Laboratório de Leitura

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Laboratório de Leitura
Laboratório de Leitura
TEXTO 1
"Quero desentulhar a UTI", disse médica de Curitiba
em gravação
Virgínia Soares de Souza, chefe da UTI de hospital de Curitiba que está sendo
investigada por homicídio qualificado, diz ter sido mal interpretada por essa fala.
Nesta quarta-feira, a Polícia Civil do Paraná afirmou que Virgínia Soares de Souza, chefe da
Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba, está sendo
investigada por homicídio qualificado e que a investigação vem sendo feita há aproximadamente um
ano. Em um trecho do depoimento da médica à polícia, divulgado nesta quarta-feira pela RPC TV, afiliada
da Rede Globo, Virgínia afirma que foi mal interpretada por falas como "Quero desentulhar a UTI que
está me dando coceira", ditas numa gravação do mês de janeiro.
A médica, presa por suspeita de participar da morte de pacientes da UTI do hospital do qual é
funcionária, ainda disse não se lembrar de ter dito, à família de um paciente, a frase: “Infelizmente, é
nossa missão intermediá-lo do trampolim do além”.
Depoimentos — Uma profissional que atuava com Virgínia na UTI, e preferiu não se identificar,
disse que era hábito da médica tratar com desdém alguns pacientes. "Quase todo dia havia uma parada
cardíaca e ela gritava ‘Spp’ (sigla utilizada em UTIs que significa "se parar, parou!"), então, as
enfermeiras saíam fora e deixavam o paciente. Isso quando era SUS; se era particular ou convênio, aí
tentavam salvar", disse.
À RPC TV, o técnico de enfermagem Silvio de Almeida disse que trabalhou no hospital sob a
supervisão de Virgínia durante três anos. “A mínima quantidade de oxigênio que o respirador podia
mandar, ela deixava, que é sempre em 21%. Eu já vi muitas vezes ela desligar o respirador”, disse. “São
dois médicos e uma médica, só que esses eu não vou citar o nome, que fazem a mesma coisa que ela
(Virgínia), que têm a mesma conduta que ela.”
A delegada Paula Brisola afirmou nesta quarta-feira que a médica provavelmente não agiu
sozinha. "Outros funcionários também estão sendo ouvidos e sob investigação”. Virgínia atua Hospital
Universitário Evangélico de Curitiba desde 1998 e é chefe da UTI desde 2006. Segundo a polícia, as
mortes ocorridas na unidade nos últimos sete anos serão analisadas.
O advogado da médica, Elias Mattar Assad, criticou a condução da investigação. "Pelo o que está
se delineando, agora, de homicídio qualificado, não vai se ter um defunto ou um laudo por outra causa de
morte que não seja a que não está no laudo. Não há como provar outra coisa."
Hospital — Em entrevista concedida à RPC TV na manhã desta quarta-feira, Gilberto Pascolat,
diretor clínico do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba, afirmou que nunca soube de “nada que
desabonasse a conduta dela, tanto da parte técnica quanto da ética” e que nunca chegaram a ele
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queixas oficiais contra a médica. De acordo com o diretor-geral do hospital, Odair Braun, “a instituição
não vai manifestar nenhuma opinião nesse processo”.
Em entrevista ao G1, site de notícias da Rede Globo, Braun afirmou que Virgínia já havia sido
afastada do hospital em 2011. "Neste ano o diretor geral antecessor de fato fez uma suspensão dela por
trinta dias. Mas se tratava de uma situação envolvendo relacionamento entre profissionais da equipe",
disse. Em entrevista ao site de VEJA, o advogado de defesa, Elias Mattar Assad, disse que, por
enquanto, atribuía as denúncias contra Virgínia às "inimizades da médica".
TEXTO 2
Médica presa em Curitiba alega inocência em carta
Em texto divulgado por seu advogado, Virgínia Soares de Souza diz que não existem
provas de que teria desligado o aparelho de pacientes terminais.
A médica Virgínia Soares de Souza, presa desde terça-feira pelo Núcleo de Repressão aos
Crimes Contra a Saúde (Nucrisa), no Centro de Triagem, em Curitiba, protestou por meio de uma carta
contra a forma como as investigações policiais estão sendo feitas. O texto foi divulgado nesta sexta-feira
pelo advogado de defesa Elias Mattar Assad. Virgínia era chefe da UTI do Hospital Evangélico, na capital
paranaense, havia sete anos e está sendo investigada por homicídio qualificado, por supostamente
ordenar a pessoas de sua equipe que desligassem os aparelhos de pacientes terminais. Desde que o
caso veio à tona no início desta semana, cerca de 50 denúncias contra a médica foram realizadas na
Nucrisa, feitas por ex-companheiros de trabalho e familiares de antigos pacientes.
"O livre exercício da medicina está em risco no Brasil", diz a médica na carta, sugerindo que, se
os métodos usados pela polícia durante a investigação obtiverem sucesso, todas as mortes em UTI's
podem gerar acusações de homicídio contra os médicos. No documento, ela alega inocência e afirma
que se trata do maior erro investigativo da história do Brasil. "Da leitura atenta dos autos do inquérito,
com meu advogado, não está provada sequer a existência do fato, quanto mais a materialidade de
qualquer crime".
O advogado ainda apresentou dois enfermeiros que trabalhavam com a médica. Segundo o Jornal
Nacional, eles negaram que ela desse ordens para desligar aparelhos e provocar a morte de pacientes. O
advogado deve entrar com um pedido de liberdade de Virgínia na segunda-feira, além de pedir a quebra
do sigilo de justiça do processo, o que tem provocado o silêncio da polícia sobre as investigações.
Investigação — A denúncia que culminou com a prisão de Virgínia teve início no ano passado,
conforme a queixa de uma pessoa que conhecia o trâmite na UTI. "A pessoa entrou em contato com a
Ouvidoria, que nos repassou a denúncia e iniciamos a investigação", disse a delegada Paula Brisola.
Nos últimos dias, vieram à tona depoimentos com acusações gravíssimas contra a médica. Na
última quinta-feira, a família de uma ex-paciente que passou pela UTI do hospital em dezembro contou
que ela escreveu um bilhete para a filha pedindo que a retirassem dali. "Eu preciso sair daqui, pois
tentaram hoje me matar desligando os aparelhos", diz trecho do bilhete. A paciente estava entubada
quando teria escutado alguém mandar desligar o aparelho. O Hospital Evangélico confirmou a troca de
34 enfermeiros e 13 médicos do setor de UTI. Segundo o diretor-clínico Gilberto Pascolat, o objetivo da
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troca, que atende a um pedido da Secretaria Municipal de Saúde, é o de evitar pânico entre os familiares
de pacientes. "É uma forma de dar mais tranquilidade às famílias", disse.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) se manifestou por meio de nota e não descartou a
cassação do exercício profissional da médica. "Se for confirmado o delito, o CRM-PR proporá a abertura
de processo contra a médica denunciada, que ficará passível de receber penas que vão até a cassação
do exercício profissional", diz a nota.
TEXTO 3
Uma nova morte
Ela era a única certeza que tínhamos na vida. Agora, os avanços da ciência estão criando dúvidas
que nunca tivemos antes e revolucionando o jeito como encaramos a morte
por Texto Eliza Muto e Leandro Narloch
Em 1993, a assaltante Trisha Marshall, de 28 anos, foi internada num hospital da Califórnia com
um tiro na cabeça e grávida de 17 semanas. Na UTI, a falência do seu cérebro foi diagnosticada.
Seguindo os padrões médicos e legais, Trisha foi considerada morta. Mas o corpo demoraria a sair do
hospital. A pedido da família, os médicos optaram por mantê-lo respirando por aparelhos até que o filho
nascesse. E ele nasceu. Foi dado à luz por mulher clinicamente morta havia 3 meses.
A história de Trisha mostra um avanço espetacular da ciência. Graças a aparelhos que
reproduzem a função dos órgãos vitais, a medicina consegue manter funcionando, por tempo
indeterminado, um corpo com quadro irreversível. Quanto mais olhamos para as conseqüências dessa
novidade, porém, mais fica claro que ainda não aprendemos a lidar com ela. Como a pesquisa em
células-tronco e o aborto exigem uma resposta sobre quando começa a vida, assunto da edição de
novembro da Super, os avanços da medicina atingem a outra ponta do debate: um corpo que funciona é
um corpo vivo? Quando exatamente morremos?
Basta lembrar as polêmicas que esquentaram 2005 para perceber os problemas causados pela
dificuldade de responder a essa pergunta. Em março, a decisão sobre manter ou não a alimentação
de TerriSchiavo, que vivia em estado vegetativo havia 15 anos, parou os EUA e envolveu do presidente
Bush à Suprema Corte. Em Franca, interior de São Paulo, Jeson de Oliveira tentou na Justiça
autorização para aeutanásia do filho, inconsciente e desenganado pelos médicos por causa de uma
doença degenerativa. No cinema, os ganhadores do Oscar de melhor filme e melhor filme estrangeiro,
Menina de Ouro e Mar Adentro, falam sobre a vontade de morrer. E dão a dica: a postura que adotamos
diante da morte está passando por uma profunda e barulhenta transformação.
A história da morte
Dúvidas sobre o momento da morte surgiram no século 18, quando relatos de pessoas enterradas
vivas assustavam a Europa. Em 1740, o anatomista francês Jacques-Bénigne Winslow publicou artigo
levantando dúvidas sobre como comprovar que alguém estava de fato morto. E em 1785, o médico
britânico William Tossach provou que um homem afogado (e dito morto) poderia ser ressuscitado ao
encher seus pulmões de ar.
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Nesse período foram inventados os mais bizarros métodos para verificar o óbito. A técnica do
médico francês Jean Baptiste Vincent Laborde consistia em puxar a língua do defunto por 3 horas. Mais
tarde, ele inventaria uma máquina à manivela que executava a tarefa. Para a elite da época, o medo de
ser enterrado vivo justificava qualquer esforço. Hannah Beswick, que morreu no final do século 18, deixou
uma generosa quantia para que seu médico não deixasse que a enterrassem por 100 anos. Todos os
dias, ele e duas testemunhas examinavam o corpo embalsamado à procura de sinais de vida. Como
nada acontecia, o médico transferiu o cadáver para um caixote, que ele abria uma vez por ano. E,
quando morreu, passou a missão a outro médico. Somente em 1868 o corpo da senhora Beswick foi
sepultado.
Mas a maioria dos médicos da época mantinha-se fiel à antiga técnica de verificação de morte: a
putrefação. Na Alemanha, cidades construíam câmaras mortuárias onde os cadáveres eram vigiados e
mantidos até começarem a apodrecer. Apenas em 1846 começaram a ser estabelecidos os critérios para
determinar o fim da vida. Naquele ano, o francês Eugene Bouchut ganhou um prêmio da Academia de
Ciências de Paris pelo “melhor trabalho sobre os sinais da morte e as formas de prevenir sepultamentos
prematuros”. Sua proposta: observar durante 10 minutos 3 sinais da morte – ausência da respiração, dos
batimentos cardíacos e da circulação. “Essa ficou conhecida como a tríade de Bouchut e passou a ser
adotada pela medicina de um modo geral”, diz Marcos de Almeida, professor de medicina legal e bioética
da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Foi assim que o coração ganhou status de órgão
principal da vida e sua parada, uma indicação definitiva da morte.
Mas já no final do século 19 o legista Paul Brouardel verificou que o coração de pessoas
decapitadas continuava a bater por até uma hora. Concluiu, então, que a morte não era uma questão de
coração e pulmão, mas de sistema nervoso central. Ou seja, é impossível que um indivíduo sobreviva
sem cabeça, ainda que seu coração funcione. A observação de dano ao sistema nervoso central foi
somada à tríade: se, sob um forte feixe de luz, a pupila estiver dilatada, quer dizer que as funções
neurológicas não existem mais. É sinal de morte.
Mortos-vivos
O último suspiro do batimento cardíaco como critério de vida aconteceu nos anos 50, com a
fabricação dos respiradores artificiais. Em 1964, o Bird Mark 7 ficou famoso por ser o primeiro produzido
em larga escala – o aparelho é usado ainda hoje nos hospitais públicos do Brasil. Ninguém duvida da
importância do respirador: ele reduziu a mortalidade de recém-nascidos de 70% para 10% e foi o primeiro
passo para a criação das Unidades de Terapia Intensiva, as UTIs, concluídas na década de 1970 com
equipamentos que reproduzem a função de órgãos. Aparelhos de diálise substituíram os rins, aspiradores
deram conta das secreções. As batidas do coração passaram a ser controladas por estímulos elétricos do
marcapasso e reanimadas pelo desfibrilador. O conceito de morte ficou ainda mais bagunçado. “Os
médicos se deram conta de que poderiam manter quase indefinidamente os pacientes com os
aparelhos”, diz Marcos de Almeida. Mas a medicina sabia também que quem tivesse danos irreversíveis
no cérebroficaria para sempre na cama, inconsciente e dependente das máquinas. Por isso, alguém
precisava determinar o que fazer com aquelas pessoas meio mortas, meio vivas. Em 1957, um grupo de
médicos franceses foi ao Vaticano pedir ajuda. O papa Pio 12 respondeu 3 dias depois. “A morte não é
território da Igreja”, afirmou no texto O Prolongamento da Vida. “Cabe aos médicos dar sua definição.”
Em 1968, um comitê foi formado na Universidade de Harvard para estabelecer critérios mínimos
de morte. O grupo determinou que a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte
total. A idéia é que existe um ponto a partir do qual a destruição das células do tronco cerebral é de tal
ordem que o indivíduo não tem mais como se recuperar. Esse momento engloba toda a atividade
encefálica, não apenas lesões que deixam uma pessoa em coma ou inconsciente para sempre. Desde
então, o padrão de Harvard vem sendo adotado pela maioria dos países, inclusive o Brasil.
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A formação do comitê em 1968 não foi por acaso. Além da evolução dos aparelhos de suporte de
vida, transplantes de rins estavam sendo realizados com sucesso e, meses antes, o
primeiro transplante de coração havia sido feito na África do Sul. Diagnosticar a morte com o máximo de
antecedência, portanto, possibilitaria manter tecidos e órgãos intactos. E viabilizaria os transplantes. Para
entender o porquê, o melhor é acompanhar uma pessoa clinicamente morta desde sua chegada a um
hospital até seu corpo ficar rígido e gelado.
Por dentro da UTI
Um jovem chega à UTI de um pronto-socorro com trauma de crânio causado por um acidente de
carro. É um caso parecido com o que matou Ayrton Senna, em 1994. O paciente respira por aparelhos
desde que foi atendido pela ambulância, mas os médicos logo se dão conta de que seu caso é
irrecuperável. Mesmo assim, ninguém se atreve a dar o diagnóstico de morte cerebral. “Somente
profissionais da neurologia podem protocolar esse tipo de óbito”, diz a neurocirurgiã Margarida
Conceição, que diagnosticou mais de 300 casos assim.
Quando entra na sala, o neurocirurgião começa a buscar algum reflexo cerebral. O primeiro exame
consiste no velho teste da sensibilidade das pupilas, seguido de uma puxada suave do tubo de
respiração do paciente. Em pessoas com o cérebro ativo, essa ação provoca tosse ou vômitos. Depois, o
médico faz o teste dos “olhos de boneca”, virando a cabeça para o lado para ver se os olhos
acompanham o movimento ou ficam parados, como se fossem de brinquedo. Outro exame é ainda mais
estranho: colocar soro gelado em um dos ouvidos do paciente. Se os olhos desviarem para o lado
contrário da água, ainda existe algum sinal de vida cerebral. Se nenhuma das tentativas der resultado,
passa-se ao teste de apnéia: o médico desconecta o ventilador que mantém a respiração para ver se há
tentativa de buscar ar por conta própria. Se a taxa de oxigênio no sangue começa a baixar, os médicos
rapidamente reconectam o aparelho. Mas certos de que o tronco encefálico, responsável pelo ato
involuntário da respiração, não funciona mais.
Pausa. Apesar de realizado em todo o mundo, o teste de apnéia é contestado por algumas vozes.
O exame, exigido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) para a comprovação de falência encefálica,
é apontado como capaz de causar a morte em vez de diagnosticá-la. Diversos estudos, como o trabalho
publicado por uma equipe da Universidade do Estado de Nova York na revista Archives of Neurology,
apontam os riscos da apnéia, que poderia provocar queda de pressão, reduzindo o fluxo sanguíneo
nocérebro e, eventualmente, matando pacientes recuperáveis. E mesmo defensores do teste de apnéia
reconhecem que não há consenso sobre o exame, como mostrou estudo do holandês Eelco Wijdicks
publicado na revista Neurology. Mas os argumentos são contestados pelo CFM. “Os critérios em uso
correspondem aos conhecimentos científicos atuais”, diz Solimar Pinheiro da Silva, coordenador da
comissão do CFM que elaborou a resolução sobre morte encefálica. “O teste é o último a ser feito. O
paciente é monitorado todo o tempo e recebe oxigênio na traquéia.”
Além da apnéia, há exames toxicológicos: é preciso ter certeza que o sistema nervoso não está em pane
pela ingestão de álcool, barbitúricos ou analgésicos. Também é feita uma angiografia, a radiografia de 4
vasos cerebrais em busca de algum fluxo sanguíneo. Se as respostas são negativas, o trabalho do
neurocirurgião está encerrado, mas não, ele ainda não pode assinar o óbito dizendo que o jovem do carro
está morto. Pela lei, todo o procedimento tem de ser repetido pelo menos 6 horas depois. Enquanto isso,
a polêmica continua.
“O único propósito do atual diagnóstico de morte cerebral é obter órgãos viáveis para transplante”,
diz o anestesista britânico David Hill, que participou do encontro Sinais da Morte, promovido em fevereiro
pela Academia Pontifícia de Ciências, no Vaticano. O simpósio patrocinado pela Igreja aconteceu como
parte de uma tentativa de discutir o conceito de morte cerebral criado pelo comitê de Harvard. Para Hill,
os atuais critérios de diagnóstico não são benéficos ao paciente, mas apenas para o receptor dos órgãos
– ele preferiria ver a apnéia substituída pela hipotermia, que resfria o corpo para 33 ºC por até 24 horas
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na tentativa de recuperar alguma atividade cerebral. Esse tratamento, porém, é considerado caro, pode
deteriorar a qualidade do órgão que será doado e tem a eficácia colocada em dúvida pela maioria dos
médicos.
Quando a repetição do exame também apontar morte encefálica, um grupo especializado em falar
com famílias sobre a doação de órgãos é destacado para o caso. Se os parentes concordarem, médicos
voltam para a UTI, onde o corpo, legalmente morto há algumas horas, respira por aparelhos, tem o
coração batendo e órgãos vitais perfeitos. Aquela pessoa nunca mais vai sentir, ver ou ter algum traço de
pensamento racional, mas, quando o bisturi penetrar na pele, é possível que ela dê um pulo. Parece filme
de terror, não? Trata-se do “efeito lazaróide” (de Lázaro, aquele que Jesus ressuscitou). Não significa que
a pessoa teve alguma dor: é apenas um reflexo da medula espinhal. Por isso, alguns médicos costumam
aplicar anestesia geral antes da operação. Mas peraí: se a pessoa já está morta, por que anestesiá-la?
Em 2000, a revista do Royal College of Anaesthetists, de Londres, recomendou usar anestesia em
pacientes com morte encefálica. No Brasil, entretanto, essa prática não é costume. “Doadores de órgãos
não precisam de anestesia, pois estão em coma aperceptivo, arreativo e irreversível”, diz Maria Cristina
Ribeiro de Castro, vice-presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos. Quando um
anestesista participa da operação, é para manter a saúde dos órgãos. “Ele se concentra na hidratação,
oxigenação, pressão arterial e sobretudo nos hormônios que ativam os órgãos e que, com a morte
encefálica, a hipófise deixou de produzir”, diz Elias David Neto, supervisor da equipe detransplante de
rins e pâncreas do Hospital das Clínicas de São Paulo. “É como operar um paciente comum, mas que
não sente dor.”
Após a retirada dos órgãos, os aparelhos são finalmente desligados. O sangue começa a parar, o
coração dá as últimas batidas, as células deixam de se reproduzir. Depois de 3 horas, ainda é possível
fazer um braço se contrair com estímulos elétricos. Só então o corpo do jovem que se acidentou com um
carro fica duro, pálido e frio, aquilo que as pessoas geralmente aceitam como morte.
Diante do fim
A discussão para determinar a morte existe também quando não há órgãos em jogo, mas o fim da
vida é apenas questão de tempo. Trata-se da antiga polêmica da eutanásia. Mas em casos assim, as
questões técnicas viram um difícil dilema moral. É correto deixar de socorrer um bebê que ainda respira?
O valor sagrado da vida existe mesmo quando só possibilita mais sofrimento? Devo ajudar a matar meu
irmão que não quer ficar para sempre imóvel numa cama? A questão é especialmente difícil para os
médicos. São profissionais que passam 7 anos aprendendo a lutar contra a morte para descobrir, na UTI,
que às vezes devem agir a favor dela. “Ficamos entre duas opções: sermos assassinos ou torturadores”,
diz Almeida, da Unifesp.
A lei no Brasil encara como homicídio a eutanásia, o ato deliberado de apressar o fim de quem
está morrendo. A ortotanásia, a “morte no momento certo”, é considerada omissão de socorro e tem pena
de 1 a 6 meses de prisão. Apesar disso, a ortotanásia é freqüentemente praticada. O médico retira os
aparelhos e deixa o doente seguir seu curso de morte. Trata-se do modo mais comum de se morrer nas
UTIs pediátricas do país. Dois estudos publicados em março pela Revista Brasileira de Pediatria, sobre
167 casos ocorridos em 2002 nas principais UTIs pediátricas do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais,
mostram que pelo menos 36% das crianças morreram após a “limitação do suporte de vida”, expressão
que reúne decisões como não entubar, não reanimar e até retirar o suporte vital.
O estudo observou que pelo menos 30% desses casos são omitidos ou reportados
contraditoriamente nos registros dos hospitais. Mas há quem veja na própria legislação fundamentos para
apressar a morte quando o tratamento só prolonga o sofrimento. “O 1º artigo da Constituição assegura a
dignidade da pessoa humana”, afirma Lívia Pithan, professora de Direito da PUC-RS. “Esse direito deve
ser estendido até os últimos momentos. Casos como o de Terri Schiavo poderiam ter esse tratamento
legal.” A chamada “obstinação terapêutica”, ato de prolongar o tratamento sem benefícios ao paciente, é
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condenado até pela Igreja. Na mesma alocução de 1957, Pio 12 afirmou que, “quando houver
desesperança, os médicos não devem se valer de instrumentos extraordinários para prolongar
indefinidamente a vida”.
Mesmo com amparo legal e religioso, ainda faltam critérios para estabelecer quando é lícito
suspender o suporte de vida. Em julho, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo propôs resolução
considerando ético limitar ou suspender procedimentos que prolonguem a vida do doente terminal.
“Queremos que os médicos discutam com a família, assim como quando vão realizar uma cirurgia, a
questão da morte”, diz Reinaldo Ayer de Oliveira, conselheiro responsável pela resolução. Hoje, em
somente 9% dos casos a família é informada antes do desligamento dos aparelhos.
Como ainda não se sabe direito o que é certo ou não, a questão acaba sendo resolvida por um
fator bem prático: grana. Dependendo se o plano de saúde estiver ou não pagando a diária da UTI, a
recomendação da família pode mudar de “doutor, faça o possível para mantê-lo vivo” para “só queremos
que ele não sofra mais”. O dinheiro também influencia a decisão dos médicos. Se o paciente atendido por
um convênio estabiliza em estado vegetativo, é comum ser encaminhado para casa, o que a família nem
sempre recebe como boa notícia. Será preciso alguém sempre por perto para dar banho, retirar as fezes
e secar a pele com lâmpadas para evitar escaras. “A época em que os pacientes em coma mais
infeccionam, precisando voltar ao hospital, é o Natal”, diz Margarida. “Muitas pessoas largam o paciente
no hospital, desligam os telefones e só voltam depois do Ano Novo.”
Morrer com qualidade
Imagine a cena. Desenganado pelos médicos, sabendo que tem câncer por todo o corpo, você
adquire doses letais de barbitúrico. Vai para casa e espera o tempo passar. Quando a dor ficar
insuportável, antes de não conseguir mais ficar em pé, você reúne família e amigos, coloca as músicas
preferidas e desfruta um bom jantar. Depois, toma o veneno que guarda há meses e dá adeus ao mundo.
Mortes assim já acontecem 3 vezes por mês no estado de Oregon, EUA. Desde 1997, uma
pessoa em estado terminal pode receber instruções sobre como praticar suicídio quando a dor for
insuportável. Esse caso é exemplo de um debate que cresce: a qualidade de vida do paciente e da
família durante a morte. “Saber que a morte está próxima pode, sim, ser encarado como uma vantagem”,
afirma o psicólogo hospitalar Cedric Nakasu. Se conseguir aceitar o prognóstico dos médicos e parar de
lutar desesperadamente contra a morte, a pessoa pode aproveitar o tempo que lhe resta resolvendo
problemas pendentes e se despedindo. Tendo uma morte serena. “O paciente tem chance de recordar,
reviver e ressignificar seu passado. Esses 3 ‘erres’ definem uma boa morte”, diz Nakasu.
A idéia de qualidade de vida nos momentos finais também foi influenciada por outra constatação.
Baseada em entrevistas com dezenas de pacientes terminais, a psiquiatra americana Elisabeth KüblerRoss concluiu que a maioria deles sofre, além da dor física, com a separação da família, problemas
financeiros, vergonha e até inveja de quem não está doente. “Num hospital, a pessoa deixa de ser ela
mesma, de ter suas coisas, roupas e funções para se tornar apenas um paciente, tendo que obedecer
regras, horários para dormir e comer que não são os seus”, diz Nakasu.
É por isso que muita gente prefere ficar em casa com a família a ganhar uns dias ao lado de
outros doentes, equipamentos e enfermeiras. No Brasil, alguns estados já traçam leis nessa direção. Em
São Paulo, o paciente terminal pode decidir quando e onde quer morrer. Uma lei sancionada pelo então
governador Mário Covas em 1999 estabelece o direito de um doente recusar o prolongamento de sua
agonia e optar pelo local da morte. O próprio Covas, que morreu de câncer, beneficiou-se dessa lei. O
papa João Paulo 2º fez a mesma escolha. Silenciado pelo mal de Parkinson, morreu em seu apartamento
no Palácio Apostólico.
Enquanto a retirada de aparelhos e o direito de arbitrar sobre a própria morte começam a ser
considerados normais, a eutanásia permanece um tabu no Brasil. Não que ela não aconteça. “Muitos
médicos, diante de pacientes terminais que sofrem dores atrozes, aplicam sedativos acima do limiar
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tóxico, sabendo que isso resultará em morte”, diz Almeida, da Unifesp. “Mas isso, é claro, nunca aparece
nos registros.” Em alguns casos, a ação de matar o paciente produz menos sofrimento que o ato de não
prestar socorro. O caso da americana Terri Schiavo é o melhor exemplo. Após os tribunais americanos
decidirem pela retirada dos tubos de alimentação, Terri levou 13 dias para morrer de fome e de sede.
“Seria bem mais ético aplicar uma injeção letal para reduzir não o sofrimento dela, que era incapaz de
sentir, mas da família e dos médicos que a trataram por tanto tempo”, afirma Almeida.
Essa opinião toca num ponto crucial da cultura cristã: sempre preferimos omissões a ações. Em
vez de aplicar uma injeção letal para acabar com a vida de um doente irreversível, achamos mais ético
retirar seus aparelhos e deixar que ele siga seu curso “natural”. “Qual a base ética dessa distinção?”,
pergunta o filósofo australiano Peter Singer, no livro Rethinking Life and Death (“Repensando a Vida e a
Morte”, sem edição brasileira). “Tendo optado pela morte, devemos nos certificar de que ela se dê da
melhor maneira possível.”
Publicado em 1994, o livro defende que nossos fundamentos éticos não estão adaptados ao
mundo real. E que o valor sagrado atribuído a qualquer vida humana, um dos traços mais forte da nossa
cultura, está se diluindo em favor de uma vida com menos sofrimento. Por exemplo: costumamos afirmar
que a vida começa se não na concepção, algumas semanas depois dela. Mas podemos concordar com
interromper essa vida para evitar o sofrimento de um feto anencéfalo e de sua mãe ou com a pesquisa de
embriões se a pesquisa com células-tronco fizer aleijados andar.
Segundo Singer, esse jeito de pensar está fazendo parte das decisões diárias sem nos darmos conta. Em
vez das regras tradicionais como “não matar” ou “crescei e multiplicai-vos”, médicos, doentes e familiares
estão preferindo “responsabilize-se pelas conseqüências de seus atos” e “respeite o desejo de viver e
morrer”. Ou seja: o caráter sagrado da vida pode estar ruindo. Se Singer estiver certo, discussões sobre o
começo e o fim vão continuar. Mas ao menos será mais fácil entender por que vida e morte, as duas
questões fundamentais do ser humano, estão causando tanta polêmica.
Revolta
Tudo o que Heiner Schmitz, 52 anos, queria era falar sobre sua situação. “Ninguém questiona como me
sinto”, disse semanas antes de ser vítima de um tumor. “É frustrante ver todos evitando o assunto. Será
que não entendem? Eu vou morrer!”
Mágoa
Waltraud Bening queria morrer em casa, mas o marido não concordou com a situação. Magoada, se
internou e proibiu o companheiro de visitá-la. Um dia, mandou que chamassem o marido. Ele veio. E ela
morreu na manhã seguinte.
Silêncio
É difícil saber o que se passou na cabeça de Michael Föge nos últimos dias de sua vida. Um tumor
cerebral lhe tirou a capacidade de falar. Silenciosamente, ele definhou até que, em 12 de fevereiro de
2004, não acordou mais.
Surpresa
Seis meses antes de morrer, o contador Wolfgang Kotzahn ficou sabendo que tinha um carcinoma. “Foi
um choque. Nunca havia contemplado a idéia de morrer. Agora vejo tudo com uma perspectiva diferente.
Tudo é importante."
Leveza
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Michael Lauermann era workaholic até que desmaiou no trabalho. Descobriu que tinha tumor cerebral
inoperável. Aproveitou a situação com gosto – livre e leve, como se não tivesse peso na vida. Morreu 6
semanas após o diagnóstico.
Recusa
Mesmo ciente de que uma doença incurável lhe deixava pouco tempo de vida, Iara Behrens não queria
encarar a morte iminente. “Tenho esperança de melhorar. Acabo de comprar uma geladeira nova. Se ao
menos eu soubesse...”
Histeria
Ursula Appeldorn tinha um histórico de distúrbios mentais. No dia em que soube que iria morrer começou
a gritar e assim ficou por dias. Num raro momento de lucidez, concordou em se internar numa casa para
pacientes terminais.
Serenidade
Maria Hai-Anh Tuyet Cao, 52 anos, não temia a morte. Pelo contrário: preparava-se para o momento
todos os dias enquanto seus pulmões perdiam força. “Abraço a morte. Ela não é eterna. Quando nos
encontramos com Deus, nos tornamos belos.”
Culpa
Mãe de 4 filhos entre 7 e 15 anos, Beate Taube dizia que a pior parte de enfrentar a morte era deixar os
filhos para trás. “Fico triste em saber que não estarei aqui para apoiar minhas crianças. Digo a elas 100
vezes por dia o quanto as amo.”
Revista Super Interessante - 2005
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