Baixar este arquivo PDF
Transcrição
Baixar este arquivo PDF
Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura ANTI-HERÓIS DE MEDO E INCERTEZA: O PROTAGONISTA JOVEM DA DÉCADA DE 1950 E SUAS INFLUÊNCIAS NA CONTEMPORANEIDADE Pedro Felipe Martins Pone Orientadora: Carla de Figueiredo Portilho Teses ou dissertações recentes RESUMO O objetivo deste trabalho é discutir os protagonistas jovens da década de1950, através dos romances The Catcher in the Rye e On the Road, em relação aos seus contextos de publicação e à influência que suas leituras venham a ter tido nas gerações Para tal, caracterizamos que Holden Caulfield, Sal Paradise e Dean Moriarty são anti-heróis, em oposição ao modelo heroico construído na História estadunidense, através dos heróis trágicos e épicos clássicos e das reflexões sobre os discursos do Puritanismo, do Transcendentalismo e de desbravamento do Oeste. O herói estadunidense é um defensor das liberdades individuais, desde que estas não atrapalhem o sistema vigente; o antiherói, contudo, confronta o sistema e, por isso pode ser reprimido. Por fim, investigaremos os traumas referentes à traição do Sonho Americano, contida nas promessas masculinas de estabilidade, que foram feitas às gerações posteriores à Segunda Guerra. Essa traição ocorreu a partir de eventos como a Guerra do Vietnã e o escândalo de Watergate e esses traumas fizeram com que o anti-herói se reinventasse, tornando-se herói de si mesmo e agindo em favor dos próprios interesses, como o fazem os personagens principais de The Human Stain (2000) que simbolizam o novo rumo do anti-herói na virada do século XX para o XXI. PALAVRAS-CHAVE: Literatura estadunidense; anti-herói; pós-guerra; Sonho Americano; masculinidade. Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [467] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura Em seu importante ensaio sobre a figura anti-heroica nas obras europeias, o professor Victor Brombert constata que a literatura está abarrotada de personagens fracos, incompetentes, dessorados, humilhados, inseguros, ineptos, às vezes abjetos – quase sempre atacados de envergonhada e paralisante ironia, mas às vezes capazes de inesperada resistência e firmeza. (BROMBERT, 2001, p. 14) Não podemos negar o fato de existir um quê de sedutor, uma fragrância forte e atrativa exalando desses personagens que, muitas vezes, estão longe de serem os bastiões das características mais louváveis que a sociedade nos impõe. O anti-herói lê a palavra nobreza, um dos adjetivos mais comuns aos atos de um ‘verdadeiro herói’, com outra lente, age da sua forma e, normalmente, não é de natureza má, como o sistema vigente de sua época tenta pintá-lo, pois se uma pessoa que pensa de maneira distinta ao que lhe é ensinada já dá trabalho, imagina montes e montes de pessoas comportando-se de maneira questionadora? O anti-herói é uma figura de coração revolucionário, cujo discurso, vez ou outra, encontra paredes importantes nas quais faz um eco que soa como música aos ouvidos do oprimido e, ao mesmo tempo, como ruído estridente aos ouvidos do opressor. Nosso intuito, neste trabalho é mostrar o percurso do anti-herói da década de 1950, cujo alcance foi tão grande que as consequências de suas ações – ou da falta delas, em alguns casos – reverberam no século XXI. Para traçar esse percurso, devemos retomar um pouco das matrizes históricas e culturais dos Estados Unidos, pois é nos pensamentos Puritanos e Transcendentalistas – e em seus subprodutos ao longo da história – que o código moral de individualismo do herói estadunidense é moldado. Teremos como material para nossa discussão o sermão “A Model of Christian Charity”, de John Winthrop, no qual a missão de servir de exemplo para o mundo, de ser uma “cityupon a hill” é apresentada aos puritanos que desembarcariam do navio Arbella nas novas terras. Comentaremos, também, um pouco da história dos exploradores do Oeste dos Estados Unidos, área repleta de heróis independentes e empreendedores que, assim como o fez no início da colonização o falastrão capitão John Smith, encaram o desconhecido, o selvagem, a wilderness que antes era vista como aterrorizante para os Puritanos. Veremos, também, as influências dos ideais Transcendentalistas – principalmente dos ensaios “Self-reliance”, de Ralph Waldo Emerson e “Civil Disobedience”, de Henry David Thoreau – deram ao sujeito estadunidense as capacidades de crítica e combate a uma sociedade e a um governo que Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [468] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura podem tentar manipular e suprimir as vontades individuais. Esses elementos da formação heroica farão parte de nossas reflexões no capítulo 1, “O protagonismo na Terra da Liberdade” que, além disso, abordará um importante momento do século XX, a década de 1920, uma das épocas mais frutíferas do Sonho Americano, e cujo fim fora marcado pela quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, a qual se seguiu a Depressão, na década de 1930, momento de dura recessão econômica que se contrapunha à abundância e consumismo da década anterior. A elevação dos Estados Unidos ao patamar de potência econômica, como consequência da participação do país na Segunda Guerra Mundial, será o tema do capítulo 2, “Das certezas hipócritas à paralisia certeira: a jornada anti-heroica de Holden Caulfield” e Holden, protagonista do romance The Catcher in the Rye (1951), de J.D. Salinger é essencial para iniciarmos nossa análise sobre o protagonista jovem da década de 1950. Veremos como o olhar de Holden, capaz de identificar o que é ou não artificial, o que é ou não phony nos indica uma plastificação da década imediatamente após a Segunda Guerra, sendo a grande marca desse período a vida perfeita nos subúrbios de classe média e com empregos estáveis. Holden prevê uma ameaça à individualidade, mas sua imaturidade, sua vontade de não crescer faz com que ele não seja tão apto a lidar com esta situação como fizeram os Beats. A geração Beat será discutida no capítulo 3, “A estrada e o (anti-) protagonismo dos Beats: Sal Paradise e Dean Moriarty”, no qual mais dois anti-heróis jovens – os protagonistas de On The Road (1957) cujos nomes estão indicados no título do capítulo – nos mostram uma das soluções que o indivíduo busca para lidar com o seu apagamento pelo reforço do Sonho Americano na década de 1950. A narrativa de On The Road, de Jack Kerouac, nos traz a luz o anti-herói neopícaro estadunidense, cujas fontes são as narrativas picarescas espanholas dos séculos XVI e XVII – que discutiremos a luz das reflexões do professor Mario M. González, no livro A saga do anti-herói – e a busca pela abundância do Oeste feita nos Estados Unidos durante os séculos XVII e XVIII. No entanto, cair na estrada, como fizeram os protagonistas de On The Road e como fizeram boa parte dos Beats é arrumar uma saída individual pra uma aflição coletiva, um problema que os movimentos de protesto pelos Direitos Civis e contra a Guerra do Vietnã tentariam resolver. O capítulo 4, “Medo e incerteza na contemporaneidade: quando os anti-heróis crescem de mãos atadas”, apresenta nossa conclusão, tendo como base as influências as Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [469] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura ações do jovem protagonista da década de 1950 tiveram no restante do século XX. A partir de uma análise do romance The Human Stain(2000), de Philip Roth, cotejado com alguns traumas que frustraram a promessas de progresso e de masculinidade feitas após a Segunda Guerra Mundial, como a Guerra do Vietnã e o escândalo de Watergate, perceberemos que a inaptidão de combate à padronização do protagonista de The Catcher in the Rye e a fuga dessa padronização pelos protagonistas de On The Road, não acabaram, metamorfoseando-se nas ações de Coleman Silk e Faunia Farley, personagens principais de The Human Stain, que transformaram o anti-herói, na virada do século XX em um herói de si mesmo, que reinventa apropria identidade para lidar com os problemas pessoais e sociais. Feita esta introdução, pretendemos expor, aqui, alguns aspectos do mapeamento do histórico do herói estadunidense, presente no primeiro capítulo da dissertação Antiheróis de medo e incerteza, uma vez que os capítulos de análise e o de conclusão já foram apresentados em outras edições do SAPPIL e estão, em parte, publicados em outros periódicos. O herói clássico: breve comentário O que seria o ‘clássico’ ao se mencionar a expressão herói clássico? Seria aquilo construído pelo cânone e, portanto, importante devido à intervenção política dos críticos? Ou, então, um herói que, por ser antigo, ganhou o nome de clássico – quando comparado a heróis que seriam mais recentes? Não podemos escapar, infelizmente, de afirmar o clássico como algo de destaque, algo que está acima dos outros que não são clássicos. Não que seja proibido definirmos para nós mesmos quais são os nossos gostos e reforço, aqui, que o problema é fazer disso uma verdade absoluta. É nesse personagem clássico, para o qual a crítica muitas vezes dá o status de insuperável, que começaremos a coletar as características mais importantes de um ‘herói universal’, que é fundamental não apenas para entender a construção do mito do herói nos Estados Unidos, mas também, para uma série de outros heróis na cultura ocidental. Ao pensarmos numa personagem com destaque na literatura, as imagens mais vivas são as dos heróis épicos e trágicos. Quanto ao percurso que faz do herói épico o que ele é, Flávio Kothe afirma quea narrativa épica clássica, adotando o ponto de vista do herói trata de metamorfosear a negatividade em positividade e o herói épico tem, por Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [470] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura isso, um percurso fundamentalmente mais elevado do que o do herói trágico, cujo percurso é o da queda. (KOTHE, 1987, p. 12) Contudo, ele não deixa de ressaltar a importância do herói trágico, pois “[q]uanto maior a sua desgraça [a do herói trágico], tanto maior a sua grandeza. A sua desgraça não é mera choradeira, mas duro aprendizado da ‘condição humana’, transcendendo a doutrinação que lhe é inerente.” (KOTHE, 1987, p. 13) Portanto, o que nos interessa, aqui, é essa condição apriorística que torna tanto o herói épico, quanto o herói trágico, fortalezas inabaláveis que, mesmo na queda, não perdem sua grandeza. O herói na antiguidade é, portanto, aristocrático e altivo: qualquer fraqueza sua, na epopeia, será superada e dará a ele a grandeza que merece; quanto maior o tombo do herói trágico, mais se tem certeza da altura de sua queda, que só existe, pois, na tragédia, o destino do herói quase sempre é inevitável. Outro exemplo de herói importante para nosso estudo é o herói cavaleiro ou, como aponta o estudioso canadense Northrop Frye, o herói da estória romanesca:Em todas as idades a classe social ou intelectual dominante tende a projetar seus ideais nalguma forma de estória romanesca, na qual os virtuosos heróis e as belas heroínas representam os ideais, e os vilões as ameaças à supremacia daqueles. (FRYE, 1973, p. 185) Essa “projeção de ideais” da sociedade dominante, como veremos a seguir, deuse em boa parte das ideologias que construíram a imagem heroica estadunidense. Além disso, há semelhança entre os percursos narrativos do herói romanesco e do herói estadunidense. Para Frye, a forma perfeita da estória romanesca é claramente a procura bem sucedida, é uma forma assim completa e tem três estados principais: o estado da jornada perigosa e das aventuras menores preliminares; a luta crucial, comumente algum tipo de batalha na qual o herói ou o seu adversário, ou ambos, devem morrer; e a exaltação do herói. (FRYE, 1973, p. 185) É possível adicionar às três etapas acima a ameaça ao estado de harmonia social pré-estabelecido e a apresentação do vilão, que culminaria no chamado do herói e, com essa adição, teremos uma fórmula que se aplicaria, por exemplo, a uma série de acontecimentos históricos do século XX nos Estados Unidos. Se pensarmos na Segunda Guerra Mundial, na Guerra Fria, na Guerra do Vietnã e, mais recentemente, nas invasões ao Afeganistão e ao Iraque, “a forma perfeita da estória romanesca” de Frye adapta-se com precisão a esses eventos. Em todos eles, teremos fascistas, comunistas ou terroristas – todos pintados com as tintas do não civilizado – apresentando-se de Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [471] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura maneira antagônica. Ao ameaçarem a tranquilidade da nação mais poderosa do mundo – que tomou para si a missão de servir de exemplo para o restante do planeta, como veremos a seguir –, foram combatidos em guerras – muitas delas sem sentido, como no caso do Vietnã – para que, a partir daí, houvesse a confirmação da superioridade dos Estados Unidos perante a barbárie do outro. Estando agora expostos quais aspectos do dito herói clássico com os quais a construção heroica estadunidense dialoga, iremos nos debruçar sobre os elementos históricos e literários das matrizes culturais estadunidenses que moldaram essa figura de destaque, que possui a bravura do herói épico, a altivez e o orgulho desmedido do herói trágico e a marca do redentor do herói da estória romanesca. A construção da mentalidade heroica nos Estados Unidos Não há, aqui, nenhuma pretensão de dar conta de um todo cronológico histórico, posto que discutir de maneira minuciosa o que se passou desde os relatos dos primeiros colonos em Jamestown até os dias de hoje seria exagerado e não corresponderia ao recorte que nos propomos a fazer nesta pesquisa. Sendo assim, é possível detectar três momentos cruciais, que serão discutidos com mais fôlego, de influência da história e da cultura estadunidense na formação do herói. São eles: a presença puritana, no início da colonização; a expansão para o Oeste, durante os séculos XVIII e XIX; o pensamento transcendentalista. A influência puritana na cultura estadunidense é tamanha, que (re)visitar o período de ouro dessas ideias é um exercício que não se apresenta como exclusivo a leigos. Em ensaio intitulado “The Puritanlegacy”, em um de seus livros mais importantes, From Puritanism to Postmodernism, os professores Malcolm Bradbury e Richard Ruland constatam que: A imaginação puritana, reconhecidamente, era central à natureza da escrita Americana.Um dos motivos para isso era o fato de que esta imaginação trouxe ao novo mundo não apenas o senso judaico de milagre e de promessa religiosa – o “Sonho Americano” que ainda é muito lembrado na literatura moderna, nada menos do que no famoso fim de O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, de 1925 –, mas a visão da tarefa e da natureza da escrita propriamente dita.(RULAND & BRADBURY, 1992, p. 9, tradução minha) Devemos adicionar que essa promessa religiosa e a tarefa de escrever, para os puritanos, caminhavam lado a lado e essa parcela do Sonho Americano, edificada pelo pensamento Protestante, é, sem dúvida, fundamental. Os puritanos acreditavam que tinham recebido de Deus a missão de prosperar e de levar Sua palavra às áreas menos Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [472] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura civilizadas, criando, no novo continente, um local à imagem e semelhança dos Seus desígnios. Essa crença, conhecida como Destino Manifesto, criou uma das dicotomias mais importantes da história estadunidense: eu vs. outro. Era necessário para que os colonos tivessem uma visão altiva de si mesmos, nas novas terras, que a imagem do outro personificasse um inimigo que era, em muitas ocasiões, tido como demoníaco. Mais uma vez, vemos uma manobra muito próxima do que se tinha nas narrativas de cavalarias ou nas estórias romanescas, nas quais Frye afirma que o inimigo “pode ser uma criatura humana comum, mas quanto mais próxima a estória romanesca estiver do mito, tanto mais os atributos da divindade aderirão ao herói e tanto mais o inimigo assumirá qualidades míticas demoníacas.” (FRYE, 1973, p. 186) Por mais que a palavra herói não seja a mais apropriada para determinar o que eram os puritanos que chegavam ao novo continente, o caráter redentor heroico estava estruturalmente presente no discurso messiânico incutido em cada colono. O inimigo era, de fato, demoníaco e estava representado na imagem dawilderness. Fora de suas vilas, espaços tidos como desenvolvidos, a natureza era ameaçadora e era nas florestas que morava o diabo. Havia uma necessidade expressa de um antagonista, pois se Deus mostra sua grandeza perante Satanás, os servos de Deus mostrariam sua grandeza perante os servos do grande inimigo. Esse inimigo só mudou de nome com o tempo, mas sempre manteve uma característica marcante: era o outro não cristão. Primeiro foram os índios e depois as bruxas – no século XX, podemos falar de soviéticos e árabes – que ocuparam o posto do infiel. Era a missão do bom cristão manter-se longe desse corpo estranho. Um dos grandes responsáveis por institucionalizar o Destino Manifesto foi John Winthrop, famoso governador da Colônia de Massachusetts. Em seu célebre sermão “A Model of Christian Charity”, proferido aos futuros colonos a bordo do navio Arbella, Winthrop disse: “Devemos nos considerar uma cidade sobre o monte. Os olhos de todas as pessoas estão sobre nós.” (WINTHROP, 2003, p. 216,tradução minha). Ter o julgamento de todas as outras pessoas e o reconhecimento da inevitabilidade desse julgamento como algo destinado por Deus punha os futuros habitantes do novo mundo no mesmo patamar de grandeza dos heróis clássicos: seus êxitos seriam louváveis como os êxitos do herói épico; suas falhas seriam indeléveis, como as falhas do herói trágico. Esta é, também, uma situação em que os de fé dissidente aportavam em novas terras e tinham que mostrar para a opressora Europa que eles conseguiriam prosperar. Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [473] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura Assim como os hebreus que deram um basta a sua escravidão no Egito, os puritanos deram um basta à submissão religiosa à Inglaterra. Está aí, de acordo com Crassnow e Haffenden, um exercício de tipologia que é “[u]ma resposta ao problema de incorporação das escrituras hebraicas ao novo cânone bíblico.”(CRASNOW & HAFFENDEN, 1983, p. 31, tradução minha) Assim como era preciso incorporar a tradição hebraica à Bíblia, também era importante incorporar a tradição bíblica ao dia-a-dia. A tipologia, portanto, foi a estratégia discursiva utilizada para a equiparação da história do povo hebreu com a dos colonos esperançosos do Arbella, pois “os escolhidos de Deus cruzaram o rio para entrar na Terra Prometida da qual escorriam leite e mel. O mais recente povo escolhido de Massachusetts estava prestes a cruzar o oceano para entrar na terra prometida entre os rios Merrimack e Charles.” (BALDWIN, 2005, p. 20, tradução minha). Por fim, os puritanos estabeleceram, na cultura estadunidense, as bases messiânicas do Destino Manifesto, assim como jogaram a carga negativa em tudo que não era cristão e chamaram essa alteridade dewilderness. Veremos, contudo, que, em outro momento da história, o outro foi conquistado e desbravado e que a floresta deixaria de ser o local do medo e a residência de Satanás para se tornar a esperança de progresso ainda não explorados, cuja bússola apontava para Oeste. Antes de apontarmos os elementos do tratamento quase mítico dado ao Oeste, nos Estados Unidos, devemos regressar bastante no tempo, até o momento em que foi escrito General History of Virginia, New England and Summer Isles (1624), por John Smith, que Bradbury e Ruland (1992) chamam de o primeiro livro em inglês da América. Smith, que obteve reconhecimento nos últimos tempos por sua representação como par romântico da índia Pocahontas, em desenho animado homônimo dos estúdios Walt Disney, além de ser um importante cronista das primeiras vivências dos colonizadores que aportaram no novo continente com a Virginia Company, escreveu esses relatos construindo a si mesmo de forma corajosa e empreendedora. Isso pode ser percebido, por exemplo, na passagem de General History of Virginia em que Smith enfrenta cerca de 200 nativos e sai vivo deste confronto: Smith, mal fazendo ideia do que aconteceria, foi pego nos pântanos, na nascente do rio,vinte milhas deserto adentro, teve seus dois homens mortos (como esperado) dormindo perto da canoa, enquanto ele próprio estava os seguindo à procura de comida e que, ao ver que estava cercado por 200 selvagens, ele matou dois, ainda se defendendo usando um selvagem seu guia, o qual prendeu no seu braço com sua jarreteira, usando-o como escudo, Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [474] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura ainda assim, ele foi atingido na coxa de raspão, teve muitas flechas presas nas suas roupas, mas nenhum ferimento mais grave, até que finalmente eles o levaram como prisioneiro. (SMITH, 2003, p. 108-109, tradução minha) O relato acima, matizado com o colorido do exagero, nos faz entender que Smith não é só autor do primeiro livro, mas, também, primeiro herói autoconstruído. Diferentemente do que se tem nas literaturas mais antigas e ditas clássicas, a literatura estadunidense é fruto de uma nação fundada num momento em que a ideia Ocidental de tradição já existia e há muito tempo. Smith é uma invenção, assim como muito do que culturalmente admite-se hoje como ‘tradição estadunidense’, mas, mesmo assim, dialogava com o passado e olhava a grande tradição cavaleiresca do herói europeu, não como linha de chegada, mas como ponto de partida: O problema da invenção da América ainda continuava; sem um passado indígena de força suficiente para sustentar uma tradição de raízes folclóricas ou uma língua distinta, ou para criar gêneros artísticos, apenas como um senso de missão, frequentemente combinado com um senso de privação cultural (...). Portanto, os americanos mitologizavam a Europa de maneira reversa: ela era o passado do futuro da América, era estática perante o seu dinamismo, mas era cultura para o espaço nu e democrático da América.(BRADBURY & TEMPERLEY, 1983, p. 7, tradução minha, grifos meus). O que deve chamar nossa atenção, contudo, é o fato de Smith ter sido um protótipo de self-made man, cujas grandes características são a bravura, autoconfiança e empreendedorismo. É o fruto ideológico desse sujeito criador de si próprio que vai explorar as vastas terras dos Estados Unidos rumo ao Oeste, superando o medo da tenebrosa wilderness e conquistando a natureza. A missão torna-se levar a linha da fronteira cada vez para mais longe do Leste e para que isso aconteça, o explorador vai enfrentar animais selvagens, matas fechadas e nativos furiosos, pois, para continuar servindo de modelo, de “cidade sobre o monte”, era preciso que os Estados Unidos fossem territorialmente mais desenvolvidos que a Europa. Quando se pensa no Oeste dos Estados Unidos, temos um estereótipo já consagrado pelas artes, com elementos como tiroteios, caubóis, paisagens desérticas, cactos e cidades nas quais os xerifes se preocupavam com índios rebeldes e com ladrões de diligências. Esse é o Velho Oeste, inspirado na Febre do Ouro, presente em filmes como Três Homens em Conflito, de Sergio Leone, ou em romances como No Country for Old Man, de Cormac McCarthy. Eloína Prati dos Santos ainda adiciona queo faroeste cinematográfico “é com certeza o maior propagador dos mitos do velho Oeste e Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [475] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura ainda é tido como a expressão mais popular, e até mais perfeita, tanto do cinema hollywoodiano quanto do imaginário estadunidense.”(SANTOS, 2007, p. 271) O explorador do Oeste ou frontierman vale-se da imagem do homem empreendedor. Assim como John Smith, ele encara o desconhecido e leva o avanço ao que, para os puritanos, era uma área de medo. Não achemos, no entanto, que havia uma nova cultura tipicamente do Oeste surgindo conforme a fronteira se expandia, pois, mesmo havendo uma série de influências próprias do desbravamento que foram incorporadas ao Oeste, os valores do Leste estavam lá, presentes, como nos mostram Burchelle Gray: “A fronteira do Oeste deles não era um limbo isolado dos padrões nacionais de desenvolvimento: era, ao invés disso, uma área de mudança rápida conectada intimamente com a expansão nacional.” (BURCHELL & GRAY, 1983, p. 104, tradução minha) Uma vez mapeado e habitável, e, com o fim da fronteira, no Estado da Califórnia, era necessário fazer com que o Oeste ganhasse população. Já não havia mais o desconhecido, como no século XVIII, os combates épicos entre nativos e colonos tornaram-se cada vez mais raras com o transcorrer do século XIX e a Febre do Ouro, último grande impulso explorador que fez do Oeste uma terra dos sonhos acabou em 1855. Para atrair as pessoas para as novas áreas a Oeste, o governo dos Estados Unidos lançou o Homestead Act, em 1962, no qual um pedaço de até 160 acres de terras previamente demarcadas, era dado a qualquer homem, que fosse chefe de família e maior de 21 anos que quisesse ser dono delas. Era o início de um Oeste mais pacato, menos aventureiro, visto que A estrada de ferro traz, enfim, a chamada “pacificação do Oeste”, possibilitando viagens de Nova York a São Francisco em sete dias, levando camponeses, artesãos, operários, transportando material de construção, escoando a produção da região para o leste. Ao final do século XIX havia cinco linhas transcontinentais e a travessia do continente deixara de ser uma aventura, o oeste torna-se mais acessível, mais integrado ao contexto nacional e converte-se em polo de atração para estadunidenses e estrangeiros. (SANTOS, 2007, p. 271) Entretanto, cabe salientar que esse não foi o final feliz de uma aventura, na qual os heroicos frontiermen tiveram seus pedaços de terra garantidos para si e para as gerações vindouras, pois o Homestead Act não foi tão efetivo e Burchell e Gray apontam que houve quatro motivos para seu funcionamento não adequado: O primeiro foi o alto custo de cultivo das terras que, mesmo sendo de graça, eram de manutenção cara; o segundo foi a falta de preparo para lidar com a terra por parte dos arrendatários, Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [476] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura que não tinham a disposição adequada para viver com os fazendeiros; o terceiro motivo foi a grande parcela de terra que o governo reservou para outros projetos, como negociações com governos estaduais e prêmios a soldados, por exemplo, deixando grande parte das terras de melhor localização ociosa; por último, a baixa dos preços nos produtos agrícolas bem na época do Homestead Act, fazendo com que não houvesse equilíbrio das contas entre o que era gasto pra produzir e o lucro obtido com a produção. Estas últimas observações, entretanto, nada afetaram os frontiermen herdados pelo imaginário estadunidense, o explorador com influências ideológicas do desafio, assumido pelos primeiros colonos. Esse desafio não parou com o avanço da fronteira do Oeste, pois se os puritanos desafiaram a Europa por independência religiosa, e os exploradores desafiaram o desconhecido com o qual nem os puritanos tinham coragem de lidar, o século XIX reservaria, ainda, uma polêmica muito grande para uma doutrina, o Transcendentalismo, que desafiava a sociedade. O Transcendentalismo, grosso modo, refere-se a uma série de ideais filosóficos que se preocupavam com a pureza do indivíduo perante a ordem social, que tinha potencial para corromper esse indivíduo. Alguns nomes consagrados do movimento Transcendentalista são Ralph Waldo Emerson e, influenciado por Emerson, Henry David Thoreau. Em caráter explanatório, para Emerson, o Transcendentalismo olhava além de cada causa – abolição, abstinência, reforma – e procurava, como ele disse em seu ensaio “O Transcendentalista” (1842) “a conexão completa com a doutrina espiritual”. Os significados fundamentais do mundo, ele defendia, eram provenientes de “leis” espirituais que “transcendiam” todos os dogmas e instituições e vinham ao homem através de suas faculdades intuitivas. A divindade está dentro de cada um. (BOLTLAND & LEE, 1983, p. 74 tradução minha, grifos meus). É importante enfatizarmos essa sentença: “a divindade está dentro de cada um”, pois ela foi o mote de “Self-reliance” (1841), um dos ensaios mais importantes publicados por Emerson e cuja influência sobre a formação do herói estadunidense será discutida. Emerson veio de uma família religiosa e, assim como seu pai, foi um sacerdote, formado por uma das escolas de ministros mais tradicionais dos Estados Unidos, a Harvard Divinity School. Assim como outro famoso sacerdote, Cotton Mather, ele iniciou sua carreira na Second Church of Boston, mas, desde seus primeiros sermões, Emerson destacava-se dos outros pastores por ferir a tradição puritana do plaine-style: O Reverendo Ware [veterano de Emerson na igreja] alertou Emerson que o público estava perplexo com sua preferência por empregar os textos bíblicos como ilustrações metafóricas para dar corpo a suas lições espirituais ao invés Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [477] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura de utilizá-los de maneira direta em sua pregação e, quanto a isso, Emerson respondeu que não acreditava em milagres.(BALDWIN, 2005, p. 63, tradução minha). O ceticismo do jovem sacerdote não se estendia só aos milagres. Um dos momentos fundamentais na formação ideológica de Emerson foi seu encontro com Thomas Carlyle, na Escócia. Foi a partir de Carlyle – com quem o jovem intelectual estadunidense já trocava cartas –,que Emerson começou a moldar seu pensamento sobre o indivíduo em relação ao coletivo; foi em sua interação com Carlyle que “Emerson chegou a um entendimento da insistência kantiana na subjetividade intensa com o meio de alcançar sabedoria e a um entendimento da ênfase de Kant na mutualidade da razão e da percepção sensorial.” (BALDWIN, 2005, p. 65, tradução minha) Ser acima de tudo um pensador, manter a originalidade: está aí muito do pensamento transcendentalista contido em “Self-reliance”. O culto à individualidade dos transcendentalistas guardava suas peculiaridades, se comparado às ideias puritanas ou às características dos frontiermen, por alguns motivos. Primeiramente, não havia nada, nenhuma missão pré-estabelecida por Deus, nem uma necessidade tipológica como estratégia discursiva. Recordemo-nos, mais uma vez, que a divindade de cada um estava dentro de si, o que fazia com que um pensador original seguisse os próprios instintos, ao invés de, meramente, reproduzir ideias alheias. Não havia o senso de conformidade puritano, que tinha como objetivo final uma sociedade modelo. “Nenhuma lei pode ser sagrada para mim a não ser aquela da minha natureza (…) a única coisa certa é o que me constitui, a única coisa errada é o contrário” (EMERSON, 2003, p. 497, tradução minha), afirmava Emerson, afastando qualquer possibilidade de conformismo. Um indivíduo self-reliant questionaria, também, as práticas religiosas: “Em todos os lugares eu sou impedido de encontrar Deus no meu irmão, pois ele fechou as portas do próprio templo e recita fábulas que são principalmente de seu irmão ou do Deus de seu irmão.” (EMERSON, 2003, p. 507, tradução minha). Em segundo lugar, por mais que a valorização da natureza, preconizada pelos transcendentalistas, seja um elemento de aproximação entre eles e os exploradores do Oeste – que tinham que obter um conhecimento de terras inóspitas para poder avançar em sua tarefa de desbravamento – o caráter individual do trato com a natureza se apresenta como o grande contraste. A natureza não deveria ser domesticada em favor do progresso social, mas vista como importante elemento de interação, no qual Deus Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [478] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura também era achado pelo indivíduo. Outro aspecto relevante que aproxima o explorador do Oeste dos ideais transcendentalistas era o valor dado ao sujeito intuitivo, mas com uma diferença importante: a intuição do frontierman objetivava, no fim das contas, a estabilidade – reconhecimento como explorador, novas terras, ouro – algo que o Transcendentalismo não tematizava, pois, de acordo com Emerson, “a estabilidade boba era o duende de mentes pequenas.” (EMERSON, 2003, p. 499, tradução minha). A obra emersoniana inspirou, ainda, uma série de outros intelectuais em sua época, dos quais um, Henry David Thoreau, é destaque, pois, assim como Emerson, seus escritos configuram-se como importante ingrediente na mistura ideológica de formação do herói – e, quando radicalizados – do anti-herói estadunidense. Thoreau escreveu Civil Disobedience em 1849, ano seguinte àquele em que passou uma noite na cadeia por não pagar seus impostos, ato de protesto pacífico em relação à Guerra Mexicano-Americana e à situação de escravidão nos Estados Unidos. A presença transcendentalista no pensamento de Thoreau está na forma como ele desenvolve as tensões entre cidadãos e legislação, ao questionar se “o cidadão, por algum momento, mesmo que minimamente entregou sua consciência ao legislador? Por que cada homem tem uma consciência? Acho que deveríamos ser homens primeiro para, daí nos sujeitarmos a alguém.” (THOREAU, 1971, p. 86, tradução minha). A desconfiança quanto ao governo e a crença no individualismo exacerbado que é construída no texto de Thoreau são as marcas de um senso de ética que deve respeitar o que é certo e não o que é imposto, ou seja, o que é justo de ser sempresuperior ao que é a lei:“se a injustiça é parte necessária da fricção da máquina do governo, deixe-a ir, deixe-a; provavelmente ela ficará mais fraca – provavelmente a máquina se cansará.” (THOREAU, 1971, p. 92, tradução minha). Thoreau acusa qualquer pessoa que aceite passivamente o que lhe é imposto pelas autoridades de cúmplice dessas mesmas autoridades e reforça que o indivíduo pode achar mecanismos para enfrentar o sistema, seja não cumprindo obrigações tributárias, seja, como fez também o próprio Thoreau, escondendo escravos em sua casa como retaliação ao Fugitive Slave Act de 1850. A essência da desobediência civil pode pertencer tanto ao herói quanto ao antiherói e isso se dá no que tange o confronto entre justiça e lei. O herói percebe o que é justo e se guia por isso, ora sendo de acordo com a lei, ora não o sendo. Se pensarmos no herói estadunidense e no fato de ele beber da fonte do herói clássico, sendo, como Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [479] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura este, espelho dos anseios sociais, perceberemos que, nos Estados Unidos, a desobediência civil faz com que o herói procure modificar as injustiças do sistema. O herói nunca é contra a existência de um sistema de regras, opondo-se, apenas, às regras vigentes quando estas são autoritárias O herói estadunidense é um paladino das liberdades dentro do sistema quando este é justo para todos. O próprio Thoreau não se opunha à existência de um governo, ele apenas achava que o indivíduo não deveria mais apoiar o poder público quando este se comportava de forma injusta: “De fato, não é a tarefa de um homem dedicar-se à erradicação de algo errado, mesmo o erro sendo gigantesco, (...) mas é sua tarefa, pelo menos, ter suas mãos limpas.” (THOREAU, 1971, p. 90-91, tradução minha). Um dos lados negativos da desobediência civil – que é o normalmente atribuído ao anti-herói – é justamente a ameaça ao sistema. Não importa o quão justa uma ideia seja, ela sempre será rechaçada se a unidade do sistema for maculada. No caso dos Estados Unidos, onde o individualismo apresentou à população as soluções meritocráticas e capitalistas para os problemas do cotidiano, a desobediência civil só é aceita enquanto for domesticada. A luta a favor dos direitos civis, nas décadas de 1950 e 1960, expressa um pouco do que foi mencionado acima. A demora do governo em ceder aos apelos dos manifestantes relaciona-se ao fato de que parte dos protestos das minorias deu-se no contexto da Guerra Fria. A perfeição capitalista perante o mundo deveria se manter na comparação com o socialismo e, enquanto foi possível não ceder direitos para mostrar a desigualdade, isso foi feito e, mesmo quando uma medida legal foi tomada em favor dos oprimidos, a Lei dos Direitos Civis (1964), ela nada mais foi do que um cala-boca jurídico sem mudanças estruturais. Essas mudanças para uma sociedade mais igualitária são impossíveis dentro do capitalismo, que estimula a competição e eleva o esforço individual a um patamar quase divino. Contudo, algumas migalhas de participatividade são dadas por dentro do sistema e o próprio Thoreau acusa isso em sua opinião sobre o voto que, no fim, acaba sendo apenas um poder falso:“Todo voto é um tipo de jogo, como damas ou gamão, com um leve toque de moral, um jogo com certo e errado, com questionamentos morais; e o ato de apostar naturalmente acompanha esse jogo.” (THOREAU, 1971, p. 89, tradução minha). Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [480] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura Até agora, fizemos um mapeamento de influências culturais, históricas e políticas relevantes para entender o que é o herói estadunidense e, retomando-as, podemos tirar algumas conclusões preliminares. Primeiramente, este herói deve ser protagonista, isto é, deve buscar reconhecimento pelos seus atos, deve servir de exemplo e ser, assim como os puritanos pretendiam, equivalente a uma cidade sobre o monte. Tão importante quanto o papel de destaque em suas ações está o caráter empreendedor do herói, que deve ser um explorador individual, que tateia o mundo e que sabe lidar com o desconhecido, assim como o fizeram John Smith e os exploradores do Oeste, tendo estes seu maior ícone em Daniel Boone, que se tornou personagem recorrente nas dimenovelsdo século XIX. Além disso, o herói deve contestar de alguma forma o sistema vigente. Sua individualidade deve estar acima de qualquer governo. Contudo, essa característica é ideologicamente manipulada para que herói conteste apenas modelos tirânicos de governo. O herói estadunidense padrão é, enfim, um paladino das liberdades individuais e de um sistema de aparência justa, no qual todos os cidadãos e cidadãs terão seu direito à meritocracia garantido. A morada do anti-herói estadunidense do século XX está na contestação do modelo apresentado acima. O anti-herói do segundo pós-guerra surgirá em um momento de falta de individualidade, uma época pós-crise, na qual a retomada da superioridade econômica aconteceu às custas de alguns sacrifícios do indivíduo. Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [481] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura REFERÊNCIAS BALDWIN, Neil. The American Revelation: Ten Idelas that Shaped Our Country from the Puritans to the Cold War. New York: St Martin’s Press, 2005. BOLTLAND, Christine; LEE, A. Robert. New England and the nation. In: BRADBURY, Malcolm; TEMPERLEY, Howard (eds.). Introduction to American Studies. New York, Longman, 1981. BRADBURY, Malcolm; TEMPERLEY, Howard (eds.). “Introduction”. In:_____ (eds.).Introduction to American Studies. New York, Longman, 1981. BROMBERT, Victor. Em louvor de anti-heróis. Tradução de José Laurênio de Melo.São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. BURCHELL, R.A.; GRAY, R.J. “The Frontier West”. In: BRADBURY, Malcolm; TEMPERLEY, Howard (eds.). Introduction to American Studies. New York, Longman, 1981. CRASNOW, Ellman; HAFFENDEN, Philip.New Founde Land. In: BRADBURY, Malcolm; TEMPERLEY, Howard (eds.). Introduction to American Studies. New York, Longman, 1981. EMERSON, Ralph Waldo. Self-reliance.In: BAYM, Nina (ed.). Norton Anthology ofAmerican Literature. New York & London: W.W. Norton & Company, 2003. ERIKSON, Kai T. The shapes of the Devil. In: _____. Wayward Puritans: Astudy in the sociology of deviance. Boston: Allyn&Baccon, 2005. FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos.São Paulo: Cultrix, 1973. KOTHE, Flávio R. O herói. Série princípios. São Paulo: Ática, 1987. RULAND, Richard; BRADBURY, Malcolm.From Puritanism to Postmodernism.New York: Penguin, 1992. SANTOS, Eloína Prati. Faroeste. In: BERND, Zilá (org.). Dicionário de figuras e mitos literários das Américas. Porto Alegre: Tomo Editorial/Editora da UFRGS, 2007. SMITH, John. “General History of Virginia, New England and Summer Isles”. In: BAYM, Nina (ed.). Norton Anthology of American Literature. New York & London: W.W. Norton & Company, 2003. THOREAU, Henry David. Civil Disobedience. In: KRUTCH, Joseph Wood (ed.). Thoreau:Walden and other writings. New York: Bantam Books, 1971. Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [482] Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Literatura WINTHROP, John. A Model of Christian Charity. In: BAYM, Nina (ed.). Norton Anthology of American Literature. New York & London: W.W. Norton &Company, 2003. Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015. [483]