Desporto e espectáculo - Comunicação e Cultura

Transcrição

Desporto e espectáculo - Comunicação e Cultura
Editorial | 1
Comunicação&Cultura
2 | Eduardo Cintra Torres
Comunicação & Cultura
Diretora
Isabel Capeloa Gil
Editor
José Alfaro
Conselho Consultivo
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Autònoma de Barcelona), Ansgar Nünning (Justus‑Liebig‑Universität Giessen), Christiane Schönfeld
(Mary Immaculate College, University of Limerick), Michael Schudson (Journalism School, Columbia
University), Slavko Splichal (Univerza v Ljubljani), Michel Walrave (Universiteit Antwerpen), Barbie
Zelizer (Annenberg School for Communication, University of Pennsylvania)
Conselho Editorial
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Ilharco, Horácio Araújo†, Isabel Ferin, Jorge Fazenda Lourenço, José Augusto Mourão†, José Miguel
Sardica, José Paquete de Oliveira, Manuel Pinto, Maria Augusta Babo, Maria Luísa Leal de Faria, Mário
Jorge Torres, Mário Mesquita, Rita Figueiras, Roberto Carneiro, Rogério Santos
Conselho de Redação
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Policarpo
Arbitragem
Aníbal Alves, Carlos Capucho, Fernando Ilharco, Isabel Ferin, Jorge Fazenda Lourenço, José Paquete
de Oliveira, José Miguel Sardica, Manuel Pinto, Maria Augusta Babo, Maria Luísa Leal de Faria, Mário
Jorge Torres, Rita Figueiras, Roberto Carneiro, Rogério Santos
Coordenação deste número
Eduardo Cintra Torres
Revisão
Cláudia Maia, João Berhan, Maria Afonso, Raul Henriques, coord. de Conceição Candeias (português)
Kevin Rose (inglês) | Antonio Chenoll (espanhol)
Edição
Com uma periodicidade semestral, Comunicação & Cultura é uma revista do Centro de Estudos de Co‑
municação e Cultura (Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa), editada
por BonD – Books on Demand. O CECC é apoiado pela FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia.
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Editorial | 3
Comunicação&Cultura
número 13 primavera-verão 2012
Desporto
e Espetáculo
Bon D
BOOKS
on DEMAND
| 5
Índice
Editorial
Desporto e espectáculo.................................................................................................. 9
eduardo cintra torres
dossier................................................................................................................................... 17
É apenas um jogo: a história dos media, do desporto e do público.....................19
Hans Ulrich Gumbrecht
No capítulo final da obra Making Sense in Life and Literature, que aqui
se apresenta numa tradução inédita para português, Hans Ulrich Gum‑
brecht traça um breve resumo histórico daquelas que considera serem as
relações mais imediatas, mas por certo nem sempre as mais óbvias, entre
o percurso da literatura e o do desporto, dedicando especial atenção ao
período compreendido entre os finais do século xix e o século xx. Com
a ênfase colocada sobre a inevitável distinção entre as atividades do corpo
e da mente, e o modo como estas têm sido simultaneamente distinguidas
e conjugadas, Gumbrecht procura sustentar o argumento de que os des‑
portos de espectadores, que se afirmaram como um elemento fundamental
da vida quotidiana nas sociedades modernas ao longo do último século,
têm assumido igualmente a função essencial de permitir a compensação,
mesmo que ilusória, da exclusão corporal que as práticas dos países indus‑
trializados vieram institucionalizar.
Palavras‑chave: Desporto, Jogo, Espectador, Literatura, Media, Corpo
6 | Eduardo Cintra Torres
A nova mitologia esportiva e a busca da «alta performance»................................39
João Freire Filho
Em sua investigação sobre as mutações do individualismo na França desde
os anos de 1980, o sociólogo Alain Ehrenberg chamou a atenção para a
emergência de um disseminado fenômeno social: «o culto da performance»,
novo credo que combina um modelo de ação e de justiça com um estilo
de existência. Através da análise crítica de diversos tipos de textos midiá­
ticos, esse artigo examina como a prática, os símbolos e os valores das ati‑
vidades esportivas se tornaram um dos mais importantes referenciais da
iniciativa individual e da justa competição em uma sociedade focada na
performance.
Palavras‑chave: Esporte, Performance, Mídia, Empresas, Gerenciamento de recursos
humanos
Rituais do espetáculo de ciclismo: hierarquias e seu significado........................ 53
Ana Santos
A escala da visibilidade mediática conseguida pelo Tour de França face à
Volta a Portugal em bicicleta é o ponto de partida para questionar as hie‑
rarquias sociais, políticas e económicas que nas cerimónias do pódio se
evidenciam e se celebram. Pretende-se também, a partir do estudo compa‑
rativo entre o Tour e a Volta, aplicar o programa teórico da interação ritual
de Randall Collins, a fim de questionar a exclusão do espetáculo desportivo
da categoria dos rituais formais e contrariar a ideia de «artificialidade da
experiência vivida» aplicada pelo autor à participação neste tipo de rituais.
Para contrariar esta ideia ligada à artificialidade da experiência, propo‑
nho uma análise comparativa entre a Volta e o Tour para demonstrar que
nenhum destes rituais é autónomo e independente do desejo de identifica‑
ção e de identidade por parte dos atores sociais, dos grupos ou das comu‑
nidades que se envolvem quer na sua organização, quer na festa que o seu
espetáculo constitui.
Palavras‑chave: Espetáculo, Ritual, Ciclismo, Media, Identidade, Cultura
La futbolización de la información deportiva:
un estudio de casos de cuatro diarios deportivos europeos...................................77
José Luis Rojas Torrijos
Os media desportivos conheceram um desenvolvimento extraordinário
nos últimos anos em muitos países europeus, especialmente nos da zona
do Mediterrâneo, tornando-se o produto jornalístico mais bem-sucedido
do mercado. A emergência deste tipo de jornalismo tem sido especialmente
notória na imprensa, onde se destaca não só como uma das principais
Editorial | 7
secções dos mainstream media de maior prestígio, mas também como a área
de informação com o maior número de títulos especializados. No entanto,
a maioria do conteúdo desportivo é sobre futebol, que se tornou a base do
negócio de media por causa da sua enorme capacidade para atrair audiên­
cia e anunciantes. Futebol em excesso tornou-se um elemento-chave da
dramatização do jornalismo, relegando para segundo plano conteúdos mais
puramente informativos sobre outros desportos. Este artigo aborda este pro‑
blema, propondo um estudo de caso das capas de quatro grandes jornais
desportivos europeus: L’Équipe, La Gazzetta dello Sport, Marca e A Bola.
Palavras‑chave: Futebolização, Jornalismo desportivo, Europa, Jornais desportivos,
Futebol, Media
A globalização dos desportos: entre a indigenização
do críquete indiano e a popularização do futebol português................................97
Rahul Kumar
Procuramos debater neste artigo o valor heurístico do conceito de indige‑
nização para a compreensão dos processos de globalização dos desportos
face aos contributos da teoria social clássica. A partir de uma comparação
histórica entre duas modalidades em dois contextos diversos – o futebol
português e o críquete indiano –, opusemos a um modelo da diferença cul‑
tural, em que se alicerça o argumento de Appadurai, um modelo de popu‑
larização dos desportos, influenciado pela lógica da distinção entre classes
sociais e do crescimento das interdependências sociais.
Palavras‑chave: Globalização, Desporto, Futebol, Críquete, Teoria social, Cultura
popular
outros artigos.................................................................................................................... 115
Atos biográficos na sedução da imagem
– A Ilha dos Amores, de Paulo Rocha.........................................................................117
Mário Avelar
Este ensaio pretende refletir sobre a forma como Paulo Rocha acolhe a bio‑
grafia e a obra de Wenceslau de Moraes no seu filme A Ilha dos Amores.
Num primeiro instante sinalizar-se-ão, breve e elipticamente, alguns factos
do percurso deste escritor. Num segundo momento transitar-se-á para a
análise do filme através de uma leitura de instantes considerados relevantes
para a sua singularidade estética.
Palavras‑chave: Pathos, Épico, Representação, Alteridade, Ritual
8 |
entrevista........................................................................................................................... 129
Entrevista a James Curran......................................................................................... 131
RITA FIGUEIRAS e NELSON RIBEIRO
in memoriam...................................................................................................................... 139
Pierre Babin.................................................................................................................. 141
carlos capucho
recensões............................................................................................................................ 145
James Curran, Natalie Fenton e Des Freedman, Misunderstanding the Internet
(Rita Figueiras)
Phylis Johnson, Second Life, Media, and the Other Society
(Cátia Ferreira)
a ler sobre o tema............................................................................................................. 155
montra de livros................................................................................................................ 165
agenda................................................................................................................................ 171
abstracts............................................................................................................................. 175
próximos números........................................................................................................... 181
normas para o envio de artigos e recensões............................................................. 187
Editorial
Desporto e espectáculo
Irmãos milenares na era global da sociedade do espectáculo *
EDUARDO CINTRA TORRES **
Sempre que se procuram as raízes do espectáculo enquanto elemento estru‑
turante da sociedade contemporânea, invariavelmente se desemboca no final do
século xix e início do século xx. O crescimento acelerado das comunicações ter‑
restres e mediáticas, o urbanismo e as grandes metrópoles, a redefinição dos tem‑
pos livres e de trabalho, o alargamento e a precisão da medição do espaço e do
tempo, a invenção dos media de massas e da opinião pública alargada ao espaço
público e aos media, a chegada das classes trabalhadoras ao palco social também
como consumidoras dos media e dos espectáculos, a afirmação do nacionalismo
como motor da política nas democracias ocidentais, a «era das multidões» e a «era
dos públicos» – tudo se cristaliza nesse período. Norbert Elias alerta para o erro
de se procurar a posteriori relações causais entre os diferentes desenvolvimen‑
tos do «processo civilizacional», mas compara a interacção de todos os agentes
aos movimentos dos indivíduos num baile, o que nos permite afirmar a concen‑
tração de tantas inovações ou desenvolvimentos fulgurantes num mesmo perío­
­do não pode deixar de ser mencionada. Para usar um termo prudente de Elias,
a «configuração» da sociedade resulta da acumulação destes fenómenos conco‑
mitantes. Podemos ousar considerar a revolução societal e cultural desse período
como mais significativa do que as alterações provocadas pela revolução industrial,
_______________
* O autor escreve de acordo com a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
** Professor auxiliar da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa; investi‑
gador do CECC – Centro de Estudos de Comunicação e Cultura.
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à qual está, porém, indissoluvelmente ligada. A nossa sociedade pós-industrial, do
capitalismo financeiro, globalizada, dos indivíduos e das massas, crescentemente
democrática, ligada em rede, corre no mesmo rio agitado e vibrante que no final
do século xix se tornou imparável.
O desporto como o conhecemos nasce na mesma época. Vale a pena recordar
quatro acontecimentos fundadores do carácter actual do desporto, bem conheci‑
dos, e que permitem definir sucintamente o modelo institucional, social, cultural
e espectacular do desporto contemporâneo.
Década de 1880. A criação da União Velocipédica de França em 1880 e da
Football League na Grã-Bretanha também em 1880 assinalam a consagração do
desporto com regras e calendário partilhados, substituindo o tempo das festivida‑
des «tradicionais», bem como o carácter nacional da organização e cultura des‑
portivas. A Liga inglesa marca também o início da profissionalização do desporto,
rompendo com os valores do modelo aristocrático anterior.
1896. A criação dos Jogos Olímpicos, embora ainda identificados com as eli‑
tes amantes das provas f ísicas e desportivas, consagra o desporto como actividade
autónoma e a sua simultânea internacionalização e nacionalização.
1903. A criação da Volta a França por um jornalista e um jornal assinala a
ligação entre o desporto e os media, inscrevendo os meios de comunicação como
criadores insubstituíveis dos eventos. A prova só fazia sentido sendo partilhada
por populações separadas através da narrativa diária dos jornais. É também um
caso exemplar de reificação da «comunidade imaginada» pela imprensa.
Editorial | 11
1921. Milhares de pessoas reúnem-se em Montmartre, Paris, para tomar
conhecimento, quase em tempo real, através de mensagens recebidas por telé‑
grafo, do combate de boxe entre Georges Carpentier (herói na Primeira Guerra
Mundial) e Jack Dempsey (campeão mundial desde 1919) que decorria em Jer‑
sey City, Nova Jérsia. Sem imagens, sem narração contínua, o acontecimento
mostrava a capacidade do desporto para reunir multidões nos espaços urbanos
e centrais, criar um novo formato de efervescência colectiva e substituir simboli‑
camente os conflitos bélicos entre nações. Nos EUA, a RCA fez deste combate a
primeira transmissão de rádio a nível nacional.
O telégrafo voltaria a reunir multidões por ocasião de grandes eventos des‑
portivos, incluindo em Lisboa, mas seriam a rádio e a televisão, pelo imediatismo
e pela comunicação através da expressão corporal da voz e do corpo, a fecharem o
ciclo do enlace entre os media e o desporto. A imagem da página anterior mostra
a multidão acompanhando um relato desportivo, em frente da sucursal do diá‑
rio O Século, no Rossio, Lisboa, em 1928. Uma previsão do que poderia vir a ser
a televisão, publicada na revista de divulgação científica Science and Invention,
em 1922, propunha um futuro para o media que se concretizou integralmente:
diante de um televisor transmitindo em directo um jogo de beisebol, três homens
manifestam a sua excitação. Anos depois, a televisão alemã transmitia os Jogos
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Olímpicos de Berlim e a televisão norte-americana estreava-se no directo com
uma transmissão desportiva dum jogo de beisebol.
A maioria dos desportos contemporâneos foi criada no mesmo período.
Se inicialmente os desportos eram para ser jogados e não para serem vistos,
a sua transformação em espectáculos foi quase imediata. O futebol americano,
por exemplo, estabelecido na década de 1870, tornou-se em dez anos um espectá‑
culo popular, em resultado da sua apropriação pela imprensa diária e, mais tarde,
pela rádio.
Sabemos que na Grécia Antiga e no Império Romano o desporto já se apre‑
sentava como espectáculo e originava o mesmo tipo de configuração, em espe‑
cial em Roma: excitação colectiva, popularidade, relação com o poder político,
endeusamento dos melhores praticantes, economia própria – e deficitária. A elite
intelectual, de que Cícero e Santo Agostinho deixaram testemunho, abominava
os jogos, mas dificilmente lhes resistia, como o discípulo de Santo Agostinho que
tapou os olhos para resistir ao apelo do espectáculo à sua frente, mas em vão:
«Oxalá também tivesse tapado os ouvidos! [...] Foi tão grande o clamor da mul‑
tidão que, vencido pela curiosidade, [...] abriu os olhos. [...] Logo que viu sangue,
bebeu junto a crueldade, e não se afastou do espectáculo.» O Cristianismo, por
ver e ter sofrido o que considerava a barbaridade dos espectáculos, transferiu a
necessidade de tempo alternativo que os mesmos forneciam para as festividades
e rituais religiosos. A partir do Renascimento, porém, a actividade f ísica e o jogo
recuperam a autonomia. Não por acaso, a etimologia de desporto remete para
o divertimento e o jogo. Divertimento, apenas, em Rabelais, ou na crónica de
D. Afonso V por Rui de Pina: «Mas per outro caminho em que por ser desporto
todos os principais juntamente comiam e folgavam [...].» E Sá de Miranda, numa
carta a D. Fernando de Menezes: «Por i passea e vai a seus deportes [...].» Caída
em desuso, a palavra voltaria como anglicismo, mas com a mesma origem. É no
século xvi que sport toma o sentido moderno. Deste modo, o conceito está tão
próximo de divertimento e jogo como da actividade f ísica. A codificação dos des‑
portos e a sua inscrição num tempo e num espaço próprios, todavia, traz-nos de
volta ao final do século xix. E, com ele, ao espectáculo.
Hoje, o conceito de desporto como espectáculo é o mais adequado: o jogo
fornece animação num âmbito imaginário – um espaço inventado, regras in­­
ventadas para evitar os ferimentos –, criando uma movimentação própria, sem
palavras, compreensível à distância e concretizando-se na audiência, presente ou à
distância através dos media. A condição de desporto não cria o espectáculo per se,
pois este não existe na miríade de encontros desportivos, na maioria amadores,
próprios da esfera do lazer, também ela objecto de análise pela primeira vez no
Editorial | 13
período charneira a que nos referimos, no célebre The Theory of Leisure Class, de
Thorsten Veblen, editado em 1899. O carácter espectacular das actividades f ísicas
enquanto divertimento é particularmente notável no actual wrestling, herdeiro
da antiga luta livre: «Não é um desporto, mas um espectáculo», escrevia Bar‑
thes sobre o catch nos anos 50, uma espécie de reality show, em que os jogadores
improvisam sobre papéis pré-definidos, estereotipados, numa representação que
Barthes comparava ao teatro. Noutra das suas Mitologias, Barthes nota como os
media, com a sua atenção às «relações públicas» dos ciclistas na Volta à França,
com a entrada em cena dos «criados» – as personagens secundárias, já não da
prova como epopeia, mas como «romance» –, acrescentam à primeira a «degra‑
dação» do segundo, criando em torno do conflito único do tempo trágico múlti‑
plas narrativas que se adaptam ao folhetim de realidade que os media são.
O espectáculo existe pela audiência, pela demarcação do seu espaço autó‑
nomo, e pelos media. Estes permitem ou prolongam a posteriori a sensação de
partilha e a criação de um espaço público também ele vivendo em relativa auto‑
nomia perante o poder político. O enlace entre o audiovisual e a escrita completou
a configuração social e cultural do desporto, ao fornecer o espectáculo em si, no
directo, e a sua narrativização e simbolização, através da montagem das imagens
e dos sons e através do texto dos narradores, comentadores, jornalistas e protago‑
nistas dos eventos.
A política tem, certamente, uma estreita relação com o desporto, quer pela
mencionada nacionalização simbólica das modalidades, quer pela promiscuidade
entre ambos, motivada também pela necessidade de o poder democrático se apro‑
priar da «aura», do «carisma», ou, numa palavra mais simples, da popularidade do
desporto. Todavia, este consegue manter uma tal autonomia enquanto actividade
que mantém uma singular ausência de escrutínio económico por parte dos Esta‑
dos, bem como uma justiça própria que é única. A hegemonia sociocultural do
desporto enquanto jogo e espectáculo é tal que esmaga a capacidade de alerta e de
resistência da sociedade à sua dimensão política.
A popularidade e os conseguimentos dos desportistas, bem como o roman‑
cear das suas vidas públicas e privadas pelos media, origina novas formas de cele‑
bridade e até de carisma. Dado o seu carácter consensual, dialogante, sugerindo
uma acção sempre inacabada, o desporto, dono da sua própria esfera de influên‑
cia nos colectivos humanos, gerou figuras carismáticas alternativas à política e
concomitantes com outras que os dois séculos passados inventaram, em alterna‑
tiva aos nomes grandes da cultura: os jogadores como Eusébio da Silva Ferreira
ou Cristiano Ronaldo, treinadores como José Mourinho, somam-se ou substituem
políticos, atores e entertainers, preenchendo a aparentemente eterna necessidade
14 | Eduardo Cintra Torres
de figuras carismáticas. A força cultural do desporto é tal que a sua atracção silen‑
cia os aspectos mercantilistas resultantes do profissionalismo que atingiu.
Epopeia, romance, jogo, espectáculo, heróis, audiências, mediação, política,
economia, conflitos reais e imaginados, questões de classe, de raça e de género:
não se apresenta, assim, o desporto, como um facto social total, na acepção maus‑
siana? Compreende-se que o desporto e o seu espectáculo se transformassem
numa área de investigação a partir de diversas vertentes e de acordo com enqua‑
dramentos disciplinares diversos. O desafio que lançámos para este número da
Comunicação & Cultura motivou, em consequência, artigos a partir de diferentes
perspetivas.
Hans Ulricht Gumbrecht, num dos capítulos da sua obra Making Sense in Life
and Literature, de 1992, que apresentamos pela primeira vez em português, faz a
«mini-história das relações entre a literatura e o desporto», chamando a atenção
para uma perspectiva que considere a «divisão corpo/mente» como um facto his‑
tórica e sociologicamente considerado, ao qual correspondem, entre outras carac‑
terísticas, a diferenciação entre participantes e espectadores e a coincidência da
«marcha triunfal» do ramo do entretenimento do espectáculo desportivo com o
crescimento das artes de palco populares no século xix.
No seu artigo, João Freire Filho reflecte sobre o culto da performance des‑
portiva numa sociedade que, assente no mercado, se foca na performance e na
sua retórica como valor cimeiro da afirmação e da autonomia do indivíduo em
qualquer área da vida, numa transferência que converteu o desporto num «gene‑
ralizado paradigma existencial». O autor cita Ehrenburg: «A nova mitologia des‑
portiva [...] forja o indivíduo.»
O artigo de Ana Santos, situando a Volta a França e a Volta a Portugal em
bicicleta no âmbito da teoria da interacção ritual de Randall Collins, recorda
estas duas provas, bem como as congéneres espanhola e italiana, como produto
simultaneamente mediático e comercial que obtém resultados por também ali‑
mentar o «desejo de identificação e de identidade por parte dos actores sociais».
A autora desafia a teoria de Collins, reinscrevendo os rituais na esfera «séria» da
vida. A comparação entre as duas Voltas permite compreender como o grau de
desenvolvimento económico de um país se traduz num maior ou menor grau de
estabilidade do novo ritual laico, bem como o papel insubstituível da imprensa,
a seguir da rádio e finalmente da televisão, no êxito dos espectáculos, esta última
com a capacidade acrescida de devolver aos espectadores o papel de actores.
José Luis Rojas Torrijos analisa a singularidade da imprensa desportiva diária
em quatro países da Europa latina, referindo como a «futebolização da informa‑
Editorial | 15
ção desportiva» depende em especial do mercantilismo, «dado que o futebol e
tudo o que o rodeia é espectáculo», a base do negócio jornalístico, em especial na
TV. Conclui que a necessidade de cobrir o futebol acaba por, em excesso, prejudi‑
car a qualidade do jornalismo. A análise de conteúdo aos quatro diários indica a
supremacia do futebol (cem por cento nas capas d’A Bola), no que poderá ser uma
antecipação da gratificação dos leitores com o objectivo de potenciar as vendas
num mercado concorrencial. Pode inferir-se, aliás, que L’Équipe não apresenta
o mesmo predomínio da futebolização da informação por não ter concorrência.
No seu artigo, Rahul Kumar acentua que a globalização dos desportos não
anula a variedade de práticas desportivas, analisando a indigenização e naciona‑
lização do críquete na Índia e do futebol em Portugal. O autor encontra «homo‑
logias surpreendentes», resultantes da popularização de cada um dos desportos
entre a população e da sua mediatização, ambas concorrendo a um lugar de topo
na comunidade nacional imaginada, concluindo que, mais do que as diferenças
culturais, a análise das práticas permite encontrar aquela semelhança estrutural
na construção de uma prática desportiva maximizada em diferentes contextos
sociais.

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