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Anais do VI Seminário dos Alunos dos Programas de
Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF
Estudos de Literatura
ANTI-HERÓIS DE MEDO E INCERTEZA: O PROTAGONISTA
JOVEM DA DÉCADA DE 1950 E SUAS INFLUÊNCIAS NA
CONTEMPORANEIDADE
Pedro Felipe Martins Pone
Orientadora: Carla de Figueiredo Portilho
Teses ou dissertações recentes
RESUMO
O objetivo deste trabalho é discutir os protagonistas jovens da década de1950, através
dos romances The Catcher in the Rye e On the Road, em relação aos seus contextos de
publicação e à influência que suas leituras venham a ter tido nas gerações Para tal,
caracterizamos que Holden Caulfield, Sal Paradise e Dean Moriarty são anti-heróis, em
oposição ao modelo heroico construído na História estadunidense, através dos heróis
trágicos e épicos clássicos e das reflexões sobre os discursos do Puritanismo, do
Transcendentalismo e de desbravamento do Oeste. O herói estadunidense é um defensor
das liberdades individuais, desde que estas não atrapalhem o sistema vigente; o antiherói, contudo, confronta o sistema e, por isso pode ser reprimido. Por fim,
investigaremos os traumas referentes à traição do Sonho Americano, contida nas
promessas masculinas de estabilidade, que foram feitas às gerações posteriores à
Segunda Guerra. Essa traição ocorreu a partir de eventos como a Guerra do Vietnã e o
escândalo de Watergate e esses traumas fizeram com que o anti-herói se reinventasse,
tornando-se herói de si mesmo e agindo em favor dos próprios interesses, como o fazem
os personagens principais de The Human Stain (2000) que simbolizam o novo rumo do
anti-herói na virada do século XX para o XXI.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura estadunidense; anti-herói; pós-guerra; Sonho
Americano; masculinidade.
Anais do VI SAPPIL – Estudos de Literatura, UFF, no 1, 2015.
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Em seu importante ensaio sobre a figura anti-heroica nas obras europeias, o
professor Victor Brombert constata que a literatura está
abarrotada de personagens fracos, incompetentes, dessorados, humilhados,
inseguros, ineptos, às vezes abjetos – quase sempre atacados de
envergonhada e paralisante ironia, mas às vezes capazes de inesperada
resistência e firmeza. (BROMBERT, 2001, p. 14)
Não podemos negar o fato de existir um quê de sedutor, uma fragrância forte e
atrativa exalando desses personagens que, muitas vezes, estão longe de serem os
bastiões das características mais louváveis que a sociedade nos impõe. O anti-herói lê a
palavra nobreza, um dos adjetivos mais comuns aos atos de um ‘verdadeiro herói’, com
outra lente, age da sua forma e, normalmente, não é de natureza má, como o sistema
vigente de sua época tenta pintá-lo, pois se uma pessoa que pensa de maneira distinta ao
que lhe é ensinada já dá trabalho, imagina montes e montes de pessoas comportando-se
de maneira questionadora?
O anti-herói é uma figura de coração revolucionário, cujo discurso, vez ou outra,
encontra paredes importantes nas quais faz um eco que soa como música aos ouvidos do
oprimido e, ao mesmo tempo, como ruído estridente aos ouvidos do opressor. Nosso
intuito, neste trabalho é mostrar o percurso do anti-herói da década de 1950, cujo
alcance foi tão grande que as consequências de suas ações – ou da falta delas, em alguns
casos – reverberam no século XXI.
Para traçar esse percurso, devemos retomar um pouco das matrizes históricas e
culturais dos Estados Unidos, pois é nos pensamentos Puritanos e Transcendentalistas –
e em seus subprodutos ao longo da história – que o código moral de individualismo do
herói estadunidense é moldado. Teremos como material para nossa discussão o sermão
“A Model of Christian Charity”, de John Winthrop, no qual a missão de servir de
exemplo para o mundo, de ser uma “cityupon a hill” é apresentada aos puritanos que
desembarcariam do navio Arbella nas novas terras. Comentaremos, também, um pouco
da história dos exploradores do Oeste dos Estados Unidos, área repleta de heróis
independentes e empreendedores que, assim como o fez no início da colonização o
falastrão capitão John Smith, encaram o desconhecido, o selvagem, a wilderness que
antes era vista como aterrorizante para os Puritanos. Veremos, também, as influências
dos ideais Transcendentalistas – principalmente dos ensaios “Self-reliance”, de Ralph
Waldo Emerson e “Civil Disobedience”, de Henry David Thoreau – deram ao sujeito
estadunidense as capacidades de crítica e combate a uma sociedade e a um governo que
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podem tentar manipular e suprimir as vontades individuais.
Esses elementos da
formação heroica farão parte de nossas reflexões no capítulo 1, “O protagonismo na
Terra da Liberdade” que, além disso, abordará um importante momento do século XX, a
década de 1920, uma das épocas mais frutíferas do Sonho Americano, e cujo fim fora
marcado pela quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, a qual se seguiu a Depressão,
na década de 1930, momento de dura recessão econômica que se contrapunha à
abundância e consumismo da década anterior.
A elevação dos Estados Unidos ao patamar de potência econômica, como
consequência da participação do país na Segunda Guerra Mundial, será o tema do
capítulo 2, “Das certezas hipócritas à paralisia certeira: a jornada anti-heroica de Holden
Caulfield” e Holden, protagonista do romance The Catcher in the Rye (1951), de J.D.
Salinger é essencial para iniciarmos nossa análise sobre o protagonista jovem da década
de 1950. Veremos como o olhar de Holden, capaz de identificar o que é ou não
artificial, o que é ou não phony nos indica uma plastificação da década imediatamente
após a Segunda Guerra, sendo a grande marca desse período a vida perfeita nos
subúrbios de classe média e com empregos estáveis. Holden prevê uma ameaça à
individualidade, mas sua imaturidade, sua vontade de não crescer faz com que ele não
seja tão apto a lidar com esta situação como fizeram os Beats.
A geração Beat será discutida no capítulo 3, “A estrada e o (anti-) protagonismo
dos Beats: Sal Paradise e Dean Moriarty”, no qual mais dois anti-heróis jovens – os
protagonistas de On The Road (1957) cujos nomes estão indicados no título do capítulo
– nos mostram uma das soluções que o indivíduo busca para lidar com o seu
apagamento pelo reforço do Sonho Americano na década de 1950. A narrativa de On
The Road, de Jack Kerouac, nos traz a luz o anti-herói neopícaro estadunidense, cujas
fontes são as narrativas picarescas espanholas dos séculos XVI e XVII – que
discutiremos a luz das reflexões do professor Mario M. González, no livro A saga do
anti-herói – e a busca pela abundância do Oeste feita nos Estados Unidos durante os
séculos XVII e XVIII. No entanto, cair na estrada, como fizeram os protagonistas de On
The Road e como fizeram boa parte dos Beats é arrumar uma saída individual pra uma
aflição coletiva, um problema que os movimentos de protesto pelos Direitos Civis e
contra a Guerra do Vietnã tentariam resolver.
O capítulo 4, “Medo e incerteza na contemporaneidade: quando os anti-heróis
crescem de mãos atadas”, apresenta nossa conclusão, tendo como base as influências as
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ações do jovem protagonista da década de 1950 tiveram no restante do século XX. A
partir de uma análise do romance The Human Stain(2000), de Philip Roth, cotejado com
alguns traumas que frustraram a promessas de progresso e de masculinidade feitas após
a Segunda Guerra Mundial, como a Guerra do Vietnã e o escândalo de Watergate,
perceberemos que a inaptidão de combate à padronização do protagonista de The
Catcher in the Rye e a fuga dessa padronização pelos protagonistas de On The Road,
não acabaram, metamorfoseando-se nas ações de Coleman Silk e Faunia Farley,
personagens principais de The Human Stain, que transformaram o anti-herói, na virada
do século XX em um herói de si mesmo, que reinventa apropria identidade para lidar
com os problemas pessoais e sociais.
Feita esta introdução, pretendemos expor, aqui, alguns aspectos do mapeamento
do histórico do herói estadunidense, presente no primeiro capítulo da dissertação Antiheróis de medo e incerteza, uma vez que os capítulos de análise e o de conclusão já
foram apresentados em outras edições do SAPPIL e estão, em parte, publicados em
outros periódicos.
O herói clássico: breve comentário
O que seria o ‘clássico’ ao se mencionar a expressão herói clássico? Seria aquilo
construído pelo cânone e, portanto, importante devido à intervenção política dos
críticos? Ou, então, um herói que, por ser antigo, ganhou o nome de clássico – quando
comparado a heróis que seriam mais recentes? Não podemos escapar, infelizmente, de
afirmar o clássico como algo de destaque, algo que está acima dos outros que não são
clássicos. Não que seja proibido definirmos para nós mesmos quais são os nossos gostos
e reforço, aqui, que o problema é fazer disso uma verdade absoluta.
É nesse personagem clássico, para o qual a crítica muitas vezes dá o status de
insuperável, que começaremos a coletar as características mais importantes de um ‘herói
universal’, que é fundamental não apenas para entender a construção do mito do herói
nos Estados Unidos, mas também, para uma série de outros heróis na cultura ocidental.
Ao pensarmos numa personagem com destaque na literatura, as imagens mais
vivas são as dos heróis épicos e trágicos. Quanto ao percurso que faz do herói épico o
que ele é, Flávio Kothe afirma quea narrativa épica clássica, adotando o ponto de vista
do herói trata de metamorfosear a negatividade em positividade e o herói épico tem, por
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isso, um percurso fundamentalmente mais elevado do que o do herói trágico, cujo
percurso é o da queda. (KOTHE, 1987, p. 12)
Contudo, ele não deixa de ressaltar a importância do herói trágico, pois
“[q]uanto maior a sua desgraça [a do herói trágico], tanto maior a sua grandeza. A sua
desgraça não é mera choradeira, mas duro aprendizado da ‘condição humana’,
transcendendo a doutrinação que lhe é inerente.” (KOTHE, 1987, p. 13)
Portanto, o que nos interessa, aqui, é essa condição apriorística que torna tanto o
herói épico, quanto o herói trágico, fortalezas inabaláveis que, mesmo na queda, não
perdem sua grandeza. O herói na antiguidade é, portanto, aristocrático e altivo: qualquer
fraqueza sua, na epopeia, será superada e dará a ele a grandeza que merece; quanto
maior o tombo do herói trágico, mais se tem certeza da altura de sua queda, que só
existe, pois, na tragédia, o destino do herói quase sempre é inevitável.
Outro exemplo de herói importante para nosso estudo é o herói cavaleiro ou,
como aponta o estudioso canadense Northrop Frye, o herói da estória romanesca:Em
todas as idades a classe social ou intelectual dominante tende a projetar seus ideais
nalguma forma de estória romanesca, na qual os virtuosos heróis e as belas heroínas
representam os ideais, e os vilões as ameaças à supremacia daqueles. (FRYE, 1973, p.
185)
Essa “projeção de ideais” da sociedade dominante, como veremos a seguir, deuse em boa parte das ideologias que construíram a imagem heroica estadunidense. Além
disso, há semelhança entre os percursos narrativos do herói romanesco e do herói
estadunidense. Para Frye,
a forma perfeita da estória romanesca é claramente a procura bem sucedida, é
uma forma assim completa e tem três estados principais: o estado da jornada
perigosa e das aventuras menores preliminares; a luta crucial, comumente
algum tipo de batalha na qual o herói ou o seu adversário, ou ambos, devem
morrer; e a exaltação do herói. (FRYE, 1973, p. 185)
É possível adicionar às três etapas acima a ameaça ao estado de harmonia social
pré-estabelecido e a apresentação do vilão, que culminaria no chamado do herói e, com
essa adição, teremos uma fórmula que se aplicaria, por exemplo, a uma série de
acontecimentos históricos do século XX nos Estados Unidos. Se pensarmos na Segunda
Guerra Mundial, na Guerra Fria, na Guerra do Vietnã e, mais recentemente, nas
invasões ao Afeganistão e ao Iraque, “a forma perfeita da estória romanesca” de Frye
adapta-se com precisão a esses eventos. Em todos eles, teremos fascistas, comunistas ou
terroristas – todos pintados com as tintas do não civilizado – apresentando-se de
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maneira antagônica. Ao ameaçarem a tranquilidade da nação mais poderosa do mundo
– que tomou para si a missão de servir de exemplo para o restante do planeta, como
veremos a seguir –, foram combatidos em guerras – muitas delas sem sentido, como no
caso do Vietnã – para que, a partir daí, houvesse a confirmação da superioridade dos
Estados Unidos perante a barbárie do outro.
Estando agora expostos quais aspectos do dito herói clássico com os quais a
construção heroica estadunidense dialoga, iremos nos debruçar sobre os elementos
históricos e literários das matrizes culturais estadunidenses que moldaram essa figura de
destaque, que possui a bravura do herói épico, a altivez e o orgulho desmedido do herói
trágico e a marca do redentor do herói da estória romanesca.
A construção da mentalidade heroica nos Estados Unidos
Não há, aqui, nenhuma pretensão de dar conta de um todo cronológico histórico,
posto que discutir de maneira minuciosa o que se passou desde os relatos dos primeiros
colonos em Jamestown até os dias de hoje seria exagerado e não corresponderia ao
recorte que nos propomos a fazer nesta pesquisa.
Sendo assim, é possível detectar três momentos cruciais, que serão discutidos
com mais fôlego, de influência da história e da cultura estadunidense na formação do
herói. São eles: a presença puritana, no início da colonização; a expansão para o Oeste,
durante os séculos XVIII e XIX; o pensamento transcendentalista.
A influência puritana na cultura estadunidense é tamanha, que (re)visitar o
período de ouro dessas ideias é um exercício que não se apresenta como exclusivo a
leigos. Em ensaio intitulado “The Puritanlegacy”, em um de seus livros mais
importantes, From Puritanism to Postmodernism, os professores Malcolm Bradbury e
Richard Ruland constatam que:
A imaginação puritana, reconhecidamente, era central à natureza da escrita
Americana.Um dos motivos para isso era o fato de que esta imaginação
trouxe ao novo mundo não apenas o senso judaico de milagre e de promessa
religiosa – o “Sonho Americano” que ainda é muito lembrado na literatura
moderna, nada menos do que no famoso fim de O Grande Gatsby, de F. Scott
Fitzgerald, de 1925 –, mas a visão da tarefa e da natureza da escrita
propriamente dita.(RULAND & BRADBURY, 1992, p. 9, tradução minha)
Devemos adicionar que essa promessa religiosa e a tarefa de escrever, para os
puritanos, caminhavam lado a lado e essa parcela do Sonho Americano, edificada pelo
pensamento Protestante, é, sem dúvida, fundamental. Os puritanos acreditavam que
tinham recebido de Deus a missão de prosperar e de levar Sua palavra às áreas menos
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civilizadas, criando, no novo continente, um local à imagem e semelhança dos Seus
desígnios. Essa crença, conhecida como Destino Manifesto, criou uma das dicotomias
mais importantes da história estadunidense: eu vs. outro. Era necessário para que os
colonos tivessem uma visão altiva de si mesmos, nas novas terras, que a imagem do
outro personificasse um inimigo que era, em muitas ocasiões, tido como demoníaco.
Mais uma vez, vemos uma manobra muito próxima do que se tinha nas narrativas de
cavalarias ou nas estórias romanescas, nas quais Frye afirma que o inimigo “pode ser
uma criatura humana comum, mas quanto mais próxima a estória romanesca estiver do
mito, tanto mais os atributos da divindade aderirão ao herói e tanto mais o inimigo
assumirá qualidades míticas demoníacas.” (FRYE, 1973, p. 186)
Por mais que a palavra herói não seja a mais apropriada para determinar o que
eram os puritanos que chegavam ao novo continente, o caráter redentor heroico estava
estruturalmente presente no discurso messiânico incutido em cada colono. O inimigo
era, de fato, demoníaco e estava representado na imagem dawilderness. Fora de suas
vilas, espaços tidos como desenvolvidos, a natureza era ameaçadora e era nas florestas
que morava o diabo. Havia uma necessidade expressa de um antagonista, pois se Deus
mostra sua grandeza perante Satanás, os servos de Deus mostrariam sua grandeza
perante os servos do grande inimigo. Esse inimigo só mudou de nome com o tempo,
mas sempre manteve uma característica marcante: era o outro não cristão. Primeiro
foram os índios e depois as bruxas – no século XX, podemos falar de soviéticos e árabes
– que ocuparam o posto do infiel. Era a missão do bom cristão manter-se longe desse
corpo estranho.
Um dos grandes responsáveis por institucionalizar o Destino Manifesto foi John
Winthrop, famoso governador da Colônia de Massachusetts. Em seu célebre sermão “A
Model of Christian Charity”, proferido aos futuros colonos a bordo do navio Arbella,
Winthrop disse: “Devemos nos considerar uma cidade sobre o monte. Os olhos de todas
as pessoas estão sobre nós.” (WINTHROP, 2003, p. 216,tradução minha). Ter o
julgamento de todas as outras pessoas e o reconhecimento da inevitabilidade desse
julgamento como algo destinado por Deus punha os futuros habitantes do novo mundo
no mesmo patamar de grandeza dos heróis clássicos: seus êxitos seriam louváveis como
os êxitos do herói épico; suas falhas seriam indeléveis, como as falhas do herói trágico.
Esta é, também, uma situação em que os de fé dissidente aportavam em novas
terras e tinham que mostrar para a opressora Europa que eles conseguiriam prosperar.
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Assim como os hebreus que deram um basta a sua escravidão no Egito, os puritanos
deram um basta à submissão religiosa à Inglaterra. Está aí, de acordo com Crassnow e
Haffenden, um exercício de tipologia que é “[u]ma resposta ao problema de
incorporação das escrituras hebraicas ao novo cânone bíblico.”(CRASNOW &
HAFFENDEN, 1983, p. 31, tradução minha)
Assim como era preciso incorporar a tradição hebraica à Bíblia, também era
importante incorporar a tradição bíblica ao dia-a-dia. A tipologia, portanto, foi a
estratégia discursiva utilizada para a equiparação da história do povo hebreu com a dos
colonos esperançosos do Arbella, pois “os escolhidos de Deus cruzaram o rio para
entrar na Terra Prometida da qual escorriam leite e mel. O mais recente povo escolhido
de Massachusetts estava prestes a cruzar o oceano para entrar na terra prometida entre
os rios Merrimack e Charles.” (BALDWIN, 2005, p. 20, tradução minha).
Por fim, os puritanos estabeleceram, na cultura estadunidense, as bases
messiânicas do Destino Manifesto, assim como jogaram a carga negativa em tudo que
não era cristão e chamaram essa alteridade dewilderness. Veremos, contudo, que, em
outro momento da história, o outro foi conquistado e desbravado e que a floresta
deixaria de ser o local do medo e a residência de Satanás para se tornar a esperança de
progresso ainda não explorados, cuja bússola apontava para Oeste.
Antes de apontarmos os elementos do tratamento quase mítico dado ao Oeste,
nos Estados Unidos, devemos regressar bastante no tempo, até o momento em que foi
escrito General History of Virginia, New England and Summer Isles (1624), por John
Smith, que Bradbury e Ruland (1992) chamam de o primeiro livro em inglês da
América. Smith, que obteve reconhecimento nos últimos tempos por sua representação
como par romântico da índia Pocahontas, em desenho animado homônimo dos estúdios
Walt Disney, além de ser um importante cronista das primeiras vivências dos
colonizadores que aportaram no novo continente com a Virginia Company, escreveu
esses relatos construindo a si mesmo de forma corajosa e empreendedora.
Isso pode ser percebido, por exemplo, na passagem de General History of
Virginia em que Smith enfrenta cerca de 200 nativos e sai vivo deste confronto:
Smith, mal fazendo ideia do que aconteceria, foi pego nos pântanos, na
nascente do rio,vinte milhas deserto adentro, teve seus dois homens mortos
(como esperado) dormindo perto da canoa, enquanto ele próprio estava os
seguindo à procura de comida e que, ao ver que estava cercado por 200
selvagens, ele matou dois, ainda se defendendo usando um selvagem seu
guia, o qual prendeu no seu braço com sua jarreteira, usando-o como escudo,
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ainda assim, ele foi atingido na coxa de raspão, teve muitas flechas presas nas
suas roupas, mas nenhum ferimento mais grave, até que finalmente eles o
levaram como prisioneiro. (SMITH, 2003, p. 108-109, tradução minha)
O relato acima, matizado com o colorido do exagero, nos faz entender que Smith
não é só autor do primeiro livro, mas, também, primeiro herói autoconstruído.
Diferentemente do que se tem nas literaturas mais antigas e ditas clássicas, a literatura
estadunidense é fruto de uma nação fundada num momento em que a ideia Ocidental de
tradição já existia e há muito tempo.
Smith é uma invenção, assim como muito do que culturalmente admite-se hoje
como ‘tradição estadunidense’, mas, mesmo assim, dialogava com o passado e olhava a
grande tradição cavaleiresca do herói europeu, não como linha de chegada, mas como
ponto de partida:
O problema da invenção da América ainda continuava; sem um passado
indígena de força suficiente para sustentar uma tradição de raízes
folclóricas ou uma língua distinta, ou para criar gêneros artísticos, apenas
como um senso de missão, frequentemente combinado com um senso de
privação cultural (...). Portanto, os americanos mitologizavam a Europa de
maneira reversa: ela era o passado do futuro da América, era estática perante
o seu dinamismo, mas era cultura para o espaço nu e democrático da
América.(BRADBURY & TEMPERLEY, 1983, p. 7, tradução minha, grifos
meus).
O que deve chamar nossa atenção, contudo, é o fato de Smith ter sido um
protótipo de self-made man, cujas grandes características são a bravura, autoconfiança e
empreendedorismo. É o fruto ideológico desse sujeito criador de si próprio que vai
explorar as vastas terras dos Estados Unidos rumo ao Oeste, superando o medo da
tenebrosa wilderness e conquistando a natureza. A missão torna-se levar a linha da
fronteira cada vez para mais longe do Leste e para que isso aconteça, o explorador vai
enfrentar animais selvagens, matas fechadas e nativos furiosos, pois, para continuar
servindo de modelo, de “cidade sobre o monte”, era preciso que os Estados Unidos
fossem territorialmente mais desenvolvidos que a Europa.
Quando se pensa no Oeste dos Estados Unidos, temos um estereótipo já
consagrado pelas artes, com elementos como tiroteios, caubóis, paisagens desérticas,
cactos e cidades nas quais os xerifes se preocupavam com índios rebeldes e com ladrões
de diligências. Esse é o Velho Oeste, inspirado na Febre do Ouro, presente em filmes
como Três Homens em Conflito, de Sergio Leone, ou em romances como No Country
for Old Man, de Cormac McCarthy. Eloína Prati dos Santos ainda adiciona queo
faroeste cinematográfico “é com certeza o maior propagador dos mitos do velho Oeste e
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ainda é tido como a expressão mais popular, e até mais perfeita, tanto do cinema
hollywoodiano quanto do imaginário estadunidense.”(SANTOS, 2007, p. 271)
O explorador do Oeste ou frontierman vale-se da imagem do homem
empreendedor. Assim como John Smith, ele encara o desconhecido e leva o avanço ao
que, para os puritanos, era uma área de medo. Não achemos, no entanto, que havia uma
nova cultura tipicamente do Oeste surgindo conforme a fronteira se expandia, pois,
mesmo havendo uma série de influências próprias do desbravamento que foram
incorporadas ao Oeste, os valores do Leste estavam lá, presentes, como nos mostram
Burchelle Gray: “A fronteira do Oeste deles não era um limbo isolado dos padrões
nacionais de desenvolvimento: era, ao invés disso, uma área de mudança rápida
conectada intimamente com a expansão nacional.” (BURCHELL & GRAY, 1983, p.
104, tradução minha)
Uma vez mapeado e habitável, e, com o fim da fronteira, no Estado da
Califórnia, era necessário fazer com que o Oeste ganhasse população. Já não havia mais
o desconhecido, como no século XVIII, os combates épicos entre nativos e colonos
tornaram-se cada vez mais raras com o transcorrer do século XIX e a Febre do Ouro,
último grande impulso explorador que fez do Oeste uma terra dos sonhos acabou em
1855. Para atrair as pessoas para as novas áreas a Oeste, o governo dos Estados Unidos
lançou o Homestead Act, em 1962, no qual um pedaço de até 160 acres de terras
previamente demarcadas, era dado a qualquer homem, que fosse chefe de família e
maior de 21 anos que quisesse ser dono delas. Era o início de um Oeste mais pacato,
menos aventureiro, visto que
A estrada de ferro traz, enfim, a chamada “pacificação do Oeste”,
possibilitando viagens de Nova York a São Francisco em sete dias, levando
camponeses, artesãos, operários, transportando material de construção,
escoando a produção da região para o leste. Ao final do século XIX havia
cinco linhas transcontinentais e a travessia do continente deixara de ser uma
aventura, o oeste torna-se mais acessível, mais integrado ao contexto nacional
e converte-se em polo de atração para estadunidenses e estrangeiros.
(SANTOS, 2007, p. 271)
Entretanto, cabe salientar que esse não foi o final feliz de uma aventura, na qual
os heroicos frontiermen tiveram seus pedaços de terra garantidos para si e para as
gerações vindouras, pois o Homestead Act não foi tão efetivo e Burchell e Gray
apontam que houve quatro motivos para seu funcionamento não adequado: O primeiro
foi o alto custo de cultivo das terras que, mesmo sendo de graça, eram de manutenção
cara; o segundo foi a falta de preparo para lidar com a terra por parte dos arrendatários,
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que não tinham a disposição adequada para viver com os fazendeiros; o terceiro motivo
foi a grande parcela de terra que o governo reservou para outros projetos, como
negociações com governos estaduais e prêmios a soldados, por exemplo, deixando
grande parte das terras de melhor localização ociosa; por último, a baixa dos preços nos
produtos agrícolas bem na época do Homestead Act, fazendo com que não houvesse
equilíbrio das contas entre o que era gasto pra produzir e o lucro obtido com a produção.
Estas últimas observações, entretanto, nada afetaram os frontiermen herdados
pelo imaginário estadunidense, o explorador com influências ideológicas do desafio,
assumido pelos primeiros colonos. Esse desafio não parou com o avanço da fronteira do
Oeste, pois se os puritanos desafiaram a Europa por independência religiosa, e os
exploradores desafiaram o desconhecido com o qual nem os puritanos tinham coragem
de lidar, o século XIX reservaria, ainda, uma polêmica muito grande para uma doutrina,
o Transcendentalismo, que desafiava a sociedade.
O Transcendentalismo, grosso modo, refere-se a uma série de ideais filosóficos
que se preocupavam com a pureza do indivíduo perante a ordem social, que tinha
potencial para corromper esse indivíduo. Alguns nomes consagrados do movimento
Transcendentalista são Ralph Waldo Emerson e, influenciado por Emerson, Henry
David Thoreau. Em caráter explanatório,
para Emerson, o Transcendentalismo olhava além de cada causa – abolição,
abstinência, reforma – e procurava, como ele disse em seu ensaio “O
Transcendentalista” (1842) “a conexão completa com a doutrina espiritual”.
Os significados fundamentais do mundo, ele defendia, eram provenientes de
“leis” espirituais que “transcendiam” todos os dogmas e instituições e vinham
ao homem através de suas faculdades intuitivas. A divindade está dentro de
cada um. (BOLTLAND & LEE, 1983, p. 74 tradução minha, grifos meus).
É importante enfatizarmos essa sentença: “a divindade está dentro de cada um”,
pois ela foi o mote de “Self-reliance” (1841), um dos ensaios mais importantes
publicados por Emerson e cuja influência sobre a formação do herói estadunidense será
discutida.
Emerson veio de uma família religiosa e, assim como seu pai, foi um sacerdote,
formado por uma das escolas de ministros mais tradicionais dos Estados Unidos, a
Harvard Divinity School. Assim como outro famoso sacerdote, Cotton Mather, ele
iniciou sua carreira na Second Church of Boston, mas, desde seus primeiros sermões,
Emerson destacava-se dos outros pastores por ferir a tradição puritana do plaine-style:
O Reverendo Ware [veterano de Emerson na igreja] alertou Emerson que o
público estava perplexo com sua preferência por empregar os textos bíblicos
como ilustrações metafóricas para dar corpo a suas lições espirituais ao invés
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de utilizá-los de maneira direta em sua pregação e, quanto a isso, Emerson
respondeu que não acreditava em milagres.(BALDWIN, 2005, p. 63,
tradução minha).
O ceticismo do jovem sacerdote não se estendia só aos milagres. Um dos
momentos fundamentais na formação ideológica de Emerson foi seu encontro com
Thomas Carlyle, na Escócia. Foi a partir de Carlyle – com quem o jovem intelectual
estadunidense já trocava cartas –,que Emerson começou a moldar seu pensamento sobre
o indivíduo em relação ao coletivo; foi em sua interação com Carlyle que “Emerson
chegou a um entendimento da insistência kantiana na subjetividade intensa com o meio
de alcançar sabedoria e a um entendimento da ênfase de Kant na mutualidade da razão e
da percepção sensorial.” (BALDWIN, 2005, p. 65, tradução minha)
Ser acima de tudo um pensador, manter a originalidade: está aí muito do
pensamento transcendentalista contido em “Self-reliance”. O culto à individualidade dos
transcendentalistas guardava suas peculiaridades, se comparado às ideias puritanas ou às
características dos frontiermen, por alguns motivos.
Primeiramente, não havia nada, nenhuma missão pré-estabelecida por Deus, nem
uma necessidade tipológica como estratégia discursiva. Recordemo-nos, mais uma vez,
que a divindade de cada um estava dentro de si, o que fazia com que um pensador
original seguisse os próprios instintos, ao invés de, meramente, reproduzir ideias
alheias. Não havia o senso de conformidade puritano, que tinha como objetivo final uma
sociedade modelo. “Nenhuma lei pode ser sagrada para mim a não ser aquela da minha
natureza (…) a única coisa certa é o que me constitui, a única coisa errada é o contrário”
(EMERSON, 2003, p. 497, tradução minha), afirmava Emerson, afastando qualquer
possibilidade de conformismo. Um indivíduo self-reliant questionaria, também, as
práticas religiosas: “Em todos os lugares eu sou impedido de encontrar Deus no meu
irmão, pois ele fechou as portas do próprio templo e recita fábulas que são
principalmente de seu irmão ou do Deus de seu irmão.” (EMERSON, 2003, p. 507,
tradução minha).
Em segundo lugar, por mais que a valorização da natureza, preconizada pelos
transcendentalistas, seja um elemento de aproximação entre eles e os exploradores do
Oeste – que tinham que obter um conhecimento de terras inóspitas para poder avançar
em sua tarefa de desbravamento – o caráter individual do trato com a natureza se
apresenta como o grande contraste. A natureza não deveria ser domesticada em favor do
progresso social, mas vista como importante elemento de interação, no qual Deus
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também era achado pelo indivíduo. Outro aspecto relevante que aproxima o explorador
do Oeste dos ideais transcendentalistas era o valor dado ao sujeito intuitivo, mas com
uma diferença importante: a intuição do frontierman objetivava, no fim das contas, a
estabilidade – reconhecimento como explorador, novas terras, ouro – algo que o
Transcendentalismo não tematizava, pois, de acordo com Emerson, “a estabilidade boba
era o duende de mentes pequenas.” (EMERSON, 2003, p. 499, tradução minha).
A obra emersoniana inspirou, ainda, uma série de outros intelectuais em sua
época, dos quais um, Henry David Thoreau, é destaque, pois, assim como Emerson,
seus escritos configuram-se como importante ingrediente na mistura ideológica de
formação do herói – e, quando radicalizados – do anti-herói estadunidense.
Thoreau escreveu Civil Disobedience em 1849, ano seguinte àquele em que
passou uma noite na cadeia por não pagar seus impostos, ato de protesto pacífico em
relação à Guerra Mexicano-Americana e à situação de escravidão nos Estados Unidos.
A presença transcendentalista no pensamento de Thoreau está na forma como ele
desenvolve as tensões entre cidadãos e legislação, ao questionar se “o cidadão, por
algum momento, mesmo que minimamente entregou sua consciência ao legislador? Por
que cada homem tem uma consciência? Acho que deveríamos ser homens primeiro
para, daí nos sujeitarmos a alguém.” (THOREAU, 1971, p. 86, tradução minha).
A desconfiança quanto ao governo e a crença no individualismo exacerbado que
é construída no texto de Thoreau são as marcas de um senso de ética que deve respeitar
o que é certo e não o que é imposto, ou seja, o que é justo de ser sempresuperior ao que
é a lei:“se a injustiça é parte necessária da fricção da máquina do governo, deixe-a ir,
deixe-a; provavelmente ela ficará mais fraca – provavelmente a máquina se cansará.”
(THOREAU, 1971, p. 92, tradução minha).
Thoreau acusa qualquer pessoa que aceite passivamente o que lhe é imposto
pelas autoridades de cúmplice dessas mesmas autoridades e reforça que o indivíduo
pode achar mecanismos para enfrentar o sistema, seja não cumprindo obrigações
tributárias, seja, como fez também o próprio Thoreau, escondendo escravos em sua casa
como retaliação ao Fugitive Slave Act de 1850.
A essência da desobediência civil pode pertencer tanto ao herói quanto ao antiherói e isso se dá no que tange o confronto entre justiça e lei. O herói percebe o que é
justo e se guia por isso, ora sendo de acordo com a lei, ora não o sendo. Se pensarmos
no herói estadunidense e no fato de ele beber da fonte do herói clássico, sendo, como
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este, espelho dos anseios sociais, perceberemos que, nos Estados Unidos, a
desobediência civil faz com que o herói procure modificar as injustiças do sistema. O
herói nunca é contra a existência de um sistema de regras, opondo-se, apenas, às regras
vigentes quando estas são autoritárias O herói estadunidense é um paladino das
liberdades dentro do sistema quando este é justo para todos.
O próprio Thoreau não se opunha à existência de um governo, ele apenas achava
que o indivíduo não deveria mais apoiar o poder público quando este se comportava de
forma injusta: “De fato, não é a tarefa de um homem dedicar-se à erradicação de algo
errado, mesmo o erro sendo gigantesco, (...) mas é sua tarefa, pelo menos, ter suas mãos
limpas.” (THOREAU, 1971, p. 90-91, tradução minha).
Um dos lados negativos da desobediência civil – que é o normalmente atribuído
ao anti-herói – é justamente a ameaça ao sistema. Não importa o quão justa uma ideia
seja, ela sempre será rechaçada se a unidade do sistema for maculada. No caso dos
Estados Unidos, onde o individualismo apresentou à população as soluções
meritocráticas e capitalistas para os problemas do cotidiano, a desobediência civil só é
aceita enquanto for domesticada.
A luta a favor dos direitos civis, nas décadas de 1950 e 1960, expressa um pouco
do que foi mencionado acima. A demora do governo em ceder aos apelos dos
manifestantes relaciona-se ao fato de que parte dos protestos das minorias deu-se no
contexto da Guerra Fria. A perfeição capitalista perante o mundo deveria se manter na
comparação com o socialismo e, enquanto foi possível não ceder direitos para mostrar a
desigualdade, isso foi feito e, mesmo quando uma medida legal foi tomada em favor dos
oprimidos, a Lei dos Direitos Civis (1964), ela nada mais foi do que um cala-boca
jurídico sem mudanças estruturais.
Essas mudanças para uma sociedade mais igualitária são impossíveis dentro do
capitalismo, que estimula a competição e eleva o esforço individual a um patamar quase
divino. Contudo, algumas migalhas de participatividade são dadas por dentro do sistema
e o próprio Thoreau acusa isso em sua opinião sobre o voto que, no fim, acaba sendo
apenas um poder falso:“Todo voto é um tipo de jogo, como damas ou gamão, com um
leve toque de moral, um jogo com certo e errado, com questionamentos morais; e o ato
de apostar naturalmente acompanha esse jogo.” (THOREAU, 1971, p. 89, tradução
minha).
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Até agora, fizemos um mapeamento de influências culturais, históricas e
políticas relevantes para entender o que é o herói estadunidense e, retomando-as,
podemos tirar algumas conclusões preliminares. Primeiramente, este herói deve ser
protagonista, isto é, deve buscar reconhecimento pelos seus atos, deve servir de
exemplo e ser, assim como os puritanos pretendiam, equivalente a uma cidade sobre o
monte. Tão importante quanto o papel de destaque em suas ações está o caráter
empreendedor do herói, que deve ser um explorador individual, que tateia o mundo e
que sabe lidar com o desconhecido, assim como o fizeram John Smith e os exploradores
do Oeste, tendo estes seu maior ícone em Daniel Boone, que se tornou personagem
recorrente nas dimenovelsdo século XIX. Além disso, o herói deve contestar de alguma
forma o sistema vigente. Sua individualidade deve estar acima de qualquer governo.
Contudo, essa característica é ideologicamente manipulada para que herói conteste
apenas modelos tirânicos de governo. O herói estadunidense padrão é, enfim, um
paladino das liberdades individuais e de um sistema de aparência justa, no qual todos
os cidadãos e cidadãs terão seu direito à meritocracia garantido.
A morada do anti-herói estadunidense do século XX está na contestação do
modelo apresentado acima. O anti-herói do segundo pós-guerra surgirá em um momento
de falta de individualidade, uma época pós-crise, na qual a retomada da superioridade
econômica aconteceu às custas de alguns sacrifícios do indivíduo.
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