu uma construção com muitos urubus
pousados no telhado. Um cenário que, apesar do fundo desértico, lembrou-lhe o do
matadouro na sua cidade de Governador Valadares. Constatou que de fato aquilo era
um matadouro e que fora desovado num lixão de grande cidade. Apesar de estar
quase desmaiando de fome, de sede, das dores em todo o seu corpo, em contraponto
com uma sensação anestésica que lhe dificultava o tato e a percepção da textura de
sua própria pele, além de exausto e quase completamente exaurido do instinto de
sobrevivência, ele decidiu andar para longe dali até onde pudesse resistir para não
deixar seu corpo a disposição dos abutres. Andou, não sabe quanto e por quanto
tempo, até que avistou ao longe um perfil urbano difuso na quase opacidade das
nuvens de poeira que o vento alçava sob um sol escaldante que já ia alto.
Reuniu todo o resto de forças que porventura lhe restavam e praticamente se arrastou
pela estrada naquela direção. Começaram a surgir os primeiros transeuntes, em geral
pessoas maltrapilhas, algumas também vestindo túnicas como a dele, umas poucas
usando turbantes. Numa encruzilhada, ele pensou tomar a via mais populosa a sua
esquerda, mas viu nela alguns cachorros soltos. Tinha tomado horror a cachorros, os
torturadores os usaram para aterrorizá-lo, por isso mudou o rumo e foi pela outra via.
Ninguém dava a mínima para ele em seu estado lamentável, empoeirado e suarento,
claudicante, quase se arrastando. Por duas vezes, tombou ao solo e em ambas pensou
em desistir. Porém, seguiu, entrou na cidade, num bairro periférico paupérrimo, com
muita gente movimentando-se para todos os lados, carros e ônibus velhos, placas e
sinalizações em caracteres estranhos e para ele absolutamente indecifráveis. Num
certo momento, ele viu a abóbada de um edifício alto e se dirigiu na direção dela. Ao
se ver de frente para a majestosa fachada do edifício chegou a pensar que estava
delirando e andou até as escadarias que levavam à sua porta principal. Nos primeiros
degraus deixou-se cair e pensou: “Aqui mesmo fico, adeus mundo sórdido!”
Deitado ali em desajeitada posição, ele nem ligava ao que estava à sua volta e olhava
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para o céu cinzento azulado, tentando relaxar-se para falecer com alguma paz interior
em sua inusitada solidão. Foi então que seus ouvidos captaram os sons do diálogo de
um casal que passava por ali. Falavam a sua língua e, à medida que se aproximavam,
os entendia com perfeição. Estavam cada vez mais perto dele, e Taquinho, a ponto de
desmaiar e vendo tudo escurecer, nunca soube explicar para si mesmo por que, tão
desejoso como estava de desaparecer da face do planeta, reuniu suas últimas
energias, em penosíssimo esforço, para gritar com o que lhe restava de força nos
pulmões: “Ajudem-me, por favor!”
Quando abriu os olhos, se viu deitado num leito de enfermaria de um movimentado
hospital. A seu lado, sentado numa cadeira, um homem lhe dirigiu a palavra e ele não
só recordou a voz masculina que ouvira antes de desmaiar como entendeu
perfeitamente o que lhe estava sendo dito em sua própria língua pátria, coisa que há
muito tempo, muito mesmo, quase uma eternidade para ele, não lhe ocorria.
- Quem é você? – perguntou ele a Taquinho – Como chegou até aqui? Você fala
português?
Taquinho custou a estabelecer um diálogo inteligível com ele. Pensou que era um
médico e se apavorou, pois tinha tomado pavor de médicos. Tinha dificuldade de
controlar a voz, às vezes não lograva emiti-la, outras falava muito alto por
nervosismo e excitação. Mas o homem foi gentil, acalmou-o e, pela primeira vez
desde que deixara o Brasil, Taquinho sentiu um ser humano amistoso diante de si.
Aos poucos foram conseguindo comunicação. Taquinho ficou sabendo que estava
num hospital de Amã, capital da Jordânia. Tinha sido examinado detidamente e
recebera vários medicamentos, soros e vitaminas. Disse o homem que seu corpo
trazia muitos sinais de ter sido torturado barbaramente e o corpo médico do hospital
estava aguardando que se reanimasse para interrogá-lo, antes de qualquer outra
providência.
Taquinho então falou em Guantânamo. Ao ouvir essa palavra, o homem pediu que
não falasse mais nada e fingisse que permanecia desacordado. Iria buscar-lhe roupas
para tirá-lo imediatamente dali. Praticamente ordenou-lhe que o aguardasse retornar
e que não falasse com ninguém. Ia saindo quando Taquinho perguntou-lhe:
- Que dia do ano é hoje?
- 15 de agosto.
- De que ano?
- 2004!
Taquinho chorou.
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Capítulo 9
No seu texto, Taquinho diz não poder identificar nem dar detalhes do amigo que o
salvou de falecer na porta de uma mesquita em Amã para não comprometê-lo em
suas atividades. Nós podemos saber que era um membro importante da resistência
iraquiana e ex-oficial da Inteligência de Sadham Husseim, que teve uma longa
estadia no Brasil na época em que os dois países tinham boas e muitas relações
comerciais. Para facilitar a narração do papel dele em seu relato, Taquinho deu-lhe o
nome fictício de Fadil, o qual, segundo aprendera com o seu preceptor, significa
“generoso”. Valemo-nos do mesmo nome para batizar esta personagem da nossa
história.
Quando encontrou Taquinho, Fadil ciceroneava uma velha amiga brasileira, que
passava por Amã em missão de trabalho e estudos sobre mesquitas no Oriente
Médio. Os dois ouviram-no pedir ajuda em língua portuguesa e decidiram levá-lo ao
hospital. Mas Fadil ficou curioso e, como estava hospedado perto do hospital,
decidiu acompanhar o caso. Tendo percebido a situação de Taquinho pelas cicatrizes
que os grilhões lhe deixaram nos pulsos e nas canelas – o que abria a possibilidade
de que fosse membro da resistência iraquiana -, para evitar polícia e procedimentos
legais destinados a não documentados, suspeitos e indigentes, declarou-se amigo da
família do paciente e forneceu ao hospital dados falsos que identificavam Taquinho
como cidadão iraquiano. Os médicos, ao examinarem-no, puderam diagnosticar o seu
sofrido passado e queriam informar as autoridades. Fadil convenceu-os de esperar o
paciente voltar a si antes de fazê-lo, e eles concordaram. Por sorte, Fadil estava ao
seu lado, com um notebook, tentando identificá-lo em fotos de membros da
resistência desaparecidos, quando Taquinho despertou depois de quase dois dias em
que ficara desacordado.
Naquele momento, a movimentação no hospital era atípica e nervosa, por causa de
um acidente de ônibus nas proximidades, de que muitos feridos foram levados para
lá. Fadil aproveitou-a para escapar com Taquinho. Comprou ali por perto roupas
ocidentais, um par de tênis e um turbante, e os levou numa sacola até o leito dele.
Ajudado por Fadil, Taquinho saiu do hospital em meio ao tumulto do acidente, sem
que ninguém os abordasse. Tomaram um táxi, passaram no hotel para Fadil apanhar
a sua bagagem e foram até a rodoviária, onde tomaram um ônibus para Bagdá.
Taquinho foi instruído para fingir-se de surdo-mudo na parada de identificação que,
decerto, fariam na fronteira entre os dois países. Fadil apresentaria os documentos de
ambos, diria que Taquinho era deficiente físico e que respondia por ele. O ônibus
estava quase vazio e eles sentaram-se distante dos demais passageiros para
conversarem sem ser ouvidos. Fadil era experiente em tais situações, além de muito
cuidadoso com os detalhes.
- Em Bagdá – disse-lhe Fadil – você estará mais seguro do que em Amã, que é uma
cidade totalmente controlada pela CIA. De lá, será mais fácil para nós repatriá-lo
com segurança.
Taquinho, porém, colocou objeções a este último projeto. Não queria retornar, sabiase mutilado física e espiritualmente, para sempre, e já tinha tomado a decisão
irrevogável de deixar-se morrer, ou, se possível, matar-se.
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O amigo tentou demovê-lo da idéia e, para convencê-lo, decidiu revelar ao jovem o
que ouvira dos médicos que o examinaram. Disse a ele que lhe restava pouco tempo
de vida, no máximo um ano, e isto se se mantivesse sob cuidados médicos e
hospitalares de boa qualidade. Por que Taquinho não aproveitava esse pouco tempo e
não o compartilhava com seus entes queridos?
Taquinho agradeceu o apoio, mas desanimou-o contra-argumentando que só levaria
mais sofrimento e tristeza a tais pessoas. Além disso, sentia-se profundamente
humilhado e absolutamente incapaz de encarar qualquer uma delas. Contou o que lhe
passou desde que saíra do Brasil e, muitas vezes aos prantos, as torturas de que fora
vítima inocente. No fim, pediu encarecidamente ao novo amigo que não lhe poupasse
nada do que soubera no hospital, queria saber de tudo, nos detalhes.
Ao ouvir atentamente todo o relato, Fadil surpreendeu-se pelo fato de Taquinho nada
conhecer dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, nem da guerra dos EUA
contra o Iraque e o Afeganistão (Taquinho mal sabia da existência de tal país), fatos
estes sobre os quais dissertou longamente como um auto-atentado pré-concebido
pelo governo norte-americano para que desatassem as duas guerras e outras mais.
Especulou que a prisão de Taquinho fora uma das primeiras conseqüências daqueles
fatos e que possivelmente ocorrera por engano. Uma vez que ele se tornara um
perigo para os propósitos dos que o prenderam, usaram-no como cobaia de
experimentos médicos avançados e de tortura científica. Disse-lhe que não era o
primeiro caso que lhe chegara ao conhecimento, mas que estava ao lado do primeiro
sobrevivente, de que tinha notícia, de tamanha barbárie.
Atendendo ao pedido de Taquinho, Fadil fez-lhe um resumo do que fora informado
no hospital. Seus aparelhos digestivo e respiratório estavam indo irreversivelmente
ao colapso. Um dos pulmões estava praticamente inutilizado e o outro, muito lesado.
O rim esquerdo lhe fora extraído (possivelmente para transplante) e o direito não
apresentava bons sintomas. Assim também o fígado, o estômago e os intestinos
grosso e delgado. Exames de sangue, de urina e outros revelaram que ele fora
submetido, por longos e vários períodos, a altas doses de drogas de toda espécie,
algumas capazes de lesar em definitivo certas funções do organismo. Quando foi
encontrado, estava à beira do escorbuto, doença fatal que é causada por pelo menos
três meses de falta total de nutrição de vitamina C. Fadil especulou que tal
desnutrição lhe parecia proposital, talvez uma tática de Guantânamo; ao liberar suas
vítimas preparava-as para a morte rápida e longe de suas responsabilidades. Via
também como outra tática daquela prisão de alta tecnologia o fato de apesar de
violentarem um corpo por todas as maneiras possíveis, o esqueleto permanecer não
atingido e intacto. Nenhuma lesão grave, trinca ou fratura fora encontrada no de
Taquinho. Assim, uma futura exumação de cadáveres dos torturados não apresentaria
provas contra os torturadores.
Já tinham passado a fronteira, sem problemas, quando Taquinho perguntou ao amigo
se a resistência iraquiana se valia de ataques suicidas contra os inimigos. Em caso
positivo, ele gostaria de se apresentar como voluntário.
Fadil calou-se por um tempo, antes de responder. - Tal honra, se é que eu tenha
entendido onde realmente você quer chegar - disse ao jovem - é exclusiva de um
verdadeiro Mujahid. Muito diferente do que divulgam no Ocidente, o Jihad não é
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Guerra Santa, longe disso. Não há tradução possível numa só palavra ou expressão
de línguas ocidentais para o seu significado completo. Trata-se de um direito
legítimo de defesa que os muçulmanos se outorgam em dois campos distintos:
internamente, em si mesmos, contra a perversão da própria alma, e externamente, em
defesa da pessoa e da nação islâmicas. Há regras precisas para o segundo caso. Só
pode ser usado in extremis e não pode vitimar crianças, velhos e mulheres inocentes.
Tem de ser a conseqüência do amor ao Islã, e não do ódio ao inimigo. Não se trata de
um instrumento legal de ataque, como pensam os ocidentais, mas de uma cultura de
defesa das nossas tradições. Para a religião islâmica, ao se dar a vida pelo Islã, não há
o suicídio, mas, sim, a purificação pelo martírio. Usado de acordo com as regras,
haverá para o mártir a absolvição de todos os seus pecados. Ele encaminha a sua
alma diretamente a Alá.
- E como eu faço para me tornar um Mujahid? – perguntou Taquinho.
- Não sou eu quem pode lhe dizer – respondeu Fadil.
Capítulo 10
Taquinho abriu os olhos depois da meia hora de cochilo a que se acostumou aos fins
de tarde, logo depois de administrados os seus medicamentos de rotina. Deitado na
confortável cama do quarto arejado e bem iluminado em que se hospedava, ele às
vezes se beliscava para certificar-se de que não estava sonhando. Desta vez, não
precisou, estava bem acordado... e feliz, chegava a sorrir consigo mesmo. Mas não
era a felicidade do tipo daquela em que o vimos ao se aconchegar na poltrona do
avião, no início da nossa história. Não, de forma alguma! Era um outro tipo de
felicidade, tão infinitamente distante daquela, que, em suas meditações, Taquinho a
imaginava como as do tipo que devem iluminar os grandes descobridores e
inventores diante dos grandes achados históricos; no caso dele, a descoberta
maravilhosa da sua própria consciência, ou do seu próprio ser.
Zahirah, a luminosa, entrou trazendo o lanche da sua dieta numa bandeja, alegre
como sempre. Era linda a filha de Shakir, além de ser uma bailarina magnífica.
Taquinho via nela traços de sua mãe; imaginava-a, na mesma idade, com a graça, a
cor clara da pele, o arredondado do rosto e os olhos castanhos amendoados muito
semelhantes aos de Zahirah. Trocaram sorrisos, e ela se foi, silenciosa e brejeira,
fechando a porta com cuidado. Era um anjo! Taquinho e ela cultivavam um amor
fraternal, pois outro ele não podia mais - a tortura o despojara das funções sexuais;
mas isto agora não lhe importava nem um pouco. Estava a dois dias da cerimônia da
Chahada, que o converteria em muçulmano e, depois, se os clérigos lhe concedessem
a honra, em Mujahid. Taquinho considerava esses últimos quase quatro meses como
equivalentes a toda uma vida que valesse a pena ter sido vivida. Daí aqueles
conceitos que expressou em seus escritos, a respeito dos valores qualitativos e
quantitativos do tempo.
De memória, ia repassando os acontecimentos desde que Fadil o deixou no
esconderijo em Bagdá, no porão de uma casa onde passou dois dias com uma garrafa
d’água e um pão para se alimentar. O porão pareceu-lhe uma mansão perto das celas
de Guantânamo, e a comida um manjar, embora não pudesse desfrutar-lhe o sabor
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por causa dos problemas no paladar e no aparelho digestivo. Molhava o pão na água
para comê-lo sem se engasgar.
Fadil retornou com dois homens, cada um carregando, com grande esforço, duas
belas poltronas estofadas (Taquinho nunca vira poltronas como aquelas) e disse-lhe
que um sufi viria avaliá-lo quanto à possibilidade da conversão. Explicou-lhe que o
sufi tinha sido cônsul em Portugal por muito tempo, falava e escrevia bem em
português, e o sobrenome Raghid o convencera a vir visitá-lo (“É a primeira vez que
o Raghid me valeu para algo”, pensara, então, Taquinho). Disse-lhe que a audiência
poderia ser demorada, em geral levava horas e até dias, e o aconselhou a ser sincero,
não mentir, não distorcer fatos nem tentar ludibriar o sufi. Orientou-o para que o
aguardasse de pé, respeitoso, só fizesse o que ele lhe ordenasse, e que não falasse
uma palavra sem que lhe fosse solicitada. Fadil saiu com os homens e logo os três
retornaram acompanhando Shakir, que vinha elegantemente trajado, com um terno
muito bem cortado (“Digno do meu avô”, recordou Taquinho) e um turbante alvo no
qual vinha preso, ao centro, um grande rubi que combinava com a cor da gravata.
Shakir olhou bem o garoto dos pés à cabeça, trocou algumas palavras em árabe com
os três homens, e se foi. Taquinho baixou a cabeça, derrotado, mas, para sua
surpresa, Fadil o cumprimentou, parabenizando-o, pois ele fora brilhantemente
aprovado. Disse que receberam ordens para levá-lo à residência do sufi, o qual
assumiria, ele mesmo, a tarefa de iniciá-lo. Além do mais, Taquinho seria recebido
como hóspede do sufi até a sua conversão. Ambas as decisões do sufi eram
consideradas honras extremas.
No mesmo dia ele foi levado até o belo, grande e rico palacete do sufi, com vários
empregados e serviçais, e foi instalado naquele apartamento (quarto com banho
privativo) cuja grande janela dava para um jardim interno belíssimo que era cuidado
por dois jardineiros supervisionados pelo bom gosto de Zahirah. Lá o esperavam dois
médicos e um enfermeiro que, acompanhados por Fadil para facilitar a comunicação
e a confiança do paciente, durante uma semana o examinaram, o medicaram e
converteram o quarto num pequeno hospital, cheio de produtos de uma
outra farmácia que ele não conhecia, a islâmica, além de alguns
produtos, equipamentos e acessórios hospitalares convencionais. Tais expedientes
trouxeram um enorme conforto para ele, e o livraram dos desmaios e falta de ar de
que vinha sendo vítima desde o segundo ano em Guantânamo. Os médicos
prescreveram-lhe dieta à base de alimentos líquidos, cremosos e gelatinosos e uma
série de poções, remédios e vitaminas que deveria ingerir rotineiramente. Depois,
veio-lhe um enxoval de roupas ocidentais de boa qualidade que serviam nele como se
feitas sob medida, e quase encheram o armário amplo que equipava o quarto. Vieram
também os livros, todos em português e que Fadil ia passando para ele com
orientações sobre cada um. O mais importante naquele momento era um manual de
iniciação no islamismo para os povos de língua portuguesa, escrito pelo próprio sufi,
que foi o primeiro a ser lido e veio a ser o de cabeceira do iniciante.
Começou a ler muito; pela primeira vez na vida deixou-se levar pela leitura de livros
e saboreá-los com atenção interessada. Tinha facilidade; desde cedo, quase criança,
percebera isso, mas, em Valadares, procurava escondê-lo dos colegas de escola e dos
amigos, pois todos detestavam ler livros, e ele fingia que detestava também. Além de
ler com rapidez – em poucas horas podia ler volumes que tomariam dias ou semanas
de leitores normais -, tinha o dom de apreender tudo logo na primeira leitura e ainda
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ser capaz de citar trechos e até parágrafos inteiros, de memória. Antes, ele procurava
fugir dos livros para manter longe da consciência pensamentos que julgava
desagradáveis ou perturbadores; envergonhava-se de ter facilidade para ler e escrever
como se tais virtudes fossem defeitos execráveis. Valia-se de obnubiladores da
consciência que buscava em banalidades fáceis, a fim de se parecer igual aos amigos
e colegas – coisa em que nem sempre era bem sucedido. Agora, via-se dedicando aos
livros de oito a dez horas por dia, às vezes até mais, devorando-os, como se a tentar
recuperar o tempo perdido. Sua saúde e os traumas psíquicos não lhe permitiam
dormir bem nem ter sonos longos, e ele cobria insônias, mal-estares, dores e febres
com a leitura de livros que, além de lhe proporcionarem as maravilhas do
conhecimento e abrirem as janelas da sua consciência, traziam-lhe também alívio
físico, distraindo-o desses problemas.
No primeiro domingo do mês de setembro, Fadil chegou cedo acompanhado de um
barbeiro que lhe fez o cabelo e a barba com extremo capricho, deixando bem
desenhados o cavanhaque e o bigode, ao estilo árabe. Ficou combinado que o
barbeiro viria aos domingos pela manhã. Depois, o amigo pediu-lhe que se vestisse
com a melhor roupa, porque teriam o primeiro encontro com o sufi, após o qual Fadil
se despediria, pois tinha de voltar a Amã. Taquinho estava outro, quase renascido.
Fadil e ele foram recebidos na esplêndida biblioteca do sufi, que os acomodou bem à
vontade em grandes almofadões dispostos sobre um tapete persa magnífico, ao lado
de uma grande vidraça que dava também para o jardim interno, mas em sua parte
mais rica em paisagismo. Estava acompanhado de Zahirah, e foi quando
Taquinho conheceu vez o rosto dela, pois antes já a vira cuidando do jardim, porém,
usando véu e roupas discretas. Ali, ela estava lindamente vestida e sem o véu,
olhando sorridente para ele, e cumprimentando-o em português de Portugal.
Estabeleceu-se nesta primeira e rápida reunião que Taquinho começaria o processo
de sua iniciação no dia seguinte. Todos os dias ele deveria acordar antes do nascer do
sol, ir para a biblioteca e fazer a leitura de uma surata do Alcorão escolhida pelo
mestre. Depois fariam o desjejum para em seguida começarem as aulas, os exercícios
espirituais e a iniciação nos chamados “cinco pilares do Islã”. A dificuldade que
Taquinho teve ali com o português de Portugal, que era falado pelo sufi e a filha, foi
superada por ele em menos de uma semana.
Taquinho demonstrou disciplina, humildade e vivacidade desde este primeiro
encontro; encantou o mestre e a filha. No final daquela mesma semana, o sufi deu ao
discípulo uma folha de papel e uma caneta esferográfica pedindo para que escrevesse
reflexões sobre a sua vida interior, usando apenas um lado da folha. Advertiu-o de
que o papel em Bagdá era difícil e racionado e de que não o desperdiçasse. Disse-lhe
para ocupar uma das mesas perto da estante mais ampla e, quando acabasse, deixasse
ali mesmo o escrito. Em seguida, saiu, deixando-o só na biblioteca.
Capítulo 11
“Fui um idólatra!
“Desprezei os valores do saber, da fé e da humildade e reverenciei ídolos de matéria
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plástica e elétrons coloridos, vazios de essência e substância. Deixei-me ser
escravizado e fui presa fácil de armadilhas criadas para alimentar a ganância
insaciável de falsos deuses. Porém, e não poderia ser de outra forma, meu espírito
vivia em permanente estado de insatisfação, o que me impelia mais e mais ao
servilismo e à vileza.
“Em busca de algo que eu não sabia o que era, viajei em vão por continentes e mares.
No início, por minha própria e equivocada vontade, e, depois, preso e indefeso nas
garras de algozes poderosos. Lentamente, eles me sugarem todas as esperanças e
forças vitais, e, enfim, me descartaram. Fiquei só, física e espiritualmente, no meio
do deserto.
“Somente agora, depois da primeira experiência pessoal com a benevolência dos
justos, que dali me retiraram e trouxeram-me a esta nobre casa, é que tomei
consciência: o que eu ansiosamente procurava alhures sempre esteve bem aqui,
comigo, como um facho de luz no interior do meu próprio ser e que a cegueira da
alienação não me permitia enxergar.
“Que as poucas linhas restantes daquelas que porventura me foram dedicadas no
Grande Livro descrevam o meu encontro com o esplendor dessa luz. Por mais
insignificante eu a tenha tornado com o peso de meus pecados, por resgatá-la tudo
farei e, tendo êxito, me sentirei recompensado na eternidade.
“É o que, com fé e humildade, peço a Deus, se acaso posso ser digno da Sua
misericórdia e do Seu perdão para que me julgue merecedor de tamanha glória.
“Raghid”
Shakir era um místico e um sábio respeitado em todo o mundo islâmico. Gozava de
grande prestígio também em altas rodas ocidentais. Seu verdadeiro nome é Hamid alBasri (mas nós continuaremos a chamá-lo pelo pseudônimo que deu a si mesmo
como preceptor de Faraj-Taquinho), cuja ascendência, sempre por linha paterna,
alguns experts em genealogia afirmam que vai aos primórdios do sufismo e da
cultura islâmica depois da Hégira, lá pelos séculos VII e VIII d.C. (a Hégira
corresponde ao ano de 622 da era cristã). Pertencente a uma dinastia de místicos de
longa tradição (a percepção espiritual na religião islâmica é uma graça de Deus e não
uma faculdade que possa ser adquirida pela vontade humana), diplomata de
formação e erudito, é também doutor autodidata em Filosofia e Matemática, com
reconhecimento honoris causa em afamadas universidades islâmicas e ocidentais, e
autor de várias obras publicadas e muito citadas em todos esses ramos do
conhecimento.
Estava organizando o consulado do Iraque em Coimbra, Portugal, país onde residia
com a filha havia quase dez anos, não só como diplomata, mas, também, como
pesquisador da história e do pensamento islâmicos no período de ocupação da
Península Ibérica. Ao final do ano 2000, com a eleição fraudulenta de George W.
Bush, entendeu que a segunda invasão ao seu país se tornara uma ameaça real e
decidiu por retornar a Bagdá. Ali, assumiu seu posto na alta cúpula da resistência,
organizando-a e preparando-a para invasão, depois da qual passou a atuar em duas
frentes distintas.
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Por seu completo domínio da língua inglesa, atuava política e diplomaticamente
perante os invasores, buscando a atenuação das catástrofes que causavam em seu
país, ao mesmo tempo em que comandava pessoalmente a luta armada, como
membro do alto comando da guerrilha de resistência. Fazia isto com relativa
facilidade, uma vez que os oficiais e políticos norte-americanos envolvidos no front
não dominavam o árabe, e menos ainda a cultura e os costumes islâmicos. Tinham de
se valer de intérpretes, os quais eram, quase todos, membros da resistência
infiltrados, quando não era o próprio Shakir a exercer o papel. Os poucos invasores
que tinham algum domínio do árabe não tinham a menor percepção das sutilezas de
linguagem, cultura e hábitos muçulmanos, e eis que era facílimo confundi-los, driblálos e enganá-los. Muitas vezes, Shakir despachava com membros da resistência bem
diante deles, que pensavam estar tratando com políticos, chefes de tribos ou de
comunidades locais. E os pouquíssimos norte-americanos ou seus aliados europeus
que alcançavam um entendimento mais sofisticado sobre onde estavam se metendo,
acabavam por aliarem-se à resistência, haja vista os descalabros que seus
compatriotas cometiam contra algo que tanto admiravam. Não raro, recebiam
informações privilegiadas de dentro do próprio Pentágono, especialmente depois da
destruição e saqueio dos preciosos Museu e Biblioteca de Bagdá.
A reflexão de Raghid surpreendeu-o, ainda que desde a primeira vez que o viu
percebera a força espiritual que havia latente naquele jovem torturado. O conteúdo
sensível, a beleza da caligrafia, a composição sem remendos, rasuras nem correções,
posta com limpeza e senso de proporção na folha de papel, sem que fosse necessário
rascunhá-la, eram virtudes de redação pouco comuns atualmente, mesmo nos países
islâmicos. O jovem iniciando demonstrava ter talento, apesar do estilo tipicamente
ocidental e um tanto rebuscado, com traços fortes e originais, mesmo quando
afetados de inspirações orientais, e, às vezes, excessivamente vigorosos para o gosto
árabe.
Lembrava algo do que Shakir observara no chamado barroco brasileiro em relação à
arquitetura e à pintura, sacras e profanas, quando visitou a cidade de Diamantina, no
interior do Brasil. Uma postura criativa de altivez desinteressada e irreverente, o
fazer com alegria e liberdade, muitas vezes à beira do deboche, características que o
encantaram na produção artística brasileira em geral. Postura esta que perturbava e
até irritava a carrancuda e interesseira Europa, em particular os anglo-saxões. Entre
os latinos, desde os portugueses e espanhóis até os franceses e italianos, Shakir
desconfiava que havia uma ponta de inveja pela liberdade criadora dos latinoamericanos.
O escrito do jovem não deixava margem de dúvidas sobre sua disposição em ir direto
aos objetivos que se propôs, mesmo que tenha se valido de sutilezas para dizê-lo.
Pelo informe dos médicos, quanto mais próximo no tempo se desse a autorização
para que agisse, mais possibilidades de êxito haveria, pois, apesar de apresentar
recuperação inequívoca em certos sintomas graves e de demonstrar inesperada
vitalidade, a tendência do paciente era a de um gradual enfraquecimento em direção
à invalidez e ao falecimento, sem descarte de um possível colapso súbito de um ou
outro de seus órgãos vitais mais atingidos.
Mas Shakir não abria mão da ética islâmica e dos rigorosos preceitos religiosos que
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envolviam aquela decisão, e acreditava que precisaria de uns oito ou nove meses para
assegurar-se de que não os estaria infringindo. Ao ler o texto, reconsiderou,
convencido de que o garoto se colocaria hábil para se postular um Mujahid em tempo
bem menor. Era notável o progresso demonstrado em pouco mais de uma semana de
acesso à literatura básica e à paz interior necessárias para que penetrasse no processo
de autoconhecimento. Assim, mandou chamar Fadil e o instruiu para que
comunicasse ao comando que tal expectativa fora alterada para dezembro próximo
ou janeiro do ano seguinte.
E, no dia posterior ao da redação do texto, depois do desjejum, sentou-se com o
discípulo na mesma mesa em que lhe deixara o escrito, e disse-lhe:
- Vejo que você tem talento de escritor e creio que não devo ter sido o primeiro a
identificá-lo. Isto o torna um caso mais raro ainda do que inicialmente
imaginávamos. Você é talvez o único sobrevivente de tão difícil passagem, que, além
do mais, é capaz de relatá-la por escrito de forma convincente e precisa. Sei que é
difícil o pedido que vou lhe fazer e deixo a você decidir se o atende ou não sem que
tal decisão se reflita no nosso relacionamento. Muito seria útil à Humanidade um
relato seu de tudo o que se passou com você e digo-lhe que tribunais existentes ou
em formação em alguns países ocidentais poderiam se valer dele para atuarem com
eficácia, a fim de por um termo nessas atrocidades. Você o faria?
- Posso tentar - respondeu prontamente Taquinho - mas vou precisar de papel, talvez,
muitas folhas, porque haverá de ser longo e detalhado um relato que satisfaça tais
propósitos, não? E, se for possível, gostaria de fazê-lo com certa privacidade, pois
creio que assim vou ter mais chances de chegar a bom termo.
Naquele mesmo dia, o quarto de Taquinho ganhou uma escrivaninha, canetas e
materiais para escrever e um pacote com 500 folhas brancas de papel ofício.
Capítulo 12
Voltamos àquele momento em que encontramos Taquinho deitado em seu leito,
rememorando os fatos que lhe passaram depois de Guantânamo.
Relembrava agora o dia 10 de setembro, dia em que comemorou 26 anos, quando,
logo após o desjejum, recebeu de Zahirah uma linda túnica bordada, de corte
apropriado a iniciandos, e um belo turbante, ambos feitos por suas delicadas mãos. O
broche a ser colocado no turbante foi prometido pelo sufi para a cerimônia da
Chahada.
Era uma sexta-feira e, à noite, o sufi homenageou o aniversariante com uma reunião
íntima, na biblioteca. Vieram Fadil e a esposa, e dois membros da cúpula da
resistência que Shakir convocara para a assessoria jurídica da redação do memorial
de seu discípulo. Serviram comes e bebes, inclusive os especiais para Taquinho, que
estreava a túnica e o turbante, ainda um pouco desajeitado no uso de ambos. Zahirah
e Bahija, esposa de Fadil, prepararam o narguilé de seis bocas e dançaram para eles.
Ao fumar pela primeira vez o haxixe, orientado pela angelical Zahirah, e, sob o efeito
mágico e delicioso das baforadas, vê-las dançando ao som lindo do bouzouk (um tipo
de alaúde) tocado por Fadil, Taquinho se sentiu fisicamente transportado para o
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sortilégio dos sonhos mais belos e felizes que a vida possa conceder a um mortal.
A partir de então, todas as noites das sextas-feiras, logo após a oração de depois do
pôr-do-sol, Zahirah preparava para ele um narguilé exclusivo, em seu quarto, e
ambos brincavam de “Mil e uma noites”. Ela fazia a Sherazade e ele o sultão.
Sempre vestido com a túnica e o turbante e sob o efeito inebriante do haxixe, ele
ouvia a leitura de uma das histórias, com sotaque português, na voz aveludada de sua
Sherazade. No final da leitura, ambos repetiam o mesmo diálogo que finaliza todas
as histórias daquele livro mágico. Em seguida, faziam a última oração do dia e se
despediam com beijos fraternais.
Nos sábados ou domingos, os dois usavam essas mesmas horas para ver os jornais da
televisão ou para navegar na internet no boudoir (sala de costura) dela. Ela traduzia
para ele as notícias da TV e depois conversavam muito. Ambos desprezavam a
televisão, concordavam que era sempre a mesma porcaria em qualquer país e que era
feita para gente burra e mal educada. Além do mais, as notícias são dadas de forma
falaciosa, como se para cooptar o espectador e desinformá-lo. Bastava-lhes conferilas na internet em determinados sites sérios e bem escritos para conhecer a
informação correta. Por sua vez, Taquinho aproveitava a internet, nessas ocasiões,
para ter alguma informação atualizada do Brasil, mas não registrou e-mail,
correspondeu-se com alguém ou interagiu com sites ou blogs. Não porque tivesse
dificuldades em operar na nova linguagem, mas porque achava que isto tomava
muito do tempo precioso dele e o afastava de seus objetivos. Preferia usar o seu
tempo escasso, nesses dias, para conversar com Zahirah.
Zahirah contou-lhe que era a única filha do sufi, e a mais nova (completara 21 anos
em abril) dos nove irmãos, cada um com uma diferente esposa do pai. Um deles é
Fadil, o mais velho, e todos atuavam na resistência. Dois haviam perdido a vida e
outro estava desaparecido desde os bombardeios de Fallujah, onde era a sua base. A
mãe dela morava na Arábia Saudita, em Medina; o sufi tinha providenciado a
mudança de suas esposas para lá, desde o início da invasão. Queria que Zahirah fosse
também, mas ela se recusou e não abriu mão de ficar perto do pai. Não tinha medo,
os invasores respeitavam os sufis e sabiam o quanto lhes custava agredi-los.
Evitavam bombardeios em locais habitados por religiosos célebres, eis porque as
bombas sempre caíam longe dali. Mesmo assim, os jardins daquela casa eram
famosos por serem povoados de belos pássaros cantores que desapareceram de
Bagdá com o advento dos bombardeios.
Bagdá tornara-se uma cidade sem pássaros, e o quanto isto entristecia seus habitantes
e o olhar de Zahirah! Eram refinamentos assim, em certos detalhes que em outras
plagas sequer eram percebidos, que faziam Taquinho, a cada momento em que ia
conhecendo mais, um entusiasmado admirador da arte, da religião, da cultura e do
povo que o hospedava em meio à barbárie de que era vítima.
O cristianismo a que ele estava habituado no Brasil – meditava –, era de pura
hipocrisia. Parecia-lhe que em todo o Ocidente pregava-se uma coisa e praticava-se
outra, totalmente oposta. Guantânamo e o 11 de Setembro, suas causas e
conseqüências, eram demonstrações contundentes. Sua mãe era exceção, na sua
opinião. A reforçavam Zahirah e o sufi ao comentarem sobre os cristãos daquela
região, dos quais dona Lourdes era descendente. Tanto muçulmanos como cristãos e
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demais crentes nos países do Oriente, dizia o sufi, são admirados pela fidelidade aos
cânones de seus respectivos credos e não ao contrário, como ocorre no Ocidente. E
entre todas as religiões, ensinava-lhe o mestre, é a islâmica a mais tolerante e a
menos sectária na relação com as demais.
Mas nem tudo foram flores para Taquinho nesse período. Nos dois primeiros meses,
passou por momentos de profunda depressão e desânimo, com crises de choro pelas
más lembranças e por sentir-se culpado de ter se tornado motivo de sofrimento para
os seus, em particular, a sua mãe. Curou-o Shakir, ao perceber que o jovem estava
com “saudades” da sua terra e de si mesmo, e deu a ele um ensaio que escrevera na
década de 1950 – quando conheceu o Brasil e aquela palavra –, cujo tema era o
pensamento filosófico nativo em nosso país. O discípulo não só assimilou o remédio
como passou a seguir a trilha nele assinalada. Começou a entremear os estudos
filosóficos e religiosos com os textos da brasilidade e, com o concurso da boa
brasiliana que o sufi mantinha em sua biblioteca, seguiu o roteiro do mestre, lendo os
grandes brasileiros por ele citados, a começar dos mais recentes. Leu Guimarães
Rosa, Graciliano Ramos e Oswald de Andrade, contemporâneos ao escrito,
degustando especialmente os ensaios filosóficos do último e concordando com
Shakir serem “maravilhosamente bem escritos”. Em uma sentada, traçou Os Sertões,
de Euclides da Cunha, e, a seguir, continuou o percurso retroativo na nossa literatura
pelas obras de Machado de Assis, José de Alencar, Gregório de Matos, Antonio
Vieira, até chegar em Anchieta e Manuel da Nóbrega. Ouviu Villa-Lobos, a partir de
uma coleção de vinis do sufi.
Quanta vida perdi em futilidades e idiotices, e com plena saúde! – refletia Taquinho
ao retomar as lembranças desses meses intensos de estudos e meditações, em meio às
atribulações de saúde, em que não lhe faltaram dores, insônias, pesadelos e febres.
Mesmo assim, pensava que tudo lhe estava vindo como uma benção. Revia o quanto
eram mesquinhos os desejos juvenis de que se mal alimentara, desde as bobagens da
Disney até o fanatismo por Madonna, para ficar só nos dois. Como ficavam reles os
tão propagados “valores ocidentais” perto dos que agora conhecia!
Além disso, desfrutava os clássicos da cultura islâmica e ocidental: Avicena, Al
Khwarazmi, Ibn Battuta, Saadi, Omar Khayam, Averrois, Al Jahez, ao lado de
Camões, Shakespeare, Cervantes, Dante e tantos outros. Aprofundava-se no Alcorão
pelas leituras das suratas e ayats (versículos) e os comentários eruditos de um mestre
da magnitude de Shakir. Sentia-se imensamente grato a Fadil, ao sufi e à filha, e se
via como sendo recompensado pelas desditas de que fora vítima.
Aprendeu que os muçulmanos consideravam também, como palavras de Deus
transmitidas aos homens, o Evangelho de Jesus Cristo, os Salmos de Davi, a Torá de
Moisés e o chamado livro perdido de Abraão (Ibrahim para eles). A arrogância cristã
ocidental insistia, porém, em tachá-los de sectários - que injustiça! Vivera a sua
juventude indiferente à leitura do Evangelho, apesar dos apelos de sua mãe, porque
as mensagens divinas são desprezadas no ambiente antiespiritual que é imposto à
sociedade e ao povo de seu país, em particular à sua geração. Este, sim, é sectário.
Prova disso é que, até chegar à casa do sufi, ele só sabia da existência do Evangelho
e do Alcorão, e, deste, só por causa das origens de sua família. Sobre os demais
nunca tinha ouvido falar. Agora, tinha-os consigo e sempre que os abria, no
recolhimento daquele retiro a que fora levado pelo destino, era como se mergulhasse
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em oceanos de sabedoria.
Naquele ano, o Ramadã começou em 15 de outubro. Sua saúde não permitia que
fosse a Meca acompanhando o sufi e a filha. Por segurança, a resistência tinha
decidido que ele não poderia ser conhecido por mais ninguém, exceto pelos membros
da cúpula, e não deveria sair da casa do sufi. Assim, o quinto pilar do Islã, a
peregrinação a Meca (Haj), ficara a ele impedido. Mas vinha cumprindo com muita
fé, entusiasmo e disciplina, sempre sob a orientação do mestre e de Zahirah, o Salat,
as cinco orações de cada dia, o Zakat, as dádivas rituais, que ele pagava com
trabalhos leves de jardinagem e de bibliotecário que eram possíveis ao seu estado de
saúde, e não lhe era difícil o Saum, o jejum durante o Ramadã, pois ele praticamente
o observava o tempo todo. O primeiro, a Chahada, ele já a recitava e a aceitava de
plena fé, sem, contudo, ainda ter sido autorizado pelo sufi a fazê-lo diante das
testemunhas que oficializariam a sua conversão.
Como as orações eram feitas obrigatoriamente em árabe – e ele possuía bom ouvido
–, acabou assimilando a sonoridade do idioma e até se comunicava razoavelmente
nele, pelo menos nas relações cotidianas com o pessoal e os donos da casa. A semana
em que o sufi e a filha estiveram fora, aproveitou-a para dar uma boa adiantada no
seu relato, quase terminando a parte de Guantânamo, a que, por certo, lhe fora a mais
difícil. Um de seus assessores, que era intérprete e tradutor do português para o
árabe, não escondia o entusiasmo com as qualidades do jovem escritor e trazia-lhe
com freqüência as sugestões do outro assessor, que era juiz formado nos EUA, a
quem levava resumos em árabe dos textos que Taquinho ia produzindo.
Ao deixar a cama e ir ao banho ritual de purificação para a oração e o encontro
daquela noite com o sufi, Taquinho decidiu levar ao mestre, pela primeira vez, a
íntegra do que havia escrito até ali. Desde que iniciara o duro trabalho de memória,
este sequer fora mencionado nos encontros do discípulo com o mestre.
Era hora de apresentá-lo, ainda que por finalizar, e consultar o mestre sobre o que
meditara para continuá-lo. Naquela noite, iriam ensaiar novamente a Chahada, cuja
cerimônia se daria dentro de dois dias. Depois, ele iria ser submetido à sabatina como
postulante a Mujahid. Esta seria conduzida à mercê de Deus, como costumavam
dizer, e a honra somente lhe seria concedida pela unanimidade dos presentes. Se bem
sucedido, ele passaria a ser membro da elite da resistência e ficaria à disposição do
alto comando.
Capítulo 13
- O que deve o homem fazer?
- O bem.
- O que é o bem?
- Seja o que for ou onde esteja, isto não é importante. É nosso dever buscá-lo,
sempre.
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- Estará na razão?
- A razão serve ao poder dos homens sobre outros homens. Muitas vezes, assinala
falsos caminhos.
- Na moral?
- Se for a que começa pela fé, servirá ao dever e apontará o caminho. Por ele, irei.
Assim o jovem discípulo do sufi ia enfrentando a difícil sabatina, respondendo com
serenidade às questões colocadas, uma após a outra, pelos que o rodeavam. Era numa
reunião secreta numa madraça (universidade) de Bagdá, no seu salão hermético e
mais nobre, onde pontificam mestres a outros mestres. O evento fora transferido para
lá em vista da curiosidade que a trajetória do jovem discípulo de Shakir despertara
nos mais fechados círculos islâmicos, e à sabatina concorrera uma inesperada
audiência. Houve quem pedisse um intérprete imparcial, ao que Shakir
imediatamente consentiu, e ninguém menos que um ex-embaixador do Iraque no
Brasil, então catedrático da Língua Portuguesa na madraça, se dispôs a sê-lo.
Para o sabatinado fora um dia inesquecível, que caiu, em nosso calendário, numa
quarta-feira, dia oito de dezembro de 2004. Era um dia muito frio, mas ensolarado e
bonito.
De manhã, na sala de orações da casa do sufi, ele protagonizara a cerimônia da
Chahada, que foi simples e discreta, mas rigorosa, tendo Fadil e um clérigo xiita,
amigo do sufi, como as testemunhas regulamentares exigidas pelo rito de conversão.
Diante delas e do sufi ele pronunciou três vezes, com convicção, o dito sunita:
lā 'ilaha 'illāl-lāh an Muhammadur rasūlu llāhi (transliteração; em nossa língua:
“Não há outra divindade além de Deus [Allah]; Maomé [Muhammad] é o seu
profeta”).
Em seguida, fazendo a genuflexão regulamentar direcionada para a esguia palmeira
que, da janela frontal da sala de orações, indicava a direção de Meca, todos oraram a
surata que fora escolhida pelo novo fiel, a 17ª, “A Viagem Noturna”.
Ao final, veio Zahirah trazendo, numa almofada de seda alva, um broche com uma
bela esmeralda losangular incrustada em uma moldura de ouro oval; simbólica
homenagem à bandeira do país de origem do jovem discípulo. O sufi prendeu o
broche no turbante de Faraj, beijou-o nos dois lados da face, olhou-o bem nos olhos e
no broche preso ao turbante, e abraçou-o vigorosamente.
Depois de um almoço frugal servido no varandão da lateral norte do palacete, o
iniciado foi levado pela primeira vez a uma mesquita, próxima à casa do sufi, onde
fizeram a oração da tarde. A seguir, foram para a madraça. A sabatina começou após
a oração do pôr-do-sol, no mesmo salão do evento, com todos os admitidos naquela
reunião secreta, cerca de trinta altas personalidades da resistência e do islamismo de
Bagdá, sunita e xiita.
Impassível, Shakir acompanhou, orgulhoso, o desempenho do discípulo, que se saiu
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com elegância das armadilhas que aquelas cobras criadas do pensamento islâmico
prepararam para ele. Algumas, inclusive, baixas, como a que um outro sufi armou ao
perguntar se o sabatinado tinha certeza de ter se despojado dos vícios que a sua
origem ocidental lhe impregnara desde o berço.
- Confundes a minha origem com o comportamento de alguns devassos que vêm
governando a minha nação - respondeu, sereno, o jovem. E emendou: - Permita-me
desconsiderar a parte equivocada de vossa pergunta. Orgulho-me da minha origem,
pois ela está em meu povo; um povo irmão do vosso e que também sofre a perfídia
das elites que o governam. Também somos um país invadido, senão pela violência
desatada com que invadem o vosso, mas pela mesma estupidez e prepotência. Não
sei se me despojei dos vícios comuns aos mortais – os haverá lá como aqui, penso eu
-, mas garanto-vos que tudo faço ao meu alcance para manter em meu ser as virtudes
que meu nobre povo teria porventura me consignado desde o berço.
Coube a Shakir, que se manteve em silêncio o tempo todo, logo ao perceber a platéia
satisfeita e encantada, fazer a última pergunta, depois de quase uma hora de sabatina:
- O que esperas encontrar como Mujahid?
- O esplendor da luz de Deus! - respondeu prontamente o jovem Faraj.
- Faraj Mujahid! Faraj Mujahid! – bradaram todos, reverenciando o iniciado.
Taquinho era um Mujahid.
Capítulo 14
Ao retornar da sabatina, Zahirah apresentou ao Mujahid o novo apartamento em que
ficaria hospedado, com um quarto muito mais amplo, sala de estar, sofisticada sala
de banho toda em mármore branco e varandão exclusivo. Ficava no segundo andar
da ala sul do palacete, onde se alinhavam vários outros aposentos semelhantes, tal
como num hotel de luxo. Tinha uma vista magnífica para a parte mais nobre do
jardim que rodeava a bela arquitetura mourisca do edifício e para toda a cidade de
Bagdá. Disse-lhe que ele passara a ser hóspede de honra da casa. Ela mesma havia
redecorado o espaço, que era da falecida mãe de Fadil e tinha a predominância da cor
laranja, a preferida da antiga moradora. Zahirah conhecia o trauma de Taquinho por
aquela cor, a mesma dos uniformes dos prisioneiros de Guantânamo, e tratou de
substituir cortinas, estofados, roupas de cama e os detalhes de decoração pelos tons
de verde, que sabia ser a cor predileta do novo Mujahid. O guarda-roupa, a
escrivaninha, os livros, os equipamentos hospitalares que ainda permaneciam para o
atendimento médico, e tudo o mais, foram transferidos para lá. Ao guarda-roupa,
foram acrescentados um terno cortado pelo alfaiate do sufi em tecido da escolha de
Zahirah, e três gravatas, igualmente escolhidas pela bondosa anfitriã. Ela sugeriu que
usasse o terno, num belo tom escuro de jade, e uma gravata ocre com motivos
gráficos (arabescos) em ouro, no dia seguinte, quando iria receber uma visita do sufi,
logo após o almoço. E o ensaiou mais uma vez nos gestos habituais do salam alakum
(Deus esteja contigo), a saudação árabe, que, a partir de então e de acordo com a
etiqueta muçulmana, ele faria ao encontrar-se com outros muçulmanos.
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No dia seguinte, na hora marcada, Zahirah chegou com o sufi nos novos aposentos
do Mujahid. Era a primeira vez que o hóspede/discípulo tinha a honra de receber o
anfitrião/mestre em seus aposentos. O sufi, ao ver aquele homem elegante - muito
bem vestido, bem barbeado e ostentando o turbante ornado pelo broche de esmeralda
-, saudar-lhe no rigor da etiqueta árabe, não pôde evitar compará-lo mentalmente ao
trapo humano que ele encontrara num esconderijo da resistência, quando se viram
pela primeira vez. E não conteve a satisfação que lhe trouxe aquela transformação.
Depois da saudação ritual, sorridente, abraçou fortemente o discípulo.
Zahirah se despediu dos dois e saiu, fechando a porta. O sufi sugeriu que fossem
conversar no varandão, onde se assentaram nas confortáveis poltronas de vime que o
mobiliavam. Nos céus de Bagdá, via-se uma nuvem de fumo negro subindo de um
bairro periférico, ao longe, quase do outro lado da cidade.
- Outro atentado suicida contra um mercado de um bairro pobre – comentou o sufi –
acabou de acontecer e é dos grandes; com mais de cinqüenta vítimas inocentes!
- Tenho visto vários na televisão – retrucou o jovem – não podem ser obras de
Mujahids, por tudo o que aprendi, sei que não. Dizem que são muçulmanos e
Mujahids, falam do Jihad, mas eu não acredito. Quem são os verdadeiros autores
dessas atrocidades?
- Você os conhece bem, foi hóspede deles por quase três anos. A CIA é a mais
poderosa empresa de terrorismo que já existiu na face da Terra. Ainda se vale de
velhas táticas ocidentais para denegrir a nossa cultura, como nas Cruzadas e na
Inquisição. É o racismo, a intolerância, enfim, o poder do terror: matanças, torturas,
genocídio, o amedrontamento das populações indefesas. Registram-se desde o
incêndio da Biblioteca de Alexandria, que insistem em atribuir a nós, muçulmanos,
os maiores amantes do livro em todas as épocas. Recentemente, no final do século 19
da Era Cristã, acrescentaram-lhes a face macabra e cruel do sionismo.
- Ainda não pude estudá-lo a fundo, apesar de vê-lo mencionado em vários textos
recentes. É uma religião?
- Abdallah I, a quem conheci pessoalmente, que é avô de Hussein, o atual monarca
da Jordânia, gostava de ridicularizar a imprensa ocidental quando nos acusava, a nós,
árabes, de anti-semitas. Ora, nós, como os judeus, somos também filhos de Sem, o
filho de Noé, ou seja, somos semitas. Abdallah afirmava com razão, e meus estudos a
respeito confirmam-no, que os judeus sempre foram perseguidos por nações
ocidentais e cristãs. Eles mesmos têm de admitir que nunca, desde a Grande
Diáspora, desenvolveram-se com tal liberdade e alcançaram tanta importância quanto
na Península Ibérica, enquanto esta foi possessão árabe. Com poucas exceções, os
judeus viveram durante séculos no Oriente Médio em completa paz e amizade com
seus vizinhos árabes. Damasco, Bagdá, Beirute e outros centros árabes sempre
incluíram prósperas comunidades judias. Até o início da invasão sionista na
Palestina, os judeus receberam de nós um tratamento muito generoso, coisa que
jamais ocorrera na Europa cristã. Hoje, pela primeira vez na história, eles começam a
sentir os efeitos da resistência árabe ao assalto sionista. A grande maioria está tão
ansiosa quanto os árabes para que chegue o fim do conflito. Aqueles que entre nós
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encontraram lar acolhedor ressentem-se, como nós, da chegada de tantos
estrangeiros. Como venho afirmando em meus artigos, o sionismo não é mais que
uma doutrina forjada para a manutenção, a qualquer custo, do capitalismo em
decadência. E, por conseguinte, dos privilégios destes que se julgam os donos do
mundo. Não é religião, pois não tem fundamentos na tradição nem na História. Não é
ideologia, pois não se sustenta em idéias lógicas ou científicas. Não se pode dizer
que seja movimento político ou cultural judáico, ou de parte do povo judeu, pois de
nada lhe serve, só o prejudica, nem o integram somente judeus. É, em verdade, uma
fraude, que se disfarça no alegado combate ao anti-semitismo, imposta pelos grupos
financistas e empresariais transnacionais, em especial os grandes complexos
banqueiros e bélicos, para justificar termos como “guerra preventiva”, “terrorismo”,
“eixo do mal” e outras criações de propaganda que enganam a opinião pública
ocidental e judaica diante da escalada desumana e belicista em que se viu metido o
Império norte-americano. Israel se auto proclama “estado judeu”, mas não é
propriamente um país; é a maior base militar dos EUA, fora deles. E os EUA não são
exatamente uma nação, mas uma sigla emblemática das elites capitalistas que
formam o poder central do Império. O sionismo é, assim, a doutrina remanescente da
fracassada política externa desse Império, toscamente redigida para ser a mais cruel
manifestação anti-semita e anti-humanista jamais registrada na História. Tem
evoluído de tal modo que já se pode falar de sionismo cristão e sionismo muçulmano,
pois é integrado basicamente por membros das elites poderosas judias, cristãs e até
muçulmanas - como as egípcias, jordanianas e sauditas –, e seus agentes civis,
militares e mercenários. A totalidade dos atentados terroristas mais letais que são
divulgados com estardalhaço na mídia é obra deles e desta mesma mídia que
controlam. Têm por objetivo demonizar o Islã perante a opinião pública mundial e
justificar a sua ação bélica contra nós. O 11 de setembro de 2001, em Nova York, é o
exemplo mais contundente de tal estratégia.
- Mas quem seria capaz de matar-se assim, dessa forma e por um motivo tão vil?
- Há loucos e desesperados em toda parte. Vendem a alma e a vida com facilidade. E
dinheiro é o que não falta ao sionismo, que, hoje, é sinônimo de terrorismo; o
verdadeiro terror provocado pela matança, o genocídio e a barbárie que patrocina nos
quatro cantos do mundo. Há também os ingênuos e os idealistas. Desde o começo
desta guerra, e falo de 1990 para cá, nossos Mujahids não realizaram mais que nove
missões estratégicas de martírio, todas dentro de critérios rigorosos e com resultados
importantíssimos em favor do Islã. Mas apenas dois deles foram divulgados
pelos mais poderosos meios de comunicação, e, mesmo assim, distorcendo
completamente os fatos, negando a verdade e minimizando as derrotas militares que
sofreram.
Shakir fez uma longa pausa, com o seu olhar fixado na nuvem de fumo no céu de
Bagdá. Seu rosto estampava uma preocupação grave e uma profunda tristeza interior.
Súbito, se reanimou e retornou ao diálogo com Taquinho:
- Bem, eu não vim para falar disso; vim por dois motivos: comentar sobre seus
escritos e introduzi-lo nos propósitos de sua missão. Li todo o seu trabalho até o
ponto em que me entregou e quero dizer-lhe que, além de grato, fiquei orgulhoso da
sua coragem e do seu talento. Poucos homens eu conheço capazes de enfrentar o que
você enfrentou ao redigir sobre a sua estadia em Guantânamo com tanta riqueza de
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detalhes. Sou um velho que já passou por quase tudo na vida, mas a sua descrição me
comoveu a ponto de fazer brotarem lágrimas em meus olhos. Estou certo de que você
seria ótimo escritor ou um jornalista excepcional se não lhe tivesse ocorrido o que
ocorreu. E fico-lhe muito grato por ter atendido ao meu pedido. Acredito que este
documento poderá ser de grande valia para os ocidentais conhecerem um pouco de si
mesmos e refletirem mais sobre o que são. Além disso, você retira a máscara de
falsidades que foi construída em torno da prisão de Guantânamo desde a data mesma
em que os EUA, oficialmente, reconhecem tê-la criado - segundo eles, em janeiro de
2002 -, portanto, meses depois de estar sendo usada secretamente, pelo menos a
partir do 11/9. Seu depoimento confirma muitas denúncias bem informadas que vêm
se registrando a partir da catástrofe de Nova York até hoje, oferecendo as provas
sólidas que lhes faltavam. Confesso-lhe agora que não faço fé nos tribunais nem na
capacidade das autoridades ocidentais em rever suas políticas imperialistas. Mas é
preciso que acreditemos na História, e ela requer documentos incontestáveis como
este seu depoimento. Refletindo mais sobre ele, devo dizer que concordo com todo o
seu projeto, e o meu ponto de vista é o de que você deve continuá-lo até o último
momento, incluindo nele a informação sobre a sua missão.
- Mas isto não poderia comprometer a resistência e não daria margem para que o
usassem como prova de que somos nós os terroristas?
- É possível que sim, e esteja certo de que eu não proporia isto se não fosse você o
autor do documento. Penso que você está plenamente capacitado a tratar a questão
moral que envolve os fatos de forma a deixar bem claros a essência deles e o real
papel dos protagonistas. Você saberá conduzir este memorial para que ele se torne
ainda mais importante, mais revelador e mais contundente. Não devemos omitir a
verdade quando somos capazes de expô-la com clareza. E você será capaz disso, eu
confio em você.
- Quando vou conhecer os detalhes da minha missão?
- Este é o segundo motivo da minha visita. Devo introduzi-lo nela agora e, amanhã,
faremos aqui em casa uma reunião secreta com alguns membros da cúpula, na qual
lhe serão adiantados os detalhes. Os planos estão em fase final, e é uma missão de
primeira grandeza. Teríamos outros Mujahids aptos a executá-la, e eles até gozariam
de prioridade pela honra de protagonizarem-na, mas a sabatina de ontem fez a cúpula
decidir por você. Parece-me que há também outras razões, as quais ainda
desconheço, que nos levaram à sua escolha. Eu mesmo fiquei surpreso quando me
comunicaram ontem à noite, pois sei tudo sobre a importância dessa missão.
- Desculpe-me por não conter a minha ansiedade, mas fiquei curiosíssimo.
- O exército dos EUA vem preparando uma força de elite para atuar no front em
Bagdá. São 200 oficiais muito bem preparados que passaram três anos na Jordânia
internados numa espécie de escola criada exclusivamente para eles, e na qual só se
fala o árabe. Lá, nossos costumes, hábitos, cultura e religião foram rigorosamente
estudados nos mínimos detalhes, mas com a particularidade de que não foram
dirigidos a fazerem-nos iniciados ou adeptos, e sim a torná-los poderosos inimigos
do Islã. Terminaram o treinamento no final de novembro, passaram alguns dias com
seus familiares nos Estados Unidos e agora estão sendo trazidos para cá. Devem
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iniciar suas missões já no próximo mês de janeiro. Cada oficial vai comandar um
batalhão bem treinado e com experiência local, além de estarem equipados com todo
o aparato tecnológico e logístico para varrer Bagdá de ponta a ponta, bairro por
bairro, casa por casa, com o objetivo de acabar com o comando central da resistência
que já sabem, ou suspeitam, estar em Bagdá. Depois se deslocarão para outras
cidades, até que se cumpra a “limpeza” de todo o país. A ordem é de só fazer
prisioneiros se estes colaborarem com eles. Os que se negarem serão eliminados.
Não serão poupados os locais sagrados, as mesquitas, as madraças, as residências de
místicos e clérigos. Nem as daqueles que eles pensam ser seus aliados ou
colaboradores, como é o meu caso. Estes homens representam uma real e perigosa
ameaça à resistência e ao Islã, eis porque, desde que a nossa Inteligência teve
conhecimento do projeto, começamos a formular planos para impedi-los. São 200
homens e mulheres bem armados e preparados para uma guerra de extermínio e que
trazem em seus destinos um verdadeiro genocídio contra o nosso povo. Eles poderão,
de fato, destruir a nossa resistência armada. O Islã, com a graça de Deus e a nossa fé,
haverá de fazer com que tais destinos não se cumpram jamais.
- E quantos deles tocam a mim?
- Por incrível que possa parecer, todos ou quase todos! O excesso de confiança
parece tê-los conduzido a um erro grave. O projeto foi realizado sob tal sigilo que
eles sequer imaginam que nós tenhamos alguma idéia da sua existência. Por isso,
decidiram que a vinda desses oficiais deveria se dar da forma usual para não
despertar suspeitas de que algo diferente estaria por vir a Bagdá. Estavam todos aqui
ao lado, em Amã, e retornaram aos EUA para depois virem de lá, para Bagdá. Os
invasores sabem que acompanhamos todos os seus movimentos, desde que se
conduzem para cá e chegam ao país, em qualquer ponto e por qualquer meio de
transporte. As tropas frescas que vêm dos EUA chegam normalmente no final de
cada ano cristão, de modo a que os substituídos possam passar as festas de Ano Novo
com suas famílias. É como uma recompensa aos que lutaram. Em geral, os novos
chegam um pouco antes para as trocas de guarda e para estar em condições de
assumir efetivamente seus postos logo no início do novo ano. Mas, antes, os novos
oficiais e comandantes fazem um almoço de confraternização no restaurante dos
oficiais na Zona Verde. O dessa turma já foi marcado para o dia três de janeiro, e os
nossos alvos deverão estar todos ou quase todos lá. São militares treinados para
agredir o Islã. Lá não estarão crianças, velhos, nem mulheres inocentes. Tais
condições nos autorizam ao uso do Jihad. Amanhã, ficaremos cientes de todos os
detalhes do plano concebido pela resistência.
Capítulo 15
Em seu texto, Taquinho mencionou a Chahada e a sabatina, que culminaram com a
sua ordenação como Mujahid, como se tivesse recebido um diploma
importantíssimo. Isto para dar uma dimensão de importância aos que o lessem com a
ótica de avaliação pequeno burguesa e provinciana, como a de seus conterrâneos. E
relatou, como uma reunião secreta, o encontro com “um sufi”, sob a mesma ótica,
detalhando sobre as roupas com que se vestira e como se barbeara e se preparara para
receber, pela primeira vez, informações confidenciais do alto comando da resistência
iraquiana; assim demonstrando a confiança que conquistara.
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Dona Lourdes não acreditava no que estava lendo. Agora, seus olhos já não
derramavam lágrimas: ela sentia orgulho do filho. Como gostaria de tê-lo visto de
terno, gravata e turbante no encontro com aquele sufi! Imaginava o filho de bigode e
cavanhaque, belo e garboso como o avô Pedro na fotografia que ela guardava (bem
escondida, por certo) de quando ele era jovem, igualmente de terno, gravata e
turbante, mais ou menos na mesma idade que Taquinho teria naquele momento. Mas
veio-lhe em seguida o sobressalto: ela havia visto pela televisão, no dia anterior, logo
depois do almoço na casa da amiga viúva, o êxito do filho naquela missão que
protagonizara como anônimo e principal ator.
Isto a alarmava terrivelmente, pois não se sentia preparada para o que ia ler. Ia passar
às linhas que descreveriam como se engendrou a missão e como e porque ela deve ter
sido realizada. Com certeza, nem os invasores daquele pobre país e nenhuma equipe
de televisão saberiam disso. No ocidente, ela era única que tinha acesso àquela
informação.
o-o-o-o-o-o-o-o-o
No dia seguinte, Fadil levou o novo Mujahid a um cômodo secreto, no subsolo do
palacete Lá já estavam o sufi, o clérigo xiita que testemunhou a Chahada, dois
comandantes da resistência armada e um membro da Inteligência.. Fizeram as
saudações de praxe, as orações do meio dia, e, em seguida, o clérigo preparou o
narguilé com esmero ritualístico. Antes de entrarem no assunto, todos fumaram o
haxixe em silêncio. Esse rito, Taquinho já sabia, sempre precedia a decisões de
grande importância.
O primeiro a tomar a palavra foi o comandante da resistência. Dirige-se diretamente
ao Mujahid, sendo traduzido por Fadil frase por frase:
- A importância da missão é de tal ordem que estamos investindo nela praticamente
todos os nossos recursos de Inteligência. Estamos dispostos até a abrir mão do nosso
mais eficiente agente infiltrado na Zona Verde, cujo codinome é Khalid. O histórico
dele, a mesma idade e a semelhança física com você foram fatores decisivos para a
escolha do Mujahid. Muhammed, chefe da nossa Inteligência, vai agora lhe informar
sobre os detalhes da operação.
Tomou a palavra Muhammed:
- Além da semelhança física, pode-se dizer que vocês são sósias. Outra condição de
Khalid, que Deus Todo Poderoso concedeu a esta operação, é o fato de ele ter sido
privado do uso da fala. Sua língua foi cortada na época da primeira invasão porque
alguns de sua tribo atribuíram a ele a delação de posições ao inimigo. Expulsaram-no
da tribo junto com a mãe, e ambos foram feitos prisioneiros dos invasores. Estes os
venderam como escravos a um empresário europeu que mora em Bagdá e presta
serviços de alimentação às tropas invasoras. Desde a demarcação da Zona Verde, ele
obteve a concessão para explorar ali o restaurante dos oficiais, o qual dirige e
gerencia pessoalmente, usando Khalid como serviçal. A mãe é empregada da casa
dele, no centro de Bagdá, onde mora com o filho num porão.
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Muhammed continuou a exposição do plano, mostrando papéis, mapas e fotografias
que trouxera numa pasta. Daremos a seguir um resumo de sua explicação:
Duas ou três vezes por semana, a mãe de Khalid sai de casa com o filho, por volta
das 11 da manhã, a fim de fazer compras, e depois o acompanha até os portões da
Zona Verde. Parte das compras são, em geral, temperos frescos e típicos, que o filho
leva para o restaurante, e a outra parte para o consumo residencial, que ela leva para
casa. Numa das mercearias que costumam ir, é feita a troca do aparelho celular onde
armazenam as informações que passam à resistência.
No dia três de janeiro, que será o “Dia D” da operação, ambos farão compras nesta
mercearia e, no banheiro da mesma, Khalid será substituído por Faraj.
Quando Khalid entra com compras na portaria da Zona Verde, estas são sempre
objeto de atenção e revista, e a identificação dele fica em segundo plano,
praticamente restrita à passagem do cartão magnético numa borboleta e à digitação
da senha numa porta de vidro com detector de metais. As compras passam na esteira
de raios-x, como nos aeroportos, junto com a bolsa a tiracolo em que ele sempre leva
uma garrafa térmica com café e uma merenda que a mãe lhe prepara. Ele não precisa
de falar nada, pois todos ali o conhecem, sabem que ele se comunica com as mãos e
alguns grunhidos que consegue emitir, e só a mãe é capaz de entendê-lo. De forma
que ele sempre entra mudo e sai calado, e durante o trabalho só obedece às ordens
que lhe são dadas pelo amo, pessoalmente ou pelo celular.
O trabalho dele limita-se a deixar as compras na despensa, quando as leva, e ir para a
adega, ambos no andar térreo do prédio do restaurante, onde o patrão deixa separadas
as garrafas de bebidas que devem subir ao restaurante, no andar logo acima. Ele pega
as garrafas de seis em seis, uma em cada mão, e quatro postas numa espécie de
suspensório de couro onde se prendem quatro bolsas para este fim. O apetrecho fica
pendurado num prego, ao lado da porta da adega. Ele o veste para fazer o transporte,
passando-o sobre os ombros e ajustando-o com uma fivela na cintura. É um trabalho
de burro de carga. Com a carga, ele sobe a escada estreita que chega ao lado do
balcão, no andar de cima, sobre o qual dispõe as garrafas para o barman organizá-las
nas prateleiras. Em geral, a operação é repetida oito ou dez vezes, até que subam
todas as garrafas, e deve terminar antes de o restaurante abrir as portas aos primeiros
clientes, o que ocorre sempre ao meio-dia e meia. Tudo parece pensado para que o
serviçal não tenha contato com clientes e funcionários, só com o amo. Às vezes, no
decorrer do serviço, este usa o celular para ordenar-lhe que suba com mais garrafas,
mas isto muito raramente acontece.
Durante a função no andar de cima, Khalid aguarda num depósito anexo à adega,
onde come a merenda e ouve música num MP3, até que o amo lhe chame, depois de
sair o último cliente, para descer as garrafas que não foram abertas e os cascos das
que foram completamente esvaziadas. Feito isto, ele volta ao andar de cima e dá
início à limpeza do chão e das mesas, encarregando-se também dos arranjos
decorativos que as ornamentam para deixar o salão pronto para o dia seguinte, pois o
restaurante, a não ser em ocasiões muito especiais, só abre para o almoço.
Nesse período, ele fica sozinho e é capaz de substituir, sem despertar suspeitas - nem
mesmo da vigilância por câmeras de segurança -, os micro-gravadores que camufla
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nos arranjos decorativos de certas mesas e que são programados para gravarem as
conversas dos oficiais, no almoço seguinte. Antes de deixar o serviço, ele usa o
banheiro dos funcionários, onde transfere para o seu celular os arquivos gerados, os
quais, não raro, trazem informações preciosas à resistência. O turno se encerra lá
pelas quatro da tarde, hora em que ele normalmente volta para casa.
A missão de Faraj será rigorosamente ensaiada, nos mínimos detalhes, desde a sua
entrada na Zona Verde, disfarçado de Khalid. Este obteve, com o celular, fotos de
todo o percurso externo e do interior do restaurante e da adega. A resistência
desenhou um mapa do local e conseguiu uma cópia da planta do prédio.
No “Dia D”, Faraj deverá cumprir a primeira parte do serviço e irá para o local onde
Khalid fica ouvindo música, sentado num banquinho, na área de tanques anexa à
adega onde fica também o depósito de cascos vazios, que o amo guarda para vender
a falsificadores de vinhos e bebidas raras. Naquele local não há câmeras de
segurança. Ali, num bueiro em desuso, Khalid vai esconder cinco garrafas de vinho
preparadas, quatro com o primeiro composto do líquido explosivo e uma com o
segundo composto. Os compostos serão paulatinamente levados na garrafa térmica
de Khalid, misturados com café.
As quatro garrafas com o primeiro composto são frascos de um vinho raríssimo, o
predileto do comandante-em-chefe das forças invasoras. Só é servido em ocasiões de
gala ou quando alguma alta autoridade de governos aliados é recebida por ele no
restaurante. Foram escolhidas por causa do formato inconfundível, e porque têm dois
rótulos, um de cada lado, um em chinês e outro em português, o que as torna mais
fáceis de serem identificadas pelo Mujahid. O nome do vinho é “O Esplendor do
Império”, mas o comandante-em-chefe só o chama de “The Power of Empire”.
Ao ouvir isto, o sufi pediu um aparte. Disse que sabia a história desse vinho. Era
produzido em Macau, na China, desde o século XVI, por jesuítas portugueses que ali
plantaram o vinhedo e o fabricaram. O envelhecimento era feito em depósitos
flutuantes, mar adentro, o que agregava uma qualidade especial e muito apreciada a
seu sabor, por causa do permanente balanço das ondas. Parou de ser produzido há
pouco mais de vinte anos devido às condições climáticas na região, que
inviabilizaram o vinhedo. Cada garrafa custava hoje uma pequena fortuna.
Dele conta-se uma anedota, bem conhecida nos meios da diplomacia portuguesa: o
vinho possui dois rótulos e tem este nome porque, quando os jesuítas recebiam
chineses, eles o serviam exibindo apenas o lado da garrafa com o rótulo em chinês,
em homenagem ao Império local. Quando recebiam portugueses, faziam o mesmo
com o outro lado da garrafa. Então, alguém pergunta: e se lhes chegavam as duas
delegações ao mesmo tempo? Aí, eles as dispunham numa grande mesa, uma
delegação de cada lado, e serviam o vinho exibindo o rótulo certo para cada lado, de
forma tal que os portugueses só viam os rótulos em português e os chineses só viam
os em chinês. Os portugueses gostam de contá-la para se gabar de suas virtudes
diplomáticas, o que, por sinal, disse o sufi, a anedota parece representar muito bem.
Mas não era a piada típica de portugueses que os brasileiros costumavam contar,
completou, olhando para Faraj, que estava risonho como os demais ouvintes, apesar
de tê-la entendido aos pedaços, pois foi contada em árabe; apenas a última frase lhe
fora repetida em português.
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- Com certeza - falou o agente da Inteligência, provocando risos – o comandante-emchefe já estaria pensando num terceiro rótulo para o vinho.
A intervenção de Shakir relaxou o ambiente até então um pouco tenso, e a todos
aliviou a tranqüilidade e o bom humor do Mujahid. Este sugeriu, tentando se
expressar num árabe claudicante, que aquele nome inspirasse o da operação,
alterando-o para “O Esplendor do Islã”. Depois de Fadil ter repetido quase tudo em
bom árabe para os que não puderam entender o de Faraj, a idéia foi aprovada por
unanimidade e todos pronunciaram a expressão, um após o outro: (em árabe), “O
Esplendor do Islã”.
Capítulo 16
- A quinta garrafa - continuou o chefe da resistência em sua explanação, sempre com
a tradução de Fadil - será a de um vinho comum, e terá sobre a boca uma medida de
volume e um pequeno funil. Você vai retirar primeiramente do bueiro, uma a uma, as
quatro garrafas do primeiro composto e colocá-las dentro do tanque, retirando as
rolhas com que Khalid vai tampá-las. Depois, usando o funil e a medida, misturará
uma só medida do segundo composto em cada uma. A solução estará pronta para
explodir, bastando para isso uma pequena e única fagulha de eletricidade, portanto, a
partir daí há que ter cuidado em cada gesto.
Ele continuou a explicação, que voltamos a dar em resumo:
Faraj vestirá o suspensório, ajustando-o bem, e pendurará no pescoço um cordão com
um escapulário cristão que encontrará no escaninho de Khalid, perto do tanque, junto
com quatro fios de carregadores de MP3, preparados para serem plugados no
escapulário, numa das pontas, e a outra para ser introduzida dentro da garrafa. Ele
então colocará as garrafas abertas nas bolsas do suspensório, plugará as pontas
amarelas dos fios no escapulário e enfiará a ponta vermelha dentro de cada garrafa
até tocar o fundo. Depois, retirará a bateria do MP3, que é pequena, redonda e quase
do tamanho de uma moeda, e a encaixará por dentro da tampa do escapulário,
mantendo-o aberto na palma da mão.
Daí em diante, só terá de andar com calma até a escada, sempre mantendo na palma
da mão o escapulário aberto, subir devagar a escada e entrar no restaurante. Isto
deverá acontecer exatamente à uma hora da tarde, quando o salão estará
completamente lotado. Sem parar um só segundo, mas também sem se apressar nem
fazer movimentos bruscos, Faraj seguirá na direção da coluna central do edifício,
atento nas pessoas à sua volta. Qualquer movimento que perceber sendo feito na sua
direção, o levará a fechar o escapulário, mesmo se não tiver alcançado a coluna
central. Ao fazê-lo, a bateria provocará uma fagulha nas quatro garrafas. Será uma
explosão arrasadora.
Faraj ouviu tudo com atenção e pediu licença para fazer três observações.
A primeira era sobre as câmeras de segurança. Elas poderiam detectá-lo no percurso
e ele então ser impedido de subir a escada? Neste caso, apesar de lhe parecer óbvio,
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se via obrigado a perguntar: deveria explodir-se ali mesmo, onde estivesse?
A resposta, dada pelo chefe da Inteligência, informava-lhe que diante da importância
do evento provavelmente haveria um segurança na entrada de serviço do restaurante
que dava para a adega, a escada e a dispensa. Desde que ele não demonstrasse
insegurança ou motivos de suspeição, nem as câmeras nem o segurança atinariam
para algo suspeito. Pensariam que ele levava uma nova requisição de garrafas para
cima. Seria bastante que caminhasse naturalmente até o andar de cima. O tempo que
gastará em todo o percurso deverá ser em torno de dois a três minutos, até o topo da
escada. Ali, sim, sua presença causaria estranheza. Mas ele já teria os alvos bem à
sua frente e o sucesso da operação estaria assegurado. Contudo, se ele pudesse
chegar até a coluna central, o colapso do edifício era certo, e quem não fosse
eliminado pela explosão o seria pela queda do prédio, que possui três andares. No
terceiro, funciona o escritório administrativo dos negócios do empresário. A coluna
fica localizada a dez metros da saída da escada, à frente do balcão do bar, em linha
reta e sem obstáculos, no meio do largo corredor principal que se abre entre as mesas
e ao longo do qual estará montado o suntuoso buffet, que naquela hora estará quase
sem ninguém ao redor, pois a maioria dos comensais já teria se servido.
- De qualquer forma - continuou - após estar com o aparato pronto para explodir, não
há volta atrás. Se for interceptado no percurso, onde quer que esteja, não existe outra
saída senão provocar a explosão. Segundo os cálculos, mesmo ocorrendo no andar
inferior, ela causará danos catastróficos, ainda que não totalmente letais como os que
pretendemos produzir. Uma vez alcançado o ponto de gatilho, já podemos considerar
a operação um sucesso. O mais difícil e arriscado será chegar a este ponto.
A segunda observação dizia respeito à condição do Mujahid para subir a escada oito
ou dez vezes na primeira fase da operação. Todos ali sabiam que ele passara por um
processo de tortura em câmara frigorífica que quase liquidou com as articulações do
seu corpo. Além do mais, seu aparelho respiratório fora muito prejudicado e ele tinha
fôlego curto. Reconhecia que vinha melhorando e até se recuperando, mas não
saberia dizer, com certeza, se seria fisicamente capaz de executar aquela parte do
plano.
Desta vez foi Fadil quem lhe respondeu, em português. Seus médicos já haviam sido
consultados sobre isto, e a solução foi a de um tratamento prévio com cortisona
aplicada diretamente nas articulações. Tomará, também, pouco antes, excitantes
farmacêuticos que muito vão ajudá-lo em seu ânimo e em suas forças físicas. Apesar
de a cortisona e tais produtos lhe serem proibidos, seus usos não farão diferença, pois
os efeitos colaterais só começam a se manifestar entre 12 e 24 horas depois da
aplicação ou ingestão.
- Contudo - emendou Fadil - esta será a única parte do plano que não podemos
arriscar ensaiar e fazer testes completos. Qualquer prejuízo à sua saúde ou à sua
condição física inviabilizará a execução do plano. Só saberemos no “Dia D”, mas
confiamos em sua força espiritual e na sua capacidade de superar desafios, o que,
aliás, já nos demonstrou mais que o suficiente. Se não confiássemos no seu sucesso,
não estaríamos aqui.
A terceira era sobre as conseqüências do seu ato. Não a respeito de sua própria
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pessoa, isto não lhe importava e nem pedia nada, já conhecia a recompensa e era
imensamente grato pelo privilégio. Mas, quais seriam as respostas que esperavam
dos invasores depois de tamanha derrota, se o plano fosse bem sucedido? Isto, sim, o
preocupava muito, pois conhece bem o inimigo e sabe da sua ferocidade, da sua
força brutal e implacável.
Foi agora Shakir a dar a resposta, igualmente em português.
Esperavam, sim, uma resposta violenta e contundente; a sede de vingança e o ódio a
alimentariam. Porém, não seria a primeira vez que enfrentavam tal perigo. Bastava a
lembrança do que acontecera em Fallujah e em outras circunstâncias menos
conhecidas, inclusive na própria Bagdá.
- Quanto aos estragos que nos farão por vingança, nós não somos capazes de avaliar,
mas podemos imaginá-los terrivelmente. Ocorre que a ferocidade, a brutalidade, o
terror, o ódio e a vingança não são as forças que os fazem temíveis para nós – falou
com serenidade o sufi - Somos experientes em enfrentá-las, não só desse inimigo,
mas de outros, muitos outros, inclusive os que já vão longe nos tempos históricos. O
que os faria temíveis para nós é se alcançassem o conhecimento das nossas forças
mais poderosas e desvendassem o maior segredo da nossa resistência – a energia
divina do Islã! Nossa resistência só é vitoriosa por esse motivo. Lutamos uma guerra
desigual, mas nós conhecemos as forças deles, e eles desconhecem as nossas. É de
onde tiramos as diferenças. Consideramos esta nova estratégia do inimigo a mais
perfeita que apresentaram, eis porque temos de destruí-la antes que seja posta em
prática no campo de batalha. Eles cometeram um erro do qual não podemos deixar de
nos valer, e ambos não teremos a segunda chance. Da nossa parte, se perdermos a
oportunidade, outra não se apresentará que possa liquidá-los de uma só vez; saberão
que temos conhecimento de seus planos e não colocarão todos os ovos novamente
numa só cesta. Do lado deles, ao perder esses oficiais, não haverá como formarem
novos, e todo o enorme investimento que empenharam em tempo e em recursos
humanos, materiais e financeiros lhes terá sido em vão, sem possibilidades de reavêlos. Não nos importa quantos bombardeios terríveis assestem contra nossas cabeças,
nem quantas chacinas e crimes possam cometer a mais do que já cometeram. Eles
saberão que, perdida essa batalha, terão perdido a guerra. Tal vitória, portanto, é a
conquista mais importante para nós neste momento, e é o que motiva a operação “O
Esplendor Islã”.
Capítulo 17
O leitor já sabe que nossa narrativa não é a mesma do texto de Taquinho, nem é
extraída exclusivamente de seus escritos. Neles, o jovem autor concentra-se num
relato objetivo dos fatos e de forma a não comprometer a resistência islâmica, os que
o ajudaram e com quem colaborou.
No que definimos lá atrás como a terceira parte do seu texto, o sufi não existe como
tal; é mencionado só pelo codinome como um dos líderes da resistência ou como
“meu preceptor”. Assim também, o palacete de Shakir é o “esconderijo da
resistência” e Zahirah “uma guerrilheira”. Tudo é descrito e relatado sem detalhes
que possam levar a identificação de pessoas, de cenários e localizações precisas, a
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não ser os que não os comprometem e estão relacionados com os propósitos da
redação.
Tratou José Eustáquio Raghid Varella de redigir um memorial, inclusive para fins de
prova judicial, cuja saga pudesse ser cotejada com fatos históricos, notórios e
pessoais por onde transitaram suas vicissitudes e aventuras, além de poder ser
comprovada em farta documentação paralela, concordante com as informações que
ali declara e jura como verdadeiras. Nessa terceira e última parte do documento, por
razões óbvias, o autor é o único protagonista identificável. Num anexo ao texto
principal, dois coadjuvantes declaram que se identificariam como testemunhas, se a
tal fossem chamados por juízo imparcial.
Além disso, ele se propôs também a fazer uma defesa da causa e da cultura islâmicas,
aplicando a moral e as bases da religião em que fora iniciado na análise dos fatos, na
fundamentação das razões e na argumentação crítica. Não economizou citações do
Alcorão e de vários eminentes autores islâmicos e ocidentais para sustentar razões,
fundamentar opiniões e apoiar argumentos, seja em favor da causa que ali defendia,
seja para subsidiar moral e jurisprudência, seja para reivindicar justiça e paz.
Por tais motivos, dona Lourdes, a não ser por algumas sutilezas que lograra captar
nas entrelinhas, nos achados subliminares de raras passagens ou nas cartas anexadas
ao relato documental, não teve acesso à melhor parte da nossa história. Aquela em
que Taquinho, vivendo no palacete do sufi, cercado de cordialidade, respeito,
admiração e humanidade, passou pela sua segunda metamorfose. A primeira, em
Guantânamo, pôde ser relatada por ele nos detalhes, e estes nós optamos por não
penetrá-los. Mas, da segunda, aquela que mais confortaria o coração de uma mãe ao
se inteirar dos sofrimentos por que passara o seu filho, ela apenas tomara
conhecimento que algo de fato importante e positivo ocorrera, mas só na imaginação
ela poderia se aproximar um pouco do que exatamente ocorrera, e como.
Ela não ficou sabendo do grau de amizade dele com o sufi e com Fadil, da ternura e
da dança de Zahirah, do haxixe, das leituras das “Mil e uma noites” e de tantas outras
obras primas, dos aposentos onde se hospedara o filho, dos belos jardins que os
rodeavam, da nobreza mourisca daquela família e da sua residência, nem de muitos
outros pormenores de que pudemos desfrutar naquelas passagens, e ela não. Em raras
passagens, Taquinho pode descrever algo mais que um sumário dos fatos, com mais
detalhes sobre como exatamente lhe ocorreram, e o leitor se lembrará daquele em
que ele estava de terno, gravata e turbante depois de ordenado Mujahid, que tanto a
comoveu.
Eis porque, a ponto de finalizar a penosa leitura do documento, a pobre mãe se via
embaralhada em completa confusão mental. Ela se sabia intelectualmente incapaz de
alcançar toda aquela informação, composta com erudição, cultura e conhecimentos
muito acima daqueles a que porventura ela tivera acesso em toda a sua vida.
Orgulhava-se do filho ter alcançado tal destreza, nunca duvidou de que ele tivera
esse talento, mas, mesmo assim, ficou surpresa. Porém, sua formação católica, a
moral provinciana e os preconceitos com que construíra sua pobre informação sobre
as coisas e o mundo, faziam-na receosa para ousar um julgamento sobre o que lera e
sobre o que se passara com o filho.
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Nós vamos deixá-la, por enquanto, em sua amarga solidão, a noite entrando em altas
horas, sentada na mesa diante dos papéis do filho, pensativa e atônita ao mesmo
tempo, depois de quase 20 horas de dedicação ininterrupta à leitura, repetindo-a
muitas vezes nas passagens mais complexas, ou a ela inacessíveis, para tentar buscarlhes o entendimento pleno, a maioria com pouco ou nenhum êxito. A única luz acesa
na modesta casa, a atmosfera densa e silenciosa que lhe envolvia o espírito, a
excitação, a angústia e a insônia.
Voltemos aos fatos de Bagdá.
Capítulo 18
Uma outra preocupação foi colocada pelo Mujahid ainda naquela reunião: os
destinos de Khalid e sua mãe. Foi então informado de que ambos seriam transladados
para o sul do país, onde integrariam as forças de resistência na região. Antes mesmo
de Faraj atingir os objetivos da missão, eles estariam fora de Bagdá. Khalid seria
responsabilizado pelo atentado, mas seria dado como morto. Sua mãe com certeza
passaria a ser procurada. Mas só o amo e o filho sabiam como era o rosto dela, pois
ela não se deixava ver por estranhos sem o véu ou a burka, como era o hábito de seu
costume tribal. E o empresário não deverá sobreviver para ajudar a procurá-la.
Enfim, discutidos os detalhes e aprovado o plano, estabeleceu-se que a resistência
iria providenciar um local secreto para os ensaios e treinamentos e, quando o tivesse
pronto, Faraj seria transferido para lá, onde ficaria até a execução final da operação.
O prazo estabelecido para esses preparativos foi de 15 dias.
Nesse período, ao Mujahid competia cuidar da saúde e preparar-se espiritual, moral e
fisicamente para o evento que o tornaria herói nacional, mártir imortalizado pela
causa e pelo mundo islâmicos, além de predileto de Deus, que o receberia sem
pecados e com as graças eternas. Como cerimônia final, o sufi entoou comovido e
longamente o Azan (chamado à oração), como sempre com a voz afinada e
impecável. Sob a liderança dele, todos juntos e genuflexos oraram:
"Ó humanos, em verdade, Nós vos criamos de macho e fêmea e vos dividimos em
povos e tribos para reconhecerdes uns aos outros." (49ª Surata, versículo 13)
Terminada a reunião, o sufi levou Faraj até a biblioteca. Bem acomodados nos
almofadões, fumaram durante algum tempo, em silêncio, um narguilé que Taquinho,
pela primeira vez, preparou para o sufi. Este quebrou o silêncio elogiando a
habilidade com que ele se saíra naquele preparo e a qualidade da essência utilizada.
Faraj replicou que a essência ele devia a Zahirah e agradeceu o elogio. O sufi disselhe que a casa agora era do Mujahid e que, até o último dia em que lá permanecesse,
estava à disposição para o que quisesse ou desejasse. O discípulo retrucou que
abolira a palavra desejo de seu vocabulário e que nada mais queria além da
companhia do sufi e seus filhos nestes últimos dias como hóspede daquela nobre
casa, tal como as gozara desde que nela fora admitido. Seu único plano era o de
terminar os seus escritos, com a aprovação do sufi, e deixaria para datá-los e lacrálos em envelopes no último dia de sua estadia ali.
50
O sufi então se levantou e pediu a Faraj que o acompanhasse, ia lhe mostrar um
segredo. De uma gaveta de sua mesa de trabalho ele retirou um dispositivo de
controle remoto, no qual digitou uma senha. Uma das estantes de livros se moveu
lateralmente e, por detrás dela a parede sólida deslocou-se em ângulo, abrindo uma
passagem. O sufi fez um gesto com a mão convidando Taquinho a transpor a
passagem. Ao entrarem no cômodo secreto, o sufi acionou o mecanismo para que se
fechasse a passagem.
O jovem valadarense não acreditava no que estava diante de seus olhos. Pensava que
aquilo só existia na imaginação dos que liam as “Mil e uma noites”. Era o tesouro da
tradição familiar do sufi, que vem sendo conservado e ampliado desde tempos muito
antigos.
Uma das paredes exibia uma belíssima coleção de adagas, umas de ouro, outras de
prata, sempre com punhos e bainhas cravejadas de pedras preciosas e com a
gravação, em caracteres árabes, do selo da dinastia. Na parede em frente, exibia-se
uma outra coleção, esta de escudos, armaduras, brasões europeus e outros troféus de
guerra de semelhante riqueza de fatura, materiais e ornamentação. Outra parede
ostentava uma vitrine, quase até o teto, com jóias, vasos, lanternas, cetros, narguilés e
ricos objetos de épocas diversas, muitos dos quais o abismado visitante nem saberia
dizer o que eram ou para que serviriam. No piso, forrado de tapetes indescritíveis,
estavam dispostas quatro daquelas emblemáticas arcas cheias de moedas e peças de
ouro e de prata, misturadas a gemas magníficas. Na quarta parede, descia, desde o
teto, uma portentosa obra de tapeçaria muito antiga, toda tecida em fios de um azul
celestial luminoso e sobre o qual era bordado, com fios de ouro, o tema de uma
caravana no deserto. Ao seu pé, encostava-se um luxuoso gaveteiro feito em ébano,
com umas trinta gavetas de pequena altura e grande largura, onde eram conservadas
inúmeras coleções de diamantes de quilates diversos. O sufi abriu algumas gavetas
dentro das quais brilhavam dezenas deles sobre o feltro negro, muitos enormes e
fulgurantes como estrelas. De uma delas, o sufi colheu certa quantidade de pequenos
diamantes, aquilatou-os na minúscula balança de precisão que ficava sobre o tampo
do gaveteiro e os colocou num saquinho de couro que guardou no bolso do paletó.
- Estes vão para pagar uma remessa de armas e munições – explicou ao jovem.
O sufi voltou a acionar o controle remoto e fez abrir uma outra passagem, da mesma
forma que a anterior, deslocando a parede em ângulo com a coluna lateral do
cômodo.
- Agora é que vem o mais importante – falou ao jovem, já transpondo a passagem.
Ao penetrar o outro ambiente, bem maior que o primeiro, outra surpresa: uma vasta e
superlotada biblioteca com livros, volumens, manuscritos, incunábulos,
pergaminhos, papiros, gravuras, pinturas, aquarelas; todo um valiosíssimo acervo de
obras raras de incalculável valor, muitas das quais seculares, da Idade de Ouro do
Islã, nos primeiros séculos do nosso segundo milênio.
- Este é o nosso maior tesouro – falou o sufi: – Muitas dessas obras são propriedade
da Biblioteca de Bagdá, que foi barbaramente depredada e incendiada pelos
invasores, tal como, no passado, fizeram com a Biblioteca de Alexandria. E sempre
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em nome de Cristo. Usaram lança-chamas pensando que queimavam as obras primas
da nossa cultura, mas destruíram apenas as cópias que pusemos lá, no lugar das
originais.
Taquinho ia seguindo o sufi pelos estreitos corredores que se formavam entre as
estantes abarrotadas até que chegaram a uma tribuna de pesada madeira sobre a qual
se abria um livro espesso, de grande formato, todo confeccionado em delicado
pergaminho.
- Este livro contém as crônicas escritas por meus ancestrais, os sufis que me
antecederam nesta casa, desde que foi construída no século XII do calendário
gregoriano – explicou Shakir – A técnica que usamos para escrever nestas páginas é
a da escrita com pincel de um pêlo só e tinta de ouro verdadeiro. Nossa linhagem é
de sufis calígrafos, e este é o terceiro volume do nosso livro. Estou escrevendo a
crônica do meu tempo, e Fadil já foi aceito como apto para prossegui-la. Mas, antes,
eu espero escrever mais algumas páginas; a próxima pretendo dedicá-la a você.
O jovem discípulo juntou as palmas das mãos e baixou a cabeça em sinal de gratidão.
- Esta casa – continuou o sufi – já foi ocupada por invasores em duas ocasiões no
passado, mas, em ambas, eles não penetraram o segredo destes tesouros. Eles são de
fundamental importância espiritual e material à nossa sobrevivência. Pela primeira
vez, temos motivos para crer que os invasores possam descobri-los e isto significaria
um dano irreparável para a causa islâmica. No projeto do inimigo estará a ocupação
desta casa e, com as novas tecnologias, é possível que logrem desvendar a sua real
configuração arquitetônica, ou seja, o que está por detrás das paredes da biblioteca e
também nos porões subterrâneos, onde são mantidos itens estratégicos do arsenal da
resistência. Trouxe-o aqui para que conhecesse mais a fundo e com objetividade o
que está em jogo na sua missão.
Em seguida, o sufi fez o discípulo entrar numa espécie de oratório, construído como
se fosse uma grande gaiola de madeira e localizado num canto do cômodo. Na
verdade, era um elevador camuflado, e, com o acionar do controle remoto, começou
a descer por entre paredes de concreto. A descida foi inesperadamente longa nos
cálculos do jovem e, ao chegar no ponto inferior, uma porta se abriu e eles acessaram
um mezanino de concreto armado. Dele, se descortinava a visão panorâmica de um
complexo subterrâneo, muito bem iluminado, com inúmeros compartimentos abertos
em arcos, onde se abrigavam fartos e diversificados arsenais.
Esperavam-os, ao lado da porta do elevador, dois homens armados com os quais o
sufi trocou breves palavras, entregou a um deles o saquinho com os diamantes e
dispensou-os. Muitos homens trabalhavam no local, era intensa a atividade naquele
momento; um formigueiro humano. Taquinho viu chegar, sobre trilhos, uma
composição ferroviária de vagonetes de transporte que empilhadeiras motorizadas
iam enchendo com caixotes de munições, fuzis, obuses e mísseis. O sufi explicou-lhe
que um túnel ligava aquele subterrâneo até outro sob um estádio de futebol que está
sendo construído a cerca de dois quilômetros dali, por onde se dava vazão às cargas
para as frentes de resistência. Eram distribuídas em veículos disfarçados de utilitários
civis e por outros túneis que de lá se interligavam à rede de subterrâneos
estrategicamente construídos sob toda a cidade e arredores, como um metrô secreto.
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Pelas mesmas vias, em sentido inverso, abastecia-se o arsenal. Estavam ambos,
segundo informou o sufi, no principal arsenal e centro de logística da resistência para
a região militar da capital do país.
Capítulo 19
Os 15 dias foram aproveitados por Taquinho sem ansiedade nem pressa. Não se
sentia indo para o final de sua existência, mas ao princípio de outra. Era como se se
preparasse para uma viagem sem retorno e, tal como vimos no início desta história,
ele o fazia sempre de forma inteligente e bem planejada. Praticamente, ele roteirizou
cada hora de cada dia para cumprir rigorosa disciplina religiosa, de saúde física e
mental e de desfrute do pequeno paraíso existencial em que se achava, em meio ao
inferno da guerra de invasão contra o país que o hospedava.
Certa feita, num momento de repouso, deitado em sua cama, houve um bombardeio
aéreo sobre a cidade. Sempre que isto acontecia, ele fechava os olhos enquanto ouvia
os zunidos das aeronaves, seguidos de explosões que faziam tremer o solo, ainda que
a região atingida se situasse bem longe daquela em que estava, como então acontecia.
Todos na cidade sabiam que só os bairros pobres eram alvos das bombas. Entre uma
explosão e outra, cronometricamente espaçadas, só se ouviam os ruídos dos aviões
num silêncio amedrontador.
Nesses intervalos, Taquinho sempre meditava mais ou menos a mesma coisa: "da
Medicina e a Matemática ao jogo de xadrez, dos hábitos de higiene pessoal à
iluminação noturna de logradouros públicos, da ética à etiqueta, das ousadias
arquitetônicas ao livro encadernado, entre tantas outras conquistas da civilização de
que agora desfrutamos, nós, ocidentais, as devemos em boa parte ao que aqui se
cultivou com sabedoria ao longo de milênios. E é assim que pagamos tal dívida
histórica: ao invés do reconhecimento agradecido, bombas, bombas e mais bombas!"
Depois da longa seqüência, que sempre parecia interminável aos que estavam em
terra, as explosões pararam. Após algum tempo, uma voz melodiosa proveniente de
algum minarete entoava seguidamente o Azan, em alto e bom som, convidando todos
a orar para Deus.
Taquinho não se cansava de admirar aquele povo e o empenho da resistência, que
combatia o invasor com todos os meios que possuía. Aquela voz deveria parecer aos
invasores, depois de castigarem tão brutalmente a indefesa cidade, como de uma
irreverência humilhante, quase um deboche ou um escárnio.
Nesta última fase de sua hospedagem naquela casa não lhe faltou o apoio terno do
anjo Zahirah. Shakir e Fadil também se empenharam nos agrados ao Mujahid.
Estavam sempre juntos na última oração ou em torno de um narguilé. Durante o dia,
Taquinho se empenhava no andamento de seu projeto, escrevendo, lendo muito,
especialmente o Velho Testamento da Bíblia, os textos dos profetas, muitos dos
quais elegeu como prediletos, incluindo-os em apoio aos relatos que fazia. Nos fins
de tarde, lia em voz alta os novos escritos para Shakir, Fadil e Zahirah, e, às vezes,
com a presença do clérigo xiita ou de seus assessores jurídicos.
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Decidiu pela máxima concisão na parte final, onde descrevia a operação “O
Esplendor do Islã”, reduzida a uma síntese de seis parágrafos, entremeados de
citações do Alcorão e da Bíblia.
“Ele foi ferido pelas nossas transgressões e torturado por nossas iniqüidades; o
castigo que nos traz a paz caiu sobre Ele, e, em seu martírio, somos curados”. (Isaías,
53:5)
Preocupou-se em não comprometer a resistência e os autores intelectuais do plano. O
Mujahid assumia a integral responsabilidade de sua execução, “com o apoio da
resistência” e não descrevia exatamente como o executara, mas o justificava dos
pontos de vista estratégico, bélico e moral. Afirmava que não o fazia por ódio ao
inimigo e nem aos que o maltrataram. Aprendera a perdoá-los; tinha plena fé,
inclusive, a de estar salvando “as almas pecaminosas dos que comigo irão até Deus,
o Misericordioso”. Fazia-o em defesa do Islã, do povo agredido, da sua cultura e
tradições, e da fé islâmica.
Encerrou o texto com a abertura do Alcorão:
Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.
Louvado seja Deus, Senhor do Universo,
Clemente, o Misericordioso,
Soberano do Dia do Juízo.
Só a Ti adoramos e só de Ti imploramos ajuda!
Guia-nos à senda reta,
À senda dos que agraciaste, não à dos abominados, nem à dos extraviados.
Ao acordar no dia 24 de dezembro, mesmo sabendo que aquele seria o seu último dia
naquela casa, não pensou em nada de especial para desfrutá-lo. Queria-o como um
dia comum, igual em harmonia aos demais; a rotina e a simplicidade do dia-a-dia
naquele palacete culto e elegante, mas sem afetações, agradavam-no. Pensou em sua
terra natal, em seus pais, e que no Brasil estariam comemorando o Natal, festa que
nunca o comovera a não ser quando criança, na expectativa de ganhar presentes
quase sempre supérfluos. Aprendera a abominar o consumismo, a praga ocidental
que roubava a melhor parte da infância, daquela inocência saudável e alegre, desde
ali a excitando para a ambição e desejos corrosivos à vida e à sensibilidade e
preparando-a para uma juventude alienada e servil de que ele próprio fora vítima
desafortunada.
Foi então que escreveu a sua reflexão final, que acrescentou ao relato como um
anexo.
Depois da primeira oração, Zahirah veio buscá-lo e levou-o à biblioteca onde já
estavam o sufi, Fadil e o clérigo xiita, amigo da casa. Sentaram-se na mesa maior e
redonda e o sufi presenteou-lhe o depoimento que fizera para que o discípulo
incluísse no envelope. Taquinho o leu com muita emoção; algumas lágrimas
chegaram a transbordar de seus olhos. Para ele não podia ser maior aquela honra,
maior e mais importante que qualquer diploma que porventura tivesse um dia obtido
numa universidade, se tivesse logrado o projeto de sua equivocada juventude. Tinha
prontas as cartas para a mãe e o pai, as quais leu para os demais, além da sua nova
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reflexão; datou-as e assinou-as, para, em seguida, datar e assinar também o
memorial. Fadil e o clérigo assinaram o anexo de testemunho que foi encadernado,
junto aos textos de Shakir e de Taquinho, ao fim do memorial. Depois ele colocou
cada uma das peças escritas nos respectivos envelopes, conforme o plano que
desenvolvera, subscritando-os e lacrando-os com goma arábica. Em seguida,
entregou solenemente o espesso envelope ao sufi, que o recebeu com uma mesura
silenciosa de agradecimento e o guardou no cofre.
Almoçaram juntos, em companhia de dois guerrilheiros da resistência que vieram
buscar o Mujahid. Foi um almoço frugal e sem maiores cerimônias. Fizeram a oração
do meio-dia, dirigida pelo clérigo, e depois Taquinho despediu-se dele com as
reverências de costume, e de Zahirah, com beijos emocionados. Envergando seu belo
terno, uma gravata azul marinho e o turbante com o broche de esmeralda, o Mujahid
tinha o porte altivo e mostrava-se extremamente agradecido a seus anfitriões.
Fadil foi junto com ele e os guerrilheiros, acompanhados pelo sufi, que fez abrir
outras passagens secretas para que descessem por um elevador camuflado na
arquitetura complexa do palacete até os subterrâneos que Taquinho conhecera. Frente
ao elevador, Shakir e ele fizeram a última saudação, o salam alakum, e depois se
abraçaram longamente, beijando-se em ambas as faces.
Ao chegarem ao subterrâneo, entraram num vagonete de passageiros que os levou
pelos trilhos daquele metrô secreto até o subsolo do esconderijo onde seriam feitos os
preparativos e o treinamento do Mujahid. Subiram por escadarias em espiral, os três
homens carregando Taquinho numa improvisada liteira para que ele não se
desgastasse na longa ascensão, até chegarem no interior de um prédio abandonado,
um velho cinema-teatro fechado há mais de duas décadas e que servia de posto
avançado da resistência em pleno centro de Bagdá, quase vizinho à Zona Verde. Lá,
já estavam prontos os novos aposentos do Mujahid, incluindo o equipo médico, e
uma simulação do cenário real da operação.
Ensaiariam ali, quantas vezes fossem necessárias, cada passo, cada gesto, cada
movimento que o Mujahid faria na execução da fase final da operação. Fizeram
réplicas de tudo, nos mínimos detalhes, do suspensório, do escapulário, das roupas de
Khalid, das garrafas de vinho, além do cenário, em escala natural, que simulava todo
o percurso, incluindo a escada e partes do balcão e do salão. No seu notebook Fadil
levava vídeos do sósia do Mujahid, com cenas tomadas dele próprio para que
servissem de referências na imitação de seus gestos e movimentos.
Durante dez dias trabalharam com intensidade e disciplina; o Mujahid sob
permanente supervisão dos médicos. No penúltimo dia, veio o barbeiro junto com
Khalid e a mãe, esta de véu cobrindo metade do rosto. O objetivo era o de orientar o
Mujahid para que ficasse o mais idêntico possível ao sósia, coisa que não foi difícil
para o barbeiro, e chegou a impressionar a ambos, olhando-se um ao outro como se
se vissem num espelho. Por sua parte, Khalid e a mãe supervisionaram dois ensaios
completos, ele fazendo correções e comentários por gestos que a mãe traduzia.
Treinaram até as falas das sentinelas, do patrão, de empregados do restaurante e de
pessoas que o conheciam na Zona Verde (as falas eram ditas por Fadil e os
guerrilheiros), e como devia respondê-las com gestos, mesuras ou cumprimentos.
Fotos de pessoas, ainda não repertoriadas, foram incorporadas ao notebook de Fadil
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para que Taquinho as memorizasse.
O dia seguinte seria o “Dia D”.
Capítulo 20
A contagem regressiva começou na noite anterior, assim que o Mujahid foi posto a
dormir pelos médicos. A partir dali, cada minuto estava devidamente roteirizado.
Desde Guantânamo, Taquinho não conseguia dormir bem. Por razões diversas, do
seu estado de saúde aos traumas psíquicos, ele não lograva mais de três ou quatro
horas de sono durante a noite. Mas agora ele iria precisar de todas as suas forças e
deveria dormir pelo menos oito horas, logo depois de receber as últimas injeções de
cortisona.
Foi despertado às seis da manhã, como combinado, para a primeira oração do dia.
Depois, fez o desjejum comendo de seu regime alimentar o que melhor o satisfazia.
Comeu a sua predileta banana batida com leite e cereais e uma gelatina de amoras,
que Zahirah preparava com doçura, só para ele. Tomou sucos naturais e pílulas
vitamínicas.
Passaram então a aguardar os informes da resistência que deveriam confirmar os
eventos externos que precisavam se cumprir para que a operação fosse acionada. O
último chegou às 10h30, confirmatório, como os anteriores, de que tudo estava como
previsto e o plano poderia prosseguir. O Mujahid despediu-se solenemente de seus
companheiros, deixando por último Fadil, a quem deu um abraço forte e demorado.
Vestia uma túnica simples e um gorro de malha grosseira.
Reverenciado por todos os presentes, que se curvaram à sua passagem, ele seguiu um
dos guerrilheiros e deixou o esconderijo por uma porta camuflada que dava para o
depósito de um armazém, dentro do qual já os esperava outro homem. Este guiou a
dupla por labirínticos corredores internos de uma quadra comercial, até chegarem
nos fundos da mercearia onde o Mujahid substituiria seu sósia. Deixado só no
lavatório da mercearia, onde tomou as pílulas que lhe foram prescritas, aguardou a
chegada do sósia. Minutos se passaram, e ele surgiu. Em silêncio, cumprimentaramse e trocaram as roupas. Diante do minúsculo espelho que havia ali, Khalid deu os
toques finais para ajeitar o “figurino” do sósia, composto de roupas ocidentais
vulgares, até ficar satisfeito e sinalizar a sua aprovação. Em seguida, se foi com os
dois homens, e Taquinho então saiu do lavatório, sentindo-se como se, finalmente,
estivesse entrando em cena.
A operação estava iniciada!
O olhar da mãe de Khalid, ao vê-lo, foi animador. O dono da mercearia não sabia da
operação e fora escolhido para o primeiro teste da substituição. Taquinho deveria se
fazer bem visível diante dele, e foi o que fez. O homem despediu-se da mãe de
Khalid e brincou com Taquinho como se o conhecesse. Este devolveu a brincadeira
com gestos, despedindo-se dele. Pelos sorrisos do homem, percebeu que se saíra
bem, e isto lhe deu ânimo ainda maior para prosseguir.
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Saiu de mãos dadas com a mulher pelas ruas centrais de Bagdá, naquela hora repletas
de gente por todo lado. Era um dia nublado e frio; mesmo assim o Mujahid teve de se
esforçar para acostumar-se com a luz solar, que não via há dez dias. Caminharam por
cerca de dez minutos até o portão da Zona Verde. Ela se despediu dele com um beijo
na testa, na frente das sentinelas, como fazia com o filho, levantando discretamente o
véu com uma das mãos. Naquele dia o patrão não pedira compras para o restaurante,
mas isto também fora previsto, e o Mujahid passou sem problemas pela revista e as
sentinelas. Penetrou, então, o cenário da operação reconhecendo-o perfeitamente.
Muitas pessoas transitavam a pé ou de carro pelo caminho asfaltado em declive que
seguiu até a entrada de serviço do restaurante, não muito longe do portão. Alguns
acenaram para ele, que retribuiu, mas a maioria nem se deu conta de sua passagem.
Sentia-se bem disposto; nas suas condições, poderia mesmo dizer que se sentia “em
plena forma”.
Ao entrar na adega, surpreendeu-o a grande quantidade de garrafas que deveria subir
ao andar de cima. Pelas contas que fez ali mesmo, diante das garrafas, seriam
necessárias ao menos doze escaladas. Mas ele estava animado, quase frenético; o
“tratamento” que recebera parecia estar fazendo o efeito desejado, e o seu ânimo
entrara na fase mais dinâmica. Por isso não titubeou: vestiu o suspensório e começou
o serviço.
Porém, na quarta ou quinta escalada começou a sentir o esforço, e reduziu a
velocidade do trabalho. Na oitava subida, achou que não ia dar conta; o esforço era
enorme, talvez ele não aguentasse. Mas o patrão surgiu lá de cima fazendo cara feia e
pedindo pressa, e isto funcionou para ele como um estimulante a mais. Passou a fazer
as subidas tentando não pensar nas dores nem no cansaço, pedindo a Deus para que
não desmaiasse. Finalmente, num esforço tremendo, que não podia deixar visível,
logrou a subida em que levava as últimas garrafas ao balcão. Por sorte, os comensais
já adentravam o salão e os funcionários estavam muito atribulados para ter tempo de
notá-lo, só o barman chegou a fazer uma chacota risonha em inglês, mas ele se fez de
desentendido, valendo-se de um gesto que aprendera de Khalid.
Quando se assentou no banquinho, ao lado do tanque, viu no relógio do celular que
faltavam 22 minutos para o ato final da operação, oito a menos que o previsto nos
ensaios e simulações. Mesmo assim, optou por usar cinco desses preciosos minutos
para repor as forças, num breve descanso que fez de olhos fechados, como se
estivesse ouvindo o MP3. Na verdade, rezava.
Não se arrependeu dessa breve pausa, também prevista nos ensaios, se fosse
necessária. Ao dar início às tarefas programadas, se sentia com renovada disposição.
Abriu a tampa do bueiro com certo esforço, parecia-lhe mais pesada que a dos
ensaios; retirou uma por uma as garrafas de “O Esplendor do Império”, cuja forma
exótica e os belos rótulos viu pela primeira vez, admirado – aquele fora dos poucos
detalhes que a resistência não conseguira reproduzir com exatidão nos ensaios. Teve
relativa facilidade para prepará-las com o explosivo, havia ensaiado bem, a diferença
agora é que suas mãos tremiam um pouco, não sabia se pelo cansaço ou pela emoção.
Mas tudo deu certo. Vestiu o suspensório e o escapulário, testou o funcionamento do
dispositivo, ligando cada uma das quatro pontas ao MP3 e fazendo-o funcionar;
dispôs as garrafas cuidadosamente nas respectivas sacolas e dentro delas enfiou
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lentamente as pontas dos fios de detonação até senti-las tocar o fundo.
Tudo pronto! Olhou para o relógio do celular: faltavam quatro minutos para uma
hora. Respirou fundo, pediu ajuda a Deus, e colocou sobre a palma da sua mão
direita o escapulário aberto. Ainda orando ao Misericordioso, passou à etapa final da
operação, ao iniciar, calmamente, a caminhada em direção a seu alvo.
Capítulo 21
Dona Lourdes acabara a dolorosa leitura do relato do filho lá pelas duas da
madrugada. Desde que passara a parte de Guantânamo, ela não tivera mais lágrimas
para enxugar, nem mesmo no final do relato, onde se anunciava a tragédia que, ela
sabia, ocorrera. Uma profunda nostalgia dos tempos de criança, época em que se
falava muito sobre a região de onde vieram seus pais e avós, invadia o seu espírito a
cada linha escrita pelo filho. Naquela época, os demônios que ameaçavam o ocidente
eram os comunistas, não os muçulmanos. E agora, muçulmanos são todos os que têm
origem médio-orientais. Não importa que sua família tenha sido, tradicionalmente,
cristã e católica; é bastante ter um Raghid no nome para ser considerada muçulmana,
isto é, para a imprensa atual, suspeita de ser “terrorista”.
Sentia-se, agora, ao final da leitura, muito cansada e ao mesmo tempo atônita. Mas
estava insone e queria meditar mais sobre o que lera e relera tantas vezes, sem
entender por que tudo aquilo estava acontecendo com ela.
Apesar de se saber da mesma origem das vítimas que causava, a guerra no Iraque só
a tocara superficialmente, como a todo o seu pequeno mundo provinciano. Para ela,
nunca passara de “mais uma notícia” nos jornais e tevês. Jamais imaginara que
poderia um dia estar tão dentro dela como agora. E não fazia a menor idéia de como
proceder.
Resolveu ligar a televisão e, depois de mudar diversos canais, deu com um noticiário
“extra” mencionando sucintamente o atentado. Nele se difundia, como notícia de
“última hora”, o comunicado da Al Qaeda responsabilizando-se pelo ocorrido. Esta
não era a primeira vez que ela experimentava, na própria pele, a irritante sensação
provocada por falácias publicadas na imprensa. Na ocasião da morte de seu marido,
ficara estarrecida com a capacidade dessa mesma imprensa em mentir
descaradamente e distorcer os fatos mais flagrantes. Em seu relato, o filho informava,
de fonte segura, que a tal “organização terrorista”, a Al Qaeda, não passava de uma
invenção difundida pela imprensa ocidental a serviço dos interesses norteamericanos. Além do mais, a notícia era dada como se o local atingindo estivesse
repleto de gente inocente e indefesa.
Injuriada, ela desligou o aparelho e resolveu apagar as luzes e fechar as janelas para
tentar se relaxar na poltrona e meditar. Estava tensa e não queria ser surpreendida
outra vez por seu Jaime, o padeiro. Calculava que metade de Valadares já estaria
sabendo daquela primeira vez, e tinha certeza de que a outra metade se inteiraria da
“estranheza do comportamento de Dona Lourdes” se acontecesse novamente. Não se
espantaria se já estivessem especulando à boca miúda sobre algum “caso” secreto,
algum “amante” misterioso, ou qualquer outra bobagem do gênero.
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Passou a concentrar-se no “que fazer”.
- E agora, Lourdes? – perguntava-se a si mesma – Você não tem mais ninguém, nem
mesmo a esperança de que o filho um dia retorne ao lar.
Pensou no padre Antonio. Taquinho sugerira o nome dele, mas tal sugestão ele dera
ao falecido pai e não a ela. Se Eustáquio estivesse ali, com certeza seria um bom
começo para que fizessem alguma coisa. Mas, sozinha, ela se considerava incapaz de
dar um passo, mesmo nesta sensata direção proposta pelo filho. Não se via em
condições de enfrentar o que viria depois. Previa a enorme revolta que tomaria padre
Antonio. Ele iria mover mundos e fundos e botar a boca no mundo, pedindo justiça.
Era um homem digno e admirável, e muito inteligente. Ela o conhecia desde que veio
para Valadares, nos anos 60, fugindo da repressão da ditadura militar. Era um padre
que gostava de envolver-se na política, nas questões dos direitos humanos, um crítico
severo das desigualdades sociais, e um militante ativo das teses da teologia da
libertação.
Mas eram justamente tais atributos, que alimentavam nela uma grande admiração por
padre Antonio, que agora a faziam vacilar. Não por ele, mas por si mesma. Padre
Antonio seria capaz de conseguir repercussão para o caso, disso ela não duvidava.
Porém, tal repercussão era o que ela mais temia. Como a enfrentaria? Com certeza,
ela passaria por uma situação semelhante a que passou com a morte do marido, só
que em escala mundial.
Por um lado, solidário e confortador, mas, pouco influente na realidade imediata, ela
teria a compreensão das pessoas sinceras que saberiam avaliar os fatos com
inteligência própria, critério e senso de justiça.
Por outro lado, mais poderoso e cruel, ela se veria afrontada por injustiças e
humilhações as mais infames. Veria o filho nas páginas dos jornais acusado de
“terrorista” e degradado à condição do pior dos mortais. Não vacilariam em atirar
lama nas origens orientais dele, dela mesma, seus pais e seus avós. Nunca dariam
ouvidos a argumentos de defesa, de razão e de justiça, distorceriam os fatos da forma
mais abjeta e irresponsável, perseguiriam os que ousassem ajudá-la.
Desta vez, pensava, nem Dr. Benedito se arriscaria a apoiá-la; e ela teria de
compreendê-lo. Era possível que as amigas viúvas fossem afetadas; a própria causa
delas, em andamento de vitória, acabaria se revertendo em derrota. Perderia todas as
freguesas. Apavorava-a o futuro que via diante de si. Não que lhe importassem as
desditas que lhe viessem, ela as enfrentaria todas pelo filho – mesmo se sabendo
derrotada desde o começo –, se tivesse alguém seu e junto de si para lhe dar as mãos
e os ombros e consolá-la.
Fora isso, ela mesma se sentia incapaz de compreender o que ocorrera, e nem de
avaliar a dimensão da complexa realidade em que o filho se metera. Não se via culta
e informada o suficiente. Leu muito mais com o coração de mãe do que como leitora
consciente. A maior parte do que lera fora assim; passagens inteiras leu sem captar
sequer o sentido e a razão que sabia estarem ali e ela não lograva penetrar. Julgava-se
por demais ingênua para defender o filho diante do poderio avassalador de um
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inimigo que se voltaria ferozmente contra ela, contra a memória dele e de tudo o que
a ele fosse relacionado.
Absorta, no silêncio da madrugada, ela ouviu o portão sendo aberto e os passos do
padeiro até à sua varanda. Logo depois, as primeiras luzes da aurora começaram a
revelar o interior da sala. Viu os papéis espalhados sobre a mesa e decidiu arrumá-los
do mesmo jeito que lhe chegaram, o que fez meticulosamente e com cuidado para
não danificar o precioso documento.
Tomou café-com-leite bem quente e comeu um pão fresco com manteiga. Esperou o
relógio marcar oito horas para ligar e cancelar o único compromisso do dia, com uma
de suas freguesas. Estava exausta, confusa e, mesmo contra a vontade, não teve outra
alternativa senão vestir uma camisola e ir deitar-se para tentar dormir um pouco.
Dormiu abraçada ao envelope.
Capítulo 22
O telefone e a campainha tocaram simultaneamente e acordaram dona Lourdes,
assustada, no meio de um sonho, quase um pesadelo. Não atendeu a nenhum dos
dois, apesar da insistência do telefone, e ficou na cama ainda confusa e sem saber
distinguir entre a realidade e o sonho.
Nele, seu pai, o “avô Pedro”, insistia em ver o envelope que o neto enviara da
“minha terra” e ela se recusava a entregá-lo. Havia momentos em que o avô surgia
jovem, a cara do neto, de terno, gravata e turbante, como na foto do casamento que
ela guardava na caixa de recordações. Em outros momentos, o próprio Taquinho
entrava no sonho pedindo-a que desse o envelope ao avô, e nessas aparições ele era a
cara do avô. Ela ficava paralisada nesses momentos, sem conseguir mexer um
músculo, em pânico, não sabia o que fazer. Foi num deles que as campainhas do
telefone e da porta entraram nos diálogos aflitos do sonho e ela acordou assustada.
Custou a se dar conta da realidade e, depois, a reunir forças para se levantar. Ao fazêlo, pôs a mão na testa: quase se esquecera! O dia seguinte seria seis de janeiro, Dia
de Reis, o dia em que falecera seu pai, há nove anos. Desde que o enterrara, todos os
anos ela ia nesse dia ao cemitério da Igreja de Lourdes e plantava uma muda de
azaléia ao lado do túmulo onde descansavam os restos mortais de seus pais.
Prometera a si mesma fazê-lo durante dez anos, tempo em que assumira como o de
guarda de luto pela perda do pai. Ele adorava azaléias, em especial as cor-de-rosa,
porque davam flores no mês de setembro, quando ele fazia aniversário.
Quando o pai de dona Lourdes adquiriu aquela casa, pediu à esposa, Laila, cujas
mãos ele considerava iluminadas para a jardinagem, que plantasse um canteiro de
azaléias. E ela o plantou bem no centro de um jardim de rosas, também dedicado ao
marido, à frente da casa. Depois da morte da esposa, seu Pedro passou a cuidar
pessoalmente do jardim com um esmero e um carinho semelhantes aos que a ela
dedicara. Quando o jardim está florido, é comum ver transeuntes parados ali
admirando as flores e comentando a beleza delas. Desde criança, Lourdes ajudava o
pai nesses cuidados e, depois da morte dele, manteve-os com o costumeiro capricho.
O jazigo da família consistia numa única e retangular lápide de mármore negro posta
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com ligeira inclinação em declive da cabeça para o pé do túmulo, sobre um rodapé
do mesmo mármore, pouco acima do nível do solo. Situava-se na ruela central da
pequena área de terra batida e algum gramado esparso, de uns 800 metros quadrados,
do modesto cemitério reservado aos Filhos de Maria, nos fundos da Igreja de
Lourdes.
Sobre a lápide, logo abaixo da cruz de bronze que se constitui no único ornamento da
lápide negra, já haviam sido gravados, em jato-de-areia, e com belos e bem
desenhados tipos caligráficos, os seguintes dizeres:
Laila Al-Mahmoud Raghid
*Beirute, 1924 – †G. Valadares, 1953
Pierre Raghid (Pedro Alfaiate)
*Paris, 1918 - †G. Valadares, 1995
Eustáquio Marcondes Varela (in memorian)
*Almenara, 1948 - †Sobrado, 2003
Oito arbustos de azaléias, quatro de cada lado do jazigo, rigorosamente aparados a
1,20m de altura, constituíam, até aquele momento, o jardim post mortem do casal.
Foram plantados pela dedicada filha, um a cada ano depois do falecimento do pai,
sempre no seis de janeiro. O plano era o de duas fileiras de cinco arbustos, quando
terminasse a guarda de luto. Todo 23 de setembro, dia do nascimento do pai, ela
levava uma dúzia de rosas do seu jardim, da mesma cor das floridas azaléias, e as
organizava com gosto sobre a lápide. Fazia o mesmo aos nove de maio, aniversário
da mãe, mas isto, desde criança, junto com o pai. Também no Dia dos Mortos, dois
de novembro, repetindo o costume paterno, ela levava nova dúzia de rosas carmim.
Nessas ocasiões, dava uma gratificação a seu Cirineu, zelador da igreja, para que
mantivesse as azaléias bem aparadas e irrigadas e a lápide limpa e reluzente.
Dona Lourdes fez um café bem forte a fim de ter forças para cuidar de seus mortos.
Tinha de preparar uma muda de azaléia para o dia seguinte e pretendia ir bem cedo
ao cemitério levando numa sacola de feira os instrumentos de jardinagem e a muda
preparada com um pouco de terra e bem umedecida, num saco plástico.
Foi tomando o café que decidiu, enfim, o que fazer sobre Taquinho. Decidiu por
entregar o caso à justiça divina; não fazia fé na dos homens e não se via capaz de
enfrentá-la sozinha. Com sua tesoura precisa, ela recortou os três envelopes no
mesmo formato dos papéis e fez o mesmo com a cartolina que encapava o volume do
terceiro envelope, retirando também a amarração de barbante que o encadernava. Fez
então um só volume de papéis empilhados, respeitando a ordem original com que lhe
fora enviado, isto é, o lado subscrito do primeiro envelope como capa do volume,
seguido da carta para ela; o mesmo lado do segundo envelope, seguido da carta ao
pai; o terceiro envelope antes da capa de cartolina e do texto do relato e seus anexos;
para, finalmente, fechar a pilha com o outro lado do primeiro envelope onde fora
subscrito o endereço dela. Feito isso, enrolou cuidadosamente a pilha de papéis no
menor diâmetro possível e amarrou o rolo com duas fitas de tecido verde (escolheuas pensando na cor predileta do filho e no significado daquela cor, identificada com a
“esperança”), dando-lhes um laço bem apertado.
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Da caixa de recordações retirou tudo o que havia dentro para ver se o rolo poderia
caber em seu interior. De fato, coube apertado, disposto em diagonal, e necessitandose de uma pequena pressão no fechamento da tampa para travar o delicado fecho da
caixa.
Era um estojo de madeira, manufaturado em requintado artesanato médio-oriental
para guardar um precioso colar que pertencera à sua bisavó. Segundo a tradição
familiar, ela fora odalisca e a esposa predileta de um sultão da Turquia, o qual a
presenteara com a valiosa jóia. A avó de dona Lourdes se desfizera da jóia em
Beirute, antes de emigrar com a família para o Brasil, mas conservara o estojo, que,
depois de pertencer a Laila, restou com Lourdes.
Não era uma caixa qualquer. Era obra de sofisticada marchetaria oriental, feita em
marfim e madeiras nobres de vários tons e cores, compondo primorosas vinhetas e
xadrezes em toda a tampa e nas laterais. No centro da tampa, vinham, incrustadas,
duas gemas da mesma pedra vermelha cortadas na forma do crescente e da estrela,
compondo assim o conhecido símbolo usado na bandeira da Turquia e de outros
países islâmicos. Internamente, fora-lhe retirado o amparo do colar e recebera
forração levemente almofadada de seda pérola para a sua nova utilidade como caixa
de recordações. O fecho e as dobradiças eram externos, grandes e bem desenhados,
confeccionados em ouro puro. No fecho, havia uma inscrição em árabe que, dizia-se,
seriam as iniciais do nome do sultão, perdido na noite dos tempos já na época em que
dona Laila casou-se com seu Pedro. Travava-se automaticamente num mecanismo de
molas internas que, ao fechar-se a caixa, prendiam a lâmina fixada na tampa quando
esta se introduzia toda no receptáculo da parte inferior. Para abri-la, destravava-se o
mecanismo pressionando-se para dentro duas teclas laterais móveis, simultaneamente
com o polegar e o indicador. Não dispunha de dispositivos de segredo, chave ou
cadeado.
Terminado esse trabalho ela fez uma pausa para se alimentar. Não comeu todo o
frugal prato de banana amassada com aveia que preparou. Ao comer, acabou
perdendo a concentração e mergulhou numa crise de choro convulsivo que durou
várias horas. Só logrou interrompê-la quando voltou a lembrar-se do preparo da
muda, e isto ia lá pelo fim da tarde. Durante a crise, o telefone tocara duas vezes,
insistente, mas ignorado. No jardim, enquanto de joelhos retirava a muda de azaléia,
foi interpelada por um vizinho lhe desejando “Feliz Ano Novo, dona Lourdes”.
Duplicou a dose costumeira do tranqüilizante a que se viciara para dormir, desde o
desaparecimento de Taquinho. Praticamente desmaiou sobre o seu leito, com o rosto
banhado de lágrimas, depois de ajustar o despertador para acordá-la às cinco da
manhã.
Às seis do dia seguinte ela já estava ajoelhada, no cemitério da Igreja de Lourdes, ao
pé do jazigo, cavando um buraco bem largo e fundo na terra. Era verão, fazia muito
calor, e ela suava na execução da tarefa. E tinha pressa. Desejava terminar tudo antes
da chegada de seu Cirineu, que pegava o trabalho às sete; não queria se encontrar
com ninguém e nem que alguém visse o que estava fazendo. Por várias vezes, mediu
o tamanho da cova com a caixa dos “restos mortais de Taquinho”, bem embrulhada
num saco plástico. Ao fim, o embrulho coube horizontalmente no fundo da cova,
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como ela desejava. Cobriu-o com terra e sobre ela plantou a muda de azaléia.
Limpou e alisou a terra em torno da muda com uma vassoura de mão e regou-a com
a água de uma garrafa de plástico que levara na sacola. Foi embora antes da chegada
de seu Cirineu.
Capítulo 23
“De fato” – pensava padre Antonio, meditabundo e muito aborrecido –, “para morrer,
basta estar vivo!” Quem poderia imaginar dona Lourdes, que há pouco mais de três
meses demonstrava tanta saúde e vitalidade nas festas de Natal e fim-de-ano, hoje
morta e enterrada? Ela que fora a maior responsável pelos recordes do Lar da
Criança, de arrecadação, repercussão e presenças, desde as barraquinhas da Igreja até
os eventos e solenidades que coroaram de êxito a instituição no ano passado, agora
premiada e reconhecida por uma respeitada fundação paulista entre as mais eficientes
instituições beneficentes do país?
Uma ponta de despeito, o bom despeito, cutucava o ego do velho padre, apesar de
sinceramente comovido pela perda daquela que fora grande companheira, amiga,
auxiliar, voluntária e, principalmente, filha e devota de Nossa Senhora de Lourdes.
Desde que viera definitivamente para Valadares, em 1968, ele não testemunhara um
enterro tão concorrido, e isto não se reduzia apenas à sua igreja, da qual era o pároco
há quase 30 anos. Só não foi feriado municipal porque não houve tempo de decretálo. Mesmo assim, o prefeito decretou ponto facultativo para os funcionários
municipais. Muitas escolas públicas e privadas suspenderam as aulas em homenagem
à humilde senhora que fora a responsável pela criação dos uniformes de quase todas
elas.
Suspeitava padre Antonio que o enterro dele próprio não chegasse sequer à metade
do comparecimento ao dela. Tivera como certo que ele iria bem antes dela, e contava
com ela na coordenação das cerimônias fúnebres e das homenagens póstumas. Deuse o contrário: “Deus sabe o que faz!” – diria a mesma Lourdes. Ele estava indo para
os 80 anos e fumava desbragadamente, vício que nunca pensou em largar, pois
adorava o tabaco - de todas as espécies, exceto o de cachimbo. Ademais, não era
dado a médicos, a exames e a essas paranóias de saúde que impregnam o mundo hoje
em dia. Nem a planos de saúde aderira. Dr. Leandro vivia alertando-o para a
necessidade de exames regulares, consultas, etc, mas ele só o chamava ou ia até ele e
fazia exames quando algo lhe apertava de fato.
Ninguém pudera imaginar a popularidade da boa senhora, ninguém! Foi um correcorre na Igreja, desde o dia do enterro até a missa de sétimo dia, que caiu numa
quarta-feira, e, depois, ele ainda deu ordens de que ela permanecesse sendo
homenageada nos sermões de todas as missas celebradas até o outro domingo, além
do seguinte, com agradecimentos aos que compareceram.
O velório fora na casa dela, e enormes filas formaram-se na rua para o entra e sai de
despedida. Não se conseguiam vagas para os carros que se engarrafavam ali e nos
arredores. Vieram o prefeito, as autoridades municipais, políticos, gente rica, a classe
média, e, em massa, o povo de Valadares. E crianças, milhares de crianças. Para
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tanto, nem precisou de jornal ou televisão. Por si mesma, a cidade inteira se
mobilizou para homenagear aquela que, na pureza e humildade de um quase
anonimato e de fiel devoção a sua Santa, era, em verdade, uma das pessoas mais
queridas da região.
Falecera de parada cardíaca na madrugada do dia 31 de março, data que, para padre
Antonio, era de má memória desde 1964. A rua e o cemitério foram pequenos para o
cortejo e o ritual fúnebre. Populares disputavam com autoridades e políticos a honra
de pegar a alça do caixão, ao menos por alguns segundos. As azaléias ficaram
ofuscadas pela quantidade de coroas de flores, que tiveram de ser distribuídas por
todo o cemitério, desde o lado de fora, na entrada, no átrio, por dentro do portão, ao
longo das ruelas que levavam até o túmulo e nas escadarias e nas naves da igreja. O
enterro fora marcado para cinco da tarde, logo após a missa de encomenda da sua
alma, para a qual se fez necessário que a prefeitura montasse um equipamento de
som nas imediações da igreja abarrotada, mas, às sete, ainda havia gente discursando
no cemitério cheio de gente. As coroas de flores iam sendo permutadas até a missa
de sétimo dia – que outra vez superlotou o templo não tão pequeno, mesmo que não
fosse dos grandes –, para atender a peregrinação que faziam até aquele túmulo os que
não puderam ir ao enterro.
Era a manhã de segunda-feira, 10 de abril, e, ainda recolhido em seus aposentos no
andar de cima da casa paroquial, único lugar que nos últimos tempos lhe era
permitido fumar em paz, padre Antonio via, pela janela, Cirineu, o filho dele, as
empregadas da paróquia e alguns garis da prefeitura promovendo nova limpeza do
caos de flores envelhecidas, além de lixo e resíduos vários, em que se tornara o
cemitério ao longo das homenagens à saudosa senhora.
Dali mesmo ele a vira, no dia seis de janeiro, bem de manhãzinha, plantando a última
de suas azaléias. Lembrou-se de que estranhara a localização que ela dera àquela,
pois sabia-se que planejara o plantio de dez arbustos laterais e, havendo então
somente oito, seria normal que plantasse o nono na seqüência de uma das fileiras
laterais não terminadas. Porém, ela o fazia ao pé do túmulo, rente à ruela que ali
passava, o que despertou sua curiosidade e o fez decidir-se por ir até lá. Demorou-se
um pouco a se vestir e, quando lá chegou, ela já havia ido embora.
Comentou o fato com Cirineu, que também estranhou, coçou a cabeça e resmungou:
- “Do’a Lurde deve de tá pensando em pô a úrtima nas cabeça do jazigo. Se isto fô,
pode inté ficá bonito, mas vai me compricá de tirá a lage prus interro. É mió falá cum
ela, padre, cumé queu vô tirá essa lage sem rebentá com as pranta em vorta? E’a já se
foi?”
Ele prometeu falar com ela ainda naquele dia. Se não aparecesse, no dia seguinte era
certo. Dia sete de janeiro era o dia de Bernadete, e ela nunca faltava à missa dedicada
à santa, às seis da tarde, que começava e terminava com a Ave Maria de Schubert
cantada pelo coral que ela mesma organizara no Lar das Crianças.
Porém, dona Lourdes não fora àquela missa. Como padre Belizário comentara,
durante o almoço, que ela tinha aparecido na das seis da manhã, isto não o
preocupou. Naquele mesmo sete de janeiro ele tinha viagem marcada no vôo das
nove da noite para BH e, de lá, seguiria para São Paulo, e não teve tempo de
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especular sobre isso.
Padre Antonio planejara aquela viagem para ser a última que faria a sua terra natal, a
cidade de Santos, no litoral paulista. Seria bem mais longa que as anteriores, talvez,
de um mês inteiro. Para ele, as viagens estavam a cada dia mais aborrecidas e
cansativas, nem as de avião, que antes tanto gostava, lhe agradavam mais. Os aviões
mais se pareciam com ônibus vagabundos do interior de Minas, não se podia fumar
em lugar nenhum, atrasos, demoras, falta de educação dos funcionários das linhas
aéreas, tudo era uma chateação sem limites.
Havia adotado Valadares em definitivo como a sua segunda terra natal e nela
pretendia ficar, para sempre. Parentes em Santos só tinha o sobrinho, filho de sua
irmã que falecera há mais de dez anos, a esposa dele e a filharada que não sabia a
quantas ia naquela data, mas já passara dos seis pimpolhos em escadinha, meninas e
meninos, alguns já quase adultos. Em São Paulo, ligaria para saber e compraria
presentes. Iria nomear o sobrinho como seu único herdeiro, transferindo a ele os
poucos bens que possuía em Santos, por herança dos pais, e os direitos que
recuperara desde a anistia, inclusive as indenizações que estava por receber do
governo federal.
Recuperara seu posto de capelão da Marinha, que perdera em 1966, na patente de
tenente, e recentemente fora promovido a capitão da Reserva. Além do que ganhava
da Igreja, este soldo e as indenizações lhe dariam folga financeira mais que suficiente
para os poucos anos que lhe restavam. Gostava do sobrinho e tinha dele a
reciprocidade em afeto e amizade. O “garoto” (que já ia para mais de 40) sempre lhe
fora prestativo, honesto e até desnecessariamente rigoroso e pontual ao cuidar dos
negócios da família em Santos.
Religiosamente, desde o falecimento de sua mãe, ele enviava a Valadares, pelo
correio, sempre no dia cinco de cada mês, um envelope com contas, extratos e
comprovantes de tudo o que era de interesse do tio, junto com o depósito, feito no
mesmo dia em sua conta corrente, do valor que lhe cabia das receitas auferidas com
os aluguéis da sala e do apartamento que herdara. E, mesmo sob a insistência do tio,
sempre se recusava a tirar para si um centavo sequer por tais favores.
Cuidava também, como procurador e advogado, depois que se formara em Direito,
das demandas que nos foros de Santos e de Brasília ainda se travavam pela
recuperação de seus direitos e patente, desde os fins dos anos 70, com a publicação
do decreto da anistia. E se recusava a recolher honorários pelo trabalho, nem os dos
êxitos financeiros logrados.
A burocracia e a papelada que se fizera necessária para cumprir os objetivos da
viagem acabou por prolongá-la até o dia 10 de fevereiro, data que para padre Antonio
era limite. No dia 11, se comemoraria em todo o mundo o Dia de Lourdes, e ele
nunca perdera a celebração da missa dedicada à padroeira da sua Igreja, desde que
dela se tornara o pároco. Nesse tempo em que esteve fora, quase não fez contato com
Valadares; uma ou outra vez, entre as poucas decisões que foram tomadas na
paróquia naquele período morno do ano, e que precisaram do concurso dele, fizeramno via telefone ou por e-mail, com a máxima brevidade possível, pois ele não era
dado a conversas por telefone (nem celular possuía) e menos ainda por computador.
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Depois de chegar ao aeroporto de Valadares, o primeiro comentário que ouviu do
chofer de táxi que o levou até a paróquia, quase meia-noite, foi sobre dona Lourdes.
Capítulo 24
Este 11 de fevereiro fora especial e marcante para padre Antonio. Caíra numa sextafeira, e a festa seria no domingo, motivo pelo qual a paróquia já se agitava nos
preparativos. Ainda assim, sempre no próprio dia 11 a missa das seis da tarde era
toda especial, com coro e órgão, e grande audiência. Pela primeira vez nos últimos
quinze anos, dona Lourdes não estava à frente da organização da missa e da festa de
domingo.
O leitor não sabe, pois ainda não foi informado, que foi este o dia do nascimento de
dona Lourdes. Além de ser o dia consagrado à Virgem dos Pirineus, outros bons
motivos levaram o pai dela a batizá-la com o belo nome: em primeiro lugar,
homenageava a desditosa esposa Laila, falecida no dia em que deu a luz à filha e fiel
adepta da milenar devoção dos cristãos libaneses à Virgem Maria. Homenageava
também a França, país em que nascera; a paróquia em que se estabelecera; e o pároco
francês que a fundara, o saudoso padre Maurice, de quem gozara uma sincera e quase
íntima amizade e fora devedor de muitos e desinteressados obséquios, que ele
procurou pagar cortando as batinas dos padres da paróquia sem cobrar pelo serviço.
Possivelmente, a extrema-unção de Laila e o batismo de Lourdes foram os últimos
sacramentos que padre Maurice, já bem velhinho, celebrou antes de falecer poucos
meses depois. Padre Sinfrônio, seu discípulo e sucessor no comando da paróquia, o
assistiu em ambos e acreditava ser a recém nascida iluminada pela santa, por isso a
tratava como paroquiana e devota predileta.
Quando estivera ali pela primeira vez, em maio de 1966, numa breve estadia de
contatos com líderes sindicalistas dos garimpeiros da região, padre Antonio viu a
coroação da Virgem pela menina Lourdes, a última de seis coroações seguidas que
protagonizara, pois desde os sete anos era a escolhida para o importante papel
principal dessa celebração festiva. Naquele dia, se conheceram e manifestaram
grande simpatia um pelo outro. Desde então, Lourdes e ele cultivaram uma amizade
fraternal e um companheirismo que jamais negligenciaram.
Mesmo estando bastante cansado da viagem, padre Antonio fez questão de ajustar o
despertador para seis da manhã, a tempo de pegar o início do “jornal da paróquia”,
que era como os padres, sacristãos, funcionários e empregados chamavam o horário
de seis e meia até sete e meia, durante o qual era servido o café da manhã no
refeitório da paróquia. Preocupara-se com a conversa do chofer sobre dona Lourdes,
mas conhecia bem os exageros daquela gente provinciana. Sua opinião pedia
detalhes e exigia informações mais confiáveis para se formar.
Foi o primeiro a sentar-se na comprida “mesa do pároco”, e as duas cozinheiras,
Luzia e Graça, disputavam entre si a primazia de dar a ele as notícias de dona
Lourdes. Teve de pôr ordem nas duas e deu a palavra primeiro à língua menos
“afiada” e mais moderada da quarentona Luzia. Como previra, as notícias não eram
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boas. Desde o dia da viagem do padre, dona Lourdes se enfurnara em sua casa e não
saía de lá nem para ir à missa. Fazia compras por telefone ou pelo Joãozinho da
Bicicleta (que sucedera a Taquinho no ofício e na clientela, valendo-se, inclusive, da
mesma bicicleta, que lhe fora cedida por dona Lourdes). A última vez que ela viera
na Igreja fora na missa de Bernadete, celebrada por padre Belizário, às seis da manhã
daquele sábado.
- Na segunda-feira – interrompeu a sexagenária Graça – seu Jaime da padaria, que já
desconfiava e me disse “em segredo” sobre a estranheza do comportamento de dona
Lourdes, falou que o pão e o leite que tinha entregado no domingo ficaram lá na
varanda, do mesmo jeito que deixou. Ficou preocupado e voltou mais tarde para ver
se ela estava bem. Ela o atendeu da porta e se desculpou, dizendo que não havia
saído de dentro de casa para nada no domingo por estar indisposta, por isso se
esqueceu.
Neste momento, chegou padre Belizário, que acabara de celebrar a missa das seis, e
as duas linguarudas, percebendo que era a vez dele, se despacharam, até porque mais
comensais chegavam no cenário delas. Depois de cumprimentarem-se, padre
Belizário sentou-se ao lado dele e conversaram quase aos cochichos. Justificou nada
ter mencionado durante a ausência do pároco por não ter havido urgência ou alarme
a não ser nas especulações dos fofoqueiros de sempre, e nem o que padre Antonio
pudesse fazer estando fora.
Contou que dona Lourdes enviara pelo Joãozinho da Bicicleta cartas a todas as
freguesas comunicando o encerramento de suas atividades de costureira. Duas foram
mostradas a padre Belizário. A de Maria, esposa do Dr. Leandro, e a de Antonieta,
do Dr. Gusmão. Eram quase idênticas, delicadas e bem educadas: a missivista
agradecia as destinatárias pela honra da preferência, manifestava ter sido feliz em
servi-las, comunicava a cessação das atividades por decisões de foro íntimo e pedialhes compreensão.
Para o Lar, ela enviara uma bem escrita carta de renúncia irrevogável junto a um
bilhete para padre Belizário pedindo para que não se preocupassem com a ausência
dela, que não atrapalhassem a viagem de padre Antonio com aflições sem
fundamentos a respeito dela, e que aguardassem a sua chegada, pois a ele se
explicaria pessoalmente, quando lhe conviesse ouvi-la. Ambas estavam na gaveta da
mesa dele, na sala de administração da paróquia. Maria, do Dr. Leandro, a está
substituindo interinamente no Lar até que a paróquia decida o que fazer.
Padre Belizário informou também que, em todo esse tempo, dona Lourdes só recebeu
pessoalmente, na casa dela, as três viúvas, as quais vieram vê-lo logo em seguida.
Estavam seriamente preocupadas. Disseram tê-la encontrado com uma aparência de
dez anos mais velha que da última vez que a viram. Não fazia mais rinsagens ou
pintura dos cabelos, não se maquiava, nem batom usava mais. Com as roupas ela
parecia não estar preocupada, ela que sempre se via bem vestida, com rigor e bom
gosto. Viram a casa descuidada para quem era conhecida pelo capricho no lar, até o
jardim está carente de trato. Apesar das olheiras fundas que denunciavam insônias,
não pareceu a elas que sofria problema grave de saúde. Ela alegou depressão, não
revelou nada importante e disse que não mais participaria dos almoços com as
amigas, que deixaria a causa a partir de então, e no que diz respeito aos seus próprios
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interesses, inteiramente nas mãos do Dr. Gusmão e delas, no que dissesse respeito
aos interesses comuns. As três mulheres foram unânimes em avaliar a situação
relacionando-a com alguma novidade sobre o filho que ela não quis informar. Enfim,
todo mundo em Valadares está aguardando a chegada de padre Antonio para saber
sobre o que está ocorrendo com dona Lourdes.
A mesa e o refeitório estavam cheios neste momento e quase não se ouvia uma voz,
pois todos aguardavam o fim do diálogo dos dois padres para cumprimentarem padre
Antonio e, fingindo que não, tentavam ouvir alguma coisa do que cochichavam.
Padre Antonio encerrou o diálogo, cumprimentou a todos com uma saudação geral,
pediu licença e subiu aos seus aposentos.
Algum tempo depois, retornou envergando batina nova que mandara cortar numa
alfaiataria de Santos, o que causou grande surpresa. Há muito ele não era visto de
batina. Disse a padre Belizário que só celebraria a missa das seis da tarde e a todos
informou que iria ver Lourdes e não tinha hora de retorno. Ordenou que se
concentrassem nas atividades do dia e da festa de domingo, que se esquecessem de
dona Lourdes e respeitassem o recolhimento a que ela mesma se impôs, e que, até
segunda-feira, quando ele pretendia fazer uma reunião sobre o assunto com os
interessados, incluindo convidados de fora, não se falasse nela na paróquia. E saiu.
Capítulo 25
Eram quase oito da manhã quando padre Antonio saiu da casa paroquial em direção à
casa de dona Lourdes. Sua figura esguia, alta e de cabeça branca, todo de preto e,
como sempre, carregando a pasta preta de couro, chamava a atenção dos transeuntes.
Ele sabia disso, fora um dos que contestaram a desobrigação do uso da batina, lá
pelos anos 60. Na época, taxaram-no de conservador e antiprogressista, logo ele que
enfrentara, de peito aberto, a ditadura militar e as hostes reacionárias da igreja
católica que a apoiaram. Ainda mantinha sua opinião de que a desobrigação do uso
da batina constituiu-se numa das maiores fraquezas de sua igreja desde que posta em
prática. Abrira as portas para as hordas de “pastores protestantes” – para ele "o mais
infame dos tipos sociais que assolam a vida nacional" –, proclamarem-se porta-vozes
de Deus perante um povo que não tinha mais no tradicional traje o referencial de
respeito e credibilidade a que, mal ou bem, estava habituado. O poder da batina
salvara-lhe a vida e as de muitos manifestantes numa passeata dos portuários, em
Santos, logo depois do golpe de Estado. Os soldados receberam ordem de disparar
contra os manifestantes, mas, ao verem-no de batina à frente da passeata, se
recusaram a obedecê-la. O comandante do batalhão veio até ele para tentar retirá-lo
da manifestação e ele se negou a deixá-la enquanto não tivesse garantias de que não
haveria disparos e agressões aos civis. E a passeata prosseguiu.
Agora, ele a vestia para estar à altura de uma das missões que considerava das mais
importantes de seu sacerdócio. Iria prestar serviços a uma católica que precisava
deles e que, em sua opinião, é modelo do que qualquer igreja poderia almejar para
seus fiéis. Certamente não iria ouvir confissão de pecados; dona Lourdes estava entre
os pouquíssimos católicos que conhecia que não os cometia. Não era fanática, beata,
mártir ou exemplo de sofrimento a ser santificado; era o que deveria ser todo bom
católico: obediente aos mandamentos de Deus e fiel seguidora dos ensinamentos
68
simples e iluminados de Cristo.
Dona Lourdes abriu a porta para ele já exclamando a surpresa pela batina:
– Se não fossem os cabelos brancos, padre, eu acharia que estava tendo uma visão do
passado! Fui eu quem abriu esta mesma porta para o senhor entrar quando veio pela
primeira vez à nossa casa, lembra-se? O senhor me pareceu tão elegante naquele dia
como agora, nesta batina bem cortada. Parabéns, o senhor se mantém muito bem
conservado.
– Como iria esquecer-me, Lourdes? Você era uma linda menina e tinha os olhos tão
brilhantes e vivos como estes que estou mirando agora.
Vestida num pengnoir leve, de cor bege, e calçando chinelas, ela convidou-o a
sentar-se na mesa da sala de jantar e trouxe a bandeja de café, incluindo cinzeiro e
um par de xícaras. Perguntou-lhe pela viagem, e ele respondeu que correra bem, mas
não viera para falar, e sim para ouvi-la. Antes, devia expressar a solidariedade, dele e
da paróquia, ao que estivesse ocorrendo a ela, fosse o que fosse, incluindo a decisão
que tomara em relação ao Lar, ainda que infelicitasse a todos lá, que a amavam, e ele
incluía nesse universo “até a nossa padroeira”.
Dona Lourdes agradeceu sentando-se frente a ele e pondo sobre a mesa uma velha
pasta de couro que pertencera a seu pai, cheia de papéis.
– Lembra-se, padre, quando lhe falei que só acreditaria na morte de Taquinho se dele
recebesse um sinal convincente? Pois o recebi; e com ele o fim das minhas
esperanças...
– É triste, Lourdes, meus sinceros pêsames. Confesso que faz tempo que perdi as
esperanças de vê-lo outra vez nesta vida. Posso saber quando e em que circunstâncias
ele morreu?
– Decidi que essas informações eu as levarei comigo para o túmulo, padre, perdoeme, não é desconfiança em relação a ninguém (não conseguiu mais conter as
lágrimas).
– Lourdes, este direito é todo seu e será respeitado, não se aflija – disse o padre
dando-lhe uma das mãos e erguendo-se para enxugar-lhe o rosto delicadamente com
o lenço branco e limpo que sempre trazia consigo.
– Tentei ser boa filha – respondeu ela soluçando e esforçando-se por conter as
lágrimas – e vi no meu pai um exemplo de grande homem. Era honesto, trabalhador e
talentoso. Conquistou renome de virtuoso alfaiate ainda quando se assinava Pierre
Raghid. Veio então a ditadura militar e a implicância com o Pierre, numas ilusórias
ligações com comunistas franceses. Ele percebeu e mudou seu nome para Pedro
Raghid. Alguns anos depois, a implicância passou para o Raghid, e outras mais que
ilusórias ligações com terroristas muçulmanos. Tornou-se, então, o Pedro Alfaiate, e
viu o respeito e a consideração com a sua pessoa, o seu trabalho e a sua profissão se
dissolverem até a quase nulidade. Procurava não deixar transparecer, porém ele
morreu muito triste e desanimado, eu que o diga.
69
– No decorrer desse processo – continuou ela tentando dominar as emoções –
encontrei-me com o meu marido e procurei, igualmente, ser uma boa esposa. Creio
que consegui sê-lo até que me tornei mãe. No momento em que me tornei mãe, vi-me
diante de um dilema. Tive de optar pelo meu filho, sem, contudo, abrir mão da
fidelidade a um marido distante, quase ausente do lar. Não deixei de amar meu
marido apesar disso, nem de apoiá-lo e admirá-lo por sua bravura e persistência. Um
homem que conseguiu reverter perspectivas mais que negativas de um berço infeliz e
tornar-se um vitorioso profissional do ofício que abraçou.
– Padre Belizário me informou das novidades a respeito da tragédia; que absurdo! –
interrompeu-a padre Antonio.
– No que diz respeito a mim, padre, sinceramente, eu preferiria não tê-las conhecido.
O acidente, como razão de sua morte, me era mais confortável. Doeu-me muito saber
que fora vítima de quase um crime, um mau procedimento, como ele falava. Tudo
por ganância...
– As exportações, as malditas exportações! – exclamou o padre, sem conseguir se
conter – Não sei como uma praga dessas pode assolar um país como o nosso sem que
encontre a menor resistência de parte alguma, nem mesmo do povo.
– Segundo as viúvas me contaram, as investigações do Ministério Público
encontraram relatórios do próprio Eustáquio dirigidos à diretoria da Vale em que
denunciava com veemência o não cumprimento sistemático de vários procedimentos
de segurança nas detonações. Nenhum deles mereceu sequer comentário ou
manifestação da alta direção. Tinham pressa, queriam aumentar a produção, cumprir
metas de exportação. O Ministério Público suspeita que aqueles homens não foram
os primeiros a serem criminosamente soterrados por tais negligências. Tudo o que
vem me acontecendo me parece uma perseguição contra a pobre gente do nosso
povo, gente como eu, e, no meu caso, filha única de pai viúvo, esposa fiel de marido
ausente e mãe amorosa de filho único... ai, Taquinho, meu filho querido...
Taquinho... (derramou-se em novo e soluçante pranto).
Capítulo 26
De seus aposentos na casa paroquial, padre Antonio observava a limpeza do
cemitério e rememorava aquele diálogo, quase todo um monólogo da infeliz falecida.
Depois de derramar uma torrente de lágrimas, ela retomara uma serenidade estranha
e foi surpreendentemente objetiva e direta. Entregou ao padre a pasta de couro
contendo os documentos de herança, propriedade, bens de valor e contas bancárias
que possuía. Pediu a ele que providenciasse junto ao tabelião e ao escritório do Dr.
Gusmão a transferência de tudo para o Lar das Crianças, inclusive as possíveis
indenizações que estava para receber da Vale, pela via de um acordo muito favorável
às viúvas. Pedia-lhe que aceitasse ser nomeado procurador dela para o que
necessitasse ser feito ou decidido em relação a seus bens e direitos. Incluía também
um projeto, elaborado algum tempo antes por uma de suas freguesas, arquiteta, do
prédio da nova sede do Lar no terreno em que ficava sua casa, quase triplicando a
capacidade da creche para 800 crianças, em instalações modernas e mais apropriadas.
70
O acordo indenizatório haveria de cobrir as despesas da obra e, se mais fosse
necessário, a prefeitura e o governo ajudariam, com certeza.
Em troca, só pedia duas coisas.
Que o padre conseguisse a sua aceitação como monja laica no mosteiro das
Carmelitas Descalças, em Belo Horizonte, ou em outro que achasse conveniente,
para que lá vivesse em sua solidão e em orações até o dia de sua morte. Oferecia ao
mosteiro os seus dotes de costureira, de cozinheira e até de faxineira, ou se colocava
à disposição para qualquer outra tarefa de que fosse capaz. E a sua fé cristã
inabalável. E que, ao morrer, tivesse seu corpo trazido a Valadares e enterrado no
cemitério da Igreja de Lourdes, junto aos de seus pais.
Sabemos que o padre só pôde atender a segunda parte do segundo pedido. O
primeiro, por formalidades burocráticas, eclesiásticas e cartoriais, demorou algo mais
que o esperado e estava a poucos dias de concretizar-se quando, na madrugada do dia
31 de março, ele recebeu um telefonema de dona Lourdes em que ela lhe dizia aflita
e em convulsões:
- Venha, padre, por favor, e traga água benta. Acho que estou morrendo.
Ele correu até ela acompanhado de Graça, enquanto Belizário localizava o Dr.
Leandro. Encontrou-a nos últimos suspiros e ela faleceu durante a extrema-unção. A
ambulância chegou logo em seguida, junto com Dr. Leandro, que nada mais teve a
fazer senão oficializar óbito. O médico atribuiu ao excesso de remédios e
tranqüilizantes, com que dona Lourdes ultimamente se automedicava, como a causa
mais provável do acidente cardíaco que a matou, o que, ao menos em tese, pôde ser
confirmado nos exames de autópsia. Sem esconder a irritação e o inconformismo,
pois gostava muito da falecida, Dr. Leandro, que era um militante socialista convicto,
culpou o sistema capitalista pela morte dela. Um sistema que, no Brasil, é dominado
pela indústria farmacêutica – segundo ele, a “indústria da doença” e, não, da saúde –
e que maldosamente fazia confundir pacientes clínicos com consumidores, e
produtos farmacêuticos com mercadorias inofensivas.
Luzia bate na porta: - “O pessoal da prefeitura já está aqui para a reunião, padre”.
A reunião durou cerca de uma hora, depois do que padre Antonio foi ter com
Cirineu, que dava os últimos toques na limpeza do cemitério.
- Infelizmente, vamos ter de retirar as azaléias do túmulo de Lourdes, Cirineu.
- Tirá as azaréia de do’a Lurde?! – retrucou, pasmo, o bom zelador.
- Lourdes não deixou descendência e não tinha parentes; e, para a vida nesta Terra,
os mortos são todos iguais, Cirineu – disse o padre em tom filosófico, com o olhar
no infinito. - Além disso, os tempos e as coisas mudam. A praga da dengue está aí e a
prefeitura quer o cemitério todo calçado e cimentado, dentro de normas técnicas e
legais, entre outras exigências. Eles mesmos se encarregarão da obra, mas eu quero
que você supervisione tudo...
71
- Entonce divia de prantá ao menos u’a arvre pru conforto das arma. Isso aqui todo
acementado vai ficá mais prus forno dos inferno que prum campo santo.
- É uma boa idéia, Cirineu, vou pensar. Sabemos o quanto nos entristece ter de
desfazer o que Lourdes fez com tanto zelo, mas arranque tudo hoje mesmo; eu nem
quero estar por perto. O pessoal da prefeitura foi inflexível e eu não tive outra saída
senão me comprometer em ajudá-los. Se der, aproveite o carreto que vem recolher a
caçamba da limpeza no fim da tarde, quanto mais rápido fizermos isto menor será a
nossa dor – e afastou-se cabisbaixo, enxugando os olhos com um lenço.
Depois do almoço, padre Antonio foi a seus aposentos para desfrutar uma pequena
sesta, como sempre fazia. Cochilou por cerca de quarenta minutos, como de costume.
Levantou-se, foi à escrivaninha e abriu a Bíblia a fim de escolher trechos para duas
missas que celebraria ainda naquele dia.
Num dado momento, Cirineu bateu e recebeu licença para entrar. Trazia na mão um
embrulho de plástico e exibiu-o ao padre.
- Tava interrado debaixo do úrtimo pé de azaréia qui do’a Lurde prantô. Tá cumu
tava, num mixi nada, só alimpei as terra qui garraro pru fora.
Ao pegar o volume, padre Antonio arregalou os olhos e não teve dúvidas de que
estava recebendo em mãos a misteriosa mensagem de Taquinho.
- Alguém mais viu isto, Cirineu?
- Só eu mermo, padre, o pessoár tinha ido tudo imbora quando comecei a rancar as
pranta. Truce direto pru sinhô, vi qui é trem compricado purisso truce aqui.
- Você fechou a cova de onde tirou isto?
- Não, cabei de batê cum a pá nesse troço. Foi nesse instantim, e’a a úrtima que
fartava prá tirá. As otra já tinha rancado e fechado os buraco tudo cunforme o sinhô
pidiu.
- Então, faz o seguinte: deixe tudo lá como está. A prefeitura vai começar na quartafeira e temos amanhã o dia todo para prepararmos as coisas para eles. Tenho duas
missas hoje e só vou poder saber do que isto se trata mais à noite. Amanhã digo a
você o que vamos fazer. Pode ir.
- Tá paricendo cinza de cremado ou coisa de pagão, mas num cridito que do’a Lurde,
frevorosa cumu era, ia fazê u’a coisa dessa num campo santo, ó xente! Já pode isso,
padre?
Era conhecida na paróquia a pouca paciência de padre Antonio com a perguntação de
Cirineu, um curioso contumaz.
- Cirineu, Cirineu, vamos saber primeiro do que se trata, certo? E não diga nada a
ninguém. Amanhã, antes do café, venha até aqui, e resolvemos o que fazer. Agora
preciso trabalhar. Até amanhã.
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- Inté manhã, padre.
Capítulo 27
Padre Antonio não se lembrava de uma missa tão mal celebrada por qualquer padre
como aquela que celebrou neste dia, às cinco da tarde. Não houve jeito de se
concentrar no que fazia, o sermão saiu confuso - um desacerto! -, e por pouco ele
pulava o Ofertório. A outra missa de sua escala, prevista para logo mais, às sete
horas, ele permutou com padre Belizário alegando indisposição.
Na verdade, estava aflito e preocupado. Não quis abrir o embrulho de plástico que
dona Lourdes enterrara no cemitério (por certo acreditando que ele não seria
desenterrado tão cedo) antes de cumprir os compromissos do dia. Sabia que não
haveria nele nada que se pudesse avaliar em pouco tempo. Estava certo de que devia
ser a “mensagem de Taquinho”, mas não fazia a menor idéia do que constava nela ou
de que forma era. Percebeu que não eram cinzas de cremado, como suspeitou
Cirineu, e vislumbrou através do plástico algo parecido com o símbolo muçulmano
do Crescente Lunar.
Mas isto não o preocupava de imediato. Confiava em Cirineu, mas conhecia bem os
olhares e as línguas afiadas da paróquia e, no momento, ela estava bem servida delas,
com vários hóspedes e o pessoal da casa ainda retomando as atividades algum tempo
depois do almoço, hora em que Cirineu subiu ao seu apartamento. Difícil afirmar que
ninguém o vira; vindo do cemitério, ele teria de passar pelo refeitório e pela sala de
TV até chegar na escada que dava para o andar de cima. Dificilmente estariam ambas
vazias naquela hora.
Padre Antonio considerava a coisa mais difícil do mundo guardar um segredo em
uma casa paroquial. Em todas, abundavam os linguarudos e os bisbilhoteiros. A dele
não era diferente. Já quando chegara a Valadares tinha a sua pasta preta, da qual
nunca se separava, onde guardava seus escritos em andamento, documentos
confidenciais e tudo o mais que nela coubesse e que queria resguardado dos
abelhudos. Não havia numa paróquia um só esconderijo, porta, armário ou gaveta,
com ou sem chave, que garantisse segurança.
Ele tinha na sacristia um gavetão com chave segura onde guardava a pasta enquanto
celebrava a missa, mas, para ele, a maior segurança desse gavetão era porque dava
para ser visto e vigiado do altar durante a celebração. No almoço, Luzia havia-lhe
entregue uma sacola com paramentos novos que ele queria experimentar antes de
usá-los. Foi nela que colocou o embrulho de dona Lourdes e o levou, junto com a
pasta, para o gavetão da sacristia. Ao terminar a missa, depois de permutar a escala
com padre Belizário, ele tomou um lanche rápido no refeitório, subiu aos seus
aposentos com a pasta e a sacola e trancou-se lá. Avisou a Graça que desligaria o
telefone do seu ramal e não queria ser incomodado. Justificou-se dizendo que
precisava de descanso.
Padre Antonio não era paranóico, como o leitor poderia suspeitar depois desse relato.
Era um veterano. Escolado e viajado no Brasil todo e no exterior, conhecia as
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manhas do seu ofício. Sabia que não havia parede que não tivesse ouvidos e
fechadura de porta que não tivesse olhos naquela casa. E não eram os ouvidos e os
olhos de Deus, eram os da Mitra. A alta hierarquia da Igreja brasileira espionava bem
os seus párocos, desde cada um dos livros que mantinham na biblioteca até quantos
cigarros fumavam por dia. E, no caso dele, não eram poucos os cigarros como
também não o eram os livros, que já iam para mais de cinco mil. Ele acumulava as
bibliotecas de padre Maurice, padre Sinfrônio e a dele próprio, parte delas nos seus
aposentos de pároco, que dispunha de quarto, sala de estar (que padre Antonio
transformou em escritório e biblioteca particulares, onde estudava e escrevia) e
banheiro privativo, todos amplos, arejados e bem iluminados, dentro da espaçosa
arquitetura de estilo francês que padre Maurice deu ao templo da Virgem de Lourdes
e à casa paroquial. O conjunto arquitetônico daquele templo católico era um
pedacinho da França incrustado no sertão brasileiro. Das obras de arte até as
ferragens o velho pároco fundador trouxera de seu país natal, todas escolhidas a dedo
e com bom gosto. “As louças, apesar de inglesas”, costumava dizer, “são também de
boa qualidade. As madeiras são brasileiras, melhores não há”.
Padre Antonio fechou a porta do escritório, passou-lhe o ferrolho de segurança e
pendurou na maçaneta da porta, por dentro, um aviso de “não perturbe” que trouxera
de um hotel numa de suas viagens. Tal providência tinha por finalidade tapar
completamente o grande buraco da velha fechadura de fabricação gaulesa que o
patrimônio histórico, por sua iniciativa, incluíra no tombamento do conjunto
arquitetônico em que habitava.
Em seguida, ajustou a luz do abajur sobre a escrivaninha, pegou uma tesoura e cortou
com cuidado o plástico que envolvia aquele “segredo de Lourdes”. Ao ter nas mãos a
caixa que retirou do invólucro ainda um pouco sujo de terra, antes de abri-la não
pôde deixar de admirá-la nos detalhes e em todos os seus lados. Era um aficionado
de antiguidades e objetos de arte, inclusive os de origem muçulmana, cultura da qual
era conhecedor e admirador, desde quando fora capelão da Marinha e visitou alguns
países do Oriente Médio. Calculou que era obra de artesanato saudita do século
XVIII, pelo uso do marfim na marchetaria e pelo desenho do fecho. Não teve
dificuldade para entender e acionar o mecanismo de abertura e soltar a tampa, a qual
abriu lentamente como se a filar uma carta de baralho. E retirou de dentro da caixa o
rolo de papéis com os dois laços de fita verdes que o seguravam. Ato contínuo, ainda
segurando o rolo, soltou os dois laços e abriu o volume, reenrolando-o no sentido
oposto para anular as tensões a que se acostumaram os papéis e poder dispô-los sobre
o tampo da escrivaninha de modo a examiná-los.
Capítulo 28
Um pacote de cigarros fechado e outro aberto, sempre da mesma, tradicional e
predileta marca, era a “reserva técnica” que aquele pároco, um tabagista inveterado,
costumava manter na gaveta maior de sua escrivaninha. Quando acabava o que
estava aberto e abria-se o que estava fechado, ele providenciava para que logo lhe
viesse um novo pacote.
Nós o vemos agora, concentrado na leitura do documento secreto, que já ia para mais
da metade, enquanto abria quase que automaticamente um novo maço de cigarros.
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Ao lado, um grande cinzeiro transbordava de cinzas e baganas catinguentas e uma
xícara de café que acabara de encher até quase ao meio com o que restava de uma
garrafa térmica. Não tira os olhos do papel nem para acender o cigarro.
Da cozinha, Graça e Luzia, finalizando a limpeza do recinto e a arrumação do
panelório, viam o fumacê que vazava da janela do pároco, realçado pela luz de um
poste nas proximidades.
- Hoje a chaminé está a toda – resmungou Graça, que sempre implicava com o vício
dele.
- Ninguém me tira que tem a ver com o trem que o Cirineu levou pra ele hoje de
tarde – retrucou a outra – Rufino, o novo sacristão residente, estava na sala dos
computador e viu ele subindo com uma coisa lá prá cima. Diz que voltou sem ela. E
só tinha o padre Antonio lá em cima naquela hora.
- E a cova da última azaléia que dona Lourdes plantou está lá aberta, eu vi, lá no
cemitério. Cirineu não é de deixar trabalho pela metade. Preguntei a ele e me disse
que era prá plantar uma árvore. - Que novidade é essa agora? - falei prá ele. Ele não
quis conversa; disse que era coisa entre ele e o padre e que nóis num tinha que nos
meter nisso não. Atrivido! Inda falou que nóis era muito abelhuda.
- Hoje o padre nem quis jantar. Tomou uma xícara das grande de café forte e
amarguento - e sem açúcar como só ele pra gostar. Comeu só um pãozinho com
manteiga, mais nada. Depois pediu uma garrafa cheia de café prá levar pro quarto. Só
vai parar de ler e escrever lá pras alta madrugada, sei quando ele tá de veia.
- Faz tempo que não vejo ele assim, o Rufino falou que a missa que ele deu hoje foi
de amargar. Parecia missa de padre novato, errou tudo, fez confusão, até tropeçou
nos degrau do altar e quase tomou um tombo feio na frente de todo mundo.
- Acho que a morte de dona Lourdes deixou ele meio pateta, eu acho. Ele e ela eram
assim um com o outro. Já teve gente que desconfiou de coisa ruim, que eles até
pecavam. Mas é gente ruim, eles é que é ruim. Eu nunca acreditei, coitada de dona
Lourdes, que Deus a tenha (fez o sinal da cruz), era uma santa!
Padre Antonio acabou a parte de Guantânamo e fez uma pausa dramática, com as
mãos no rosto, consternado, amargurado. Uma angústia profunda o invadira durante
aquela leitura. Pesara-lhe tanto a ponto de balançar a sua fé. Lembrou-se de Dom
Hélder Câmara. Uma série de artigos seus sobre a Santa Inquisição chamaram a
atenção de Dom Hélder, no final dos anos 60, e depois se tornaram amigos e
correspondentes. O célebre hierarca, sem conhecê-lo, publicou comentários
concordando com ele em que certas práticas de tortura registradas nas ditaduras
latino-americanas eram inspiradas naqueles capítulos macabros da história da Igreja
Católica. Padre Antonio estreara como ensaísta com aqueles artigos que foram
publicados na revista Pensamento e Liberdade, dirigida pela Mitra Arquidiocesana
de São Paulo, periódico este que foi fechado pelos militares em 69, logo depois do
AI-5. Neles, ele resumia a pesquisa que iniciara nos tempos de seminário e o levara a
viagens ao Peru, ao México e à Europa, onde visitara arquivos, museus e acervos
importantes sobre a Santa Inquisição, em especial a segunda fase, “a espanhola”, a
75
que chegou na América Latina.
Intolerância, era para Padre Antonio a palavra-chave da abominável crueldade em
que resultou tudo aquilo, falsamente justificada em nome de Deus e de Cristo. O
documento que ele tinha diante dos olhos confirmava e atualizava muitas de suas
teses. O Vaticano tentara justificar o desatino como “resposta humana” à intolerância
dos muçulmanos, a seu fanatismo e fundamentalismo. Contudo, padre Antonio não
encontrou respaldo a tais sofismas em nenhum documento sólido, nem em fatos
históricos ou razões culturais que pudessem dar alguma sustentação a tais
afirmações, que vinham sempre mal alicerçadas, eivadas de preconceito, racismo,
parcialidade analítica e, antes de tudo, intolerância.
Tivera pistas da existência de documentos como o de Taquinho no passado, escritos
por alguns raros sobreviventes das crueldades inquisitórias, tanto no período
medieval como na fase espanhola. Porém, tais documentos, se é que estão
conservados, foram-lhe inacessíveis. Apesar dos inúmeros documentos de toda
natureza que tivera à sua disposição sobre a barbárie que significou a Santa
Inquisição, um depoimento lúcido de quem sofrera aqueles castigos seria de
fundamental importância e altamente revelador para quem, como ele, queria
encontrar algo mais que fatos históricos.
Padre Antonio trabalhou numa outra tese, estruturada nos mesmos ensinamentos de
Cristo, de que há uma necessidade de transferência, dos algozes às suas vítimas, dos
sofrimentos interiores e espirituais, em particular, os causados pela culpa que os
primeiros condenam a si mesmos, consciente ou inconscientemente. O algoz se sabe
ou se sente, interiormente, culpado; considera-se, a priori, um criminoso, mas se
recusa a aceitar tal verdade. Daí a sua intolerância por tudo o que ameaça ou pode
ameaçar a revelação dessa verdade, seja a si mesmo ou à sociedade. Seria longo nos
aprofundarmos nas idéias que o nosso teórico desenvolveu durante muitos anos e
que, recentemente, retomara com redobrado interesse diante dos eventos de 11 de
setembro de 2001, em Nova York. Iremos direto a uma de suas conclusões mais
destacadas e de maior apego ao argumento que tratamos: para padre Antonio, o
sofrimento do algoz é um sofrimento que condena, enquanto o da sua vítima é o
sofrimento do mártir, isto é, um sofrimento que salva. Quanto mais tortura, mais o
algoz sofre, seja pela condenação que faz de si mesmo, seja pela salvação que
percebe em sua vítima. E, não raro, acaba acreditando que no sofrimento do mártir
estará a sua própria salvação. Do ponto de vista teológico e espiritual, padre Antonio
via sentido em tal comportamento. Cristo perdoara seus algozes e, com isso, salvara
suas almas. Mas isto, perante Deus; Cristo tinha o mandado divino e queria dar o
exemplo. Porém, perante a Humanidade, seus algozes não foram e nem poderiam ser
absolvidos, pois, do ponto de vista humanista - e padre Antonio era um humanista
alinhado às raízes filosóficas que são cultivadas desde Erasmo e Thomas Morus -, a
tortura é inadmissível e é, também, um crime imprescritível.
A estadia no inferno de Guantânamo narrada por Taquinho de maneira tão objetiva,
detalhada e lúcida, somada ao talento especial de escritor que o padre desde cedo
reconhecera no jovem, era, assim, por demais importante para ele naquele momento,
apesar da carga de tragédia e tristeza que o escrito lhe trazia pessoalmente. Porém –
considerava - para a Humanidade e para os estudiosos como ele, aquele documento
significava um verdadeiro tesouro.
76
Capítulo 29
Já dissemos antes e agora repetimos: não é nosso propósito tratar a questão das
barbáries de Guantânamo e prisões similares. Confiamos que os mais competentes na
matéria o façam de modo mais conseqüente, hoje e no futuro. Se o leitor quiser se
aprofundar na questão, há inúmeros trabalhos de boa cepa disponíveis na Internet,
inclusive sobre as muitas “coincidências” dos fatos registrados no pós-11 de
setembro de 2001 – a “Lei Patriota” de Bush, as guerras, as perseguições religiosas e
racistas, as diversas e mal afamadas prisões, a legalização da tortura e etc – com os
das duas Santas Inquisições, a medieval e a espanhola. Recomendaríamos, por
exemplo, os trabalhos do escritor e historiador canadense Michel Chossudovsky, em
particular o intitulado O 11/9 e a Inquisição Americana, disponível em português no
sítio Resistir. info.
Vamos continuar com padre Antonio, na leitura do restante do documento deixado
pelo nosso herói. Ia pela madrugada quando, enfim, leu as últimas linhas das laudas
finais do manuscrito. A terceira parte do texto, que encerra o relato principal, custoulhe quase um maço de cigarros. Um hermeneuta como nosso padre não ficaria à
margem de uma vírgula sequer daquele texto. Soube encontrar e decifrar nele quase
toda a informação que poderia transmitir, mesmo as coisas que o autor não explicitou
mas eram passíveis de análises e deduções hermenêuticas, semiológicas ou
subliminares.
Padre Antonio foi capaz até de calcular a idade do preceptor de Taquinho, que ele
estimou ter sido um sufi, um dervis ou um clérigo de alta cúpula da resistência
iraquiana, uma vez que sabia não haver hierarquia religiosa no credo muçulmano.
Calculou ser a idade do sufi mais ou menos a mesma que a dele, e quase acertou: ele
completara 75 anos e o sufi 77, quando encontrou Taquinho pela primeira vez.
O decorrer da parte final do escrito foi para o hermeneuta uma enxurrada de
informações de alta relevância sobre tudo que acumulara de conhecimento em sua
vida de estudioso. Aquele texto como que potencializara as conexões de saber que
foram sendo construídas por ele nos estudos e pesquisas que levou a cabo,
despertando até as que se mantinham em estado de hibernação, fazia tempo, em sua
consciência. Além do mais, as fagulhas poderosas dessa nova informação, que ele
sabia hermetizada exclusivamente na sua pessoa, provocavam severos curtoscircuitos e alertas em regiões ainda pouco estáveis do processo de decantação e
purificação do conhecimento e da razão. No interior do cérebro do hermeneuta
reiniciou-se o combate da dúvida contra a certeza em certas regiões não totalmente
clareadas, e que o tempo e as necessidades cotidianas mantiveram em trégua.
As duas primeiras partes do texto – de Brasília a Guantânamo, para ficar só nas
coordenadas geográficas, e a estadia nesta última – provocaram sua revolta e
indignação, as mais agudas, mas, ao mesmo tempo, aquelas informações não só
vinham de encontro como confirmavam tudo o que conhecera e pensara a respeito de
toda a realidade, pretérita e atual, que ali via arrolada sob quase todos os aspectos
históricos ou dialéticos.
Porém, a terceira e última parte do texto realimentou no velho padre um penoso
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cisma (kisma, no sentido do rompimento) que desde a sua juventude, quando dos
primeiros contatos diretos e eruditos com a realidade muçulmana e médio-oriental, se
levantaram no interior, não só da sua consciência, como também de sua própria fé
católica.
Naquela última parte, cada linha do relato do jovem autor – que fora como um filho
seu, vivera e crescera em sua paróquia, fora por ele batizado e crismado e dele
recebera a primeira comunhão; mais que isso, o padre desfrutara da convivência de
amizade da mãe dele, do pai, do avô e dele próprio – causava no velho sacerdote uma
gradual e sempre mais sofrida ampliação do pior sentimento que alguém possa ter no
crepúsculo de uma carreira profissional: o fracasso.
Um fracasso que transcendia o pessoal e alçava-se aos limites de tudo em que
acreditara, a que se dedicara e dera o melhor de sua vida. Perguntas do tipo: se a
nossa Igreja estivesse cumprindo a verdadeira missão que a justifica neste mundo,
teria aquele jovem talentoso e promissor se equivocado tanto em sua juventude a
ponto de levá-lo a tão infausto quanto imerecido destino? E, em seguida: teria ele
próprio, enquanto sacerdote, cumprido a sua missão perante aquele jovem que esteve
tanto tempo sob a sua jurisdição confessional?
Lado a lado com tais questões, assomava a comparação, quase invejosa, com o
trabalho meritório e tão bem sucedido do clérigo muçulmano, pois este, sim,
cumprira de fato a sua missão. E, sem dúvida, a partir de uma situação muito mais
desvantajosa que a dele. Mas as comparações não paravam aí, vinham em cascata. O
credo católico e o muçulmano: qual o mais justo e que melhor atende às necessidades
confessionais dos que cultivam ou querem cultivar a fé em Deus?
Nos debates que manteve ao longo do tempo, em pessoa ou em teoria, com certos
pensadores, ele teve de enfrentar críticas severas ao catolicismo que o puseram,
enquanto intelectual de preparo acima da média, em becos sem saída. Era-lhe difícil
contestar teóricos como Weber e Walter Benjamin quando afirmavam que o
cristianismo havia abandonado seus fundamentos originais e se tornara o pilar central
do capitalismo e até do sionismo. Opus Dei... A própria história do cristianismo nada
tem a ver com Cristo, mas tão só com o capitalismo, e este, uma religião em si
mesmo, parasita do cristianismo, como tão bem demonstra Benjamin em um de seus
escritos.
Isto dividira a Igreja Católica em dois blocos: o que mantém o poder institucional e
econômico dela e é conivente com tal situação; e o que se mantém à margem de tais
poderes, mas não abandona a Igreja e seus princípios originais, resistindo à sua
decadência ao aproximá-la do povo humilde, apoiando movimentos sociais e lutando
politicamente contra a pobreza e pelos direitos humanos. São os chamados teólogos
da libertação, e padre Antonio está entre seus precursores no Brasil desde as décadas
de 60/70, no trabalho que fez junto aos marinheiros e portuários, e, mais tarde, ao
lado de Dr. Gusmão, entre os garimpeiros do vale do Rio Doce, libertando-os do
trabalho escravo e insalubre a que eram submetidos. Entre estes, estavam o bom
Cirineu e o jovem Eustáquio, que depois viria a ser o marido de Lourdes e pai de
Taquinho.
A verdade, pensava o padre, é que hoje assistimos à decadência do capitalismo e,
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com ele, do cristianismo. Não é mais possível ocultar o fato de que a Igreja do
Vaticano está mergulhada até o pescoço em escândalos financeiros, de máfias,
pederastias e pedofilias, e, por isso, assistindo passivamente à evasão de seus fiéis e
ao esvaziamento de seus templos. Enquanto isso, o número de adeptos de Maomé
aumenta em todo o planeta, independente de ideologias e sistemas de governo a que
se vinculam ou vivem.
Por sua parte, os sábios e líderes muçulmanos nunca permitiram que sua religião
saísse dos trilhos que lhe deram origem; toda religião origina-se na tentativa de
aperfeiçoamento do homem e da Humanidade, mas a maioria de suas igrejas, tão
logo galgam qualquer espaço de poder, abandonam os preceitos originais e
compactuam com quase tudo o que lhes é contrário, como são os casos da sua Igreja
Católica Apostólica Romana e da maioria das igrejas cristãs de corte reformista,
luteranas ou calvinistas.
O texto do jovem mártir valadarense explica bem por que isso acontece. Os
muçulmanos têm o Jihad; os cristãos “a outra face”. A interpretação equivocada
dessa polêmica postura de Cristo, que só Ele soubera explicar e convencer como
manifestação de altivez e coragem, e não como ato de covardia, foi o que levou
Nietszche a responsabilizar o cristianismo por “dois mil anos de humilhação da
Humanidade”.
Foi quando chegou neste ponto, isto é, no desfecho do texto de Taquinho, que padre
Antonio se viu diante da mais difícil encruzilhada de todo o seu sacerdócio.
Capítulo 30
Ele acompanhara o noticiário pertinente ao caso com bastante atenção e podia intuir
a dimensão do estrago. Diferentemente da Guerra do Vietnã, quando ainda havia
vida inteligente e livre no jornalismo, o Pentágono agora manejava a seu bel prazer
as cifras que comunicava pela imprensa. No Vietnã, tentava minimizar suas baixas e
maximizar as do inimigo. No Iraque, contam como querem as suas próprias, quase
uma por uma, e as do inimigo não lhes importa em nada.
Assim, o reconhecimento de 20 baixas próprias num só evento bélico significava,
para quem sabe ler nas entrelinhas dos códigos comunicacionais, algo muito
superior, transcendental e que nunca será revelado em sua verdade factual.
Durante todo o tempo em que vinha lendo o manuscrito, padre Antonio ia meditando
estratégias para dar conseqüências ao projeto do autor e dos que o assessoraram. Na
falta de um Hélder Câmara, que seria a pessoa ideal para definir um bom caminho de
colocação do documento em instâncias jurídicas e institucionais de um poder capaz
de levar a cabo o projeto, pensava em frei Leonardo Boff, de quem era amigo
pessoal, correspondente assíduo e companheiro de militância.
Porém, ao deparar com o desfecho da tragédia, que, apesar de anunciado e
antecipado lhe foi surpreendente e de enorme impacto, se viu obrigado a repensar
tudo. Estava diante de um problema maior que tudo o que já enfrentara, talvez maior
que o próprio mundo, imaginou. Sequer conhecia algum precedente a que pudesse
79
recorrer e estudar. Como lidar com matéria tão explosiva?
Tal era o texto de Taquinho. Mesmo feito por incentivo de seu mestre e com
assessoria especializada, o autor se revela senhor absoluto do conteúdo de cada linha
que escreveu. Por sua extraordinária capacidade de apreensão de tanto conhecimento
em tão pouco tempo, poder-se-ia dizer que o autor daquele texto era um gênio. Sem
dúvida o era. E pensar que em Valadares ele se via como portador de uma deficiência
vergonhosa – considerou o padre. Talvez, no Brasil, uma criança ou um jovem
perceba assim a virtude da inteligência, eis porque fogem dela como foge o diabo da
cruz! É a cultura ocidental dos nossos dias: o mundo e seus valores pelo avesso
(Eduardo Galeano). Graças a Deus (Allah?), Taquinho livrou-se desses preconceitos
e deu permissão à sua inteligência privilegiada para que se manifestasse e
contribuísse com esta obra prima para o conhecimento humano.
Ele a escreveu com admirável domínio da qualidade que padre Antonio mais
apreciava em qualquer texto: a concisão. Cada palavra era potenciada no máximo de
significação e sentido e combinava-se magistralmente com as demais na impecável
composição do talentoso autor; cada parágrafo era um manancial de conteúdos que
agregavam valores muito para além da narração memorialista dos fatos ou do
interese jurídico proposto. Estudiosos de filosofia, teologia, sociologia, antropologia
e outras ciências humanas e do espírito poderiam extrair dali dissertações valiosas
para o desenvolvimento e atualização de suas respectivas disciplinas. O próprio
padre, na medida em que o ia lendo, projetava a redação de um comentário analítico
e noticioso daquele raríssimo documento, a fim de prefaciá-lo numa futura
publicação.
Se revelado publicamente, o desespero dos que nele são denunciados e
desmascarados se manifestaria, com certeza, na forma que sempre lhes ocorre diante
de toda e qualquer verdade bem expressada que lhes ameaça: a tentativa de
desacreditá-lo como obra de encomenda ou teleguiada. Pois é só o que fazem eles no
labor insano que praticam: atribuir aos outros seus próprios defeitos, equívocos e
delitos, incluindo-se os seus crimes.
Assim, o problema se lhe apresentava em duas frentes distintas e sem solução à vista.
Num primeiro plano, teria a Igreja Católica interesse ou autoridade suficiente para
defender o ato final protagonizado pelo jovem mártir? Ou ela mesma seria a primeira
a condená-lo como pecador e terrorista, diante de Deus e dos homens? Estaria o
Vaticano no rol do sionismo cristão, como insinuou o preceptor de Taquinho num de
seus discursos que foram transcritos em partes ou em citações no corpo do
memorial? Opus Dei... Taquinho menciona membros dessa “ordem secreta cristã”
como assistentes convidados de sessões de tortura por que passou. Padre Antonio
conhecera de perto o rosto dessa fera ultra-reacionária, auto-intitulada “Obra de
Deus”, que tomou conta dos espaços de poder no Vaticano e nas hierarquias católicas
quase todas, entre as mais influentes. Seria necessário dissolver até as mais flexíveis
e rasas estruturações teológicas para aceitar que tamanho cinismo possa se tornar
uma obra de Deus, e não dos homens - pensava.
“Tudo, até o mal, é obra de Deus”, eis o fácil sofisma desses fundamentalistas, como
eram chamados no jargão acadêmico (“de fundamental mesmo, nessa gente, só o
80
egoísmo” – costumava ironizar sua falecida irmã, que era historiadora). Com muitos
deles padre Antonio tivera sérios entreveros e os mais poderosos se tornaram seus
inimigos figadais dentro da igreja, no Brasil e no exterior.
No extremo oposto, “tudo, até Deus, é obra dos homens”. Com esses não lhe era tão
difícil o diálogo. Apesar de ateus convictos, padre Antonio conservava na memória
bons quebra-paus com alguns deles, a seu ver “cabeças duras, mas boas”. Certa vez,
na casa do professor e ensaísta católico Edgard da Matta Machado, em Belo
Horizonte, levara uma discussão com um deles enquanto chupavam jaboticabas
dulcíssimas no quintal. “Dê-me uma só prova da existência de Deus”, disse-lhe o
homem, tentando derrubá-lo. Padre Antonio escolheu uma das mais belas jaboticabas
a seu alcance e a ofereceu ao seu contendor: “Prove esse pequeno fruto e diga-me se
não há algo mais que mera nutrição e prazer do paladar na relação entre você e ele.
Você não pode negar que há algo de sublime, de divino, nesta relação, a não ser que
seja um insensível ou um teimoso irrecuperável. Algo ocorre ali que você não pode
explicar, porque transcende a ambos enquanto seres cósmicos. Os místicos
identificam nisto ‘a chama da vida’, a energia original, o ki, como dizem os chineses,
ou o djin, para os indianos. E não me venha dizer que é obra dos homens. ‘As
relações são mais reais e mais importantes que as coisas que relacionam’, diz um
provérbio asiático colhido por Ernst Fenolosa, um lingüista inglês que estudou a
cultura oriental. Concordo que são dos homens as criações mitológicas de Deus ou
dos deuses. Mas não há como negar que algo divino existe de fato na criação do
kosmos e dos homens, e isto se revela principalmente nas relações mais sublimes que
se estabelecem entre ambos. É o que faz com que o kosmos esteja contido inteiro
nesta pequena jaboticaba, em especial, no momento em que você a degusta”.
Padre Antonio via na terceira parte do texto de Taquinho uma bela demonstração
dessa sublimação relacional, no plano do espírito – a inteligência em aliança com a
fé! Como já constatara desde o início da leitura, havia no texto uma transcendência
que o levava muito para além da peça judicial, do memorial. A cada linha, o texto
evoluía para um texto de descoberta, revelador de regiões do espírito e da
consciência nunca antes visitadas e relatadas com tanta precisão e detalhes. Chegou a
compará-lo às cartas de Vespúcio, reveladoras do Mundus Novus, a América, ou aos
escritos de Pigafeta, o poeta que acompanhou Fernão de Magalhães na viagem de
circunavegação da Terra. A diferença é que o nosso herói visitara, em si mesmo e no
interior de sua própria consciência, as regiões mais impalpáveis e insondáveis da
alma humana. Tal como um Orfeu contemporâneo, ele fora a continentes imateriais
inexplorados e os abordou em ignotos limites, em lugares e situações de onde poucos
que lá foram puderam retornar, muito menos relatar. O próprio ato final de imolação,
tal como vem justificado e defendido no texto – e a bem da verdade –, não o
distancia de Cristo; mais o aproxima. Cristo não teria também se deixado imolar após
ter sido barbaramente torturado?
No contraponto, o chamado “poder real” – o poder material, do dinheiro, da mentira
e da guerra, e, porque não dizer, o poder de manipular e de matar pessoas –, queda,
tanto no calvário de Cristo como no de Taquinho, nas mãos desses infiéis. “São
monstros que só têm cabeça e barriga; não têm coração!” – sentenciara certa vez
irmã Margarida, escritora e amiga de padre Antonio, num congresso de escritores
católicos em que participaram juntos, no Paraná. Nestes, é o ódio e não a fé que é
cultivado, lado a lado com a intolerância e a violência. E se o de Cristo durou três
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dias, o que dizer de um calvário de três anos, acrescido do avanço tecnológico dos
“romanos” atuais?
Em toda a sua extensão e complexidade, este raciocínio levava o hermeneuta ao
plano seguinte, a uma questão perfurante: que magnitude de forças aquele
documento, tão contundente quanto demolidor, despertaria se viesse ao
conhecimento público? Ou a um tribunal, mesmo que sob sigilo? Seria possível
avaliá-las, calculá-las? E, depois, enfrentá-las? Como e com quê?
De qualquer modo, ficava demonstrada de forma irrecusável a culpa dos EUA em
crimes de guerra, de tortura e contra a humanidade a partir daquele documento,
independente de seu desfecho. Não só poderia se comprovar autêntico e veraz com
muita facilidade diante de qualquer tribunal como nenhum juiz digno deste cargo
poderia rejeitar o fato de que, do ponto vista jurídico, do chamado Direito Positivo,
foram os próprios EUA, por sua arrogância e prepotência, a causa principal dos atos
da personagem central do atentado.
Assim mesmo, seria tolice ou ingenuidade contar com a prevalência da razão numa
época em que a hipocrisia e o cinismo dominam as instituições em todos os níveis e
em graus tão elevados que estas sequer se vêem chamadas a dar explicações ao
menos razoáveis dos fatos que se desenrolaram em Nova York, no 11 de setembro de
2001. Ali, abriram-se as comportas do descaramento absoluto e do absolutismo mais
bárbaro e cruel, jamais registrado na história. Invasões como as do Iraque e
Afeganistão, atos bélicos de enorme importância mundial e de conseqüências
previsíveis como catástrofes humanitárias e imprevisíveis para o futuro da
Humanidade, são justificadas com mentiras primárias, incapazes de enganar uma
criança.
Neste contexto – meditava o padre – a própria ONU se tornara mero ornamento
dispensável no chamado “concerto das nações”. Perdera até a natureza política que a
caracteriza enquanto instituição e por pouco não se deixa levar ao ridículo. Por
pouco? Mas não fora esse mesmo congresso, que se postula como a mais alta
instância da representação política mundial, que, por pressão abertamente sionista,
votou uma resolução proibindo a Humanidade de questionar a existência do
“holocausto” judeu na Segunda Guerra? A resolução não informa, mas é de se
questionar: qual será a pena para os que a infrigirem? A excomunhão?
Mesmo a mais de três séculos do vexame histórico com Galileu, que até hoje
ridiculariza a sua igreja – refletia o padre – esses desatinados não percebem que tais
expedientes só fazem escancarar a fraude e, não, disfarçá-la. As verdades históricas
não precisam deles para se imporem à eternidade, elas o fazem por si mesmas. Nunca
faltou quem tentasse desacreditar a existência de Homero, de Shakeaspeare e até de
Cristo. Mas quando lemos a Odisséia ou assistimos a uma apresentação de A
Tempestade é com os autores Homero e Shakespeare que nos relacionamos através
de suas obras. E o que dizer de alguém que não existiu e foi capaz de dividir toda a
História em antes e depois d’Ele?
A madrugada já ia alta e um redemoinho de pensamentos girava na cabeça do velho
erudito. Perguntava a si mesmo: “Por que Lourdes não lhe confiara o documento? Se
o próprio filho dela o citara nominalmente, o que a levara a não atendê-lo?” Para tais
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questões, as respostas não eram difíceis: bastava-lhe imaginar a pobre mãe lendo
aquele texto para entender a dimensão do seu sofrimento (nas especulações de alguns
teóricos, talvez ainda maior que o do filho). Admirava-se que ela o tenha suportado a
tal ponto, sem deixar transparecer tamanha dimensão do insuportável.
Na ponta oposta do mesmo redemoinho colocava-se ele, um padre e militante das
causas progressistas que dedicara a vida a um preparo espiritual e intelectual que o
tornasse capaz de enfrentar as questões humanas mais complexas, naturais e
sobrenaturais.
Repassava em si os atributos que lograra em seu labor que pudessem lhe indicar um
caminho a seguir. Examinava detalhadamente suas relações pessoais nos cleros
católicos e não católicos, na política, na imprensa, na sociedade, o seu cargo de
relator da Comissão de Direitos Humanos de uma postulada Igreja da Libertação, sua
influência regional e nacional.
Assaltava-lhe a dúvida de a própria paróquia não ser capaz de assimilar a dimensão
da questão, mesmo sob a sua orientação. Da cidade, do estado e do país, enquanto
níveis de opinião pública, jamais poderia esperar qualquer coisa em favor da análise
imparcial, da razão e da justiça. São feudos de obediência e bom comportamento sob
os ditames e a desinformação propagada pela mídia hegemônica, de propriedade dos
que se julgam “os donos da opinião pública”.
Quem poderia ser assim tão presunçoso para se julgar proprietário da opinião alheia?
– especulava o padre – Há quem diga que certos “sábios” do Sion, sete deles, não
mais. E seus seguidores, decerto. Com certeza, em transes de delírios, pois na
presunção, ao que se sabe, nunca se hospedou sabedoria nenhuma.
No centro do redemoinho a pergunta, por sinal, a mesma que afligiu dona Lourdes,
cada vez mais repetida e pontiaguda: “Que fazer?”
Nem pensar em escrever e tentar publicar uma denúncia, um protesto, mesmo sem
dar nomes e situações precisas. Havia quase dois anos que não publicava em veículos
de alcance significativo. Nos anos 60 e início dos 70, mesmo sendo perseguido e
procurado pela ditadura militar ainda se via publicado em veículos importantes de
oposição, alguns de alcance nacional, sob o pseudônimo Gil Vieira de Matos, e, até,
por vezes, um texto de opinião num jornal da grande mídia. Gil era o seu codinome
na resistência, e os dois sobrenomes homenageavam Padre Vieira e Gregório de
Matos, dois célebres padres católicos brasileiros, também escritores, que admirava,
entre outros de mesma verve, como o “Sátiro de Barbacena”, Padre Correia de
Almeida. Mas, depois da década de 1980, já anistiado, seus escritos só encontravam
espaços em pequenas publicações de resistência e, mais recentemente, em panfletos
ou sites de movimentos sociais. No último artigo que escreveu, recusado por uma
revista de circulação nacional dita “de resistência”, havia o seguinte trecho, do qual
agora se recordava:
“O mundo foi colocado por eles em estado de guerra contínua e por diversas
maneiras jamais experimentadas. É, antes de tudo, uma guerra contra toda e qualquer
manifestação de vida inteligente e culta dentro e fora dos limites do que consideram
como o império deles. É ver seus porta-vozes na televisão, ler seus jornais e revistas,
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ouvir as bobagens sonoras que propagam como ‘música’ e assistir aos seus filmes
idiotas para nos vermos imersos no reino da estupidez e da mediocridade com que
assolam o planeta sob o pretexto banal da ‘globalização’. Hoje, tal pretenso Império
acha-se no direito de não reconhecer limites geográficos e nacionais; a presunção do
seu núcleo de poder, que se pretende invisível e em covarde anonimato, é a de que o
planeta é de sua propriedade exclusiva, e a Humanidade composta de cabeças de
gado, inclusive para o abate.”
Padre Antonio não estava insone, estava extremamente ocupado. Não dormiu
naquela noite e nem se sentia cansado quando, enfim, nas primeiras luzes da aurora e
com os ruídos da cozinha e do refeitório se fazendo mais nítidos, decidiu-se.
Capítulo 31
- Cirineu, o que temos a fazer agora deve ficar rigorosamente em sigilo. Ninguém, a
não ser nós dois, pode saber de nada. Posso contar com você?
- O padre já sabe que sim...
- Jura por Deus?
- Percisa invocá o Santo Nome?! Minha palavra já num basta?
- Basta!
- Istá dada!
Quando se decidira pelo que fazer, padre Antonio percebeu que se não tivesse
encontrado o documento, este teria se perdido em pouco tempo. Dona Lourdes não
sabia que o plástico é péssimo invólucro para se conservar papéis, tecidos e
madeiras. Com o tempo, sabia-o o velho padre, a ausência de arejamento faz
desenvolver-se internamente um fungo capaz de destruir o objeto ou os papéis. Por
isto, ele recorreu ao armário de velharias da paróquia, que ficava no corredor do
segundo piso da casa, perto da porta de entrada dos seus aposentos, e nele encontrou
um velho saco de esmolas, usado nos tempos de padre Maurice, feito em pele de
cordeiro tingida de preto e com a cruz cristã gravada em ouro, ainda visível, apesar
de desbotada. A caixa de dona Lourdes, com o manuscrito da mesma forma em que
fora encontrado, coube justa, dentro e bem no fundo dele, com sobra para dobrá-lo
sobre si mesmo e fechá-lo hermeticamente valendo-se do seu próprio cadarço de
couro, e deixando a cruz visível e bem centralizada na parte superior do novo
invólucro. Agora, sim, “per omnia, saeculae saeculorum”, pensou o padre ao
amarrá-lo com firmeza.
- Sabe aquela muda de imbaúba que eu pedi a você para retirar do lado de fora da
cerca do cemitério, Cirineu? Ela ainda está por aí?
- Eu ia levá pro meu rancho, mas inda istá aqui, prantada num vaso véio pra num
morrê.
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- Arrume outra para o seu rancho, Cirineu, por que, desta, nós vamos precisar agora.
Afinal, foi idéia sua. Quero que você a plante bem no meio do cemitério, no encontro
das duas ruelas. E, perto dela, em local onde possamos depois recuperar, eu peço a
você que enterre este objeto – e mostrou a ele o embrulho de couro.
- Ah, ago’a sim, Padre – retrucou Cirineu olhando o embrulho – com a cruis de
Cristo fica mió no campo Santo. Se o sinhô contá três passo do tronco da árvre, indo
bem no meio da rua qui vai pro nascente, e ali cavá cinco parmo terra abaxo, ela vai
istá lá, bem interradinha, mió qui dexô do’a Lurde, qui Deus lha tenha (fez o sinal da
cruz).
- Eu mesmo vou levá-lo para o depósito e deixá-lo no armário de ferramentas, daqui
a pouco, antes de ir ao refeitório para o café da manhã – disse o padre – Tenho de
levar uns paramentos para a lavanderia numa sacola e vou levá-lo dentro dela,
escondido. Você sabe como são as paredes daqui, Cirineu, são cheias de olhos e
ouvidos curiosos.
- O padre tem toda razã! Se saio cum isso daqui ê’es num tira mais os óio de mim
nem do imbruio inquanto num sobé ondé qui vô pô ele.
- Temos de concluir tudo hoje mesmo, agora de manhã, de preferência enquanto
todos estiverem no refeitório para o “jornal da paróquia”. Amanhã a prefeitura vai
começar a obra, e você vai orientar o pessoal para fazer o calçamento a partir do
centro do cemitério, em volta do canteiro da imbaúba. Eles vão calçar as ruas com
paralelepípedos e isto vai dar uma segurança maior ao nosso segredo. A cova da
azaléia de Lourdes você deixa pra fechar na hora em que todos puderem observá-lo.
O plano de padre Antonio era muito simples: precisava garantir a preservação do
documento em segredo para ganhar tempo. Em julho, iria participar de um encontro
em Belo Horizonte, no qual frei Leonardo Boff estaria presente. Eles então
conversariam pessoalmente sobre o assunto e traçariam um plano detalhado. Quando
o documento precisasse aparecer, era só cavar naquele lugar e resgatá-lo. No
decorrer desse tempo, estaria completamente seguro, ele confiava na palavra de
Cirineu. Chegou a trocar correspondência com o frei - pelo correio, claro, e não via
e-mail -, e a agendarem um encontro reservado em Belo Horizonte, entre os dois,
para tratarem de um assunto que padre Antonio apenas informou ser sobre um
documento “altamente relevante para as nossas lutas em prol dos Direitos Humanos
mas que deve ser mantido severamente confidencial até que seja traçada uma
estratégia segura para revelá-lo”.
Porém, padre Antonio faleceu na semana anterior à do encontro em Belo Horizonte.
Não foi por causa do cigarro, nem por problemas de saúde; foi um acidente. Ao
entrar na velha banheira de louça inglesa que padre Maurice usava nos seus banhos
de imersão semanais, e sobre a qual padre Sinfrônio mandara instalar depois um
chuveiro, padre Antonio escorregou e bateu forte com a cabeça na beirada da
banheira.
Não morreu na hora, passou dois dias em coma no hospital antes do óbito por
traumatismo e fratura craniana. Esses dois dias contribuíram para uma elevada e
prestigiosa audiência ao seu enterro, que surpreenderia a ele próprio. Não tão
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concorrido como o de dona Lourdes, mas com uma importante presença de
autoridades políticas e eclesiásticas vindas da capital e de vários estados, incluindo
frei Leonardo Boff. Este chegou a indagar a padre Belizário sobre um documento
relativo a direitos humanos de que lhe dera notícia o falecido padre. Não sabendo do
que se tratava, padre Belizário colocou à disposição do frei a pasta e os arquivos de
padre Antonio, autorizando-o a levar por empréstimo o que encontrasse neles.
Os paroquianos, os valadarenses de classe média e o povo humilde também
compareceram em massa, este último segmento mobilizado pelo Sindicato dos
Garimpeiros do Vale do Rio Doce, que o homenageou publicamente como “Membro
Fundador de Honra” e batizou o seu auditório com o nome dele. A oligarquia local e
regional não compareceu, é claro; era adversa e temia aquele que chamavam de
“padre político” ou “padre comunista”, e que lhe dera tantas dores de cabeça.
O sobrinho veio de Santos com a esposa e os sete filhos, pela primeira vez, e chegou
a tempo de coordenar e dar providências para que os ritos e cerimoniais fúnebres
fossem dignos do tio. Deixou também transferidos e legalizados os bens pessoais do
padre em Valadares, incluindo duas contas bancárias, em favor do Lar das Crianças.
Quase um ano depois, foi a vez de Cirineu, vitimado por um câncer na cabeça, que,
segundo especulações médicas, foi causado pelo excesso de sol a que se expunha em
seu trabalho. Da descoberta do mal ao falecimento foram três longos meses de
internações e sofrimentos, e ele se recusou a ir para São Paulo, onde poderia fazer
uma operação. Na última visita que lhe fez no hospital, Graça aproveitou-se da
temporária lucidez do paciente para tentar arrancar dele algo sobre “o troço que
desenterrou na cova de dona Lourdes e levou pro padre, pouco depois de ela morrer”.
– Dei minha palavra pro padre – respondeu o bom homem –, e ele istá cum ela na
otra vida. Num posso dizê nada!
Seu enterro foi humilde mas também com alto comparecimento do povo pobre da
região e dos garimpeiros. Como sabemos, Cirineu fora um daqueles que padre
Antonio libertou do trabalho escravo e o empregou na paróquia. Deixou uma terrinha
boa nas margens do Doce que ainda sustenta a viúva e a filharada.
Nesse interregno, padre Belizário assumiu a paróquia e mudou radicalmente a sua
orientação política e administrativa. Afastou-a dos teólogos da libertação e
aproximou-a da hierarquia católica, do alto clero e da Mitra belorizontina. Fez da
paróquia uma empresa, informatizando-a e “modernizando-a”, com a terceirização de
serviços (o cemitério, o estacionamento, o arquivo, o refeitório e a cozinha), aluguel
de imóveis (incluindo a casa de dona Lourdes); até a torre do templo foi locada para
uma companhia de telefonia celular. Providenciou as aposentadorias de Graça e
Cirineu; dispensou e indenizou Luzia e os demais empregados. Doou toda a
biblioteca para uma universidade católica que havia sido inaugurada em Valadares.
Logrou desvincular a casa paroquial do tombamento e fez-lhe uma reforma de tal
ordem, interna e externa, que a descaracterizou quase completamente dos pontos de
vista histórico e arquitetônico. Com a colocação de vidros blindex fumê no lugar das
velhas janelas de pinho-de-riga, ar condicionado central, aplicação de carpetes sobre
as tábuas corridas, revestimento de fórmica sobre madeiras nobres e portas,
substituição das velhas fechaduras, louças, ferragens e lustres, instalação de
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banheiras de hidromassagem, portarias eletrônicas envidraçadas e outras
“modernidades” de mau gosto, o vetusto imóvel de nítida inspiração gaulesa e artdécco dos anos 20 se tornou um modernoso monstrengo, um híbrido de casa antiga
reformada e motel de luxo.
Passando a contar com forte apoio político, o calado, mas ágil e diligente novo
pároco forçou e apressou o acordo com a Vale do Rio Doce sobre os direitos de dona
Lourdes, e o conseguiu sob sigilo judicial. As línguas afiadas dizem que o acordo
montou em grana preta, mas nenhum centavo ficou no Lar das Crianças, cuja
administração a paróquia - depois de ter os valores do acordo e dos aportes deixados
por padre Antonio integralmente recebidos, e de ter zerado o caixa -, transferiu à
Prefeitura e à União, que, em convênio, passaram a pagar aluguel pelo velho imóvel
e honorários por serviços permanentes e eventuais prestados pela paróquia à
instituição.
Nos planos governamentais, a instituição deverá receber um novo nome. Algo como
Centro Municipal da Infância Dona Lourdes Varela ou similar, desde que
homenageando sua mais popular diretora (com a conveniente omissão do sobrenome
de seu pai, claro).
As três viúvas também aceitaram o acordo, igualmente sob sigilo. Ao que parece,
deram-se muito bem. Todas mudaram-se de Valadares com as respectivas famílias.
Duas moram em Miami e a outra na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Foram de tal ordem os montantes recebidos pelos envolvidos na causa, que o
“escritório de Valadares” ganhou sede nova e própria de três andares em terreno
nobre do centro da cidade, a qual, segundo as línguas, foi quase toda paga com os
honorários que lhe coube.
Taquinho foi esquecido. Só o amigo da agência de turismo e o Joãozinho da Bicicleta
ainda se recordam dele de vez em quando. Ninguém faz a menor idéia de que ele foi
um dos brasileiros mais influentes na história contemporânea universal, e seus
conterrâneos nem imaginam que aquele jovem aparentemente fútil e alienado
acabara se tornando grande homem e herói festejado no outro lado do mundo.
Mas antes de falecer padre Antonio teve a sabedoria de mandar Cirineu providenciar
discretamente a inscrição do nome do jovem na lápide negra do túmulo de seus pais e
avós, logo abaixo do de sua mãe, assim eternizando-o:
Lourdes Raghid Varela
*G. Valadares, 1953 †G. Valadares, 2005
José Eustáquio Raghid Varela (in memorian)
*Belo Horizonte, 1978 †Bagdá, 2005
Na paróquia e na cidade ninguém se deu conta disso ou questionou a inusitada
inscrição. E o valioso documento que informa sobre a verdade histórica implícita
entre aquelas datas e cidades permanece lá, enterrado num local onde só os que já se
foram para a outra vida sabem dele.
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Capítulo 32
O atentado de três de janeiro de 2005, com a violenta explosão no restaurante dos
oficiais aliados, na Zona Verde, em Bagdá, mantido sob rigoroso sigilo quanto a seu
alcance e força letal, foi considerado pela Inteligência dos EUA como o maior até
então sofrido por suas forças de guerra depois do atentado de Beirute contra uma de
suas bases, em 23 de outubro de 1983, onde foram reconhecidas as baixas mortais de
241 marines.
A mídia controlada pelas forças invasoras teve de divulgar alguma coisa, pois a
explosão foi de tal ordem e em tal lugar que não poderia ser explicada de outra forma
senão pelo reconhecimento de que fora um “atentado terrorista”. As primeiras
informações não davam como certo se fora um “atentado suicida” ou se fora um
ataque de mísseis sobre o local. As cifras publicadas falavam de cerca de 20 mortos e
perto de uma centena de feridos. Nunca foram divulgados os números exatos daquela
ocorrência, e o assunto só foi manchete por três ou quatro dias, até que se publicou
um comunicado da “organização terrorista Al Qaeda” assumindo a responsabilidade
pelo ataque, após o que sumiu dos noticiários. Nem os motores de busca na Internet
sob controle do Pentágono foram poupados; todas as páginas que informaram sobre
aquele acontecimento foram suprimidas da rede.
Mas a verdade é que as pelo menos 218 pessoas atingidas pela explosão (o total
poderia chegar a 223), e, logo em seguida, por uma chuva de mísseis, quase todas
estavam dentro do restaurante e algumas poucas nas imediações. Apenas 46 foram
recolhidas com vida dos escombros e, destas, somente 12 sobreviveram com graves e
irreparáveis mutilações e lesões em várias partes do corpo. Ao todo, e com certeza
forense, foram mortos 187 oficiais de elite, nove funcionários militares e dez civis.
Entre os sobreviventes, cinco civis e sete militares. Cinco outras pessoas são dadas
como desaparecidas, porém não houve comprová-las como vítimas do atentado.
Tais números poderiam ter sido maiores não fosse a localização do edifício do
restaurante num pequeno parque, a uma boa distância dos prédios mais próximos, e o
horário de almoço, com pouca gente circulando pelo parque ou nas imediações.
Assim mesmo, o parque ficou quase totalmente destruído e as construções próximas
sofreram danos consideráveis. Muitos dos habitantes de edifícios fronteiriços ao
parque tiveram traumas psíquicos e ferimentos de maior ou menor gravidade.
As investigações surpreenderam os serviços de Inteligência das “forças aliadas”
quando começaram a surgir informes de que fora utilizado um explosivo líquido pelo
“terrorista suicida”. Um garçon civil - contratado para a ocasião e única pessoa
presente no recinto da explosão que, por milagre, sobrevivera, mesmo tendo perdido
um braço e uma perna -, descreveu o que vira no “suicida”, bem de perto. Tal tipo de
explosivo era um dos segredos mais bem guardados e vigiados da indústria bélica
dos EUA e não poderia ter sido vazado nem fornecido por ela. Então, alguém mais
possuía essa tecnologia e não se tinha a menor idéia de quem nem de como ela fora
fornecida aos mentores do atentado.
Outro mistério era o de que o DNA do principal suspeito, um jovem deficiente físico
que trabalhava como serviçal para o empresário do restaurante, não fora encontrado
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em lugar nenhum nos escombros da catástrofe, apesar de as gravações do sistema de
segurança o terem registrado, com nitidez, transportando um lote de garrafas para o
andar do restaurante, minutos antes da explosão. As câmeras internas do andar de
cima não eram bem posicionadas e só uma delas gravou a sua entrada no recinto,
porém, pelas costas, andando ao lado do buffet e em direção à coluna central do
edifício. Ali, num gesto desafiador, ao que parece feito de propósito para uma das
outras câmeras de segurança, detonou o explosivo, logo após dar uns gritos em
língua inglesa, mas que não foram gravados com nitidez suficiente em meio à
balbúrdia que tomou conta do local para que se pudesse ouvir ou decifrar o que
dissera, a não ser as duas últimas palavras: “... save you”. Neste ponto, surge novo
mistério: a deficiência física do jovem serviçal era exatamente a impossibilidade de
falar; de acordo com a sua ficha médica, era mudo por ter tido a língua decepada
muitos anos antes. Suspeita-se que ele transportava algum dispositivo de voz
gravada, pois o garçon sobrevivente, que conhecia bem Khalid, não teve a menor
dúvida em apontá-lo como autor do atentado.
Quanto aos organizadores do feito, abria-se outra difícil incógnita. A resistência
poucas vezes atuara belicamente nas áreas centrais de Bagdá. Escaramuças eram
registradas com freqüência nos arredores e na estrada do aeroporto, mas os atentados
com explosivos que se produziram dentro da cidade no último ano foram obras de
serviços secretos aliados. A Inteligência não tinha pistas dos responsáveis nem sabia
por onde começar a procurá-los. Possuía vídeos de segurança da mãe do suspeito que
foram obtidos na portaria da Zona Verde, mas ela sempre usava hábitos longos,
capuz e véu, de modo que sequer podiam descrevê-la. Ela havia desaparecido com
seus pertences da residência do empresário, também morto no atentado, e era a única
pessoa que poderia informar algo de útil às investigações.
Contudo, muito para além das baixas sofridas e das investigações, o Pentágono teve
de considerar a derrota estratégica que pôs em risco todo o investimento bélico,
político e econômico feito até então naquela guerra, obrigando-o a rever a totalidade
do planejamento futuro e as suas ambições de conquistas.
A resistência iraquiana se constituíra num empecilho muito acima do calculado pelas
forças invasoras, e muito superior ao do exército regular de Sadham Husseim. Este,
logo ficara claro antes mesmo da ocupação de Bagdá, era apenas um disfarce para
iludi-las. Só depois da invasão perceberam que os preparativos do Iraque foram
feitos basicamente na estruturação e fortalecimento militares da resistência para a
guerra assimétrica. Quando George W. Bush declarou o “fim da guerra”, três meses
depois de começada, nem um militar no front acreditou nele. Naquele momento,
todos tinham experiência de combate com a resistência mais que suficiente para
saberem que a guerra apenas começava e não seria nada fácil.
Entre as principais características daquela força de resistência estavam a
surpreendente capilaridade de sua organização em todo o país, a inescrutabilidade de
seus recursos e métodos, e, principalmente, a invisibilidade de seu comando central.
Foram precisos intensos estudos dos melhores especialistas e o uso de avançada
tecnologia satelital e de informática para desvendar a aparente anarquia das
movimentações brownianas de suas ações bélicas, distribuídas por todo o teatro da
guerra. Descobriu-se que eram, na verdade, táticas de uma sofisticada e bem azeitada
estratégia de guerrilha cuja organização era, com grande chance de certeza,
89
centralizada em Bagdá. De início, pensaram que seria em Fallujah, mas, depois do
maciço bombardeio naquela cidade mudaram de idéia. Porém, isto permanece como
uma conclusão teórica. Na prática, por mais que se tentasse desvendar como e onde
tão eficaz coordenação se produzia na capital, sem nunca ter sido sequer ameaçada
nem bloqueada, tudo resultou inútil. Os esforços nisto despendidos, com recursos
ilimitados, sequer chegaram na ante-sala daquele Estado Maior invisível.
As prisões de Abu Ghraib, Guantânamo, Kandahar e Diego Garcia eram lotadas de
guerrilheiros, militantes e combatentes civis iraquianos que só conheciam o último
ou o penúltimo segmento dos tentáculos dessa incrível organização militar. Um
prisioneiro feito em batalha só sabia dizer quem lhe havia entregue sua arma e este,
por sua vez, que havia apanhado as armas num determinado lugar; um porão ou
garagem de um prédio abandonado, um furgão estacionado num beco, um depósito
de cargas ou de mercadorias.
As ordens chegavam a eles por diferentes meios, podia ser um menino de recados ou
um office-boy, um anúncio de jornal, por celular e até pelo correio. Dos segmentos
seguintes, de quem deixara lá as armas, as munições e os explosivos, quem enviara
as ordens e as coordenadas, não se tinha a menor idéia. Mil códigos e costumes
cifrados, em que se misturam religião, tradições, hábitos e a língua árabe garantiam a
segurança das remessas e a certificação das mensagens que iam rapidamente do
comando central até os extremos mais distantes da organização, passando sem
problemas por todas as barreiras e unidades de vigilância dispostos em terra, na
capital e em todo o país, no espaço aéreo e até no espaço sideral (satélites).
A impressão era a de que toda a população do país, inclusive certos setores e
próceres que se diziam ou se faziam de aliados aos invasores, tinha participação ativa
na resistência. Foram infrutíferas as tentativas da Inteligência em infiltrá-la. No
máximo, lograram algumas apreensões de velhos arsenais e, não raro, a prisão de
reles criminosos que lhes passavam como “líderes da resistência”, e eram, na
verdade, pessoas que a própria resistência queria descartar. Essa carência de
informações confiáveis resultava na insegurança das tropas aliadas e na matança
indiscriminada e desnecessária de civis, fatores que estavam minando perigosamente
a moral das tropas e a opinião pública mundial, apesar do controle quase absoluto
que o comando aliado possuía dos meios de comunicação de grande alcance em todo
o mundo.
Sem conhecer o inimigo mais profundamente era difícil chegar a algum lugar. Além
disso, os segmentos centrais da teia da resistência eram autodestrutíveis e
extremamente perigosos. Seguir um sinal suspeito de telefone celular poderia
significar uma armadilha mortal. Outro celular era colocado no caminho pronto para
detonar um explosivo quando passassem. Apreender ou revistar um veículo,
igualmente. Vendo-se sem saída, um militante envolvido com os setores internos e
mais próximos aos grandes segredos estava bem preparado e nunca vacilava no
acionar de um dispositivo explosivo que sempre trazia consigo para a eventualidade.
E levava para a morte os que estivessem com ele e em torno dele sem titubear, ainda
que entre eles se encontrasse a própria mãe ou seus filhos.
Depois de uma série de estudos e reuniões de cúpula, a solução recomendada foi a de
preparar um grupo de oficiais de elite exclusivamente para atuar em Bagdá no que
90
ficou sendo chamado de “front cultural”. Um grupo composto de profissionais
experientes que fossem capazes de penetrar o ambiente e a atmosfera cultural própria
daquele povo, que não necessitasse de intérpretes para dialogar e se entender com os
iraquianos, e que estivesse a par de seus costumes, suas astúcias, seus códigos, seus
métodos.
Duzentos homens e mulheres foram escolhidos a dedo para a missão, entre os
melhores dos melhores. Durante quase três anos se enclausuraram em local secreto e
sob o mais rigoroso sigilo para um intenso treinamento dado por instrutores
israelenses e muçulmanos sauditas e jordanianos, estes últimos tidos como aliados
confiáveis pelo Pentágono, mas mantidos sob severa vigilância durante todo o
período e depois eliminados secretamente.
Todo este contingente super preparado sequer entrou em ação! Fora um erro
inadmissível reunir 187 de seus componentes num só lugar, em plena Bagdá,
pensando estar disfarçando-os de oficiais comuns em eventos de rotina. E os 13
outros foram assassinados ou seqüestrados por profissionais no mesmo dia, em
diferentes lugares do mundo, inclusive nos Estados Unidos. Sete foram encontrados
mortos e seis estão desaparecidos, provavelmente mortos também. Isto dava outra
certeza terrível à Inteligência das forças invasoras: a resistência iraquiana a infiltrara
até a medula. Tal certeza comprometia a hierarquia militar aliada de ponta a ponta,
incluindo o alto comando; até o comandante-em-chefe ficava sob suspeição.
De fato, daquela data em diante, foram notáveis o recuo do poder invasor e o avanço
das forças de resistência, além da perda de viabilidade da invasão do Irã e da derrota
iminente no Afeganistão. Caíram muitos altos oficiais aliados e todo o alto comando
militar dos EUA no Iraque, até mesmo o comandante-em-chefe, almirante William
Fallon. Contudo, e ao que se saiba, jamais se desvendou a identidade de um só
quadro infiltrado.
As “forças aliadas” foram perdendo terreno em todo o Iraque até o ponto em que,
hoje, negociam uma retirada “honrosa”, mas em dificílimas condições. Os planos de
redesenho do mapa político do Oriente Médio foram definitivamente para o espaço.
E a hegemonia militar e econômica dos EUA passou a ser contestada e agora se
dissolve em frangalhos.
Estava o autor desta história escrevendo estas linhas quando ocorreu o episódio da
sapatada no presidente dos EUA, George W. Bush, em plena Bagdá. Tal foi a
repercussão do fato que, à primeira vista, parece que tudo o que se podia dizer sobre
ele já foi dito. Contudo, este autor não viu um só comentário a respeito da capacidade
e da competência da resistência iraquiana em executá-lo com tamanho sucesso.
Acreditar que aquela fora uma ação isolada de um audacioso ou maluco é ser
demasiadamente ingênuo. É que o alvo prioritário do ato nunca fora o rosto do
famigerado presidente da nação invasora, mas, sim, a mídia hegemônica a seu
serviço, e este foi atingido em cheio.
O jornalista que o executou deve ser um Mujahid bem treinado e, pelo enorme risco
de sua missão, estava preparado até para morrer. O brilhantismo desta operação do
Jihad consiste em ter-se infiltrado no anel de segurança mais próximo do chefe de
Estado mais bem protegido do planeta no momento em que este dava entrevista
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coletiva, ao vivo, para a mídia mundial a seu serviço sem a preocupação do filtro do
delay, entre o momento real e o da transmissão, que normalmente é usado nestes
casos por razões de segurança. Este cuidado não foi tomado daquela feita, e a
resistência iraquiana estava lá, ciente disto e pronta para agir e se aproveitar outra
vez do erro do inimigo. No momento exato em que ocorreu o ato, a sua imagem em
vídeo era reproduzida mundo afora, sem nenhuma chance de bloqueio, e com ótima
qualidade.
Este último dado, a ótima qualidade do vídeo, é importante a se observar e a se
considerar com mais atenção. Entre as dezenas de câmeras presentes, a que melhor
registrou o ato parecia estar ensaiada para ele. Estava muito bem posicionada, cobriu
com precisão a primeira sapatada e, em seguida, abriu o ângulo exata e
coordenadamente, sem tremor ou vacilo causados pela surpresa, para cobrir a
segunda com perfeição absoluta.
Se no Vietnam a imagem do helicóptero decolando da embaixada dos EUA em
Saigon, com pessoas penduradas nele, no desespero da fuga, foi a do encerramento
humilhante da barbaridade que lá, então perpetraram; no Iraque, a imagem das
sapatadas no tirano fundamentalista ocidental, responsável pelo regime mais cruel e
genocida que se registrou em todos os tempos, ficará para a história como a que dá
início ao fechamento, igualmente humilhante, do ciclo de atrocidades que ali e em
boa parte do mundo perpetraram durante o mandato absolutista daquele facínora.
São signos que marcam o crepúsculo de um império cujo esplendor não foi mais que
uma fraude imposta e virtualizada pela força do terror e através dos meios de
comunicação, numa época que os historiadores futuros poderão considerar como de
obscurantismo, horror e grandes desgraças; muito semelhante, em essência, ao
período conhecido como Idade Média. Poderá a história batizá-la, no futuro, de Idade
Mídia.
Capítulo 33
Da varanda do apartamento que fora ocupado por Taquinho, o sufi, acompanhado
por Fadil, pelo clérigo xiita e por seis dos principais líderes da resistência, assistiram
ao acontecimento com a ajuda de uma luneta e vários binóculos. Apenas Fadil
preferiu observá-lo a olho nu. Zahirah ficou rezando na sala de orações. Ainda que
envolvida e fazendo torcida para o sucesso da missão, seus olhos lacrimejavam.
Uma bateria de mísseis de curto alcance fora posicionada e estava pronta para
disparar no caso de insucesso do Mujahid, e também no caso de sucesso, para
ampliar o estrago, prejudicar as investigações e confundir os peritos.
Ao dar uma hora em ponto nos relógios acertados com o do celular do Mujahid, foi
observada a potente e luminosa explosão provocada com o novo explosivo líquido
usado, pela primeira vez, pela resistência iraquiana. O poder destrutivo que se
verificou ali causou grande espanto até nos que o previam em teoria e por
informações técnicas. Depois da enorme bola de fogo, do estrondo e dos tremores do
solo que a sucederam, espessos rolos de fumaça negra brotaram do local.
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Nesta mesma hora, o chefe máximo da resistência deu, por telefone celular, a ordem
de disparo dos quatro mísseis apontados para o mesmo alvo, os quais caíram nele
com precisão, em novas e fortes explosões, ampliando o caos e a destruição.
Não se comemora um ato bem sucedido do Jihad. O que se faz é orar em
agradecimento a Deus Todo Poderoso e louvar o encontro da alma do mártir com
Ele. Por isso, tão logo os olheiros posicionados em boas condições de observação
confirmaram o sucesso da operação, todos se dirigiram, compenetrados, à sala de
orações.
Mas o que não se pôde saber – pois ninguém sobreviveu para contar e nem as
câmeras de segurança lograriam registrar em detalhes – é que o Mujahid subiu
cautelosamente, degrau por degrau, a escada que dava para o restaurante e lá surgiu,
ao lado do balcão do bar, como um espectro no restaurante superlotado de oficiais
fardados. Poucos deram atenção àquela figura insólita e ofegante, vestindo aquele
suspensório esdrúxulo e trazendo algo na palma da sua mão direita, de que não tirava
os olhos. Sem tirar os olhos daquele objeto, ele viu a coluna central do edifício à sua
frente, a uns dez metros de distância. O som-ambiente fazia o fundo musical com um
dos hits de Madonna que, no passado, fora o seu predileto.
Estava exausto, pensou em detonar a explosão ali mesmo, mas, num supremo esforço
a mais, decidiu caminhar até a coluna. A essa altura, algumas pessoas começavam a
se mover e a se levantar, olhando para ele curiosas. Durante o percurso até a coluna,
ele cruzou com um garçon que o viu bem de perto. Este, ao perceber o que tinha
diante de si, jogou sua bandeja no chão e saiu correndo em direção à escada.
Foi então que o pânico tomou conta do lugar. Taquinho já se encontrava ao lado da
coluna quando viu numa das mesas à sua frente um rosto que conhecia bem. Veio-lhe
então à mente a última coisa a fazer.
Percebeu que tinha o controle da situação e que ninguém mais poderia impedi-lo de
executar a operação. Sentia-se repentinamente em excelente condição física, a
adrenalina parece ter agido sobre o seu estado e ele se via em tão perfeita harmonia
com o seu corpo que era como se tivesse renascido. Estava calmo e sereno, sem
temores nem aflições. Naquele segundo, passou-lhe pela mente toda a sua existência;
foi como se o vaso da memória tivesse explodido e tudo o que havia nele aflorasse
simultaneamente, fazendo um redemoinho de luzes em sua mente, que tinha como
centro o escapulário – era o poder na palma da sua mão; o poder total, sobre tudo e
sobre todos.
Não que se sentisse um Deus; ele sentia que Deus havia penetrado em seu ser e
tomado conta de todo ele. Sentia como se seu porte e sua postura fossem se tornando
altivos, sua figura se agigantando em relação ao cenário que se amesquinhava; já não
estava mais lá.
Somente seus olhos ainda ali permaneciam e fuzilavam os raios cataclísmicos do
poder dos deuses, ou de Deus, como ele cria e tinha fé.
Tudo isto lhe ocorrera enquanto ele mirava, não mais o escapulário, mas aquele
rosto, olho no olho, esperando ser reconhecido pelo responsável por sua prisão, o
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homem que balançara a cabeça afirmativamente diante de uma foto na primeira vez
em que fora torturado, o qual era, então, o chefe da seção de Psiquiatria de
Guantânamo – a pessoa mais odiada pelos prisioneiros daquele inferno nos tempos
em que Taquinho lá fora introduzido, e cujo nome era o mais citado na segunda parte
do seu memorial.
Ao se ver, enfim, reconhecido na expressão de pavor que tomou conta do rosto
daquele homem, o Mujahid usou toda a força dos seus pulmões:
- Coronel Morgan! – gritou, silenciando o ambiente em transe de horror - I came
here to save you.
Em seguida, num gesto dramático, por ele coreografado e ensaiado inúmeras vezes e
ali encenado com altivez, voltou-se com irreverência para a câmera de segurança
mais próxima, levantando o punho esquerdo cerrado, e estendeu o outro braço na
direção dela como a oferecer-lhe o que trazia na mão. E fechou o escapulário.
FIM
Nota do autor
No decorrer da revisão desta novela, houve a posse do novo presidente dos EUA,
Barack Obama. Como primeiro ato de seu mandato, ele determinou o fechamento da
prisão de Guantânamo e outras prisões similares mundo afora, implantadas na gestão
anterior. O mundo agradece. É preciso, porém, advertir que as feridas abertas no
tecido social da Humanidade por tais instituições do terror não são cicatrizáveis; e os
danos, irreversíveis. Assim, se faz necessário identificar e punir os responsáveis,
além de indenizar as vítimas e seus familiares, para que recuperemos em parte a
condição de seres civilizados – uma vez que a perdemos diante de tamanha barbárie
–, e para que tais atrocidades jamais se repitam.
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