acesso à justiça i - Conheça os Nossos Autores

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acesso à justiça i - Conheça os Nossos Autores
Coleção CONPEDI/UNICURITIBA
Vol. 1
Organizadores
Prof. Dr. Orides Mezzaroba
Prof. Dr. Raymundo Juliano Rego Feitosa
Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira
Profª. Drª. Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr
Coordenadores
Profª. Drª. Mônica Bonnetti Couto
Profª. Drª. Maria dos Remédios Fontes Silva
Prof. Dr. Miguel Kfouri Neto
ACESSO À JUSTIÇA I
2014
2014
Curitiba
Curitiba
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
A174
Nossos Contatos
São Paulo
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Acesso à justiça I
Coleção Conpedi/Unicuritiba.
Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano
Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira
/ Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.
Coordenadores : Mônica Bonnetti Couto /Miguel
Kfouri Neto / Maria dos Remédios Fontes Silva.
Título independe nte - Curitiba - PR : vol.1 - 1ª ed.
Clássica Editora, 2014.
550p. :
ISBN 978-85-99651-88-9
1. Direito - defensoria.
I. Título.
CDD 341.3344
EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira
Alexandre Walmott Borges
Daniel Ferreira
Elizabeth Accioly
Everton Gonçalves
Fernando Knoerr
Francisco Cardozo de Oliveira
Francisval Mendes
Ilton Garcia da Costa
Ivan Motta
Ivo Dantas
Jonathan Barros Vita
José Edmilson Lima
Juliana Cristina Busnardo de Araujo
Lafayete Pozzoli
Leonardo Rabelo
Lívia Gaigher Bósio Campello
Lucimeiry Galvão
Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy
Capa: Editora Clássica
Luiz Eduardo Gunther
Luisa Moura
Mara Darcanchy
Massako Shirai
Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Nilson Araújo de Souza
Norma Padilha
Paulo Ricardo Opuszka
Roberto Genofre
Salim Reis
Valesca Raizer Borges Moschen
Vanessa Caporlingua
Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Vladmir Silveira
Wagner Ginotti
Wagner Menezes
Willians Franklin Lira dos Santos
XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA
Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR
MEMBROS DA DIRETORIA
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente
Cesar Augusto de Castro Fiuza
Vice-Presidente
Aires José Rover
Secretário Executivo
Gina Vidal Marcílio Pompeu
Secretário-Adjunto
Conselho Fiscal
Valesca Borges Raizer Moschen
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
João Marcelo Assafim
Antonio Carlos Diniz Murta (suplente)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)
Representante Discente
Ilton Norberto Robl Filho (titular)
Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)
Colaboradores
Elisangela Pruencio
Graduanda em Administração - Faculdade Decisão
Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira
Graduada em Administração - UFSC
Rafaela Goulart de Andrade
Graduanda em Ciências da Computação – UFSC
Diagramador
Marcus Souza Rodrigues
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I
Sumário
APRESENTAÇÃO .........................................................................................................................................
14
DO JUDICIÁRIO QUE TEMOS AO QUE QUEREMOS: O GRANDE DESAFIO DA CIDADANIA NO BRASIL
(Mayara de Carvalho Araújo) .....................................................................................................................
16
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................
17
DOS DIREITOS DE CIDADANIA ....................................................................................................................
18
O JUDICIÁRIO E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DE CIDADANIA NO BRASIL ................................................
26
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................................
34
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
36
ETNOPOIESE: O ACESSO À JUSTIÇA POR MEIO DA EFETIVAÇÃO DO ETNODESENVOLVIMENTO NAS
SOCIEDADES MULTICULTURAIS (Marcelino Meleu e Aleteia Hummes Thaines) ......................................
39
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................
40
ACESSO À JUSTIÇA EM UM CONTEXTO MULTICULTURAL ..........................................................................
42
O DESENVOLVIMENTO COMO FUNDAMENTO PARA A EFETIVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA ÀS COMUNIDADES INDÍGENAS E TRIBAIS .....................................................................................................................
45
A TEORIA SISTÊMICA E A AUTOPOIESI DO DIREITO COMO FUNDAMENTO PARA O ACESSO À JUSTIÇA E
PARA A CARACTERIZAÇÃO DO CONCEITO DE ETNOPOIESE .......................................................................
49
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................................
56
REFERÊNCIAS ..............................................................................................................................................
58
A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO ALTERNATIVA AO SISTEMA PENAL CONVENCIONAL NO COMBATE
AO BULLYING (Juliana Frei Cunha) ..............................................................................................................
62
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
63
FENÔMENO BULLYING: ORIGEM E CONCEITO ......................................................................................
63
IDENTIFICAÇÃO, PREVENÇÃO E REPRESSÃO .........................................................................................
65
AS DIVERSAS FORMAS DE OCORRÊNCIA DO FENÔMENO BULLYING ..................................................
68
A JUSTIÇA RESTAURATIVA .......................................................................................................................
79
CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................................................................
86
REFERÊNCIAS ..............................................................................................................................................
86
JUSTIÇA RESTAURATIVA NO ÂMBITO DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS (Alexandre Ribas de Paulo) ..........
92
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................
93
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I
A CONSOLIDAÇÃO DA JURISDIÇÃO PENAL ESTATAL ...................................................................................
94
OS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS: LEI NO 9.099/95 ................................................................................
98
PRÁTICAS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO ÂMBITO PENAL BRASILEIRO .....................................................
101
PRÁTICAS RESTAURATIVAS EM RELAÇÃO AOS DELITOS DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO ......................
105
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................................
108
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
110
DA CRISE DO JUDICIÁRIO AO EMPODERAMENTO DA PESSOA HUMANA PARA A RESOLUÇÃO DE
CONFLITOS: NOTAS SOBRE A MEDIAÇÃO NA PÓSMODERNIDADE (Camila Figueiredo Oliveira Gonçalves
e Thalyany Alves Leite) ...............................................................................................................................
113
DO MODERNO AO PÓS-MODERNO NO DIREITO: O RECONHECIMENTO DA COMPLEXIDADE DO
PENSAMENTO JURÍDICO E DA IMPORTÂNCIA DA PESSOA HUMANA .................................................
117
A CRISE DA JURISDIÇÃO E A EMERGÊNCIA DOS MEIOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE
CONFLITO .................................................................................................................................................
121
A EMERGÊNCIA DA MEDIAÇÃO COMO MÉTODO ALTERNATIVO DE RESOLUÇÃO CONFLITOS: POR
UM MODELO EFICAZ PAUTADO NO EMPODERAMENTO E NA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ..
123
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
127
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
128
A OBRIGATORIEDADE DA MEDIAÇÃO NO BRASIL (Renata Christiana Vieira Maia e Vivianne Pêgo de
Oliveira Barbosa) .......................................................................................................................................
131
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................
132
A MEDIAÇÃO COMO MÉTODO ALTERNATIVO DE RESOLUÇÃO CONFLITOS .......................................
133
DA MEDIAÇÃO OBRIGATÓRIA NO DIREITO COMPARADO: ITÁLIA E ARGENTINA ...............................
136
DA OBRIGATORIEDADE DA MEDIAÇÃO NO BRASIL ...............................................................................
142
CONCLUSÃO ...............................................................................................................................................
149
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
150
MEDIAÇÃO AMBIENTAL: O ACESSO À JUSTIÇA PELO OLHAR DA EXTRAJUDICIALIDADE (Luciana
Monduzzi Figueiredo) ................................................................................................................................
152
ACESSO À JUSTIÇA E TUTELA COLETIVA ................................................................................................
154
O MONOPÓLIO JUDICIAL NA RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS: UMA NECESSÁRIA DESCONSTRUÇÃO .
157
A PREVENÇÃO COMO MECANISMO DE EFETIVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA ....................................
161
MEDIAÇÃO DE CONFLITOS: CONCEITUAÇÃO, OBJETIVO, PRINCÍPIOS E LIMITES ..............................
165
A MEDIAÇÃO NA RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS ...................................................
172
CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................................................................
175
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
176
ACESSO À JUSTIÇA: REFLEXÕES SOBRE A FORMA DE CÁLCULO DAS CUSTAS JUDICIAIS (Maria
Tavares Ferro e Marcia Carla Pereira Ribeiro) ...........................................................................................
178
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
179
ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA E SEUS IMPACTOS ECONÔMICOS ..............................................
180
VALOR DA CAUSA .....................................................................................................................................
183
PARÂMETRO PARA ÔNUS DE SUCUMBÊNCIA ........................................................................................
184
BASE DE CÁLCULO PARA CUSTAS JUDICIAIS ..........................................................................................
188
VALOR DA CAUSA INESTIMÁVEL .............................................................................................................
191
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
192
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
193
A RESPONSABILIDADE PROCESSUAL POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ: BREVE ENSAIO À LUZ DO DIREITO
PORTUGUÊS E BRASILEIRO (Olívia Marcelo Pinto de Oliveira e Ana Vládia Martins Feitosa) ..........................
194
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................
195
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITO DE AÇÃO .....................................................................................................
196
ABUSO DE DIREITO E LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ .............................................................................................
199
RESPONSABILIDADE DA PARTE LITIGANTE DE MÁ-FÉ ................................................................................
206
RESPONSABILIDADE DO ADVOGADO POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ .............................................................
210
CONCLUSÃO ...............................................................................................................................................
216
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
218
ACESSO À JUSTIÇA, CELERIDADE E (IN)EFETIVIDADE PROCESSUAL: A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO
ARTIGO 285A DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A (IM)POSSIBILIDADE DE PROCEDÊNCIA PRIMA FACIE
(Lara Careta Parise e Lara Santos Zangerolame Taroco) ............................................................................
220
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................
222
A (IN)EFICIÊNCIA DA TUTELA JURISDICIONAL E O IMPROCEDÊNCIA PRIMA FACIE: (NECESSÁRIAS)
MODIFICAÇÕES LEGISLATIVAS ...................................................................................................................
223
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO E A INSERÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO PROCESSO: UMA
ANÁLISE À LUZ DA APROXIMAÇÃO DA ÉTICA DO DIREITO .........................................................................
227
A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A (RE)APROXIMAÇÃO DA ÉTICA DO DIREITO ................................................
228
A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 285A DO CPC:SUPRESSÃO DO CONTRADITÓRIO, PROPORCIONALIDADE E A ADI 3.695 ............................................................................................................................
236
A ESTRUTURAÇÃO DA PROCEDÊNCIA PRIMA FACIE FRENTE A OMISSÃO LEGISLATIVA: CONTORNOS
JURISPRUDENCIAIS ....................................................................................................................................
240
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................................
244
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
254
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ÂMBITO DA JUSTIÇA DO TRABALHO: PELA
NECESSIDADE DE EXTINÇÃO DO JUS POSTULANDI E CRIAÇÃO DE UMA DEFENSORIA PÚBLICA
ESPECIALIZADA ........................................................................................................................................
249
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................
251
JUS POSTULANDI x ACESSO À JUSTIÇA .......................................................................................................
252
DA EXISTÊNCIA DE UMA ADVOCACIA PÚBLICA PERANTE A JUSTIÇA DO TRABALHO ................................
258
CONCLUSÃO ...............................................................................................................................................
261
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
262
REFLEXÕES SOBRE OS DESAFIOS PARA EFETIVAÇÃO DA NOVA REDAÇÃO DO ARTIGO 4º, III, DA LEI
COMPLEMENTAR 80/94: A FUNÇÃO INSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA NA EDUCAÇÃO DE
DIREITOS (José Vagner de Farias) ..............................................................................................................
264
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
265
A EDUCAÇÃO DE DIREITOS DENTRE AS VÁRIAS ATRIBUIÇÕES DA DEFENSORIA PÚBLICA: DISTINÇÃO
EM RELAÇÃO À JUSTIÇA GRATUITA, ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA E ASSISTÊNCIA JURÍDICA ................
268
OS DESAFIOS PARA A EFETIVA EDUCAÇÃO EM DIREITOS ..........................................................................
271
CONCLUSÕES .............................................................................................................................................
275
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
276
EFICÁCIA DA SENTENÇA E COISA JULGADA NAS AÇÕES COLETIVAS: O NECESSÁRIO EQUILÍBRIO ENTRE
A EFETIVIDADE DA TUTELA COLETIVA E A SEGURANÇA JURÍDICA (Thaís Amoroso Paschoal) .................
278
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................
279
DA TUTELA INDIVIDUAL À TUTELA COLETIVA ........................................................................................
280
EFICÁCIA E AUTORIDADE DA SENTENÇA COLETIVA ..............................................................................
285
OS DIFERENTES REGIMES DE PRODUÇÃO DE EFEITOS PELA SENTENÇA E DA COISA JULGADA
NAS AÇÕES COLETIVAS: EFICÁCIA E COISA JULGADA ERGA OMNES, ULTRA PARTES E SECUNDUM
EVENTUM LITIS ........................................................................................................................................
287
LIMITAÇÃO TERRITORIAL DOS EFEITOS DA SENTENÇA E DA COISA JULGADA NAS AÇÕES COLETIVAS:
O ART. 16 DA LACP ....................................................................................................................................
289
CONCLUSÃO ...............................................................................................................................................
300
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
302
LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA NO CONTROLE JUDICIAL COLETIVO DE ATOS ADMINISTRATIVOS
E SUAS PERPLEXIDADES (Esther Benayon Yagodnik) .................................................................................
304
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................
305
O CONTROLE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS PELO PODER JUDICIÁRIO ..............................................
306
CONTROLE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS VIA ESPECIAL COLETIVA ...................................................
310
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I
DEMOCRATIZAÇÃO DO CONTROLE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS NA DEFESA DE INTERESSES
TRANSINDIVIDUAIS ..................................................................................................................................
311
PERPLEXIDADES NA APLICAÇÃO PRÁTICA .............................................................................................
313
CONCLUSÃO ...............................................................................................................................................
318
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
320
ACESSO À JUSTIÇA ATRAVES DA LIQUIDAÇÃO E CUMPRIMENTO DE SENTENÇA GENÉRICA EM AÇÕES
COLETIVAS REFERENTE AO INTERESSE INDIVIDUAL HOMOGÊNEO (Daniele Alves Moraes) .......................
322
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................
323
PROCESSO COLETIVO COMO VERTENTE DO ACESSO À TUTELA JURISDICIONAL ..............................
325
LIQUIDAÇÃO COLETIVA: OBJETO ............................................................................................................
329
LEGITIMIDADE E COMPETÊNCIA NO CUMPRIMENTO DA SENTENÇA COLETIVA REFERENTE A
DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS ..................................................................................................
334
CUMPRIMENTO INDIVIDUAL ..................................................................................................................
337
CUMPRIMENTO COLETIVO DA SENTENÇA ............................................................................................
339
PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA E O PRAZO DO ART. 100 DO CÓDIGO DO CONSUMIDOR
341
REPARAÇÃO FLUIDA .................................................................................................................................
343
APROVEITAMENTO IN UTILIBUS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA PROFERIDA EM AÇÃO COLETIVA
345
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
346
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
347
JUSTIÇA AGRÁRIA: A ESPECIALIDADE PARA O ACESSO À JUSTIÇA (Caroline Vargas Barbosa e Maria
Cristina Vidotte Blanco Tárrega) .................................................................................................................
350
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
351
DO ACESSO À JUSTICA ...............................................................................................................................
352
DO ACESSO À JUSTIÇA DOS TRABALHADORES RURAIS ........................................................................
358
ESPECIALIDADE: NECESSÁRIO INSTRUMENTO DE ACESSO À JUSTIÇA .......................................................
359
CONCLUSÃO ...............................................................................................................................................
370
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
372
O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO AMBIENTAL À LUZ DOS ARGUMENTOS DE JEREMY
WALDRON CONTRA O JUDICIAL REVIEW (Angela Cassia Costaldelo e Júlio César Garcia) .......................
375
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
376
O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO AMBIENTAL ................................................................
377
A POSIÇÃO DE JEREMY WALDRON SOBRE O JUDICIAL REVIEW ..........................................................
382
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I
RETROCESSO AMBIENTAL OU RETROCESSO DEMOCRÁTICO? .............................................................
385
CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................................................................
393
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
394
O ACESSO À JUSTIÇA ATRAVÉS DOS JUIZADOS ITINERANTES FEDERAIS PELOS “RIBEIRINHOS” DO
AMAZONAS (Bernardo Silva de Seixas e Roberta Kelly Silva Souza) ...................................................................
396
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
397
PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL ..............................................................................................................
400
DA INOVAÇÃO DA JUSTIÇA ITINERANTE ................................................................................................................
406
DA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO ATRAVÉS DOS JUIZADOS ITINERANTES FEDERAIS .........................
407
DOS BENEFÍCIOS DOS JUIZADOS ITINERANTES FEDERAIS NAS CIDADES DO INTERIOR DO AMAZONAS
410
CONCLUSÃO ...............................................................................................................................................
411
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
412
DIREITO À VIDA VERSUS LIBERDADE RELIGIOSA: COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS, ACESSO À
JUSTIÇA E HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL (Juvêncio Borges Silva e José Querino Tavares Neto) ..........
414
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
415
ASPECTOS HISTÓRICOS DO SANGUE E DA TRANSFUSÃO DE SANGUE .........................................................
416
AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ E A TRANSFUSÃO DE SANGUE ........................................................................
417
LIBERDADE E RELIGIÃO ........................................................................................................................................
419
DA AUTONOMIA DO PACIENTE ...........................................................................................................................
425
A RESPONSABILIDADE MÉDICA FACE À TRANSFUSÃO DE SANGUE .............................................................
429
DIREITO À VIDA VERSUS LIBERDADE RELIGIOSA: UMA COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS A SER
DIRIMIDA À LUZ DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL ...............................................................................
431
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................................
436
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
437
O TERCEIRO SETOR NA PROMOÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA (Rodrigo dos Santos Ribeiro e Rodrigo
Pereira Moreira) ....................................................................................................................................................
440
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
441
O AVANÇO DO NEOLIBERALISMO .......................................................................................................................
442
O TERCEIRO SETOR ...............................................................................................................................................
444
A NOVA COMPREENSÃO DO ACESSO À JUSTIÇA .............................................................................................
448
OS MECANISMOS CONSENSUAIS ........................................................................................................................
452
OS REGIMES DE PARCERIA ...................................................................................................................................
457
PARCERIAS REALIZADAS PARA PROMOÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA .............................................................
462
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I
CONCLUSÃO ...............................................................................................................................................
463
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
465
SUPREMACIA JUDICIAL E SUPEREGO NA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL (Daniel Nunes Pereira e Fernando
Gama de Miranda Netto) .......................................................................................................................................
467
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
468
A SUPREMACIA POLÍTICA DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL .............................................................................
469
REVOLUÇÕES CONSTITUCIONAIS POR MEIO DA AUTORIDADE DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL .............
471
A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DAS CORTES CONSTITUCIONAIS ..............................................................
477
MORALIDADE E INCONSCIENTE NA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL ..................................................................
479
CONCLUSÕES ..............................................................................................................................................
483
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
485
O ACESSO À JUSTIÇA QUALIFICADO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Carliane de Oliveira Carvalho)
488
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
489
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ............................................................................................
491
ACESSO À JUSTIÇA ................................................................................................................................................
493
PROCESSO E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ..........................................................................................
497
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE PÓS-88 ..............................................................................................
499
O RECURSO EXTRAORDINÁRIO E O ACESSO À JUSTIÇA ..................................................................................
502
CONCLUSÃO ...............................................................................................................................................
510
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
511
TEORIA VERSUS PRÁTICA: A REALIDADE DA ADOÇÃO PERANTE A VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE
DO MUNICÍPIO DE CURITIBA (Marilia Pedroso Xavier e Mariana Assumpção Olesko) ...................................
516
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
517
DADOS EMPÍRICOS SOBRE PREFERÊNCIAS E REJEIÇÕES DOS ADOTANTES NA 2ª VARA DA INFÂNCIA E
JUVENTUDE DO MUNICÍPIO DE CURITIBA ........................................................................................................
518
DADOS EMPÍRICOS SOBRE OS MENORES DISPONÍVEIS PARA ADOÇÃO NO MUNICÍPIO DE CURITIBA ....
526
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................................................
529
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................
530
A AÇÃO DE DEPÓSITO E O CONTRATO DE ESCROW NAS OPERAÇÕES DE FUSÕES E AQUISIÇÕES
(Vicente de Paula Marques Filho e Amanda Goda Gimenes) ................................................................................
533
OPERAÇÕES DE FUSÕES E AQUISIÇÕES ............................................................................................................
534
CONTRATO DE DEPÓSITO ESCROW ....................................................................................................................
539
AÇÃO DE DEPÓSITO E ESCROW ...........................................................................................................................
547
CONCLUSÃO ...............................................................................................................................................
549
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................................
550
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I11
Caríssimo(a) Associado(a),
Apresento o livro do Grupo de Trabalho Acesso à Justiça I, do XXII Encontro
Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI),
realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias 29 de maio e 1º
de junho de 2013.
O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente
de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos
da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma
reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,
nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela
tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do
processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos
parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN
do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da
Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro
Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.
Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos,
tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da
produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no
âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a
mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não
apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as
especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.
Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a
enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)
aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a
todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiramnos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores
11
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I12
selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido
mais difícil.
Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada
em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para
seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e
que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto
para eventos.
O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso
comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de
2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão
sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que
inserirem seus dados.
Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os
programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor
fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço
no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –,
mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da
segunda versão, disponível em 2014.
Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de
programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará
importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05,
além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as
dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do
Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube
conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de
elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será
fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07.
12
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I13
Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III
Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o
estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores
do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo
livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras
parcerias e editais para a área do Direito.
Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de
Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do
UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.
Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que
agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada
logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.
Curitiba, inverno de 2013.
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente do CONPEDI
13
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I14
Apresentação
Merece aplausos a iniciativa – ímpar – do Conselho Nacional de Pesquisa e PósGraduação em Direito (CONPEDI) na promoção da reflexão e do debate em torno de temas
complexos, importantes e da atualidade, o que tem feito com absoluto êxito e singular
propriedade. Neste sentido, o XXII Encontro Nacional, realizado na UNICURITIBA entre os
dias 29 de maio a 01 de junho do corrente ano, em torno do tema “25 anos da Constituição
Cidadã: Os atores sociais e a concretização sustentável dos objetivos da República” confirma
a longa e profícua trajetória do CONPEDI.
Constitui motivo de honra e orgulho, para nós, partilhar desse conhecimento e, a
convite do Exmo Presidente, coordenar o Grupo de Trabalho “Acesso à Justiça I”, no âmbito
do qual as discussões centraram-se, como o próprio título anuncia, em questão que é atemporal
e universal, sobretudo presente nas democracias.
É bem verdade que os estudos sobre o acesso à Justiça já remontam e ganharam
espaço há algumas décadas. Todavia, ainda hoje – ou quiçá, mais agudamente nos dias de hoje
– releva-se de grande valia e oportunidade (re) pensar o acesso à Justiça, sobretudo a partir da
identificação de soluções para o seu aprimoramento.
Os artigos e trabalhos apresentados no Grupo de Trabalho que agora
apresentamos revelaram a maturidade dos pesquisadores, pois partiram de uma premissa,
deveras acertada, da superação de uma clássica confusão entre o mero Acesso ao Judiciário e o
verdadeiro Acesso à Justiça (ou acesso à ordem jurídica justa, como quer Kazuo Watanabe).
Permitiram-nos constatar a evolução no conceito e na compreensão do significado do instituto
do ‘Acesso à Justiça’.
Neste passo, presenciou-se desde artigos preocupados com a dogmática jurídica
e a técnica processual, até os que estudaram novas frentes e possibilidades de realização da
Justiça, idéia que se afina com a realidade complexa e multifacetada da contemporaneidade.
Hoje, aliás, cada vez mais ganha adeptos a constatação de que o sentido
tradicional do acesso à justiça, tal como contemplado no art. 5, inc. XXX, da Constituição
Federal, não guarda mais aderência com o mundo de hoje, massificado e globalizado.
14
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I15
Particular atenção deu-se, em vários dos estudos aqui encartados, à mediação e
outras técnicas de solução alternativas de conflitos.
Apresentaram-se as vantagens das
soluções negociadas e consensuais, e a eficácia destas à resolução definitiva dos conflitos.
O tema central do CONPEDI – 25 anos da Constituição – foi um terreno fértil
para as discussões em torno do princípio do acesso à Justiça e da inafastabilidade do Judiciário,
notadamente pensando-se em caminhos e mecanismos para além do Judiciário (que tanto
protagonismo teve e tem, na última década).
Não há uma resposta única e definitiva para resolver o preocupante problema da
“Crise da Justiça” e, segundo quer nos parecer, os problemas devem ser enfrentados
simultaneamente, tanto pela via do aperfeiçoamento da dogmática e técnica processual, quanto
pelo aprimoramento e maior divulgação dos mecanismos alternativos de solução de conflitos e,
por fim, por uma maior atenção à gestão da justiça.
Nessa medida, estão de parabéns o CONPEDI e todos os autores dos artigos
aqui encartados, que consideraram, oportuna e habilmente, essas múltiplas abordagens e
diretrizes. Desejamos ao leitor o maior proveito no estudo dos temas e dos trabalhos que temos
a grata satisfação de aqui apresentar.
Os Coordenadores do Grupo de Trabalho
Professora Doutora Monica Bonetti Couto – UNINOVE
Professora Doutora Maria dos Remédios Fontes Silva - UFRN
Prof. Dr. Miguel Kfouri Neto – UNICURITIBA
15
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I16
DO JUDICIÁRIO QUE TEMOS AO QUE QUEREMOS: O GRANDE DESAFIO DA
CIDADANIA NO BRASIL
FROM THE JUDICIARY WE HAVE, TO THE ONE WE WANT: THE GREAT
CHALLENGE OF THE CITIZENSHIP IN BRAZIL
Mayara de Carvalho Araújo1
RESUMO
Os frequentes autoritarismos na administração do Estado brasileiro demonstram o contínuo
descaso com que as liberdades fundamentais vêm sendo tratadas no país. Elemento central da
cidadania, a liberdade e o efetivo direito à justiça tem permanecido relegados na história do
Brasil. Mas como fortalecer a democracia e cidadania brasileiras se o Judiciário, instituição
garantidora das liberdades subjetivas essenciais ao desenvolvimento, permanece moroso e
distante da sociedade? A partir de pesquisa na bibliografia nacional e estrangeira e da análise
dos documentos legislativos nacionais e internacionais, procurou-se analisar a evolução dos
direitos de cidadania no Brasil e como o Judiciário nacional tem atuado diante dos novos
direitos e modernos conflitos sociais. Analisados os resultados, sugeriu-se uma postura
judicial capaz de reforçar os direitos de cidadania a partir de uma compreensão do processo
como meio que deve colaborar para o desenvolvimento das potencialidades humanas. Para
tanto, defendeu-se o papel do juiz enquanto engenheiro social que, por meio de tutelas
jurisdicionais adequadas, efetivas e tempestivas, visa colaborar para a livre condição de
agente da pessoa e, portanto, para a consecução dos direitos de cidadania e do
desenvolvimento como liberdade.
Palavras-chave: Cidadania. Judiciário. Direitos civis.
ABSTRACT
The frequent authoritarianism, which can be easily observed in the administration of the
brazilian State, demonstrates how fundamental freedoms are being treated negligently. Taking
into account that freedom, as well as the effective right to justice, are considered central
elements of citizenship, we may say these rights have been relegated in brazilian history.
Despite these facts, how can we strengthen democracy and brazilian citizenship if the
judiciary, which is the institution that guarantees the subjective freedom - essential to the
development, remains slow and far from society? From research in foreign and national
bibliography, and analysis of national and international legislative documents, the essay
herein intends to analyze the evolution of citizenship rights in Brazil, and how the National
Judiciary has acted and faced the rise and development of new rights and modern social
conflicts. Thus, the results were analyzed and it was suggested one judicial stance attitude,
able to strengthen the rights of citizenship from an understanding of the process as a means to
contribute to the development of human potential. In this regard, it was defended the role of
the judge while a “social engineer” that, through an appropriate, effective and timely judicial
1
Mestranda em Direitos Humanos pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Jurídicas da Universidade
Federal da Paraíba, advogada e bacharela em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
16
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I17
guardianship, demands contribute to the free agent condition of the person and, therefore, to
the achievement of citizenship rights and of development as freedom.
Keywords: Citizenship. Judiciary. Civil rights.
1 INTRODUÇÃO
Um olhar para o passado recente mostra que não são necessariamente as guerras mais
sangrentas que produzem os piores resultados. A Guerra Fria entre potencias capitalista e
comunista levou a resultados igualmente drásticos com disputa apenas por poder bélico e
influência. Foi assim que os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas passaram e financiar um sem número de ditaduras em países aliados na busca de
reprimir o terror ideológico de um ou de outro lado.
Dessa forma, a pretexto de uma suposta Guerra Fria, deu-se origem a ditaduras
quentes dividindo o mapa mundi em dois diferentes eixos. Na América Latina foi
predominante a influência estadunidense, que levou a governos de exceção como os de
Pinochet e Bordaberry.
Incluído nesse contexto latino-americano de governos ditatoriais e fortes repressões
às liberdades individuais, o Brasil dos anos 60, 70 e 80 do século passado não construiu uma
história menos triste do que a dos países fronteiriços. Foram cerca de 20 (vinte) anos de
graves violações a direitos humanos, perseguições políticas, torturas, concentração de renda e
de administração pública sem um mínimo de transparência.
Passados os tempos cinzentos do regime burocrático-autoritário pós-64, o Brasil
experimentou uma leva de redemocratização e de lutas em prol da efetivação dos direitos de
cidadania no país. O entusiasmo foi tamanho que deu uma cara cidadã à nova Constituição
canarinho.
A “Constituição Cidadã”, como ficou conhecida a Lei Fundamental de 1988, tentou
refletir um pouco das expectativas que compõe o miscigenado e heterogêneo povo2 brasileiro.
Foi assim que, como diria José Murilo de Carvalho (2004, p. 7), “a cidadania virou gente”.
Por óbvio, a Constituinte não foi isenta de pressões de grandes empresas ou de bancadas mais
conservadoras, mas a Constituição Federal de 1988, sem dúvidas, representou um grande
passo democrático no país.
2
Sobre a formação do povo brasileiro, recomendamos a leitura de RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a
formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia de bolso, 2006.
17
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I18
Todavia, a democracia política não foi suficiente para resolver alguns problemas
crônicos do Brasil, como a pungente desigualdade social e o alarmante índice de
analfabetismo. Nesse contexto, percebeu-se que seria necessário atualizar a própria
compreensão de direitos e de cidadania que repetíamos irrefletidamente desde a declaração de
independência3.
No entanto, ainda que em uma concepção atualizada, como garantir a efetividade dos
direitos de cidadania sem modificar a estrutura das instituições as quais cabe o dever de
executá-los e resguarda-los? E como garanti-los diante de eventual descumprimento sem uma
nova compreensão do próprio Judiciário brasileiro?
2 DOS DIREITOS DE CIDADANIA
No que pese o salto democrático obtido com a Constituição Federal de 1988, a
compreensão de cidadania presente em nossa Lei Fundamental ficou aquém do desejado. Isso
porque embora eleja a cidadania a fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, II,
CRFB/88) e preveja meios para facilitar o garantir seu exercício4, a Constituição brasileira por
vezes parece confundir noções básicas como as de cidadania e direitos políticos.
Nesse aspecto, a cidadania é tratada de forma bipartida, composta por um viés ativo e
outro passivo que correspondem, respectivamente, às possibilidades de votar e de tornar-se
elegível5. Passado um longo período sem eleições diretas no país, é de se compreender a
valoração atribuída aos direitos políticos, mas não justifica, ao contrário, deslegitima a
percepção metonímica dos direitos de cidadania.
Diferente da perspectiva reducionista adotada pela Constituinte de 1988, a cidadania
compõe o núcleo essencial dos direitos humanos, uma vez que consiste no direito de ter
3
Cf. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 2004, p. 199.
4
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 prevê a concessão de mandado de injunção diante da ausência de
norma regulamentadora que torne inviável as prerrogativas inerentes à cidadania (art. 5º, LXXI) e atribui
gratuidade aos atos necessários ao exercício da cidadania (art. 5º, LXXVII).
5
É essa a interpretação do Supremo Tribunal Federal sedimentada na ação cautelar 2763, quando afirma que “a
perda da elegibilidade constitui situação impregnada de caráter excepcional, pois inibe o exercício da cidadania
passiva” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AC 2.763-MC, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática,
julgamento em 16-12-2010, DJE de 1º-2-2011.).
O artigo 205, da Constituição Federal de 1988, parece seguir a mesma compreensão quando afirma que a
promoção da educação visa “ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho”.
18
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I19
direitos e deveres6 reconhecidos na comunidade jurídica (SORTO, 2009, p. 43). Não só, sua
extensão excede os limites do próprio Estado7, pelo o que já seria imprópria sua redução aos
direitos políticos.
Aqui, o desafio que sobressai é o de formar uma nova compreensão de cidadania no
país da “Constituição Cidadã”. É nesse aspecto que se faz relevante rememorar os
ensinamentos de Thomas Humphrey Marshall com sua concepção tripartida dos direitos de
cidadania.
Antes, todavia, é importante aclarar que a compreensão adotada por Marshall (1963,
p. 76) é de que a cidadania é um status partilhado entre os membros de uma comunidade que
garante a eles igualdade no respeito de seus direitos e obrigações.
Em seu “Cidadania, classe social e status”, Marshall (1963, p. 63) defende uma
compreensão dos direitos de cidadania a partir de três elementos que lhe seriam intrínsecos, a
saber: os direitos civis, políticos e sociais. Já aqui a compreensão ora exposta na Constituição
Federal de 1988 apresenta-se ultrapassada, uma vez que só reflete uma dessas três formas de
manifestação dos direitos de cidadania.
Segundo Marshall (1963, p. 63), o elemento civil corresponde aos direitos
relacionados à liberdade individual e ao direito à justiça. Sua compreensão, por isso, excede a
noção tradicional de direitos civis, à medida que não só contempla o direito à justiça, mas
também confere a este direito um patamar diferenciado. Nas palavras do sociólogo britânico:
O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual –
liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade
e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. Este último difere dos outros
porque é o direito de defender e afirmar todos os direitos em termos de igualdade
com os outros e pelo devido encaminhamento processual. (MARSHALL, 1963, p.
63).
O elemento político, por sua vez, equivale ao direito de participar das decisões
políticas, seja na condição de membro de alguma instituição dotada deste poder
6
Embora o objeto específico desse trabalho gire entorno dos direitos de cidadania, faz-se importante destacar o
papel ocupado também pelos deveres no conceito de cidadania que, frise-se, não existe sem obrigações (SORTO,
2011, p. 103). Quanto a estes, podem ser representados pelo elemento da fraternidade na célebre trilogia da
Revolução Francesa, uma vez que é justamente a fraternidade o contraponto aos direitos de liberdade e
igualdade. Assim, os deveres de cidadania são praticados sem a espera de recompensas e não são realizados
tendo em conta a nacionalidade, o sexo ou qualquer outro elemento distintivo da pessoa, mas o ser humano em si
e enquanto humano. Sobre o tema, cf. SORTO, Fredys Orlando. La compleja noción de solidaridad como valor y
como Derecho: la conducta de Brasil em relación a ciertos Estados menos favorecidos. In: LOSANO, Mario G.
(Comp.). Solidaridad y derechos humanos en tiempos de crisis. Madrid: S. E., 2011. p. 97-122.
7
A esse respeito, importante salientar a distinção entre nacionalidade e cidadania. Segundo Fredys Sorto (2009,
p. 42), “a nacionalidade refere-se ao vínculo que a pessoa tem com determinada comunidade política organizada
soberana e estatalmente num dado território. A cidadania refere-se, por sua parte, ao exercício de determinados
direitos e deveres, dentro e fora do espaço estatal”.
19
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I20
(MARSHALL, 1963, p. 63), seja por intermédio do voto e dos demais meios de participação
democrática semidireta, como plebiscitos, referendos e legislação participativa.
Por fim, o elemento social representaria o que concebemos hoje por direitos sociais.
Segundo Marshall (1963, p. 63-64), “o elemento social se refere a tudo o que vai desde o
direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por
completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que
prevalecem na sociedade”.
Dessa forma, cada um desses elementos se relaciona mais diretamente com uma
instituição específica que pertence, na ordem em que foram apresentados, ao Judiciário, ao
Legislativo e ao Executivo.
2.1 Do elemento civil
Conforme exposto, o elemento civil corresponde aos direitos vinculados à liberdade
individual e ao direito à justiça. Equivale, portanto, aos ditos “direitos de primeira dimensão”
e ao direito-garantia8 capaz de, na inobservância dos primeiros, assegurar seu cumprimento.
Nesse sentido, a liberdade é, simultaneamente, elemento civil dos direitos de
cidadania e pressuposto para o exercício desses mesmos direitos, uma vez que não é possível
haver cidadania em regimes que não favoreçam a liberdade (SORTO, 2009, p. 61).
Elemento fundamental para a compreensão dos direitos de cidadania, a liberdade é,
não raro, fruto de concepções equivocadas, geralmente associadas à percepção comumente
atribuída ao termo na Antiguidade. Nesse sentido, consideramos importante trazer as
contribuições de Benjamin Constant (1985), que esclarece as principais diferenças entre a
concepção da liberdade para os antigos e na modernidade.
Antes, todavia, é oportuno lembrar que mesmo o modelo de cidadania da Grécia
clássica diferia bastante de sua compreensão atual. Isso porque a cidadania era uma categoria
eminentemente excludente, atribuída àqueles que detinham certo status (MARSHALL, 1963,
p. 64). Assim, mesmo a liberdade e a igualdade não eram valores universais (SORTO, 2009,
p. 44).
8
A respeito da jurisdição como direito-garantia, cf. DELGADO, José Augusto. A demora na entrega da
prestação jurisdicional: responsabilidade do Estado: indenização. Informativo Jurídico da Biblioteca Ministro
Oscar Saraiva, v.10, n. 2, p. 99-126, jul./dez. 1998, p. 105.
20
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I21
Para os antigos, a liberdade referia-se à ampla atuação no espaço público,
independente de, para isso, ter forte interferência estatal nos assuntos privados. A percepção
atual de liberdade, ao seu passo, circunscreve-se prioritariamente à vida privada do indivíduo.
Nesse sentido, Constant (1985, p. 11) ilustra que a liberdade dos antigos
Consistia em exercer coletiva, mas diretamente, várias partes da soberania inteira,
em deliberar na praça pública sobre a guerra e a paz, em concluir com os
estrangeiros tratados de aliança, em votar as leis, em pronunciar julgamentos, em
examinar as contas, os atos, a gestão dos magistrados, em fazê-los comparecer
diante de todo um povo, em acusa-los de delitos, em condená-los ou em absolvê-los;
mas ao mesmo tempo que consistia nisso o que os antigos chamavam de liberdade,
eles admitiam, como compatível com ela, a submissão completa do indivíduo à
autoridade do todo. [...] Todas as ações privadas estão sujeitas a severa vigilância.
Nada é concedido à independência individual, nem mesmo no que se refere à
religião”. O autor explica que isso ocorre porque as leis da época regulamentavam
os costumes que, por sua vez, tratavam de todos os atos e fatos da vida cotidiana.
A evolução pela qual passou o conceito de liberdade, portanto, acarretou
modificações essenciais na própria forma de concebê-la, pelo que garantir, na atualidade, as
condições fundamentais para a liberdade dos antigos, jamais resultaria na liberdade a que
remete os direitos de cidadania em seu aspecto civil. Por essa razão, quaisquer outras
equiparações no tema entre a conjuntura da liberdade da Grécia antiga e da modernidade não
merecem prosperar.
No que diz respeito ao direito à justiça, sua compreensão atual significa não só o
acesso à justiça9, mas também o direito à tutela jurisdicional qualificada, assim compreendida
aquela que atenda aos padrões mínimos de tempestividade, adequação e efetividade10,
conforme será abordado em tópico próprio.
2.2 Do elemento político
9
Sobre o acesso à justiça, cf. CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Safe,
1988.; CAPPELLETTI, Mauro. Processo, ideologias e sociedade. Porto Alegre: Safe, 2008. v. 1.; GRECO,
Leonardo.
Garantias
fundamentais
do
processo:
o
processo
justo.
Disponível
em:
<http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=429>. Acesso em: 03 set. 2011.; SANTOS,
Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da Justiça. Disponível em: <
http://72.29.69.19/~ejal/images/stories/arquivos/RevDemJust_FEV2011.pdf>. Acesso em: 01 set. 2011.;
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Celeridade e efetividade da prestação jurisdicional: insuficiência da
reforma das leis processuais. Disponível em: <http://www.abdpc.org.br/artigos/artigo51.htm>. Acesso em: 06
set. 2011.
10
Sobre o direito à tutela jurisdicional qualificada, confira, por todos: GÓES, Ricardo Tinoco de. Cognição e
execução: uma aproximação pela instrumentalidade do processo. 2004. 170 f. Dissertação (Mestrado) - UFRN,
Natal, 2004,
21
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I22
O elemento político dos direitos de cidadania, conforme abordado, refere-se aos
direitos políticos, ou seja, aos direitos relacionados à participação nas decisões do poder
político.
Por vezes, confusões interpretativas levam à compreensão dos direitos políticos
como se correspondessem à totalidade dos direitos de cidadania, quando, na verdade, é
meramente um de seus elementos intrínsecos. Isso conduz a noções reducionistas do conceito
de cidadania e, consequentemente, do de cidadão.
Essa concepção simplista parece refletir uma outra deficiência brasileira relacionada
ao pouco ético sistema político adotado no país: não raro os representantes estatais veem o
povo como cidadão exclusivamente em período eleitoral.
Assim, não é incomum promessas eleitorais nunca cumpridas e, por vezes,
eminentemente descumpridas ou mesmo que os candidatos que antes caminhavam por bairros
mais humildes, quando eleitos, andem exclusivamente em regiões elitizadas.
Nesse sentido, a interpretação deturpada e reducionista da cidadania brasileira é um
reflexo e também demonstra um sem número de outras violações a direitos humanos,
geralmente associadas à corrupção e à impunidade que assolam o país.
2.3 Do elemento social
O elemento social corresponde aos direitos sociais, direitos fundamentais11 de
“segunda dimensão12” que se caracterizam pelo seu caráter prestacional preponderantemente
positivo13 e, malgrado a ilógica resistência à sua efetivação, usufruem de aplicabilidade
direta14 e vinculam todos os órgãos estatais (SILVA, 2007, p. 152).
11
Junto aos direitos políticos, individuais e difusos, os direitos sociais integram o rol dos direitos fundamentais,
dentro da perspectiva predominante da doutrina constitucionalista brasileira.
12
Ressalte-se que o uso da expressão “segunda dimensão” tem apenas o intuito de indicar que tais direitos foram
historicamente posteriores aos direitos da liberdade, estes tidos como direitos fundamentais de primeira
dimensão (BONAVIDES, 2007, p. 562-564). Tal denominação não diz respeito, portanto, a desequiparações
valorativas.
13
Embora predomine seu caráter prestacional positivo, não podemos deixar de reconhecer que as normas
constitucionais programáticas, assim como aquelas definidoras de todos os tipos de direitos fundamentais,
apresentam, simultaneamente, imposições positivas e negativas para o Estado. Elas exigem uma abstenção do
Estado, por exemplo, no art. 9º da Constituição do Brasil, assim como adverte Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p.
18).
14
A observância dos direitos sociais é, incontestavelmente, mais complexa do que a dos demais direitos, já que
exigem, para sua realização, não só um facere do Estado, mas também a reversão de determinados paradigmas
sociais com o propósito de atingir-se a justiça social. Mas, nem por isso, poderíamos dissimular uma
aplicabilidade mediata destes preceitos se, segundo o próprio art. 5º, §1º da Constituição do Brasil, apresentam,
tal qual os demais direitos fundamentais, aplicabilidade imediata, na medida em que o seja possível.
22
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I23
Segundo Luiz Roberto Barroso (2006, p. 102-103), se não fosse dessa forma, os
demais direitos fundamentais careceriam de condições sociais para sua efetivação, visto que,
como a realização destes direitos pressupõe a existência de pré condições econômicas e
sociais, seria necessária a realização primeira dos direitos sociais.
É nesse sentido que Dinaura Godinho Pimentel Gomes (2005, p. 41) afirma que os
direitos sociais constituem a “condição de existência do paradigma de Estado Democrático de
Direito, instituído com a Carta de 1988”.
Se, no contexto da Constituição do Brasil, os direitos sociais parecem adquirir a
dimensão de um “sobrevalor”, isso ocorre pelo histórico de subdesenvolvimento de nosso país
que, como é de conhecimento geral, apresenta um nível alarmante de desigualdade social.
Nossa condição histórica, portanto, acaba por insuflar o inconsciente social a atribuir uma
maior proeminência a esses direitos.
Esse fenômeno fica ainda mais evidente quando comparado o histórico dos direitos
de cidadania no Brasil e na Inglaterra, onde os direitos sociais só foram conquistados cerca de
dois séculos depois dos direitos civis (MARSHALL, 1963, p. 75).
2.4 Da cronologia dos direitos de cidadania no Brasil e na Inglaterra
Na Antiguidade, os três elementos dos direitos de cidadania estavam condensados
em um só, reflexo que eram da própria compreensão fundida das instituições estatais
encarregadas de garantir cada um desses direitos. É o que constata Marshall (1963, p. 64),
comentando citação de Maitland15, quando afirma:
Como Maitland disse “Quanto mais revemos nossa história, tanto mais impossível se
torna traçarmos uma linha de demarcação rigorosa entre as várias funções do Estado
– a mesma instituição é uma assembleia legislativa, um conselho governamental e
um tribunal de justiça... Em toda parte, à medida que passamos do antigo para o
moderno, vemos o que a Filosofia da moda chama de diferenciação”. Maitland se
refere nesta passagem à fusão das instituições e direitos políticos e civis. Mas os
direitos sociais do indivíduo igualmente faziam parte do mesmo amálgama e eram
originários do status que também determinava que espécie de justiça êle podia
esperar e onde podia obtê-la, e a maneira pela qual podia participar da administração
dos negócios da comunidade à qual pertencia. Mas este status não era de cidadania
no moderno sentido da expressão. Na sociedade feudal, o status era marca distintiva
de classe e a medida de desigualdade. Não havia nenhum código uniforme de
direitos e deveres com os quais todos os homens – nobres e plebeus, livres e servos
– eram investidos em virtude da sua participação na sociedade. Não havia, nesse
sentido, nenhum princípio sôbre a igualdade dos cidadãos para contrastar com o
princípio da desigualdade de classes. Nas cidades medievais, por outro lado,
15
A obra de Maitland que Marshall comenta é “Constitucional History of England” e a citação a qual remete
encontra-se na página 105 do livro.
23
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I24
exemplos de uma cidadania genuína e igual podem ser encontrados. Mas seus
direitos e deveres específicos eram estritamente locais, enquanto a cidadania cuja
história tento construir é, por definição, nacional.
Por essa razão, a evolução dos direitos de cidadania envolveu um duplo processo de
fusão geográfica e de separação funcional da estrutura do Estado, que teve início no século
XII, quando a justiça real foi efetivamente estabelecida para defender os direitos civis dos
indivíduos com base no direito consuetudinário inglês (MARSHALL, 1963, p. 64).
Com a gradativa diferenciação desses direitos e instituições, cada um dos três
elementos dos direitos de cidadania puderam desenvolver-se por si, construindo uma história
bem diferente da dos outros elementos. E essa diferenciação aconteceu de tal forma que é
possível atribuir o período de formação de cada um desses elementos a um século distinto.
É nesse sentido que nos referimos aos séculos XVIII, XIX e XX como análogos,
respectivamente, aos direitos civis, políticos e sociais. Por certo essa distinção cronológica
não é estanque, havendo, como é de se supor, períodos de entrelaçamento entre o
desenvolvimento de cada um desses elementos da cidadania (MARSHALL, 1963, p. 65).
A evolução dos direitos civis foi marcada pela gradativa adição de novos direitos ao
status já existente, que era partilhado por todos os homens adultos da comunidade. Assim,
caracterizou-se pela liberdade dos homens ingleses e pela dissolução dos vestígios de
servidão.
As mulheres, as crianças e outras categorias de excluídos, como é de se supor, não
disfrutavam dessa mesma liberdade, uma vez que sequer eram concebidas no conceito de
cidadania16. Ainda assim, a universalização da liberdade entre os considerados cidadãos foi
importante por atribuir um caráter nacional à cidadania (MARSHALL, p. 1963, p. 68-69).
Quando se pôde, então, falar num “status geral de cidadania”17, os direitos políticos
tiveram condições materiais para desenvolver-se. Esse desenvolvimento, contudo, foi bastante
distinto daquele vivenciado pelos direitos civis, uma vez que não consistiu na adição de novos
direitos ao status já gozado por todos os homens ingleses, mas na atribuição de velhos direitos
a novos setores da população, abrangendo, agora, também as mulheres (MARSHALL, p.
1963, p.69).
Isso ocorreu porque a principal deficiência do elemento político da cidadania não era
a criação de direitos, mas a sua distribuição entre todo o povo. Por isso, a evolução desse
elemento representou um grande salto para a cidadania democrática.
16
Sobre a cidadania feminina, cf. NYE, Andrea. Teoria feminista e as filosofias do homem. Rio de Janeiro:
Rosa dos Tempos, 1995.
17
A expressão é de Marshall (1963, p. 69), traduzido por Meton Porto Gadelha.
24
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I25
A história dos direitos sociais na Inglaterra foi mais tortuosa: eles quase que
desapareceram entre os séculos XVIII e XIX18. Começaram a ressurgir com o
desenvolvimento da educação primária pública, quando se começou a compreender que a
educação fundamental é um pré-requisito para o efetivo exercício das liberdades civis
(MARSHALL, 1963, p. 73 ss.).
No Brasil, contudo, a história do desenvolvimento dos elementos de cidadania sofreu
uma inversão substancial, tanto no aspecto da sequencia dos fatos, quanto no tocante à ênfase
atribuída a cada um desses direitos.
Aqui não só foi atribuído primazia aos direitos sociais, como estes também
precederam os demais, o que acarretou uma compreensão do cidadão brasileiro bastante
distinta da do cidadão inglês (CARVALHO, 2004, p. 11-12).
Conforme observa José Murilo de Carvalho (2004, p. 219-220)
Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos
direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou
popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra. A maior
expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que órgãos de
representação política foram transformados em peça decorativa do regime.
Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da sequencia de Marshall,
continuam inacessíveis à maioria da população. A pirâmide de direitos foi colocada
de cabeça para baixo.
Na sequencia inglesa, havia uma lógica que reforçava a convicção democrática. As
liberdades civis vieram primeiro, garantidas por um Judiciário cada vez mais
independente do Executivo. Com base no exercício das liberdades, expandiram-se os
direitos políticos consolidados pelos partidos e pelo Legislativo. Finalmente, pela
ação dos partidos e do Congresso, votaram-se os direitos sociais, postos em prática
pelo Executivo. A base de tudo eram as liberdades civis.
18
Sobre esse período de quase desaparecimento dos direitos sociais na Inglaterra, acreditamos ser importante
citar os casos do Poor Law e dos Factory Acts, em razão da forma apartada como concebiam aqueles que eram
destinatários de sua ajuda e os cidadãos, desvinculando-os, portanto, da própria compreensão de cidadania.
Como alertado em outro momento, os deveres de cidadania tem relação direta com a fraternidade e
solidariedade, que jamais podem ser efetivamente realizadas sem conceber a humanidade do homem por si
mesma (SORTO, 2011). A Poor Law, segundo a lei de 1834, oferecia assistência aos indivíduos que, em razão
de problemas de saúde, idade avançada ou extrema miséria, eram incapazes de sustentar-se. Marshall (1963, p.
72) esclarece que “a Poor Law tratava as reivindicações dos pobres não como uma parte integrante de seus
direitos de cidadão, mas como uma alternativa dêles – como reivindicações que poderiam ser atendidas somente
se deixassem inteiramente de ser cidadãos. Pois indigentes abriam mão, na prática, do direito civil da liberdade
pessoal devido ao internamento na casa de trabalho, e eram obrigados por lei a abrir mão de quaisquer direitos
políticos que possuíssem. [...] O estigma associado à assistência aos pobres exprimia os sentimentos profundos
de um povo que entendia que aqueles que aceitavam assistência deviam cruzar a estrada que separava a
comunidade de cidadãos da companhia dos indigentes”.
A Poor Law, contudo, não foi um caso isolado dessa separação entre direitos sociais e status de cidadania. Como
alerta Marshall (1963, p. 72-73), os Factory Acts fizeram o mesmo, agora em relação às mulheres e crianças. A
proteção dos Factory Acts não era estendida aos homens adultos. Nas palavras de Marshall (1963, p. 73), “as
mulheres eram protegidas porque não eram cidadãs. Se desejassem gozar da cidadania com todos os seus
direitos, tinham de desistir da proteção”.
25
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I26
O próprio José Murilo de Carvalho (2004, p. 220-221), ressalta que não há um só
caminho para a cidadania, mas que a inversão do caminho no Brasil afeta o tipo de cidadão e
de democracia que se desenvolverão em solo tupiniquim.
Dentre as importantes consequências apontadas pelo autor (2004, p. 221 ss.) estão a
excessiva valorização do Executivo, centralizada principalmente em âmbito federal; a
permanente defesa de um Executivo forte e a esperada vitória do presidencialismo no
plesbicito de 1993; a cultura da “estadania19” no país; o culto a políticos messiânicos
populistas; a desvalorização do Legislativo e de seus titulares20; a ótica corporativista dos
interesses coletivos21; e a redução da atividade dos legisladores aos interesses da maioria dos
votantes.
Para aperfeiçoar a cidadania no país, portanto, faz-se necessário consolidar nossa
jovem democracia e incentivar uma maior participação da sociedade civil em prol de seus
direitos, mas também contra o Executivo clientelista messiânico (CARVALHO, 2004, p.227).
Entre os nossos principais desafios, podemos destacar a efetiva consolidação dos
direitos civis, principalmente através de um Judiciário barato, rápido, eficiente e acessível. Eis
a importância do estudo do tema.
3 O JUDICIÁRIO E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DE CIDADANIA NO BRASIL
19
A expressão é do próprio José Murilo de Carvalho (2004, p. 221) e contrapõe-se à cidadania. Com ela, o autor
pretende referir-se à cultura de orientação da ação política mais voltada para a negociação direta com o Estado
em si do que para a representação popular.
20
Sobre esse aspecto ressaltamos o ocorrido nas eleições de 2010 em que o deputado federal mais votado do país
tinha como slogan eleitoral “ruim por ruim, vote em mim”. Esse mesmo candidato, em horário eleitoral gratuito,
indagava a população sobre a função de um deputado federal. Em seguida, dizia que também desconhecia o
trabalho que deve desempenhar um deputado e que, caso fosse eleito, estaria comprometido em descobrir.
É claro o tom jocoso da propaganda do candidato-palhaço, mas o humor empregado não é mais do que o reflexo
do desconhecimento geral, pela população, das funções de cada um dos membros do Legislativo. Não só, o
“ruim por ruim, vote em mim” expressa o extremo descrédito que a população brasileira tem com o legislativo e
com seus representantes. Não é de se surpreender que vivamos num país que, no que pese o número exorbitante
de diplomas legislativos, caracterize-se pelo desrespeito a essas mesmas leis e a impunidade generalizada para
aqueles que, apesar de apresentarem em tese o mesmo status dos demais, pertencem a classes sociais
privilegiadas.
21
Sobre o corporativismo no país, importante repetir as palavras de José Murilo de Carvalho (2004, p. 222-223):
“O grande êxito de Vargas indica que sua política atingiu um ponto sensível da cultura nacional. A distribuição
dos benefícios sociais por cooptação sucessiva de categorias de trabalhadores para dentro do sindicato
coorporativo achou terreno fértil em que se enraizar. Os benefícios sociais não eram tratados como direitos de
todos, mas como fruto da negociação de cada categoria com o governo. [...] A prática política posterior à
redemocratização tem revelado a força das grandes corporações de banqueiros, comerciantes, industriais, das
centrais operárias, dos empregados públicos, todos lutando pela preservação de privilégios ou em busca de novos
favores. Na área que nos interessa mais de perto, o corporativismo é particularmente forte na luta de juízes e
promotores por melhores salários e contra o controle externo, e nas resistências das polícias militares e civis a
mudanças em sua organização”.
26
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I27
A última metade do século XX ilustrou que são em tempos de crise que ocorrem as
principais transformações sociais. Refletiu, com isso, que é impossível governar contra todas
as pessoas por todo o tempo (HOBSBAWN, 1995, p. 560). Foi assim que, mesmo diante de
acontecimentos como a Segunda Guerra Mundial e o regime militar brasileiro, foi possível
edificar a “Era dos Direitos”22.
Enquanto força viva23, o Direito refletiu as constantes lutas sociais do pós-guerra e
contemplou novos direitos, sujeitos de direito, bens tutelados e possibilidades de reparação
dos danos.
Em âmbito nacional, todavia, o maior impacto adveio da ruptura com o regime
burocrático-autoritário pós-64, fruto, em grande medida, de sua insuficiência para reformular
gastos após o primeiro choque do petróleo. A “expansão Leviatã” do Executivo brasileiro teve
como principal característica a substituição de importações e o esvaziamento do campo, com
a consequente aglomeração nas grandes cidades, agora transformadas em verdadeiros
“bolsões de conflitos generalizados”24.
Nesse contexto, não só os novos direitos, mas também os emergentes conflitos
sociais não demoraram a alcançar a esfera do Judiciário. Diante das instabilidades e
desigualdades características das décadas de 80 e 90 do século passado, o Judiciário passou a
exercer papel decisivo no país. Repleto de conflitos inéditos, essa dimensão do Poder
dispunha, para resolvê-los, de institutos jurídicos anacrônicos, estrutura obsoleta e algumas
novas leis com caráter social.
Outrossim, a formação dos agentes da Justiça com frequência mostrava-se
excessivamente formalista e exegética e apresentavam perspectiva que, em regra, atribuía
primazia a questões individuais, mesmo diante de conflitos de cunho coletivo.
As prestações insuficientes, diante da importância do papel a ele atribuído,
exprimiram o despreparo do Judiciário brasileiro para responder satisfatoriamente às novas
demandas sociais. Deu-se início, então, à crise do Judiciário, tendo a morosidade como seu
principal sintoma.
Ao contrapasso, a globalização trouxe consigo uma nova forma de medir o tempo,
que então passou a ser valorado em frações de segundos. A sociedade, num ritmo dinâmico,
confrontou-se com um Judiciário moroso e inefetivo.
22
Expressão encontrada em BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
Expressão de IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 27.
24
Expressão utilizada em FARIA, José Eduardo. Introdução: O Judiciário e o desenvolvimento sócioeconômico. In. ______. Direitos humanos, direitos sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 15.
23
27
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I28
Como se sabe, um processo ideal é aquele capaz de distribuir a justiça em um
período razoável, sem delongas que excedam o prazo necessário para chegar a um resultado
seguro e pautado em garantias para as partes.
Não raras vezes, contudo, as lides parecem desafiar o compasso natural das criações
humanas, formado por começo, meio e fim (SILVA, 2004, p. 32). Assim, não tardou para que
a ausência de resultado útil do processo enfatizasse a função simbólica da legislação-álibi25.
Desse fenômeno decorreu uma banalização da ilegalidade e da impunidade, que passaram a
ser associadas como características do país.
A lentidão processual, assim, exsurge como um fator que reforça a exclusão de
determinados segmentos sociais incapazes de suportar, sem grandes prejuízos, o tempo
necessário para o seu desfecho. Nesses casos, não é incomum que o indivíduo se reconheça
numa situação em que é obrigado a suportar o lento desencadear de atos flagrantemente
lesivos aos seus interesses.
Nesses moldes, o processo, que deveria dar ao detentor do direito, sempre que
possível, tudo e exatamente o que lhe for de direito26, passa a ser “fonte perene de
decepções27”.
É inquestionável que a morosidade macula a imagem do Judiciário. Não só, a demora
na prestação jurisdicional afeta também a sociedade como um todo, à medida que implica na
negação de liberdades substantivas e, portanto, do próprio desenvolvimento28.
Dessa forma, a atuação morosa e inefetiva do Judiciário acaba por tolher liberdades
substantivas elementares, liberdades essas que são tanto razão avaliatória, quanto razão de
eficácia do desenvolvimento29.
25
O termo “legislação-álibi” pretende-se referir às normas que apresentam uma função preponderantemente
ideológica, à medida que pretendem reproduzir a imagem de um Estado que corresponde às aspirações dos
cidadãos. Cf. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 36 ss.
26
Noção célebre chiovendiana.
27
Expressão originariamente utilizada em DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do
processo. São Paulo: Malheiros, 2009.
28
A concepção de desenvolvimento aqui apresentada é condizente com a defendida em SEN, Amartya.
Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
29
Segundo Amartya Sen (2000, p. 18), a liberdade é central para o processo de desenvolvimento, já que a
realização deste depende da livre condição de agente das pessoas e que, por isso, a avaliação do progresso deve
ser concebida, em primazia, pelo aumento das liberdades das pessoas. Isso porque, segundo o autor, “a ligação
entre liberdade individual e realização de desenvolvimento social vai muito além da relação constitutiva – por
mais importante que ela seja. O que as pessoas conseguem positivamente realizar é influenciado por
oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habilitadoras como boa saúde,
educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas. As disposições institucionais que proporcionam
essas oportunidades são ainda influenciadas pelo exercício das liberdades das pessoas, mediante a liberdade para
participar da escolha social e da tomada de decisões públicas que impelem o progresso dessas oportunidades”
(SEN, 2000, p. 19).
28
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I29
Outrossim, pelo fato de as liberdades estarem interligadas, a privação de uma delas
implica na dificuldade de consecução de várias outras, não só afastando o desenvolvimento,
como também constituindo em infração a diversos direitos humanos, a começar pela tutela
efetiva e o acesso à ordem jurídica justa.
Por essa razão, o Judiciário passa a enfrentar verdadeira crise que, para ser superada,
deve contar com juízes que visem a real utilidade do processo. Assim, a cognição da fase de
conhecimento passa a apresentar dupla direção, destinando-se tanto à identificação da
existência de direito e do seu titular, quanto à busca por meios capazes a satisfazer o direito
eventualmente reconhecido em sua futura decisão (GÓES, 2004, 37 ss.).
Deve-se, portanto, buscar um aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, sem
acelerá-la a qualquer preço, mas, ao contrário, com ponderação30. Nesse sentido, a defesa de
uma justiça instantânea fundada em aceleração antigarantística é tão patológica quanto sua
demora excessiva (RAMOS, 2008, p. 52).
Dessa forma, o principal objetivo do processualista deve ser a identificação e
eliminação de formalismos inúteis, demoras injustificáveis e protecionismos abusivos que
causam dilações indevidas.
Além disso, Barbosa Moreira (2004, p. 12) ressalta que não merece prosperar a
crença simplista de que alterar a redação de determinado artigo implicará na solução de um
problema jurídico. Defende, nesse contexto, a importância de pesquisa sólida capaz de mapear
os reais obstáculos do processo célere e efetivo. Sem isso, o recurso à palavra mágica
“efetividade” muitas vezes é empregado visando puro ilusionismo.
Assim, seria imprescindível para o aprimoramento da Justiça identificar sua imagem,
tão exata quanto possível, sob pena de empreender uma reforma com fins simbólicos31
assumindo o risco de atacar moinhos de vento enquanto deixa escapar os dragões.
30
Nesse tema, importante discussão se dá quanto ao recente projeto de reforma constitucional apresentado pelo
atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Cezar Peluso, conhecida por “PEC dos recursos”, que
defende que, por regra, haja uma espécie de trânsito em julgado em nível de segunda instância. Sem entrar no
mérito da discussão, esse projeto dividiu a doutrina e as classes de juristas, que ora posicionam-se favoráveis às
mudanças, ora temem a violação do devido processo legal e do duplo grau de jurisdição.
Também relacionado ao tema, importante ressaltar as discussões em torno das metas estabelecidas pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) para uma maior agilidade na prestação jurisdicional, determinando que processos
ajuizados até determinada data sejam julgados até o término de anos específicos. Enquanto uns defendem a
necessidade de tomar essas medidas em razão da demora excessiva dos processos no Judiciário brasileiro, outros
entendem que as metas atrapalham o julgamento e constroem um processo de base estatística.
31
O termo “simbólico” foi aqui empregado no sentido a ele atribuído por Marcelo Neves (2007), segundo o qual
o significado “político-ideológico” latente sobrepõe-se ao sentido normativo-jurídico aparente, através de
legislação em que o legislador procura apresentar a sensibilidade do Estado às expectativas sociais ou livrar-se
de pressões políticas. Nas palavras de Marcelo Neves (2007, p. 39-40), “pode-se afirmar que a legislação-álibi
constitui uma forma de manipulação ou de ilusão que imuniza o sistema político contra outras alternativas,
desempenhando uma função “ideológica”.
29
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I30
Sobre o tema, o autor alerta, com argumentos bastante atuais, que
[...] a demora resulta da conjugação de múltiplos fatores, entre os quais não me
parece que a lei, com todas as imperfeições que tem, ocupe o lugar de máximo
relevo. Recordemos, antes de mais nada, a escassez de órgãos judiciais, a baixa
relação entre o número deles e a população em constante aumento, com a agravante
de que os quadros existentes registram uma vacância de mais de 20%32, que na
primeira instância nem a veloz sucessão de concursos públicos consegue preencher.
Teríamos de incluir no catálogo das mazelas o insuficiente preparo de muitos juízes,
bem como o do pessoal de apoio; em nosso Estado, e provavelmente não só nele, a
irracional divisão do território em comarcas, em algumas das quais se torna
insuportável a carga de trabalho, enquanto noutras, pouco movimentadas, se mantém
um capacidade ociosa deveras impressionante; a defeituosa organização do trabalho
e a insuficiente utilização da moderna tecnologia, que concorrem para reter em baixo
nível a produtividade. Poderia alongar-se a lista; os pontos assinalados bastam,
porém, para evidenciar quão unilateral é a apreciação que atira todas as culpas, ou
quando nada as maiores, sobre a legislação. (MOREIRA, 2004, p. 4).
Conforme assinalado, esses não são os únicos percalços a serem superados, em
âmbito do Poder Judiciário, para que se alcance o devido processo legal. Frise-se, a título de
exemplo, a deficiência e insuficiência do espaço em muitas instalações arquitetônicas e a
carência quanto a recursos tecnológicos capazes de gerir o volume das atividades da Justiça.
Igualmente, as reformas do sistema judicial devem ser acompanhadas de mudanças
estruturais e de mentalidade dos agentes do Poder Judiciário e de seus usuários33.
3.1 Do acesso à justiça e da tutela jurisdicional qualificada como direito humano
Com o pós-guerra e o surgimento dos novos direitos, intensificaram-se as discussões
em torno do acesso à justiça. Isso porque reconhecer novos direitos e sujeitos de direitos de
pouco adiantaria se não fosse garantido o efetivo acesso.
Assim, foi nas últimas décadas que se abandonou a compreensão comum ao Estado
do laissez-faire e passou-se a vislumbrar o acesso à justiça como verdadeira questão de
cidadania.
Essa importância atribuída ao acesso não é sem razão: direitos reconhecidos, mas que
não têm qualquer meio capaz de assegurar sua efetividade, não são efetivamente direitos. Se,
havendo lesão a direito seu, o cidadão se vê impossibilitado de ter real acesso ao Judiciário e,
no âmbito deste, de receber prestação efetiva, adequada e tempestiva, não há, na realidade,
32
De acordo com o Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, mantido pelo Supremo Tribunal Federal, na
Justiça Comum de primeiro grau, o percentual, em 1997, era de 13,37%.
33
Aqui, por exemplo, seria necessário não só uma concepção mais instrumental do processo, mas também o
reforço da cultura de conciliação e resolução extrajudicial dos conflitos, bem como a revisão e devida punição do
ethos de inadimplemento vigente na atual sociedade brasileira.
30
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I31
como exigir seu direito em face de outrem e, por isso, o texto legal passa a ser, para ele, mera
utopia desvinculada de qualquer sentido prático.
Por essa razão, se um Estado Democrático de Direito se mostra incapaz de assegurar
a efetiva realização de direitos nega, portanto, a si próprio. “Com efeito, um Estado que não
garante a efetividade dos direitos por este reconhecidos mostra-se ainda mais absoluto e
despótico do que aqueles que não reconhecem direito algum” (ANONNI, 2009, p. 121).
É por esse motivo que a instrumentalidade do processo vem sendo tão aclamada pela
doutrina: percebeu-se que o processo deve cumprir sua missão constitucional, sob pena de ser
utilizado como instrumento para a violação de direitos (MOREIRA, 1984, p. 3).
Dessa forma, qualquer decisão proferida após o transcurso de prazo superior ao
razoado, por maior que seja o mérito científico de seu conteúdo, será uma decisão injusta. Por
essa razão, será temerária toda tutela jurisdicional despreocupada em garantir uma resposta
justa em lapso temporal compatível com o direito em questão.
Nesse contexto, o direito à jurisdição (art. 5º, XXXV, CRFB/88) passa a ser visto
como acesso à ordem jurídica justa e, com isso, reflete não só o direito de petição, mas
compreende também o direito à tutela jurisdicional qualificada, isto é, efetiva, adequada e
tempestiva.
Em 1950, com a Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e
das Liberdades Fundamentais, houve o reconhecimento positivo do direito à tutela
jurisdicional proferida em tempo razoável, pelo seu art. 6º, I, que assim dispõe:
Toda pessoa tem direito a que sua causa seja examinada equitativa e publicamente
num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial instituído por lei, que
decidirá sobre seus direitos e obrigações civis ou sobre o fundamento de qualquer
acusação em matéria penal contra ela dirigida.
Desde esse período, a duração razoável do processo passou a ser concebida como
direito subjetivo humano.
Essa constatação impulsionou o surgimento das tutelas de urgência, das tutelas
inibitórias, da mediação e da arbitragem, bem como da responsabilidade do Estado pela
demora não razoável da tutela jurisdicional.
Quanto à duração razoável do processo, sua compreensão passou a ser um misto,
resultante da harmonia entre a segurança jurídica e a efetividade (TUCCI, 1993, p. 66), capaz
31
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I32
de garantir a valorização do homem34. Evoluiu-se, por conseguinte, para a percepção de que
“o processo destituído de valorização da pessoa humana, nada mais é do que uma pedante
burocracia regida pelo Estado” (SILVA, 2004, p. 61).
Formou-se, portanto, doutrina defensora da tutela jurisdicional qualificada não só
como uma garantia, mas também como direito fundamental que contempla um processo sem
dilações indevidas, com tutela adequada ao direito e satisfação do resultado útil do processo.
Assim, cabe ao Judiciário garantir, por meio de tutela efetiva, a satisfação do direito
violado no plano material. Por essa razão, compreende-se que um julgamento tardio perde,
progressivamente, seu sentido reparador até que, ultrapassado o prazo razoável, qualquer
solução adotada torna-se injusta.
Dessa forma, não se justifica mais a existência de mero direito à tutela formal
favorável, ao contrário: o juiz passa a desempenhar função essencial na consecução da tutela
jurisdicional qualificada, seja ela pela procedência ou improcedência do pedido.
Nesse sentido, após o reconhecimento do direito humano à tutela adequada, efetiva e
tempestiva, o Poder Judiciário, por intermédio da direção do magistrado, passou a ter
verdadeiro dever de prestar tutela qualificada, moldada ao direito do jurisdicionado com a
finalidade de alcançar seu resultado útil, com respeito ao devido processo legal, à dignidade
humana e à duração razoável do processo.
3.2 Do papel do Judiciário na engenharia social
Como visto, o Judiciário brasileiro passa por verdadeira crise e acaba por refleti-la
em inúmeros aspectos de sua manifestação. Se a morosidade do Judiciário é o grande sintoma
dessa crise, não é, contudo, o único.
A formação legalista35 de nossos juízes contrasta com a impunidade que assola o
país. Não só, juízes, que por vezes parecem conhecer apenas as leis, de uma forma geral, não
costumam fundamentar suas decisões com base nos diplomas normativos internacionais sobre
direitos humanos.
A falta de dados que mapeiem o Judiciário brasileiro e detectem as formas de
morosidade que mais o congestionam é outro problema nacional. Assim, ficamos de braços
34
Nesse sentido, passou-se a defender a necessidade de o processo amoldar-se ao direito, e não o contrário, bem
como do processo em função do homem. Em crítica ao modelo antigo de processo e à burocracia do Judiciário,
v. KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Abril Cultural, 1975.
35
Essa formação legalista parece ser, inclusive, influenciada pelos concursos públicos para seleção de novos
magistrados que costumam apresentar provas com conteúdos que demandam prioritariamente grande capacidade
de memória para decorar dados em detrimento de aprofundadas reflexões sociais.
32
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I33
cruzados diante de um congestionamento processual que não tem rosto e que repercute na
negação de um sem número de outros direitos fundamentais.
Além disso, pelo próprio corporativismo associado historicamente aos direitos
sociais no país, os magistrados e demais agentes do Judiciário, por vezes, gozam de
privilégios que não são partilhados com os outros brasileiros. São feriados próprios, horário
de trabalho diferenciado, férias superiores a 30 (trinta) dias anuais e inúmeros outros
benefícios que conferem a esses agentes públicos um status diferenciado em nossa sociedade,
além de reforçarem o congestionamento processual no Judiciário brasileiro.
Se no âmbito desse trabalho não podemos tratar de todos esses aspectos com
profundidade, ao menos gostaríamos de propor o conhecimento de uma perspectiva que muito
ajudaria a combater parcela considerável dos entraves democráticos do Judiciário brasileiro.
Trata-se do papel do Judiciário na engenharia social, proposto por Roscoe Pound (1976,
p.32).
O mentor da jurisprudência sociológica (2004, p. 175) esclarece, em tradução livre,
que
A civilização de cada tempo e lugar possuem certos postulados jurídicos; não regras
de Direito, mas ideias de justiça que hão de fazer-se efetivas mediante instituições e
normas jurídicas. Cabe ao jurista a tarefa de indagar e formular os postulados
jurídicos, não de toda civilização, mas daquela que corresponde a cada tempo e
lugar, com as ideias de direito (right) e justiça que ela supõe, e tratar de adaptar os
materiais jurídicos que chegam a nós para que expressem ou confiram eficácia a
ditos postulados. Não existe um Direito eterno, mas uma finalidade ou objetivo
eterno: o desenvolvimento das potencialidades humanas até seu limite máximo. [...]
Uma vez formulados ditos postulados jurídicos, o legislador pode alterar velhas
regras e promulgar outras novas que se adaptem a eles; os juízes podem interpretar,
isto é, desenvolver por analogia e aplicar, à luz de ditos postulados, os códigos e
todo o material jurídico tradicional; e também os juristas podem, sobre a base desses
postulados, sistematizar e fazer a crítica da obra dos legisladores e tribunais.
Diferente do direito natural, esses postulados a que aduz Pound variam no tempo e
no espaço e são derivados da experiência prática de dada civilização, segundo sua própria
compreensão do justo.
A proposta do botânico estadunidense nos leva a pensar sobre nossas instituições, em
especial sobre o Judiciário. Segundo Pound (2004, p. 178), as instituições jurídicas não são
inacabadas, ao contrário, elas são construídas dia a dia. Não importa se foram concebidas em
dado momento passado, pois também no presente estão sendo concebidas por aqueles que
nelas acreditam.
Nesse sentido, compreende o Direito como ciência de engenharia social, em razão da
engenharia ser uma atividade que deve ser considerada como um processo, nunca como um
33
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I34
dado composto por conhecimentos e estruturas fixadas de antemão. Assim, reflete sobre como
os juristas vêm pensando o ordenamento jurídico e esquecendo do Direito em si (POUND,
2004, p. 179).
Por essa razão, defende que “o que é preciso fazer no controle social e também na
lei, é conciliar e ajustar, tanto quanto possível, desejos, necessidades e expectativas, de sorte a
conseguir porção tão grande da totalidade deles quanto possível” (POUND, 1976, p. 33).
Nesses moldes, a tarefa dos juízes é ponderar maneiras para fazer com que a
satisfação das necessidades humanas seja cada vez menos custosa e mais efetiva. A
engenharia social dos juízes, portanto, será tanto mais efetiva quanto mais claramente
reconhecerem o que estão fazendo e por que razão o fazem (POUND, 2004, p. 185).
O que Pound propõe, em outras palavras, é um exercício de ponderação e
razoabilidade36 fundamentado numa compreensão da sociedade que o cerca e vinculado a
certa sensibilidade que é tão cara a todas as atuações dos profissionais da área jurídica, dentre
as quais se encontra a dos juízes.
A função do Judiciário está diretamente associada à manutenção dos direitos
existentes, mas também ao reconhecimento dos novos direitos e interesses vigentes na
sociedade. Dessa forma, desempenha papel incontestável na consolidação e expansão da
cidadania. Sendo assim, é fundamental que o Judiciário se perceba enquanto agente garantidor
dessa cidadania e molde suas práticas a partir dessa perspectiva de efetivação de direitos
humanos.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A inversão na ordem de evolução dos elementos da cidadania no Brasil, quando
comparado ao modelo inglês, e mesmo a importância atribuída a cada um deles, sem dúvidas,
interferiu na formação e na compreensão do cidadão brasileiro e da democracia no país.
A natural preponderância valorativa atribuída aos direitos sociais e a redução dos
direitos civis foram características de vários períodos históricos nacionais, como se os tempos
mudassem, mas o fosso entre os direitos permanecesse.
Esse descompasso entre os elementos da cidadania pareceu se agravar no período
burocrático autoritário pós-64, quando o rápido esvaziamento do campo brasileiro
36
Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo:
Malheiros, 2009.
34
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I35
desacompanhado de investimento nos entornos urbanos, produziu verdadeiros “bolsões de
conflitos generalizados” que, todavia, não corresponderam a uma resposta eficaz do
despreparado Judiciário brasileiro.
Foi assim que teve início a crise do Judiciário no nosso país, que tem a morosidade
como seu maior sintoma, mas que também enfrenta outros problemas como distanciamento da
sociedade, organização territorial desequilibrada, alto índice de congestionamento processual
e pouca atenção ao resultado útil do processo.
Nesse contexto, a necessidade de democratização do Judiciário brasileiro é urgente.
O elemento civil dos direitos de cidadania deve ser visto com a mesma importância que vêm
sendo tratados os direitos políticos e sociais. Estes, é verdade, estão longe de ser plenamente
efetivados no país, mas ao menos seu caráter essencial é reconhecido.
O elemento civil, todavia, costuma aparecer relegado em nosso país e a
democratização do Judiciário é uma das maiores formas de atender às liberdades
fundamentais, já que o direito à justiça é verdadeiro direito-garantia.
É necessário, portanto, eliminar privilégios e burocracias inúteis e constituir um
processo a partir da compreensão da dignidade intrínseca à pessoa humana de certo tempo e
lugar. Desenvolver as potencialidades humanas é um objetivo também do processo numa
compreensão democrática e cidadã.
Assim, é essencial que os juízes e demais profissionais jurídicos se vejam enquanto
engenheiros sociais. Isso é, não como mero aplicadores de conhecimentos e estruturas préfixadas, mas como intérpretes desse aparato que, por meio de ponderação, buscam satisfazer
as necessidades humanas ao máximo possível.
Com isso, não só serão priorizadas as liberdades substantivas elementares, como
também serão proporcionadas as condições para verdadeiro desenvolvimento como liberdade.
Afinal, numa perspectiva de desenvolvimento que não mede o Produto Interno Bruto, mas a
livre condição de agente das pessoas, não há como desvincula-lo da consecução da liberdade
e, portanto, dos direitos de cidadania.
E para garantir esse desenvolvimento, necessariamente, precisamos democratizar
nosso Judiciário e fazer com que, quando materialmente negadas, essas liberdades possam ser
garantidas pela via judicial. É por essa razão que atingir provimentos jurisdicionais efetivos,
tempestivos e adequados, voltados a uma engenharia social, deve ser objetivo fundamental
para o fortalecimento da cidadania brasileira.
35
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I36
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I39
Etnopoiese: o acesso à justiça por meio da efetivação do etnodesenvolvimento nas
sociedades multiculturais
Marcelino Meleu1
Aleteia Hummes Thaines2
RESUMO
A presente pesquisa, demonstra a existência de uma (re)configuração da sociedade latinoamericana (designada por alguns de novo constitucionalismo latino americano), no que tange
a participação das comunidades tradicionais e indígenas, bem como, analisa a complexidade
que emana da inserção do etnodesenvolvimento no Direito, e, como a Teoria Sistêmica e a
autopoise contribuem para o surgimento de uma noção de etnopoiese. Objetiva, num âmbito
geral analisar o novo movimento latino-americano no que tange ao direito indigenista, e, de
forma específica, estudar o acesso à justiça nas sociedades multiculturais; compreender o
etnodesenvolvimento a partir da noção de sociedade autopoiética. O aprofundamento teórico
do estudo baseou-se na pesquisa bibliográfica, consistindo na leitura de várias obras e artigos
científicos à respeito do tema, utilizando-se o método sistêmico, preconizado por Niklas
Luhmann, que não é indutivo nem dedutivo, uma vez que pretende descrever os sistemas
(aberto e fechado) e sua relação com o ambiente. Percebeu-se a importância da reestruturação
dos sistemas políticos latino-americanos, fundamentada nas noções de etnodesenvolvimento
para a efetivação do acesso à justiça das comunidades indígenas e tribais e a perspectiva de
um conceito de etnopoiese.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Etnodesenvolvimento. Sociedades multiculturais.
Etnopoiese.
Etnopoiese: access to justice through the establishment of ethnic development in
multicultural societies
ABSTRACT
The present research, demonstrates the existence of a (re) configuration of the Latin American
society (known as some of the new Latin American constitutionalism), regarding the
participation of indigenous and traditional communities, as well as analyses the complexity
that emanates from the insertion of ethnic development in the law, and, as the Systemic
1
Advogado. Professor universitário da UNOCHAPECÓ (Chapecó/SC). Doutorando em Direito na UNISINOSRS. Bolsista CAPES. Mestre em Direito pela URI- Santo Angelo/RS. E-mail: [email protected]
2
Advogada; Administradora; Professora universitária da UNOCHAPECÓ (Chapecó/SC); Mestre em
Desenvolvimento. E-mail: [email protected]
39
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I40
Theory and autopoise contribute to the emergence of a notion of etnopoiese. Objective, on a
general framework to analyze the new Latin American movement with regard to indigenous
law, and, specifically, to study the access to justice in multicultural societies; understand the
ethno-development from the concept of autopoietic society. The deepening of theoretical
study was based on the bibliographical research, consisting of reading several books and
scientific articles about the theme, using the systemic method, advocated by Niklas Luhmann,
who is not deductive or inductive, since it aims to describe the systems (open and closed) and
their relationship with the environment. It was realized the importance of the restructuring of
Latin American political systems, based on the concepts of ethno-development for effective
access to justice of indigenous and tribal communities and the prospect of a concept of
etnopoiese.
Keywords: Access to justice. Ethno-Development. Multicultural societies. Etnopoiese.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende abordar, de forma sucinta, o acesso à justiça por meio
da efetivação do etnodesenvolvimento num contexto multicultural e o surgimento do conceito
de etnopoiese como contributo para a efetivação desse acesso.
A relevância temática está fundamentada na determinação do Direito por ele mesmo
por autorreferência, baseando-se na sua própria positividade (Teubner), demonstrando que
não há uma possibilidade na globalização, de se fazer, como propõe o normativismo, um
processo de tomada de decisões com certa racionalidade, simplesmente seguindo critérios
normativos de validade, ou abrindo o sistema para uma maior participação do Sistema
Político como condição de efetividade. Esta perspectiva é insuficiente, o que faz surgir uma
lacuna, no que concerne a participação das comunidades tradicionais e indígenas para o
desenvolvimento social e para a generalização congruente de expectativas comportamentais.
Em um contexto complexo, como se insere a participação social das comunidades
tradicionais e indígenas, não existe possibilidade de observações verdadeiras, tranqüilas e
seguras, aliás, não só nesse campo, uma vez que, a complexidade se manifesta de tal forma
que numa primeira observação só existiria fragmentação, o que identifica o surgimento de
culturas diferentes. Hodiernamente, surgem espaços de identidade em construção e sempre
questionáveis. Isso revela uma crise autopoiética, que Teubner, recuperando o que Luhmann
afirma no livro “Sociedade da Sociedade”, discute por meio da idéia de policontexturalidade.
Essa policontexturalidade é que permite que se observe a partir das categorias da
teoria dos sistemas, os novos sentidos do Direito, surgindo então o etnodesenvolvimento
como uma etapa da autopoiese da sociedade latino americana, de modo a sugerir a noção de
etnopoiese.
40
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I41
Nesse sentido, este estudo justifica-se, pela necessidade de implementação de ações
sociais dirigidas as comunidades tradicionais e indígenas, de modo a responder juridicamente
os anseios destas parcelas da sociedade comumente esquecidas pelos sistemas políticos.
Já a atualidade do tema, se verifica em especial, pela re(configuração) social de
países latino-americanos, a partir da implementação da noção de etnodesenvolvimento,
justificando pesquisas desse porte, que objetiva em um aspecto geral, analisar esse novo
movimento latino-americano e, de forma específica, estudar
e compreender o
etnodesenvolvimento a partir da noção de sociedade autopoiética.
O aprofundamento teórico do estudo pauta-se na pesquisa bibliográfica,
consubstanciada nas leituras de diversas obras, utilizando-se do método científico sistêmico,
preconizado por Niklas Luhmann, que não é indutivo nem dedutivo, uma vez que pretende
descrever os sistemas (aberto e fechado) e sua relação com o ambiente para formalizar a
pesquisa.
O presente artigo está estruturado em três partes: a primeira: acesso à justiça em um
contexto multicultural; a segunda: o desenvolvimento para a efetivação do acesso à justiça às
comunidades indígenas e tribais, e; a terceira: a Teoria Sistêmica e a autopoise do Direito
como fundamento para o acesso à justiça.
Num primeiro momento, será analisado como a re(configuração) dos sistemas
políticos latino-americanos contribuem para a efetivação do acesso à justiça num contexto
multicultural.
A seguir, comentar-se-á, suscintamente, a forma de como o desenvolvimento serve
para efetivar o acesso à justiça à comunidades indígenas e tribais, bem como o conceito de
etnodesenvolvimento dessas comunidades, uma vez que este pressupõe a existência de uma
capacidade autônoma, onde essas sociedades culturalmente diferenciadas podem definir e
guiar o seu desenvolvimento, sem a necessidade de um ente estatal.
Em um terceiro momento, tentar-se-á compreender a Teoria Sistêmica e a autopoise
como cerne para o acesso à justiça, especialmente, no que tange ao surgimento de um
conceito de etnopoiese, pois, uma vez relacionando o etnodesenvolvimento como uma fase da
autopoiese da sociedade latino-americana, faz-se necessária a formulação desse novo
conceito.
1 ACESSO À JUSTIÇA EM UM CONTEXTO MULTICULTURAL
41
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I42
No que tange ao acesso efetivo à Justiça, Mauro Cappelletti e Bryant Garth
sustentam a ocorrência de três "ondas renovatórias do processo", e, entre elas, afirma a
existência de soluções judiciais, extrajudiciais e institucionais, com vistas à solução e
prevenção de litígios.3 Assim, não há como se negar que o acesso à justiça possui caráter
fundamental e representa o mais básico dos direitos humanos4, em um sistema jurídico
moderno.
Em se tratando de sociedades multiculturais, buscar o respeito à cultura dessas
sociedades, bem como a prevenção da má administração dos conflitos gerados por ela,
incentivando a cultura do diálogo e da não-violência, constitui-se premissa necessária para a
com concretização do Estado Democrático de Direito.
Com esse desiderato, faz-se necessária a implementação de ações políticas e sociais
dirigidas às comunidades tradicionais e indígenas, a fim de responder juridicamente os
anseios destas parcelas da sociedade comumente esquecidas pelos sistemas de justiça, o que
leva a diversas disputas, principalmente no que tange a delimitação de territórios e alcance
jurídico, em especial de ordem laboral e penal.
Nesse
aspecto,
a
comunidade
latino-americana
faz
surgir
um
novo
constitucionalismo latino americano (iniciado com a Constituição colombiana (1991), a
venezuelana (1999) e a boliviana (2009)), o que põe em cheque conceitos clássicos da teoria
constitucional, como o de poder constituinte, direitos fundamentais e separação de poderes.
Tal movimento apresenta em comum, a introdução naquelas sociedades do conceito
de diversidade cultural e reconhecimento de direitos indígenas específicos, incorporando um
largo catálogo de direitos indígenas, afro e de outros coletivos, em especial como reflexo da
Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)5, no contexto da
3
Nesse sentido consultar: CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça.Tradução de Ellen Gracie
Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 2002.
4
Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 explicita em seu artigo 10º que “toda
pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja eqüitativa e publicamente julgada por um tribunal
independente e imparcial que decidirá tanto sobre os seus direitos e obrigações, como sobre as razões que
fundamentam qualquer acusação em matéria penal contra ela dirigida”. In. HAARSCHER, Gui. A Filosofia dos
Direitos do Homem. Lisboa: Inst. Piaget, 1993, p. 171.
5
“A Convenção n° 169, sobre povos indígenas e tribais, adotada na 76ª Conferência Internacional do Trabalho
em l989, revê a Convenção n° 107. Ela constitui o primeiro instrumento internacional vinculante que trata
especificamente dos direitos dos povos indígenas e tribais. A Convenção aplica-se a povos em países
independentes que são considerados indígenas pelo fato de seus habitantes descenderem de povos da mesma
região geográfica que viviam no país na época da conquista ou no período da colonização e de conservarem suas
próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas. Aplica-se, também, a povos tribais cujas
condições sociais, culturais e econômicas os distinguem de outros segmentos da população nacional.” In.:
Organização Internacional do Trabalho. Convenção n° 169 sobre povos indígenas e tribais e Resolução
referente à ação da OIT - Organização Internacional do Trabalho. Brasilia: OIT, 2011, 1 v. Disponível em: <
http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/gender/pub/convencao%20169%20portugues_web_292.pdf>.
Acesso em: 01 mar. 2013.
42
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I43
aprovação da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas e tribais
propondo a “refundação do Estado”, com reconhecimento explícito das raízes milenares dos
povos e discutindo o fim do colonialismo.
Como afirma Consuelo Sanches6,
Recientemente, los pueblos indígenas lograron que su derecho a libre
determinación fuera reconocido em la "Declaración de las Naciones
Unidas sobre los Derechos de los Pueblos Indígenas" (aprobado el 13
de septiembre de 2007). En el artículo 3 de este instrumento
internacional se asienta que "Los pueblos indígenas tienen derecho a
libre determinación. En virtud de ese derecho determinan libremente
su condición política y persiguen libremente su desarollo económico,
social y cultural." En el preámbulo de la declaración se establece que
los pueblos indígenas son iguales a todos os demás pueblos y, por
tanto, tienen iguales derechos de acuerdo con el sistema jurídico
internacional. También reconoce el derecho que tiene como "todos los
pueblos a ser diferentes, a considerarse así mismos diferentes y a ser
respetados como tales" (Asamblea General de la ONU, 2007). Todo
ello constituye un gran triunfo de los pueblos indígenas.
Desta forma se evidencia, que a sociedade latino-americana, esta reorganizando seus
fundamentos, sob o influxo da Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU), de
modo a reconhecer um protagonismo indígena, como por exemplo, a justiça indígena
boliviana que se sujeita apenas ao Tribunal Constitucional.
Tal contexto, remete à um conjunto de saberes e modos de exercício do poder,
oriundos do México, nas primeiras décadas do século XX7, que acabou migrando e se
disseminando por toda a América Latina8. Com papel decisivo, os antropólogos auxiliaram na
construção de uma política indigenista9 e na criação de comunicação entre os diferentes
indigenismos e políticas indigenistas dos Estados e na estruturação de um aparato políticoadministrativo transnacional a partir de 1940.
6
SÁNCHES, Consuelo. Autonomía y pluralismo. Estados plurinacionales y pluriétnicos. In: GONZÁLEZ,
M.; CAL Y MAYOR, A. B.; ORTIZ-T. (Org.). La autonomía a debate: autogobierno indígena y Estado
plurinacional en América Latina. Quito: Universidad Intercultural de Chiapas - UNICH, 2010. p. 260.
7
O México foi pioneiro na preocupação com políticas sociais destinadas a comunidade indígena, com a inserção
do "indigenismo social" nas décadas de 20 e 70.
8
SOUZA LIMA, Antonio Carlos. O indigenismo no Brasil: migrações e reapropriações de um saber
administrativo. In: L'ESTOILE, B. et.al. (Org.). Antropoligia, impérios e Estados Nacionais. Rio de Janeiro;
Relume Dumará, 2002. p.159-186.
9
O termo política indigenista se restringe às “medidas práticas formuladas por distintos poderes estatizados,
direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indígenas" e, assim se distingue do termo indigenismo, o qual
de refere "ao conjunto de idéias e ideais relativo relativo à inserção de povos indígenas em sociedades submissas
a Estados nacionais, com ênfase especial na formulação de métodos para o tratamento das populações
originárias, operados segundo uma definição do que seja índio". In: Souza Lima. A. C. Um Grande Cerco de
Paz, Poder Tutelar, Indianidade e Formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes. 1995. p. 14-15.
43
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I44
Tais experiências disseminadas na América Latina demonstram a ocorrência de uma
verdadeira transformação do modelo de comunicação dos sistemas jurídicos (jurisdição), até
porque, essa “como nós conhecemos hoje, é um mero momento histórico, sendo
recomendável que se observe que esse mesmo fenômeno evolutivo pode estar produzindo,
nos dias atuais, uma nova ordem de realização da justiça”, que deve ser explorado, pois
“indicador de um futuro inesperado”, que o mundo da vida nos traz, uma vez que “a política
altera-se constantemente e com ela alteram-se a economia, a jurisdição e outras áreas da
sociedade organizada”.10
Estas transformações poderão, no futuro, implicar na consolidação da cidadania e
efetivação dos direitos humanos, pois, como afirma Warat, os termos cidadão e Direitos
Humanos tornam-se cada dia mais sinônimos, podendo no futuro designar a mesma coisa, ou
nada.11
Assim, se verifica que a jurisdição, enquanto forma de dizer o direito apresenta
mutações, ou em outras palavras, a forma de comunicação12 do sistema jurídico esta em
debate. Aliás, a comunicação constitui os sistemas sociais, os quais, portanto concretizam a
realidade social13 e, “é instaurada como processo emergente no processo de civilização”14,
10
CALMON, Petrônio. Fundamentos da mediação e da conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 38.
WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Florianópolis: Fundação Boiteux,
2004, p. 110.
12
Aqui apresentada no sentido Luhmanniano, como “síntese entre a informação, o ato de comunicação e a
compreensão”. Nesse sentido consultar: ROCHA, Leonel Severo. Da epistemoligia jurídica normativista ao
construtivismo sistêmico. In: ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jeam. Introdução à
Teoria do Sistema Autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 37.
13
Pierre Guibentif, lembrando Luhmann aduz que “o autor assume a posição mais radical” ao afirmar que na
sociedade não há sujeitos, pois os sistemas sócias são constituídos por comunicações, sendo os seres humanos
apenas elemento do contexto da sociedade. In: GUIBENTIF, Pierre. Teorias Sociológicas Comparadas e
Aplicadas. Bourdieu, Foucault, Habermas e Luhmann face ao Direito. Revista Novatio Iuris, ano II, nº 3, p. 0933, julho de 2009, p. 13. Sobre tal posição, Michael King esclarece que: “Luhmann afirma de forma bem clara
que a autopoiese ‘impossibilita o humanismo’. Seu motivo é que não há no mundo social ‘nenhuma unidade
autopoiética de todos os sistemas autopoiéticos que constituem o ser humano’. No entanto, acrescenta, isso não é
para negar que todos somos humanos, mas para rejeitar a ideia da humanidade das pessoas como ponto de
partida para qualquer analise científica da sociedade moderna. [...] a intenção de Luhmann era dar uma
alternativa ao que ele vê como formas ultrapassadas [...] de explicar a relação dos seres humanos com a
sociedade do final do século XIX, através da cisão da consciência numa identidade pessoal e numa identidade
social (por exemplo, o ego e superego de Freud). O que a autopoiese rejeita portanto, é o tipo de análise que
parta da premissa ‘é tudo acerca da pessoa’, mas, longe de destruir o indivíduo, Luhmann pretende ‘reformular a
consciência individual numa forma de sistema teórico’”. Este autor ainda adverte que os indivíduos,
indubitavelmente se constituem como sistemas psíquicos, e, assim, acabam outorgando “coerência e significado
a sistemas de sentido diferenciados no universo social”. KING, Michael. A verdade sobre a autopoiese no
direito. In: ROCHA, Leonel Severo; KING, Michael; SCHWARTZ, Germano. A verdade sobre a autopoiese
no direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 90.
14
NAFARRATE, Javier Torres. Galáxias de Comunicação: o legado teórico de Luhmann. In: Lua Nova:
Revista de Cultura e Política, nº 51. São Paulo: CEDEC, 2000, p. 151. Aliás, fundamentando tal afirmação, o
autor citado, aduz que “os seres humanos tornam-se dependentes desse sistema emergente de ordem superior,
cujas características fazem com que eles possam eleger os contatos que desejam entabular com os outros seres
humanos. Esse sistema de ordem superior é o sistema de comunicação chamado sociedade”. Op. cit. p. 151.
11
44
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I45
portanto, contribuindo para o desenvolvimento social, uma vez que este, “pode ser
compreendido como ampliação das prestações comunicativas”.15
Neste sentido, se um sistema produz os elementos que o constituem, com a ajuda dos
elementos que o constituem, evidenciando assim uma autoreferencia, respeitando-se sua
identidade e diferença16, uma vez que, “un acontecimento único, debe incorporar [...] la
identidade consigo mismo y la diferencia respecto de sí mismo”17, pois “solamente de este
modo puede establecerse el Nexus”, e, se a forma de comunicação do sistema jurídico esta
em debate, isso importa na necessidade de se aprofundar o estudo dos elementos e limites
desta, no que concerne à jurisdição enquanto ação dotada de sentido18, pois “los sistemas
sociales se constituyen vía las ‘acciones’”19.
Assim, faz-se necessário o estudo sobre o desenvolvimento das sociedades e grau de
influencia desta para o efetivo acesso à justiça, especialmente no que tange as comunidade
indígenas e tribais.
2 O DESENVOLVIMENTO COMO FUNDAMENTO PARA A EFETIVAÇÃO DO
ACESSO À JUSTIÇA ÀS COMUNIDADES INDÍGENAS E TRIBAIS
O tema desenvolvimento abrange toda a humanidade e assim, envolve toda a
sociedade, integrando de forma sistêmica fatores econômicos e sociais. A partir da Revolução
Industrial, o conceito de desenvolvimento vem sofrendo consideráveis modificações. Muitos
autores consideram a Revolução Industrial como o marco do desenvolvimento, visto que esta
promoveu uma grande transformação cultural, política, econômica e social.
Entretanto, o desenvolvimento começou a ter maior ênfase a partir da década de 40,
com as discussões do pós-guerra. No início, este conceito foi atrelado ao crescimento
15
Ibidem, p.151.
LUHMANN,
Niklas. Organización
y
decisión. Autopoiesis,
acción
y
entendimento
comunicativo. Tradução de Darío Rodriguez. Rubí (Barcelona) : Anthropos Editorial; México : Universidade
Iberoamericana ; Santiago de Chile : Instituto de Sociologia. Pontifícia Universidad Católica de Chile, 2005, p.
110-111.
17
Ibidem, p. 111.
18
Aqui, para o conceito de ação, acompanha-se a teoria de Niklas Luhmann, ou seja, ação enquanto elemento
constitutivo dos sistemas sociais, “um acontecimento, se encuentra associada a um espacio temporal y debe
consumirse com mayor o menor rapidez y finalizar com mayor o menor nitidez”. Ibid. p. 108. Todavia, quando
vinculamos a dotação de sentido, voltamos a necessidade de se verificar a identidade e diferença daquela, uma
vez que, “sin la identidade y sin la diferencia, no sería ningún acontecimento. Y ninguma acción!”.
Exemplificando, Luhmann esclarece que “uma acción como la de ‘tocar el timbre de la puerta’ no se traduce
solamente em el sonar del timbre. Adquire sentido, porque la puerta puede abrirse, momento em el cual el timbre
dejará de sonar. A partir de entonces deja de tener sentido seguir tocando el timbre o volver a tocarlo. Ibidem p.
111.
19
Ibidem, p. 105.
16
45
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I46
econômico, sendo que ele era medido apenas pelo Produto Interno Bruto (PIB) e pelo PIB per
capita20. Porém, com o passar do tempo, esse conceito se tornou controverso, uma vez que se
observou que o termo era mais complexo e dinâmico. Em virtude disso, as recentes doutrinas
vêm dando sentido amplo a esta definição, tentando aproximar as ciências sociais e
estabelecer uma distinção entre desenvolvimento e crescimento21.
Mesmo com o passar do tempo, e com mais de seis décadas de discussões sobre o
significado do termo “desenvolvimento”, ainda não existe um consenso entre os cientistas
sociais, o que acarreta uma confusão entre desenvolvimento e crescimento econômico.
Cabe destacar, que a questão do desenvolvimento está diretamente ligado a duas
correntes: a primeira, defendendo que o desenvolvimento está ligado exclusivamente ao
crescimento econômico ou ao desenvolvimento econômico; e, a segunda, entendendo que o
desenvolvimento econômico é apenas um fator do desenvolvimento, sendo que esta
conceituação bem mais ampla e complexa.
Essa segunda corrente, demonstra que as teorias atuais romperam com a ideia de que
desenvolvimento é apenas crescimento econômico. A concepção atual é mais abrangente e
complexa e determina que o desenvolvimento consiste em um processo de enriquecimento de
Estados ou regiões, assim como de seu povo, e também de um crescimento da produção
nacional e da remuneração recebida pelos que participam da atividade econômica. Enquanto o
crescimento econômico diz respeito à geração de riquezas, não se importando com outros
fatores22.
Nesta persperctiva, Fischer23 entende que o desenvolvimento compreende, ao mesmo
tempo, processos compartilhados e resultados atingidos; visões de futuro ou utopias
constuídas por coletivos organizacionais e ações concretas de mudança.
Sob outro prisma, Amartya Sen24, enfatiza que o desenvolvimento é um processo
integrado de liberdades substantivas interligadas, afirmando que “as liberdades não são
apenas os fins primordiais para o desenvolvimento, mas também os meios principais”25, ou
seja, os indivíduos necessitam ter liberdades para fazer suas escolhas.
20
PIB per capita é calculado pelo Produto Interno Bruto a preço de mercado, dividido pela população
(FEE/Centro de Informação Estatística).
21
SOUZA, Nali de Jesus de. Desenvolvimento econômico. São Paulo: Atlas, 1999.
22
VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável – o desafio do século XXI. 2. ed. Rio de Janeiro:
Garamond, 2006.
23
FISCHER, Tania (Org.). Gestão do desenvolvimento e poderes locais: marcos teóricos e avaliação.
Salvador: Casa da Qualidade, 2002.
24
Amarthya Sem. Economista indiano. Prêmio Nobel de Economia.
25
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 25.
46
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I47
Nesse sentido, o autor traz a concepção de desenvolvimento como liberdade, isto é, o
progresso, a industrialização, as inovações tecnológicas, e, principalmente o respeito às
diferenças multiculturais da sociedade expandem a liberdade humana, porém, para que isso
ocorra, é necessário que o desenvolvimento se dê no âmbito cultura, social, humano,
econômico e jurídico.
Sob esse aspecto, salienta-se que o novo conceito de desenvolvimento tem por
fundamento a garantia dos direito humanos e também o direito das minorias, a fim de que
estes sejam respeitados e efetivados, particularmente quando se refere ao direito indigenista,
uma vez que, a partir dessa concepção, o direito estatal (imposto pelo Estado) viola as suas
liberdades, ou seja, confronta com as crenças e costumes desses povos.
A própria Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento26, afirma que o
desenvolvimento consiste numa garantia universal e inalienável, implicando na efetivação dos
direitos dos povos de autodeterminação.
Nesse sentido, observa-se que a sociedade latino-americana, está se reenstruturando,
de modo a implementar alterações em seu ordenamento jurídico em consonância com a
Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento e a Convenção n. 169 da Organização
Internacional do Trabalho, visando efetivar o direito das comunidades indígenas, respeitando
suas crenças e costumes.
A partir dessas considerações, emerge-se o conceito de etnodesenvolvimento como
um direito dos povos indígenas e um dever dos sistemas políticos nacionais.
2.1 O etnodesenvolvimento das comunidades
A idéia de "etnodesenvolvimento" na América Latina é desenvolvida por Rodolfo
Stavenhagen e Guilhermo Bonfil Batalla. Aliás, estes autores consideram que esta idéia esta
ligada ao "exercício da capacidade social dos povos indígenas para construir seu futuro em
consonância com suas experiências históricas e com os recursos reais e potenciais de sua
cultura, de acordo com projetos definidos segundo seus próprios valores e aspirações". Assim,
o etnodesenvolvimento pressupõe a existência de condições necessárias para a capacidade
26
Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento – Adotada pela Revolução n.º 41/128 da Assembléia Geral
das Nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986. Art. 1º. O desenvolvimento é uma garantia universal, sendo que
ele é um direito humano inalienável, em virtude do qual toda pessoa e todos os povos estão habilitados a
participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual
todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados. O direito humano ao
desenvolvimento também implica a plena realização do direito dos povos de autodeterminação, que inclui,
sujeito às disposições relevantes de ambos os Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos, o exercício de seu
direito inalienável de soberania plena sobre todas as sua riquezas e recursos naturais.
47
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I48
autônoma de uma sociedade culturalmente diferenciada, que assim pode se manifestar,
definindo e guiando seu desenvolvimento.27
Ou seja, propõe, como ressalta Guillermo Batalla, que tais comunidades se tornem
gestoras de seu próprio desenvolvimento, tanto no campo educacional e de formação técnica,
quanto no campo político-administrativo à gestão de seus próprios territórios.
No Brasil, além de Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira introduz a idéia de
etnodesenvolvimento, em especial, quando, na condição de diretor do Anuário Antropológico,
em 1985 publica, nessa coletânea, o artigo de Rodolfo Stavenhagen, intitulado
"Etnodeenvolvimento: uma dimensão ignorada no pensamento desenvolvimentista"28
Ao lado de Batalla, Stavenhagen propõe a idéia de etnodesenvolvimento, pois para
este autor, o grande desafio que se põe às comunidades indígenas, em um contexto de novos
movimentos sociais indigenistas de reivindicação de reconhecimento à valores culturais e
participação desta determinada classe na estrutura social reside na necessidade de integração
com a teoria do desenvolvimento. Stavanhagen29 alerta, porém, que na América Latina a idéia
de etnodesenvolvimento, pressupõe uma completa revisão das políticas governamentais
indigenistas até aqui adotadas pela maioria dos Estados.
Nessa senda, Stavanhagen entende etnodesenvolvimento como "desenvolvimento de
grupos étnicos no interior de sociedades mais amplas"30 além de considerar que para a
ocorrência do desenvolvimento há de se considerar os fatores étnicos, de modo a formar
Estados multinacionais, multiculturais e multiétnicos, nos quais "as comunidades étnicas
possam encontrar oportunidades de desenvolvimento social, econômico cultural dentro da
estrutura mais ampla"31.
Assim, a partir da concepção de etnodesenvolvimento, reforça-se a necessidade dos
Sistemas Políticos de inserirem ações que possam garantir e efetivar o direito das minorias,
em especial o direito dos povos indígenas e tribais levando em consideração sua cultura e suas
raízes. E, para melhor entender essa reestruturação dos Estados, se faz imperioso o estudo de
algumas posturas teóricas centradas na autopoiese e na teoria sistêmica.
27
BATALLA, Guillermo Bonfil. Los pueblos indios, sus culturas y las políticas culturales. Anuário
Indigenista, XLV: 1985, p. 129-158.
28
STAVENHAGEN,R. Etnodesenvolvimento: uma dimensão ignorada no pensamento desenvolvimentista.
Anuário Antropologico/84. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1985.
29
Idem
30
Idem, p. 41
31
Idem, p. 42
48
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I49
3 A TEORIA SISTÊMICA E A AUTOPOIESI DO DIREITO COMO FUNDAMENTO
PARA O ACESSO À JUSTIÇA E PARA A CARACTERIZAÇÃO DO CONCEITO DE
ETNOPOIESE
A teoria sistêmica obteve uma atenção maior no decorrer do século XX,
especialmente em função dos biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela, que foram, no
entender de Leonel Severo Rocha32, os primeiros
a utilizar contemporaneamente, com sucesso, a ideia de autopoiese.
Por isso toda a discussão deve necessariamente levar em consideração
este marco inicial. Maturana surpreende os observadores mais
tradicionais pela afirmação e confirmação dos obstáculos necessários
para o conhecimento do conhecimento. As relações entre a biologia e
cognição nunca mais serão as mesmas depois da autopoiese.
Maturana e Varela, portanto, deram uma importante contribuição ao avanço da noção
de sistema quando disseram que a cognição e os organismos vivos constituíam-se em sistemas
autopoiéticos. O reconhecer que caracteriza os seres vivos é, portanto, sua organização. Dessa
forma, o conceito de sistema, aplicado aos organismos vivos e à cognição, não apenas
assumiu determinadas características nunca assumidas e explicitadas antes, como também
acrescentou elementos polêmicos, sobretudo à teoria do conhecimento, com relação à forma
como os sistemas orgânicos deveriam ser vistos33.
Os sistemas orgânicos, para os biólogos referidos, são sistemas fechados,
autorreferenciados e autopoiéticos. Ou seja, um organismo vivo (um animal, um vegetal, uma
bactéria etc) constitui um sistema, pois apresenta todas as características de um sistema, com
partes vinculadas, elementos interdependentes, que funcionam, se mantém como tal e são
capazes de se transformar com o tempo.
32
ROCHA, Leonel Severo. A produção sistêmica do sentido do direito: da semiótica à autopoiese. In: STRECK,
Lênio Luiz; Morais, José Luis Bolzan de. Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos:
constituição sistemas sociais e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. n. 6.
33
Para Matura e Varella, “todo hacer es conocer y todo conocer es hacer” pois “todo lo dicho es dicho por
alguien”. Assim, pode-se distinguir quatro condições que devem ser satisfeitas em uma explicação científica, a
saber: “a. descripción del o fenómenos a explicar de uma manera acptable para la comunidade de observadores;
b. proposición de um sistema conceptual capaz de generar el fenómeno a explicar de uma manera aceptable para
la comunidade de observadores (hipótesis explicativa); c. deducción a partir de b de otros feómenos no
considerados explicitamente em su proposición, así como la descripción de sus condiciones de observación em la
comunidade de observadores; d. observación de estos otros fenómenos deducidos de b.” In: MATURANA
ROMESÍN, Humberto; VARELA, Francisco. El árbol del conocimiento. Las bases biológicas del
entendimiento humano. Buenos Aires: Lumen, 2003, p. 13-15.
49
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I50
Tal ideia de que organismos vivos deveriam ser vistos como sistema já estava
presente desde as primeiras décadas do século XX nos trabalhos do biólogo Ludwig Von
Bertalanffy, o qual defendia que um “organismo não é um sistema fechado, mas aberto.
Dizemos que um sistema é ‘fechado’ se nenhum material entra nele ou sai dele. É chamado
‘aberto’ se há importação e exportação de matéria”34. Assim, em que pese já se admitir que
organismos vivos deveriam ser vistos como sistema, Maturana e Varella referem, ao
contrário, que tanto a cognição como os sistemas orgânicos são fechados, uma vez que suas
partes interagem mutuamente e entre si, criando um fechamento puramente operacional35.
3.1
Autopoiese de Luhmann a Teubner
Após 1980, Lhumann utiliza as ideias de Maturana, fazendo a passagem da vida para
a comunicação. Aliás, a biologia sempre influenciou a sociologia, pois a ideia de função é
base na ideologia (segundo o funcionalismo, o sistema vai funcionado a partir de alguns
objetivos). Quando se está dentro do direito, por exemplo, o objetivo será jurídico, e assim
por diante.
A recepção, por Niklas Luhmann dos estudos de Maturana e Varella, faz com que ele
parta do pressuposto de que é possível comparar, em uma teoria da sociedade, diversos
sistemas voltados para uma determinada função36.
Luhmann37 desconsidera deduzir a sociedade de um princípio ou de uma norma
transcendente e sustenta que seja possível analisar campos heterogêneos como a ciência, o
34
BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 162. Tal autor já
identificava a incidência de uma nova revolução - a Revolução Organística, “baseada nos modernos progressos
das ciências biológicas e do comportamento. [...] Seu núcleo é a noção de sistema, aparentemente um conceito
pálido, abstrato e vazio, que entretanto é repleto de um significado oculto, de possibilidades de fermentação e
explosão.” Op. Cit. p. 239. Todavia, Maturana e Varella avançam: os autores defenderam que tanto a cognição
como os sistemas orgânicos são fechados. Com isso, não estavam se referindo ao fato de que tais sistemas são
isolados, incomunicáveis, insensíveis, imutáveis, mas sim, que tais sistemas tornam-se sistemas porque suas
partes ou seus elementos interagem uns com outros e somente entre si; na verdade, os autores querem dizer que
o fechamento apresentado pelos sistemas orgânicos é um fechamento puramente operacional.
35
Nesse sentido, consultar MATURANA. H e VARELA. F. De máquinas y seres vivos - autopoiesis: la
organización de lo vivente. Santiago do Chile: Editorial Universitária, 1995. Neste trabalho, os autores
explicitamente afirmam que “os seres vivos não eram um conjunto de moléculas, mas sim, uma dinâmica
molecular, um processo que ocorre como unidade discreta e singular como resultado do operar e em operar; [do
operar] das distintas classes de moléculas que o compõem, num jogo de interações e relações de vizinhança que
os especificam e realizam como uma rede fechada de trocas e sínteses”. Op. Cit., p. 15.
36
O que já era objeto de estudo de Parsons. Nesse sentido, consultar PARSONS, Talcott and SHILS, Edward A.
Toward a general theory of action. Theoretical Foundations for the Social Sciences. New Brunswick:
Transaction Publishers, 2007.
37
Para Luhmann, “com el concepto de sistemas que se describen a sí mismos (sistemas que describen su
autodescripción) llegamos a um terreno inclemente. Uma sociedade que se describe a sí misma lo hace desde
dentro, aunque parezca que lo hace desde fuera. Se observa a sí misma como objeto de su próprio conocimento
50
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I51
direito, a economia e a política comparando suas estruturas, através da sua observação, com
vistas a identificar onde se poderia aplicar o mesmo aparato conceitual.
De acordo com Leonel Severo Rocha38, “Niklas Luhmann assume, portanto, a
proposta de um construtivismo voltado à produção do sentido desde critérios de
autorreferência e auto-organização introduzidos pela autopoiese”. Para Luhmann, a relação
entre direito e sociedade se dá pela oposição entre autorreferência e heterorreferência, ou
entre sistemas fechados e sistemas abertos.
Nesse sentido, "o sistema jurídico deve então observar aquilo que tem que ser
manejado no sistema como comunicação especificamente jurídica" 39. Por isso, uma teoria da
comunicação que permitiria à teoria do direito acesso a novos problemas é perseguida por
Luhmann, pois ele entende que na comunicação não se pode prescindir nem de operações
comunicativas nem das estruturas
40
. Isso permite chegar ao conceito de autopoiesis em
Luhmann41.
Ratificando, inicialmente, Luhmann, Gunther Teubner também se mostra afeito a
problematizar e estudar a teoria sistêmica e a autopoiese do direito, pois considera importante
uma reflexão autopoiética na globalização, através da policontexturalidade. Para Leonel
Severo Rocha42, “esta se torna, em um mundo onde o direito é fragmentado em um pluralismo
em que o Estado é apenas mais uma de suas organizações, um referente decisivo para a
configuração do sentido.” Assim, a policontexturalidade é uma proposta que permite que se
observem a partir das categorias da teoria dos sistemas os novos sentidos do Direito.
aunque al realizar esta operación no permite que la observación se deslice em el objeto porque esto modificaria
al objeto y exigiria uma observación ulterior”. In: LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Trad.
Javier Torres Nafarrate. México: Universidad Iberoamericana/Herder, 2007, p 04.
38
ROCHA, Leonel Severo. A produção sistêmica do sentido do direito: da semiótica à autopoiese. In: STRECK,
Lênio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Unisinos: constituição sistemas sociais e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. n. 6.
39
LUHMANN, Niklas, El derecho de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. México: Universidad
Iberoamericana/Colección Teoría Social, 2002, p. 90.
40
Op. cit., p. 91.
41
Segundo o qual “el concepto de producción (o más bien de poiesis) siempre designa sólo una parte de las
causas que un observador puede identificar como necesarias; a saber, aquella parte que puede obtenerse
mediante el entrelazamiento interno de operaciones del sistema, aquella parte con la cual el sistema determina su
proprio estado. Luego, reproducción significa – en el antiguo sentido de este concepto – producción a partir de
productos, determinación de estados del sistema como punto de partida de toda determinación posterior de
estados del sistema. Y dado que esta producción/reproducción exige distinguir entre condiciones internas y
externas, con ello el sistema también efectúa la permanente reproducción de sus límites, es decir, la reproducción
de su unidad. En este sentido, autopoiesis significa: producción del sistema por sí mismo”. In: LUHMANN,
Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Ed. Herder/Universidad
Iberoamericana, 2007, p. 69-70.
42
ROCHA, Leonel Severo. A produção sistêmica do sentido do direito: da semiótica à autopoiese. In: STRECK,
Lênio Luiz; Morais, José Luis Bolzan de. Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos:
constituição sistemas sociais e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. n. 6.
51
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I52
Portanto, Teubner apresenta um conceito de sentido ligado à pluralidade e uma ideia
de direito que leva em conta a sua circularidade, pois, para o autor, o direito "determina-se a
ele mesmo por autorreferência, baseando-se na sua própria positividade”
43
, sendo que "a
realidade social do direito é feita de um grande número de relações circulares. Os elementos
componentes do sistema jurídico – acções, normas, processos, identidade, realidade jurídica –
constituem-se a si mesmos de forma circular”44. Assim, para Teubner a autopoiese está em
evolução permanente45.
O autor, dessa forma, considera que os subsistemas sociais "constituem unidades que
vivem em clausura operacional, mas também em abertura informacional-cognitiva em relação
ao respectivo meio envolvente”
46
, o que permite ao direito se (re) construir, através do
enfrentamento de paradoxos postos.
A teoria sistêmica, especialmente os trabalhos de Luhmann e Teubner, indica uma
perspectiva teórica profundamente inovadora, que apresenta, através da autopoiese, uma
redefinição da ideia de diferenciação como forma de se enfrentar os paradoxos e avançar na
releitura do direito, pois possibilita a abertura dos horizontes de compreensão do sentido até
então mascarados pela dogmática jurídica tradicional.
Uma releitura do direito é necessária, especialmente em uma sociedade multicultural,
onde há uma maior incidência de complexidades. Exemplo disso está sendo vivenciado por
vários países da América Latina, como por exemplo, na Bolívia, onde recentemente ocorreu
uma reestruturação no ordenamento jurídico, por meio de uma nova Constituição,
reconhecendo assim, o protagonismo indígena, por meio da criação de um Tribunal Indígena,
a fim de considerar suas raízes e suas crenças. Tal situação, não estaria revelando que
conceitos e estruturas tradicionais merecem uma análise autopoiética, com vistas a efetivar o
Estado Democrático de Direito que prima pela dignidade da pessoa humana e, assim,
efetivando o direito das minorias, em especial o direito indígena e tribal?
43
TEUBNER, Gunther. O Direito como sistema autopoiético. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1993, p. 2.
Idem, ibidem, p. 19.
45
Assim, o direito teria vários estágios, gerando um hiperciclo, pois “se aplicarmos tentativamente a ideia de
hiperciclo ao direito, vemos que autonomia jurídica se desenvolve em três fases. Numa fase inicial – ‘dita de
direito socialmente difuso’ -, elementos, estruturas, processos e limites do discurso jurídico são idênticos aos da
comunicação social geral ou, pelo menos, determinados heteronomamente por esta última. Uma segunda fase de
um ‘direito parcialmente autônomo’ tem lugar quando um discurso jurídico começa a definir os seus próprios
componentes e a usá-los operativamente. O direito apenas entra numa terceira e última fase, tornando-se
‘autopoiético’, quando os componentes do sistema são articulados entre si num hiperciclo”. In: TEUBNER,
Gunther. O Direito como sistema autopoiético. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1993, p. 77.
46
TEUBNER, Gunther. O Direito como sistema autopoiético. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1993, p. 140.
44
52
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I53
Nesse cenário, como refere Wolkmer47, “de complexidade não nos impossibilita de
admitir que o principal núcleo para qual converge o pluralismo jurídico é a negação deque o
Estado seja a fonte única e exclusiva de todo o Direito”. Tal postura minimiza ou nega o
monopólio de criação das normas jurídicas por parte do Estado, priorizando a produção de
outras formas de regulamentação, como aquela oriunda da própria comunidade. “Além de não
se revestir da única ordenação jurídica existente, o Estado convive com outras ordenações, ora
em relação de coexistência social, ora em relação de luta”48, que não obstaculiza a sua
juridicidade49.
3.2 O surgimento do conceito de etnopoiese e seu contributo para a efetivação do acesso
à justiça
Ao analisar do ponto de vista normativo, da hiper-complexidade e a lógica do
desenvolvimento social e étnico, bem como manter de certa maneira a autopoiese como
característica oxigenadora dos sistemas judiciais, tem-se que pensar em provocar irritações
dentro do sistema do Direito, de maneira que a nossa lógica estrutural seja uma lógica que não
se confine somente na organização estatal e na Constituição50.
Tais lacunas, evidenciadas na incapacidade do sistema jurídico de relacionar a
pragmática jurídica e a teoria jurídica, apresentam espaços em branco entre a dogmática
jurídica e sua incidência social. A questão de desenvolvimento social esta nesta situação e,
para que o direito apresente uma resposta adequada a essa problemática, deve voltar-se a
teoria dos sistemas, uma vez que esta, apresenta uma nova concepção de direito que
possibilitará a percepção e a resolução de tais conflitos.
Aliás, tal teoria, com revela Leonel Severo Rocha esta:
apta a pensar o Direito como componente de uma estrutura social
complexa e paradoxal. Na classificação das matrizes da teoria jurídica
contemporânea, já se tinha salientado a existência de uma Matriz
47
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito. 2. ed. São
Paulo: Alfa-Omega, 1997, p. 168.
48
Op. cit., p. 173.
49
Para Wolkmer, “a crise e o exaurimento das estruturas centralizadoras do Estado moderno favorecem o
desenvolvimento de limitações a este poder “, com “a reordenação do espaço público comunitário-participativo e
a consolidação hegemônica do poder de auto-regulação dos sujeitos sociais possibilita a retomada, o alargamento
e a difusão de procedimentos de intervenção popular direta na Justiça penal, na Justiça civil e na Justiça do
trabalho”. In: WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito.
2. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1997, p. 278-9.
50
TEUBNER, Gunther. A Crise da Causalidade Jurídica. In: Direito, Sistema e Policontexturalidade. São
Paulo: Unimep, 2005.
53
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I54
Sistêmica. Porém, os últimos trabalhos de Luhmann, notadamente a
partir dos conceitos de risco e paradoxo, permitem um passo à frente
para a compreensão da hipercomplexidade da sociedade atual. Esta
teoria da sociedade permite o contato na teoria jurídica entre os
aspectos externos e internos, entre a práxis e a teoria, superando as
concepções dogmática dominantes.51
Por isso, o tema desenvolvimento deve ser refletido sobre um Direito multicultural:
um Direito que permita a abertura para essa variedade de culturas. Um Direito que permita,
pelo menos a partir da idéia de sistema, pensar a equivalência.
Segundo Teubner52 o direito comparado é extremamente importante para se
imaginar, que apesar de tudo, existem alguns critérios suscetíveis de equivalência
universalmente nos sistemas jurídicos, que permitem esse diálogo entre culturas, desde que se
tenha essa lucidez. Perante a crise da observação normativista e a dificuldade da autoreprodução autopoiética da dogmática jurídica a teoria dos sistemas sociais recupera a ligação
entre Direito, verdade e cultura na policontexturalidade. Esta é uma condição necessária para
a construção de um espaço pluricultural e democrático que origine a estruturação e reestrutração de novas possibilidades de produção de identidade e sociedades mais igualitárias.
Diante deste contexto e, do surgimento de novos tipos de direitos, como o indígena,
Teubner afirma que é preciso que o direito esteja atento a lógica própria das organizações
internacionais, entre outras, que tem uma lógica própria e, que começam a surgir paralelas ao
Estado, na globalização53.
Assim, se justificam estudos delineados a partir desta necessidade, qual seja, a busca
de novo sentido ao desenvolvimento (e sua influencia para o acesso à justiça), que contemple
o anseio de uma comunidade inserida em um contexto étnico, e que apresenta como
característica a multiculturalidade54, como no caso latino-americano, a partir de uma análise
51
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e democracia. 2. ed.. São Leopoldo: UNISINOS, 2003. p.
94.
52
Op. Cit.
53
TEUBNER, Gunther. A Crise da Causalidade Jurídica. In: Direito, Sistema e Policontexturalidade. São
Paulo: Unimep, 2005, p. 189-232.
54
Stuart Hall faz uma distinção entre os termos “multicultural” e “multiculturalismo”, definindo que o primeiro é
uma expressão qualitativa, que descreve “as características sociais e os problemas de governabilidade
apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma
vida em comum, ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade ‘original’. Já o termo ‘multiculturalismo’
é substantivo, referindo-se “às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de
diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais” e, acrescenta que descreve vários
processos e estratégias políticas inacabados. Nesse sentido, consultar: HALL, Stuart. A identidade cultural na
pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaraci Lopes Louro – 5ª. Ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2001,
p. 52-3. Já Boaventura de Souza Santos e João Arriscado Nunes referem que os termos multiculturalismo, justiça
multicultural, direitos coletivos, cidadanias plurais são utilizados para tratar as questões que envolvem diferença
e igualdade, “entre a diferença de reconhecimento da diferença e a redistribuição que permita a realização da
54
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I55
dos sistemas jurídicos que compõe esse espaço multicultural. Aliás, como salienta Leonel
Severo Rocha55 há necessidade de “se refletir sobre um Direito multicultural: um Direito que
permita, pelo menos a partir da ideia de sistema, pensar a equivalência”, sendo assim, “o
direito comparado é extremamente importante para se imaginar, que apesar de tudo, existem
alguns critérios suscetíveis de equivalência universal nos sistemas jurídicos, que permitem
esse diálogo entre culturas”.
Além disso, estudar uma (re)configuração social de países latino- americanos, a
partir da implementação da noção de etnodesenvolvimento, em um aspecto geral, e, de forma
específica, o etnodesenvolvimento a partir da noção de sociedade autopoiética, o presente
trabalho avança nos contributos de Luhmann e Teubner, de modo a apresentar um novo
conceito, ou seja, o surgimento da noção de etnopoiése, que consiste na identificação de um
ambiente social onde ocorre "a reprodução dos elementos de que se compõe o sistema e que
geram sua organização pela relação reiterativa [...] entre eles"56 pelo desenvolvimento a partir
da preocupação étnica e o reconhecimento da existência de condições necessárias para a
capacidade autônoma de uma sociedade culturalmente diferenciada, que assim pode se
manifestar, definindo e guiando seu desenvolvimento.
No Brasil, tal pesquisa é reforçada pela implementação de ações57 e fomento ao
etnodensenvolvimento.
igualdade”. Para estes, o multiculturalismo surgiu como uma designação para traduzir “a coexistência de formas
culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes” nas sociedades modernas e transformou-se num
“modo de descrever as diferenças culturais em um contexto transnacional e global”. Assim, definem que o
multiculturalismo emancipatório está baseado no reconhecimento da diferença, no direito à tal diferença e na
possibilidade de coexistência ou construção de uma vida em comum, que ultrapasse os mais variados tipos de
diferenças. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do
cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
55
ROCHA, Leonel Severo. Observações sobre a observação Luhmanniana. In: ROCHA, L. S.; KING,
Michael; SCHWARTZ, Germano. A verdade sobre a autopoiese no direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2009, p. 40.
56
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 209.
57
Em 24.05.2011 foi "lançado no Centro Makunaim, na Terra Indígena São Marcos em Pacaraima (RR), o
primeiro Plano Territorial de Etnodesenvolvimento Indígena (Ptei) do Brasil. O Território da Cidadania Terra
Indígena Raposa Serra do Sol e São Marcos abrange os municípios de Normandia, Pacaraima, Uiramutã e parte
de Boa Vista, onde estão demarcadas duas terras indígenas: São Marcos e Raposa Serra do Sol.
O Ptei começou a ser desenvolvido em junho de 2009 pelo Colegiado Territorial do Território da Cidadania
Raposa Serra do Sol e São Marcos. O plano tem como objetivo promover o desenvolvimento econômico
sustentável da região, a universalização do acesso a políticas públicas de cidadania e o crédito produtivo,
priorizando a participação social e a integração das diversas esferas dos governos.A elaboração do plano,
estruturado em três partes – histórico e contexto geral dos indígenas, diagnóstico territorial e plano territorial começou após a região ser inserida no Programa Territórios da Cidadania, iniciativa desenvolvida pelo governo
federal em parceria com estados, municípios e sociedade civil.A delegada do Ministério do Desenvolvimento
Agrário em Roraima, Célia Souza, destaca que o plano reafirma a identidade, a autonomia e o protagonismo dos
povos indígenas da região. “O documento respeita a cultura, a língua e a forma de viver dos índios. O plano foi
produzido por eles, para seu território, e isso reflete a postura do governo federal, de não impor uma política
pública, mas construir coletivamente”, destaca.Participaram da construção do Ptei o Conselho Indígena de
Roraima (CIR), o Conselho do Povo Ingariko (Coping), a Associação dos Povos Indígenas do Estado de
55
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I56
Assim, diante deste cenário complexo, de crise e da auto-regulamentação dos
sistemas políticos latino-americanos, e, com o intuito de refletir sobre o tema, sem pretensão
de esgotá-lo é que se apresenta este artigo, pois a jurisdição, enquanto forma de dizer o direito
e de efetivar o acesso à justiça apresenta mutações, ou em outras palavras, a forma de
comunicação do sistema jurídico esta em debate. E, tal debate apresenta interessantes
interfaces com o estudo do desenvolvimento das comunidades indígenas que se constituem
em numero expressivo na América Latina, o que faz sugerir o surgimento de uma autoregulamentação do direito (autopoiese), em prol destas etnias, ou seja, de uma etnopoiese.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo buscou estimular a reflexão e incitar o debate acerca da
transformação evidenciada nas sociedades latino-americanas, voltando os olhos a um novo
paradigma emergente, o etnodesenvolvimento e seu contributo para uma reformulação da
forma de comunicação dos sistemas jurídicos (jurisdição) e para a efetivação do acesso à
justiça das comunidades indígenas e tribais. Nesse contexto, procura-se identificar a
relevância do estudo do desenvolvimento das sociedades e a necessidade de se pensar, em
conjunto com esse, na construção de um modelo de acesso à justiça voltado à cidadania e a
efetivação dos Direitos Humanos.
O pensamento jurídico do novo constitucionalismo latino-americano e, por
conseguinte, o pensamento brasileiro pós Constituição de 1988, esta voltado ao compromisso
de concretização dos direitos humanos e, para tanto, urge a humanização do Direito e da
Justiça, com distanciamento de uma concepção normativista dos modelos de acesso à justiça,
em especial no que tange a conflitos envolvendo comunidades indígenas e tribais.
Nesse
aspecto,
a
comunidade
latino-americana
faz
surgir
um
novo
constitucionalismo latino americano (iniciado com a Constituição colombiana (1991), a
Roraima (Apirr), a Aliança de Integração e Desenvolvimento das Comunidades Indígenas de Roraima (Alidicir),
a Organização das Mulheres Indígenas de Roraima (Omirr), a Organização dos Professores Indígenas de
Roraima (Opirr), a Associação dos Povos Indígenas da Terra São Marcos (APITSM), a Sociedade de Defesa dos
Índios Unidos de Roraima (Sodiur), a Sociedade para Desenvolvimento Comunitário e Qualidade Ambiental dos
Taurepang, Wapichana e Macuxi (TWM), as prefeituras municipais de Normandia, Pacaraima, Uiramutã, o
governo de Roraima, instituições federais como Funai, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Ministério da
Pesca e Aquicultura, Universidade Federal de Roraima, Embrapa, Tribunal Regional Federal da 1ª Região, entre
outros." Disponível em < http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2011/05/23/territorio-da-cidadania-lancaprimeiro-plano-de-etnodesenvolvimento-indigena-do-brasil > Acesso em 23.09.2012.
56
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I57
venezuelana (1999) e a boliviana (2009)), os quais se contrapõem aqueles conceitos clássicos
da teoria constitucional, como o de poder constituinte, direitos fundamentais e separação de
poderes.
Para tanto, tais sociedades, promoveram diversas restruturações em seus modelos
políticos e jurídicos, de modo a introduzir o conceito de diversidade cultural e
reconhecimento de direitos indígenas específicos, incorporando um largo catálogo de direitos
indígenas, afro e de outros coletivos, por meio de influências internas e externas, tendo como
exemplo destas últimas, a incorporação de prerrogativas inseridas na Convenção n. 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata dos direitos dos povos indígenas e
tribais propondo a “refundação do Estado”, com reconhecimento explícito das raízes
milenares dos povos e discutindo o fim do colonialismo.
Desta forma, se identificam reformas inseridas nos últimos nos sistemas políticos
latino-americanos.
No
Brasil,
o
lançamento
do
primeiro
Plano
Territorial
de
Etnodesenvolvimento Indígena (Ptei) do Brasil. Tal plano tem como objetivo promover o
desenvolvimento econômico sustentável da região, a qual compreende o território da
cidadania “Terra Indígena Raposa Serra do Sol” e “São Marcos” e abrange os municípios de
Normandia, Pacaraima, Uiramutã e parte de Boa Vista, onde estão demarcadas as terras
indígenas: São Marcos e Raposa Serra do Sol.
Além disso, tal plano visa a universalização do acesso à políticas públicas de
cidadania e o crédito produtivo, priorizando a participação social e a integração das diversas
esferas dos governos, reafirmando assim, a identidade, a autonomia e o protagonismo dos
povos indígenas daquelas regiões. Tal situação acaba refletindo uma reorganização dos
sistemas de justiça latino-americanos, de modo à ressignificar o acesso à justiça dos membros
insertos em comunidades indígenas e tribais.
À exemplo desta ressignificação, a justiça indígena boliviana que se sujeita apenas ao
Tribunal Constitucional. Tal prerrogativa esta inserta no texto constitucional da Bolívia que
dentre outros dispõe em seu art. 289 que a autonomia indígena consiste em um autogoverno
como exercício da livre determinação das nações e dos povos indígenas de origem campesina,
cuja população compartilhe território, cultura, história, línguas e organização ou instituições
jurídicas, políticas, sociais e econômicas próprias.
Tal comunidade ainda goza (art. 30, “16”) do exercício de seus sistemas políticos,
jurídicos e econômicos de acordo com sua cosmovisão. Isso demonstra uma reestruturação do
sistema jurídico-político e da forma de comunicação entre este as comunidades inseridas em
seus contextos, com repercussões no próprio desenvolvimento daquelas sociedades.
57
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I58
Assim, entendendo o desenvolvimento no sentido proposto por Amartya Sen, ou
seja, como um processo integrado de liberdades substantivas interligadas, pois tais liberdades
não representam apenas os fins primordiais para o desenvolvimento, mas também os meios
principais deste, pois, os indivíduos necessitam ter liberdades para fazer suas escolhas e,
entendendo o seu contributo para o acesso à justiça, se levado em consideração tambêm os
ânseios das sociedades multiculturais, como as latino-americanas, identifica-se a presença do
etnodesenvolvimento.
A idéia de etnodesenvolvimento esta ligada a existência de condições necessárias
para a capacidade autônoma de uma sociedade culturalmente diferenciada, que assim pode se
manifestar, definindo e guiando seu desenvolvimento, ou seja se tornem gestoras de seu
próprio desenvolvimento, tanto no campo educacional e de formação técnica, quanto no
campo político-administrativo à gestão de seus próprios territórios.
Essa proposta de desenvolvimento em uma mulplicidade de áreas acaba
influenciando o sistema social como um todo, o que remete a necessidade de um aporte
teórico que fundamente estudos nesse campo, pois acaba por influenciar nos sentidos do
Direito. Teubner apresenta um conceito de sentido ligado à pluralidade e uma ideia de direito
que leva em conta a sua circularidade, pois, o direito determina-se à ele mesmo por
autorreferência, pois a realidade social do direito é feita de um grande número de relações
circulares, o que identifica a autopoiese do sistema, a qual está em evolução permanente.
Desta forma, com aporte na teoria sistêmica, especialmente os trabalhos de Luhmann
e Teubner, que indicam uma perspectiva teórica profundamente inovadora, a qual apresenta,
através da autopoiese, uma redefinição da ideia de diferenciação como forma de se enfrentar
os paradoxos e avançar na releitura do direito, pode-se sugerir para fins de reflexão sobre o
tema e aprofundamento das pesquisas, especialmente no que tange ao efetivo acesso à justiça,
o surgimento do conceito de etnopoiese, o qual compreende uma auto-regulamentação dos
sistemas sociais e políticos, conforme aos anseios das sociedades multiculturais que marcam a
história do continente latino-americano.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I62
A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO ALTERNATIVA AO SISTEMA PENAL
CONVENCIONAL NO COMBATE AO BULLYING
THE RESTORATIVE JUSTICE AS AN ALTERNATIVE TO THE CONVENTIONAL
CRIMINAL JUSTICE SYSTEM IN THE FIGHT AGAINST BULLYING
Juliana Frei Cunha 1
RESUMO: Este artigo tem por finalidade apresentar a Justiça Restaurativa como uma das
possíveis soluções para o enfrentamento do atual fenômeno bullying. Deste modo é analisado
o que vem a ser o bullying, as diversas formas de sua ocorrência e a importância da
identificação, prevenção e repressão. Posteriormente é feito um panorama geral da justiça
restaurativa e suas diferenças no que tange o sistema penal convencional. Ficará claro que a
Justiça Restaurativa é uma forma alternativa de resolução de conflitos que visa trazer certa
paz social resolvendo os problemas de um modo mais eficaz e, que, tem potencialidade para
solucionar delitos relacionados ao fenômeno bullying.
PALAVRAS-CHAVE: fenômeno bullying; justiça restaurativa; meio alternativo de
resolução de conflitos.
ABSTRACT: This article has the objective to present the Restorative Justice as one of the
possibles solutions for combat the current bullying phenomenon. Thus is analyzed what
comes to be bullying, the several forms of their occurrence and the importance of
identification, prevention and prosecution. Later it made an overview of restorative justice
and their differences regarding the conventional criminal justice system. It will become clear
that the Restorative Justice is an alternative form of conflict resolution which aims to bring
some peace solving social problems more effectively, and that has the potential to solve
crimes related to the bullying phenomenon.
KEYWORDS: bullying phenomenon; restorative justice; alternative form of conflict
resolution.
SUMÁRIO: 1. Introdução 2 Fenômeno bullying: origem e conceito; 3 Identificação,
prevenção e repressão; 4 As diversas formas de ocorrência do fenômeno bullying; 4.1
Bullying Escolar; 4.2 Cyberbullying; 4.3 Bullying no Trabalho; 4.4 Bullying Homofóbico; 4.5
Bullying Militar; 4.6 Bullying Prisional;5 A Justiça Restaurativa; 5.1 Características da
Justiça Restaurativa; 5.2 Concepções de justiça restaurativa; 5.3 Justiça Restaurativa X
Justiça Convencional; 5.4 Justiça Restaurativa e Justiça Convencional; 5.5 Até que ponto a
Justiça Restaurativa pode ser útil no enfrentamento ao fenômeno bullying?; 6 Considerações
Finais; Referências bibliográficas.
1
Bacharel em Direito pela UNESP e mestranda em Direito Penal pela mesma Universidade. É
membro do Núcleo de Estudos da Tutela Penal em Direitos Humanos (NETPDH - UNESP) e
do Núcleo de Pesquisas Avançadas em Direito Processual Civil Brasileiro e Comparado
(NUPAD - UNESP). O presente artigo é fruto da iniciação científica fomentada pela FAPESP
durante a graduação em Direito. E-mail: [email protected]
62
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I63
1 Introdução
O presente trabalho visa fomentar o debate acerca da possibilidade do uso do
movimento restaurativo como uma alternativa ao atual sistema penal retributivista no
tratamento dos envolvidos no fenômeno bullying.
Tal fenômeno consiste em temática atual e polêmica tendo em vista que o número de
ocorrências tem aumentado vertiginosamente de modo que até mesmo o novo projeto do
Código Penal criminaliza a conduta.
Portanto, este artigo tratará dos principais aspectos do fenômeno bullying e da justiça
restaurativa, trazendo a baila, inclusive algumas implicações jurídicas de modo a inovar com a
produção já existente acerca do assunto, visando sempre contribuir na concretização da
prevenção e combate ao supracitado fenômeno.
2 Fenômeno bullying: origem e conceito
Foram nos países nórdicos, que primeiramente se identificaram sinais deste
fenômeno e, por conseguinte a maior parte dos estudos se iniciaram naqueles. A partir da
década de 70 por Dan Olweus na Noruega e por Heinz Leymann na Suécia.
Explica Cléo Fante (2005, p.45):
Dan Olweus desenvolveu os primeiros critérios para detectar o problema de forma
específica, permitindo diferenciá-lo de outras possíveis interpretações, como
incidentes e gozações ou relações de brincadeiras entre iguais, próprias do processo
de amadurecimento do indivíduo. Olweus pesquisou inicialmente cerca de 84 mil
estudantes, trezentos a quatrocentos professores e em torno de mil pais, incluindo
vários períodos de ensino. Um fator fundamental para a pesquisa foi avaliar a sua
natureza e ocorrência.
A partir deste estudo identificou-se que, a cada sete alunos, um estava envolvido em
situações de bullying. Em 1993 Olweus lançou um livro “Bullying at School” e no mesmo ano
ocorreu a primeira Campanha Nacional Anti-Bullying que diminui em cerca de 50% os casos
de bullying nas escolas norueguesas. Tal mobilização incentivou outros países a promoverem
campanhas de intervenção, tornando-se um marco na recente história de combate ao bullying.
Na França é denominado harcèlement quotidien, na Itália, prepotenza ou bullismo,
no Japão, ijime, na Alemanha agressionen unter schülern e em Portugal é chamado de maustratos entre os pares. O Brasil adota a expressão inglesa “bullying” e este pode ser
63
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I64
considerado uma espécie do gênero assédio moral que passou a integrar a realidade brasileira
em meados dos anos de 1990.
Em inglês a palavra to bully significa tratar mal, ser grosseiro para com os outros; e
bully é um indivíduo “valentão”, tirânico frente aos mais fracos. Contudo, o termo bullying
compreende todas as formas de agressões físicas, psicológicas, verbais, sexuais e materiais,
intencionais e repetitivas que acontecem numa relação onde há desigualdade de poder, ou
seja, onde há uma parte hipossuficiente. Neste fenômeno estão presentes os alvos, os
alvos/autores, os autores e as testemunhas. Devem ter participação, no sentido de ajudar os
alvos e os autores, os orientadores pedagógicos, psicólogos e os pais dos alunos. Os alvos, via
de regra, são pessoas tímidas com alguma característica física ou mental marcante.
Não há uma palavra na língua portuguesa capaz de expressar todas as situações de
bullying, contudo algumas ações podem traduzir o que vem a ser tal termo: apelidar, ofender,
zoar, gozar, encarnar, sacanear, humilhar, causar sofrimento, discriminar, excluir, isolar,
ignorar, intimidar, perseguir, assediar, aterrorizar, amedrontar, tiranizar, dominar, agredir,
bater, chutar, empurrar, ferir, roubar e quebrar pertences (ABRAPIA, 2011, online).
A partir dessa breve explicação é possível vislumbrar que apesar da nova
terminologia, “bullying”, tal problema é enfrentado há muito tempo não só no Brasil, como
em outros países também. Sua ocorrência se dá, na maioria dos casos, em escolas, sejam
públicas ou privadas, urbanas ou rurais, mas também tem sido identificado nas universidades,
em clubes, no ambiente de trabalho, nos quartéis, no sistema prisional, na igreja, na família e
no ambiente virtual – o cyberbullying. Atualmente o bullying é uma violência velada e já pode
ser considerado uma patologia social que pode vir a se tornar um problema de ordem pública
no que diz respeito à saúde da criança, do adolescente, dos professores e até mesmo dos
trabalhadores.
O fenômeno do bullying não se confunde com o ato praticado. Este pode vir a
receber um tratamento penal, como por exemplo, em casos de lesão corporal, injúria; ou não
como no caso do mobbing 2. Contudo, apesar da tipificação penal, tal problema deve ser visto
numa perspectiva ampla, onde se questione a respeito de suas causas, motivações do agente e
de sua relação com o alvo. Conjectura-se que a desigualdade, seja em que aspecto for (social,
racial, sexual, etc.), é que causa uma necessidade enorme dos indivíduos imporem diferenças,
2
O psicólogo do trabalho Leymann Heinz define mobbing “como o fenômeno no qual uma pessoa ou grupo de
pessoas exerce violência psicológica extrema, de forma sistemática e recorrente e durante um tempo prolongado
– por mais de seis meses e que os ataques se repitam numa frequência média de duas vezes na semana – sobre
outra pessoa no local de trabalho, com a finalidade de destruir as redes de comunicação da vítima ou vítimas,
destruir sua reputação, perturbar a execução de seu trabalho e conseguir finalmente que essa pessoa ou pessoas
acabe abandonando o local de trabalho” (Leymann, 1990, p. 121).
64
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I65
discriminarem e serem prepotentes para se destacarem em meio a seu grupo. Os traumas
sofridos por vítimas de bullying podem vir a influenciar de forma prejudicial o futuro do
indivíduo como cidadão, como profissional, como ser humano. De acordo com o médico
Aramis Lopes Neto3 para os alvos de bullying, as consequências podem ser depressão,
angústia, baixa autoestima, estresse, absentismo ou evasão escolar, atitudes de autoflagelação
e suicídio, enquanto os autores dessa prática podem adotar comportamentos de risco, atitudes
delinquentes ou criminosas e acabarem tornando-se adultos violentos.
Portanto, o bullying é um problema de ordem mundial. A violência física e
psicológica, sempre existiu, contudo a diferença para a atual conjectura é que aquela se
potencializou de uma forma individualista e perigosa. É evidente que os preconceitos se
tornam cada vez mais fortes e que existe um claro desrespeito às diferenças de pensamento.
3 Identificação, prevenção e repressão
Para combater este atual e infeliz fenômeno é importante ter uma ampla ciência sobre
os seus aspectos. É necessário que as pessoas sejam capazes de identificar a sua ocorrência
nos mais diversos ambientes e coibi-la com os meios que estiverem ao alcance naquele dado
momento. Por outro lado, levando em consideração que a onda da violência está cada vez
mais forte e contagiante é preciso, mesmo quando não haja identificação do problema no
ambiente, que sejam desenvolvidos métodos de prevenção como, por exemplo, palestras,
cartilhas, debates sobre filmes que abordam o tema etc. A partir da identificação e da
prevenção, é plausível cogitar a repressão.
Atualmente, o termo tem sofrido certa banalização como é possível vislumbrar em
uma série de notícias vinculadas pela mídia em que qualquer tipo de ato e fato se transforma
magicamente em bullying.
Contudo, nem tudo pode ser classificado como bullying. Quando as crianças e
adolescentes chegam em casa machucados porque brigaram na escola é preciso identificar a
causa. Se for uma briga motivada, tendo, por exemplo, um objeto como causa, não é bullying,
é apenas uma briga comum. Também não configura bullying as brincadeiras que envolvem
lutas entre crianças. Assim como aqueles que não se importam com apelidos ou sabem se
3
Coordenador do primeiro estudo feito no Brasil sobre o bullying — “Diga não ao bullying: Programa de
Redução do Comportamento Agressivo entre Estudantes”, realizado pela Associação Brasileira Multiprofissional
de Proteção à Infância e Adolescência (ABRAPIA).
65
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I66
defender de agressões físicas e verbais, sem que isso atinja de modo significante a sua rotina,
não são vítimas de bullying.
O bullying ocorre quando um indivíduo maior, mais forte, mais velho, mais
inteligente, popular, ou de alguma forma superior, agride verbal ou fisicamente, sem motivo
aparente e de forma contínua outro indivíduo que não possui, via de regra, nenhuma dessas
características. Tais agressões podem ocorrer em diversos ambientes como será exposto
adiante, e nem sempre ocorrem explicitamente na presença de outras pessoas, fato que torna
mais difícil a identificação e prevenção do bullying.
As vítimas passam a sofrer diversos sintomas como depressão, dor, angústia etc. Se
não houver tratamento adequado, tais sintomas podem perdurar pela vida inteira. A longo
prazo podem surgir problemas mais graves à saúde da vítima ou, até mesmo, situações
extremadas envolvendo suicídios e homicídios, episódios estes que já foram presenciados por
diversos países como o Massacre de Columbine nos Estados Unidos e o Massacre de
Realengo no Brasil.
Ademais, as vítimas temem que ao denunciar o agressor, estes as agridam de forma
mais violenta ou que ninguém acredite e dê apoio à situação.
Hodiernamente, os estados brasileiros realizam audiências públicas de modo a
debater e prevenir a ocorrência do fenômeno e possuem projetos de leis em andamento e leis
já aprovadas que tratam de políticas públicas de enfrentamento. Assim como várias escolas já
abordam o tema em palestras e debates com os alunos. Além disso, o projeto do novo Código
Penal criminaliza a conduta rotulando-a de “intimidação vexatória”.
Para prevenir o bullying é preciso uma ampla conscientização da população
acompanhada de políticas públicas do Estado. A cartilha sobre bullying que o Conselho
Nacional de Justiça lançou em 2010 elucida a preocupação do Brasil com o fenômeno ora
estudado. Outrossim, tal prevenção envolve a educação que é tarefa conjunta do Estado, da
sociedade, da família e da instituição de ensino conforme o entendimento do artigo 227 da
Constituição Federal:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão.
66
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I67
No que tange a repressão esta pode se dar de várias formas. Pode ocorrer
extrajudicialmente ou em juízo. A própria coordenação do ambiente em que ocorreu a
situação de bullying pode de alguma forma castigar os agressores e tentar a recuperação dos
envolvidos junto a uma equipe multidisciplinar. No caso das escolas, se tal medida não for
suficiente os pais podem recorrer ao Conselho Tutelar ou ao Ministério Público.
Se a Justiça for acionada, os indivíduos agressores responderão conforme a sua
capacidade que é pautada pelos artigos 3º, 4º e 5º do Código Civil Brasileiro. Se menores de
dezoito anos sofrerão medidas sócio- educativas previstas no capítulo IV do Estatuto da
Criança e do Adolescente. Se maiores responderão civil e criminalmente de forma
independente. Em nenhuma dessas situações há prejuízo da responsabilização civil do
estabelecimento de ensino ou até mesmo dos próprios pais responsáveis.
As equipes multidisciplinares formadas por pedagogos, psicólogos, professores e até
mesmo profissionais do direito são uma estratégia que promete eficiência, contudo pouco
utilizada pelas escolas.
Algumas escolas particulares contam com psicólogos, contudo o mesmo não ocorre
na rede pública, por vezes, por falta de verba ou até mesmo por falta de uma política pública
neste sentido.
Os pedagogos e professores têm contato direto com o aluno cotidianamente e são
eles que possivelmente identificarão o bullying. Desta forma, eles precisam saber como lidar
com aquela situação e principalmente com os envolvidos. Neste ponto entra atuação do
psicólogo que irá orientá-los, assim como tratar dos envolvidos, questionando causas e
consequências, ocasionando um verdadeiro processo de terapia que pode a vir a recuperar
tanto agressor quanto vítima.
Não menos importante, um profissional do direito poderia vir a esclarecer para os
pais quais são as possíveis consequências legais que os filhos sofrerão ou quais direitos eles
tem para iniciar uma ação de responsabilidade civil ou até mesmo uma ação penal contra os
agressores.
Neste diapasão, a capital Porto Velho inovou com a Lei Municipal nº 1.860/09 --Programa de Combate ao Bullying --- que trás em seu texto a questão da implantação da
Equipe Multidisciplinar, composta de pais, gestores e professores, responsável pelo
acompanhamento e execução do Programa de Combate ao Bullying nas escolas da rede
municipal de ensino. Deste modo, os profissionais estão recebendo capacitação para o
enfrentamento ao bullying e já saem preparados para agir em casos de ameaças e intimidações
por parte dos envolvidos no conflito em questão.
67
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I68
4 As diversas formas de ocorrência do fenômeno bullying
O supracitado fenômeno pode ocorrer de diversas formas em diferentes ambientes.
Conforme a obra de Calhau (2009) - referência no assunto - e as diversas pesquisas que vem
sendo realizadas nesta seara será demonstrado que tal prática não está restrita as relações entre
estudantes e menores de idade, mas sim, que abrange globalmente diversas situações onde há
realmente ou imaginariamente alguma espécie de hierarquia.
4.1 Bullying Escolar
Trata-se da espécie mais prosaica do gênero assédio moral e a que deu origem aos
estudos referentes ao fenômeno bullying. Para ilustrar a questão serão mostrados a seguir
alguns dados sobre violência escolar.
No ano de 2008 teve início uma campanha global “Aprender sem Medo”
4
cujo
objetivo foi tentar erradicar a violência nas escolas. A pesquisa revelou que os castigos
corporais, sexuais e o bullying são as principais formas de violência contra a criança. No
Brasil o enfoque da campanha estava no combate ao bullying escolar.
De acordo com o relatório da pesquisa realizada pela ONG PLAN 5 no ano de 2008,
em uma perspectiva global, as meninas sofrem mais com a violência sexual, enquanto os
meninos com o castigo corporal. Além disso, revela a pesquisa que as vítimas de violência
4
A campanha Aprender sem Medo foi lançada pela PLAN em diversos países com o objetivo de promover um
esforço global para acabar com a violência nas escolas. Toda a violência contra crianças pode e deve ser evitada.
Depende de todos nós – ONGs, governos, comunidades locais, professores, pais e alunos – o trabalho conjunto
para assegurar o direito das crianças a uma escola isenta de violência. Essa campanha global tem como enfoque
o combate a três principais formas de violência nas escolas, identificadas por uma pesquisa mundial realizada
pela Plan: abuso sexual, castigo corporal e bullying. Para isso, a estratégia mundial da campanha está baseada
em: Persuadir os governos a tornar ilegal todas as formas de violência contra as crianças na escola; e fazer com
que essas leis sejam cumpridas; Trabalhar com os dirigentes escolares e professores para criar escolas livres de
violência e promover métodos alternativos à disciplina de castigos corporais; Criar uma dinâmica de mudança
global, incluindo aumento dos recursos de doadores internacionais e governos para combater a violência nas
escolas de países em desenvolvimento. No Brasil, a campanha Aprender sem Medo tem como principal foco o
bullying escolar, incluindo o cyber bullying, e suas implicações para a educação. A missão da campanha é
oferecer condições para que as crianças possam estudar com segurança, tenham uma aprendizagem de qualidade,
sem ter medo ou ser ameaçado com a violência escolar. A campanha Aprender sem Medo promoverá ações
nacionais e locais para estimular a mudança de comportamento da sociedade em relação à violência nas escolas,
especialmente o bullying. Estão previstas ações nacionais de conscientização até cursos de capacitação dentro de
escolas. A campanha pretende atuar em todos os níveis da sociedade e interagir com todos os atores que podem
ajudar a mudar essa triste realidade da violência escolar. (PLAN..., 2011, online).
5
A PLAN é uma organização não-governamental de origem inglesa, ativa há mais de 70 anos. Sem qualquer
vinculação política ou religiosa e sem fins lucrativos, está voltada para a defesa dos direitos da infância,
conforme expressos na Convenção dos Direitos da Criançada ONU (PLAN..., 2011, online).
68
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I69
escolar têm maior tendência a cometer suicídio, sendo que este grau aumenta em oito vezes
caso as vítimas sejam meninas.
Já no que tange ao Brasil, os números também são alarmantes. Em um total de 12
mil alunos divididos em 143 escolas dos seis estados brasileiros, 84% afirmaram que suas
escolas são violentas. Destes, 70% já foram vítimas de violência escolar. Além disso, um
terço dos estudantes entrevistados afirmou estarem envolvidos em episódios de bullying,
seja como agressor ou como vítima.
Outra pesquisa intitulada de “Bullying Escolar no Brasil” (ROSA, 2010, online)
envolveu cinco mil alunos e concluiu que a maior parte das vítimas se encontra na faixa
etária entre 11 e 15 anos de idade na região Sudeste e Centro-Oeste do Brasil. Além disso, a
pesquisa trás que os meninos se envolvem com maior frequência em episódios de bullying
que as meninas, mas estas por sua vez, se sentem mais amedrontadas e chateadas do que
aqueles.
Não obstante, cabe salientar que os meninos costumam estar mais envolvidos em
episódios que envolvem agressões físicas, enquanto que as meninas lidam mais com as
agressões verbais e manipulações.
Já foi explanado que os agressores costumam ser pessoas que são de alguma forma
superior a outras (popularidade, força, idade etc) e as vítimas são aquelas que possuem
alguma característica diferente e tida como algo diminuidor de sua capacidade (excesso de
peso, deficiências, timidez etc). Os demais alunos que presenciam tais situações de bullying
acabam por se constituírem em co-agressores ou em testemunhas por permanecerem inertes
temendo a possibilidade de se tornarem vítimas caso delatem os casos presenciados.
Cleo Fante e Pedra (2008, p.61), atuais especialistas do fenômeno ora estudado,
esclarecem que os espectadores representam a maioria dos alunos de uma escola:
Eles não sofrem e nem praticam bullying, mas sofrem as suas consequências por
presenciarem constantemente as situações de constrangimento vivenciadas pelas
vítimas. Muitos espectadores repudiam as ações dos agressores, mas nada fazem
para intervir. Outros apoiam e incentivam dando risadas, consentindo com
agressões. Outros fingem se divertir com o sofrimento das vítimas, como estratégia
de defesa. Esse comportamento é adotado como forma de proteção, pois temem
tornarem-se as próximas vítimas.
Já Ana Beatriz Barbosa Silva (2010, p.43, 44) define a natureza dos jovens
agressores:
Os agressores apresentam, desde muito cedo, aversão às normas, não aceitam serem
contrariados ou frustrados, geralmente estão envolvidos em atos de pequenos
delitos, como furtos, roubos ou vandalismos, com destruição do patrimônio público
ou privado. O desempenho escolar desses jovens costuma ser regular ou deficitário;
69
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I70
no entanto, em hipótese alguma, isso configura uma deficiência intelectual ou de
aprendizagem por parte deles. Muitos apresentam, nos estágios iniciais, rendimentos
normais ou acima da média. O que lhes falta, de forma explicita, é afeto pelos
outros. Essa atividade deficitária (parcial ou total) pode ter origem em lares
desestruturados ou no próprio temperamento do jovem. Nesse caso, as
manifestações de desrespeito, ausência de culpa e remorso pelos atos cometidos
contra os outros podem ser observadas desde muito cedo (5 ou 6 anos). Essas ações
envolvem maus-tratos a irmãos, coleguinhas, animais de estimação, empregados
domésticos ou funcionários da escola.
Na esfera do bullying escolar, o professor é quem primeiro toma contato com este,
seja ao presenciar, ao receber reclamações ou até mesmo sendo vítima, pois, atualmente,
inclusive os professores estão sendo perseguidos pelos agentes de bullying. Isto ocorre
quando há um desrespeito constante ao professor, a partir de tumultos e conversas durante a
aula, quando este é apelidado de forma desrespeitosa ou é atacado por giz e vaiado ou ainda,
quando é protagonista de alguma fofoca maldosa inventada pelos próprios alunos que visam
atrapalhar a vida profissional do professor naquela instituição de ensino, dentre outros
inúmeros exemplos.
O grande problema desta situação como um todo é que ela cria um círculo vicioso
entre testemunhas, agressores e vítimas que influencia a todos que não participam, tornando
o ambiente tão violento, que, às vezes, é tido como algo normal pelos demais. As crianças e
os adolescentes em sua maioria não sabem diferenciar as brincadeiras comuns da violência
escolar, tampouco percebem que tais “costumes” crescem exponencialmente.
Explica a criminologia que o sistema social tem vários controles que buscam evitar
ou reprimir a ocorrência de crimes. Tais controles podem ser formais como aquele realizado
pelo Estado com coerção – sistema carcerário, ou podem ser informais como aquele
exercido pela família, escola e religião (CALHAU, 2009, p.24).
O sistema carcerário brasileiro é precário e não funciona corretamente e isso se
deve ao fato de que ele não é utilizado adequadamente, nem tampouco conforme prega o
direito penal mínimo, como “ultima ratio”. Há um excesso de criminalização de condutas
que não possuem bens jurídicos suficientemente relevantes que justifiquem a carceirização,
além disso, o atual sistema não reintegra o delinquente a sociedade, ao contrário, ele
marginaliza o indivíduo ao desrespeitar os seus direitos humanos. Neste sentido, vem
agregar o fato de que os meios informais de prevenção e resolução de conflitos são pouco
utilizados.
Analogamente, ocorre com as escolas, onde os pais se omitem de suas
responsabilidades com as mais diversas desculpas e entregam todo o encargo de educar para
70
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I71
aquelas, que por sua vez, assim como o sistema carcerário, já está sobrecarregada por uma
série de outros fatores importantes que são inerentes a atividade ali desenvolvida.
Os responsáveis pelas crianças deixam de lado a questão dos limites, do que é certo
e do que é errado, do que pode e do que não pode e isso é um fator gerador de situações de
bullying, pois da mesma forma que a criança age em casa, ela agirá nos mais diversos
ambientes de forma individualista e egoísta gerando situações incontroláveis que não são
saudáveis no desenvolvimento de uma personalidade.
Frente a este quadro caótico de bullying, nos últimos anos o Brasil avançou muito,
pois as vítimas começaram a denunciar os seus agressores e, não raro, se encontra decisões
condenando estabelecimentos de ensino ou os responsáveis do agressor a pagar
indenizações. Não obstante, as campanhas de conscientização estão presentes no país inteiro
gerando um resultado positivo no que diz respeito ao combate e prevenção do bullying.
Silva (2010, p.25) explica que “a prática de bullying agrava o problema
preexistente, assim como pode abrir quadros graves de transtornos psíquicos e/ou
comportamentais que, muitas vezes, trazem prejuízos irreversíveis”.
Neste âmbito é importante citar o experimento de aprendizagem observacional,
“Bobo doll experiment” realizado por Albert-Bandura que demonstra, em suma, que as
crianças aprendem e absorvem comportamentos só de observá-los (CALHAU, 2009, p.34).
Com efeito, dependendo do desfecho daquele comportamento, ou seja, se ele foi
punido ou recompensado, as crianças passam a reproduzi-lo, pois ainda não tem capacidade
para julgar o certo e o errado.
Neste diapasão ainda existe o bullying por omissão que ocorre quando a pessoa
passa a ser sistematicamente ignorada ou excluída por um determinado grupo, trata-se de um
comportamento que é praticamente invisível aos olhos de terceiros, portanto muito
complicado de ser combatido.
Outro exemplo muito frequente de bullying velado pela sociedade é o trote
universitário. Este tem ultrapassado os limites das brincadeiras de pintar o rosto e cortar o
cabelo, para agressões físicas muito mais sérias onde o “bixo”, o novato na universidade, é
obrigado a beber, é assediado sexualmente, é jogado em lavagens, dentre outras situações. A
brincadeira se transformou em uma agressão e, não raro, casos aparecem no judiciário de
alunos que sofreram queimaduras e outros tipos de violência.
Os veteranos agressores, dependendo da situação, podem ter seus atos enquadrados
em crimes previstos no Código Penal e por serem maiores de idade podem ser
71
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I72
responsabilizados penal e civilmente. No mais, à luz do Código de Defesa do Consumidor,
as escolas e faculdades também são responsáveis objetivamente por este tipo de conduta.
Para combater o bullying escolar é preciso estar atento ao regimento escolar dos
estabelecimentos de ensino e conversar com os envolvidos para tentar desvendar o que
ocorreu. É importante lembrar que quando houver um problema deste tipo, é essencial levar
as testemunhas para direção e fazer uma reclamação formal. No mais, é preciso proteger e
guardar qualquer tipo de evidência que comprove que determinado indivíduo está sendo
vitima de bullying. Se com tais medidas o agressor não mudar de postura ou o problema
continuar sendo recorrente, faz se necessário que se procure um advogado para tratar da
questão no judiciário. Procurar o Ministério Público e/ou o Conselho Tutelar também pode
ser uma medida eficiente.
4.2 Cyberbullying
O avanço da tecnologia trouxe o desenvolvimento nas mais diversas áreas para a
humanidade como saúde, educação, lazer e bem estar, proporcionando uma intensa
globalização. Contudo, apesar das benesses deste, é inevitável que trágicas consequências o
acompanhem, e, neste diapasão é possível apontar o cyberbullying.
O cyberbullying nada mais é que a utilização dos meios eletrônicos como um
instrumento de agressão para a prática do bullying. A repressão de tal prática é mais um
desafio para as autoridades brasileiras, pois trata-se de mais uma situação complicada a ser
coibida dentro de uma lista infindável de outros crimes.
O cyberbullying é recorrente, pois dá uma sensação de impunidade ao agressor que
não precisa revelar sua identidade e, por vezes, faz uso de apelidos para se esconder enquanto
agride verbalmente e por meio de imagens a sua vítima. O fato de não haver uma
identificação dificulta a apuração do crime, que talvez só seja possível através de outros tipos
de provas como a pericial, testemunhal ou documental.
Atualmente tal prática se dá por meio de contas falsas nas redes de relacionamento,
onde os agressores espalham e-mails com conteúdo difamatório sobre as vítimas vindo a
causar grande prejuízo moral para as mesmas.
Diferentemente do mundo real, as agressões veiculadas na Internet não tem começo,
meio e fim, pois uma vez exposto determinado conteúdo é praticamente impossível extirpá-lo
por inteiro, pois este se dissemina como um vírus.
72
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I73
O promotor de Justiça Lélio Braga Calhau (2010, p.59) explica como o Judiciário
tem lidado com o cyberbullying:
O poder judiciário tem se mostrado atento com esse tema e tem autorizado, com a
apresentação de provas iniciais adequadas (ex. impressão das páginas da internet
com as agressões), a quebra do sigilo de dados dos envolvidos com o intuito de
identificar a autoria dessas agressões. É um processo lento e cansativo, mas está
sendo possível identificar os autores na grande maioria dos casos.
Explica ainda o promotor que isso está sendo possível, pois os agressores deixam um
importante rastro na internet, que é o número de IP (internet protocol). Com efeito, qualquer
site que a pessoa venha utilizar registra o IP e desta forma é possível saber a proveniência das
agressões.
Coletar as provas para apurar tal crime ainda é uma tarefa árdua, pois por vezes há
escassez de recursos materiais e humanos da polícia. No caso do cyberbullying, não basta a
prova testemunhal, é preciso a prova técnica que é proveniente de laudos periciais. Contudo,
esta só é possível se forem tomadas algumas medidas judiciais prévias de modo a permitir a
busca e a apreensão de computadores e celulares. É preciso que se aja rapidamente de modo a
preservar as provas essenciais para uma possível condenação, pois quando os agentes
descobrem que a polícia foi acionada, a tendência é que eles busquem apagar e sumir com
todas as evidencias. Portanto, em uma situação desta, faz-se importante, dentre outras
medidas que haja uma impressão das páginas da Internet que contem as ofensas difamatórias
e a lavratura de um boletim de ocorrência (CALHAU, 2009, p.60-62).
Após tais medidas, é necessário que a polícia individualize a conduta do agente, pois
é possível que várias pessoas, por exemplo, em uma família ou em computadores de acesso ao
público (universidades, lan houses etc) tenha acesso àquela máquina da onde se originou as
ofensas. Caso isso não ocorra, torna-se impossível o judiciário dar prosseguimento ao feito,
pois haverá dúvida razoável sobre os suspeitos, de forma que todos serão absolvidos por falta
de conteúdo probatório.
Importante ressaltar que o cyberbullying pode ocorrer também através de mensagens
enviadas por celular, ou ainda quando alguém “rouba” a senha de outra pessoa e utiliza as
redes sociais de modo a configurar algum dos crimes contra honra previstos no nosso
ordenamento jurídico.
Calhau (2010, p.62) encaminha outras providências que podem ser tomadas pelas
vítimas, além de explicar uma nova modalidade de bullying que é a “bofetada feliz”:
A bofetada feliz (happy slapping) é uma prática cruel de bullying(real) que se
mistura ao cyberbullying(virtual). No geral, os agressores atacam uma vítima com
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I74
bofetadas sendo que um comparsa fica a uma pequena distância filmando as
agressões com câmera de vídeo de um telefone celular.
O objetivo da bofetada feliz é encaminhar tal gravação do celular para inúmeras
redes sociais ocasionando as mesmas consequências provenientes do bullying e do
cyberbullying para o agressor e para a vítima.
4.3 Bullying no Trabalho
Esta espécie de bullying também é conhecida como “workplacebullying”, “mobbing”
ou simplesmente “assédio moral”.
O atual sistema do capitalismo selvagem acaba por cobrar um comportamento
abusivo das empresas com relação aos seus funcionários. Desta forma, pouca ou quase
nenhuma atenção é dada as necessidades pessoais daquele, pois o único objetivo vislumbrado
com a exploração do trabalho do funcionário é o crescimento intenso da produtividade em
curto prazo, e, consequentemente, dos lucros. Neste contexto de opressão desenfreada e de
relações de poder desequilibradas nasce o assédio moral. Explica Hirigoyen (2002, p.17):
O assedio moral no trabalho é definido como qualquer conduta abusiva (gesto,
palavra, comportamento, atitude...) que atende, por sua repetição ou sistematização,
contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu
emprego ou degradando o clima de trabalho.
Ao sopesar a questão do assédio moral no ambiente de trabalho, Alkimin (2008,
p.43) identifica os seguintes elementos:
a)Sujeitos: sujeito ativo (assediador) – empregador ou qualquer superior hierárquico;
colega de serviço ou subordinado em relação ao superior hierárquico; sujeito passivo
(vítima/assediado) – empregado ou superior hierárquico no caso de assédio
praticado por subordinados.
b) Conduta, comportamento e atos atentatórios aos direitos de personalidade;
c) Reiteração e sistematização;
d) Consciência do agente.
O superior hierárquico que ao transferir um funcionário de turno e setor de forma
discricionária e contínua, visando atrapalhar a vida pessoal daquele ou mesmo criando
motivos para que aquele se demita, também pratica o assédio moral.
74
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I75
Esclarece ainda o supracitado promotor, que o bullying no ambiente de trabalho pode
ocorrer em três sentidos: horizontal (entre trabalhadores do mesmo nível), vertical ascendente
(de um trabalhador menos graduado para um mais graduado) e vertical descendente (de um
chefe para um funcionário menos graduado).
Ainda configura assédio moral no ambiente de trabalho quando a empresa visando
que o funcionário peça demissão a partir de uma frustração, utiliza-se de uma desculpa, qual
seja, por exemplo, transfere o funcionário se setor ou função falando que será melhor para o
“seu crescimento profissional”. Caso seja provada tal intenção, a empresa pode ser condenada
por danos morais e materiais.
Por último e não menos importante, a questão das terceirizações de funcionários é
uma grande fonte geradora de assédio moral, pois em muitos lugares tais funcionários são
vistos como de segunda linha, ou seja, inferiores com relação aos empregados da própria
empresa. Tais conflitos entre empregados efetivos e terceirizados devem ser levados a ciência
da chefia da empresa e ao supervisor da empresa terceirizada de modo que sejam combatidos
desde o início, prevenindo uma situação pior e mais degradante aos funcionários (CALHAU,
2009, p.73).
4.4 Bullying Homofóbico
Há uma grande dificuldade em respeitar as escolhas que estão fora do senso comum
e nesta esfera de desrespeito entra a questão do bullying homofóbico. As pessoas se
transformam em vítimas destas agressões simplesmente por terem escolhido viver de uma
forma diferente.
Dependendo da situação esta espécie de bullying pode configurar crime de racismo
ou crime contra honra, podendo cominar em prisão para os autores. Considerável parte da
população brasileira é preconceituosa e intolerante no que tange a homossexualidade.
O bullying homofóbico pode configurar diversas infrações penais como
constrangimento ilegal, calúnia, difamação, injúria dentre outros crimes. Para abertura da ação
penal é necessária a representação criminal da vítima contra os agressores. Ainda é possível
que o judiciário determine, na esfera cível, o pagamento de indenização a título de danos
morais e materiais.
75
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I76
4.5 Bullying Militar
As instituições militares são organizações muito importantes na estrutura de uma
sociedade. Todavia, a dinâmica dessas organizações, onde o questionamento nunca é
bem vindo por força da natureza de sua estrutura, termina por gerar um ambiente
fértil para as práticas de bullying. (CALHAU, 2010, p.81).
É extremamente complicado tratar da questão do bullying em uma instituição
fechada como as militares. Hodiernamente, em diversos países, ainda é corriqueira a prática
de bullying contra os novatos, recrutas, conscritos, alunos de cursos especiais, cadetes entre
outros. Normalmente tal prática se dá com o “trote militar” que é aplicado logo que o
indivíduo novato adentra a instituição. Este “trote” é composto por rituais antigos e agressivos
envolvendo espancamentos, afogamentos etc.
Esclarece GOFFMAN (1974, p.24):
O novato chega ao estabelecimento com uma concepção de si mesmo que se tornou
possível por algumas disposições sociais estáveis no seu mundo doméstico. Ao
entrar, é imediatamente despido do apoio dado por tais disposições. Na linguagem
exata de algumas de nossas mais antigas instituições totais, começa uma série de
rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do eu. O seu eu é
sistematicamente, embora, muitas vezes não intencionalmente, mortificado. Começa
a passar por algumas mudanças radicais em sua carreira moral, uma carreira
composta pelas progressivas mudanças que ocorrem nas crenças que têm a seu
respeito os outros e que são significativos para ele.
É evidente que o objetivo de tais trotes é desconstruir uma personalidade e criar uma
nova doutrinada pelos valores da instituição militar. Surge então, um efeito cascata, pois o
novato que sofreu tais atos, posteriormente, vai se achar no direito de reproduzir tais
agressões contra aqueles que estão por adentrar a instituição militar. Tratam-se das “vítimasagressoras”.
Podemos citar ainda a prática do corredor polonês, onde um novato é obrigado a
passar entre duas fileiras de outros oficiais, sendo que estes os espacam com murros e
pontapés. Infelizmente, a jurisprudência atual vê isso como uma “brincadeira” que não
configura nenhuma espécie de crime (CALHAU, 2009, p.87).
Os comandantes militares costumam repudiar oficialmente e publicamente tais
práticas, contudo quando da sua ocorrência ninguém é efetivamente punido devido à questão
da “cultura militar”, ou seja, tais práticas estão há muito tempo imbuídas nesta instituição, que
é uma das mais fechadas. Devido às inúmeras denúncias da mídia sobre tais práticas, os
julgados a respeito se tornam cada dia mais numerosos e severos, neste sentido, é possível
observar uma mudança nas decisões que vem responsabilizando os envolvidos.
76
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I77
4.6 Bullying Prisional
O sistema prisional no Brasil é composto por penitenciárias, centros de detenção
provisória, albergues etc. Os centros de reeducação de adolescentes infratores não são
considerados estabelecimentos prisionais, contudo também são um lugares propícios para a
ocorrência do bullying.
Em um primeiro momento, ao observar tais estruturas só se enxerga a
desorganização devido à falta de políticas do Estado para humanizar, organizar e gerenciar
tais ambientes.
O problema do excesso populacional na cadeia, onde os indivíduos permanecem
presos temporariamente, é gritante e é uma fonte para a disseminação do bullying prisional.
Ademais a falta de agentes prisionais e, até mesmo, a corrupção dentro deste grupo só vem a
deteriorar tal situação.
Contudo, em um segundo momento, também é possível perceber que há uma
organização interna entre os detentos com regras baseadas nos costumes dos presídios e com
uma hierarquia rígida de gangues. O novato ao adentrar no sistema carcerário brasileiro se
depara com uma realidade cruel e violenta que, em determinados casos, tem a força de
desconstruir personalidades e criar pessoas totalmente diferentes do que costumavam ser.
O bullying prisional deve ser uma das espécies de assédio moral mais difícil de ser
prevenida e combatida. Ocorre que as pessoas que estão detidas nas prisões no Brasil têm uma
estrutura de vida e uma rotina que funcionam de uma forma paralela ao Estado e avessa a
legislação vigente. Os prisioneiros constroem suas próprias regras e hierarquia dentro do
presídio, de modo que quando um novato adentra aquela “instituição” ele precisa se adequar a
tais modos que, via de regra, são contrários a lei, a moral e aos bons costumes.
Desta forma, é possível entender o porquê de detentos que, em tese, deveriam se
abster de cometer crimes, na maioria das vezes, cometem estes dentro dos presídios. Para
estas pessoas, é mais importante seguir as regras do sistema paralelo da prisão e continuar
vivos e sem ser agredidos (moral, verbal, sexualmente) do que deixar a prisão mais cedo ou
ainda sofrer outro processo criminal.
Não raras são as situações que acabam em morte para o “infrator” como, por
exemplo, casos de delação e dívidas de jogo. Alguns indivíduos são mantidos em celas
separadas e isoladas com detentos que possuem um menor grau de periculosidade, pois se
fossem deixados junto com a população comum da prisão, acabariam assassinados a qualquer
momento.
77
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I78
De acordo com Calhau (2009, p.92), o indivíduo é “desprogramado” na prisão.
Inicialmente, ele passa por um “ritual” que é uma espécie de trote e posteriormente ele é
despido de sua individualidade ao receber um número de identificação, um uniforme e ao ser
identificado criminalmente. Em suma, é tratado como mais um objeto do sistema, e como
objeto, não possui gostos, vontades ou escolhas. O novato no presídio sofre com um choque
de realidade e vislumbra que aquele ambiente não manterá sua integridade física e moral.
Além disso, cotidianamente, é obrigado a fazer coisas que não quer, simplesmente para de
adequar àquele ambiente e não sofrer com agressões, ou seja, não há uma escolha segura a se
fazer.
De uma forma ou de outra, o novato sairá da prisão deformado fisicamente ou
psicologicamente. São diversos os casos onde tais pessoas não conseguem se readaptar a
sociedade e sofrem uma série de problemas de ordem psicológica. Trata-se de um contra
censo, pois o objetivo da prisão, em tese, é fazer com que o indivíduo “pague” pelo crime e ao
mesmo tempo, tentar reeducá-lo para que volte a viver em sociedade sem a necessidade de
cometer crimes. Entretanto, a realidade que se impõe é diferente e contrária aos objetivos
iniciais de tais estabelecimentos.
A partir desta breve explanação é possível compreender que o Poder Público é um
dos principais culpados por tais ações, até mesmo porque ele é o responsável pelo preso que
está sob sua custódia.
No Brasil não há uma polícia prisional para investigar os diversos delitos cometidos
dentro do sistema carcerário, além disso, a falta de agentes e a baixa remuneração dos
mesmos faz com que estes se tornem cúmplices das gangues dos presídios. A insuficiência de
segurança presente nos presídios é cristalina, somente alguns presídios, os mais modernos,
possuem câmeras de segurança que ajudam a reprimir e identificar o bullying, contudo não
impedem a ocorrência do mesmo (CALHAU, 2009, p.94). Não obstante, a falta de
investimento do poder público em tais estabelecimentos é um fato gerador de situações que
desrespeitam claramente o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana
propiciando o desenvolvimento de um ambiente fértil para a proliferação dos mais diversos
tipos de violações. Neste diapasão insere-se a discussão sobre a possibilidade de privatização
do sistema carcerário.
Por fim, além da precariedade presente no sistema carcerário brasileiro, um dos
maiores problemas é a falta de vagas em penitenciárias, onde os presos costumam ficar
detidos separadamente e a situação geral do ambiente costuma ser melhor que a das cadeias.
Na falta de vagas naquelas, os detentos permanecem nas cadeias. Deste modo, o que
78
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I79
teoricamente seria um lugar temporário para a prisão se transforma em algo definitivo,
acomodando mais presos do que seria possível e tornando o ambiente insalubre (CALHAU,
2009, p.94).
5 A Justiça Restaurativa
A ideia de Justiça Restaurativa é relativamente recente e o debate deste tema entre
doutrinadores e operadores do direito vem ganhando espaço no cenário mundial desde a
década de noventa. Trata-se de um conceito que está em franca construção devido ao fato de
que ele se embasa em três concepções que serão mais adiante explicitadas.
A Justiça Restaurativa é aplicada de maneiras diferentes nos países onde ela se faz
presente levando em consideração as classes de crimes. Contudo, no geral, ela é muito
utilizada para solucionar as consequências decorrentes de atos infracionais praticados por
menores e é justamente neste diapasão, que vislumbra-se a possibilidade da sua utilização no
que tange o saneamento das sequelas causadas pelo bullying.
O modelo restaurativo busca a valorização das partes envolvidas no conflito, de
modo que haja certa participação da comunidade no restabelecimento do status quo ante entre
vítima e ofensor. Visa ainda que as partes envolvidas compreendam o conflito estabelecido e
se conscientizem acerca dos danos causados, valorizando os direitos humanos, de modo que o
infrator não seja estigmatizado, nem tampouco que isso influencie no seu futuro. Ou seja, de
certo modo há uma prevenção a uma possível marginalização do infrator.
Em outras palavras, o movimento restaurativo busca transformar a visão que a
sociedade tem das infrações, dos delitos e de suas consequências de modo que aquela reaja
diversamente da fé cega que carrega nas penas positivada do atual ordenamento que acabam
por se traduzir automaticamente na única e melhor resposta a estes comportamentos. Este
movimento tem ganhado importância no contexto mundial devido à crise da justiça criminal
convencional consubstanciada na falência da execução das penas e na morosidade do Poder
Judiciário, assim, trata-se de uma alternativa que tem potencial para a efetivação de uma
justiça mais rápida e coerente.
5.1 Características da Justiça Restaurativa
Tal modelo é um tanto quanto complexo, contudo é possível identificar sua prática
nos procedimentos a partir da observância de alguns elementos citados por Johnstone e Van
Ness (2007, p.7):
79
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I80
Existência de um processo relativamente informal a reunir vítima, ofensor e
terceiros relacionados a eles ou ao delito em uma discussão sobre o que ocorreu,
qual dano resultou, o que pode ser feito para reparar este mal, e ainda, possíveis
medidas para prevenir futura reincidência.
5.2 Concepções de justiça restaurativa
Serão expostas brevemente as ideias centrais das três concepções inerentes ao modo
de aplicação da Justiça Restaurativa, de modo que seja possível uma rápida e fácil distinção
entre elas.
Em um primeiro momento é importante ressaltar que todas elas abarcam o encontro
entre vítima, ofensor e, se for o caso, interessados, a reparação do dano causado à vítima e a
transformação do modo como as pessoas se relacionam com as demais, mas se diferenciam
primordialmente com relação à ênfase dada à determinada circunstância.
Deste modo as concepções são a do encontro, a da reparação e a da transformação.
Na primeira concepção, a do encontro, a ênfase é dada no sentido de que as partes
devem ter oportunidade de se conhecerem a partir de um encontro e resolverem o conflito da
melhor forma possível. Entretanto, tal concepção encontra um obstáculo, caso seja
considerada de forma isolada, pois como o encontro é voluntário, é possível que as partes não
queiram se encontrar.
Raye e Roberts (2007, p.11) citam três formas mais comuns de encontros entre
vítima e agressor, quais sejam, a mediação entre vítima e infrator; as reuniões coletivas
abertas à participação de pessoas da família ou pessoas próximas à vítima ou infrator; e os
círculos, nos quais há ampla participação da comunidade, com vítima, infrator, famílias ou
pessoas próximas, pessoas interessadas e, inclusive, operadores do direito – magistrados,
promotores e advogados.
Já no que diz respeito a segunda concepção de justiça restaurativa, qual seja, a
reparação, esta trás como ideia central que os danos causados às partes devem ser reparados
de modo que ambas voltem ao status quo ante. Isto se deve ao fato, de que os proponentes de
tal concepção não acreditam que somente uma pena imposta ao infrator seja suficiente para
reparar o mal causado.
Neste sentido, vislumbra-se a presença da concepção do encontro, pois um acordo de
reparação, em um primeiro momento, só seria possível a partir do encontro das partes.
Contudo, como o enfoque da corrente em questão é reparar os danos, os proponentes desta
80
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I81
defendem que tal reparação pode também se dar por meio de uma decisão judicial
parcialmente reparatória, onde devido a gravidade da infração cometida haja a necessidade de
uma complementação por via de uma sanção penal. Com efeito, neste caso há uma junção dos
sistemas criminal e restaurativo.
Por último e não menos importante, talvez até um pouco utópica para a atualidade, a
concepção da transformação visa uma mudança de comportamento no que tange aos
relacionamentos interpessoais.
Concluindo, o ideal seria que a justiça restaurativa fosse vista como uma
possibilidade inspiradora para a valorização do lado mais coletivo e humano das relações de
modo que os conflitos pudessem ser resolvidos longe do judiciário e sem estigmatização dos
envolvidos, ainda nesta seara faz-se necessária a colocação de que as três concepções não se
excluem, ao contrário, se complementam diferenciando-se tão somente quanto ao enfoque
dado.
5.3 Justiça Restaurativa X Justiça Convencional
Ao avaliar a possibilidade de aplicação da justiça restaurativa como opção à justiça
criminal retributiva e relativamente ineficaz no seu caráter ressocializador, faz-se necessária a
exposição das principais diferenças entre os dois modelos. Os quadros a seguir foram cedidos
a Renato Sócrates Gomes Pinto (2005, p.5-8), durante o Seminário sobre o modelo
neozelandês de justiça, em 2004, e por ele utilizado na publicação do artigo “A construção da
Justiça Restaurativa no Brasil - O impacto no sistema de justiça criminal”.
JUSTIÇA RETRIBUTIVA
Conceito jurídico-normativo de crime - Ato contra
a sociedade representada pelo Estado –
Unidisciplinariedade
Primado do interesse público (sociedade,
representada pelo Estado, o centro)- Monopólio
estatal da justiça criminal
Culpabilidade individual para o passado –
Estigmatização
Uso dogmático do direito penal positivo
Indiferença do Estado quanto às necessidade do
infrator, vítima e comunidade afetados –
desconexão
Mono-cultural e excludente
Disuassão
JUSTIÇA RESTAURATIVA
Conceito realístico de crime – Ato que traumatiza
a
vítima,
causando-lhe
danos
–
Multidisciplinariedade
Primado do interesse das pessoas envolvidas e
comunidade – justiça criminal participativa
Responsabilidade pela restauração numa dimensão
social, compartilhada coletivamente e voltada para
o futuro
Uso crítico e alternativo do direito
Comprometimento com a inclusão e justiça social
gerando conexões
Culturalmente flexível (respeito à diferença,
tolerância)
Persuassão
81
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I82
QUADRO 1: VALORES
JUSTIÇA RETRIBUTIVA
Ritual solene e público
Indisponibilidade de ação penal
Contencioso e contraditório
Linguagem, normas e procedimentos formais e
complexos – garantias
Atores principais – autoridades (representando o
Estado) e profissionais do Direito
Processo decisório a cargo de autoridades (policial,
delegado, promotor, juiz e profissionais do direito)
– unidimensionalidade
JUSTIÇA RESTAURATIVA
Comunitário, com as pessoas envolvidas
Princípio da oportunidade
Voluntário e colaborativo
Procedimento informal com confidencialidade
Os atores principais são as vítimas, infratores,
pessoas da comunidade, ONG’s
Processo decisório compartilhado com as pessoas
envolvidas (vítima, infrator e comunidade) multidimensionalidade
QUADRO 2: PROCEDIMENTOS
JUSTIÇA RETRIBUTIVA
Prevenção geral e especial
Foco no infrator para intimidar e punir
Penalização
Penas privativas de liberdade, restritivas de
direitos, multa
Estigmatização e Discriminação
Tutela penal de bens e interesses, com a punição
do infrator e proteção da sociedade
Penas desarrazoadas e desproporcionais em regime
desumano, cruel, degradante e criminógeno –ouapenas alternativas ineficazes (cestas básicas)
Vítima e Infrator isolados, desamparados e
desintegrados. Ressocialização secundária
Paz social com tensão
JUSTIÇA RESTAURATIVA
Abordagem do crime e suas consequências
Foco nas relações entre as partes, para restaurar
Pedido de desculpa, reparação e restituição,
prestação de serviços comunitários. Reparação do
trauma moral e dos prejuízos emocionais
Restauração e Inclusão
Resulta responsabilização espontânea por parte do
infrator
Proporcionalidade e razoabilidade das obrigações
assumidas no acordo restaurativo
Reintegração do infrator e da vítima prioritárias
Paz social com dignidade
QUADRO 3: RESULTADOS
JUSTIÇA RETRIBUTIVA
Pouquíssima ou nenhuma consideração, ocupando
lugar periférico e alienado no processo. Não tem
participação, nem proteção, mal sabe o que se
passa.
Praticamente nenhuma assistência psicológica,
social, econômica ou jurídica do Estado.
Frustração e ressentimento com o sistema
JUSTIÇA RESTAURATIVA
Ocupa o centro do processo, com um papel e com
voz ativa. Participa e tem controle sobre o que se
passa
Recebe assistência, afeto, restituição de perdas
materiais e reparação
Tem ganhos positivos. Supre-se as necessidades
individuais e coletivas da vítima e comunidade
QUADRO 4: EFEITOS PARA A VÍTIMA
JUSTIÇA RETRIBUTIVA
JUSTIÇA RESTAURATIVA
Infrator considerado em suas faltas e sua má
formação
Raramente tem participação
Comunica-se com o sistema pelo advogado
É desestimulado e mesmo inibido a dialogar com a
vítima
É desinformado e alienado sobre os fatos
processuais
Não é efetivamente responsabilizado, mas punido
Infrator visto no seu potencial de responsabilizarse pelos danos e consequências do delito
Participa ativa e diretamente
Interage com a vítima e com a comunidade
Tem oportunidade de desculpar-se sobre os fatos
do processo restaurativo e contribui para a decisão
É informado sobre os fatos do processo
restaurativo e contribui para a decisão
É inteirado das consequências do fato para a
82
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I83
pelo fato
Fica intocável
Não tem suas necessidades consideradas
vítima e comunidade
Fica acessível e se vê envolvido no processo
Supre-se suas necessidades
QUADRO 5: EFEITOS PARA O INFRATOR
A partir da síntese feita pelos quadros acima se depreende o contraste entre os dois
modelos. Enquanto o sistema retributivo afasta as partes seguindo fielmente o procedimento
penal positivado, o sistema restaurativo busca aproximar as partes propondo uma
reconciliação a partir do diálogo participativo que pode vir a proporcionar a reparação dos
danos ocasionados pela infração, a restauração do status quo ante, prevenir a reincidência e
até mesmo promover a paz social. Com efeito, traduzindo todas as ideias acima
esquematizadas ensina Pinto (2007, p.5):
O crime, para a justiça restaurativa, não é apenas uma conduta típica, ilícita e
culpável que atenta contra bens e interesses penalmente tutelados, mas, antes disso,
é uma violação nas relações entre as partes (vítimas, infrator, comunidade),
cumprindo à justiça identificar as necessidades e obrigações oriundas dessa violação
e do trauma causado e que deve ser restaurado, oportunizar e encorajar as pessoas
envolvidas a dialogarem e a chegarem a um acordo, como sujeitos centrais do
procedimento, sendo ela, a justiça, avaliada segundo sua capacidade de fazer com
que as responsabilidades pelo cometimento do delito sejam assumida, as
necessidades oriundas da ofensa sejam satisfatoriamente atendidas e a cura, ou seja,
um resultado individual e socialmente terapêutico seja alcançado.
5.4 Justiça Restaurativa e Justiça Convencional
Embora os dois modelos sejam bem distintos, ultimamente eles tem mais se
completado do que se excluído.
São inúmeros os autores que defendem a conciliação dos dois modelos, Duff e Daly,
assim como para Bazemore (apud WALGRAVE, 2007, p. 559-579) compartilham desta idéia:
[...] alguns crimes são tão graves que um mero encontro é insuficiente como resposta
e, nessas hipóteses, é possível a utilização de sanções típicas do processo criminal
comum, como a imposição coercitiva de pena ao infrator. Isso não afastaria,
contudo, o processo deliberativo e o resultado restaurativo.
Desta forma, conclui-se que nem sempre é possível que haja processos deliberativos
voluntários, pois pode haver um claro desinteresse de ambas as partes para com esta proposta.
Ademais, dependendo da espécie do crime cometido, faz-se necessária a aplicação de uma
sanção penal. Não obstante, o modelo restaurativo também pode se fazer presente nesta
83
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I84
hipótese aproximando ofensor e ofendido de modo que haja uma amenização do sofrimento
psicológico para as partes.
Nesta seara é importante ressaltar que por mais que o caráter retributivo seja inerente
ao atual sistema, este não é extremamente retributivista. Isto pode ser demonstrado a partir do
tratamento diferenciado reservado as crianças e os adolescentes que tem como fundamento o
Estatuto da Criança e do Adolescente e também por meio das infrações de menor potencial
ofensivo são tratadas no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, onde há a prevalência de
um procedimento mais informal e de sanções alternativas. Como será exposto mais adiante,
em ambas as situações já existem projetos-pilotos do modelo restaurativo sendo
concretizados.
5.5 Até que ponto a Justiça Restaurativa pode ser útil no enfrentamento ao fenômeno
bullying?
É possível vislumbrar as principais diferenças entre o atual sistema convencional retributivista - e o sistema restaurativo que promete uma série de benesses na relação ofensor
e ofendido. Não se pode dizer que são somente promessas, pois alguns países do mundo já
conseguiram, de maneira eficaz, adequar tal sistema a realidade atual. Neste sentido, em
poucas palavras, a justiça restaurativa pretende o reestabelecimento do status quo ante através
da aproximação das partes envolvidas no conflito, a não estigmatização futura do ofensor e
um estado de paz social.
A partir do estudo do direito comparado no que tange a aplicação e concretização da
ideia de “justiça restaurativa” pode-se afirmar que esta se apresenta como uma possível
solução para o Brasil lidar com o fenômeno bullying, pois países como Estados Unidos,
Canadá, dentre outros já utilizam este sistema para lidar com crianças e jovens infratores.
Paradoxalmente, defendemos a criminalização do bullying devido ao aumento
constante do grau de violência empregado em tais condutas. Como demonstrado
anteriormente, não são somente os menores que estão envolvidos com esta prática e, não raro,
estas causam lesões graves de difícil reparação, seja na esfera física, seja na esfera psicológica
do indivíduo. Assim, acreditamos que seja necessária uma análise do caso em concreto de
modo que a Justiça Restaurativa possa vir a agregar no tratamento da maior parte dos casos de
bullying, sem, contudo excluir da apreciação do Poder Judiciário aqueles casos mais graves.
A Justiça Restaurativa é uma opção para aproximar as duas partes envolvidas no
conflito. Em um primeiro momento, seria mais “adequado” utilizar este novo modelo para
84
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I85
lidar com situações que envolvem o bullying entre os impúberes, pois é uma situação mais
delicada e complicada que as demais, já que envolve pessoas em constante estado de
formação. Contudo, não se deve descartar a ideia de utilizá-lo nos casos em que estejam
envolvidos indivíduos maiores de idade.
Zanelli (2011, online) discorre sobre a experiência neozelandesa:
O país pioneiro na adoção de práticas restaurativas, inspiradas em costumes dos
aborígenes Maoris, foi a Nova Zelândia, em 1995, quando reformulou seu sistema
de Justiça da infância e da juventude, com grande sucesso de prevenção e
reincidência de infratores. Logo, outros territórios o seguiram. Hoje, projetos
similares estão sendo desenvolvidos no Canadá, Austrália, África do Sul, Reino
Unido e Argentina. O impacto do movimento gerou interesse generalizado. Em
2002, a Organização das Nações Unidas (ONU) formulou declaração sobre os
princípios básicos de Justiça Restaurativa. O Brasil adotou esse sistema, em casos de
menor potencial ofensivo, como brigas domésticas ou entre vizinhos. Existem
experiências bem-sucedidas em Porto Alegre, Brasília e em São Caetano do Sul, em
São Paulo.
Importante ainda notar que os procedimentos restaurativos só devem ser utilizados de
forma subsidiária, ou seja, quando não houver meios alternativos diversos de lidar com a
situação. Desta forma, Maxwell e Hayes (apud CARVALHO, p.31) observa que somente um
quarto dos atos infracionais são considerados sérios o suficiente para serem encaminhados às
FGC (Family Group Conferencing) ou às Cortes Especializadas. O restante dos casos pode ser
resolvido por meio de advertências ou outras medidas aplicadas pelos próprios policiais.
No geral, onde a justiça restaurativa tem sido utilizada os resultados tem sido
positivos, pois as partes envolvidas tem se mostrado satisfeitas com as decisões que envolvem
uma reinserção do infrator na comunidade e uma reparação de danos para o ofendido. Além
disso, reparou-se uma redução de reincidências entre os participantes do programa
restaurativo.
O Brasil já possui alguns projetos-pilotos de modelos de justiça restaurativa sendo
desenvolvidos no âmbito dos conflitos entre crianças e adolescentes regidos pelo ECA e no
âmbito dos Juizados Especiais Criminais.
No que diz respeito a primeira situação existe um projeto-piloto no sul do país, que
foi desenvolvido pela 3ª Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude de Porto
Alegre-RS e outro em São Caetano do Sul-SP.
Desta feita, o magistrado desta última cidade (MELO apud CARVALHO, p.45)
discorre sobre a concretização do modelo restaurativo e sua consequente expansão no Estado
de São Paulo:
85
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I86
O projeto de São Caetano do Sul tornou-se referencia no Estado de São Paulo, sendo
disseminado, já em 2006, a duas outras cidades: à capital, num bairro vizinho à São
Caetano do Sul, e à segunda maior cidade do Estado, Guarulhos. Com grande êxito
também nestas localidades, foi expandido recentemente à terceira maior cidade do
estado, Campinas, e há projeto para sua expansão a outras 10 cidades ainda este ano.
Em três ano de projeto, mais de mil pessoas foram atendidas, com índices de acordo
de 88%, e, destes, 96% foram cumpridos.
Já no que diz respeito às infrações de menor potencial ofensivo reguladas pela Lei
nº9099/95, a experiência que inaugurou a Justiça Restaurativa no Brasil se deu no âmbito do
Juizado Especial de Competência Geral do Núcleo Bandeirante, em Brasília – Distrito
Federal.
Outro detalhe relevante é aquele relacionado à redução de gastos para a máquina
estatal judiciária, pois esta não é tão movimentada quanto seria em um procedimento
convencional envolvendo altos custos relacionados ao processo judicial e as sanções penais
impostas.
6 Considerações finais
O grau de intensidade da violência tem aumentado consideravelmente em todo o
mundo. Nenhum país, nenhum local está imune àquele que pode ser considerado um novo
problema de saúde pública, o fenômeno bullying.
É possível perceber que, apesar de ainda não haver uma tipificação penal adequada, o
bullying pode ser enquadrado em muitos crimes previstos no Código Penal. Além disso,
muitos estados e municípios já sancionaram leis que prevêem programas de combate ao
bullying escolar.
Buscou-se por meio de uma abordagem ampla sobre o fenômeno bullying demonstrar
o quão importante é a conscientização, a informação, a sensibilização e mobilização dos
indivíduos para o combate a esta conduta que está se popularizando cada vez mais.
Portanto, neste diapasão, propõe-se uma reflexão sobre a adoção do modelo
restaurativo para o tratamento do bullying em detrimento do paradigma retributivo já que os
países que tem adotado tal sistema, inclusive os projetos-pilotos presentes no Brasil têm
logrado êxito na solução de conflitos.
É preciso que haja uma mudança cultural na concepção do povo brasileiro e do
judiciário engessado, de modo que somente crimes graves com objetos jurídicos relevantes
sejam tratados pelo Direito Penal, pois o que é visto atualmente é uma prevalência do “Direito
86
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I87
midiático”. Este ocorre quando surge um problema ou uma notícia de forte impacto social e o
legislativo resolve criar uma lei, totalmente esparsa no ordenamento jurídico, para regular tal
situação que, muitas vezes, nada mais é que um problema social que deve ser tratado por meio
de políticas públicas.
Neste sentido, finalizando, o movimento restaurativo pode vir a ser uma alternativa
para o tratamento desse e outros tipos de infrações penais de modo a contribuir para o
desafogamento do judiciário e proporcionar que a população volte a acreditar na justiça e na
possibilidade de uma paz social.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I92
JUSTIÇA RESTAURATIVA NO ÂMBITO DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS
GIUSTIZIA RIPARATIVA NELL'AMBITO DEI CORTI SPECIALI CRIMINALI
Alexandre Ribas de Paulo*
RESUMO: O presente trabalho visa compreender como que os postulados da Justiça
Restaurativa, contemplados na Resolução no 2002/12, do Conselho Econômico e Social da
Organização das Nações Unidas, poderão ser implementados no âmbito penal brasileiro. Isso
porque em 31 de janeiro de 2013 foi alterada a Resolução no 125, do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), incluindo os Juizados Especiais Criminais nas atividades dos Centros
Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania. Como no ordenamento jurídico brasileiro
vige o princípio da obrigatoriedade da ação penal, onde o Ministério Público deve intentar a
ação penal toda vez que tomar conhecimento de uma infração de natureza pública, busca-se
adequar as novas metas de acesso à justiça preconizadas pelo CNJ na fase pré-processual da
Lei no 9.099/95, especialmente na transação penal, apontando-se uma solução teórica e prática
para permitir que os acordos intersubjetivos entre os envolvidos em um conflito penal de
menor potencial ofensivo possam sempre encontrar um resultado satisfativo e extintivo da
punibilidade em prol da pacificação social, deslegitimando, assim, o ius puniendi estatal, que
exige a aplicação de sanções ao infrator como se isso fosse sinônimo de resolução de conflito
no âmbito da Justiça Penal.
Palavras-chave: Acesso à Justiça; Resolução no 125-CNJ; Justiça Restaurativa; Juizados
Especiais Criminais.
RIASSUNTO: Questo studio intende comprendere come i postulati della giustizia riparativa,
come previsto nella Risoluzione 2002/12, del Consiglio Economico e Sociale delle Nazioni
Unite, può essere implementato nell'ambito penale brasiliano. Questo perché nel 31 de
gennaio de 2013 è stata modificata la Risoluzione no 125, del Consiglio Nazionale di
Giustizia (CNJ), incluendo i Corti Speciali Criminale sulle attività dei Centri Giudiziarie di
risoluzione delle controversie e cittadinanza. Come nel sistema giuridico brasiliano vige il
principio di obbligatorietà del esercizio dell'azzione penale, in cui il pubblico ministero deve
esercitare l'azione penale ogniqualvolta abbia notizia di una infrazione di natura pubblica,
cerca di adattare i nuovi obiettivi di accesso alla giustizia raccomandata dal CNJ nella fase
pre procedurale della legge no 9.099/95, specialmente in transazione penale, per potere
*
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2000); Mestre (2006) e Doutor
(2011) em Direito, Estado e Sociedade pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de
Santa Catarina (PPGD/UFSC). Professor Adjunto em regime de Tempo Integral e Dedicação Exclusiva (TIDE)
na Universidade Estadual de Maringá (UEM), lecionando a matéria de Prática Processual Penal I e II para o
Curso de Graduação em Direito. Professor na Especialização em Ciências Penais no Programa de Pós-Graduação
em Direito da UEM, lecionando a matéria de Direito Processual Penal. Pesquisador do Ius Commune - Grupo
de Pesquisa Interinstitucional em História da Cultura Jurídica (CNPq/UFSC) - e do Grupo de Pesquisa intitulado
"Efetividade dos Direitos Fundamentais, Soluções Alternativas de Conflitos e Justiça Restaurativa"
(CNPq/UEM). E-mail: [email protected].
92
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I93
sempre trovare un risultato in grado di soddisfazione e estintive dela punibilità per il bene
della pace sociale. delegittimando, così, il ius puniendi statale, che richiede l'applicazione di
sanzioni nei confronti del trasgressore come se fosse sinonimo di risoluzione dei conflitti
all'interno della Giutizia penale.
Parole-chiave: Accesso alla giustizia; Risoluzione no 125-CNJ; Giustizia Riparativa, Corti
Speciali Criminale.
SUMÁRIO: Introdução. 1 A consolidação da jurisdição penal estatal. 2 Os Juizados
Especiais Criminais: lei no 9.099/95. 3 Práticas da Justiça Restaurativa no âmbito penal
brasileiro. 4 Práticas restaurativas em relação aos delitos de menor potencial ofensivo.
Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Um dos temas mais profícuos para o estudo dos fenômenos jurídicos brasileiros na
atualidade condiz com o Acesso à Justiça, que se apresenta como um direito fundamental
insculpido no artigo 5o, inciso XXXV, da Constituição Federal. Para a mais ampla efetivação
de tal dispositivo foi editada, em 29 de novembro de 2010, a Resolução no 125, do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), onde ficou estabelecido em seu artigo 1o a “Política Judiciária
Nacional de tratamento dos conflitos de interesses, tendente a assegurar a todos o direito à
solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade.”
Quando
a Resolução no 125-CNJ entrou em vigor, não estava contemplada a
utilização de métodos consensuais de resolução de conflitos no âmbito criminal, a despeito
dos princípios estabelecidos no artigo 62, da Lei no 9.099/95. Contudo, com a edição da
Emenda no 01, de 31/01/2013, na dita Resolução, surgiu previsão expressa para inclusão dos
Juizados Especiais Criminais nas atividades pertinentes aos Centros Judiciários de Solução de
Conflitos e Cidadania, destinados à utilização de práticas propostas pela Justiça Restaurativa
(JR) como instrumento de pacificação social, prescindindo-se da ativação do ius persequendi
estatal para tornar efetivo o seu ius puniendi.
O objetivo do presente trabalho é, diante da novel previsão normativa do Conselho
Nacional de Justiça, que em seu artigo 7o, § 3o, faz referência expressa à Resolução no
2002/12, do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas1, compreender
1
Datada 24 de julho de 2002 e trata de princípios básicos para utilização de programas de Justiça
Restaurativa em matéria criminal.
93
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I94
como que poderão ser adequados os vetustos princípios paradigmáticos do Direito Processual
Penal brasileiro com as metas do Conselho Nacional de Justiça perante a fase pré-processual
nos Juizados Especiais Criminais.
Para tanto, inicialmente apresenta-se uma brevíssima noção histórica que permite
compreender o porquê do paradigma tradicional adotado pela jurisdição penal continua sendo
uma relação cogente entre Estado soberano e infrator da lei penal, tornando a vítima
secundária na relação jurídico-penal. Após, comenta-se a gênese dos Juizados Especiais
Criminais no Ordenamento Jurídico brasileiro e suas competências para fase pré-processual e,
em seguida, apresenta-se alguns postulados pertinentes à Justiça Restaurativa que podem ser
implantadas de imediato na seara penal sem violação do princípios processuais que ainda
orientam a jurisdição criminal brasileira. Finaliza-se com uma proposta de mudança no
modelo punitivo estatal para o aprimoramento de práticas consensuais de resolução de
conflitos intersubjetivos perante a Justiça criminal brasileira, tornando o Acesso à Justiça
realmente um direito fundamental do ser humano e não uma via crucis dispendiosa e
angustiante para todos os sujeitos processuais.
1 A CONSOLIDAÇÃO DA JURISDIÇÃO PENAL ESTATAL
Em uma tentativa de compreensão do pensamento jurídico-penal no Ocidente,
Michel Foucault (2008, p. 180) comenta que há uma relação principiológica entre direito e
poder entorno do poder real, mormente com a “ressurreição” do Direito Romano na Europa
do século XII pela Escola dos Glosadores, afirmando que esse fenômeno tornou-se “um dos
instrumentos técnicos e constitutivos do poder monárquico autoritário, administrativo e
finalmente absolutista” que dominou o cenário da modernidade e que ainda orienta o ius
puniendi estatal hodiernamente. Na mesma percepção histórica e preparando as bases para a
compreensão dos postulados políticos adotados pelo Brasil, Raymundo Faoro (2001, p. 27)
salienta:
As colunas fundamentais, sobre as quais assentaria o Estado português, estavam
presentes, plenamente elaboradas, no direito romano. O príncipe, com a qualidade
de senhor do Estado, proprietário eminente ou virtual sobre todas as pessoas e bens,
define-se, como idéia dominante, na monarquia romana. O rei, supremo comandante
militar, cuja autoridade se prolonga na administração e na justiça, encontra
reconhecimento no período clássico da história imperial. O racionalismo formal do
direito, com os monumentos das codificações, servirá, de outro lado, para disciplinar
94
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I95
a ação política, encaminhada ao constante rumo da ordem social, sob o comando e o
magistério da Coroa.2
Tratando das experiências penais no cenário da Baixa Idade Média francesa, Renée
Martinage (1998, p. 15-8) explica que o modelo de normas positivadas e legitimadoras do
poder soberano, oriundo do Direito Romano, teve uma importância fundamental para a
renovação do poder real nas monarquias feudais, possibilitando uma interferência sempre
mais progressiva da autoridade pública em matéria de aplicação de sanções penais de
interesse da coroa; tendo como escopo declarado a sua função de moderar a violência e
favorecer a paz, além de tentar substituir, cada vez mais, os pactos privados – típicos das
sociedades germânicas – pela justiça oficial. O discurso legitimador foi a promessa de
segurança geral com a imposição da autoridade do soberano e o exercício do monopólio da
justiça em nome da eficácia e supressão das carências do povo. Na prática, a “justiça do rei”
passou a ser um mecanismo político que exigiria determinada disciplina social de seus súditos
e procuraria erradicar as condutas tidas como desordeiras por intermédio da exposição e
eliminação de pessoas em suplícios públicos: penas capitais e corporais exemplares aplicadas
com o intuito de humilhar os culpados e mostrar o poder de violência do Estado.
Foi nesse contexto tardo-medieval (século XIV) que apareceram as primeiras noções
do que hodiernamente denomina-se Ministério Público. Michel Foucault (2005, p. 66)
pondera que os agentes do rei vieram “dublar” a vítima de um delito, se colocando por trás
daquele que foi lesado e afirmando que o poder soberano também fora lesado pelo acusado e,
por isso, passaram a agir contra o ofensor como se fosse um inimigo declarado da coroa. Essa
violação contra o soberano, porém, não se confundiria mais com o conflito intersubjetivo
instaurado pela conduta ofensiva, ou seja, “a infração não é um dano cometido por um
indivíduo contra o outro; é uma ofensa ou lesão de um indivíduo à ordem, ao Estado, à lei, à
sociedade, à soberania, ao soberano”.
Nessa perspectiva, pode-se notar que um dos instrumentos utilizados pelo poder real
para confiscar os procedimentos judiciais privados – confrontos e composições entre os
indivíduos – foi o estabelecimento da ideia de “infração” (violação da lei, quebra da ordem),
que permitiu uma significativa centralização política por intermédio do controle dos litígios
das pessoas com o uso das leis e instituições formais do soberano; este representado pelo
2
Do Digesto de Justiniano (JUSTINIANUS, 2009, p. 57 e 61) se extraem os seguintes excertos
elucidativos: “D.1.3.31 Princeps legibus solutus est” (O príncipe está livre das leis) e “D.1.4.1pr Quod principi
placuit, legis habet vigorem […]” (O que agrada ao principe tem força de lei)
95
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I96
procurador (agente do rei). Raúl Eugênio Zaffaroni e Nilo Batista (2003, p. 392-3) resumem
esse fenômeno de confisco das vítimas e verticalização do poder punitivo soberano:
Quando o conflito deixou de ser lesão contra a vítima e passou a significar delito
contra o soberano, isto é, quando sua essência de lesão a um ser humano converteuse em ofensa ao senhor, desvinculou-se da própria lesão e foi-se subjetivando como
inimizade para com o soberano. A investigação da lesão ao próximo foi perdendo
sentido, porque não procurava sua reparação, mas sim a neutralização do inimigo do
monarca. O que era excepcional no direito germânico (a comunidade reagindo
contra o traidor) fez-se regra: todo infrator tornou-se um traidor, um inimigo do
soberano.
Com o desenvolvimento do saber iluminista, as teorias jurídicas da modernidade não
contestaram esse “poder soberano”, ao revés, justificaram-no e aprimoraram a crença de que a
única fonte legítima do direito é a lei racional positivada decorrente de uma vontade
onipotente do soberano, este denominado Estado. (Cf. COSTA, 2010)
Isso pode ser observado nitidamente na famigerada obra oitocentista denominada
Dos delitos e das penas, de Cesare Beccaria, que se apresenta como o grande símbolo do
saber Iluminista-reformista que exigia a fundação de um Direito Penal que prometesse
segurança jurídica individual através da própria lei, isto é: o princípio da legalidade no tocante
aos delitos e às penas, baseado no princípios do contrato social e na divisão dos poderes. (Cf.
BARATTA, 2002)
Com efeito, os pressupostos filosóficos e ideológicos discursados por Beccaria foram
aplaudidos pelo movimento de codificação europeu e, como destaca Vera Regina Pereira de
Andrade (2003, p. 52-3), suas críticas acabaram servindo para o surgimento de um novo
Direito Penal, que não estava pautado em simples ataques ao Antigo Regime, mas se
caracterizava como produtor de um saber eminentemente construtivo do Direito Penal: o
positivado, tendo como pano de fundo o método racionalista e a ideologia liberal. Ainda, de
maneira precisa, Paolo Grossi (2004, p. 113) pondera que os escritos de Beccaria foram, ao
mesmo tempo, contundentes e ingênuos, pois atacaram o direito comum monopolizado pelos
juízes e doutrinadores a serviço do rei e pregaram a favor de um direito “iluministicamene
resumido em um complexo de leis soberanas.”
Em suma, a propaganda iluminista atacou o conteúdo do direito em voga, mas não o
seu paradigma juspositivista de legitimação e centralização política, que continua sendo a
vontade soberana representada por normas jurídicas formalmente elaboradas, como sugerido
no Corpus Iuris justinianeu e, desde a Idade Média, tratado como se fosse “Ciência Jurídica”
(Cf. GROSSI, 1996). Sobre a proximidade entre mito e cristalização de paradigmas científicos
baseados em discursos, explica Thomas S. Kuhn (2011: p. 21): “Se essas crenças obsoletas
96
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I97
devem ser chamadas de mitos, então os mitos podem ser produzidos pelos mesmos tipos e
métodos e mantidos pelas mesmas razões que hoje conduzem ao conhecimento científico.”
Deveras, no âmbito da Ciências Penais, Beccaria (1959: p. 37) repisa
apaixonadamente o paradigma contratualista afirmando que o delito é uma relação entre o
soberano e o infrator, sendo que a mediação entre o direito de punir daquele e o acusado cabe
ao magistrado, que deve apenas aplicar a lei emanada do poder legislativo, sem ter o direito
de interpretar as normas, justamente porque o juiz não deve ser o legislador.
O nobre italiano parece não ter cogitado a possibilidade de composição dos danos
sofridos pelas vítimas como sendo mecanismo eficaz de resolução de conflitos penais
intersubjetivos. Neste aspecto, todavia, sua postura sectária ao paradigma adotado pela
Ciência Jurídica da modernidade induz à conclusão de que ele seria contrário a tal
possibilidade, pois afirma que todo o delito é uma violação ao pacto social e o direito de punir
pertence ao soberano – guardião da ordem pública – e não ao interesse privado do súdito (ou
cidadão). No tocante à renúncia da vítima à aplicação do castigo, Beccaria (ibid. p. 114) é
categórico ao afirmar que o perdão dessa não deve interferir na aplicação da lei:
Às vezes, a gente se abstém de punir um delito pouco importante, quando o ofendido
perdoa. É um ato de benevolência, mas um ato contrário ao bem público. Um
particular pode bem não exigir a reparação do mal que se lhe fêz; mas o perdão que
êle concede não pode destruir a necessidade do exemplo. O Direito de punir não
pertence a nenhum cidadão em particular; pertence às leis, que são o órgão da
vontade de todos. Um cidadão ofendido pode renunciar à sua porção dêsse direito,
mas não tem nenhum poder sôbre a dos outros.
Dessa forma, constata-se que o ius puniendi, monopólio estatal, é um discurso
jurídico lapidado pacientemente durante séculos para consolidar a crença (arbitrária) na
racionalização do poder político e centralização dos poderes de coerção aos indivíduos para o
controle social. Nessa perspectiva, o Direito Penal hodierno pode ser entendido, também,
como uma declaração formal de que aos indivíduos não possuem o “direito” de resolverem as
suas querelas penais sem a presença reitora do Estado – vide artigo 345, do Código Penal –,
que, embora administrado por indivíduos, não permite o exercício da autocomposição, de tal
modo que a jurisdição penal é cogente e propriedade exclusiva do Estado soberano, que se
declara, por intermédio da própria lei positivada – domínio estatal3– como sendo a vítima
principal, o acusador exclusivo e, por fim, o único que pode exercer o monopólio da violência
3
O Direito Penal caracteriza-se por ser a lei formalmente declarada pelo Estado – modelo romano –, e
aplicadas conforme os preciosos princípios da legalidade – artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal
(CF) – e da reserva legal – artigo 22, inciso I, da CF –, impedindo que os envolvidos em um conflito criminal
possam resolver suas questões fora do devido processo legal perante o Poder Judiciário – artigo 5o, incisos LIV e
XXXV, da CF, respectivamente.
97
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I98
quando infringida sua norma, sendo que a resolução do conflito penal no discurso declarado
pelo detentor do ius puniendi é traduzida pela precisa aplicação da sanção prevista em lei, isto
é: uma verdadeira cultura punitiva.
2 OS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS: LEI NO 9.099/95
Como alerta Antônio Manoel Hespanha (1993, p. 09-10), o discurso dogmático-penal
jamais descurou as falhas advindas das normas do Estado soberano. Todavia, utiliza um
discurso eminentemente crítico como “pano de fundo” para promover a reforma das normas,
constituindo, assim, uma renovação do mito da repressão pública em prol da ordem; inclusive
utilizando o sentimento do público em geral como argumento relegitimante das normas
criminais. Nas palavras do autor lusitano: “Falar de ‘crise da lei’ é hoje lugar comum. Claro
que nem sempre se trata de um tópico inocente; pelo contrário, muitas vezes nele se insinua
um projecto político ‘ordeiro’.”4
Sem o desejo de depreciar os avanços em relação à prestação jurisdicional brasileira
com a promulgação da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, importante perceber que
houve um projeto político ordeiro abscôndito na parte criminal da referida lei, que foi
elaborada com o objetivo de aplacar a morosidade e ineficácia da prestação jurisdicional
brasileira, isto é, resolver problemas administrativos do Estado soberano e não dos
jurisdicionados. Nas palavras de Michel Temer (1996, p. 121) quando do surgimento da
referida lei:
Diz o Art. 98 da Constituição, quanto aos Juizados Penais para julgamento, diz a
Constituição, das causas penais de menor potencial ofensivo. Apenas para
rememorar, quero dizer que durante a Constituinte de 88 havia uma grande
preocupação com a chamada morosidade do Poder Judiciário, havia uma
preocupação extraordinária em fazer do Poder Judiciário um poder mais rápido,
mais veloz, mais ágil. O que era buscado como exemplo naquela oportunidade era a
experiência dos chamados Juizados de Pequenas Causas criados em nível
infraconstitucional, em nível legal. E ao lado dos Juizados de Pequenas Causas
também os chamados Juizados Informais de Conciliação. Criaram-se, paralelamente
aos Juizados de Pequenas Causas, esses juizados que visavam única e simplesmente
à conciliação entre partes envolvidas num conflito de natureza civil. Este exemplo
foi levado para a Constituinte com o objetivo de criar alguns instrumentos na
Constituição que tornassem mais ágil a prestação jurisdicional.
Nota-se em tais palavras que o escopo dos Juizados Especiais Criminais, idealizados
desde a década de 80 do século XX e previstos no artigo 98, inciso I, da Constituição Federal,
não foi trazer a vítima para dentro do processo penal, pois se esse fosse o foco do legislador,
4
A título de ilustração, consultar os discursos registrados em MIRABETE (2002: p. 23-4) e
BACELLAR (2004: p. 25-8).
98
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I99
as práticas que deveriam ser adotadas nas fases pré-processuais – audiências preliminar de
conciliação e, eventualmente, de transação penal – deveriam ser diferentes das que se
observam hoje nos fóruns brasileiros, cujos operadores do Direito ainda reproduzem o antigo
paradigma punitivo tentando encontrar no processo penal um mecanismo de aplicação de
punições como sendo sinônimo de resolução de conflito.
Deveras, nos Juizados Especiais Criminais isso se revela com o fato de que os
infratores da lei ainda figuram como protagonistas na persecutio criminis estatal porquanto,
ocorrendo uma infração penal, a autoridade policial deverá iniciar a investigação adotando as
providências elencadas nos artigos 5o e 6o, do Código de Processo Penal. Caso o fato seja
considerado pela lei como infração de menor potencial ofensivo5, será elaborado um Termo
Circunstanciado (art. 69 da Lei no 9.099/95), encaminhando-se imediatamente o suposto autor
do fato6 e o ofendido para uma audiência preliminar de conciliação, que poderá ser conduzida
por conciliador sob orientação do magistrado (artigo 73, da Lei no 9.099/95) visando um
acordo entre as partes.
Os artigos 72 e 74 da Lei no 9.099/95 estabelecem o procedimento para a composição
dos danos entre as partes, mas isso depende da existência de uma pessoa determinada
figurando como sujeito passivo da infração. Salienta-se que a resolução dos conflitos
diretamente entre o suposto autor do fato e o ofendido, conforme a Lei dos Juizados Especiais
Criminais, em hipótese alguma pode ser considerada informal perante os postulados do
Direito Penal brasileiro. Como salientam Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini
Grinover e Cândido Rangel Dinamarco (2002, p. 29):
No processo penal, não há possibilidade de conciliação fora do processo. Mesmo
para a transação anterior ao oferecimento da denúncia, facultada pelo art. 72 e ss. da
lei n. 9.099/95, haverá sempre necessidade de controle jurisdicional: trata-se de
conciliação extraprocessual por natureza, mas endoprocessual pelo momento em
que pode ser efetivada (audiência preliminar).
O fato é que havendo acordo entre as partes nessa audiência preliminar de
conciliação e tratando-se de ação penal pública condicionada à representação do ofendido ou
de ação penal privada, ocorre a extinção da punibilidade conforme artigo 74, parágrafo único
5
Todas as contravenções penais e crimes cuja pena máxima seja igual ou inferior a 2 anos, excluídos os
crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 61, da Lei no 9.099/95, com a redação
dada pela Lei no 11.313/06 e artigo 41, da Lei no 11.340/06).
6
A Lei no 9.099/95 menciona “autor do fato” como sendo o sujeito ativo da infração penal considerada
de menor potencial ofensivo. Como a nomenclatura usual no inquérito policial é “indiciado” e um cidadão
infrator de uma norma penal só pode ser considerado “Réu” após a acusação formal em Juízo, com o
oferecimento da denúncia ou queixa-crime, então, visando a garantia constitucional do princípio da situação
jurídica de inocência (artigo 5o, LVII, da Constituição Federal de 1988), melhor ser utilizado, na prática
processual penal no Juizado Especial Criminal, a designação “suposto autor do fato”.
99
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I100
da Lei no 9.099/95, impedindo que o Ministério Público, titular da ação penal pública (artigo
129, inciso I, da Constituição Federal e 100, § 1o, do Código Penal), ofereça a transação penal
(artigo 76, da Lei no 9.099/95) por explicita falta de condições da ação, na exegese do artigo
395, inciso II, do Código de Processo Penal.
Argumenta-se que esse tipo de acordo supradito deve ser interpretado conforme os
princípios do artigo 62, da mesma lei, levando-se em consideração os interesses dos
envolvidos na situação jurídica e não os dos representantes do Estado (magistrados e
membros do Ministério Público) perante os Juizados Especiais Criminais, que muitas vezes
interpretam a “composição dos danos cíveis” como se fosse obrigatoriamente a transferência
de algum valor economicamente estipulado do suporto autor dos fatos ao ofendido, ou seja,
como se a efetiva diminuição do patrimônio desse fosse sinônimo imediato de resolução de
conflito na esfera penal.
Outra questão relevante que se aponta é a existência de pouquíssimas infrações
serem promovidas mediante ação penal privativa do ofendido7 ou que sejam públicas
dependentes de representação do ofendido8, tornando a grande parte das infrações penais
incompatíveis com a audiência preliminar de conciliação e, portanto, o Termo
Circunstanciado teria sua primeira fase pré-processual diretamente com a audiência de
transação penal9, como previsto no artigo 76, caput, da Lei no 9.099/95, excluindo-se a
participação do ofendido.10 Isso, certamente, colide com os princípios do artigo 62, da
referida lei, além de manter o Ministério Público como parte necessária e principal em
situações jurídicas que, a priori, poderiam ser resolvidas diretamente entre os envolvidos em
um conflito intersubjetivo.
Enfim, a fase pré-processual criminal da Lei no 9.099/95 realmente é revolucionária
para aplacar a morosidade e ineficácia do Poder Judiciário, permitindo o arquivamento célere
de Termos Circunstanciados com uma verdadeira “conciliação” entre o aumento das
atividades jurisdicionais do Estado e a quantidade insuficiente de operadores jurídicos.
Contudo, no que tange aos fins da atividade jurisdicional para os cidadãos, o que se constata é
7
No Código Penal, consultar artigos 145; 161, § 3o; 167; 179; 186, inciso I; 236, parágrafo único e 345,
parágrafo único.
8
No Código Penal, consultar artigos 129, caput (c/c artigo 88, da Lei no 9.099/95); 130, § 2o; 145,
parágrafo único; 147, parágrafo único; 151, 4o; 152, parágrafo único; 153, 1o; 154, parágrafo único; 156, 1o; 176,
parágrafo único; 182; 186, inciso IV e 225, caput. Ressalta-se que, no caso do artigo 186, inciso IV e algumas
condutas contempladas pelos artigos 145, parágrafo único e 225, caput, refogem à definição de infração de
menor potencial ofensivo de que trata o artigo 61, da Lei no 9.099/95.
9
Sobre o assunto, consultar: PAULO (2008, p. 1047-111) e WUNDERLICH; CARVALHO (2006).
10
Importante lembrar que todas as contravenções penais são de ação penal pública incondicionada, na
forma do artigo 17 do Decreto-Lei no 3.688/41, sendo que a Constituição Federal, no 129, inciso I, institui o
Ministério Público como instituição exclusiva para a proposição de todas as ações penais públicas.
100
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I101
a persistência do velho paradigma do sistema criminal que exige algum tipo de perda,
privação, imposição de uma sanção contra a pessoa apontada como infratora da lei penal, isto
é, a vetusta relação jurídica entre o Estado soberano – detentor exclusivo do ius puniendi – e o
indivíduo infrator – portador do ius libertatis.11
3 PRÁTICAS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO ÂMBITO PENAL BRASILEIRO
Como visto nos itens supra, a Ciência Jurídica foi sendo desenvolvida durante os
séculos do segundo milênio como sendo um patrimônio discursivo e prático exclusivo do
(Estado) soberano que, por intermédio de uma educação dogmática rígida e criteriosa
estabeleceu o paradigma de que a função jurisdicional estatal positivada é a única via de
resolução de conflitos em uma sociedade civilizada (CF. WOLKMER, 1999) e, no que tange
ao Direito Penal, a aplicação cogente de sanção penal seria o método racional de reinserção
social do infrator, cuja crise em sua implementação, sabe-se, é fato público e notório. (Cf.
ANDRADE, 2003)
Discursos sobre a necessidade de melhoras no acesso à justiça povoam as obras dos
juristas, contudo, a grande aporia teórica que se encontra nas propostas de mudança no
paradigma estatal no que tange ao monopólio do exercício da jurisdição penal pode ser
compreendido com a analogia às palavras de Thomas S. Kuhn (2011, p. 126-7) quando fala de
teorias políticas: “As revoluções políticas visam realizar mudanças nas instituições políticas,
mudanças
essas
proibidas
por
essas
mesmas
instituições
que
se
quer
mudar.
Consequentemente, seu êxito requer o abandono parcial de um conjunto de instituições em
favor de outro.”
Com efeito, o Direito Penal funda-se no discurso oficial de tutela de bens essenciais
ao convívio da sociedade e o Poder Judiciário possui o monopólio no exercício o ius puniendi.
Alterar esse tipo de paradigma seria praticamente o mesmo que negar ao Poder Judiciário sua
função jurisdicional prevista no artigo 5o, inciso XXXV, da Constituição Federal e, com
efeito, torna-se praticamente impossível o reconhecimento de práticas plurais e comunitárias
de resolução de conflitos fora do âmbito estatal quando se trata de infração penal.
Por outro lado, tentativas de deslegitimação do velho paradigma punitivo estatal há
tempos vem se despontando no cenário internacional (Cf. ZAFFARONI, 2001), sendo um dos
mais radicais o denominado “abolicionismo penal” do holandês Louk Hulsmam, que desde a
11
Sobre o assunto, consultar: ALMEIDA (2012, p. 25-54).
101
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I102
década de 70 do século XX já percebera um dos pontos obscuros dos axiomas político-penais
da modernidade:
Ao tratarem dos problemas da justiça penal, os discursos políticos, grande parte da
mídia e alguns estudiosos da política criminal se põem de acordo e dão a palavra a
um determinado ‘homem comum’. Este homem comum seria obtuso, covarde e
vingativo. Não faria distinção entre marginais, os violentos, os molestadores de
todos os tipos. Imaginaria as prisões cheias de perigosos assassinos. E veria no
aparelho penal o único meio de proteção contra os fenômenos sociais que o
perturbam. (HULSMAN; CELIS, 1993, p. 55)
O autor supracitado também contempla em sua obra exemplos de resoluções
alternativas de conflitos penais fora da esfera estatal, que permitiriam a aproximação das
pessoas diretamente envolvidas nas situações jurídicas e que prescindiriam de aplicação de
punições aflitivas pelo poder público. Em síntese, Louk Hulsmam pugna pela deslegitimação
do discurso oficial do Direito Penal estatal – racional e superior – e resgata o ser humano
como uma criatura plenamente emancipada, solidária e capaz de resolver os seus problemas
sem a tutela cogente do Poder Judiciário. Certamente que as propostas do autor holandês
refogem aos postulados mais elementares do Direito Penal contemporâneo, tornando-se o
polo oposto – e portanto, não aceito – do discurso oficial estatal, que se autointitula
responsável pela tutela dos bens jurídicos tidos como indispensáveis pela sociedade.
Em uma senda intermediária, que não prescinde completamente da atividade
jurisdicional estatal, estão as propostas da denominada Justiça Restaurativa (JR). Na
explicação de Paul Mccold e Ted Wachtel (2003): “A justiça restaurativa é uma nova maneira
de abordar a justiça penal, que enfoca a reparação dos danos causados às pessoas e
relacionamentos, ao invés de punir os transgressores.”
Como visto no item supra, a Lei no 9.099/95 contempla dispositivos normativos que
poderiam ser compreendidos como similares ao modelo de Justiça Restaurativa,
especialmente nas ações penais privativas do ofendido e públicas condicionadas à
representação. Entrementes, como a fase pré-processual é cogente – diferente da
espontaneidade dos círculos restaurativos – e deve ser desenvolvida no interior das atividades
jurisdicionais estatais, os postulados da JR ainda não foram totalmente absorvidos pelos
operadores estatais, mormente no que se refere à transação penal obrigatória nos crimes de
ação penal pública incondicionada, em que o Ministério Público é o titular da ação e
representante oficial do Estado.
Somente em 29 de novembro de 2010 que o Conselho Nacional de Justiça editou a
Resolução no 125, que estabeleceu a obrigatoriedade de implantação de novas práticas
consensuais na atividade jurisdicional estatal, declarando que o cidadão não possui apenas o
102
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I103
direito formal de acesso à justiça – como previso no artigo 5o, inciso XXXV, da Constituição
Federal –, mas acesso efetivo “à ordem jurídica justa”.
Para
tanto,
a
Resolução
supramencionada
estabeleceu
os
critérios
para
implementação de “política pública de tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos
conflitos de interesses”, procurando organizar o serviço jurisdicional não somente por
intermédio do processo judicial, mas também “mediante outros mecanismos de solução de
conflitos, em especial dos consensuais, como a mediação e a conciliação;”. Conquanto tenha
declarado “a necessidade de se consolidar uma política pública permanente de incentivo e
aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de litígios;” e “que a conciliação e a
mediação são instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios”, no
texto original de 2010, o artigo 8o contemplou somente as causas afetas às áreas cível,
fazendária e família, deixando a esfera criminal alijada das políticas públicas referentes ao
acesso à justiça.
Contudo, com a alteração do artigo 8o, da Resolução em comento, pela Emenda no 1,
de 21/01/2013, recentemente passou a ser contemplado também o Juizado Especial Criminal
nas práticas conciliatórias idealizadas pelo CNJ, e, no artigo 7o, § 3o, foi incluído
explicitamente os princípios da JR no âmbito penal:
Nos termos do art. 73 da Lei n° 9.099/95 e dos arts. 112 e 116 da Lei n° 8.069/90, os
Núcleos poderão centralizar e estimular programas de mediação penal ou qualquer
outro processo restaurativo, desde que respeitados os princípios básicos e processos
restaurativos previstos na Resolução n° 2002/12 do Conselho Econômico e Social da
Organização das Nações Unidas e a participação do titular da ação penal em todos
os atos.
A contemplada Resolução no 2002/12, de 24 de julho de 2002, do Conselho
Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, trata de princípios básicos para
utilização de programas de Justiça Restaurativa em matéria criminal. Entre esses princípios,
estão práticas que são diferentes do modelo inaugurado pela Lei no 9.099/95 no que tange à
fase pré-processual. Entre eles destacam-se alguns:
2. Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o
ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da
comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das
questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os
processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar
ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles).
11. Quando não for indicado ou possível o processo restaurativo, o caso deve
ser encaminhado às autoridades do sistema de justiça criminal para a prestação
jurisdicional sem delonga. Em tais casos, deverão ainda assim as autoridades
estimular o ofensor a responsabilizar-se frente à vítima e à comunidade e apoiar
a reintegração da vítima e do ofensor à comunidade.
103
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I104
15. Os resultados dos acordos oriundos de programas de justiça restaurativa
deverão, quando apropriado, ser judicialmente supervisionados ou incorporados às
decisões ou julgamentos, de modo a que tenham o mesmo status de qualquer
decisão ou julgamento judicial, precluindo ulterior ação penal em relação aos
mesmos fatos.
16. Quando não houver acordo entre as partes, o caso deverá retornar ao
procedimento convencional da justiça criminal e ser decidido sem delonga. O
insucesso do processo restaurativo não poderá, por si, usado no processo criminal
subsequente. (sem grifos no original)
Pelo que se pode observar, a JR é prevista para funcionar fora do âmbito da Justiça
estatal oficial, privilegiando-se os atores sociais pertinentes às comunidades onde eclodiram
os conflitos intersubjetivos e, caso o processo restaurativo reste infrutífero, aí sim é que Poder
Judiciário passaria a ser invocado para o exercício do ius persequendi, não podendo ser
confundidos, porquanto, as práticas pré-processuais nos Juizados Especiais Criminais com os
métodos restaurativos que serão desenvolvidos e utilizados nos Centros Judiciários de
Solução de Conflitos e Cidadania (artigos 8o a 11). Em síntese, primeiro se deve dar
oportunidade às práticas restaurativas entre os sujeitos envolvidos em um conflito penal,
inclusive nas infrações de ação penal pública incondicionada e somente no caso de restar
infrutífero um acordo restaurativo entre as pessoas é que seriam utilizados os institutos típicos
da Lei no 9.099/95, especialmente nos que concerne à transação penal.
A intenção do CNJ foi, realmente, muito salutar em admitir postulados típicos da JR
no âmbito penal brasileiro como meio de atingir-se a pacificação social. Porém, deixou a
desejar no que tange à descentralização dos serviços jurisdicionais com o reconhecimento das
práticas plurais advindas da justiça comunitária. Com efeito, institui o artigo 2o, da Resolução:
Art. 2o Na implementação da política Judiciária Nacional, com vista à boa qualidade
dos serviços e à disseminação da cultura de pacificação social, serão observados:
I - centralização das estruturas judiciárias;
II - adequada formação e treinamento de servidores, conciliadores e mediadores;
III - acompanhamento estatístico específico.
Nota-se que, ao revés do que se propõe em termos de revolução do paradigma estatal
monopolizador da justiça pública, o CNJ criou um novo mecanismo relegitimador e promotor
de concentração e controle mais aprimorado das atividades jurisdicionais estatais, destinado a
absorver todas as práticas plurais de solução de conflitos pelo controle direto na formação e
atividades dos agentes de pacificação social (artigo 12), além de estruturação de Núcleos
Permanentes de Métodos Consensuais de Resolução de Conflitos (artigo 7o) e os já
mencionados Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania.
104
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I105
Seja como for, penhora-se um voto de confiança para que esse modelo readequado
de prestação jurisdicional, embora centralizado e controlado pelo Poder Judiciário, realmente
possa viabilizar um acesso efetivo à ordem jurídica efetiva e, principalmente, justa para os
jurisdicionados e não apenas para o incremento aos dados estatísticos, como previsto nos
artigos 13 e 14, da Resolução, para propaganda relegitimadora das atividades estatais, como
contemplado no artigo 15.
4 PRÁTICAS RESTAURATIVAS EM RELAÇÃO AOS DELITOS DE MENOR
POTENCIAL OFENSIVO
A inclusão dos interesses das vítimas no processo penal brasileiro é muito recente12
e, embora as perspectivas teóricas a respeito da Lei no 9.099/95 afirmassem que os ofendidos
teriam uma nova e célere via para resolução de seus conflitos de menor complexidade, a
prática acabou por demonstrar que o personagem principal ainda permanece com suposto
autor dos fatos no Juizados Especiais Criminais, que, pelo critério da lei penal, ainda é tido
como merecedor de algum tipo de sanção como forma de se garantir o papel simbólico do
Estado no exercício do ius puniendi.
Como dito alhures, são poucos os casos em que há disponibilidade da ação penal por
parte das pessoas envolvidas no conflito intersubjetivo na seara da fase preliminar da Lei no
9.099/95, tornando os Juizados Especiais Criminais um grande instrumento político de
relegitimação do ius puniendi, mesmo que para isso fossem flexibilizados – senão violados –
direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, entre eles o devido processo legal e o
contraditório e a ampla defesa (Cf. KARAM, 2004).
Com a novel previsão do uso dos postulados internacionais da Justiça Restaurativa13
no âmbito penal brasileiro (artigo 7o, § 3o, da Resolução no 125-CNJ), argumenta-se que agora
torna-se obrigatória a existência de um processo restaurativo entre as partes que figuram no
Termo Circunstanciado, mas de maneira mais ampla do que a admitida pelo artigo 74,
parágrafo único, da Lei no 9.099/95, ou seja, desde a entrada em vigor da nova redação da
Resolução do CNJ, nas ações penais públicas incondicionadas em que figure uma pessoa
determinada como vítima, deve ser proporcionada a aproximação entre as partes e, havendo
acordo restaurativo, o Ministério Público fica impedido de propor a transação penal, como
12
Apenas com o advento da Lei no 11.690/08, que alterou o artigo 201 do Código de Processo Penal, é
que o ofendido passou a ter uma participação mais efetiva e satisfativa perante a jurisdição penal brasileira.
13
Sobre acordos intersubjetivos como alternativa à sanção penal, consultar ROSENBERG (2006) e
ZEHR (2008).
105
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I106
preconizado pelo item 15, da Resolução 2002/12 do Conselho Econômico e Social da
Organização das Nações Unidas.
Tal ideia de maneira alguma viola a titularidade do Ministério Público quanto à
obrigatoriedade
da
apresentação
da
transação
penal
nas
ações
penais
públicas
incondicionadas, como faz parecer à primeira vista no disposto no caput do artigo 76 da Lei
no 9.099/95.14 Mesmo se argumentando que a Resolução do CNJ não teria força modificativa
no disposto no artigo 100, caput, do Código Penal e 257, inciso I, do Código de Processo
Penal, a interpretação sistemática haurida do Ordenamento Jurídico pende à consubstanciação
da pacificação social e não ao apego a questões meramente formais e institucionais que não
colocam em risco bens individuais indisponíveis. Com efeito, a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária está entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil
(artigo 3o, inciso I, da Constituição Federal) e a titularidade da ação penal pública ao
Ministério Público está dentro de uma das suas funções institucionais (artigo 129, inciso I, da
Constituição Federal), não havendo colisão de princípios, mas sim adequação deles no que
tange ao acesso das pessoas à uma ordem jurídica justa e de qualidade.
A inclusão do processo restaurativo preliminar em todas as infrações penais de
menor potencial ofensivo encontra harmonia no disposto nos princípios do artigo 62, da Lei
no 9.099/95, compreendendo-se que a composição dos danos não significa tão somente a
transferência de bens de uma pessoa a outra, mas envolve, em grande monta, interesses não
patrimoniais, como segurança, tranquilidade, amizade, respeito, responsabilidade, honestidade
e até humildade, sendo esses alguns dos elementos primordiais em uma sociedade que prima
pela cultura da paz.
O reforço teórico para se admitir que todas as infrações penais de menor potencial
ofensivo que envolvam conflitos intersubjetivos merecem integrar os processos restaurativos,
flexibilizando-se o dever-poder ministerial quanto às infrações de ação penal pública
14
Interessante caso ocorreria com a contravenção de “vias de fato”, prevista no artigo 21 do Decreto-lei
3.688/41 (Lei das Contravenções Penais): “Praticar vias de fato contra alguém: Pena – prisão simples, de 15
(quinze) dias a 3 (três) meses, ou multa, se o fato não constitui crime.” O crime a que se refere tal artigo é de
“lesões corporais”, previsto no artigo 129, caput do Código Penal: “Ofender a integridade corporal ou a saúde de
outrem: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.” Como a Lei no 9.099/95, em seu artigo 88 prescreve:
“Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa
aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas”; não incluindo a contravenção de “vias de fato”, se existir
uma agressão física a uma pessoa e não existir lesão, a ação penal é pública incondicionada, não havendo
possibilidade de “composição dos danos” entre as partes; e ocorrendo uma lesão (infração penal mais grave), já
que é crime e depende de representação, então haveria a possibilidade de acordo extintivo da punibilidade na
forma do artigo 74, parágrafo único da Lei no 9.099/95. Como há o princípio em hermenêutica jurídica de que
“quem pode o mais pode o menos”, então a jurisprudência fixou o entendimento de que a contravenção de “vias
de fato” depende de representação do ofendido e, portanto, há a possibilidade de conciliação entre as partes
como forma de extinção do ius puniendi do Estado sem a aplicação de uma punição.
106
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I107
incondicionada, encontra apoio na exegese e doutrina pertinente ao artigo 395, inciso II, do
Código de Processo Penal, que diz que a denúncia deverá ser rejeitada pelo magistrado
quando faltar “condições” para o exercício da ação penal.
Entre os dogmáticos da área processual penal, Fernando da Costa Tourinho Filho
(2011, p. 525) explica que as condições genéricas da ação penal são: “a) possibilidade jurídica
do pedido; b) legitimidade para agir (legitimatio ad causam); e c) interesse processual ou
interesse de agir”. Especificamente no que concerne ao interesse de agir, o mesmo autor
(Ibid., p. 605) pondera: “Só existe o direito de ação como realidade processual quando há um
interesse emergente de um estado de fato contrário ao direito e interesse que se possa valer
por meio da via jurisdicional”.
Sobre o mesmo tema, Vicente Greco Filho (2012, p. 126) explica: “Para verificar-se
se o autor tem interesse processual para a ação deve-se responder afirmativamente à seguinte
indagação: para obter o que pretende o autor necessita da providência jurisdicional
pleiteada?”.
Para André Nicolitt (2010, p. 113), o interesse de agir traduz-se em “necessidade,
utilidade e adequação”. Continua o autor lecionando que: “Não há que se mover a máquina
judiciária apenas por uma motivação ideal, a atividade jurisdicional deve produzir alguma
modificação no mundo ou na vida, ter um resultado prático e não meramente acadêmico ou
formal”.
No mesmo diapasão, Eugênio Pacelli de Oliveira (2012, p. 102), ao tratar do tema
“interesse de agir” como condição da ação, afirma que deve haver uma “preocupação com a
efetividade do processo, de modo a ser possível afirmar que este, enquanto instrumento de
jurisdição, deve apresentar, em juízo prévio e necessariamente anterior, um mínimo de
viabilidade de satisfação futura da pretensão que informa seu conteúdo”.
Deveras, por mais que seja presumida a necessidade da prestação jurisdicional penal
quando ocorre a violação a um tipo – como defende Aury Lopes Júnior (2013, p. 364) –,
merece ser levado em conta que a definição das infrações de ação penal pública
incondicionada é uma questão de política criminal em prol da administração estatal de certos
bens jurídicos escolhidos pelo legislador, isto é, apenas um axioma político-administrativo em
prol de uma idealizada ordem pública prospectiva, que não merece ser confundida com o
objetivo estatal mais nobre que é a pacificação social.
Propõe-se, diante isso, que as práticas a serem implementadas nos Centros
Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania contemplem, preliminarmente, os enunciados
da Justiça Restaurativa em todos os conflitos intersubjetivos, que passa a exigir uma
107
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I108
comprovada – e não meramente presumida – necessidade de prestação jurisdicional penal
para a resolução de um conflito intersubjetivo perante os Juizados Especiais Criminais, ou
seja: só se torna legítima e obrigatória a transação penal e a própria ação penal caso não exista
acordo intersubjetivo entre os diretamente envolvidos em uma infração penal na fase
pertinente aos processos restaurativos, pois, uma vez acordadas as pessoas, desaparece o
interesse de agir, que é condição essencial ao exercício do ius puniendi estatal.
Nos casos em que não ocorrer acordo entre as pessoas na fase do processo
restaurativo em ação penal pública, a transação penal, ainda assim, deve atender aos
princípios do Juizado Especial Criminal e da JR, que contemplam a reparação dos danos
sofridos pela vítima. Por isso, a proposta de aplicação de pena imediata ao suposto autor dos
fatos, elaborada pelo representante do Ministério Público, merece ser – antes de qualquer
outra prevista no artigo 32, do Código Penal –, a preconizada no artigo 45, §§ 1o e 2o do
Código Penal, que trata da pena de prestação pecuniária:
Art. 45. [...]
§ 1o A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus
dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância
fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos
e sessenta) salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de
eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os
beneficiários.
§ 2o No caso do parágrafo anterior, se houver aceitação do beneficiário, a prestação
pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza.
[…] (sem grifos no original)
Pode-se perceber que esse tipo de pena deve ser destinado precipuamente à vítima do
delito ou seus dependentes, quais sejam às pessoas que tiveram um bem juridicamente
tutelado pela norma penal violado pelo suposto autor do fato. Ainda, se proposto e aceito esse
tipo de pena a título de transação penal, significa que o quantum pago em dinheiro será
deduzido do montante indenizatório total devido à outra parte, traduzindo-se este tipo de
pacto com o Ministério Público em um proveito real tanto para o ofendido quanto para o
suposto infrator da norma penal, tornando o Ministério Público também um agente
institucional da Justiça Restaurativa e, certamente, do acesso à ordem jurídica justa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto no desenvolvimento do presente trabalho, a ciência jurídica foi
construída com base em postulados políticos no decorrer dos séculos do segundo milênio,
consolidando a crença mitológica de que apenas o Estado soberano é que poderia resolver
108
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I109
conflitos intersubjetivos no âmbito penal, subtraindo dos ofendidos a legitimidade para
atuarem em prol da satisfação de seus interesses e cristalizando o dogma de que o ius
puniendi pertence ao Estado e somente pela via jurisdicional estatal os conflitos poderiam ser
resolvidos com a aplicação inexorável de uma punição aflitiva aos infratores.
Disso erigiu-se uma contradição insanável entre os postulados processuais que
declaram que a vocação do Direito é a pacificação social e entre as funções declaradas do
Direito Penal, entre elas a que prevê a aplicação da pena como sinônimo de resolução de
conflito, pois reinseriria no convívio social aquele que teria violado a lei do Estado soberano.
Somente com o surgimento da Lei no 9.099/95 é que os interesses das vítimas
passaram a ser contemplados dentro de uma fase pré-processual nos Juizados Especiais
Criminais, porém de forma muito tênue e sem causar a revolução esperada pelos dogmáticos
do Direito criminal. Ao revés, a referida lei tornou-se um sucesso no que concerne aos
aumentos estatísticos de prestação jurisdicional, pois, baseando-se nos princípios da
informalidade e celeridade, os operadores estatais aumentaram sua produção e o Estado pode
demonstrar em gráficos sua atuação quantitativa quanto ao acesso à justiça, mas sem aplacar a
crise crônica que afeta a qualidade das decisões proferidas pelo Poder Judiciário.
Sem esperar uma solução milagrosa oriunda do Poder Legislativo, o Conselho
Nacional de Justiça procurou contornar as dificuldades enfrentadas cotidianamente pelos
operadores do Direito e editou a Resolução no 125/2010, propondo a ativação de mecanismos
mais eficazes de resolução de conflitos intersubjetivos, primando por incrementar o acesso à
justiça com a adoção de métodos de conciliação, mediação e arbitragem. Contudo, somente
neste ano de 2013 é que tais princípios foram estendidos à seara criminal.
Para mostrar que os princípios aplicáveis na fase pré-processual da Lei no 9.099/95
são diferentes e muito menos amplos que os preconizados pela Resolução no 125/2010-CNJ,
elaborou-se uma breve abordagem a respeito da prática nos Juizados Especiais Criminais, que
continuam adotando o vetusto postulado punitivo-retributivo contra o suposto autor da
infração e, em seguida, discorreu-se sobre as perspectivas da JR no âmbito penal, que agora
devem ser observados em prol de garantia dos jurisdicionados à ordem jurídica justa e eficaz.
Construiu-se, outrossim, uma proposta lastreada nos princípios do processo penal
para consolidar a ideia que inclusive as ações penais públicas incondicionadas merecem ser
tratadas nas práticas restaurativas e, uma vez viabilizado acordo pacificador entre as pessoas
envolvidas em uma infração penal de menor potencial ofensivo, então o ius puniendi estatal
deslegitima-se frente à uma das condições da ação penal, que é o interesse de agir, impedindo
109
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I110
que o Ministério Público, titular da ação penal pública, exerça seu deve-poder de propor pena
imediata aos suposto autor da infração a título de transação penal.
Finaliza-se lembrando que o princípio da legalidade (artigo 5o, inciso XIX, da
Constituição) exige prévia cominação legal para aplicação de penas no Brasil e, caso exista a
necessidade de ativação da fase da transação penal contra o suposto autor da infração, mesmo
assim o ius puniendi estatal pode entrar em consonância com os princípios da Justiça
Restaurativa, pois a proposta de pena imediata merece ser a prestação pecuniária em favor da
vítima, pois isso, além de permitir que esta tenha parte de seu direito restaurado, ainda é
proveitoso à preservação do ius libertatis àquele que optou pelo consenso e que não merece,
à evidência, ser ressocializado por intermédio da imposição de sanções penais amiúde
entendidas como obrigatórias.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I113
DA CRISE DO JUDICIÁRIO AO EMPODERAMENTO DA PESSOA HUMANA
PARA A RESOLUÇÃO DE CONFLITOS: NOTAS SOBRE A MEDIAÇÃO NA PÓSMODERNIDADE
THE CRISIS OF THE LEGAL EMPOWERMENT OF THE HUMAN PERSON FOR
CONFLICT RESOLUTION: NOTES ON MEDIATION IN POST-MODERNITY
Camila Figueiredo Oliveira Gonçalves*
Thalyany Alves Leite**
Resumo
Diante da complexidade da sociedade contemporânea, as estruturas resolutivas de conflitos
ordinárias, especialmente o modelo jurisdicional, não mais atendem a contento os problemas
atuais. É corrente a constatação de que o Poder Judiciário passa por um momento de crise,
seja pela demora na prestação, seja pela prolação de uma sentença desajustada ao que as
partes desejam. As razões dessa crise são de inúmeras ordens, mas, de maneira evidente, é
possível antever o ocaso das instituições e dos padrões modernos como um importante fator.
Isso porque se na modernidade, mesmo pela conformação política, social, econômica e
ideológica, considerava-se viável balizar as condutas e resolver as controvérsias apenas e tão
somente pelo uso de uma legislação liberal, respondendo o Estado Juiz aos conflitos de modo
simples e objetivo, hoje essa postura está fadada ao fracasso. A pós-modernidade, pela quebra
da tradição, trouxe uma série de novas demandas que necessitam de um outro modelo para
sua resolução, o qual deve cotejar a subjetividade dos envolvidos e seguir um rito
diferenciado. A mudança no tratamento dos conflitos é necessária, inclusive, para acompanhar
o destaque que a pessoa humana ganhou no cenário jurídico com a emergência dos direitos
fundamentais e humanos, pois, enquanto ser dotado de autonomia e de dignidade, tem sido
reconhecido, pelo menos no plano legal e doutrinário, seu espaço para decidir o melhor
caminho para sua vida. O problema, portanto, repousa no plano prático, na atividade
jurisdicional. Nesse contexto, a mediação de conflitos apresenta-se como uma possível saída
para resolver a tensão entre o plano teórico-legal e o prático, haja vista que, a um só tempo,
*
Mestranda em Direito Constitucional nas
Privadas pela Universidade de Fortaleza (Unifor).
Graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do
(UFC). Membro do Grupo de
Pesquisa de Direito Constitucional nas
Privadas da Universidade de Fortaleza (Unifor). E-mail:
<[email protected]>.
**
Mediadora de Conflitos. Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor).
Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor). E-mail: <[email protected]>.
113
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I114
oferece resposta ao colapso da função jurisdicional e permite o empoderamento da pessoa,
expressão objetiva do princípio da dignidade humana.
Palavras-chaves:
Pós-Modernidade.
Crise
do
Judiciário.
Mediação
de
conflitos.
Empoderamento da pessoa humana.
Abstract
Given the complexity of contemporary society, the structures of resolving conflicts common,
especially the model court, not more satisfactorily meet the current problems. Current is the
finding that the Judiciary is going through a time of crisis, whether the delay in delivery, or by
delivery of a misfit sentence to which the parties wish. The reasons for this crisis are many
orders, but in an obvious way, it is possible to predict the demise of the institutions and
modern standards as an important factor. This is because in modernity, even by shaping
political, social, economic and ideological beacon was considered viable behaviors and
resolve disputes only and solely for the use of liberal legislation, the State Judge responding
to conflicts in a simple and objective today this attitude is doomed to failure. Postmodernism,
by breaking tradition, brought a number of new demands that require another model to its
resolution, which shall collate the subjectivity of those involved and follow a different rite.
The change in the treatment of conflicts is necessary even to accompany the highlight that the
human person has won the legal landscape with the emergence of fundamental and human
rights, because, while being endowed with autonomy and dignity, has been recognized, at
least in the legal and doctrinal your space to decide the best path for your life. The problem,
therefore, rests on a practical level, the judicial activity. In this context, conflict mediation is
presented as a possible solution to resolve the tension between the theoretical and the
practical-legal, considering that, at the same time offers response to the collapse of the
judicial function and enables the empowerment of the individual , objective expression of the
principle of dignity.
Keywords: Postmodernity. Crisis in the Judiciary. Conflict mediation. Empowerment of the
human person.
Introdução
A sociedade pós-moderna informa o declínio da era das certezas que estabilizaram as
estruturas sociais e as instituições por muito tempo. Se na modernidade, sob os pilares do
114
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I115
Iluminismo – razão, cientificidade e verdades absolutas –, a sociedade era compreendida de
forma simplista e se estruturava sem grandes críticas, atualmente os tradicionais parâmetros
balizadores são questionados e postos em xeque quando não reiterados.
No tocante à ciência jurídica, se antes se creditava às instituições, aos conceitos e aos
diplomas legais um tom de perenidade e de perfeição dada a racionalidade, hoje o Direito com
influência setecentista e oitocentista é instado a se reformular para atender devidamente as
novas demandas, sob pena de ser desacreditado.
Isso porque, enquanto ciência social, o Direito não pode ser estanque. Ao contrário,
deve ser sensível a toda e qualquer alteração. A partir da mutabilidade da realidade
subjacente, as regras previstas em leis, bem como a exegese do aplicador na formação da
norma precisam ser (re)modeladas para melhor atender àquilo que emerge da sociedade.
Nesse constante processo de
do dever ser ao ser, a revisão dos institutos
jurídicos e das funções estatais é imprescindível. Na medida em que a dignidade da pessoa
humana foi elevada a
manter as estruturas de outrora
-guia de toda a ordem jurídica brasileira, não
mais possível
revelia do indivíduo. A busca do bem-estar do homem deve
ser o ponto de referência e a força motriz a impulsionar o Direito.
Nessa mesma linha de intelecção, tendo em vista que o princípio da eficiência
ganhou status constitucional, os modelos estatais não podem ter sua mantença assegurada a
despeito da efetividade do serviço público em termos qualitativos e quantitativos.
Essa percepção da necessidade de mudança do Direito diante da ruptura com o
modernismo jurídico aproxima-se da transformação que deve ser operada no Poder Judiciário.
Detentor do monopólio estatal da jurisdição, a função jurisdicional exercida pelo Estado foi
elaborada sob rubores iluministas, com uma estrutura burocratizada, um procedimento
complexo e formal e uma interpretação normativo-legalista baseada no positivismo. Seguindo
a toada liberal em prol da burguesia, a função jurisdicional almejava garantir basicamente a
ordem e os direitos individuais. Nesse modelo, mesmo pela igualdade formal propugnada, a
lei tinha primazia sobre as demais fontes e a atividade judicante ficava adstrita à repisá-la,
sendo o método subsuntivo considerado o adequado para resolver as mais variadas questões.
Na qualidade de terceiro pretensamente autônomo, neutro e imparcial, o magistrado era
considerado o mais habilitado a decidir e a reconhecer o direito de uma das partes.
No entanto, a crise que assola o Judiciário há algum tempo reflete a fragilidade do
paradigma moderno, ultimando a revisão do perfil que se pretende manter da função
jurisdicional. Em descompasso com o que se apresenta hoje na maioria dos tribunais, é
preciso um modelo democrático de resolução de conflitos, com um processo não
115
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I116
necessariamente rígido, no qual a atividade hermenêutica do aplicador da norma considere
todas as vicissitudes do caso concreto, permitindo, por ser salutar, a participação dos
envolvidos na construção do consenso pretendido. Apostando nessa revisão metodológica,
que seria capaz de cotejar os direitos fundamentais, os meios alternativos de resolução de
conflitos se sobressaem, importando ao presente estudo especialmente a figura da mediação.
A mediação destaca-se como um meio eficaz na resolução de determinados tipos de
conflitos, de acordo com suas naturezas ou com as relações entre os interessados, porque,
além de oferecer resultado por meio de respostas mais eficazes e céleres, é capaz de
transformar a cultura do litígio em uma cultura pacificadora.
A discussão da mediação na pós-modernidade e de suas implicações na mudança da
forma que se pretende resolver os conflitos, portanto, importa ao Direito se considerado que
seu principal objetivo é dirimir conflitos de maneira justa e zelosa, de acordo com uma
abordagem sistemática dos procedimentos de resolução adequada à principiologia
constitucional. O estudo da temática pretende contribuir oferecendo fundamentos teóricos e
práticos para que se desonere o Poder Judiciário, bem como para que os conflitos possam
obter soluções ótimas com vistas aos interesses dos envolvidos e não apenas para cumprir
metas de produtividade junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Importante frisar, de
logo, que a defesa que se faz do procedimento mediatório pretende oferecer subterfúgios para
otimizar/auxiliar a função jurisdicional e não substituí-la.
Partindo da hipótese de que o Poder Judiciário pensado na modernidade não observa
o conflito real e a vontade das partes, carecendo ainda de estrutura adequada e de
procedimento e interpretação apropriados, bem como que a pessoa humana, enquanto ser
autônomo e dotado de dignidade, deve participar ativamente no processo de resolução de seus
conflitos em qualquer âmbito, a análise do tema enaltece as partes como principais
interlocutores de eventual solução. Desvincula-se a abordagem ora realizada da noção
racional própria da modernidade de partes como sujeitos passivos a esperar a decisão de
terceiro imparcial. De modo mais direito, tem-se por premissa que os envolvidos ao sofrerem,
ao lidarem com as emoções e ao conhecerem as nuances das situações problemáticas postas
em foco, com a devida orientação, são capazes de resolver a questão de maneira ótima e
eficaz.
Desse modo, cabe ao presente artigo abordar a mediação segundo o paradigma pósmoderno. Parte-se do pressuposto de que na pós-modernidade, conforme se pode evidenciar a
partir indicadores obtidos em sites oficiais, a estrutura do Poder Judiciário entrou em colapso
e não consegue mais responder a todas as demandas que são levadas a sua alçada. Por esta
116
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I117
razão e ainda pelo fato de a pessoa humana ser hoje o epicentro de toda a ordem jurídica,
sendo hoje a dignidade da pessoa humana o vetor hermenêutico de todo o sistema, defende-se
que o processo mediatório é uma opção adequada às questões que podem ser decididas
autonomamente pelas partes.
Para a análise do problema posto em foco, adota-se uma metodologia qualitativa e
quantitativa lastreada na análise doutrinária especializada e em documentos obtidos em órgãos
oficiais, notadamente do
em
elaborado pelo Departamento de
Pesquisas Judiciárias (DPJ) do CNJ. O desenvolvimento do trabalho se consolida em três
partes: a primeira apresenta o Direito na perspectiva moderna em contraponto com a pósmodernidade, considerando o processo de ruptura com o paradigma moderno e de
humanização da ciência jurídica com a elevação do homem ao epicentro do ordenamento
jurídico. A segunda parte do trabalho versa sobre a crise no Poder Judiciário, sustando que a
estrutura herdada do século XIX não é capaz de dar conta dos conflitos complexos da
contemporaneidade. Na oportunidade, são considerados dados oficiais fornecidos pelo CNJ.
Na terceira e última parte, discute-se a emergência da mediação como técnica de resolução de
conflitos apta a dar soluções ótimas, a contribuir para a solução da crise do judiciário e a
concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana de modo objetivo pelo
empoderamento da pessoa.
1 Do moderno ao pós-moderno no Direito: o reconhecimento da complexidade do
pensamento jurídico e da importância da pessoa humana
De modo geral, a ciência da modernidade, especialmente a própria do século XVIII e
XIX, tinha como principais traços a razão e a lógica. Por conseguinte, o conhecimento fruto
do pensamento moderno excluía de sua senda aquilo que não proviesse da experimentação ou
de processos lógico-dedutivos, representando o positivismo lógico, baseado na identidade
entre a linguagem unívoca da ciência e a observação imediata, o apogeu da dogmatização da
ciência (SANTOS, 1989, p.23).
Nesse período, houve também uma ruptura com os saberes anteriores que se
afastavam do padrão objetivo e cartesiano da lógica racional. Em um processo redutor das
complexidades, as percepções, os sentimentos, as vivências, a intuição, as conexões do
homem consigo e com o mundo foram preteridas, sendo qualquer experiência transcendental
desconsiderada para fins científicos (SANTOS, 1989, p.23; DIAS, 2006, p.105). De igual
modo, ocorreu ainda a redução da complexidade do conhecimento ao ser incorporado ao
117
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I118
método científico a ideia de Descartes de divisão fenômeno ao máximo para sua compreensão
plena.
[...] em Descartes uma das regras do Método consiste precisamente em "dividir cada
uma das dificuldades... em tantas parcelas quanto for possível e requerido para
melhor as resolver". A divisão primordial é a que distingue entre "condições
iniciais" e "leis da natureza". As condições iniciais são o reino da complicação, do
acidente e onde é necessário selecionar as que estabelecem as condições relevantes
dos fatos a observar; as leis da natureza são o reino da simplicidade e da
regularidade onde é possível observar e medir com rigor. Esta distinção entre
condições iniciais e leis da natureza nada tem de "natural". Como bem observa
Eugene Wigner, é mesmo completamente arbitrária. No entanto, é nela que assenta
toda a ciência moderna (SANTOS, 1988, online).
De acordo com a epistemologia dessa época moderna, portanto, particionar era fase
do processo de conhecimento e aquilo que não fosse aferível ou quantificável ou mesmo
emergisse da metafísica era considerado cientificamente irrelevante. A análise conjunta dessas
regras deixa logo antever um dos principais objetivos da ciência moderna: a manutenção do
status quo, ou seja, a perenidade e a reiteração do pensamento acolhido (rectius, escolhido).
Isso porque é lógico que se um dado fato for estudado de modo fragmentado, com a
desconsideração das vicissitudes casuísticas, por certo, será repisado.
Essa reprodução de fatos condiz com os interesses dominantes da época. Em meados
do século XIX, após as revoluções liberais, a burguesia exsurge fortalecida como classe. Na
busca de seu lugar, precisava esse novo nicho social de ordem e de estabilidade para
desenvolver suas atividades. Assim, também a perspectiva utilitarista econômica do momento
histórico justifica os paradigmas da época moderna. Como assevera Boaventura de Sousa
Santos (1988, online), “o determinismo mecanicista é o horizonte certo de uma forma de
conhecimento que se pretende utilitário e funcional, reconhecido menos pela capacidade de
compreender profundamente o real do que pela capacidade de o dominar e transformar”.
Sobremodo no século XIX, esse pensamento passou a ingressar na dinâmica
compreensiva das ciências sociais, com o advento do positivismo jurídico. Veja-se, a guisa de
exemplo, a elaboração do Code civil de Français de 1804, que serviu de modelo para as
codificações oitocentistas depois promulgadas. Apesar de pelo momento histórico, pósrevolução francesa, é de se notar que não houve grandes rupturas com o Antigo Regime,
parecendo mais que a codificação queria abrandar os ânimos revolucionários para instaurar a
ordem tão necessária ao desenvolvimento da burguesia. Essa pretensão de estabilidade pode
ser percebida pela forma como o Code foi idealizado: prestigiando o positivismo, iniciou-se a
118
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I119
era do primado da lei como fonte do direito, o que viabilizou a racionalidade e o
funcionamento mais controlável e previsível do sistema jurídico (CAENEGEM, 1995, p. 9).
No que tange à pessoa, a codificação civil francesa considerava, de modo simples, o
homem como um sujeito de direitos. Define-se que “sujeito de direito é a pessoa a quem a lei
atribui a faculdade ou a obrigação de agir, exercendo poderes ou cumprindo deveres”
(GOMES, 2010, p. 108), de modo que tudo se limitava a “qualificar ‘pessoas’ quaisquer
entidades a quem as regras jurídicas atribuam a suscetibilidade de titularidade de posições
jurídicas.” (ASCENSÃO, 2000, p. 43).
Todavia, se nas ciências naturais, o paradigma dominante já era frágil, mesmo pela
simplificação, percepção e refutação experimental dos fatos em si, nas ciências sociais, era
possível identificar fatores que levariam à quebra da tradição pretendida. Nesse sentir,
valendo-se do pensamento de Ernest Nagel, Boaventura de Sousa Santos (1988, online)
apresenta alguns obstáculos para implementação desse paradigma:
[...] as ciências sociais não dispõem de teorias explicativas que lhes permitam
abstrair do real para depois buscar nele, de modo metodologicamente controlado, a
prova adequada; as ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque os
fenômenos sociais são historicamente condicionados e culturalmente determinados;
as ciências sociais não podem produzir previsões fiáveis porque os seres humanos
modificam o seu comportamento em função do conhecimento que sobre ele se
adquire; os fenômenos sociais são de natureza subjetiva e como tal não se deixam
captar pela objetividade do comportamento; as ciências sociais não são objetivas
porque o cientista social não pode libertar-se, no ato de observação, dos valores que
informam a sua prática em geral e, portanto, também a sua prática de cientista.
Considerando a historicidade e a complexidade1 das ciências sociais, categoria em
que a ciência jurídica se enquadra, é de se perceber que as tentativas de manter fórmulas
exatas e alheias aos influxos sociais não poderiam se sustentar por muito tempo. Se o
paradigma moderno de certeza do Direito era adequado ao Estado Liberal pela intenção de
manter a ordem e o status quo, com a emergência do Estado Social, preocupado mais com a
efetivação dos direitos fundamentais e com a dignidade da pessoa humana, é o paradigma
pós-moderno que vai imperar.
1
“Ao se refletir sobre o Direito, enquanto um sistema normativo que regula as relações dos homens em
sociedade, necessário se torna ter presente a noção de complexidade do mundo da vida e da ciência. A Ciência
do Direito é complexa, uma vez que este, ao regular as relações sociais que são profundamente complexas, gesta
a utopia de realizar a Justiça, um dos valores fundamentais da vida social.” (DIAS, 2006, p.105). Morin (2000,
p.8) esclarece ainda que a ciência é complexa “porque inseparável de seu contexto histórico e social [...]” e
acrescenta “[...] a ciência é, intrínseca, histórica, sociológica e eticamente complexa”.
119
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I120
O conceito de pós-modernidade2 não é fechado, pois é da vivência presente que sua
realidade vem sendo esculpida. É da variação dos valores, dos costumes, dos hábitos sociais,
das instituições, pelas conquistas e desestruturações sociais que se pode afirmar que se passa
por um momento de transição de verdades absolutas para um estado de constantes mudanças.
Todavia, pode-se afirmar, com alguma segurança, que o termo reflete o contexto históricosocial contemporâneo de revisão do paradigma moderno.
A
-modernidade, na
que se entende
, o estado reflexivo da
sociedade ante suas
mazelas, capaz de gerar um revisionismo de seu modus
actuandi, especialmente considerada a
de
do modelo moderno
de organiz
da vida e da sociedade. Nem de
se entende viver a
modernidade, pois o revisionismo
implica praticar a
dos erros do
passado para a
de novas
de vida (BITTAR, 2008, p.135).
Assim, se na modernidade, a sociedade era simples, coordenada e acrítica,
atualmente a tradição é questionada e, quando não reiterada, abandonada. A racionalidade e o
apetite pelo novo (GIDDENS, 1991, p.39) impulsionaram o homem a refletir sobre a
modernidade, trazendo a derrocada dos tradicionais limites sociais, políticos e jurídicos que o
reprimiam. Atualmente, não se sustenta mais a compreensão de homem como simples sujeito
de direitos, em desconsideração de suas vicissitudes, nem mesmo as instituições a despeito de
suas finalidades. Ao revés, sobreleva-se a dignidade da pessoa humana como valor primordial
e eixo de todo sistema jurídico que, sendo considerado uno e teleológico, deve fazer com que
todas as suas funções tenham adequação valorativa à principiologia constitucional
(CANARIS, 1996, p.22-23).
Todavia, como nenhum processo histórico se realiza de forma abrupta, ainda hoje se
faz notar a modernidade. É perceptível que muitas verdades, preceitos, princípios, instituições
e valores do ideário burguês, capitalista e liberal ainda permeiam algumas práticas
institucionais e sociais, sendo o modelo jurisdicional um exemplo disso. No entanto, se por
vezes é benéfico e mesmo necessário a manutenção da tradição, a crise que assola o Judiciário
aponta o ocaso do paradigma moderno para a resolução de conflitos, sendo urgente sua
revisão para que possa desempenhar devidamente sua função.
2
Em relação à questão terminológica, a doutrina que versa sobre esse momento histórico é variante. Bauman
(1998, p.30), que prefere usar a nomenclatura “pós-modernidade” para tratar do “tempo em que vivemos agora,
na nossa parte do mundo”, destaca que Anthony Giddens prefere valer-se do termo “modernidade tardia”,
enquanto Ulrich Beck de “modernidade reflexiva” e Georges Balandier de “supermodernidade”. Para os fins
desse trabalho, todos os termos serão utilizados como sinônimos. Sobre a fluidez do conceito de pósmodernidade, por todos, Charles Lemert (2000). Em relação à demarcação desse período, não é possível precisar
com rigor em que momento se iniciou, sendo possível defender que é um movimento próprio do século XX em
desfavor dos paradigmas modernos.
120
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I121
2 A crise da jurisdição e a emergência dos meios alternativos de resolução de conflito
É corrente a constatação de que o Poder Judiciário passa por uma crise. Os
jurisdicionados, de um modo geral, inclusive desacreditam a função jurisdicional, pensando,
por vezes, que essa atividade poderia ser descartável (FARIA, 1995, p.7). No entanto, não
parece prudente sustentar essa ideia, sendo mais condizente com um Estado Democrático de
Direito, como se propõe o Brasil, que se intente otimizar a resolução de conflitos e a busca
por justiça com a manutenção da função jurisdicional em outros termos.
Uma análise histórica do Poder Judiciário, ainda que sumária, pode dar pistas de
como se chegou ao atual estado da arte. A noção de Poder Judiciário nos moldes que temos
hoje remonta ao início do século XIX. As características desse poder, baseadas na tripartição
do poder de Montesquieu e no modelo de Estado Liberal proposto por John Locke,
assentavam-se na ideia de um Estado soberano e absenteísta, voltado a garantir as liberdades
individuais. Assim, partindo da concepção de que todos seriam iguais perante a lei, expressão
da igualdade meramente formal da época moderna, a função do Estado era preservar a
liberdade de cada cidadão (BARBOSA, 2006). Nesse contexto, é o paradigma modernonormativista que ganha destaque:
O paradigma jurídico prevalecente entre nós, como é sabido, tem uma matriz
“hobbesiana”, na medida em que, ao instituir a lei como uma técnica disciplinar
exclusiva das relações sociais, concebe o direito como um instrumento de cessação
da guerra subjacente ao “Estado da natureza” e de afirmação da paz civil típica do
“Estado de Direito”, de feição liberal-clássica. O que importa, aqui, não é a
cooperação, mas a proteção, o reconhecimento e a institucionalização da liberdade
negativa, por meio de normas com caráter geral e abstrato editadas pelo Estado com
base num modelo técnico-racional. Entre os corolários deste axioma destacam-se os
princípios da legalidade, especialmente no campo penal, fiscal e administrativo, e do
primado da lei, no âmbito do poder, da economia e da política. Nesse sentido, o
Estado é a fonte central de todo direito. (FARIA, 1995, p.27-28)
No entanto, no pós-guerra, o modelo liberal de Estado não era mais suficiente para
garantir as necessidades do homem, inaugurando-se o modelo social. Nessa nova roupagem, o
Estado é colocado na posição de não só defender os administrados contra as investidas do
poder público, mas também de garantir certos direitos e garantias essenciais, com a
emergência dos direitos sociais. Assim, conforme preceitua Barbosa (2006, p.2) em atenção a
terminologia de Max Weber, “o Estado Moderno passou de uma
Estado de Direito Liberal – para uma
ordenadora – o
reguladora – e Estado de Direito Social.”
Em análise da realidade brasileira, mutatis mutandis, com o advento da Constituição
de 1988 também foi inaugurado um modelo de Estado Social, voltado a garantir os direitos
121
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I122
fundamentais. Mesmo sendo largamente admitido pela doutrina e pela jurisprudência a força
normativa da constituição, (BARROSO, 2008; SOUZA NETO, 2012; HESSE, 1991) os
direitos fundamentais não tem sido garantidos satisfatoriamente pelas políticas públicas, pelo
que, cada vez mais, o Poder Judiciário é acionado para garanti-los. São comuns e em grande
número, por exemplo, ações tendentes a assegurar o direito fundamental à saúde.
Não bastasse a incapacidade de assegurar os direitos fundamentais, outros fatores
confluem para o aumento exponencial das demandas no judiciário e a sua não resolução, a
exemplo da burocratização do procedimento, que atrasa a prestação jurisdicional, gerando o
descrédito do cidadão quanto à efetividade do sistema de normas que tutela sua conduta, bem
como a complexidade das relações atuais. Por tudo isso, percebe-se que o Judiciário passa por
uma crise, precisando se reformular.
As duas crises mais notórias, segundo Faria (1995, p.11), seriam a de efetividade e de
identidade. A primeira relaciona-se à falta de eficácia desse poder, haja vista que mesmo
diante da maior procura ainda não consegue a jurisdição estatal oferecer respostas adequadas
em parâmetros quantitativos e qualitativos.
Segundo dados do relatório Justiça em Números do CNJ,3 considerando a Justiça
Estadual, no ano de 2011, a popul
buscou mais o Poder
anteriores. Enquanto o total de processos ingressados cresceu 7%, a
cresceu menos de 1% no
do que nos anos
brasileira
ano. No entanto, no decorrer de 2011, tramitaram na
Estadual cerca de 70
de processos, 2,2% a mais que no ano anterior. Desse volume
processual, 73% (51,7
)
se encontravam pendentes desde o
o que demonstra que a maior dificuldade do Poder
nos Estados
do ano anterior,
na liquida
de seu estoque. O aumento da demanda e a dificuldade do Judiciário de encerrar processos
demonstra que, apesar da maior conscientização da população acerca de seus direitos, ainda o
Judiciário não está preparado para responder de modo adequado.
A crise de identidade, a seu turno, pode ser verificada através de três problemas,
segundo Faria (1995, p.13): atraso da legislação, formação individualista e formal do
magistrado e necessidade de tomar decisões políticas. O descompasso da legislação com a
realidade é uma questão que dificulta a prolação de decisões ótimas. É preciso, para reverter
essa situação, que se modifique a cultura do magistrado para que, deixando de ser um juiz
3
Disponível em <http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/eficiencia-modernizacao-e-transparencia/pj-justicaem-numeros/relatorios>. Acesso em 1º de dezembro de 2012.
122
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I123
“boca de lei”,4 realize uma hermenêutica constitucional voltada a garantir os princípios que
identificam os valores do ordenamento, a exemplo da dignidade, da solidariedade, da
igualdade e da liberdade.
Essas crises de efetividade e de identidade são o reflexo da insuficiência para os dias
atuais do paradigma moderno-normativo do judiciário, o qual foi elaborado sob rubores
iluministas, com uma estrutura burocratizada, um procedimento complexo e formal e uma
interpretação normativo-legalista baseada no positivismo. Nesse sentido, esclarece Fabiana
Maria Spengler (2009, p.65):
[...] o Judiciário foi organizado para atuar dentro de determinados limites estruturais,
tecnológicos, pragmáticos e metodológico, muito aquém da complexidade conflitiva
que lhe ocorre. Consequentemente, em meio aos aspectos multifacetários que
marcam as relações sociais atuais, é preciso buscar estratégias consensuadas de
tratamento das demandas, não operando somente com a logica do terceiro estranha
às partes (juiz), mas buscando a instituição de outra cultura que trabalhe com a
concepção de fomento à reconstituição autonomizada do litígio.
Tal constatação indica a perspectiva de que outros mecanismos devem ser
conhecidos para alcançar a materialização da Justiça. Destaca-se, portanto, a mediação de
conflitos, sendo esta mais ágil e próxima da sociedade, na medida em que abre espaços para o
diálogo e para escuta, empodera o cidadão e transforma a concepção de conflito, encarando-o
de forma positiva.
3 A emergência da mediação como método alternativo de resolução conflitos: por um
modelo eficaz pautado no empoderamento e na dignidade da pessoa humana
O princípio da dignidade da pessoa humana, este em contínuo processo de
construção e desenvolvimento, merece um olhar atento do Direito que deve zelar pela sua
proteção e promoção, coibindo eventuais violações.
[...] a dignidade da pessoa humana implica uma obrigação geral de respeito pela
pessoa, traduzida num feixe de direitos e deveres correlativos, de natureza não
meramente instrumental, mas sim, relativos a um conjunto de bens indispensáveis ao
4
Sobre o juiz como mero aplicador da lei, José de Albuquerque Rocha (1995, p.103) assevera: “Como sabemos,
esse modo de entender o papel do juiz [construída em torno da superioridade do legislador e da lei, da qual é um
mero aplicador técnico, mentalidade contemporânea do Estado de direito legislativo da burguesia liberal do
século XIX, mas ainda dominante entre nós] se apóia no positivismo jurídico que, por ser, justamente, a doutrina
correspondente ao Estado legislativo da burguesia liberal do século XIX, reduz o direito à lei (expressão da
burguesia como classe única representada na Assembléia), a que atribui as qualidade de coerência, completude e
g
â
,
f
, g
,
z
‘
’,
através de silogismos, sem nenhuma potencialidade criativa, e contribuindo para a formação entre os juízes de
g
g
f
.”
123
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I124
“florescimento humano”, tudo a reforçar a – já afirmada – relação (íntima e em parte
indissociável, mas não exclusiva!) entre dignidade da pessoa humana e os direitos
humanos e fundamentais. (SARLET, 2011, p.569)
O respeito pela pessoa humana, ultimamente, vêm atingindo diversas searas,
inclusive o próprio judiciário. Exemplo disso é a demora na prestação jurisdicional refletindo
de maneira negativa nos cidadãos que não reconhecem que possuem um verdadeiro acesso à
Justiça.
Na tentativa de resolver tal problema a mediação surge como uma técnica de
resolução de conflitos apta a dar soluções ótimas, a contribuir para a solução da crise do
judiciário e a concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana de modo objetivo pelo
empoderamento5 da pessoa humana.
A mediação, seguindo a experiência do modelo estadunidense de Múltiplas Portas,
capitaneada por Frank Sander da Universidade de Harvard,6 e de teóricos de outros países
com prática e estudos mais desenvolvidos sobre a matéria,7 começou a despontar no Brasil na
última década,8 sendo já possível identificar a tentativa de autonomização da resolução dos
litígios por campanhas propugnadas pelo CNJ, por exemplo. Nesse contexto, cabe registrar
que o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 125, nomeando a mediação de
conflitos como um dos pilares no tratamento adequado dos mesmos, ao lado da conciliação.
Define-se a mediação, segundo Lilia Sales (2010, p.1) como:
Um mecanismo consensual de solução de conflitos por meio do qual uma terceira
pessoa imparcial – escolhida ou aceita pelas partes – age no sentido de encorajar e
facilitar a resolução de uma divergência. As pessoas envolvidas nesse conflito são as
responsáveis pela decisão que melhor as satisfaça. A mediação representa assim um
mecanismo de solução de conflitos pelas próprias partes, as quais, movidas pelo
diálogo, encontram uma alternativa ponderada, eficaz e satisfatória, sendo o
mediador a pessoa que auxilia na construção desse diálogo.
A sua prática incita mudanças positivas e fortalecedoras dos seres humanos,
empoderando-os, na medida em que estimula a interação entre estes por meio do diálogo, da
reflexão sobre a tolerância, do respeito ao próximo, promovendo uma cultura de inclusão e
pacificação social. O empoderamento da pessoa por meio da mediação de conflitos representa
5
A expressão empoderamento é a tradução do termo inglês empowerment. Empowerment, segundo o dicionário
Oxford (2010, online) define-se como: “1.authorize, license. 2.give power to; make able, empowerment a”
(1.autorizar, permitir. 2.dar poder a; tornar possível).
6
Professor da Escola de Direito de Haward desde 1959 e autor de vários livros de Negociação. Para mais
informações recomenda-se o acesso a: http://www.pon.harvard.edu/faculty/frank-sander/
7
Destaca-se autores como Lia Sampaio e Adolfo Braga Neto, com ênfase para a obra O que é mediação de
conflitos.
8
Sobre o histórico da mediação, por todos, recomenda-se a leitura do texto A evolução da mediação através
dos anos – aprimoramento das discussões conceituais (SALES, 2012).
124
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I125
um processo de inovação marcante e impactante para o alcance de uma sociedade mais livre,
justa e solidária.
A capacitação em mediação de conflitos e sua multiplicação, devido a suas
características, incluem, fortalecem e empoderam o ser humano de maneira a torná-lo
responsável e partícipe direto de uma transformação de si mesmo e do outro, por meio do
diálogo e da construção coletiva.
Para Paulo Freire (1992, p.64), empoderamento é uma transformação interna,
possibilitando pessoas ou instituições a realizarem mudanças que as fazem evoluir. Os
indivíduos deixam o pólo passivo e passam a ocupar o pólo ativo de suas vidas, fazendo com
que eles mesmos sejam autores da própria história, com poder de decisão e consciência sobre
seus atos.
A mediação de conflitos possibilita as partes a solução de seus conflitos por meio do
diálogo, alcançando a satisfação de ambas. Essa satisfação, geralmente acontece mesmo que
os envolvidos não cheguem a um acordo ao final da sessão. O discurso de insatisfação que
muitas das vezes se ouve dos litigantes que passam pelo processo judicial decorre de um
processo onde uma das partes ou um dos grupos não possui espaço de fala ou de participação
dificultando o sentimento de colaboração. O diálogo cooperativo inclui os interesses e valores
de todos e a decisão é participativa, sendo este o entendimento de Sales (2010, p.21).
No âmbito judicial, em que várias audiências têm que ser feitas por dia e em que
prazos são importantes, muitas vezes o cidadão não é ouvido, ficando insatisfeito com a
prestação jurisdicional. E ser cidadão é ter seus direitos respeitados, pois senão é assim não há
que se falar em cidadania. Corroborando com esse entendimento dispõe Luis Alberto Warat
(2001, . 156)
ê
“f
.S
nia em qualquer época significa fazer referência aos que
z,
”.
São verificadas, diariamente, ocorrências que demonstram os diversos atrasos
quanto à apreciação de questões que abarrotam a esfera judiciária, e que constituem grave
obstáculo ao acesso à justiça. Tais atrasos terminam por corroborar o discurso de que a Justiça
brasileira é falha, cara e incerta, fazendo com que o cidadão desacredite da instituição que
deveria garantir seus direitos, colaborando para uma prestação jurisdicional pouco eficiente,
distante da realidade social, que prega a litigiosidade e que possui pouca percepção sobre a
complexidade dos conflitos.
A cultura da litigiosidade tão arraigada na sociedade brasileira fortalece o sentimento
adversarial das partes no decorrer do litígio. A complexidade dos conflitos, por sua vez,
125
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I126
necessita com urgência de soluções adequadas às suas especificidades, facilitando sua
compreensão e propiciando uma resposta eficaz para o conflito em questão.
O respeito aos direitos do indivíduo impõe uma adequação do sistema jurídico para
assegurar a efetividade no gozo dos mesmos e novas soluções para os novos problemas
surgidos ao longo dos anos mostram-se necessárias. Como ressaltado pela Ministra Nancy
Andrigui (online, 2012):
Ouso dizer, salientando que é pensamento pessoal, que é preferível ao juiz não deter
o monopólio do ato de julgar a tê-lo e prestar um serviço jurisdicional ineficiente e
extemporâneo. Já é hora de democratizarmos a Justiça brasileira. Receio, e volto a
gizar que se trata de pensamento próprio, que a manutenção deste sistema ineficiente
de prestação jurisdicional pode ser instrumento de fracasso da Justiça, enquanto pilar
da democracia, porque ao invés de cumprir sua função de promover a paz social,
estará, a contrario sensu, inviabilizando a própria convivência social. Por que não
dizermos até ser possível que alguém conclua ser desnecessária a própria
instituição? Urge afastar a nossa formação romanista, baseada na convicção de que
só o juiz investido das funções jurisdicionais é detentor do poder de julgar.
O aparato estatal, sob esta perspectiva, deve oferecer meios alternativos com a
possibilidade de ampliação do acesso à Justiça, não somente por meio da busca ao Judiciário,
mas com a efetiva prestação de mecanismos adequados para resolução de conflitos de acordo
com suas especificidades, visando uma melhor prestação jurisdicional, que realmente exalte a
dignidade da pessoa humana.
Com a prática da mediação, uma das mais democráticas formas para a administração
e tentativa de resolução de conflitos, que passa a ser visto de forma positiva, a vontade do
indivíduo é considerada como elemento preponderante para o estabelecimento do diálogo,
partindo dele a predisposição para a resolução da controvérsia. Por ser a mediação mais célere
que o Judiciário, também ocorre a facilitação de um resultado eficaz para o litígio, já que a
demora na resolução de um conflito apenas desgasta e causa sofrimento as partes.
Vale salientar que a justiça pode se dar mesmo sem a ingerência direta do Poder
Judiciário, por meio do processo de autotutela ou autocomposição e quando necessário o
Poder Judiciário, pode ser um caminho esclarecedor e participativo da solução de conflitos.
Mediação e a dignidade da pessoa humana seguem, portanto, de mãos dadas, pois
impulsionam o indivíduo a se empoderar saindo em busca da resolução de suas controvérsias
sendo ele responsável por suas próprias decisões.
126
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I127
Inúmeros programas que utilizam a mediação como forma primária de resolução de
conflitos apresentaram respostas significativas, como é o caso do Projeto Mediação Policial9
desenvolvido em Fortaleza, no 30º Distrito Policial, no Bairro São Cristóvão. De acordo com
o Relatório de Atividades do Núcleo de Mediação Policial do 30º Distrito de Polícia Civil de
Fortaleza, a experiência realizou um total de 579 atendimentos, de modo que 72% deles foram
referentes a casos passíveis de mediação. Destes 417 conflitos passíveis, 61% recebeu algum
tipo de solução com influência da mediação de conflitos, ou seja, mais da metade dos casos
passíveis de mediação encaminhados ao núcleo obtiveram resposta positiva da mediação de
conflitos.
Por constatarem-se resultados que comprovam a eficácia da mediação é que a
Resolução 125 do CNJ instituiu a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de
interesses, tendente a assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados
à sua natureza e peculiaridade, como está disposto em seu artigo 1º.
A Resolução 125 ainda estabelece a criação de núcleos de mediação como iniciativa
para estimular o diálogo e possível acordo entre as partes, com funcionamento durante o
expediente forense, realização de audiências preliminares em ambos os ritos procedimentais e
por determinação do juiz.
Para que ocorra o tratamento adequado aos cidadãos no tocante ao mecanismo que
condiz com o tipo de conflito trazido, cursos teóricos e práticos estão sendo ministrados para
capacitação das pessoas que irão trabalhar com a mediação de conflitos. Isso corrobora a
afirmativa de que não se pretende substituir a função jurisdicional pela mediação, o que se
busca é uma melhor eficiência da práxis jurisdicional.
Considerações Finais
A percepção sobre a complexidade dos conflitos apontou para a necessidade de
estudos sobre caminhos que permitam soluções adequadas para a construção da paz e a
promoção e proteção da dignidade da pessoa humana. Sabe-se que o judiciário brasileiro é
voltado para a cultura do litígio, dificultando em muito a transformação da percepção do
conflito como algo positivo.
A possibilidade de enxergar o diálogo como uma ferramenta para a melhor resolução
do conflito, vem sendo incorporada a nossa esfera jurídica por meio da mediação de conflitos.
9
Documentos disponíveis na Universidade de Fortaleza. Relatório de atividades do núcleo de mediação
policial do 30º distrito de polícia civil de fortaleza. Fortaleza. 2011.
127
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I128
A mediação destaca-se como um meio alternativo de resolução de conflitos não
adversarial, em que o mediador – terceiro imparcial – auxilia as partes a elas próprias
encontrarem uma solução para o conflito que está sendo vivenciado, prevenindo, por meio da
comunicação e do diálogo, a instauração de novos conflitos. O diálogo é bastante valorizado
nesse processo, assim como as diferentes opiniões dos envolvidos, demonstrando que todos
são importantes no procedimento.
Desse modo, é possível vislumbrar a mediação como elemento transformador,
inclusivo, capaz de conscientizar o cidadão sobre sua responsabilidade como partícipe das
decisões que deverão reger sua vida.
Conclui-se ainda que a mediação, em um contexto de busca pela resolução pacífica
de conflitos, atua como mecanismo de inclusão social que fortalece o Poder Judiciário, não
tendo pretensão alguma de substituí-lo. Tal posição já é reconhecida pelo Conselho Nacional
de Justiça, que vem adotando práticas para o fortalecimento e disseminação da mediação
como forma consensual para uma boa administração dos conflitos. A mediação, portanto, atua
como um mecanismo com qual o cidadão poderá valer-se para a resolução de seus problemas,
aproximando-se, assim, do tão almejado acesso à justiça.
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130
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I131
A OBRIGATORIEDADE DA MEDIAÇÃO NO BRASIL
A MEDIAZZIONE OBBLIGATORIA IN BRASILE
Renata Christiana Vieira Maia •
Vivianne Pêgo de Oliveira Barbosa∗∗
RESUMO
O trabalho tem como objetivo analisar a aplicação da mediação como método alternativo de
resolução de conflitos. Devendo observar, para tanto, que apesar do Estado manter o
monopólio jurisdicional outros meios de resolução de litígios devem ser desenvolvidos, a fim
de permitir o acesso à justiça de forma mais eficiente. Além disso, há de ser fazer breves
considerações a respeito da mediação na Itália e Argentina, países estes em que tal instituto é
determinado por lei e representa um requisito de procedibilidade para as ações judiciais.
Entretanto, o foco é o estudo da possível aplicação da mediação obrigatória no Brasil, mas
sem deixar de considerar a realidade cultural e jurídica deste país. E, assim demonstrado,
deve-se fazer algumas ponderações sobre tal instituto, demonstrando os benefícios que ele
traz, como a resolução pacífica de conflitos. Mas, não obstante, há de se levantar algumas
críticas no que tange os atuais Projetos de Lei nº 94/02 e 8.046/10, que tramitam hoje no
Brasil, uma vez que este último prevê mediação incidental, o que significa que de qualquer
forma haverá a movimentação do aparato estatal.
PALAVRAS-CHAVE: conflito; mediação; acesso à justiça; Projeto de Lei; obrigatoriedade;
mediação incidental.
•
Professora assistente de Direito Processual da Universidade Federal de Ouro Preto- UFOP e Professora pósgraduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais por meio de TCT - Termo de Cooperação
Técnica. Mestre em Direito Comercial pela Faculdade Milton Campos. Doutoranda em Direito Processual Civil
na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Advogada. Currículo Lattes: HTTP://lattes.cnpq.br/
2724058355070343
** Aluna da graduação do curso de Direito na Universidade Federal de Ouro Preto - Minas Gerais, onde é
monitora da disciplina de Direito Processual Civil. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2698608781025064
131
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I132
RIASSUNTO: In questo testo si propone analizzare il ricorso alla mediazione come metodo
alternativo di risoluzione delle controversie. Deve osservare, quindi, che, nonostante lo Stato
di mantenere il monopolio giurisdizionale ad altri mezzi di risoluzione delle controversie
dovrebbero essere sviluppate in modo da consentire l'accesso alla giustizia in modo più
efficiente. Inoltre, essa rende brevi osservazioni sulla mediazione in Italia e Argentina, paesi
deve questo istituto è determinato dalla legge ed è un requisito per cause procedibilità della
domanda. Tuttavia, l'attenzione di questo studio rivolge cerca della possibile applicazione
della mediazione obbligatoria in Brasile, ma tenendo conto della cultura e del diritto in questo
paese. E appena dimostrato, bisogna fare alcune considerazioni in merito a questo istituto, a
dimostrare dei benefici che offre, come la risoluzione pacifica dei conflitti. Ma, tuttavia, non
di sollevare alcune critiche quante ai progetti di legge nº 94/02 e 8.046/10, che tramitono oggi
in Brasile per la Camera, in quanto quest'ultimo prevede la mediazione incidentale.
PAROLE CHIAVE: Conflitto; mediazione;
accesso alla giustizia; progetto di legge;
obbligatorietà; mediazione incidentale.
INTRODUÇÃO
A solução de conflitos na sociedade é um tema discutido há séculos, e devido aos estudos e
análises realizados nesta área, entende-se, hoje, que apesar de o Estado possuir o monopólio
da jurisdição, a via judicial não deve ser apresentada como a única forma para a resolução de
litígios. Pois, nada adianta a jurisdição ser um monopólio estatal se este não tem condições de
garantir o adequado e efetivo acesso à justiça, devendo, para tanto, incentivar outros caminhos
para se alcançar a composição das partes conflitantes e a consequente pacificação social.
Este trabalho, portanto, tratará da mediação como métodos alternativos de resolução de
conflitos, sendo entendida como um meio alternativo em que as partes envolvidas em um
conflito podem, em qualquer momento, convocar um terceiro imparcial e neutro para auxiliálas na resolução daquele, sem a necessidade, portanto, da intervenção judicial. Podendo dizer,
com isso, que a mediação surgiu como meio adequado para garantir o acesso justo à justiça,
132
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I133
uma vez que por vezes a decisão encontrada pelas partes na mediação "podem ser superiores a
uma decisão judicial proferida por um órgão do Poder Judiciário." (ANDREWS, 2009, p.
255).
No entanto, apesar de parecer uma boa ideia a adoção da mediação, ainda há muito
preconceito, principalmente, por parte da sociedade, que deposita grande confiança no Poder
Judiciário e acredita que a única maneira de alcançar a segurança jurídica é por meio da
sentença judicial. Por isso, hoje, a principal forma de resolução de conflitos é a via judicial,
em que a sentença prolatada pelo magistrado substitui a vontade das partes, mesmo que isso
não signifique uma prestação em tempo hábil.
E por esta razão, dentre outras, que alguns países, como a Itália e a Argentina, adotaram, em
2010 e 1995, respectivamente, a mediação obrigatória, fazendo com que esta deixasse de ser
apenas uma opção para as partes e começasse a ser um requisito de procedibilidade para a
demanda judicial. Ocorre que esta obrigatoriedade de um meio alternativo de resolução de
litígios levanta inúmeras discussões, a começar pela possível perda do monopólio
jurisdicional do Estado e o ataque ao princípio constitucional de acesso à justiça.
O objetivo central deste trabalho será justamente analisar a possibilidade de aplicação da
mediação obrigatória no Brasil, com base nos atuais projetos de lei, Projeto de Lei Nº. 94/02 e
Projeto de Lei Nº. 8.046/10. E tentar demonstrar que a aplicação destes meios alternativos não
ameaça o monopólio jurisdicional, ao contrário, facilita e amplia as possibilidades de acesso à
justiça. Devendo, dentro da realidade brasileira, que o autor, ao procurar o Judiciário,
demonstre que houve tentativas de acordo, mesmo que não tenha havido um procedimento de
mediação extrajudicial ou judicial. Pois, assim, o Estado poderá atender e direcionar suas
forças para os conflitos em que a simples comunicação entre as partes é incapaz de dar fim
àqueles.
DESENVOLVIMENTO
1 A mediação como método alternativo de resolução conflitos
As formas alternativas de resolução de conflitos devem, para uma melhor compreensão,
serem analisadas desde o conceito de Jurisdição, que, segundo Giuseppe Chiovenda, significa:
133
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I134
[...] função do estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por
meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares
ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no
torná-la, praticamente, efetiva. (CHIOVENDA, 2000, p.8)
Assim, o Estado possuindo o monopólio da Jurisdição tem o “dever” de demonstrar à
sociedade quais são os seus direitos a fim de que ela, por si só, busque-os. E quando ocorrem
conflitos no bojo da sociedade e esta não consegue resolvê-los sozinha, o Estado deve intervir
a fim de que haja a composição entre as partes e consequente pacificação social.
Entretanto, a Jurisdição nem sempre foi monopólio estatal, tanto não era que, nos primórdios,
os conflitos surgidos eram resolvidos entre os próprios interessados e só depois é que
surgiram os terceiros imparciais, que eram escolhidos entre aqueles em que os litigantes
confiavam, para dirimir o conflito. Como bem observado por Ada Pellegrini Grinover (2008,
p. 22), “é certo que, durante um longo período, a heterocomposição e a autocomposição foram
considerados instrumentos próprios das sociedades primitivas e tribais, enquanto o ‘processo’
jurisdicional representava insuperável conquista da civilização.”.
Deste modo, há séculos a solução de conflitos vem sendo analisada e desenvolvida o que
culminou no entendimento de que “a jurisdição, apesar de ser considerada monopólio do
Estado, não pode ser considerada monopólio do Poder Judiciário ou a única forma de se
resolverem conflitos” (RODRIGUES JÚNIOR, 2007, p. 26). Isso ensejou na consequente
adoção do termo “acesso à justiça”, que, segundo o entendimento de Chagas Lima Filho:
[...] não se pode conceber o entendimento daqueles que insistem em aceitar o acesso
à justiça como simples acesso ao Judiciário, pois em que pese o descomunal volume
de processo em andamento em todas as instâncias judiciárias, o que, aliás,
demonstra a ausência de uma efetiva prestação jurisdicional, esse fato, por outra
lado, revela também a falta de opção do cidadão ou o desprezo pelas vias
extrajudiciais, e mais que isso, a ineficácia do sistema em vigor que não consegue
entregar, em termo e condições adequadas, a prestação jurisdicional que o Estado se
obrigou, na medida em que assumiu, quase que monopolisticamente, o encargo de
distribuir a justiça, que hoje está reduzida ao ingresso em juízo ou a uma decisão
depois das partes percorrerem um verdadeiro calvário, e ainda assim, de mera e
autônoma aplicação de normas estatais, nem sempre as mais legítimas, sem
nenhuma ou quase nenhuma, preocupação com os destino daqueles que nele
confiaram muitas vezes sua própria vida.(LIMA FILHO, 2003, p. 294)
Sabe-se, ainda, que tal expressão, acesso à justiça, é de difícil compreensão e, segundo o
entendimento de Mauro Cappelletti e Bryan Garth (1998, p.8), apresenta “duas finalidades
básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos
e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado que, primeiro deve ser realmente
acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente
justos.”.
134
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I135
No entanto, o Poder Judiciário não está conseguindo cumprir de forma efetiva a garantia
Constitucional, pois além dos problemas já conhecidos como a morosidade, lentidão e
sobrecarga do aparato estatal, a sociedade é movida, muitas vezes, pelo sentimento de que o
acesso à justiça é um dever do Estado, e não um direito, fazendo com que um número maior
de pessoas procure o judiciário para resolverem seus conflitos, sem considerar se essa é a
melhor alternativa.
É justamente neste contexto que torna mais forte a ideia da aplicação de meios alternativos de
solução de conflitos, uma vez que estes significam o “acesso à manifestação e à orientação
jurídica e a todos os meios alternativos de composição de conflitos.” (MARINONI, 2000, p.
28). Isso se deve, sobretudo, pela crise da justiça, que não é exclusividade do Brasil, tanto não
é que os países que estão enfrentando crises em seus sistemas judiciários vêm estimulando o
uso dos meios alternativos de resolução de conflitos. E, por vezes, como ocorreu na Itália e
Argentina, onde foi estabelecida a mediação obrigatória, as partes só terão acesso ao
Judiciário se demonstrarem que buscaram a mediação anteriormente e que esta foi frustrada.
E assim, Ada Pelegrini Grinover (2008, p. 23) reconhece que:
Não há dúvida de que o renascer das vias conciliativas é devido, em grande parte, à
crise da Justiça. É sabido que ao extraordinário progresso científico do Direito
Processual não correspondeu o aperfeiçoamento do aparelho judiciário e da
administração da Justiça.
Mas, acesso à justiça se deve entender não só a prestação jurisdicional efetivamente realizada
pelo Estado, mas também toda e qualquer forma pacífica de resolução de conflito, pois, como
bem observa Mauro Cappelletti (1994, p.83) e Adriana Goulart de Sena (1994, p.87), "é de
senso comum que uma das finalidades do Poder Judiciário é a pacificação social, portanto,
incumbe-lhe utilizar mecanismos e técnicas que aproximem o cidadão da verdadeira justiça. E
muitas vezes a verdadeira justiça só será alcançada se aquela demanda for solucionada pela
conciliação.".
Assim, se tem a ADR (Alternative Dispute Resolutions) - do direito inglês, RAD (Resolución
Alternativa de Disputas) – direito espanhol e MARC (Métodos Alternativos de Resolução de
Conflitos) – conhecido no direito brasileiro, que tentam garantir o acesso à justiça, uma vez
que tais métodos alternativos de resolução de conflitos "podem ser superiores a uma decisão
judicial proferida por um órgão do Poder Judiciário.". (ANDREWS, 2009, p. 255)
135
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I136
Na mediação, como meio alternativo de resolução de conflitos, as partes envolvidas em um
conflito podem, em qualquer momento, convocar um terceiro imparcial e neutro para auxilialos na resolução daquele. E por ser um processo informal, qualquer uma das partes pode se
retirar do procedimento no tempo que achar oportuno, salvo, é claro, quando há previsão
expressa em contrato de que o litígio deve ser resolvido por meio da mediação.
Quando, devido à natureza do impasse, quer seja por suas características ou pelo
nível de envolvimento emocional das partes, fica bloqueada a negociação, que
assim, na prática, permanece inibida ou impedida de realizar-se, surge, em primeiro
lugar, a mediação como fórmula não adversarial de solução de conflitos. Nela, um
terceiro, imparcial, auxilia as partes a chegarem, elas próprias, a um acordo entre si,
através de um processo estruturado. As partes, assim auxiliadas, são as autoras das
decisões e o mediador apenas as aproxima e faz com que possam melhor
compreender a circunstâncias do problema existente e a aliviar-se das pressões
irracionais e do nível emocional elevado, que lhes embaraça a visão realista do
conflito, impossibilitando uma análise equilibrada e afastando a possibilidade de
acordo. (GARCEZ, 2003, p. 35)
A mediação, portanto, é o meio mais que eficiente para promover o acesso à justiça. Por isso,
o presente estudo terá por finalidade a análise desta aplicação obrigatória da mediação nos
procedimentos judiciários, principalmente, no que diz respeito ao princípio do acesso à
justiça e do dever do estado em prestar a jurisdição, demonstrando a ponderação destes a
partir da Teoria da Ponderação dos Princípios apresentada por Robert Alexy.
2 Da mediação obrigatória no direito comparado: Itália e Argentina
Hoje, a principal forma de resolução de conflitos é a via judicial, em que a sentença prolatada
pelo magistrado substitui a vontade das partes. E isso ocorre, principalmente, pelo fato de a
sociedade depositar grande confiança no Poder Judiciário e, não adentrando no fato da
onerosidade e morosidade processual, sabe-se que a grande parte da população acredita que
uma decisão tomada por um juiz gera mais segurança jurídica do que a proveniente de um
acordo consensual. Acontece que o Judiciário, embora não se encontre falido, já não tem
conseguido prestar a jurisdição em tempo hábil, e o tempo do processo, só prejudica as
relações e a parte que tem razão, beneficiando sempre a parte que não tem razão.
Recentemente, como experiência do que vem ocorrendo, chegou ao Centro de Mediação e
Cidadania de Ouro Preto/MG, que é um projeto de extensão vinculado a Universidade Federal
de Ouro Preto, uma senhora moradora de um local que é, assim como em tantos lugares neste
Brasil, desprovido do mínimo necessário. Mas em vista do trabalho ali realizado, a senhora
buscou o centro de mediação para resolver o seu problema, narrando o conflito que a mesma
136
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I137
vinha tendo com o seu vizinho, em decorrência do muro que este estava construindo na sua
propriedade. E, como ela, embora desprovida de maiores estudos, já tinha conhecimento dos
objetivos da mediação e para manter a política da boa vizinhança, preferiu resolver esta
questão por este meio alternativo.
Entretanto, os mediadores ao convocarem o vizinho invasor ficaram estupefatos, uma vez que
este, já na primeira reunião, narrou que não tinha interesse algum em compor ou mesmo
conversar com a senhora uma vez que, já existia outra ação na “justiça” da qual ele sabia que
estava errado, mas que como estava demorando a ser solucionada, ele preferia que o seu caso
fosse resolvido na “Justiça”. Porque, assim, como no outro caso, ele iria continuar a construir
o muro, e sabe lá quando ele iria ser compelido a desfazê-lo.
Tal atitude, ainda que de forma exemplificativa, nos faz questionar sobre a possibilidade de
no Brasil, a exemplo do que vem ocorrendo na Itália e Argentina, se estabelecer, ainda que
seja na fase inicial do processo, a obrigatoriedade da mediação. Pois, caso tal não venha a
ocorrer, em face da cultura da sentença em contraposição a cultura da pacificação então
arraigada, será de pouco ou nada valia a institucionalização da mediação tal como previsto no
Projeto de Lei 8.046, e o Projeto de Lei 94/20021.
E para que as esperanças de Kazuo Watanabe (2005, p. 690) possam se concretizar, quanto à
substituição paulatina da cultura da sentença pela pacificação, faz necessário que além da
inovação legislativa, acreditar ser necessária a realização da mediação obrigatória. Pois, do
contrário, aqueles que sempre ganharam com o tempo do processo, serão o principal
empecilho para a mudança de paradigma. Para tanto, é necessário voltar os olhos para os
ordenamentos que já instituíram a mediação obrigatória, que é o que se faz agora.
2.1 Na Itália
Na Itália, a Diretiva da Comunidade Europeia de nº 2008/52/CE, por meio do Decreto
Legislativo 28 de 04 de março de 2010, veio disciplinar a mediação. Por meio do referido
decreto foi criado um procedimento que tem por função garantir o acesso à justiça, que acordo
com Massimo Fabiani (2010) surgiu como uma tentativa de incentivar a cultura da mediação.
Mas como o próprio adverte, “não se pode também refutar que uma cultura não se forma de
1
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=330610
137
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I138
hoje para amanhã (ou do dia para a noite), e que sem o instrumento não será fácil difundir
uma cultura que agora se encontra numa base mais adequada.”.
A mediação na Itália, assim como no Brasil, se dá quando se trata de um direito disponível, no
qual deve existir, como adverte Massimo (2010), pelo menos uma base voluntaria, pois o
interesse que move a mediação não é simplesmente obter uma reparação do direito lesado, e
sim, o de receber algo que seja do interesse do litigante e que pode até ser muito diverso do
direito em conflito. Pois, para ele “a mediação e processo se colocam sobre planos
completamente diversos.” (MASSIMO, 2010). Principalmente, quando se parte do
pressuposto, que na mediação, pela cultura não adversarial, não há vencidos e perdedores,
mas sempre vencedores.
Entretanto, na Itália a mediação, em alguns casos,2 é obrigatória, sendo condição de
procedibilidade da demanda judicial (art. 5º Dec 28/2010), onde esta deve ser concluída num
prazo não superior a quatro meses (art. 6º Dec 28/2010). E a justificativa para a adoção da
mediação obrigatória foi o de reduzir o congestionamento no Tribunal, com vistas a reduzir os
casos e o tempo médio destes, que atualmente é de cerca de nove anos. Para tanto, de acordo
com o decreto legislativo italiano, a mediação deve ser promovida e incentivada com a
promessa de ser uma alternativa praticável, a baixo custo e mais rápida, ainda que por meio de
uma obrigatoriedade.
Nesse sentido, ao tratar do ordenamento jurídico Italiano, Flávia Pereira Hill descreve que:
Ainda, hoje a possibilidade de solução consensual de conflitos na Itália causa
surpresa e, também, certa insegurança na sociedade italiana em geral, tamanhas as
credibilidade e a confiança depositadas em seus juízes e malgrado as reiteradas
ressalvas à sua atuação, especialmente quanto à duração dos processos judiciais
naquele país. O fato é que a sociedade italiana confia profundamente nas soluções
dadas por seus magistrados, quer elas tardem ou não. (HILL, 2010, p. 295)
Entretanto, tal obrigatoriedade vem sendo objeto de discussão perante a Corte de Justiça da
União Europeia, pois, embora a Diretiva 2008/52/CE tenha por objetivo, como visto acima, a
de promover o estímulo à composição amigável, incentivando os estados membros a adotarem
a mediação a fim de garantir uma equilibrada relação entre esta e o procedimento judiciário,
não exigiu, expressamente, que a mediação fosse obrigatória. Apenas e tão somente dispôs no
2
De acordo com Andrea Proto Pisani (2010, 232), tem-se que a “conciliação-mediação obrigatória por força de
lei (art. 5º, parágrafo 1º) relativa a todas as controvérsias em matéria de condomínio, direitos reais, divisão,
sucessão hereditária, direito de família, locação, comodato, locação, ressarcimento de danos derivado de
circução de veículso e barcos (também sem motores), de responsabilidade medica e da difamação por meio de
publicação em qualquer outro meio de publicidade, contratos assegurativos, bancários e financeiros.” Onde a
mediação constiuti-se como requisito de procedibilidade da demanda judicial.
138
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I139
artigo 5º, inciso 2º que: “a presente diretiva não afeta a legislação nacional que preveja
recurso obrigatório à mediação ou o sujeite a incentivos ou sanções, quer antes, quer depois
do início do processo judicial, desde que tal legislação não impeça as partes de exercerem o
seu direito de acesso ao sistema judicial.” (grifos nossos).
Diante, portanto, desta redação, já foram enviados, por partes dos Juizes de Paz de Mercato
San Severino de Salerno, de Cantazaro, de Parma, à Corte de Justiça da União Européia3, até
novembro de 2011 foram solicitados nove4, pedidos de esclarecimentos, os quais denunciam a
ilegitimidade da mediação-conciliação obrigatória e expressam dúvidas sobre a mediação
obrigatória prevista na legislação italiana, uma vez que o direito à tutela jurisdicional efetiva é
garantida pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, que se tornou obrigatório
com o Tratado de Lisboa.
O fato é que, não obstante a discussão acerca da mediação como condição de procedibilidade,
se observa, pelo Decreto Legislativo italiano, que sua intenção foi de promover a mediação
com incentivos tais como, a redução ou mesmo isenção de despesas, além da aplicação de
multa, astreinte, no caso em que o acordo em sendo firmado, não ser cumprido.
Na Itália, o Decreto Legislativo que disciplina este instituto determina-o obrigatório como
uma condição de procedibilidade do processo para as matérias que tratem de: condomínio;
direitos reais; divisão; sucessões hereditárias; acordos de família; locações; comodato;
arrendamento de empresas; ressarcimento de dano decorrente da circulação de veículos
automotores e barcos; responsabilidade médica; difamação por meio de imprensa escrita ou
outro meio de divulgação; contratos de seguro, bancário e financeiros (ITÁLIA, art. 5º, Dec.
28/2010).
Além disso, o advogado é obrigado a demonstrar ao seu cliente a possibilidade de mediação,
sob pena de anulação do contrato entre o advogado e a parte autora. Flávia Pereira Hill,
3
A Corte de Justiça Europeia, por força do artigo 234 Tratado que criou a Comunidade Europeia, é competente
para pronunciar sobre a prejudicialidade acerca da interpretação dos tratados, assim como a validade. Tal
provocação é feita pelo órgão jurisdicional do Estado Membro, que pode provocar a Corte que deve pronunciarse sobre a questão que lhe foi posta para apreciação. A Corte, por sua vez, o decidirá sobre a matéria de direito, o
que significa que especifica qual é a situação em direito comunitário. O órgão jurisdicional nacional destinatário
da resposta deverá aplicar ao litígio sobre o qual deve pronunciar- se o direito tal como interpretado pela Corte,
sem o alterar nem o deturpar.
4
Informação
esta
que
pode
ser
chegada
nos
link
que
se
seguem:
http://www.diritto24.ilsole24ore.com/guidaAlDiritto/civile/civile/primiPiani/2011/09/ancora-un-giudicedubbioso-sulla-conformita-con-il-diritto-dell-unione-chiama-in-causa-lussemburgo.html
<acessado
em
14/11/2011> e também HTTP://www.diritto.it/docs/5087690-nuovo-rinvio-alla-corte-di-giustizia-dell-unioneeuropea-delle -norme-sulla-media-conciliazione-obbligatoria?source=1&tipo=news <acessado em 29/09/2011>
139
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I140
fazendo referência à Lotario Dittrich, entende ser bastante criticável tal postura, pois tal
situação pode ser usada de má-fé pela parte assistida, como forma de se eximir do
cumprimento de suas obrigações com o advogado contratado.
Tal solução, nas hipóteses de mediação obrigatória, consiste em uma forma de evitar
que a parte instaure a ação judicial prematuramente, inobservando a condição de
procedibilidade por desconhecimento, embora não sem críticas por parte da
doutrina. De fato, argumentam os juristas que a exigência de informação por escrito
denota censurável desconfiança em relação à classe dos advogados, além de o vício
da anulabilidade ser extremamente gravoso e irrazoável, podendo, inclusive, ser
utilizado por clientes de má fé como motivo para se eximir do pagamento dos
honorários advocatícios pelos serviços efetivamente prestados por seu representante,
especialmente na hipótese de este ter prestado todas as informações pertinentes,
embora não tenha adotado a forma escrita. (HILL, 2010, p. 306)
Assim, a justificativa para a adoção obrigatória de um meio alternativo de resolução de
conflito é a chamada crise do judiciário, pois a ideia central dessa determinação é a promessa
de que a mediação é uma alternativa mais rápida, barata e praticável, mesmo que seja de
forma obrigatória. E, sobre o tema, a discussão feita por BERNADINA DE PINHO e
PAUMGARTTEN é, dentre muitas, uma boa explicação inicial para tal fenômeno.
E cada vez mais se inova a legislação processual e mais controvérsias entre os
operadores jurídicos surgem, retardando o trâmite dos processos acumulados no
Tribunais, que associado à falta de recursos humanos e materiais, a cultura
judiciarista que resiste aos meios alternativos de resolução de conflitos, e a
ineficiência das instâncias administrativas em equacionar os conflitos que surgem
em nossa sociedade, fazendo com que eles acabem judicializados, criam o ambiente
propício para a crise que se avista, motivando um incremento na litigiosidade sem
que o Estado tenha condições para atendê-la, ou tentando fazê-lo, responde a
destempo ou de forma inconsistente. (BERNADINA DE PINHO;
PAUMGARTTEN, 2012, p. 6)
2.2 Na Argentina
Enquanto isso, a Argentina procurando dentro dos meios alternativos de resolução de litígios
a solução para desafogar o Judiciário, impulsionou o chamado RAD – Resolución Alternativa
de Disputas, a partir do Plano Nacional de Mediação, em 1991, que posteriormente ensejou,
em 10 de outubro de 1995, na Lei 24.573.
E, sem querer aprofundar no mérito desta Lei, cumpre destacar apenas que a mesma tornou
obrigatória a mediação nos processo judiciais, assim como sucedera na Itália, significando
que todas as ações a serem propostas no judiciário dependem de um procedimento de
mediação anterior, pois, caso contrário, o autor não terá sua pretensão acolhida pelo Estado.
140
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I141
Assim, “este procedimento promoverá a comunicação direta entre as partes para a solução
extrajudicial do conflito. As partes ficarão isentas do cumprimento deste trâmite se provarem
que antes do início da ação existiu a mediação perante mediadores registrados pelo Ministério
da Justiça.” (art. 1º da Lei 24.573/95).
Além disso, tal Lei estabeleceu, em seu art. 2º, as causas em que não caberia a mediação,
sendo elas as que envolvam o Estado ou qualquer de seus entes, falência, ações cautelares,
inventários, ações de estado e direito de família que não envolva qualquer direito patrimonial
e, nos processos de execução a mesma será facultativa para o exequente.
Observa-se a clara obrigatoriedade por um procedimento de mediação prévio ao processo
judicial quando a Lei 24.573/95, art. 10, prevê que caso não seja possível a mediação por
ausência de uma das partes, a parte ausente será punida com uma multa cujo valor
corresponde ao dobro dos honorários devidos ao mediador. Mas, a aplicação da sanção em
multa para as partes que não comparecerem na tentativa de mediação é criticável, pois faz
com que tal método perca seu caráter voluntário, pois "as características ínsitas à mediação
não se coadunam com a presença forçada das partes à sessão, sob pena de aplica de multa. Em
verdade, as partes devem comparecer perante o mediador com o objetivo precípuo de dialogar
e resolver as pendências da forma que melhor atenda aos interesses de ambas.".
E, comparecendo ambas as partes, será lavrada em ata o acordo e assinado pelo mediador e
pelas partes e, em caso de descumprimento do mesmo, poderá dar ensejo a uma execução de
sentença regulado pelo Código Procesal Civil y Comercial de La Nación. Depois de
transcorrido todo o processo de mediação e as partes não conseguirem entrar em um acordo,
somente agora o reclamante estará habilitado para acionar a via judicial correspondente,
acompanhado dos documentos da mediação.
Entretanto, a implantação da mediação neste país não foi tão fácil, pois apesar de ter
apresentado aspectos positivos, foi preciso, antes de tudo, enfrentar alguns obstáculos. Isso é
o que diz Ivan Aparecido Ruiz e Judith Aparecida de Souza Bedê:
[...] Podem ser apontados vários aspectos positivos da experiência, entre eles a
variada equipe de mediadores; o despertar da consciência nacional acerca da
existência de RAD; o alto valor pedagógico para juízes, partes, advogados e pessoal
da justiça; logrando-se um consenso que, inicialmente, não se esperava. Como dito,
evidenciaram-se, também, alguns obstáculos comuns à introdução da mediação
naquele país. Entre eles, a desinformação; o temor à troca de procedimento; e a falta
de pressupostos para compreender e levar adiante a experiência. (RUIZ; BEDÊ,
2008, p. 137)
141
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I142
Embora a experiência da Argentina, como qualquer experiência, tenha apresentado
dificuldades, pode-se dizer que, hoje, conforme as palavras de Gladys Stella Álvarez e
transcritas por RUIZ e BEDÊ, de forma geral a mesma teve sucesso:
Tal como manifestamos, o êxito de uma mediação não se mede somente pelo nível
do acordo [...], existem meios variáveis que devem ser levedas em conta para
afirmar se uma mediação teve ou não sucesso; na maioria dos casos, a circunstância
de haver permanecido em uma mediação em comunicação com a outra parte é um
princípio de êxito.5 (tradução nossa) (ÁLVAREZ apud RUIZ; BEDÊ, 2008, p.137)
Tem-se assim que a mediação, tanto na Itália como na Argentina, teve por intenção primeira a
de melhorar o acesso à justiça, por pretenderem evitar que os jurisdicionados como primeira
alternativa busquem apenas o processo judiciário para resolução de seus conflitos, enquanto
existem outros meios e até melhores de encontrarem a solução para o litígio. Não obstante,
resta claro que o intuito também fora o de diminuir a demora processual e desafogar o Poder
Judiciário. Assim, a “instituição da mediação como condição de procedibilidade teve como
escopo disseminar a prática da mediação na sociedade italiana, bem como reduzir a
sobrecarga de trabalho nos tribunais daquele país, prestigiando a economia processual
[...]”(HILL, 2010, p. 307).
No entanto, embora apresentem uma legislação expressa que dispõe sobre a obrigatoriedade
da mediação nos processos judiciais, tal questão levanta inúmeras discussões, a começar pela
possível perda do monopólio jurisdicional do Estado, bem como as garantias constitucionais
de acesso à justiça.
E, por isso, o estudo passará agora para a análise da possibilidade ou não da aplicação da
mediação de forma obrigatória no Brasil.
3 Da obrigatoriedade da mediação no Brasil
O Brasil, bem como os países em que há o estímulo à mediação, está com o Poder Judiciário
congestionado, devido aos inúmeros processos e a morosidade para resolução dos mesmos. E,
embora sem regulamentação expressa, tramita, hoje, no Congresso o Projeto de Lei Nº.
94/2002, “que institucionaliza e disciplina a mediação, como método de prevenção e solução
consensual de conflitos” e, também, Anteprojeto do Código de Processo Civil (Projeto de Lei
5
Texto original: “Tal como hemos manifestado, el êxito de una mediación no se mide solamente por el nível de
acuerdo [...], existen múltiples variables que deben ser tenidas em cuenta para afirmar si uma mediación há
tenido êxito o no; em La mayoría de los casos, La circunstancia de Haber permanecido em uma mediación
intercambiando siquiera palabras com la outra parte es um principio de éxito.”
142
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I143
nº. 8.046/2010) apresenta na Seção V, do Capítulo III, que trada dos auxiliares da justiça, a
figura dos mediadores ao lado dos conciliadores.
O Projeto de Lei da Câmara Nº 94/2002 prevê a possibilidade da mediação prévia judicial ou
extrajudicial e incidental. A primeira, mediação prévia, interrompe a prescrição, mas deverá
ser concluída no prazo máximo de 90 (noventa) dias, e poderá, o interessado, optar pela via
judicial, devendo para tanto preencher um formulário padronizado e subscrito por ele ou por
seu advogado. Observa-se, aqui, que por se tratar de processo judicial, mesmo que sendo
utilizado um método alternativo, a figura do advogado ou defensor público pode ser
indispensável, conforme se verifica no art. 30, §3º transcrito abaixo:
Art. 30. §3º A cientificação ao requerido conterá a recomendação de que deverá
comparecer à sessão acompanhado de advogado, quando a presença deste for
indispensável. Neste caso, não tendo o requerido constituído advogado, o mediador
solicitará à Defensoria Pública ou, na falta desta, à Ordem dos Advogados do Brasil
a designação de advogado dativo. Na impossibilidade de pronto atendimento à
solicitação, o mediador imediatamente remarcará a sessão, deixando os interessados
já cientificados da nova data e da indispensabilidade dos advogados.
Enquanto isso, a mediação extrajudicial, não detalhadamente regulamentada pode ser
utilizada à critério dos interessados e com mediador independente ou ligado à instituição
especializada em mediação. Mas, é interessante observar que, em casos cuja natureza do
conflito é muito complexa, o mediador judicial ou extrajudicial, pode, a seu critério ou a
pedido de qualquer uma das partes, prestar seus serviços em regime de co-mediação com
profissional especializado em outra área e que guarde afinidade com a natureza do conflito
(art. 33).
Além disso, tal Projeto, assim como feito na Itália e Argentina, específica os casos em que a
medição incidental não é obrigatória no processo de conhecimento (art. 34), a saber: ação de
interdição; quando for autora ou ré pessoa de direito público e a controvérsia versar sobre
direito indisponíveis; falência, recuperação judicial e insolvência civil; inventário e
arrolamento; ações de imissão de posse, reivindicatória e de usucapião de bem imóvel; ação
de retificação de registro público; quando o autor optar pelo procedimento do juizado especial
ou pela arbitragem; ação cautelar; quando na mediação prévia, realizada na forma
estabelecida por este Projeto, tiver ocorrido sem acordo nos cento e oitenta dias anteriores ao
ajuizamento da ação. Nos demais casos, a mediação será obrigatória nos processos de
conhecimento, devendo ocorrer no prazo máximo de 90 (noventa) dias, e caso não seja
alcançado o acordo, dar-se-á continuidade ao processo judicial.
143
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I144
No caso da mediação incidental, ao contrário da mediação prévia que interrompe apenas a
prescrição, a prescrição será interrompida, mas também induzirá a litispendência e produzirá
os demais efeitos previstos no art. 263 do Código de Processo Civil e, havendo pedido de
liminar ou interposição de recurso contra a decisão liminar a mediação não será prejudicada e
terá curso após a respectiva decisão. E, sendo frustrada a tentativa de acordo, o mediador
devolverá a petição inicial ao juiz da causa, acompanhada do termo, para que seja dado
prosseguimento ao processo. Mas, havendo acordo, o juiz da causa, após verificar o
preenchimento das formalidades legais, homologará o acordo por sentença.
Paralelamente, o Projeto de Lei nº. 8.046/2010 não trata da mediação extrajudicial, e sim, da
mediação judicial, pois a nossa cultura ainda é pelo litígio, assim, "diante desse quadro,
consideramos que seja mais fácil para o jurisdicionado ter o primeiro contato com a mediação
na sua modalidade judicial e, muitas vezes, incidental.". (DALLA, p. 15) Tem-se, assim, a
relevante função do Estado perante os métodos alternativos de resolução de conflito, pois,
como a sociedade ainda acredita que o único meio para solucioná-los é acionando o Poder
Judiciário, este tem o dever de abrir as oportunidades para que as pessoas que se encontrem
preparadas possam, sozinhas, resolvê-los por si só, coforme já posicionado por Daniela
Monteiro Gabbay (2011, p. 78):
Essa dinâmica relaciona-se com o papel pedagógico exercido pelo Judiciário, como
um condutor dos primeiros passos rumo à institucionalização dos meios alternativos
de solução de conflitos, mas que tende a se retirar quando as partes se revelam
"preparadas" para caminhar por conta própria, decidindo sobre a melhor forma de
solucionar seus conflitos. Nessa perspectiva, é como se o papel do Judiciário em
relação aos meios autocompositivos fosse instrumental, na medida em que se coloca
mais ou menos presente dependendo do momento e do nível de aceitação dos meios
alternativos de solução de conflitos pelas partes e pela sociedade.
Embora o papel fundamental do Juiz será sempre o tentar encontrar uma solução pacífica para
os casos, devendo "tentar, prioritariamente e a qualquer tempo, compor amigavelmente as
partes, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais;" (art.118 do
Projeto de Lei nº. 8.046/2010), a mediação judicial não exclui outras formas de conciliação e
mediação extrajudiciais vinculadas a órgãos institucionais ou realizadas por intermédio de
profissionais independentes (art. 153 Projeto de Lei nº. 8.046/2010).
Observa-se, assim, que há uma movimentação para que a mediação, como meio alternativo de
resolução de conflitos, seja aplicada de forma direta e eficaz, fazendo surgir um novo foco de
discussão, que é a possibilidade ou não da mediação ser instituída de forma obrigatória no
144
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I145
Processo Judiciário brasileiro. Mas da forma como posta nos Projetos mencionados não se
pode dizer que a mesma será obrigatória. Pois, será sempre uma faculdade, vez que o juiz
tentará, poderá, mas não exigirá, como forma de procedibilidade da demanda que as partes,
assim como ocorre hoje no Judiciário só tenha legitimidade para buscar o Judiciário depois de
frustrada a mediação.
Interessante observar sobre a aplicação da mediação de forma obrigatória no Brasil, onde a
discussão se inicia sobre os princípios constitucionais da inafastabilidade jurisdicional e do
acesso à justiça, que são garantidos pela Constituição da República Federativa do Brasil e
podem ser extraídos expressamente do inciso XXXV, art. 5º da CF/88, e, juntos, significam
que todo cidadão pode se valer do Poder Judiciário toda vez que tiver seu direito lesado ou
ameaçado de lesão, desde que obedecidas as regras estabelecidas pela legislação processual
para o exercício de tais direitos.
Sabe-se que, a partir do momento em que o Estado não pode delegar a prestação jurisdicional
não significa que ele deve acolher todas as pretensões judiciais queridas pela sociedade, pois o
mesmo não tem, hoje, condições para isso. Pois, caso contrário, devido a grande
numerosidade de processos judiciais, acabaria por impedir a efetiva prestação jurisdicional, o
que implicaria em uma violação direta e drástica ao princípio do acesso à justiça.
Assim, o que deve haver é a ponderação entre tais princípios constitucionais. E, como
ponderação de princípios, Robert Alexy entende que:
Quando dois princípios entram em conflito – como é o caso de um princípio está
proibindo alguma coisa, enquanto outro está permitindo – um princípio deve dar
lugar ao outro. Mas isso não significa declarar inválido o princípio retirado, e nem
que o princípio deslocado tenha que introduzir uma “cláusula” de exceção. Mas sim
o que acontece é que em certas circunstâncias um dos princípios precedem o outro.
Em outras circunstâncias, a questão da precedência pode ser resolvida de maneira
diversa. Isto é o que se quer dizer quando se afirma que nos casos concretos os
princípios válidos têm lugar além da dimensão de validade, na dimensão do peso.
(ALEXY, 1993, p. 89; tradução nossa)6
Conclui-se, dessa forma, que:
6
Cuando dos principios entran en colisión – tal como es el caso cuando según un principio algo está prohibindo
e, según otro principio, está permitido – uno de los principios tiene que ceder ante el otro. Pero, esto no significa
declarar inválido al principio desplazado ni que en ele principio desplazado haya que introducir una cláusula de
excepción. Más bien lo que sucede es que, bajo ciertas circunstancias uno de los principios precede al otro. Bajo
otras circunstancias, la cuestión de la precedencia puede ser solucionada de manera inversa. Esto es lo que se
quiera decir cuando se afirma que en los casos concretos los principios válidos – tiene lugar más allá de la
dimensión de la validez, en la dimensión del peso. (ALEXY, 1993, p. 89)
145
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I146
O que deve ser esclarecido é que o fato de um jurisdicionado solicitar a prestação
estatal não significa que o Poder Judiciário deva sempre e necessariamente, ofertar
uma resposta de índole impositiva, limitando-se a aplicar a lei ao caso concreto.
Pode ser que o juiz entende que aquelas partes precisem ser submetidas a uma
instância conciliatória, pacificadora, antes de uma decisão técnica. (BERNADINA
DE PINHO; PAUMGARTTEN, 2012, p. 26)
Pois, embora o acesso à justiça configure como uma garantia constitucional, a mesma deve
ser ofertada de forma eficaz, nada adiantando ser prestada de forma incondicionada e não
apresentar nenhuma eficiência. (MANCUSO, 2009, p. 58). Dessa forma, entender que o
Poder Judiciário deve sempre acolher as pretensões da sociedade sem haver a ponderação se é
necessária ou não a sua atuação, é, ao mesmo tempo impedir o adequado e efetivo acesso à
justiça.
Observa-se, que em momento algum se vislumbra a perda do monopólio da jurisdição pelo
Estado, pois os métodos alternativos de resolução de conflitos devem ser entendidos como um
“caminho” para a pacificação social, e não uma ameaça ao monopólio estatal. Neste sentido, a
Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Fátima Nancy Andrighi, ao demonstrar que muitos
operadores de direito não estão preocupados com a ótica social, e sim, com a perda de custos
que teriam se as pessoas optassem pelo caminho da mediação, e não, da jurisdição
burocrática, defende que é “preferível ao juiz não deter o monopólio do ato de julgar a tê-lo e
prestar um serviço jurisdicional ineficiente e extemporâneo” (ANDRIGHI, 2003, p.5).
Propondo, ainda, que:
Já é hora de democratizarmos a Justiça brasileira. Receio, e volto a gizar que se trata
de pensamento próprio, que a manutenção deste sistema ineficiente de prestação
jurisdicional pode ser instrumento de fracasso da Justiça, enquanto pilar da
democracia, porque ao invés de cumprir sua função de promover a paz social, estará,
a contrario sensu, inviabilizando a própria convivência social. (ANDRIGHI, 2003,
p. 5)
Comungando do mesmo entendimento, o também Ministro do Superior Tribunal de Justiça
José Delgado que, observando os fundamentos essenciais da Constituição e da essência do
Estado Democrático de Direito reconhece que o compromisso do Estado é o de:
[...] solucionar, de modo pacífico, tanto na ordem interna como na internacional, as
controvérsias de qualquer origem, independentemente de onde elas surjam. Isso é
princípio de natureza constitucional a validar a existência, a eficácia e a efetividade
da mediação e da arbitragem como formas alternativas de solução de conflitos, sem
que essa missão seja de responsabilidade exclusiva do Poder Judiciário. (2002, p.
12-13)
146
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I147
No entanto, apesar das análises legislativas e dos princípios constitucionais, o grande desafio
para a adequada adoção da mediação no Brasil é educar a população. No mesmo sentido,
Walsir Edson Rodrigues Júnior (2006, p. 161) justifica que, “prova disso, é que a mediação
tem sido adotada, com grande sucesso, em vários países do mundo. Entretanto, para que o
Brasil não seja diferente, é necessário, antes de tudo, difundir a ideia de seu valor a todos os
cidadãos, em âmbito nacional, principalmente, aos operadores do Direito.”.
Assim, o se verifica hoje, é que a sociedade, devido a relativa facilidade de ter sua causa
acolhida pelo Estado, prefere procurar o Poder Judiciário ao tentar resolver pacifica e
diretamente seu conflito com a outra parte. Isso ocorre, principalmente, porque ela, a
sociedade, enxerga o acesso à justiça como um dever do Estado, e não, como um direito do
cidadão e acaba por atribuir toda resolução de litígio como responsabilidade deste.
Tal diferença entre dever e direito é de grande relevância, pois, a partir do momento em que a
sociedade vê que o Estado tem o dever de prestar a jurisdição, aquela acredita que,
independentemente de qualquer fator ou situação o este deve atuar e ingressar na esfera dos
particulares, aumentando, consideravelmente, o número de processos judiciários. Em
contrapartida, se a população entendesse o acesso à justiça como um direito seu, ela saberia
que como direito do cidadão ele deve ser acionada apenas quando for ameaçado e não haver a
possibilidade, dentro das próprias relações pessoais, de resolver tais pendências. Por isso,
Helena Nadal Sanchez (2010, p. 143) entende que “La mediación trata de proteger el abuso de
La via judicial, reservándola únicamente para aquellos casos em lós que sea necesaria. Com
su concurso, los seres humanos pueden ejercitar La autonomia de La voluntad y com Ella su
derecho a La dignidad y el ejercicio de La responsabilidad de uma forma mucho más
completa que mediante La via judicial.”7.
BERNADINA DE PINHO e PAUMGARTTEN justificam essa cultura à litigiosidade da
seguinte forma:
Tecnicamente é o que se chama explosão da litigiosidade, que tem muitas causas,
mas que nunca foi analisado de forma mais profunda. Esse movimento que
caracteriza as sociedade contemporâneas, e preocupa, é de causa complexa, mas sem
dúvidas também é fomentada pela abundante normatividade, que de fora isolada não
consegue prevenir a formação do conflito, resolvê-lo, e tampouco serve para
dissuadir os destinatários e não infringi-la. BERNADINA DE PINHO;
PAUMGARTTEN, 2012, p.08)
7
“A mediação trata de proteger o abuso à via judicial, reservando-a unicamente para os casos em que seja
necessária. Com o seu uso, os seres humanos podem exercitar a autonomia da vontade e com ela seu direito à
dignidade e o exercício da responsabilidade de uma forma muito mais completa que na via judicial.”
(SANCHEZ, 2010, p. 143; tradução nossa)
147
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I148
Além disso, deve ficar claro, que como meio alternativo que é a mediação não deve ser
aplicada sempre e em qualquer caso, pois, caso contrário, poderia haver a sobrecarga e
insatisfação de tal instituto.
A mediação deve ser um meio apenas para os litígios em que é possível sua resolução por
meio do diálogo entre as partes e em que o vínculo entre estas seja mais relevante do que o
conflito em si, devendo, portanto, ter como objetivo principal a preservação de tal relação,
como ocorre em um conflito entre vizinhos e parentes. Pois, “a mediação é um trabalho
artesanal, que deve ser empreendido com base no diálogo e na cooperação entre as partes, de
forma que por meio de tomadas de posição equânimes sejam preenchidas as lacunas
existentes em suas relações, atingindo-se um consenso, ou, ao menos, um compromisso
leal.”.(BERNADINA DE PINHO; DURÇO, 2012, p. 19)
É importante salientar que o Projeto de Lei 8.046/2010 não regulamenta a mediação
extrajudicial, e sim, a mediação judicial,
Assim, não resta dúvida de que a mediação é sim uma ótima, e por enquanto a única (sem
esquecer a arbitragem já institucionalizada por meio da Lei nº 9.307/96), alternativa clara e
recente para tentar diminuir a crise do Poder judiciário. Mas, entendê-la de forma obrigatória,
isso é, como um procedimento incidental, não nos parece o entendimento mais correto. Pois, a
mediação como incidente processual significa que o aparato estatal já foi acionado, quando,
na verdade, poderia ter sido evitado caso houvesse um mediação, ou outro método, mesmo
que informal.
Nesse sentido, Flávia Pereira Hill entende que:
Por fim, pontua-se, ainda, que tal previsão, quando menos, serviria apenas para
retardar a solução da controvérsia, colocando-se a mediação como uma fase prévia à
ação judicial. Isso porque a mediação depende inexoravelmente da vontade e da
disposição das partes para dela participar. Logo, se as partes não se mostram
interessadas em buscar uma solução consensual, muito provavelmente a instauração
da mediação, apenas por ser obrigatória, não restará frutífera. Com isso, a questão
será, do mesmo modo, submetida ao Poder Judiciário, embora com maior gasto de
tempo e recursos. (HILL, 2010, p. 308)
Por isso, nada melhor do que a necessidade de uma simples demonstração em juízo de que as
partes tentaram, por quaisquer meios, chegar em um acordo. E, depois de esgotadas todas os
métodos alternativos e pacíficos de resolução do litígio as mesmas não tenham conseguido dar
fim nele, aí sim, caberia a atuação do Estado. Não esquecendo, é claro, que caso o magistrado
148
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I149
vislumbre a possibilidade de um acordo por meio da mediação, ele terá o dever de encaminhar
as partes para tal procedimento, antes de dar o inicio formal ao processo judicial.
CONCLUSÃO
Entende-se, pelos estudos realizados, que a aplicação da mediação poderá contribuir,
consideravelmente, para diminuir os números de processos judiciais, permitindo, assim, que
os magistrados ocupem o seu tempo à dedicação de demandas que efetivamente necessitam de
uma apreciação judicial.
A mediação, como meio alternativo que é não representa uma ameaça ao monopólio da
Jurisdição, ao contrário, ela facilita e amplia as possibilidades de acesso à justiça. Dessa
maneira, entendemos que o que deve ser levado em consideração quando o autor procura o
Poder Judiciário é se já houve, anteriormente, tentativas de acordo. Ou seja, não é necessário
que tenha ocorrido o procedimento de mediação extrajudicial ou judicial.
[...] basta algum tipo de comunicação, como o envio de uma carta ou e-mail, uma
reunião entre advogados, um contato com o “call center” de uma empresa feita pelo
consumidor; enfim, qualquer providência tomada pelo futuro demandante no sentido
de demonstrar ao Juiz que o ajuizamento da ação não foi a sua primeira alternativa.
(BERNADINA DE PINHO; DURÇO, 2012, p.18)
Pois, se formos depender de procedimento de mediação incidental, não estaríamos diminuindo
o número de processos, tendo em vista que o Judiciário já foi acionado, e sim, apenas
deixando mais complexo a resolução do conflito, o que poderia até a aumentar a demora na
prestação jurisdicional. Além disso, a mediação para alcançar o seu objetivo de resolução
pacífica de conflitos, não deve ser aplicada de forma a submeter às partes, pois isso pode
causar uma pré-indisposição para o acordo.
Assim, os sujeitos envolvidos devem entender que a mediação é a maneira mais simples e
eficaz para darem fim ao conflito, pois os ideais e objetivos de ambas as partes serão levadas
em consideração, ao contrário do que aconteceria em uma sentença judicial, em que o
magistrado decide de forma racional qual é a melhor saída.
Mas, o principal desafio é mudar a cultura de que o único caminho para a resolução de um
conflito é o Poder Judiciário e, para isso, temos que deixar de acreditar que apenas uma
sentença dada pelo magistrado é capaz de pacificar e dar fim à um litígio. O acesso à justiça
garantido constitucionalmente a todos os nossos cidadão é, antes de tudo, um direito, e não
149
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I150
apenas um dever do Estado. Pois, este deve atender e direcionar suas forças para os conflitos
em que a simples comunicação entre as partes é incapaz de dar fim ao mesmo.
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151
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I152
MEDIAÇÃO AMBIENTAL: O ACESSO À JUSTIÇA PELO OLHAR DA
EXTRAJUDICIALIDADE
ENVIRONMENTAL MEDIATION: ACESS TO JUSTICE BY EXTRAJUDICIAL
LOOK
Luciana Monduzzi Figueiredo
SUMÁRIO: 1. Acesso à justiça e tutela coletiva. 2. O monopólio judicial na resolução dos conflitos: uma
necessária desconstrução. 3. A prevenção como mecanismo de efetivação do acesso à justiça. 4. Mediação
de conflitos: conceituação, objetivo, princípios e limites. 5. A mediação na resolução dos conflitos
socioambientais. 6. Considerações finais.
RESUMO
O estudo visa a demonstrar a viabilidade tutela extrajudicial como mecanismo de acesso à
justiça. Para tanto, mostra-se necessária uma releitura do próprio conceito de acesso à
justiça. Em uma visão simplista, a justiça seria monopólio da função judicial estatal, que,
sobrecarregada, morosa e tecnicamente deficiente, não consegue solucionar os litígios
satisfatoriamente. Agregado a esse fator, está o argumento de que o Judiciário, ao resolver
a controvérsia jurídica, muitas vezes não é capaz de compor as crises subjacentes, o que é
de fundamental importância com o bem ambiental, notadamente no aspecto sociológico e
ético. Demonstrou-se, assim, que a distribuição da justiça pode ser feita mediante
instrumentos judiciais e extrajudiciais, que devem ser escolhidos de acordo com as
peculiaridades do conflito. No processo de negociação extrajudicial, nem sempre a tutela
reparatória mediante o dever de indenizar será proposta (modelo ganha-perde), mas uma
harmonização entre os interesses em conflito (modelo ganha-ganha) sempre sob a
perspectiva da proteção do meio ambiente (bem maior). O foco é, portanto, o problema e
não as pessoas e as questões formais nele envolvidas. Com esse raciocínio, a mediação
ambiental revela-se um caminho eficaz, já que não objetiva apenas resolver a controvérsia
colocada, mas desenvolver uma nova relação contínua e duradoura das partes com o meio
ambiente, mediante a intermediação de um terceiro preparado com técnicas
multidisciplinares. A despeito da inexistência de legislação própria, a mediação, inclusive,
já é uma realidade em prática no Brasil, diante das vantagens que apresenta comparada a
uma burocratizada judicialização do debate.
PALAVRAS-CHAVE: Conflito socioambiental. Acesso à justiça. Tutela extrajudicial.
Mediação ambiental.

Mestre em Direito Agroambiental na Faculdade de Direito da UFMT. Professora da Escola Superior
da Advocacia em Mato Grosso e da Unipós - Pós-graduação e Educação (Universidade de Cuiabá).
Assessora Jurídica do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso.
152
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I153
ABSTRACT
The study aims to demonstrate the feasibility of extrajudicial environmental protection as a
mechanism for access to justice. It is necessary a reinterpretation of the concept of access
to justice. In a simplistic view, justice would be monopoly of the judicial function, that,
overwhelmed, time consuming and technically deficient, can not satisfactorily resolve
disputes. Added to this factor, the argument is that the judiciary, to resolve the legal
dispute, is often not able to compose the underlying crises, which is of fundamental
importance to the environmental good, especially in the ethical and sociological aspect. It
has been shown that the distribution of justice can be done through judicial and
extrajudicial instruments, which should be chosen according to the peculiarities of the
conflict. In the process of extrajudicial negotiation, not always the reparation by the duty to
indemnify is proposed (win-lose model), but a harmonization between the conflicting
interests (win-win model), always from the perspective of environmental protection (as
well greater). The focus, then, is the problem and not the people and the formal issues
involved. With this reasoning, environmental mediation proves to be an effective way,
since not only aims to resolve the controversy, but to develop a new continuous and lasting
relationship of parts to the environment, through the mediation of a third party prepared
with multidisciplinary techniques. Despite the absence of specific legislation, mediation,
inclusive, is already a reality in practice in Brazil, given the inherent advantages compared
to a bureaucratized legalization debate.
KEY-WORDS: Environmental conflict. Access to justice. Extrajudicial resolution.
Environmental mediation.
153
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I154
1. Acesso à Justiça e tutela coletiva
Não há como empreender um debate sobre o acesso à justiça sem mencionar a
brilhante obra de Mauro Cappelletti e Bryant Garth1, que, nos idos da década de 70*,
conseguiram identificar as falhas e propor de forma criativa soluções para os problemas
apresentados.
De plano, os autores explanam a transformação do conceito ao longo do tempo,
lembrando que a solução dos litígios nos Estados liberais refletiu o individualismo próprio
da época, em que o direito ao provimento judicial significava a possibilidade de propor e
contestar uma ação.
Não competia ao Estado garantir o acesso efetivo ao jurisdicionado2, de modo que
a tutela jurisdicional só era atingida por quem poderia custeá-la.
Além desse fator, a diferença entre os litigantes sequer era considerada um
problema a ser enfrentado e os estudos e as reformas processuais apresentados eram
tratados no plano teórico, sem considerar dados concretos da população.
A visão social conferida ao processo iniciou-se com o surgimento das relações
coletivas, já que as regras existentes até então tinham por objeto relações individuais, que
já não eram mais suficientes para o tratamento das novas - e complexas – situações que
surgiam.
O caráter individualista ficava para trás e surgiam os direitos e deveres sociais do
governo.
Nesse raciocínio, o Estado, que antes tinha posição de absoluta passividade,
passou a ter uma atuação positiva para a garantia dos direitos sociais – educação, trabalho,
saúde e segurança – sendo que o acesso efetivo à justiça também passou a ser preocupação
naquele momento, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na
ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação.3
*
1
2
3
A obra destinou-se a servir de introdução ao “Projeto Florença”.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre: Fabris, 1988, p. 9.
Idem, p. 9. Segundo os autores, o acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade,
apenas formal, mas não efetiva.
Ibidem, p. 12.
154
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I155
Ao tratar da função jurisdicional do Estado, os autores apontam um sistema
jurisdicional moderno e igualitário como um dos direitos humanos basilares, mas
explicam que o acesso, na condição de “ponto central” da processualística, não deve se
limitar a essa forma de resolução de conflitos.
A respeito, expõem que
Os juristas precisam, agora, reconhecer que as técnicas processuais
servem a funções sociais (9); que as cortes não são a única forma de
solução de conflitos a ser considerada (10) e que qualquer
regulamentação processual, inclusive a criação ou encorajamento de
alternativas ao sistema judiciário formal tem um efeito importante sobre
a forma como opera a lei substantiva – com que frequência ela é
executada, em benefício de quem e com que impacto social. Uma tarefa
básica dos processualistas é expor o impacto substantivo dos vários
mecanismos de processamento de litígios. Eles precisam,
consequentemente, ampliar suas pesquisa para além dos tribunais e
utilizar os métodos de análise da sociologia, da política, da psicologia e
da economia e, ademais, aprender através de outras culturas.4
Concluído esse raciocínio, Cappelletti e Garth reconhecem que o conceito de
“efetividade” é vago e que o tratamento “absolutamente” igualitário entre as partes seria
inclusive utópico5, mas que os obstáculos deveriam ser identificados para o início da
concretização da meta.
Carlos Eduardo de Vasconcelos afirma que, modernamente, o movimento
universal pela efetividade do acesso à justiça abrange as seguintes temáticas:
a) a instrumentalização de Defensoria habilitada a atender, gratuita e
amplamente, o acesso à justiça e ao Judiciário pelas pessoas
necessitadas, que comprovem insuficiência de recursos;
b) o desenvolvimento das ações populares e civis públicas, para defesa
sistematizada dos direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos,
com o apoio de um Ministério Público independente;
c) a simplificação do serviço judiciário, pela adoção, como regra, de
procedimentos sumários ou sumaríssimos, de súmulas vinculantes ou
sistemas assemelhados, ao lado da amplificação e aperfeiçoamento de
juizados especiais cíveis e criminais para questões de menor
complexidade ou de menor potencial ofensivo;
d) a adoção da mediação paraprocessual voluntária, ampliação das
oportunidades da conciliação e da própria arbitragem no curso dos
processos judiciais, inclusive medidas alternativas reparadoras no
campo penal, com fundamento nos conceitos da justiça restaurativa;
4
5
Idem, p. 12.
Ibidem, p. 15. Os autores destacam que a questão é saber até onde avançar nesse objetivo utópico e a que
custo. Em outras palavras, quantos dos obstáculos ao acesso efetivo à justiça podem e devem ser
atacados?
155
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I156
e) a difusão da mediação, da arbitragem e de outras abordagens
extrajudiciais, como procedimentos da sociedade civil enquanto
protagonista da solução de conflitos, inclusive por intermédio de núcleos
comunitários e/ou instituições administradoras de mediação e
arbitragem;
f) a expansão do direito internacional (interestatal) e do direito de
integração supranacional (também interestatal) das comunidades de
nações, e de suas instituições parlamentares e cortes de mediação e
julgamento, consoante normas constitucionais de uma governança
6
interdependente e globalizada.
A preocupação com a tutela coletiva surgiu no momento em que se percebeu que
as normas processuais e as ferramentas até então existentes já não eram mais suficientes
para regular a novas e complexas situações que surgiam.
No Brasil, o acesso à justiça figura entre os direitos e garantias fundamentais (art.
5º, XXXV, da Carta Magna7), sendo imperativo que esse comando seja interpretado de
acordo com a realidade e as nossas atuais necessidades.
Não podemos esquecer, como pondera Marcelo Antonio Theodoro, que é
mediante a efetividade dos direitos fundamentais que a Constituição ganha um sentido,8 e
conferir concretude a uma norma constitucional requer a sua contextualização à realidade.
Rodolfo de Camargo Mancuso, com propriedade, expõe
Sem embargo, para que essa expressão – acesso à justiça – mantenha
sua atualidade e aderência à realidade sócio-político-econômica do país,
impende que ela passe por uma releitura, em ordem a não se degradar
numa garantia meramente retórica, tampouco numa oferta generalizada
e incondicionada do serviço judiciário estatal.9
Para que a definição de acesso à justiça seja ampliada, o primeiro passo é
reinterpretar o conceito de Jurisdição, retirando-lhe a conotação de poder e vê-la como
6
7
8
9
VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de Conflitos e Práticas Restaurativas. São Paulo:
Método, 2008, p. 44.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
THEODORO, Marcelo Antônio. Direitos Fundamentais e sua Concretização. Curitiba: Juruá, 2002.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A Resolução dos Conflitos e a Função Judicial no Contemporâneo
Estado de Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 56. O autor, embasado na ideia de
Owen Fiss, diz que o acesso à justiça não está relacionado à representação de um indivíduo, mas uma
representação de interesses. Não é que toda pessoa tem o direito de ser representado num processo
judicial estrutural, mas apenas que todo interesse envolvido deve ser representado. Se o interesse de um
indivíduo foi representado adequadamente, então não terá futuras postulações contra a sentença. O
direito de representação é um direito mais coletivo que individual, porque pertence a um grupo de
pessoas situadas em uma mesma classe, em virtude de seus interesses compartilhados.
156
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I157
uma função do Estado, que só será desempenhada a contento se houver a resolução justa
dos conflitos, em um tempo razoável.10
Pode-se dizer, ainda, que o princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional
(art. 5º, XXV, da CF) foi direcionado ao Executivo e Legislativo, a fim de que não se
amparem em ferramentas que excluam a proposição de litígios à composição judicial. Isso
não significa que a resolução das controvérsias deve se confiada exclusivamente ao Poder
Judiciário.11
É importante lembrar que o direito de petição (art. 5º, XXXIV, da CF) – genérico
e incondicionado – não está atrelado ao direito de ação, que possui condições específicas.
Há um condicionamento a pressupostos formais que podem impedir que a discussão (ou
seja, o problema) não seja submetido ao crivo do Judiciário.
Pode-se exemplificar que, na falta de uma das condições da ação, de um
pressuposto positivo ou presente ou pressuposto negativo, a relação processual não é
formada juridicamente e o mérito, por conseguinte, não é dirimido.
A justiça, sob essa perspectiva, não será concretizada, de modo que esses são
sinais de que a tutela coletiva pode e deve ser viabilizada por mecanismos diversos
daqueles apresentados no sistema estatal.
2. O monopólio judicial na resolução dos conflitos: uma necessária desconstrução
Inobstante a relevância das ferramentas destinadas à resolução judicial dos
conflitos, não se pode negar que o direito deve estar aberto às novas situações que surgem,
aos novos reclamos sociais, razão por que deve responder a essas novidades com alterações
normativas que sejam necessárias e mais adequadas.
Mancuso pondera que
o Direito não pode se
explicando-se a si mesmo,
seja capaz de regular
considerada socialmente
tempo.12
10
11
12
autolegitimar, não pode ser autopoiético,
mas deve se legitimar se e na medida em que
adequadamente determinada situação no
relevante, num dado contexto de espaço
Idem.
A fim de demonstrar que o Judiciário não deve e não possui papel hegemônico na sociedade, trazemos o
exemplo dos Tribunais desportivos (art. 217, § 1º, da CF), os Tribunais de Contas (art. 71); a Justiça de
Paz (art. 98); os Tabelionatos (Lei n. 11.441/2007), entre outros.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit. p. 141.
157
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I158
Essa flexibilidade normativa diz respeito tanto aos institutos quanto aos
mecanismos de distribuição de justiça, de onde ressai a expressão meios alternativos ou
complementares de solução de conflitos.13
Percebe-se, hoje, que a expressão Jurisdição não mais se limita à tradicional
acepção estatal, na medida em que se verifica uma tendência à desjudicialização dos
conflitos, como denota a edição da Lei n. 11.441/200714, em que se delegou aos Tabeliães
o processamento dos inventários sem litígio ou em que não haja incapazes, bem como as
separações/divórcios consensuais.
Ao mesmo em tempo que se verifica que modelo certo/errado vinculado à
resolução judicial do conflito não mais se amolda à realidade contemporânea – complexa e
célere -, também é certo que o Estado não deve mais avocar para si toda a responsabilidade
pacificadora, calcado na clássica atividade substitutiva da jurisdição.
Nesse sentido, Fernanda Tartuce da Silva diz
Deve-se considerar a multifacetada possível configuração da jurisdição
quanto às suas características e quanto ao contexto da sua verificação.
Com efeito, a atividade jurisdicional pode ser realizada em diversos
âmbitos, inclusive fora da seara estatal (como ocorre com a arbitragem).
Além de sua realização em instâncias diversificadas, também o objeto de
sua manifestação pode ser ampliado em atenção a intuitos variados,
inclusive para fins de aferição da regularidade do encaminhamento de
15
interesses relevantes.
Na verdade, essa nova leitura do conceito de jurisdição é imperativa e decorre da
crise do Estado Jurisdicional diante da incapacidade da sua oferta proporcionalmente ao
aumento da demanda dos jurisdicionados. Com o incremento dos direitos na esfera
constitucional e dos novos instrumentos de tutela judicial, a problemática surgiu.
Processualistas e constitucionalistas de escol observam que, não obstante os
inegáveis esforços, a máquina judiciária, por questões ligadas à administração da justiça e
à excessiva judicialização das discussões, a despeito da sua inegável relevância, ainda tem
se revelado morosa na compreensão das questões coletivas. Ada Pelegrini Grinover explica
que
13
14
15
Idem.
BRASIL. Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007. Altera dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de
1973 – Código de Processo Civil, possibilitando a realização de inventário, partilha, separação consensual
e
divórcio
consensual
por
via
administrativa.
Disponível
em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11441.htm, acesso em 13/01/2013.
SILVA, Fernanda Tartuce. Mediação nos Conflitos Civis. São Paulo: Método, 2008, p. 84.
158
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I159
[...] a análise macroscópica da sociedade contemporânea revela alguns
dados extremamente preocupantes na administração da Justiça. Não
última, certamente, é a verificação da existência de um número cada vez
maior de conflitos de interesses, não adequadamente solucionados, ou
nem mesmo submetidos à apreciação jurisdicional. De um lado, a
sociedade de massa gera conflitos de natureza coletiva ou difusa,
dificilmente tratáveis segundo os esquemas clássicos da processualística
de caráter individualista; do outro lado, a lentidão e o custo do processo,
a complicação e a burocracia da Justiça, afastam o detentor de
interesses indevidamente considerados ‘menores’, contribuindo para
aumentar a distância entre o cidadão e o Poder Público, exacerbando a
litigiosidade latente e desacreditando a Justiça, com conseqüências
sempre perigosas e freqüentemente desastrosas.16
Por outro lado, o Estado não se preparou para oferecer um serviço qualitativo que
efetivamente atendesse a essa busca,17 e tampouco cientificou a população da existência de
outros mecanismos de resolução de controvérsias.
Em face dessa realidade, André Gomma de Azevedo propõe um sistema
pluriprocessual, traduzido por um ordenamento formado por um espectro de processos que
compreende o judicial e a mediação, entre outros. O sistema pluriprocessual tem por
escopo disponibilizar processos com características específicas que sejam adequados às
particularidades do caso concreto, permitindo assim que se reduzam as ineficiências
inerentes aos mecanismos de solução de disputas.18
Azevedo19 destaca um sistema das chamadas Cortes multiportas, em que o
jurisdicionado é orientado sobre o meio mais adequado de resolução do problema, diante
das peculiaridades do caso concreto. A possibilidade de resolução de uma pendência, desse
modo, ultrapassa a Justiça estatal, pois há a viabilização de métodos auto e
heterocompositivos, como a conciliação, mediação, a arbitragem, que funcionam nos
recintos públicos, com vistas a resolver a situação em si (e não apenas o conflito jurídico).
16
17
18
19
GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas Tendências do Direito Processual, 2. edição, São Paulo: Forense
Universitária, 1990. p. 205 e 206.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit., p. 144.
AZEVEDO, André Gomma. Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. Brasília: Brasília Jurídica,
2002, vol. 3, p. 301.
Ibidem, p. 140. O autor exemplifica: [...] havendo uma disputa na qual as partes sabem que ainda irão
relacionar-se no futuro (e.g. disputa entre vizinhos), em regra, recomenda-se algum processo que
assegure elevados índices de manutenção de relacionamentos, como a mediação. Por outro lado, se uma
das partes tiver interesse de estabelecer um precedente ou assegurar grande publicidade a uma decisão
(e.g. disputa relativa a direitos individuais homogêneos referentes a consumidores), recomenda-se um
processo que promova a elevada recorribilidade, necessária para criação de um precedente em tribunal
superior, e que seja pouco sigiloso (e.g. processo judicial). In: Autocomposição e processos construtivos:
uma breve análise de projetos-piloto de mediação forense e alguns dos seus resultados.
159
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I160
Há ainda um papel preventivo a ser desenvolvido no plano judicial e extrajudicial,
sendo de extrema relevância essa interação entre as formas estatal e não-estatal de
distribuição de justiça. Por esse motivo, a rigor, estas não devem ser tratadas como meios
alternativos, mas complementares20 de solução de conflitos, até porque são preexistentes à
Justiça estatal (v.g., auto-tutela).
Mancuso, a respeito, afirma que, apesar da inexistência de base quantitativa
precisa do número de processo que deixam de ser gerados no Judiciário em decorrência da
auto e heterocomposição de litígios, a via deve ser incentivada, pois, ainda que em pequena
dimensão, qualquer alívio ao Judiciário não deve ser desprezado, até porque, em um
contexto global, acaba por representar valor considerável.
Ademais, é importante também o efeito pedagógico gerado na população, que aos
poucos vai se conscientizando da necessária mudança de mentalidade.
A conscientização, segundo o autor, leva à conclusão de que (i) prejuízos ou
insatisfações de pequena monta podem e devem ser tolerados, como um preço a pagar,
inerente à convivência numa sociedade massificada e competitiva, ali incluídas, pois, a
renúncia e a desistência entre os meios de prevenção de conflitos; (ii) os demais interesses
resistidos ou insatisfeitos, devem, num primeiro momento, passar por um estágio de
decantação ou maturação nas instâncias auto e heterocompositivas, geralmente informais e
menos desgastantes; (iii) os conflitos tornados incompossíveis nessas vias suasórias – ou a
elas refratários, em razão de matéria ou da pessoa – podem então ser encaminhados à
Justiça estatal.21
Não há como negar, todavia, que, para isso, é imprescindível uma verdadeira
mudança de mentalidade, que retire do Poder Público a reserva de mercado com relação à
resolução dos conflitos, isso porque a composição jurídica da questão nem sempre
significa a composição justa do problema e em tempo razoável.
Ademais, os mecanismos clássicos de solução dos litígios não levam à efetiva
pacificação das partes, já que o modelo ganha-perde não retira do sucumbente o estigma de
“vencido”.
Esse ambiente competitivo, como veremos adiante, pode ser substituído por um
ambiente harmônico, de uma justiça coexistencial, que recepciona as divergências como
20
21
CARNEIRO, Athos Gusmão; CALMON Petrônio (org.). Contribuições da mediação ao Processo Civil:
elementos para uma nova base científica ao Processo Civil. In: Bases científicas para um renovado
Direito Processual. Brasília: Instituto Brasileiro de Direito Processual, 2008, p. 227.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit., p. 147.
160
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I161
uma oportunidade para compô-las com justiça, antes que buscar extingui-las
drasticamente, no ambiente contencioso e estressante de um processo judicial.22
Considere-se, ainda, a lentidão e excessiva burocratização judicial, o que, por si
só, já caracteriza uma forma injusta de composição do litígio, independentemente do êxito
na demanda, já que o Estado, embora ofereça o direito de acesso ao Judiciário a quem
pague as custas e contrate advogado, não consegue posteriormente atender a expectativa
gerada e presta uma justiça de baixa qualidade, inconsistente e retardada.
A mudança de postura é necessária, já que, com isso, poderemos alcançar mais do
que a mera contenção do conflito de interesses entre as partes (crise jurídica) e alcançar as
demais crises subjacentes (sociológicas e éticas), em uma perspectiva muito mais
abrangente.
3. A prevenção como mecanismo de efetivação do acesso à justiça
A leitura simplista do comando constitucional insculpido no art. 5º, XXXV, da
Carta Magna, alimenta, como consequência, a sobrecarga do Judiciário, na medida em que
se interpretou que qualquer espécie de pretensão resistida deveria ser levada à apreciação
estatal.
Sobre o tema, J.J. Calmon de Passos afirma que
esse acúmulo é fruto igualmente do incentivo à litigiosidade que uma
leitura incorreta, data venia, da Constituição, somada à falta de
sensibilidade política dos três Poderes, determinou a partir de 1988 e
vem-se agravando progressivamente. Do dizer que nenhuma lesão pode
ser subtraída do Poder Judiciário colocou-se nossa democracia de
ponta-cabeça e hoje, poder mesmo, é o detido por aqueles que o povo
não elege, não participa de seu recrutamento e sobre os quais não tem
nenhum poder de controle – o Judiciário, o Ministério Público e a
Mídia.23 (destaque nosso).
O problema se agrava quando, agregada à excessiva cultura demandista,
verificamos que a efetividade do comando judicial não é alcançada em todas as espécies de
provimento. Sabemos que as cautelares satisfativas, as sentenças declaratórias e as
constitutivas positivas e negativas chegam ao objetivo da norma de regência, já que as
22
23
Ibidem, p. 149.
PASSOS, J.J. Calmon de. Reflexões, fruto de meu cansaço de viver ou de minha rebeldia? In: SANTOS,
Ernane Fidélis dos et al. (coord.) Execução Civil – estudos em homenagem ao professor Humberto
Theodoro Júnior, São Paulo: RT, 2007, p. 838-839.
161
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I162
primeiras tutelam situação emergencial temporária e as demais visam a eliminar a
incerteza, nos termos do art. 4º do Código de Processo Civil24.
Circunstância diversa ocorre com as sentenças condenatórias, traduzidas pelas
obrigações de dar, fazer, não fazer, pagar, tolerar, cumprir – já que o provimento judicial,
por si só, não é suficiente para assegurar a realização do direito.
A sentença condenatória é título executivo, mas não possui eficácia executiva, de
modo que, caso o vencido não cumpra a sentença espontaneamente, dar-se-á início a novo
processo, com nova citação, com o desgaste de um recomeço do trâmite processual.
Finalizada essa etapa, o credor poderá concretizar os atos executórios, com a expropriação
do bem, cujas decisões são ainda passíveis de incidentes e novos recursos.
Malgrado tenhamos a tutela de urgência e a tutela específica na ação civil pública
para a defesa do bem ambiental,25 não se pode deixar de considerar que a judicialização
dos danos consumados, com vistas à reparação do prejuízo ou restauração do estado
anterior normalmente não consegue eliminar os efeitos diretos e indiretos 26 já
disseminados.
A proposta moderna, portanto, objetiva deslocar a cultura da judicialização do
protagonismo para um plano de subsidiariedade, com a primazia da justiça coexistencial –
baseada em formas conciliatórias - em detrimento da justiça contenciosa.
A justiça coexistencial amolda-se perfeitamente à solução de conflitos na esfera
socioambiental, cujas relações são complexas e duradouras, de modo que a utilização das
ferramentas preventivas da controvérsia revela-se mais eficiente no atendimento aos
princípios da precaução, prevenção e da equidade intergeracional que norteiam a tutela do
meio ambiente.
24
25
26
BRASIL. Lei nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869compilada.htm, acesso em 13/01/2013.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em Defesa do Meio Ambiente, do Patrimônio
Cultural e dos Consumidores – Lei 7.347/85 e legislação complementar. 8a ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit.,, p. 177-178. Ainda que fora da esfera ambiental, o exemplo
de Mancuso merece citação: [...] a lide é, geralmente, de âmbito menor do que a integralidade da
controvérsia, por conta das reduções de complexidade que ela sofre, antes e mesmo depois de chegar à
Justiça: por exemplo, na locação de um imóvel, é o direito pessoal, obrigacional que vem à baila, com a
cessão do uso oneroso do imóvel, ficando de fora possível outra querela de cunho dominial, já que não se
trata de ação real (= primeira redução). Se o inquilino descumpre as obrigações (não paga os aluguéis,
subloca o imóvel sem autorização, usa-o para fim ilícito, não o conserva devidamente), o proprietário
por certo não irá alegar todos esses fatos para retomar o seu imóvel, até porque isso aumentaria o ônus
probatório, por lhe caber a prova dos fatos constitutivos (CPC, art. 333, I). Assim, ficando os limites da
lide cingidos só ao despejo por falta de pagamento, a ação terá um objeto litigioso de desenho menor do
que o universo dos pontos conflitivos entremeados na locação como um todo (= segunda redução).
162
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I163
Questão importante também é a conscientização de que o contencioso acaba por
gerar um círculo nefasto donde só encontramos perdedores27: o Estado, cada vez mais
onerado com orçamentos voltados à melhora da função jurisdicional; a administração da
justiça, que não consegue atender à crescente demanda; o jurisdicionado, que acaba por se
frustrar com um prestação ineficiente, onerosa e lenta; e a sociedade, que, a despeito de ter
constitucionalmente garantida a inafastabilidade da justiça no art. 5º, XXXV, CF, percebe
que a norma não alcançou sua concretização.
Assim, com a leitura de que a função jurisdicional não é imposta aos
jurisdicionados, mas uma prestação ofertada a quem necessite, nas hipóteses de litígios
incompossíveis ou insuscetíveis de composição. Estes se relacionam às discussões que
devem necessariamente ser levadas ao Judiciário, seja pelas partes envolvidas ou pela
natureza do debate: controle de constitucionalidade; cobrança de dívida ativa não
transacionada; compromisso de ajustamento de conduta descumprido; inventário em que
haja menores bem com a separação ou o divórcio litigioso.
Por ser uma oferta residual, excluídas as situações de passagem obrigatória pelo
Judiciário, nas pretensões que envolvem direitos disponíveis, por exemplo: a) é possível a
suspensão do processo com vistas à composição amigável (art. 265, II, CPC); b) o juiz
deve tentar conciliar as partes e afastar a prolação da sentença de mérito (art. 125, IV,
CPC); c) após a coisa julgada material, o credor pode abrir mão da execução e compor com
o devedor; d) as separações consensuais já ajuizadas antes da edição da Lei n.
11.441/200728 podem ser apresentadas no Tabelionato.
Ainda que o interesse público ou fazendário esteja envolvido, há permissão para o
encerramento antecipado do processo, como nos casos de composição com o expropriado
no processo de desapropriação, além das conciliações concernentes à expedição de
precatórios.29
Embora o art. 841 do Código Civil30 disponha que só quanto a direitos
patrimnonais de caráter privado se permite a transação, estudiosos tem afastado a
27
28
29
30
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit., p. 183.
BRASIL. Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007. Altera dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de
1973 – Código de Processo Civil, possibilitando a realização de inventário, partilha, separação consensual
e divórcio consensual por via administrativa. Op. Cit.
O Tribunal de Justiça de Mato Grosso criou a Central de Conciliação de Precatórios por meio da
Resolução
n.
007/2007/OE,
com
ativa
atuação
no
Estado.
Disponível
em:
<http://www.tjmt.jus.br/Areas/Precatorios/Defaut.aspx?IDConteudo=20458>. Acesso em 03.11.2012
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm, acesso em 15/01/2013.
163
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I164
interpretação literal da norma, na medida em que existem conflitos que, a despeito de
envolverem interesse público ou metaindividual, são passíveis de solução consensual.
Na tutela do meio ambiente, mesmo em se tratando de bem de uso comum do povo
e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, são admitidos os
compromissos de ajustamento de conduta, que, cumpridos, dispensam a propositura da
ação civil pública e podem ser ainda firmados no trâmite desta.
Aliás, os métodos heterocompositivos têm revelado resultados satisfatórios em
contraposição às soluções judiciais, como pondera Fernando Grela Vieira:
Por serem de natureza indisponível os interesses difusos e coletivos –
assim como o são os individuais homogêneos, quando objeto de defesa
coletiva-, seria de se reconhecer, em princípio, a impossibilidade jurídica
da transação, seja ela judicial ou extrajudicial. A experiência
demonstrou, todavia, que a disposição do responsável pelo dano de se
adequar às exigências da lei ou de satisfazer integralmente o dano acaba
por atender, finalisticamente, aquilo que seria de se buscar ou já se
estaria postulando na via judicial, por meio da ação civil pública. [...] A
esfera passível de ajuste fica circunscrita à forma de cumprimento da
obrigação pelo responsável, isto é, ao modo, tempo, lugar e outros
aspectos pertinentes. A transação, portanto, simplesmente substitui a fase
de conhecimento do processo judicial, pois deve refletir o mesmo
conteúdo esperado na prestação jurisdicional, caso houvesse a ação e
fosse ela procedente, desfrutando, da mesma forma, de eficácia
executiva.31
É inegável, à guisa de exemplificação, que um compromisso de ajustamento de
conduta em que o causador do dano aceita o pagamento de uma multa e assume os custos
da compensação ambiental devidamente planejada pode ser mais eficaz do que a
propositura de uma ação, cujo desfecho é incerto, demorado e ainda deverá ser executado,
com novos recursos e incidentes.
Bem a propósito, o próprio sistema disponibiliza a compatibilização das
ferramentas parajurisdicionais e justiça estatal*.
* Nas relações de consumo, temos os PROCON’s; nas lesões ao meio ambiente, o compromisso de
ajustamento de conduta; nas relações de comércio e mercado, os acordos no CADE; nas relações
trabalhistas, os acordos formulados nas Comissões de Conciliação Prévia; nas ações em curso na Justiça,
as conciliações incidentais; os Tribunais de Arbitragem; os Tribunais desportivos; os Conselhos de
Contribuintes, os Juízes de Paz.
31
VIEIRA, Fernando Grela. A transação na esfera dos interesses difusos e coletivos: compromisso de
ajustamento de conduta. In: MILARÉ, Édis (coord.), Ação civil pública – Lei n. 7.347/85 – 15 anos. 2.
ed., São Paulo: RT, 2002, p. 267-268, 279.
164
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I165
Não podemos esquecer, todavia - talvez aqui resida o ponto fulcral desta
discussão -, que a utilização de uma ferramenta preventiva depende da escolha dos
interessados. Para que isso se torne uma realidade, é imprescindível que haja uma
conscientização das vantagens oferecidas.
De um lado, temos o processo – relação jurídica de direito público que dá início à
função judicial do Estado -, cuja pendência desgasta as partes, onera o Estado e frustra a
sociedade, ao passo que, de outro lado, temos, como consagração do devido processo legal
e da inafastabilidade, a permissão para a auto e heterocomposição, a fim de estimular a
resolução antecipada e justa, com abrangência real do “problema”.
No plano da prevenção do conflito, a heterocomposição não-estatal possui
relevância, em que a intervenção de um terceiro – árbitro ou mediador – faz com que a lide
não se transforme em uma discussão processual. Na esfera trabalhista, destacamos as
Comissões Conciliação Prévia (CLT, art. 625-A32); nos conflitos sobre direitos
disponíveis, a arbitragem (Lei n. 9.307/9633), que não está sujeita à revisão ou
homologação judicial (art. 18 da Lei n. 9.307/9634), constituindo título executivo judicial
(art. 475-N, IV, CPC35).
Convém, ainda, destacar o PL 94/2002 (PL Senado 517/2011), com vistas a
regular a mediação no âmbito nacional, em que fica nítida a possibilidade de coexistência
da máquina estatal e outros mecanismos de distribuição de justiça que tenham finalidade
compositiva, já que o projeto de lei prevê que a mediação será prévia ou incidental e
judicial ou extrajudicial.
4. Mediação de conflitos: conceituação, objetivo, princípios e limites
Conflito significa dissenso. Em um dissenso, cada parte busca elementos de
comprovação que reforcem a sua convicção, a sua posição unilateral, a fim de rebater os
argumentos da outra parte. Comumente, o estado emocional de quem vivencia uma
situação conflituosa dificulta a percepção do interesse comum.
32
33
34
35
BRASIL. Lei nº 5.452, de 01 de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis de Trabalho. Disponível
em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm, acesso em 15/01/2013.
BRASIL. Lei nº 9.307 de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem. Disponivel em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9307.htm, acessp em 15/01/2013.
Idem.
BRASIL. Lei nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Op. Cit.
165
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I166
As partes focam, na verdade, seu interesse pessoal e deixam de lado o problema
em si.
A solução transformadora de conflito, desse modo, depende do reconhecimento
dos pontos de interesse comum e divergentes, na medida em que toda relação conflituosa
também se funda em um interesse comum.
Em uma sociedade global, além da maior complexidade36 das relações, vemos
também uma universalização da cidadania, ou seja, há uma maior consciência da
necessidade de uma vida digna, com igualdade de liberdade até para divergir, liberdade
para a defesa dos seus interesses.37
É por esse motivo que se faz necessário o desenvolvimento de políticas aptas a
lidar com a divergência, com o conflito, em que o elemento hierárquico não é tão
relevante, sendo imperativo o desenvolvimento de habilidades de negociação e mediação,
bem como a identificação dos valores, expectativas e interesses envolvidos. Os valores,
expectativas e interesses podem refletir uma cultura de dominação ou, de outro lado, uma
cultura de paz e direitos humanos.38
As questões ambientais, dentro da perspectiva dos direitos humanos, devem
buscar relações baseadas na harmonia, porque estas são mais duradouras, sendo essa
consistência muito importante, na medida em que as situações relacionadas ao meio
ambiente atingem um grande número de pessoas.
A mediação de conflitos, desse modo, desfoca a maneira de pensar disjuntiva (ouou), a fim de prevalecer um modelo de complementaridade (e-e), porém, como bem pontua
Maria Esteves de Vasconcelos, não costuma ser fácil para nós, que estamos habituados a
um pensamento disjuntivo e apenas a tentativas de articular alternativas que se excluem,
entender que ultrapassar não significa renegar.39
36
37
38
39
MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Traduzido do francês por Eliane Lisboa. Porto
Alegre: Sulina, 2006, p. 102-103. Consoante Edgar Morin, a complexidade é a união da simplicidade
com a complexidade; é a união dos processos de simplificação que são seleção, hierarquiação,
separação, redução, com os outros contraprocessos, que são a comunicação, a articulação do que foi
dissociado e distinguido; e é a maneira de escapar à alternação entre o pensamento redutor, que só vê os
elementos e o pensamento globalizado que só vê o todo.
COMPARATO, Fabio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, p. 18. Para Fabio Konder Comparato, Após séculos de interpretação
unilateral do fenômeno societário, o pensamento contemporâneo parece encaminhar-se hoje,
convergentemente, para uma visão integradora das sociedades e das civilizações.
VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Op. Cit. p. 25.
VASCONCELOS, Maria José Esteves de. Pensamento Sistêmico: o novo paradigma da ciência.
Campinas, São Paulo: Papirus, 2002, p. 160.
166
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I167
Lidar com a divergência não é tarefa fácil, mas esse modo binário de reconhecer
um problema (ou isso ou aquilo) acaba por excluir soluções mais criativas e eficazes.
Na mediação, um novo contexto é apresentado, no qual valores como
participação, inclusão social, diálogo, democracia, responsabilidade e cidadania são
valorizados. O processo é baseado na colaboração, sendo possível tratar do problema
ambiental sem o uso da violência, sem imposição, sem a anulação do interesse do outro.
Incluir a parte na resolução do seu próprio problema é outra relevante
característica. As pessoas sentem-se valorizadas ao terem a oportunidade de debater seus
direitos, deveres (responsabilidade), de participar das questões comunitárias (cidadania) e
dos debates políticos (cidadania). O espírito de colaboração dos envolvidos faz com que
eles se olhem de forma solidária, com respeito às diferenças de cada um.40
Agregado a esses fatores, podemos apontar o seu efeito pedagógico. A depender
da conduta do mediador, que tem importante papel, as partes podem aprender como lidar
com futuros problemas decorrentes da relação com o outro.
Tais benefícios e a exigência de métodos que contemplem as complexas relações
atuais acarretaram a busca de novos paradigmas de mediação e práticas restaurativas, com
espaço para soluções dialógicas dentro e fora dos sistemas estatais de administração de
conflitos.41
A mediação é um meio alternativo (complementar, como preferimos) ou
extrajudicial de resolução de disputas (ADR – Alternative Dispute Resolutions).
Terminologicamente, é também conhecida dentre os Meios Alternativos de Resolução de
Controvérsias (MASCs) ou Meios Extrajudiciais de Resolução de Controvérsias.
Conceituar a mediação pressupõe o conhecimento do que é uma negociação.
Negociar é lidar diretamente, sem a interferência de terceiros, com pessoas,
problemas e processos, na transformação ou restauração de relações, na solução de disputa
ou trocas de interesses. A negociação, em seu sentido técnico, deve ser baseada em
princípios. Deve ser cooperativa, pois não tem por objetivo eliminar, excluir ou derrotar a
outra parte. Nesse sentido, a negociação (cooperativa), dependendo da natureza da relação
interpessoal, pode adotar o modelo integrativo (para relações continuadas) ou o distributivo
(para relações episódicas).42
40
41
42
SALES, Lília Maria de Morais. Justiça e Mediação de Conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 26.
Ibidem, p. 34.
Idem.
167
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I168
Para Christopher W. Moore, a mediação é geralmente definida como a
interferência em uma negociação ou em um conflito de uma terceira parte aceitável, tendo
um poder de decisão limitado ou não-autoritário, e que ajuda as partes envolvidas a
chegarem voluntariamente a um acordo, mutuamente aceitável com relação às questões em
disputa. Além de lidar com questões fundamentais, a mediação pode também estabelecer
ou fortalecer relacionamentos de confiança e respeito entre as partes ou encerrar
relacionamentos de uma maneira que minimize os custos e danos psicológicos.43
Na visão de Vasconcelos, mediação é um meio geralmente não hierarquizado de
solução de disputas em que duas ou mais pessoas, com a colaboração de um terceiro, o
mediador – que deve ser apto, imparcial, independente e livremente escolhido ou aceito -,
expõem o problema, são escutadas e questionadas, dialogam construtivamente e procuram
identificar os interesses comuns, opções e, eventualmente, firmar um acordo.44
Mencionados doutrinadores refletem a corrente acordista, segundo a qual o
principal objetivo da mediação é o acordo e não as relações entre as partes envolvidas. Para
tanto, faz-se indispensável a figura de um terceiro, como facilitador do processo, que
auxilia as partes na tomada das decisões.
Já para a corrente transformadora, defendida por Warat, o conflito é uma
oportunidade de melhora na qualidade de vida, para o encontro consigo mesmo e para a
melhora na satisfação dos vínculos.45 A finalidade precípua é a administração do conflito e
não o acordo.
O jurista argentino trata que a mediação é:
um procedimento indisciplinado de auto-eco-composição assistida (ou
terceirizada) dos vínculos conflitivos com o outro em suas diversas
modalidades. Indisciplinado por sua heteroxia já que do mediador se
requer a sabedoria necessária para poder se mover, sem a obrigação de
defender teorias consagradas, um feudo intelectual ou a ortodoxia de
uma capela de classes ou do saber. A autocomposição dos procedimentos
de mediação é assistida ou terceirizada, porquanto se requer sempre a
presença de um terceiro imparcial, porém implicado, que ajude as partes
em seu processo de assumir riscos de sua auto-decisão transformadora
de conflito.46
43
44
45
46
MOORE, Christopher W. O Processo de Mediação: estratégias práticas para a resolução de conflitos;
tradução de Magda França Lopes, 2ª ed., Porto Alegre: Artmed, 1998, p. 28.
Ibidem, p. 36.
WARAT, Luis Alberto. O Ofício do Mediador. Florianópolis: Habitus, 2001, p. 84.
Ibidem, p. 75.
168
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I169
Os defensores da corrente transformadora incluem também um terceiro mediador,
porém o foco principal do processo é o vínculo entre as partes. O mediador, portanto, deve
gerenciar tais vínculos, repará-los e conscientizar as partes do compromisso com a decisão
tomada.
Malgrado exista divergência doutrinária no que se refere ao objetivo da mediação,
há um ponto de identidade no tratamento do tema, qual seja, o diálogo entre as partes
assistido pelo mediador.
Outro ponto importante, segundo Fisher, Ury e Patton47, é o foco no problema e
não nas pessoas nele envolvidas, razão por que deve haver uma concentração nos
interesses e não nas posições. Esse entendimento é fundamental para a prática da mediação
na esfera ambiental.
Outros objetivos são apontados e quaisquer os enfoques da mediação: resolução
das diferenças entre as partes, redução dos obstáculos de comunicação, consideração das
necessidades envolvidas, maximização do uso de alternativas, preparação dos participantes
para a consequência de suas decisões, redução dos efeitos negativos do conflito e um plano
de ação para o futuro.48
Finalmente, nossa abordagem neste estudo leva à conclusão de que são três os
elementos formadores da mediação: (i) partes, (ii) conflito e (iii) mediador.
As partes são as pessoas, que podem ser natural ou jurídica, pública ou privada,
nacional ou internacional, individualmente ou em grupo.
O conflito, por sua vez, pode ser dos mais variados, sendo que nosso enfoque é a
esfera socioambiental.
Temos, ainda, o mediador como terceiro elemento, que atua como facilitador para
a comunicação das partes envolvidas.
A mediação é amparada em princípios49, sendo os principais informadores: (i)
neutralidade e imparcialidade de intervenção; (ii) liberdade dos mediandos (autonomia a
vontade); (iii) confidencialidade; (iv) decisão informada; (v) capacitação; (vi) validação;
(viii) informalidade, oralidade e celeridade.50
47
48
49
50
FISHER, Roger; URY, William; PATTON, Bruce. Como Chegar ao Sim: negociação de acordos sem
concessões; tradução de Vera Ribeiro & Ana Luiza Borges, 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Imago,
2005, p. 56-61.
SERPA, Maria de Nazareth. Teoria e Prática da Mediação de Conflitos. Rio de Janeiro: Lumen juris,
1999, p. 57.
Idem.
Idem.
169
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I170
Com essa matriz principiológica, instrumento relevante que hoje dispomos é o
Plano de Capacitação em Mediação – recomendado pelo Conselho Nacional das
Instituições de Mediação e Arbitragem – CONIMA – que abrange módulo teórico e prático
de estágio supervisionado.
O módulo enfoca conhecimentos sociológicos, psicológicos, jurídicos e de
comunicação, de acordo com a nossa complexa realidade contemporânea.
Seu conteúdo programático abrange:
a) Paradigmas contemporâneos: conhecimento dos paradigmas
que regem a percepção e atuação do homem na atualidade.
b) Aspectos sociológicos contemporâneos: contexto e aspectos
ideológicos dos diferentes grupos sociais.
c) Aspectos psicológicos: comportamento humano; estudo das
necessidades e sua satisfação; entrevistas e sua especificidade na
Mediação.
d) Comunicação: escuta; axiomas; teoria das narrativas; estudo
do inter-relacionamento humano.
e) Direito: conceitos; noções do Direito nas diferentes áreas de
atuação; conhecimento e articulação dos conceitos de justiça e
satisfação.
f) Conflitos: conceito e estrutura; aspectos subjetivos e objetivos;
construção dos conflitos e causalidade circular.
g) Instrumentos de resolução alternativa de disputas RAD:
histórico; panorama nacional e internacional; Negociação,
Conciliação e Arbitragem.
h) Mediação: conceito e filosofia; etapas do processo; modelos em
Mediação; regulamento- modelo.
i) Mediador: função; postura; qualificação; código de ética.
j) Áreas de atuação: familiar; comercial; trabalhista;
organizacional; comunitária; escolar; penal; internacional; meio
ambiente.51
A capacitação, como se vê, ultrapassa o enfoque meramente jurídico.
No que se refere aos limites impostos à ferramenta, muitos autores defendem que
a mediação é eficaz em qualquer tipo de conflito, independentemente da sua natureza ou
conteúdo, já que, direta ou indiretamente, a disputa está ligada ao comportamento humano.
51
Disponível em: <http://www.conima.org.br/capacitacao_2/mediacao/modulo_teorico.html>, acesso em:
07.09.2012.
170
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I171
Moore afirma que é eficaz quando a natureza do conflito envolver dados (ausência
ou má informação); interesses (situações de escassez), estrutura interna do grupo, valores
(diversidade de cultura) e relacionamentos.52
Warat afirma sua viabilidade na disputa comunitária, ecológica, empresarial,
familiar, penal, consumerista, trabalhista, política, de realização dos direitos humanos, e da
cidadania, entre outros. Para o autor, mediar conflitos que envolvam afetividade e não
apenas uma visão patrimonialista representa exercício da autonomia, cidadania e
democracia.53
Considerando que o conflito socioambiental consubstancia uma disputa de
interesses que não se limita a um simples embate patrimonial, podemos afirmar que é
perfeitamente passível de ser objeto de mediação.
No que se refere aos limites legais impostos ao instrumento, é importante lembrar
que deve ser compatível com o sistema jurídico existente, e quanto a este tópico, a doutrina
não possui consenso.
Em princípio, questões trabalhistas, que envolvam o Estado e de natureza
previdenciária, trabalhista ou tributária não poderiam ser mediadas.
Cintra, Dinamarco e Grinover54 expõem que não será admitida a mediação quando
os direitos da personalidade estiverem envolvidos (vida, liberdade, honra, entre outros),
diante da indisponibilidade dos interesses da parte.
O ordenamento jurídico brasileiro admite a conciliação dos conflitos de natureza
cível que versem sobre direitos disponíveis, a teor do que prevê o art. 331 do Código de
Processo Civil55, ou de menor complexidade (Lei n. 9.099/9556), bem como a transação de
direitos patrimoniais (art. 841 do Código Civil57). Como não direito personalíssimo no
conflito socioambiental, a mediação pode ser utilizada.
Além das normas jurídicas, há limites éticos impostos à prática da mediação.
Moore aponta, de plano, que não podem ser mediados conflitos em que os
envolvidos não possam ou não queiram expressar sua vontade bem como nas situações em
52
53
54
55
56
57
Ibidem.
WARAT, Luis Alberto. Op. Cit., p. 80.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini.
Teoria Geral do Processo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 29.
BRASIL. Lei nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Op. Cit.
BRASIL. Lei nº 9.099 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá
outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm, acesso em
15.11.2012.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Op. Cit.
171
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I172
que não consigam sair da postura adversarial. As partes devem aceitar a figura do
mediador e estar dispostas a ouvir, para que cheguem a um final colaborativo e respeitoso
para todos.58
Por outro lado, deve-se considerar que as barreiras emocionais são inerentes ao
processo, sendo que ultrapassar esses obstáculos é o grande objetivo da mediação. A
maciça doutrina pontua que a ferramenta é extremamente aconselhável quando se tem por
meta a continuidade da relação no futuro.59
5. A mediação na resolução dos conflitos socioambientais
A mediação ainda é utilizada de forma incipiente na resolução dos conflitos
socioambientais.
Porém, a despeito da indisponibilidade do bem tutelado na seara ambiental, a
mediação ambiental deve ser inclusive fomentada, diante dos benefícios que o método
heterocompositivo apresenta.
Samira Iasbeck de Oliveira Soares aponta que,
nas controvérsias ambientais, a mediação mostra-se vantajosa por
permitir um grau maior de satisfação dos participantes, que
mantêm certo grau de controle; por ter maior flexibilidade para
analisar opções mais criativas que os tribunais e o mais
importante é que promove a cooperação, elemento que falta
normalmente na solução da maioria dos problemas ambientais.
Por não ter uma postura adversarial, a mediação consegue tratar
de um campo maior de dados técnicos e não favorece a obstrução
de informações. Ainda, por ser voluntária, consegue chegar a
soluções mais duradouras e a uma melhor implementação dessas.60
Apresenta ainda como vantagens:
a) o fato de ser um processo informal, que permite a construção conjunta da
solução pelas pessoas, dentro de suas possibilidades;
b) os envolvidos estão vendo, reconhecendo e assumindo suas responsabilidades
quanto aos direitos e deveres ambientais;
58
59
60
MOORE, Christopher W. Op. Cit., p. 48-77.
Essa é a posição de autores consagrados e mencionados neste estudo como Moore, Six, Sales, Suares e
Azevedo.
SOARES, Samira Iasbeck de Oliveira. Mediação de conflitos ambientais: um novo caminho para a
governança da água no Brasil?. Curitiba: Juruá, 2010, p. 136.
172
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I173
c) a busca de uma solução conjunta fortalece as relações de confiança e
credibilidade entre as pessoas;
d) a interação entre os envolvidos possibilita desenvolver e praticar princípios
como respeito, solidariedade e cooperação, fazendo com que lidar com o conflito seja
também uma forma de aprendizagem e crescimento pessoal e coletivo;
e) o diálogo direto entre os envolvidos pode evitar manipulações autoritárias,
paternalistas e/ou clientelista.
Note-se que, atrelada às vantagens aparentes61, está a nova forma de ver o mundo
e a relação homem-natureza, razão por que tal conflito não pode ser tratado de forma
excludente. Não há ganhadores ou perdedores nessa relação, de modo que criar vínculos
que estabeleçam semelhanças e diferenças sem eliminação ou fusão está na base desse
novo agir e pensar a gestão ambiental.
A negociação dos direitos transidindividuais, nos que se inclui o direito ao meio
ambiente sadio e equilibrado - bem indisponível e inalienável -, vem sendo estimulada
pelos estudiosos que já possuem a nova leitura do acesso à justiça.
O Estado de justiça ambiental requer medidas céleres e eficazes e é perceptível
que, com a edição da Lei de Arbitragem (Lei n. 9.307/9662), também outros institutos,
ainda que lentamente, começaram a ganhar força.
É importante ressaltar que, na justificativa do Projeto de Lei do Senado n.
517/201163 (antigo PL n. 94/2002), que institui e disciplina o uso da mediação como
instrumento para prevenção e solução consensual de conflitos, é patente o reconhecimento
da técnica para a composição dos conflitos no setor público, inclusive em matéria
ambiental.
No Brasil, embora ainda não haja legislação que trate da mediação, o estímulo
para utilização da ferramenta é notório, inclusive com a sua prática recorrente no Poder
Judiciário.64
61
62
63
64
PLATIAU, Ana Flávia Barros, et al. Primeira parte. In: THEODORO, Suzi Huff (Org.). Mediação de
conflitos socioambientais. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 23-71.
BRASIL. Lei nº 9.307 de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem. Op. Cit.
BRASIL. Projeto de lei nº 517/2011. Proibe a exigência de caução de qualquer natureza para internação
de doentes em hospitais ou clínicas da rede privada no estado do rio de janeiro, nas hipóteses que
especifica.
Disponível
em
http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro1115.nsf/02ac6f279b568e24832566ec0018d839/2e41a832120c545183
25789b0067f44c?opendocument, acesso em 15.12.2012.
No Tribunal de Justiça de Mato Grosso foi criado o NÚCLEO PERMANENTE DE MÉTODOS
CONSENSUAIS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS, em que se encontra a Central de Conciliação e
Mediação
de
2º
grau.
Informações
disponíveis
em:
173
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I174
Destacamos ainda a atuação do Conselho Nacional de Justiça, que,
atento à necessidade de implementação de meios alternativos de
solução de conflitos como forma de melhorar a justiça brasileira,
vem tomando diversas iniciativas para fomentar o assunto, como o
Projeto "Movimento pela Conciliação" liderado pelo CNJ e
coordenado por Lorenzo Lorenzoni e Germana Moraes. Não
bastasse, o CNJ editou a Resolução nº 125/10 que trata da Política
Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de
interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências,
em que, dentre outras questões, estabelece a criação de Juízos de
resolução alternativa de conflitos, verdadeiros órgãos judiciais
especializados na matéria65.
O Projeto do novo Código de Processo Civil (Projeto de lei do Senado n.
166/2010 – Projeto de Lei n. 8046/2010)66 também reconhece o instituto da mediação
como um mecanismo pacificador. O diploma ainda trata dos mediadores e dos
conciliadores nos artigos 144 a 153, atribuindo-lhes a qualidade de auxiliares da justiça,
estando, inclusive, sujeitos aos motivos de impedimento e suspeição relativos a outros
sujeitos do processo.
Temos que a normatização da mediação no Projeto do novo CPC representa o
reconhecimento da referida técnica de autocomposição, além de difundi-la aos
jurisdicionados.
A mediação, nos termos do projeto de lei, poderá ser judicial ou extrajudicial; em
ambos os casos, pode ser prévia, incidental ou posterior à relação processual
eventualmente já instaurada. Será judicial, quando designada pelo Poder Judiciário e
extrajudicial quando as partes escolherem mediador ou instituição de mediação privada.
Fica clara, ainda, a possibilidade de mediação em todo e qualquer litígio
submetido ao Poder Judiciário, desde que as partes a desejem de comum acordo ou que sua
realização seja recomendada pelo magistrado, pelo Ministério Público, pela Defensoria
Pública ou por outro sujeito do processo.
O procedimento é sigiloso e confidencial e pode versar sobre todo o conflito ou
parte dele.
65
66
<http://www.tjmt.jus.br/Areas/SolucaoConflitos/Default.aspx?IDConteudo=23920>.
Acesso
em
15.12.2012.
Idem.
BRASIL,
Projeto
de
Lei
8046/2010.
Disponível
em
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=5A3FE3B54208FAFCD79
C23E831D7CE41.node1?codteor=831805&filename=PL+8046/2010>. Acesso em 15.12.2012.
174
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I175
Vale lembrar, por fim, que o termo de acordo obtido em mediação extrajudicial
prévia equipara-se a título executivo judicial desde que o mediador que assina o termo de
acordo seja reconhecido por instituição idônea, que atenda aos requisitos do Conselho
Nacional de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado respectivo.
6. Considerações finais
Diante de todos os argumentos apresentados no decorrer do estudo, é inegável que
a mediação não só é viável, como também necessária, para uma tutela ambiental efetiva.
Analisar uma questão ambiental requer um olhar que ultrapasse a esfera jurídica.
É preciso que as partes e o terceiro que eventualmente auxiliará na composição do conflito
tenham conhecimento das crises éticas e sociológicas subjacentes àquela situação.
Ademais, as consequências de um problema ambiental são diretamente
proporcionais à complexidade e à celeridade dos acontecimentos da sociedade
contemporânea. Tais consequências, portanto, requerem instrumentos aptos e dinâmicos
para sua contenção.
Na mediação, o foco é a situação a ser resolvida e não as posições das partes que
se encontram na relação. Considerando a relevância do bem protegido, trata-se de uma
ferramenta adequada à proteção do meio ambiente.
Como visto, a despeito da lacuna legislativa, este mecanismo de composição já
está em uso, inclusive pelo próprio Poder Judiciário, diante das inegáveis vantagens que
apresenta em contraposição a um controle estatal moroso, defasado e sobrecarregado.
Como corolário do princípio da cooperação e participação, cabe ao Poder Público
e à sociedade o desafio é difundir essa prática. Acreditamos que é possível, desde que haja
consciência de que temos a real possibilidade de escolha da via mais adequada à solução
do conflito.
Se todas as opções caminharem bem, na esfera judicial e extrajudicial, teremos
uma relação eam que todos serão ganhadores: o Estado, que terá credibilidade por
concretizar os direitos que oferece; a função judicial, que, sem sobrecarga, poderá oferecer
serviço célere e qualitativo; o jurisdicionado, quando tiver sua crise resolvida de forma
satisfatória; e o bem maior, o meio ambiente, que terá mecanismos de proteção céleres e
efetivos.
175
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I176
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e
dá
outras
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______. Projeto de lei nº 517/2011. Proíbe a exigência de caução de qualquer natureza para
internação de doentes em hospitais ou clínicas da rede privada no estado do rio de janeiro,
nas
hipóteses
que
especifica.
Disponível
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<http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro1115.nsf/02ac6f279b568e24832566ec0018d839/2e41a
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177
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I178
Acesso à justiça: reflexões sobre a forma de cálculo das custas judiciais
Accès à la justice: réflexions sur la méthode de calcul des frais de justice
Maria Tavares Ferro
Marcia Carla Pereira Ribeiro
Resumo: A função desempenhada pelo Estado, por meio da qual substitui os titulares de um
conflito de interesses para, de forma imparcial, buscar uma solução plausível aos critérios de
justiça, deve ser valorada numa perspectiva econômica e socialmente aceitáveis, atendendo-se
aos parâmetros éticos que fomentam as relações de jurídicas. Assim, torna-se inviável ter por
base de cálculo somente o valor da causa para fins de arbitramento do custeio de uma
demanda, tendo em vista que o valor da causa relaciona-se, conforme determinado pelo
Código de Processo Civil, com o valor do objeto da ação. O presente artigo principia por
apresentar uma breve nota sobre a assistência judiciária gratuita e seus impactos econômicos
para depois buscar a natureza e a disciplina legal dos institutos processuais que se utilizam do
valor da causa como parâmetro para uma determinada consequência processual. O artigo
pretende, por meio da identificação da sistemática adotada precipuamente, mas não
exclusivamente, pelo Código de Processo Civil, conduzir uma reflexão sobre a metodologia
hoje vigente sobre o tema, a fim de aquilatar a possibilidade de modificação desta
metodologia de forma a que o acesso à justiça seja ao mesmo tempo garantido e otimizado,
colaborando, a partir desta breve contribuição, para o aperfeiçoamento do sistema.
Palavras Chaves: Jurisdição; Valor da Causa; Custas processuais; Acesso à justiça
Résumé: Le rôle joué par l'Etat, à travers lequel il remplace les titulaires d'un conflit d'intérêts,
de façon impartiale, à la recherche d'une solution plausible aux critères de justice, doit être
évalué sous une perspective économiquement et socialement acceptables, compte tenu des
paramètres qui favorisent les relations éthiques juridiques. Ainsi, il devient impossible que le
calcul de la valeur du coût d’une demande judiciaire soie basé uniquement sur la valeur
attribuée lors de la proposition de la demande, telle que déterminée par le Code de Procédure
Civile Brésilien. Cet article commence par une brève note sur l'assistance judiciaire gratuite et
ses conséquences économiques. Après, il évoque la nature et la discipline juridique des
instituts de procédure qui utilisent la valeur de la demande en tant que paramètre à une
conséquence procédurale particulière. L'article, en identifiant le système adopté par le Code
de Procédure Civile Brésilien et par d’autres lois, mène une discussion sur la méthodologie en
178
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I179
vigueur aujourd'hui a propos de ce sujet, afin d'évaluer la possibilité de modifier cette
méthode pour que le l'accès à la justice soie à la fois sécurisé et optimisé. Cette brève
contribution estime contribuer à l'amélioration du système. Mots clés: Compétence; valeur de
cause, les frais juridiques, accès à la justice.
1. Introdução
A cobrança de custas e emolumentos pelos atos forenses realizada pelo Poder
Judiciário em razão do serviço público relativo à prestação jurisdicional colocada à disposição
da sociedade, tem sido um terreno arenoso para os que tentam compreender os aspectos
objetivos que justificam a aferição do valor deste pagamento.
Sabe-se que a taxa judiciária, dentro de uma perspectiva jurídica, está inserida no
campo do tributo, afastando-se da ideia de ser classificada como uma tarifa ou preço.
Tal entendimento sustenta-se, primordialmente, em função do fato que a cobrança da
taxa é regida pelo princípio da retributividade, segundo o qual incide pelo fato do Estado
prestar um serviço, cujo sujeito passivo é indicado pela normativa aplicável, na espécie,
aquele que
recorre à
estrutura
disponibilizada por
meio do
Poder
Judiciário,
independentemente deste sujeito ser, ao final, beneficiário de alguma vantagem diretamente
associada à prestação de serviço.
Portanto, tem-se que a cobrança de taxas podem ser instituídas sempre que o Poder
Público coloca à disposição das pessoas a prestação de um serviço público específico e
divisível, chamada de taxa de serviço, ou exerce seu poder de polícia, denominada taxa de
polícia, sendo a taxa judiciária pertencente ao rol da primeira subclassificação.
Nada obstante ser esta subclassificação majoritariamente aceita pela doutrina, existe
a possibilidade de se questionar a natureza jurídica desse tributo, ao se considerar a relação
econômica que há entre a base de cálculo atualmente utilizada para a fixação de seu valor e o
valor efetivamente devido em razão da prestação da atividade jurisdicional.
Neste diapasão, na formatação do sistema brasileiro, a taxa judiciária é cobrada em
razão do valor da causa, não apresentando qualquer relação com a quantidade e a qualidade
do serviço prestado, isto é, o autor e/ou réu da ação pagam pelo proveito que a causa pode
lhes trazer ou pelo prejuízo que se evitará, sem levar em conta o verdadeiro custo do trabalho
produzido pelos órgãos judicantes, nem tampouco o poder de troca ou de uso econômico das
bens envolvidos.
Por outro lado, pode-se arguir que a cobrança de quaisquer taxas pelo Estado se
caracteriza pela ocorrência pura e simples do seu fato gerador, que é a prestação do serviço,
179
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I180
desvinculando-se de qualquer benefício ou vantagem que o contribuinte da taxa possa
angariar em razão da atividade estatal.
Logo, em razão de sua especial configuração às custas e aos emolumentos pelos atos
forenses não se pode imputar o mesmo trajeto das conhecidas taxas de serviço acima
mencionadas, exceto se, na prática, esta fosse calculada com base no real custo do labor
produzido pelo Poder Judiciário.
Ao contratar um serviço, seja ele de natureza pública ou privada, o contratante estima
pagar um preço justo, composto pelo custo do serviço e excedente do contratado. A dimensão
proporcionada pelo benefício para o contratante é mera consequência que será avaliada de
forma subjetiva na casuística, podendo-se concluir que o agente somente deverá optar pela
busca da prestação jurisdicional se racionalmente concluir que sua expectativa de ganho será
maior do que os custos para a provocação do aparato judiciário. Lembre-se, todavia, a referida
racionalidade não será de natureza meramente econômica, já que a subjetividade do agente
pode justificar uma opção que aparentemente seria inadequada, pautada num benefício de
ordem pessoal que não guarda proporcionalidade econômica (por exemplo, uma satisfação de
ordem emocional).
O presente artigo principia por apresentar uma breve nota sobre a assistência
judiciária gratuita e seus impactos econômicos para depois buscar a natureza e a disciplina
legal dos institutos processuais que se utilizam do valor da causa como parâmetro para uma
determinada consequência processual. O artigo pretende, por meio da identificação da
sistemática adotada precipuamente, mas não exclusivamente, pelo Código de Processo Civil,
conduzir uma reflexão sobre a metodologia hoje vigente sobre o tema, a fim de aquilatar a
possibilidade de modificação desta metodologia de forma a que o acesso à justiça seja ao
mesmo tempo garantido e otimizado, colaborando, a partir desta breve contribuição, para o
aperfeiçoamento do sistema.
2. Assistência Judiciária Gratuita e seus impactos econômicos
O movimento denominado Análise Econômica do Direito ou “Law and Economics”,
pode ser definido como a aplicação da teoria econômica, em especial, seu método, para o
exame da formação, estruturação e impacto da aplicação das normas e instituições jurídicas na
sociedade. Os primeiros pensamentos surgiram a partir do desenvolvimento das doutrinas
econômicas e da atenção dos economistas para os assuntos jurídicos, vindo, posteriormente,
também a chamar a atenção dos juristas para esse novo enfoque do fenômeno jurídico
(RIBEIRO e GALESKI JR, 2009).
180
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I181
O acesso ao Poder Judiciário, quer seja por meio da gratuidade, seja mediante o
pagamento de custas por si só não garante que os ideais de justiça e eficiência sejam
alcançados, transformando muitas vezes a pretensão de acessibilidade ao Poder Judiciário
num longo e insatisfatório caminho.
A Teoria Econômica Neoclássica afirmava que os agentes econômicos agem de
forma racional, ou seja, analisando os custos e benefícios com base nos dados concretos
apresentados, para com isso maximizar seus resultados. Deixam de lado decisões que refogem
à lógica racionalista, pautadas, por exemplo, numa simples vontade sem correspondente
econômico ou num capricho. Também desconsideram a própria dificuldade de acesso aos
dados necessários à formação do juízo de convencimento para a tomada de decisão. Foram as
deficiência da Teoria que estimularam os pensadores a buscar outras alternativas para a
explicação dos fenômenos analisados.
Desta forma, a Teoria dos Custos de Transação, apontam Pinheiro e Saddi (2005),
surge como uma resposta de adequação à realidade em oposição à Teoria Neoclássica,
especialmente por considerar que a racionalidade dos agentes não é ilimitada, como
entendiam os neoclássicos, pelo contrário, nenhum agente consegue ter toda a informação
possível para adotar a melhor decisão, além de que as partes estão sujeitas a restrições
cognitivas; em segundo lugar, ao contrário dos neoclássicos, os agentes buscam maximizar
seus resultados e nem sempre obedecem as regras do jogo, mas agem com oportunismo,
definido como uma maneira de buscar o interesse próprio mediante práticas desonestas,
incluindo mentir, trapacear e roubar; por último, nem sempre as transações ocorrem sem
custo, vale dizer, quase sempre haverá perda na transferência de propriedade, ou haverá perda
no valor do ativo quando é transferido de uma atividade mais rentável para outra em que não
seja tão importante.
A partir destes conceitos, pode-se analisar tanto as normas que regulam a concessão
do benefício da gratuidade judiciária, como as que fixam as custas e emolumentos
processuais.
Se, de um lado, o deferimento do benefício permite que a parte litigante fique isenta
de custas processuais em geral, de outro lado, a forma como são estabelecidas para os
pagantes pode influenciar na própria prestação da justiça, ou seja, na alçada do justo.
De acordo com o último relatório elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça,
intitulado “Justiça em Números” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2008), percebese que a prestação jurisdicional é extremamente deficitária no cotejo entre despesas e receitas
– não se está tendo por base o resultado financeiro da demanda que beneficia o demandante e
181
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I182
não o Poder Judiciário para se chegar a esta conclusão, mas sim a relação entre as custas
recebidas e as despesas para manutenção da estrutura da Justiça Federal.
Ribeiro e Galeski (2011) comentam que considerando como créditos os valores
arrecadados com taxas, custas, emolumentos, alvarás, certidões e fotocópias, no âmbito da
Justiça Estadual, foram arrecadados cerca R$ 56 milhões para despesas na ordem de R$ 5,2
bilhões, o que representa o ínfimo percentual de 1,1% do total das despesas. Não se deve
desconsiderar, contudo, que a competência desse ramo da jurisdição se faz basicamente pelo
critério pessoal, abarcando as demandas promovidas por pessoas jurídicas de direito público
que são isentas de adiantamento das despesas processuais.
Já a Justiça do Trabalho teve como receita de custas cerca de R$ 220 milhões de
reais, que significou apenas 2,4% de seus gastos na ordem de R$ 9,3 bilhões.
Portanto, ainda que quando incidentes as custas e emolumentos, o sistema judicial é
deficitário, pois o custeio quase total de seu aparato se faz sem a contrapartida necessária dos
litigantes. Esta vocação deficitária pode ser justificada pelo dever estatal de organização e
manutenção das estruturas de solução de litígios, porém, a oferta de gratuidade processual de
forma indiscriminada, sem critérios objetivos, pode se configurar como um elemento de
agravamento de uma situação deficitária por sua própria natureza.
Tem-se, desta forma, um regime de fixação de custas que é normalmente ilógico e
injusto para as partes, e um balanço negativo quando se faz a relação entre o que é
efetivamente arrecadado.
Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal tem entendimento pacífico no sentido de
que as custas processuais tem natureza jurídica de tributo, especificamente, taxa como
comentado, logo, a prestação do serviço jurisdicional, é uma espécie de serviço público que
deve ser prestado mediante o recolhimento de tributo da categoria das taxas, por ter caráter
divisível e específico.
A lógica econômica, somada à natureza das custas, apontam para a urgência em se
repensar
duas
situações
aparentemente
antagônicas,
mas
que,
na
verdade,
são
complementares: ambas se relacionam à contraprestação a uma prestação Estatal, remunerada
por taxa, para que, em tese, recaia sobre os beneficiários diretos da prestação pública e não
como ônus geral a recair sobre terceiros não contemplados pelo serviço, o que acaba por
acontecer em função da necessidade de repasses públicos que cubram a situação deficitária.
182
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I183
3. Valor da causa
Se sob a ótica da gratuidade é perceptível o descompasso entre a natureza de taxa das
custas e o perfil deficitário da prestação da atividade jurisdicional, sob a perspectivas da
forma de quantificação das custas, há também importantes ponderações a serem realizadas.
Inserida no sistema legal brasileiro, uma norma tem especial relevância com relação
ao tema deste artigo, e faz referência direta ao valor da causa. Em que pese a importância, o
referido dispositivo é pouco questionado ou debatido pela doutrina e pela jurisprudência.
Trata-se do dispositivo normativo trazido pelo atual Código de Processo Civil, em
seu artigo 258: "A toda causa será atribuído um valor certo, ainda que não tenha conteúdo
econômico imediato". Para além de seu conteúdo meramente literal, a determinação legal
produz efeito diretos e importantes dentro de um processo.
Do conteúdo normativo, pelo menos três elementos merecem destaque e atenção
quanto ao seu conteúdo: a noção de causa, o conceito de valor certo e de conteúdo econômico
imediato. Destes, é especialmente importante para este artigo questionar os motivos que
levaram o legislador a impor ao cidadão que queira se socorrer da máquina judiciária a
obrigatoriedade de atribuir um valor econômico à causa, o que significa em última instância
valorar de forma pecuniária o seu direito de acesso à justiça.
O direito de ação, com respaldo constitucional no art. 5º, XXXV, está intimamente
ligado ao direito assegurado ao cidadão de ter acesso à justiça, uma vez que decorre do
exercício do direito de ação a possibilidade de proteção dos direitos materiais resguardados no
ordenamento jurídico. Aquele direito é abstrato e não se confunde com o direito material
correspondente. Havendo conflitos entre interesses substanciais e, estes não se resolvendo
espontaneamente, nasce a possibilidade instrumental, junto ao Poder Judiciário, de solucionar
tais conflitos, seja mediante invocação da gratuidade processual, seja pela via do pagamento
de custas.
Segundo expressa a doutrina "o direito de ação independe da existência efetiva do
direito material invocado: não deixa de haver ação quando uma sentença justa nega a
pretensão do autor, ou quando uma sentença injusta a acolhe sem que exista na realidade o
direito subjetivo material" (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2009, pag. 270).
Então, acionar significa a busca que é empreendida pelo agente, no sentido da
proteção judicial de interesses jurídicos que já foram violados ou estão prestes a serem
violados por outrem, na tentativa de recomposição, reparação ou bloqueio de algum prejuízo
sofrido.
183
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I184
A sequência de atos, juridicamente organizada, que possui um pleito inicial expresso
perante ao Poder Judiciário denomina-se causa, a qual possui sentido de ação, pois encontrase baseada no direito de ação. É por meio da causa que se chega à prestação jurisdicional e,
também, é em razão dela que o legislador resolveu equacionar um valor.
Em linhas gerais, está-se diante de duas facetas da mesma moeda, uma vez que o
valor da causa é o valor da ação, o qual nada mais é que a soma pecuniária representada pelo
valor do pedido.
Na verdade, a relevância a priori sobre o valor atribuído a uma causa pode ser
extraída de suas finalidades que podem ser assim sintetizadas: 1. parâmetro para a fixação dos
ônus de sucumbência (art. 20, CPC); 2. parâmetro para fixação de multa (art. 18, § 2º e 535,
parágrafo único do CPC); 3. critério para fixação de competências; 4. critério para
determinação do rito processual a ser seguido (art. 275, do CPC); 5. critério para
dispensa/obrigatoriedade da participação do advogado na causa (art. 10 da Lei 10.259/2009);
6. remessa necessária (art. 475, § 2º do CPC); 7. parâmetro para preparo da ação e do recurso;
8. parâmetro para taxa judiciária; entre outros.
Este rol apresentado justifica uma reflexão sobre os aspectos jurídicos que envolvem
as medidas adotadas com base no valor da causa, a afinidade entre tais medidas que justificam
ou não a utilização de um mesmo critério, pelo fato de trazerem efeitos práticos de grandes
relevâncias para o sistema jurídico nacional e seus usuários.
3.1. Parâmetro para ônus de sucumbência
Apesar do valor da causa ser, em tese, uma regra de exceção quando se trata da
fixação do ônus da sucumbência, tendo em vista que a regra geral consiste na vinculação da
sucumbência ao valor da condenação, conforme previsto no caput do art. 20 do CPC, não se
pode deixar de ressaltar sua importância prática diante da gama de ações que não possuem
condenação financeira ou cuja condenação é irrisória.
Assim, para a norma, havendo parte vencida na demanda, não importa se autor ou
réu, estará sempre sujeita ao ônus de sucumbência. Por sua vez, esta verba poderá ser
arbitrada segundo os mesmos fatores que levaram ao arbitramento do valor da causa. Ora, se a
causa tem valor fixado com base no que foi pedido e, geralmente, o pedido se correlaciona
com a condenação, uma vez que o juiz está adstrito ao que foi pedido, este ciclo resultará
numa provável associação entre valor da condenação e valor da causa.
184
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I185
Dessa maneira, apesar da lei utilizar a expressão "valor da condenação", na prática,
não é incomum que os ônus de sucumbência sejam fixados com base no valor atribuído à
causa.
3.2. Parâmetro para fixação de multa
A lealdade entre as partes é elemento desejável e, a garantia de que seja resguardada,
justifica o dever atribuído ao juiz para que atue de forma a prevenir ou reprimir os atos
contrários à dignidade da justiça, bem como velar pela rápida solução do litígio. Para tanto,
pode se utilizar de recursos coercitivos, no decorrer do desenvolvimento de um processo, afim
de garantir o cumprimento da função jurisdicional nas melhores condições possíveis. Um
desses recursos é exatamente a possibilidade de impor multas a qualquer das partes do
processo sempre que transgridam seus deveres processuais ou atentem contra a moralidade da
justiça no intuito de danificar a relação processual ou prejudicar o exercício da tutela
jurisdicional.
Assim, utilizando-se como parâmetro o valor da causa, poderá o juiz impor sanções
pecuniárias a qualquer das partes em um processo, inclusive seus procuradores, de forma a
fazer cumprir os princípios processuais atrelados à correta atuação em juízo. Pode-se citar
como exemplos o teor dos art. 14 c/c o art. 18 do CPC, o art. 488, II, do CPC, art. 634, §6º do
CPC, etc.
3.3. Critério para fixação de competências
Estudos consagrados apontam para a existência de sistemas jurisdicionais que
operam com a constituição de limitações à jurisdição no sentido de restringir-se a atuação do
órgão jurisdicional na solução de conflitos de interesses, a partir de critérios de alçada,
fixados em conformidade com o valor atribuído à causa.
Este sistema que se utiliza do valor da causa para estabelecer competência, norteia a
atividade jurisdicional, evitando confusão entre as atribuições dos diversos órgãos
jurisdicionais, com vistas a possibilitar um melhor funcionamento da tutela jurisdicional.
Ensina Humberto Theodoro Jr. Que: "Com base no valor dado à causa podem, as
normas de Organização Judiciária, atribuí-la à competência de um ou outro órgão judicante"
(Theodoro Júnior, 2009, pg. 169).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I186
3.4. Critério para determinação do rito processual a ser seguido
Levando em consideração que muitas vezes a complexidade das demandas é
diretamente proporcional aos valores envolvidos, o legislador, inclusive o nacional, alterou a
ritualística processual das causas de menor valor, com o propósito de assegurar uma prestação
jurisdicional mais célere e eficiente.
Há os juizados especiais, cuja competência se baseia no valor atribuído à causa,
tomado também como a pretensão econômica que se expressa por meio da demanda, e na
menor complexidade, associada ao valor, segundo dispõe a Lei nº 9099/95, em seu art. 3º:
Art. 3º O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e
julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas:
I - as causas cujo valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo
Também o art. 275, I do CPC estabelece um patamar com base no valor da causa,
possibilitando a adoção do rito processual sumário, em substituição ao ordinário, por ser o
primeiro, em tese, mais simples e rápido.
No entanto, é possível que sejam criticados os critérios que tomam por base
exclusivamente o valor da causa e seu caráter material, já que a complexidade dos direitos
envolvidos e da pretensão expressa na lide pode estar associada a situações subjetivas das
partes, independentemente do valor econômico da pretensão. Ou seja, o dimensionamento da
complexidade de uma causa tomando por base apenas o seu valor, pode revelar-se um
descuido da legislação específica, que deixa de considerar situações fáticas que apresentam
inestimável valia para os litigantes, mas que são dotadas de extrema complexidade.
Outro fator relevante a se considerar é que em muito, na prática nacional, os
objetivos pretendidos com a alteração do rito processual buscando rapidez na prestação do
serviço é totalmente frustrada diante das dificuldades por que passam as fórmulas jurídico
procedimentais hoje vigentes, assim como as limitações estruturais dos órgãos do Poder
Judiciário. Ou seja, o que seria em princípio menos complexo e de menor importância
econômica, deveria ser julgado de forma mais célere por demandar um menor número de atos
que se processam em juízo, com a consequente diminuição dos custos. Todavia, a celeridade
pretendida muitas vezes esbarra em fatores conjunturais práticos .
186
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I187
3.5. Critério para dispensa/obrigatoriedade da participação do advogado na causa
Não obstante a garantia prevista no texto constitucional, em seu art. 133, que dispõe
de forma clara sobre a indispensabilidade do advogado na administração da justiça, a Lei
9.099/90, que dispõe sobre o regramento dos Juizados Especiais, faculta à parte litigante em
processo judicial, cuja causa não exceda o limite máximo de 20 (vinte) vezes o valor do
salário mínimo, pleitear em juízo seus interesses sem o acompanhamento de patrono
legalmente constituído.
Mais uma vez o legislador usa o parâmetro do valor da causa para atingir um
objetivo jurídico processual e fundamenta-se na mesma motivação do tópico anterior quando
aduz que causas de pequeno valor são menos complexas que as causas cujo valor é mais
elevado, a ponto de justificar a dispensa da prestação de serviços de parte de um advogado.
Há inclusive, interpretação possível no sentido da inconstitucionalidade do art. 9º da
Lei dos Juizados Especiais, com base na previsão da norma do art. 2º da Lei 8.906/94
(Estatuto da Advocacia).
Porém, ainda que polêmica esta questão, aqui reside mais um exemplo de utilização
do valor da causa como parâmetro com consequências jurisdicionais importantes, a ponto de
interferir na necessidade de atuação especializada da parte de um advogado.
3.6. Remessa necessária
O reexame obrigatório ou remessa necessária é normativa processual de revisão de
decisão de primeira instância por um órgão de hierarquia superior àquele que proferiu a
decisão contra a Fazenda Pública. Qual seja, após proferida sentença condenatória contra a
Fazenda Pública o próprio juiz remete os autos ex officio para o respectivo tribunal afim deste
confirmar ou não a referida decisão.
A Lei 10.232/01 trouxe, para legislação processual civil, uma inovação quanto a este
aspecto quando inviabilizou a remessa necessária em caso de sentença condenatória de valor
abaixo de 60 (sessenta) salários mínimos ou no caso de procedência de embargos do devedor
em execução do mesmo valor.
Há uma inviabilidade racional em movimentar a máquina judiciária para confirmar
uma decisão já proferida por um órgão competente e cujo valor é ínfimo em comparação aos
custos relativos a esta confirmação. A limitação na alçada para reexame necessário reprime
uma impropriedade econômica e lesiva ao princípio da eficiência, retirando-o quando os
próprios custos de acompanhamento desaconselham o recurso obrigatório.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I188
3.7. Parâmetro para o preparo da ação e do recurso
Para propor uma ação ou para interpor um recurso é necessário o recolhimento de
custas processuais que, em sua maioria das vezes, tem por base a natureza da demanda e o
valor atribuído à causa.
É fato que as custas iniciais de um processo terão por base o valor da causa, uma vez
que quando do início de uma ação não há qualquer outro valor que possa servir de suporte
para o cálculo das referidas despesas. Diferentemente ocorre com o preparo para o recurso.
Na oportunidade em que se recorre, já existe uma decisão, ainda que não definitiva,
que fixa um valor a título de condenação para as ações que comportem resultados
econômicos. Nesta situação, não seria absurdo propugnar-se que o preparo recursal tenha por
base o valor da condenação, ou ainda, o valor da diferença entre a condenação e o que se quer
de aumento no valor fixado e não o valor atribuído à causa, como se opera no sistema
brasileiro.
Essas questões são corriqueiramente levadas aos tribunais que já tiveram
oportunidade de se posicionar de forma favorável ao recolhimento do preparo apenas com
base no valor daquilo que é objeto do recurso, afastando-se o modelo do valor da causa,
conforme é exemplo a decisão cujo acórdão abaixo se transcreve:
Apelação - Preparo. Recurso interposto contra o capítulo da sentença que dispôs
sobre a verba honorária, para majorar o quantum arbitrado (R$ 1.500,00);
inadmissibilidade de se mandar realizar o preparo do art. 511, do CPC, com base no
valor da causa, porque isso implica no dever de recolher a quantia de R$ 37.470,00,
uma inviabilidade evidente. Uma interpretação consentânea com o fim da jurisdição
permite ajustar o encargo financeiro ao objeto específico do recurso (art. 5º, XXXV
e LV, da CF, e 4º, §2º, da Lei Estadual n.º 11.608/2003), determinando que o
preparo se faça na ordem de 2% sobre o valor de R$ 1.500,00. Provimento, em
parte, para esse fim. (TJSP -10ª Câm. do Extinto 1º TACSP; AI nº 2.000.701-4-SP;
SP. Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani; j. 12/4/2005; vu. Bol. AASP 2422, p. 3506 de
6 a 12/06/2005).
4. Base de cálculo para custas judiciais.
O valor da causa serve, como visto, de base de cálculo para o lançamento da taxa
judiciária. Todos aqueles que pretendem ingressar com uma ação em juízo devem efetuar o
recolhimento da taxa judiciária e demais despesas afim de dar processamento à sua ação,
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I189
excetuando-se apenas os beneficiários da assistência judiciária gratuita, nos termos da Lei nº
1.060/50.
Neste tópico o valor da causa assume suma importância no que diz respeito ao direito
de acesso à justiça, pois caso o autor da ação não recolha devidamente os encargos tributários
em tela, o réu poderá impugnar o processamento da ação, com possibilidade inclusive de
extinção processual sem resolução de mérito.
Merece especial ponderação a adoção do critério do valor da causa nas situações
analisadas no item acima. São diferentes previsões legais que tem como ponto em comum o
estabelecimento do valor da causa como referencial respectivamente para: parametrização dos
ônus de sucumbência a serem pagos à parte vencedora, fixação de multa e de alçada,
atribuição de rito e de reexame necessário, estabelecimento de custo de preparo e recursal, ou
seja, para definição da taxa judiciária.
Para a última finalidade, quando a norma estabelece que o valor da causa
corresponde, por exemplo, numa ação de cobrança, à soma do principal, da pena e dos juros,
ou, numa ação de alimentos ao somatório de 12 prestações mensais pedidas pelo autor,
facilmente se pode identificar nestas demandas a carência de relação econômica direta entre a
quantificação da pretensão e o valor cobrado pelo serviço que visa ressarcir ou evitar um
prejuízo sofrido pela parte.
Imagine-se, como contraponto, uma situação de contratação que esteja relacionada à
determinação da prestação de fazer de um publicitário, para a criação de um comercial para a
venda de um determinado produto X. O profissional irá analisar o custo para a produção do
comercial e informará um preço Y para elaboração do mesmo. Após a veiculação do anúncio,
se o produto vender 100 unidades ou 100.000 unidades, em nada influenciará no preço
cobrado pelo serviço de criação, que permanecerá sendo Y. O que irá influenciar neste preço
será um cálculo baseado nos custos da criação e produção do serviço, e, especialmente, qual o
valor máximo que o contratante está disposto a pagar para que possa usufruir do trabalho
intelectual do contratado, indiferentemente dos benefícios que serão efetivamente trazidos à
contratante.
O fundamento da estrutura conceitual de taxa carece de enquadramento no suporte
fático descrito em lei para cobrança de custas e encargos processuais, a partir da constatação
de que se busca a base de cálculo no valor da causa e esta se refere ao benefício
proporcionado às partes em um processo, e não aos custos reais de utilização da estrutura
judicial.
189
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I190
Por esta lógica, seria plausível que a base de cálculo para o pagamento de custas
judiciais e respectivos emolumentos pelos atos forenses tivesse um valor equivalente ao custo
do serviço prestado e não associação ao valor da causa, ou, numa etapa posterior, ao valor da
condenação.
Outros critérios poderiam ser eleitos a fim de se consolidar um novo sistema de
fixação das custas e encargos processuais. Critérios relacionados à consideração do tempo de
cada demanda processual, o labor dos funcionários públicos e privados que operam no Poder
Judiciário, a média das despesas com os materiais necessários para conclusão da causa, enfim
todo o custo relativo à prestação do serviço, incluindo-se neste cálculo, a projeção dos custos
dos atos processuais que serão desenvolvidos sob o manto da assistência judiciária gratuita.
Nesse sentido, vale reforçar um pensamento clássico da economia sob o viés
marxista, quando critica o sistema capitalista pautado na mercadoria e não no trabalho:
Resultantes de um gasto de força humana em geral, amostras do mesmo trabalho
indistinto, as mercadorias manifestam unicamente que, na sua produção, se gastou
uma força de trabalho; ou, de outro modo, que nelas se acumulou trabalho. As
mercadorias são valores, pelo que são a materialização desse trabalho, sem examinar
sua forma. O que de comum se observa na relação de troca ou no valor de troca das
mercadorias é o seu valor. (MARX, 2008, p. 52/53)
Por outro lado, e complementando a posição supramencionada, pode-se afirmar que
o valor de algo só pode ser analisado e realizado sob o ponto de vista econômico, dentro dos
limites do uso e de troca. Ao pensar em valor obrigatoriamente se deve ater à utilidade, o
poder de comprar ou a real condição da coisa.
Para Karl Marx: "A substância do valor é o trabalho; a medida da quantidade de
valor é a quantidade de trabalho, que por sua vez se mede pela duração, pelo tempo de
trabalho" (MARX, 2008, p. 53).
Transportando esta forma de pensamento para o objeto deste artigo, observa-se que a
prestação do serviço público de tutela jurisdicional deve atender ao seu valor de troca, na
proporção variável entre os resultados, o que pode ser materializado seja pela aferição do
trabalho dispendido (associado aos gastos materiais), seja pela consideração do valor de troca
(ganho obtido pela parte vencedora X o serviço prestado pelo Pode Público, pela via do Poder
Judiciário.
Assim, tem-se de um lado o trabalho do Poder Judiciário, o qual deve ter como
medida a duração do mesmo, e do outro lado o cidadão (e a sociedade em seu aspecto
190
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I191
coletivo) que recorre com base na lei à força do amparo judicial, que reconhece a utilidade do
serviço prestado e arca com suas despesas, transformando este serviço em mercadoria de
troca.
5. Valor da causa inestimável
As ações que não possuem conteúdo econômico imediato são aquelas cujo objeto
tem valor inestimável ou imensurável, pois a cultura social humana não consegue agregar
componente monetário a algumas situações da vida.
Como consequência tem-se que o cálculo para se chegar ao valor de uma causa
torna-se bastante falho. Nesses casos (ações de valor inestimável), a parte autora não
consegue arbitrar um valor para sua demanda porque o objeto da ação não pode ser valorado,
tal como acontece na ação de investigação de paternidade, anulação de casamento, interdição
etc.
A inviabilidade do cálculo ocorre justamente porque a sua base de cálculo está
atrelada ao objeto da ação, conforme estabelecido no art. 259 do Código de Processo Civil, ao
qual, nesses casos, é impossível estabelecer um valor, pois habitam no âmbito da moral e não
consegue exprimir-se em valor monetário.
Além da dificuldade supramencionada, visualiza-se outra barreira para a presente
situação, a qual se pode visualizar a partir da seguinte situação: um processo Z que trata de
uma ação de divórcio no valor de R$10.000,00 (dez mil reais), possui supostamente o valor
das custas processuais totais no valor de 1.000,00 (mil reais), tendo este processo tramitado
em Juízo, numa determinada comarca pelo prazo de 06 (seis) meses. Noutra situação, um
processo Y que tem por objeto a disputa da guarda de um menor, teve seu valor fixado de
forma livre pelo autor da ação em R$ 678,00 (seiscentos e setenta e oito reais) e, por isso, foi
cobrado pelo Poder Judiciário o valor de R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais) relativo às
custas processuais totais, estando este processo em tramitação no mesmo Juízo do processo Z
pelo período de 10 (dez) anos. Nessa situação, fica evidenciada a desproporção entre os
valores cobrados a título de custas processuais.
Percebe-se, diante desta situação hipotética que o tempo de duração de uma ação não
é levado em conta para o efeito do pagamento das custas processuais, quando, na verdade,
este deveria ser um dos principais fatores a influenciar no custeio da atividade jurisdicional.
Corrobora, em parte, com esse entendimento o Supremo Tribunal Federal, o qual já
analisou o tema por diversas oportunidades.
191
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I192
Vale destacar o entendimento da Ministra Ellen Gracie, no julgamento da ADI 26551, a qual foi relatora, destaca-se: "A jurisprudência desta Corte vem admitindo o cálculo das
custas judiciais com base no valor da causa, desde que mantida correlação com o custo da
atividade prestada".
É notável diante da leitura do voto da Ministra Ellen Gracie a percepção de sua
insatisfação com a base de cálculo do tributo em questão, pois faz uma ressalva expressa, qual
seja, a correlação com o custo da atividade prestada. Desse modo, o STF reconhece que a
cobrança das custas judiciais com apoio somente no valor da causa pode contrariar o direito
de acesso à justiça e, por isso, determina que tal cobrança tenha, estabelecido por lei, um valor
mínimo e um valor máximo, além de uma alíquota razoável.
6. Conclusão
A pretensão do presente artigo é despertar para a razoabilidade de se adotar uma
análise econômica da cobrança das custas processuais pelo legislador, uma vez que o atual
sistema de fixação do pagamento da prestação jurisdicional encontra-se em total dissintonia
com seu fundamento conceitual, isto é, taxa de natureza judiciária.
As custas relativas aos serviços forenses constitui uma etapa crucial para ingresso e
acesso à justiça. O tema medeia vital importância para sociedade que anseia por prestação de
serviço público adequado e eficaz.
O valor da causa afasta-se da atividade estatal passível de taxa. Não há qualquer
relação direta entre o valor atribuído à causa e a atividade estatal desenvolvida por meio do
Poder Judiciário. Os atos do processo não ocorrem em maior ou menor quantidade segundo os
critérios estabelecidos para o valor da causa. Existe, no mínimo, um abismo entre as situações
indicadas.
Por fim, somando-se o impacto da outorga do benefício da assistência judiciária
gratuita, com a vocação deficitária do sistema judicial na atualidade, e as distorções que
podem ser apontadas na eleição do valor da causa como elemento definidor das custas e
despesas processuais, acredita-se que a revisão do modelo pátrio relacionado ao
financiamento da prestação da tutela judicial poderá favorecer a adoção de critérios afinados
com o ideal de justiça e de acesso ao Poder Judiciário sob parâmetros reais e de efetividade,
ou seja, para além da mera existência do direito estabelecido pela letra (teórica) da Lei.
192
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I193
7. Referências Bibliográficas
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193
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I194
A RESPONSABILIDADE PROCESSUAL POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ: BREVE
ENSAIO À LUZ DO DIREITO PORTUGUÊS E BRASILEIRO
THE PROCESSUAL RESPONSABILITY FOR BAD FAITH LITIGATION: BRIEF
ESSAY UNDER BRAZILIAN AND PORTUGUESE LAW
Olívia Marcelo Pinto de Oliveira
Ana Vládia Martins Feitosa
RESUMO
Para que o mecanismo judicial buscado alcance seu fim precípuo, qual seja, justiça, é
necessário que seja garantido a todos o direito de ação e a inafastabilidade do Poder
Judiciário. No entanto, tais garantias não devem ser vistas como absolutas, afinal, há que se
ter boa-fé ao buscar um direito mediante uma lide processual. Do contrário, a “máquina”
judicial tende ao descrédito social, assoberbamento de causas e dispêndio desnecessário de
valores em razão de lides infundadas. Partindo desse pressuposto, importa para o presente
artigo o estudo da responsabilidade processual por litigância de má-fé a partir da experiência
jurídica brasileira e portuguesa. Para tanto, a pesquisa conta com metodologia de caráter
exploratório, analítico, descritivo e bibliográfico a partir da análise documental, doutrinária e
jurisprudencial, e busca responder aos seguintes questionamentos: a) Qual a diferença
existente entre litigância de má-fé e abuso de direito? b) A litigância de má-fé produz efeitos
no âmbito da responsabilidade processual e/ou civil? c) Quem pode ser condenado por
litigância de má-fé? d) Como a jurisprudência brasileira e portuguesa se manifesta sobre o
assunto? O trabalho divide-se em quatro partes. Inicialmente é importante uma
contextualização jurídica, partindo do acesso à justiça e do direito de ação direitos
fundamentais distintos. Após, diferenciar-se-á a litigância de má-fé e o abuso de direito,
institutos que geram responsabilidade a ser apurada, contudo, de natureza processual e civil,
respectivamente. E, uma vez esclarecida a litigância de má-fé, serão analisadas as
consequências para seus agentes – partes e advogado –, com fundamentação legal, doutrinária
e, especialmente, jurisprudencial.
PALAVRAS-CHAVE: Litigância de má-fé; Responsabilidade processual; Abuso de direito;
Acesso à justiça.
ABSTRACT
For sought judicial mechanism to reach its primary purpose, namely justice, it must be
guaranteed to all the right of action and non-obviation of Judiciary jurisdiction. However,
such guarantees should not be seen as absolute, after all, one must have good faith to get a
deal through a procedural conflict. Otherwise, the "machine" justice tends to discredit social,
conflicts stocking and unnecessary expenditure of amounts on account of unfounded conflicts.

Doutoranda em Direito Civil pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Constitucional pela
Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Professora do curso de Graduação em Direito e do programa de PósGraduação latu senso em Direito e Processo de Família e Sucessões da Universidade de Fortaleza - UNIFOR.
Advogada.

Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Pós-Graduada latu senso em
Direito Processual Civil pela Fundação Escola Superior de Advocacia do Ceará FESAC. Professora do curso de
Graduação em Direito e do programa de Pós-Graduação latu senso em Processo Civil, em Direito e Processo de
Família e Sucessões e em Responsabilidade Civil da Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Advogada.
194
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I195
Based on this assumption, it is important for the study of this article processual responsibility
for bad faith litigation from the Brazilian and Portuguese legal experience. Therefore, the
research has an exploratory methodology, analytical and descriptive licterature from the
documentary analysis, doctrine and jurisprudence, and seeks to answer the following
questions: a) What is the difference between bad faith litigation and abuse of rights? b) A badfaith produces effects within the processual and/or civil responsibility? c) Who may be
blamed for bad faith litigation? d) How the brazilian and portuguese jurisprudences
manifested on about the subject? This paper is divided into four parts. Initially it is important
a juridical contextualization, with brief study about access of justice and the right of action,
like a separate fundamental rights. Then, there will be a differentiation between bad faith
litigation and right abuse, juridical institutes can cause processual and civil responsibility,
respectively. And, once informed bad faith litigation, the consequences will be analyzed for
its agents - parts and lawyer - with legal reasoning, doctrinal and especially jurisprudence.
KEYWORDS: Bad faith litigation; Processual responsibility; Abuse of right; Access to
justice.
INTRODUÇÃO
Inobstante o acesso à justiça signifique numa perspectiva lato sensu “acesso à ordem
jurídica justa” (WATANABE, 2003, p.102) e, portanto, não seja sinônimo de “acesso ao
Poder Judiciário”, tal esfera se apresenta como paradigma para propiciar o acesso à justiça de
forma igual e democrática no Estado de Direito, mediante garantias previstas
constitucionalmente.
Para que o mecanismo judicial buscado alcance seu fim precípuo, qual seja, justiça, é
necessário que seja garantido a todos o direito de ação e a inafastabilidade do Poder
Judiciário. No entanto, tais garantias não devem ser vistas como absolutas, afinal, há que se
ter boa-fé ao buscar um direito mediante uma lide processual. Do contrário, a “máquina”
judicial tende ao descrédito social, assoberbamento de causas e dispêndio desnecessário de
valores em razão de lides infundadas.
Partindo do pressuposto de que “a litigância de má-fé não só viola o interesse da
parte prejudicada, mas o próprio exercício da jurisdição justa” (GURGEL, 2006, p. 73),
importa para o presente artigo o estudo da responsabilidade processual por litigância de má-fé
a partir da experiência jurídica brasileira e portuguesa.
Para tanto, a pesquisa conta com metodologia de caráter exploratório, analítico,
descritivo e bibliográfico a partir da análise documental, doutrinária e jurisprudencial, e busca
responder aos seguintes questionamentos: a) Qual a diferença existente entre litigância de máfé e abuso de direito? b) A litigância de má-fé produz efeitos no âmbito da responsabilidade
processual e/ou civil? c) Quem pode ser condenado por litigância de má-fé? d) Como a
jurisprudência brasileira e portuguesa se manifesta sobre o assunto?
195
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I196
O trabalho divide-se em quatro partes. Inicialmente é importante uma
contextualização jurídica, partindo do acesso à justiça e do direito de ação direitos
fundamentais distintos. Após, diferenciar-se-á a litigância de má-fé e o abuso de direito,
institutos que geram responsabilidade a ser apurada, contudo, de natureza processual e civil,
respectivamente. E, uma vez esclarecida a litigância de má-fé, serão analisadas as
conseqüências para seus agentes – partes e advogado –, com fundamentação legal, doutrinária
e, especialmente, jurisprudencial.
1 ACESSO À JUSTIÇA E DIREITO DE AÇÃO
O Estado de Direito encontra-se repleto de princípios e regras espalhadas ao longo do
seu texto constitucional, bem como apresenta um regime garantista de direitos, liberdades e
garantias (CANOTILHO, 2011, p. 230). O pilar do Estado de Direito é a existência de uma
proteção judiciária individual sem lacunas, segundo a qual “a garantia dos direitos
fundamentais só pode ser efetiva quando, no caso da violação destes houver uma instância
independente que restabeleça a sua integridade” (CANOTILHO, 2011, p. 273-274).
Brasil e Portugal, uma vez tendo adotado expressamente a qualidade de Estado de
Direito1, não poderiam ser diferentes. Nessa perspectiva garantista, a Constituição Federal da
República do Brasil (CRFB/88) vigente prevê expressamente, dentre outros, o princípio do
acesso à justiça, o direito de ação, a garantia da inafastabilidade do Poder Judiciário 2, os quais
merecem destaque para o tema objeto de estudo.
Acerca do disposto no art. 5º/CRFB, Fredie Didier Jr. ([S.d.], online) defende que se
trata da consagração constitucional “do direito fundamental de ação, de acesso ao Poder
Judiciário, sem peias, condicionamentos ou quejandos, conquista histórica que surgiu a partir
do momento em que, estando proibida a autotutela privada, assumiu o Estado o monopólio da
jurisdição”. De forma que “ação e jurisdição são institutos que nasceram um para o outro”.
1
Art. 1º/CRFB/88. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II
- a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o
pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Art. 2º/CRP/76. A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no
pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos
direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da
democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.
2
Art. 5º/CRFB. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça
a direito;
196
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I197
O dispositivo constitucional destacado revela a garantia do acesso à justiça, podendo
este ser compreendido em seu sentido lato como acesso à ordem jurídica justa, ou em sentido
estrito enquanto direito à inafastabilidade do Poder Judiciário. Também garante a todos o
direito de ação, ou seja, o direito público subjetivo de litigar em razão de lesão ou ameaça a
direito.
Sobre o assunto, Fredie Didier Jr. ([S.d.], online) dispõe:
Quando a Constituição fala de exclusão de lesão ou ameaça de lesão do poder
judiciário quer refererir-se, na verdade, à impossibilidade de exclusão de alegação de
lesão ou ameaça, tendo em vista que o direito de ação (provocar a atividade
jurisdicional) não se vincula à efetiva procedência do quanto alegado; ele existe
independentemente da circunstância de ter o autor razão naquilo que pleiteia; é
direito abstrato. O direito de ação é o direito judicial tout court.
Acerca do direito de ação especificamente, Victor Martins Ramos Rodrigues (2005,
p. 463) explica:
O exercício do direito público subjetivo e abstrato de ação faz nascer a relação
processual, essa, por sua vez, fonte de poder, obrigações, direitos e ônus para todos
os sujeitos do processo – juiz e partes – bem como para o representante do
Ministério Público, terceiros intervenientes e Auxiliares da Justiça. A partir do
momento em que a lide é posta em juízo, através da ação, o interesse passa a ser
público, mesmo tratando-se de conflito entre particulares, isso porque a finalidade
do processo é, no mínimo, ambígua: primeira, solucionar o conflito (interesse
particular) e, segunda, fazer valer as regras contidas no ordenamento jurídico
mantendo a ordem social (interesse público).
No Direito
Brasileiro
infraconstitucional,
o direito de ação
encontra-se
implicitamente previsto no art. 216/CPCB, que diz: “o juiz não se exime de sentenciar ou
despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as
normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de
direito”. Mas, ainda que não houvesse previsão legal, uma vez que o Estado é liberal e de
Direito, então obviamente que não se pode afastar a apreciação de lesão ou ameaça a direito
pelo Poder Judiciário (MARINONI, 2007, p. 60-61).
En efecto, el concepto clásico de acción le había atribuido al Estado sólo el deber de
solucionar el litigio. Desde esta perspectiva, era suficiente para garantizar el derecho
de acción el antiguo principio de que el juez no se puede eximir de responder a un
requerimiento de tutela jurisdiccional.
Este principio, aun cuando resultante de la negación de tutela privada y de la propia
existencia de Estado, en cierta forma está presente en el CPC, que dice así, en la
primera parte de su art. 126, “el juez no puede eximirse de emitir sentencia o dictar
providencia alegando laguna u oscuridad de la ley”.
Lo cierto es que los tribunales, incluso el STF, todavía ratifican el principio de la
prohibición de negación de jurisdicción, pero es más bien para dejar clara la
amplitud y el contenido del deber de prestar la tutela jurisdiccional, que no puede
dejar de considerar las alegaciones y las pruebas producidas por las partes5 , o
incluso agotarse con el pronunciamiento de la sentencia cuando, para la efectiva
tutela del derecho material, se necesite la práctica de actos ejecutivos derivados de la
propia fuerza estatal embutida en la sentencia de procedencia. (MARINONI, 2007,
p. 60/61)
197
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I198
A doutrina portuguesa, nas palavras de António Menezes Cordeiro (2011, p. 29),
também defende que “o direito de ação judicial surge, estruturalmente, como um direito
potestativo, isto é: um direito de, mediante uma atuação do próprio titular, desencadear efeitos
de Direito”.
A Constituição da República Portuguesa (CRP/76), por sua vez, também apresenta
previsão nesse sentido, assegurando claramente o princípio do acesso à justiça e o direito de
acesso aos tribunais.3
O Código de Processo Civil Português (CPCP) prevê, ainda, a garantia de acesso aos
tribunais,4 em outras palavras, a inafastabilidade do Poder Judiciário, já comentada.
O Estado de Direito garantista muitas vezes provoca a sutil ilusão de que tais direitos
e garantias previstos são absolutos. Continuando a partir do corte epistemológico realizado,
nem mesmo o acesso à justiça e o direito de ação devem ser entendidos como absolutos. A
verdade é que a compreensão absolutista de tais direitos pode corroborar ainda mais para a
crise do Judiciário.
António Menezes Cordeiro (2011, p. 18) chama atenção para três aspectos que
justificam a crise na justiça cível portuguesa: a complexidade das leis, a extraordinária
multiplicação dos atos processuais e o modo que as partes litigam, interessando para o
presente estudo o último aspecto destacado pelo autor.
No Brasil a situação também não é diferente, de forma que a crise do Judiciário é
manifesta. Eliana Passos Calmon (1994, p. 3) afirma que “estamos a viver uma fase
institucional abalada pela descrença, pela cobrança de soluções e pelo desrespeito
3
Artigo 20.º/CRP Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente
protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se
acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante
processo equitativo.
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais
caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou
violações desses direitos.
4
ARTIGO 2.º/CPCP (GARANTIA DE ACESSO AOS TRIBUNAIS)
1. A protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial
que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade
de a fazer executar.
2. A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo
reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os
procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.
198
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I199
institucional dos mais diversos segmentos sociais, onde se questiona até mesmo da divisão
tripartite de poder”.
Para Antônio Menezes Cordeiro (2011, p. 28): “O sistema que premie o infrator não
tem qualquer possibilidade de equilíbrio. Há que encontrar contrapesos que tornem a
chincana, o processualismo, o abuso e a ilicitude não-convidativos, em termos patrimoniais”.
Nesse contexto, a litigância de má-fé “vem sendo identificada como uma anomalia processual
responsável, no mais das vezes, pela eternização dos litígios, na contramão do mandamento
constitucional [brasileiro] que exige a razoável duração do processo 5” (FERNANDES, [S.d.],
online).
No entanto, a litigância de má-fé não pode ser confundida com o abuso de direito,
especialmente em razão das consequências diferenciadas no âmbito da responsabilidade,
conforme sejam judicialmente reconhecidos, merecendo tal diferenciação, pois, atenção e
análise minuciosa.
2 ABUSO DE DIREITO E LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
Inicialmente é importante tomar como ponto de partida o princípio da boa-fé, o qual
se afigura “como requisito essencial para a consecução do objetivo republicano, ao mesmo
tempo em que reafirma a condição de dignidade do ser humano ao contrapor-se às condutas
individualistas, já que prega a máxima valorização do outro” (MOREIRA, 2009, online).
Além do seu grau de abstração e de generalidade, a boa-fé caracteriza-se como
princípio em razão de “seu caráter fundante no sistema e a função que adquire como
fundamento decisório, fixando o alcance e o sentido das regras de um ordenamento jurídico”
(ROSENVALD, 2003, online).
Importante ressaltar que a boa-fé deve ser compreendida sob dois enfoques: a boa-fé
objetiva e a boa-fé subjetiva. A primeira acepção diz respeito a um “critério de qualificação
do comportamento do sujeito, que lhe impõe deveres e constitui-se verdadeira norma de
conduta a ser observada pelas pessoas no cumprimento de suas obrigações” (MOREIRA,
2009, online). Ainda, “traduz-se como regra de comportamento leal e diligente nas relações
jurídicas, na amplitude de suas fases, destinada a todas as personagens do tráfico jurídico.
5
Art. 5º/CRFB. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os
meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
199
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I200
Refere-se a princípio a um comportamento bilateral, de exercício de direitos e cumprimento
de obrigações” (MOREIRA, 2009, online).
Nas palavras de Nelson Rosenvald (2003, online), a boa-fé objetiva “compreende um
modelo de conduta social, verdadeiro standard jurídico ou regra de conduta, caracterizado por
uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade e correção,
de modo a não frustrar a legítima confiança da outra parte”, e pressupõe:
a) Uma relação jurídica que ligue duas pessoas, impondo-lhes especiais deveres
mútuos de conduta; b) padrões de comportamento exigíveis do profissional
competente, naquilo que se traduz como bonus pater famílias; c) reunião de
condições suficientes para ensejar na outra parte um estado de confiança no negócio
celebrado. (ROSENVALD, 2003, online)
Marina Pretel e Pretel ([S. d.], online) corrobora ao afirmar que a boa-fé objetiva:
caracteriza-se como um verdadeiro princípio constitucional, decorrente do princípio
da dignidade da pessoa humana e relacionado à solidariedade, eticidade e
sociabilidade do novel diploma civil.
Pode ser vislumbrada como um valor, norteador de todo o ordenamento jurídico,
exprimindo-se como o princípio da confiança, da lealdade, intimamente ligada à
honestidade e probidade com a qual toda pessoa deve condicionar o seu
comportamento nas relações sociais.
Relaciona-se, também, intimamente, às cláusulas gerais, à teoria do abuso do direito,
à lealdade processual e por derradeiro, à vedação das condutas ou dos
comportamentos contraditórios.
A autora supra traz à tona a vedação das condutas ou comportamentos contraditórios
como resultante do princípio da boa-fé objetiva. Trata-se do venire contra factum proprium,
“instrumento de realização do valor constitucional da confiança e da boa-fé” (PRETEL, [S.
d], online). Ainda sobre o assunto:
Ao mesmo tempo em que se exige um padrão de comportamento de um determinado
indivíduo, pode se dispor que se encontra ínsita a necessidade de coerência, qual
seja, que o indivíduo pratique os comportamentos necessários, de acordo com o
padrão do homem mediano e em harmonia com as suas condutas anteriores.
O CPCP dispõe expressamente sobre o princípio da cooperação 6, o dever de boa-fé
processual7 e o dever de recíproca correção8 a serem observados por todos os participantes e
6
ARTIGO 266.º/CPCP (PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO)
1. Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes
cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
2. O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais,
convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e
dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência.
3. As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas e
a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no n° 3 do artigo 519.º.
4. Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação
que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz,
sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo.
7
ARTIGO 266.º- A/CPCP (DEVER DE BOA FÉ PROCESSUAL)
As partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior.
200
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I201
intervenientes no processo, os quais estão interligados entre si. O primeiro diz respeito à
cooperação para a obtenção da justa composição do litígio com brevidade e eficácia, seja
mediante consenso ou em contencioso, colaborando ativamente no fornecimento de
documentos e esclarecimentos solicitados pelo juízo. O segundo, por sua vez, remete-se
legalmente ao dever de cooperação, contudo diz respeito à lealdade processual entre todos os
participantes e intervenientes. E, por último, o dever de recíproca correção remete-se
notadamente ao dever de urbanidade no processo.
Em contraposição à boa-fé pregada e demais princípios, há que se destacar o abuso
de direito e a litigância de má-fé, institutos distintos, mas ambos geradores de sanções
jurídicas em razão de ilícitos cometidos em desrespeito frontal à boa-fé e seus correlatos.
Acerca do abuso de direito, Rui Stoco ([s. d.], p. 2) entende que “em palavras
simples e objetivas, pressupõe licitude no antecedente e ilicitude no consequente, pois
originariamente o agente lança mão de um direito mas o exerce com excesso ou com abuso”.
E continua:
Então, o ato que era inicialmente lícito, em um segundo momento converte-se em
ilícito pelo excesso e não em razão de sua origem.
Do que se infere que a ideia do abuso sustenta-se em uma apreciação relativa ao
modo pelo qual o titular exerce o direito.
Humberto Theodoro Jr. (2011, p. 28), por sua vez, dispõe da seguinte forma sobre o
assunto:
O exercício de um direito próprio não pode se dar para violar o direito de outrem. O
direito de cada pessoa termina onde começa o direito alheio. Em todo conflito de
direitos – o que se dá é apenas uma aparência de conflito –, a ordem jurídica tem
seus critérios gerais para definir qual interesse deverá prevalecer e qual deverá ser
afastado. Dessa maneira, o exercício abusivo ocorre, justamente, quando o titular do
direito dele se prevalece para lesar terceiro que tem direito a opor-lhe, para evitar a
lesão que o primeiro quer lhe infringir.
Ainda nas palavras de Humberto Theodoro Jr. (2001, p. 72), “o atual Código Civil
[Brasileiro], no art. 187,9 soube reconhecer, na discussão doutrinária, de caráter internacional,
8
ARTIGO 266.º- B/CPCP (DEVER DE RECÍPROCA CORRECÇÃO)
1. Todos os intervenientes no processo devem agir em conformidade com um dever de recíproca correcção,
pautando-se as relações entre advogados e magistrados por um especial dever de urbanidade.
2. Nenhuma das partes deve usar, nos seus escritos ou alegações orais, expressões desnecessárias ou
injustificadamente ofensivas da honra ou do bom nome da outra, ou do respeito devido às instituições.
3. Se ocorrerem justificados obstáculos ao início pontual das diligências, deve o juiz comunicá-los aos
advogados e a secretaria às partes e demais intervenientes processuais, dentro dos trinta minutos subsequentes à
hora designada para o seu início.
4. A falta da comunicação referida no número anterior implica a dispensa automática dos intervenientes
processuais comprovadamente presentes, constando obrigatoriamente da acta tal ocorrência.
9
Art. 187/CPCB. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os
limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
201
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I202
a necessidade de fazer expressa, na lei, a presença do instituto do abuso de direito, e como ato
ilícito”.
Há que se falar também no abuso de direito processual, ou seja, o abuso do direito de
demandar, o qual é entendido como litigância de má-fé e encontra previsão expressa no
Código de Processo Civil Brasileiro,10 o qual apresenta rol taxativo de situações
caracterizadoras de litigância de má-fé. Trata-se de “hipóteses legais abertas, cabendo ao Juiz,
com base em padrões ético-morais realizar a adequação do caso concreto” (GURGEL, 2006,
p.69).
Humberto Theodoro Jr. (2011, p. 73) defende que:
Na verdade, aludido abuso processual ocorre com a litigância de má-fé que implica
dolo, ato ilícito, que é o gênero. Nos casos do art. 17 [do Código de Processo Civil
Brasileiro], está clara a atuação ou omissão voluntária, como objetivo de causar
11
dano, o que se configura ato ilícito, conforme programado no art. 185 do atual
Código Civil [Brasileiro].
Nessa perspectiva, o Código de Processo Civil Brasileiro (CPCB) prevê
expressamente os deveres das partes e de todos os participantes do processo, quais sejam: a)
expor os fatos em juízo conforme a verdade; b) proceder com lealdade e boa-fé; c) não
formular pretensões ou defesas, cientes de que são desprovidas de fundamento; d) não
produzir provas nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito;
e) cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de
provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.12
10
Art. 17/CPCB. Reputa-se litigante de má-fé aquele que:
I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
II - alterar a verdade dos fatos;
III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;
V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;
Vl - provocar incidentes manifestamente infundados.
VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.
11
Art. 185/CPCB. Aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as
disposições do Título anterior.
12
Art. 14/CPCB. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:
I - expor os fatos em juízo conforme a verdade;
II - proceder com lealdade e boa-fé;
III - não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento;
IV - não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito.
V - cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos
judiciais, de natureza antecipatória ou final.
Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do
disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo
das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de
acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo
202
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I203
A sanção ao litigante de má-fé compreende multa não superior a 1% sobre o valor da
causa e eventual indenização em valor não excedente a 20% sobre o valor da causa, nos
termos do art. 18/CPCB.13 Sobre a natureza da sanção legalmente importa, Marcelo Cerveira
Gurgel (2006, p. 71-72) defende:
A multa tem caráter repressivo e visa punir a conduta da parte ou interveniente que
violou o dever de lealdade processual, bem como inibir a repetição do ato. (...) O
texto legal prevê o valor máximo da multa que é de até (1%) um por cento sobre o
valor da causa, devendo ser destinada à parte prejudicada e não ao Estado, em face
de ausência de previsão expressa com esta última destinação.
A indenização, por sua vez, tem caráter ressarcitório e trata-se de uma modalidade
de responsabilidade civil extracontratual e de natureza objetiva em relação ao dano,
não necessitando de demonstração do dolo ou da culpa material do agente que o deu
causa, mas tão somente da configuração, da mesma forma como em relação a multa,
do dolo processual. Necessário, outrossim, é demonstração do dano, visto que sem
ele, nada há a ser indenizado.
O ressarcimento engloba não só os preejuízos sofridos pela parte prejudicada, como
também os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou. Todavia, nas
ocasiões em que for fixado nos próprios autos, estará limitado o Juiz ao percentual;
de (20%) vinte por cento sobre o valor da causa, consoante dispõe o parágrafo
segundo do dispositivo ora comentado. Não sendo fixado nos próprios autos, em
razão de alguma impossibilidade circunstancial, a quantificação do dano pode ser
realizada em fase de liquidação de sentença.
Rui Stoco ([S.d.], online) dispõe de forma didática sobre a diferença entre o abuso de
direito e a litigância de má-fé, esclarecendo a necessidade de tais distinções, haja vista
especialmente as consequências de cada um dos institutos.
Duas vertentes distintas devem ser estabelecidas para efeito de estudo.
A primeira, relativa ao chamado abuso de direito processual, com previsão nos
artigo 16 a 18 do Código de Processo Civil [Brasileiro] sob a rubrica “Da
responsabilidade das partes por dano processual”.
A segunda, pertinente ao abuso de direito da parte ou seu advogado em juízo, não
mais pela atuação com má-fé processual, mas com o objetivo subalterno de causar
dano ou obter vantagem indevida através do Poder Judiciário, agindo com dolo,
hipótese que se amolda ao art. 186 do Código Civil [Brasileiro].
A distinção assume importância pois a declaração de má-fé processual e a
correspondente fixação da indenização por perdas e danos ocorre nos próprios autos.
Nesta hipótese a declaração de má-fé pelo magistrado constitui mera questão
incidente, que se resolve nos próprios autos em que as partes se contendem.
estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida
ativa da União ou do Estado.
Art. 15/CPCB. É defeso às partes e seus advogados empregar expressões injuriosas nos escritos apresentados no
processo, cabendo ao juiz, de ofício ou a requerimento do ofendido, mandar riscá-las.
Parágrafo único. Quando as expressões injuriosas forem proferidas em defesa oral, o juiz advertirá o advogado
que não as use, sob pena de Ihe ser cassada a palavra.
Art. 16. Responde por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente.
13
Art. 18/CPCB. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa
não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu,
mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou.
§ 1o Quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção do seu
respectivo interesse na causa, ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.
§ 2o O valor da indenização será desde logo fixado pelo juiz, em quantia não superior a 20% (vinte por cento)
sobre o valor da causa, ou liquidado por arbitramento.
203
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I204
(...) prevê o art. 18 do Código de Processo Civil [Brasileiro] a imposição de multa
não excedente de um por cento sobre o valor da causa e indenização dos prejuízos
que a parte tenha sofrido, devendo o juiz, desde logo, nos próprios autos, fixar esse
valor, se puder dimensioná-los ou, não sendo possível, determinar a liquidação por
arbitramento (art. 18, §2º).
Do que se conclui que o próprio legislador admitiu a possibilidade de outras
hipóteses ali não contidas que podem configurar abuso de direito e admitir
indenização com base no Direito Comum, ou seja, com supedâneo no Código Civil,
na consideração de que o conceito de improbus litigator não se esgota na noção da
má-fé processual, que se amolda à fraude processual (dolo) mas deixa de fora da
previsão outros comportamentos considerados ilícitos.
Nestes casos, que devem ser identificados, impõe-se o ajuizamento de ação
específica e não aproveitamento da ação judicial onde o ilícito teria sido cometido
pela parte ou seu advogado (...).
Impõe-se ao autor que pleiteia reparação fazer prova do fato, de quem o praticou, da
conduta dolosa deste último e da existência de um dano.
Destaque-se o fato do autor defender que o dano moral oriundo da litigância de máfé pode ser requerido, mas em processo autônomo. Ora, é óbvio que tal dano não pode ser
afastado de apreciação do Poder Judiciário, se assim o fendido quiser, uma vez que se trata de
direito fundamental e, nesse caso, urge o garantismo. Também é compreensível que a
indenização legalmente regulada oriunda da litigância de má-fé refira-se ao dano material. No
entanto, cabe a seguinte indagação: não seria possível a via da reconvenção para a discussão
do dano moral oriundo da litigância de má-fé? Apesar do autor e da doutrina mostrar-se
omissa sobre o assunto, cabível é considerar tal situação, vez que se trata de instrumento
legalmente previsto nos ordenamentos português e brasileiro, através do qual se utiliza da
economia processual, uma vez que se trata das mesmas partes, tomando como causa de pedir
ato oriundo daquele processo principal.
A propósito da litigância de má-fé, a percepção doutrinária portuguesa em nada
difere da brasileira, inobstante a previsão legal expressa assuma outras nomenclaturas.
Ressalte-se que, em ambos os ordenamentos há previsão de rol numerus clausus acerca das
situações caracterizadoras da má-fé processual.
Acerca da compreensão da litigância de má-fé no Direito Português, enquanto
possibilidade de reação às prevaricações processuais, António Menezes Cordeiro (2011, p.
31) dispõe:
Historicamente – e ao contrário do que sucede noutros Direitos – o Direito português
desenvolveu o instituto da litigância de má-fé. Trata-se, antecipando, de um
esquema pesado, anquilosado e que não tem qualquer eficácia: nem compensatória,
nem dissuasiva. No entanto e – do nosso ponto de vista – por dês conhecimento da
evolução e da atual essência do abuso de direito e da responsabilidade civil, a
litigância de má-fé é (por vezes) apresentada como afastando, do âmbito do
processo, qualquer outro instituto: preventivo ou reparador. Mal.
204
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I205
O Código de Processo Civil Português também dispõe expressamente sobre a
litigância de má-fé. Importante registrar que tais dispositivos processuais, segundo Pedro
Albuquerque (2006, p. 51-52),
apenas dizem respeito a ofensas cometidas no exercício da actividade processual a
posições também elas processuais ou ao processo em si mesmo. Em nada regulam,
disciplinam, prejudicam ou colidem com outras formas ou remédios destinados a
reagir contra ofensas ou lesões de posições subjetivas tuteladas pelo direito
substantivo.
A jurisprudência portuguesa há muito compreende e condena a litigância de má-fé.
Em sede de acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Português, de 9 de dezembro de 1975
(APUD SOARES, 1987, p. 189), decidiu-se:
Relativamente à má fé material de que se trata, tem a doutrina considerado má fé
material ou dolo material os casos de dedução de pedido ou oposição cuja falta de
fundamento se conhece, e a alteração consciente da verdade dos factos ou a omissão
de factos essenciais, e má fé instrumental ou dolo instrumental aquele que respeita
ao uso reprovável do processo, ou dos meios processuais para conseguir um fim
legal, para entorpecer a acção da justiça ou para impedir a descoberta da verdade.
A litigância de má-fé e o abuso de direito, inobstante encontrem previsão legal,
tratam-se de conceitos indeterminados, os quais foram propositadamente assim dispostos em
normas processuais abertas numa tentativa de garantir o princípio da tutela efetiva. A
efetividade da tutela, que vai se confundir com a efetividade da prestação jurisdicional,
dependerá, também, da conduta das partes, magistrado, ministério público e outros eventuais
participantes no processo.
Assim, importante esclarecer as principais diferenças entre os dois institutos em
comento (ALBUQUERQUE, 2006, p. 11-13). A litigância de má-fé, portanto, caracteriza-se
por: a) tomar como fato ilícito a má-fé processual, fundada em dolo ou culpa, prescindindo da
existência de danos para eventual, limitada e pré-fixada indenização; b) apresentar natureza
punitiva e pública, podendo ser decretada inclusive, de ofício; c) proporcionar vigilância
imediata do processo. O abuso de direito, por sua vez: a) toma como fato ilícito uma atuação
contra o sistema da boa-fé processual, independentemente de dolo ou culpa do agente, e com
indenização eventual e limitada; b) possui natureza privada e consta do pedido; c) possibilita a
sanção a atitudes contrárias à boa-fé, fundamental ao sistema.
Mas, e com relação ao tipo de indenização a ser buscada em ambos os institutos? É
cabível a indenização matéria e moral por danos oriundos de litigância de má-fé e de abuso de
direito? Rui Stoco ([S.d.], online) entende que apenas a indenização por dano material é
cabível no caso da litigância de má-fé. E afirma:
205
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I206
Impõe-se também obtemperar que o abuso de direito que se converte em má-fé
processual, previstos nos arts. 16 a 18 do CPC [Brasileiro], só comporta reparação
por dano material.
Essa limitação resta clara e evidente quando o art. 16 menciona “perdas e danos” e o
art. 18 fala em “prejuízos que esta sofreu”.
Mas essa indenização não afasta a possibilidade de compensação por dano moral.
Apesar de ter papel processual relevante, não basta a litigância de má-fé para
solucionar os problemas relativos à má atuação das partes. O cidadão lesado pode utilizar-se
cumulativamente de outros institutos em razão de uma mesma atitude. Por ora, no entanto, em
razão do corte epistemológico estabelecido, apenas será analisada no presente ensaio a
responsabilidade processual por litigância de má-fé, e especialmente a da parte e do advogado
enquanto procurador judicial.
3 RESPONSABILIDADE DA PARTE LITIGANTE DE MÁ-FÉ
Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery (2001, p. 397) afirmam que, é
litigante de má-fé “a parte ou interveniente que, no processo, age de forma maldosa, com dolo
ou culpa, causando dano processual à parte contrária”. E continuam: “É o improbus litigador,
que se utiliza de procedimentos escusos com o objetivo de vencer ou que, sabendo ser difícil
ou impossível vencer, prolonga deliberadamente o andamento do processo procrastinando o
feito”.
Segundo Pedro Albuquerque (2006, p. 26),
a responsabilidade no processo resulta de um incorrecto uso deste ou de actos
processuais em que se prescinde da posição detida frente ao direito substancial e se
sanciona a posição de parte, a violação de deveres ou situações meramente
processuais, sem pressupor, sequer, relações preexistentes à lide, assumindo, por
isso, essa mesma responsabilidade natureza exclusivamente processual.
Trata-se de responsabilidade de caráter puramente processual, sancionada mediante
aplicação de multa e, eventualmente, de indenização à parte ofendida, de caráter
compensatório, mas limitado. No entanto, ainda com a eventual condenação indenizatória, a
litigância de má-fé pode perfeitamente coexistir com a responsabilidade civil. Importante
registrar, ainda, que a responsabilidade possui como requisitos: fato ilícito, dano, nexo causal.
A responsabilidade processual, por sua vez, prescinde da ocorrência do dano. Um único
comportamento processual fundado em má-fé pode resultar em condenação por litigância de
má-fé, o que ocorrerá por ocasião da sentença, bem como pode resultar no ajuizamento de
ação própria para apurar o dano e a consequente responsabilidade civil oriunda da má-fé
processual.
206
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I207
Nesse momento, poder-se-ia questionar acerca do critério de diferenciação da
indenização em consequência da litigância de má-fé processual e a indenização oriunda da
apuração da responsabilidade civil. Sobre o assunto, esclarece Pedro Albuquerque (2006, p.
54-55):
O critério da indemnização [por litigância de má-fé] não é a medida desse dano, nem
se procura reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento
que obriga à reparação. O padrão para a determinação do montante da indemnização
consiste antes, e apenas, na conduta do litigante de má-fé (...). Ou seja: em vez de se
atender, como sucede na responsabilidade civil, à situação do lesado, considera-se,
isso sim, a do autor do facto ilícito. E mesmo assim o valor a pagar é deixado a uma
opção mais ou menos discricionária do julgador. A finalidade visada pela
indemnização existente em sede de litigância de má-fé não é, destarte, ressarcitória,
como sucede com a responsabilidade civil, mas sim meramente sancionatória (como
se atesta a necessidade de se ponderar a conduta do litigante ímprobo) e
compensatória.
É preciso coibir esse tipo de atuação, não podendo o magistrado deixar de agir de
ofício ou quando provocado pela parte lesada simplesmente por acreditar que está fazendo
valer garantias processuais asseguradas pelo Estado de Direito. Nas palavras de António
Menezes Cordeiro (2011, p. 21):
Aparentemente, depara-se-nos um garantismo de raiz que permite, sem
consequências e à parte defendente, as mais diversas atuações dilatórias. Com
seriedade ou sem ela, qualquer demandado ou argüido pode deter indefinidamente o
andamento de uma causa, suscitando os mais variados incidentes, oportunos ou
inoportunos e lícitos ou ilícitos. O juiz, perfeito espectador do sucedido, não pode ou
não quer quebrar o bloqueio.
Pedro de Albuquerque colaciona diversas jurisprudências dos tribunais português
acerca da litigância de má-fé das partes, dentre elas:
STJ – 16-7-1985: apesar da nulidade do contrato de arrendamento de um andar de
prédio urbano celebrado, em nome do proprietário, por quem não tinha poderes para
tanto, nem por isso o dono do andar pode reivindicá-lo do pretenso inquilino se,
tendo perfeito conhecimento da situação que ajudou a criar, veio recebendo as
rendas em seu nome depositadas por quem disse ter agido como seu representante.
Ao reivindicar o andar em tais circunstâncias, o proprietário abusou do seu direito
por ter agido manifestamente contra vos limites impostos pela boa-fé. Por este
mesmo motivo e também por terem pretendido alterar conscientemente a verdade
dos factos, os autores incorreram em litigância de má-fé.
RP – 30-4-2001: as reclamações e outros meios previstos na lei processual, embora
não tipificados como incidentes, podem ser tributados se qualificados como abuso
processual. Assim, a arguição de nulidades da decisão recorrida, que deve ser
apreciada pelo tribunal a quo pode ser tributada como incidente quando se traduzir
em abuso processual ou expediente dilatório.
STJ – 5-7-1994: age com abuso de direito. Em contrário do dever de probidade
processual e com inferível intuito meramente protelante e, portanto, antiético, quem
recorre sem base minimamente sequer controversa, assim incorrendo nas sanções
próprias da litigância de má-fé.
207
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I208
O Superior Tribunal de Justiça Brasileiro também se manifesta sobre a
responsabilidade por litigância de má-fé. Em acórdão proferido pela 4º Turma, entendeu-se
pela condenação em litigância de má-fé:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO DE INSTRUMENTO EXPEDIENTE MANEJADO COM NÍTIDO E EXCLUSIVO INTUITO
INFRINGENCIAL - RECEBIMENTO DO RECLAMO COMO AGRAVO
REGIMENTAL - CONTRATO DE PARTICIPAÇÃO FINANCEIRA COMPLEMENTAÇÃO DE AÇÕES - SANÇÃO POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
IMPOSTA COM BASE NO ART. 18 DO CPC - DISPOSITIVO NÃO
IMPUGNADO E SEQUER AVENTADO NAS RAZÕES DA INSURGÊNCIA MANUTENÇÃO DO DECISUM PELOS SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS RECURSO DESPROVIDO. (EDcl no Ag 1393915/SC, Rel. Ministro MARCO
BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 06/12/2011, DJe 14/12/2011)
O Ministro Relator Marco Buzzi defendeu que:
No mérito, não impressiona a linha de argumentação defendida no recurso, na senda
de ser inaplicável a sanção prevista no art. 557, § 2º, ao agravo do art. 544 do CPC,
visto que a penalidade por litigância de má-fé efetivamente aplicada pela decisão ora
atacada encontra-se respaldada no art. 18 do CPC, dispositivo que não foi alvo de
impugnação nas razões desta insurgência.
Assim, remanescendo incólume a fundamentação contida na decisão agravada, deve
ser ela mantida pelos seus próprios fundamentos.
Do exposto, recebo o recurso como agravo regimental, mas nego-lhe provimento.
Em sede de Recurso Especial em processo de falência, a 3º Turma do Superior
Tribunal de Justiça Brasileiro também entendeu pela condenação por litigância de má-fé,
nesse caso pela alteração da verdade dos fatos.
FALÊNCIA. LEILÃO. PUBLICAÇÃO DE EDITAL EM JORNAL. AUSÊNCIA
DE PUBLICAÇÃO NO DIÁRIO DA JUSTIÇA. IRRELEVÂNCIA. FINALIDADE
DA NORMA PREENCHIDA. INSTRUMENTALIDADE DE FORMAS.
APROVEITAMENTO DO ATO. ARREMATAÇÃO MANTIDA. LITIGÂNCIA
DE MÁ-FÉ APLICADA 1. A afirmação claramente inverídica incluída em
contrarrazões de apelação justifica a aplicação de pena por litigância de má-fé. 2. A
publicação do edital de leilão em jornal, somada à sua afixação na sede do juízo e
divulgação por fôlderes e Internet consubstanciam meios suficientes de publicidade
do ato judicial. A ausência de publicação em órgão da imprensa oficial,
isoladamente, não justifica a anulação da arrematação, dado o princípio da
instrumentalidade das formas. 3. Recurso especial provido para restabelecimento da
sentença. (REsp 1195855/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA
TURMA, julgado em 06/12/2011, DJe 19/12/2011)
Em trecho do voto da Ministra Relatora Nancy Andrighi no recurso supra, a mesma
afirma:
Assim, a afirmação feita pelo recorrido em suas contrarrazões é inverídica,
objetivando, em verdade, induzir esta Corte em erro, o que consubstancia litigância
de má-fé nos expressos termos do art. 17, II, do CPC.
Aplico, portanto, de antemão, já pela conduta temerária manifestada na preliminar,
multa de 1% sobre o valor da causa ao recorrido, com fundamento no art. 18 do
CPC.
208
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I209
Em decisão colegiada acerca da manutenção da condenação por litigância de má-fé
junto ao Superior Tribunal de Justiça, decidiu o tribunal pela má-fé, adequando apenas o
percentual da condenação:
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. IMPETRANTES QUE AO TEMPO
DO AJUIZAMENTO DO WRIT JÁ HAVIAM PERCEBIDOS OS VALORES
BUSCADOS EM DECORRÊNCIA DE ACORDO FIRMADO COM A
ADMINISTRAÇÃO, NOS TERMOS DA LEI ESTADUAL N.º 2.946/04.
AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL. UTILIDADE E NECESSIDADE
NÃO CONFIGURADOS. CARACTERIZADA. MULTA POR LITIGÂNCIA DE
MÁ-FÉ. CONDUTA QUE SE AMOLDA ÀS HIPÓTESES PREVISTAS NO ART.
17, INCISOS I E II, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. MANUTENÇÃO.
VALOR DA SANÇÃO IMPOSTA A CADA UM DOS IMPETRANTES.
INVIABILIDADE. ART. 18 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
FUNDAMENTO DO ACÓRDÃO RECORRIDO NÃO IMPUGNADO. SÚMULA
N.º 283 DO EXCELSO PRETÓRIO. ALEGAÇÃO DE QUE HÁ TRATAMENTO
NÃO ISONÔMICO. PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA. NECESSIDADE.
1. Relativamente aos Impetrantes Manoel Valle Rocha e José Carlos Vale, que
veicularam a pretensão de isonomia salarial com os servidores militares, constata-se
a formalização do acordo previsto na Lei Estadual n.º 2.946/04, ao tempo do
ajuizamento do mandamus, o que impõe reconhecer que a concessão da segurança
não teria qualquer utilidade prática, restando patente a ausência de interesse
processual.
2. A multa por litigância de má-fé deve ser mantida, porquanto a conduta está
perfeitamente subsumida nas hipóteses previstas nos incisos I e II do art. 17 do
Código de Processo Civil. Todavia, deve ser afastado o percentual de 20% (vinte por
cento) sobre o valor da causa para cada um dos litigantes, na medida em que, por
expressa disposição legal contida no art. 18, caput e § 1.º, do Código de
Jurisprudência/STJ – Acórdãos Página 1 de 3Processo Civil, deve ser reduzida para
o valor total de 1% (um por cento) sobre o valor da causa.
3. Não havendo insurgência, nas razões do recurso ordinário em mandado de
segurança, contra todos os fundamentos utilizados pela Corte de origem para
denegar a ordem, atraindo à espécie a aplicação da Súmula 283 do Supremo
Tribunal Federal.
4. Na via mandamental, a matéria submetida ao crivo do Poder Judiciário reclama a
apresentação de prova robusta e pré-constituída do direito perseguido, sendo certo
que meras alegações não são capazes de contornar essa exigência, sendo também
impossível, nesse feito, levar a termo dilação probatória.
5. Recurso ordinário em mandado de segurança conhecido e parcialmente provido.
(RMS 30322/MS, Rel.Ministra LAURITA VAZ (1120), QUINTA TURMA,
julgado em 06/12/2011, DJe 19/12/2011)
Ressalte-se que a condenação por litigância de má-fé pode ocorre em sede de decisão
interlocutória, não havendo a obrigatoriedade de aguardar a sentença para tanto, e
especialmente pelo fato de ser também possível multiplicidade de condenações por litigância
de má-fé, tantos quantos forem os ilícitos processuais constatados naqueles autos. O Ministro
do Superior Tribunal de Justiça Brasileiro, Sálvio de Figueiredo Teixeira, na qualidade de
Relator do Recurso Especial nº 184914, dispõe claramente sobre o assunto:
Em relação à impossibilidade de se condenar em litigância de má-fé através de
decisão interlocutória, o Colegiado foi claro ao afirmar ser perfeitamente possível a
imposição da pena em decisões interlocutórias, e não apenas em sentenças,
colacionando, inclusive, julgados nesse sentido. Quanto à aplicação da pena
imposta, restou expresso no aresto que seria ela devida em razão da oposição de
209
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I210
exceção de incompetência de modo temerário, provocando um incidente processual
manifestamente infundado, nos termos dos incisos V e VI do art. 17, CPC (...).
Não há norma legal a restringir que a condenação em litigância de má-fé seja
atribuída somente em sentença, até porque, como já se decidiu, pode ser “ela
imposta mais de uma vez ao mesmo litigante, por atos diferentes no curso do
processo” (RT 623/113). Com efeito, no momento em que se reputa o ato praticado
em litigância de má-fé, recomendável que seja desde logo imposta a multa.
Logo, multa e indenização possuem “natureza puramente pecuniária, não suprimem
o direito da parte condenada e podem ser aplicadas tanto ao vencido, quanto ao vencedor da
demanda” (GURGEL, 2006, p. 76). E, no tocante ao momento da aplicação da sanção, uma
vez que a legislação não dispõe sobre o assunto de forma restritiva, pode ser imposta “em
decisões interlocutórias tantas vezes quantas existirem a configuração do ato a ser reprimido,
merecendo um destaque quanto à sanção indenizatória em face do inconveniente prático da
quantificação do total do prejuízo antes de encerrada a instrução processual” (GURGEL,
2006, p. 76).
Apesar da importância da apuração da responsabilidade processual da parte, há de se
ressaltar que esta nada faria sem a participação de seu procurador judicial que, suprindo-lhe a
capacidade postulatória, representa-lhe processualmente. Sobre o assunto, Márcio Estevan
Fernandes ([S.d.]), online) defende:
Que não se vislumbra utilidade ou justiça em condenações que têm por mira
exclusivamente o jurisdicionado leigo e explica-se: a) não há utilidade porque se
“A” pratica conduta abusiva e desleal e “B”sofre a sanção processual daí decorrente,
é justo supor que “A” não ver-se-ia motivado a alterar seu comportamento; b)
igualmente não se vislumbra justiça porque, adotado o mesmo exemplo, “B” seria
condenado pelo malfeito de outrem, situação que revela responsabilidade objetiva do
jurisdicionado pelo ilícito, muito embora, nesses casos, sequer compreenda o que se
passa.
Faz-se necessário, portanto, a análise da responsabilidade do advogado por conduta
processual de má-fé.
4 RESPONSABILIDADE DO ADVOGADO POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
A CRFB/8814 dispõe que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo
inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.
Regulando a matéria, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (EOAB)15 prescreve que
14
Art.133/CRFB. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e
manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
15
Art. 2º/EOAB. O advogado é indispensável à administração da justiça.
§ 1º No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social.
§ 2º No processo judicial, o advogado contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao
convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público.
210
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I211
o advogado exerce função social e deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito
e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia.
Assim, segundo Lucas Naif Caluri (2006, p. 74), “dentre vários requisitos do
profissional ético, podemos destacar os mais importantes: a lealdade, a moderação e a
probidade”. Por essa razão, o EOAB16 prevê expressamente que “o advogado é responsável
pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa”, incluindo aqui,
portanto, a litigância de má-fé.
Nesse sentido também se posiciona Marcelo Cerveira Gurgel (2006, p. 67-68):
Tais regras[processuais] moralizadoras, embora não incluam como destinatários
expressos, também se aplicam aos advogados, portanto, também se sujeitam “aos
deveres de lealdade processual e de ética para com os demais partícipes no processo.
Não é outra a finalidade de alguns dispositivos da Lei nº 8.906/94, a exemplo do seu
art. 32, que impõe ao Advogado a responsabilidade pelos atos que, no exercício
profissional, praticar com dolo ou culpa. Ou ainda, quando, nos termos do seu art.
34,17 considera infração disciplinar a advocacia contra literal disposição de lei; o
§ 3º No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta lei.
(grifou-se)
Art. 31. O advogado deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio
da classe e da advocacia.
§ 1º O advogado, no exercício da profissão, deve manter independência em qualquer circunstância.
§ 2º Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade,
deve deter o advogado no exercício da profissão.
16
Art. 32/EOAB. O advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa.
Parágrafo único. Em caso de lide temerária, o advogado será solidariamente responsável com seu cliente, desde
que coligado com este para lesar a parte contrária, o que será apurado em ação própria.
17
Art. 34/EOAB. Constitui infração disciplinar:
I - exercer a profissão, quando impedido de fazê-lo, ou facilitar, por qualquer meio, o seu exercício aos não
inscritos, proibidos ou impedidos;
II - manter sociedade profissional fora das normas e preceitos estabelecidos nesta lei;
III - valer-se de agenciador de causas, mediante participação nos honorários a receber;
IV - angariar ou captar causas, com ou sem a intervenção de terceiros;
V - assinar qualquer escrito destinado a processo judicial ou para fim extrajudicial que não tenha feito, ou em
que não tenha colaborado;
VI - advogar contra literal disposição de lei, presumindo-se a boa-fé quando fundamentado na
inconstitucionalidade, na injustiça da lei ou em pronunciamento judicial anterior;
VII - violar, sem justa causa, sigilo profissional;
VIII - estabelecer entendimento com a parte adversa sem autorização do cliente ou ciência do advogado
contrário;
IX - prejudicar, por culpa grave, interesse confiado ao seu patrocínio;
X - acarretar, conscientemente, por ato próprio, a anulação ou a nulidade do processo em que funcione;
XI - abandonar a causa sem justo motivo ou antes de decorridos dez dias da comunicação da renúncia;
XII - recusar-se a prestar, sem justo motivo, assistência jurídica, quando nomeado em virtude de impossibilidade
da Defensoria Pública;
XIII - fazer publicar na imprensa, desnecessária e habitualmente, alegações forenses ou relativas a causas
pendentes;
XIV - deturpar o teor de dispositivo de lei, de citação doutrinária ou de julgado, bem como de depoimentos,
documentos e alegações da parte contrária, para confundir o adversário ou iludir o juiz da causa;
XV - fazer, em nome do constituinte, sem autorização escrita deste, imputação a terceiro de fato definido como
crime;
XVI - deixar de cumprir, no prazo estabelecido, determinação emanada do órgão ou de autoridade da Ordem, em
matéria da competência desta, depois de regularmente notificado;
211
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I212
acarretamento, por ato próprio e consciente, da anulação ou nulidade de um processo
em que funcione; ou o patrocínio a clientes ou a terceiros para a realização de ato
contrário à lei ou destinado à fraudá-la.
O próprio EOAB prevê no art. 34 o que caracteriza infração disciplinar ou mesmo
conduta incompatível com a advocacia, passível de apuração mediante processo e julgamento
junto ao Tribunal de Ética e Disciplina do Conselho da Seccional onde tenha ocorrido a
infração, que, em condenando o advogado, imporá censura, suspensão, exclusão e/ou multa. 18
Inobstante a previsão especial acerca da apuração e sanção disciplinar, o art. 14 do
CPCB prevê deveres das “partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do
processo”, estando inclusos, portanto, nesse rol os procuradores judiciais, os quais também
respondem por litigância de má-fé. A condenação disciplinar não exclui, portanto, a apuração
da responsabilidade civil ou processual, sendo a recíproca também verdadeira.19
XVII - prestar concurso a clientes ou a terceiros para realização de ato contrário à lei ou destinado a fraudá-la;
XVIII - solicitar ou receber de constituinte qualquer importância para aplicação ilícita ou desonesta;
XIX - receber valores, da parte contrária ou de terceiro, relacionados com o objeto do mandato, sem expressa
autorização do constituinte;
XX - locupletar-se, por qualquer forma, à custa do cliente ou da parte adversa, por si ou interposta pessoa;
XXI - recusar-se, injustificadamente, a prestar contas ao cliente de quantias recebidas dele ou de terceiros por
conta dele;
XXII - reter, abusivamente, ou extraviar autos recebidos com vista ou em confiança;
XXIII - deixar de pagar as contribuições, multas e preços de serviços devidos à OAB, depois de regularmente
notificado a fazê-lo;
XXIV - incidir em erros reiterados que evidenciem inépcia profissional;
XXV - manter conduta incompatível com a advocacia;
XXVI - fazer falsa prova de qualquer dos requisitos para inscrição na OAB;
XXVII - tornar-se moralmente inidôneo para o exercício da advocacia;
XXVIII - praticar crime infamante;
XXIX - praticar, o estagiário, ato excedente de sua habilitação.
Parágrafo único. Inclui-se na conduta incompatível:
a) prática reiterada de jogo de azar, não autorizado por lei;
b) incontinência pública e escandalosa;
c) embriaguez ou toxicomania habituais.
18
Art. 35/EOAB. As sanções disciplinares consistem em:
I - censura;
II - suspensão;
III - exclusão;
IV - multa.
Parágrafo único. As sanções devem constar dos assentamentos do inscrito, após o trânsito em julgado da decisão,
não podendo ser objeto de publicidade a de censura.
19
Everton Leandro da Costa (2011, online) estabelece uma ressalva a esse posicionamento: “clarividente a
responsabilidade do advogado por litigância de má-fé, conquanto não possa ser punido pelo magistrado
diretamente. Ao ensejo, nota-se que, sujeito aos deveres de probidade e fidelidade processuais, os causídicos não
se eximem do processo disciplinar previsto no Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil; da
comprovação de culpa do profissional liberal por imprudência, negligência ou imperícia, incorrendo nos termos
do Código de Defesa do Consumidor e, outrossim, dos ditames previstos no Código Penal, quais sejam,
patrocínio infiel e sonegação de papel ou objeto de valor probatório. Conclui-se a grande valia dos artigos14 a18
do Código de Processo Civil, por efetivarem o princípio da lealdade processual, impondo deveres às partes e a
todos os que participam do processo e, ainda, imputando às mesmas a responsabilidade por litigância de má-fé.
Neste sentido, não há que se olvidar dos desvelos que os mandatários necessitam ter em relação às causas e
212
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I213
Márcio Estevan Fernandes ([S.d.], online) também entende que, uma vez que o
advogado contribua para a “configuração da litigância de má-fé (má-fé material) ou a
praticando como estratégia resultante de sua livre opção (má-fé instrumental), deve o
profissional da advocacia responsabilizar-se, respectivamente, de forma solidária ou
exclusiva”. E, ainda:
A condenação do advogado em lide temerária não é vedada por qualquer disposição
do Código de Processo Civil [Brasileiro], que, ao contrário, impõe os deveres de
probidade e lealdade às partes e “a todos aqueles que de qualquer forma participam
do processo” (art. 14) e responsabiliza “autor, réu ou interveniente” que “pleitear de
má-fé” (art. 16). (...)
Daí decorre que qualquer interpretação dos arts. 14 a 18 do Código de Processo
Civil [Brasileiro] tendente a elidir a responsabilidade advocatícia pelas condutas
abusivas e desleais, sob o fundamento de ausência de previsão expressa quanto à
figura do advogado, parece s.m.j., partir de um sofisma, porquanto diante de
cláusula genérica que se destina a todos que participam do processo (Código de
Processo civil, arts. 14 e 16), o que se exigiria para a exclusão do advogado seria, ao
contrário do que se supõe, a previsão expressa de sua imunidade.
Entender-se de outro modo, permissa vênia, significa conferir maior proteção ao
litigante de má-fé (por vezes responsável único pela eternização dos litígios) do que
aquela que se empresta a quem concorre para um crime, muito embora em dadas
hipóteses as situações se equivalham, como, por exemplo, no caso de fraude
processual (Código Penal [Brasileiro], art. 347).20
O Superior Tribunal de Justiça Brasileiro já decidiu sobre a condenação de
advogados no exercício da profissão por litigância de má-fé.
PROCESSO CIVIL - EMBARGOS DE EMBARGOS DECLARATÓRIOS NO
AGRAVO REGIMENTAL - DENÚNCIA ESPONTÂNEA - ERRO MATERIAL INEXISTÊNCIA DE PARCELAMENTO - LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ - MULTA E
INDENIZAÇÃO.
1. Ação que visa excluir multa cobrada em pagamento efetuado diretamente em
agência bancária. Equívoco do Tribunal ao julgar apelação, que considerou tratar-se
de parcelamento do débito. Ocorrência de erro material.
2. Litigância de má-fé dos advogados da empresa autora, que se omitiram
em apontar a ocorrência do erro na primeira oportunidade em que se manifestaram
nos autos após o julgamento, vindo a fazê-lo somente após o julgamento de diversos
recursos, quando a decisão que iria prevalecer seria desfavorável à sua cliente.
Imposição, aos advogados subscritores dos recursos, de multa de 1% do valor
atualizado da causa, além de indenização ao recorrido de 5% do valor atualizado da
causa.
3. Anulação de todos os julgamentos posteriores ao do apelo, para que o Tribunal
corrija o apontado erro material.
4. Embargos de declaração acolhidos, com efeitos modificativos.
(STJ, 2º T. Edel nos Edel do AgRg do REsp nº 494021/SC, rel. Min. Eliana Calmon,
j. 17/06/2004, DJU 13/09/2004)
clientes que patrocina. Todavia, atenta-se que a responsabilidade por condutas pérfidas e ardilosas no processo
civil imputa-se, tão somente, às partes e não aos seus patronos. Conquanto previsto aos mesmos o dever de
lealdade, de igual forma não se perfaz a responsabilidade por litigância de má-fé”.
20
Fraude processual
Art. 347/CPB - Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de
coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito:
Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.
Parágrafo único - Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas
aplicam-se em dobro.
213
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I214
Na supramencionada jurisprudência, a Ministra Relatora Eliana Calmon entende
“efetivamente, que houve má-fé, não da parte, mas dos ilustres advogados que a representam,
por não terem trazido à tona os fatos na primeira oportunidade seguinte à ocorrência do erro
material. Mas o que fazer? Prejudicar a parte? Fechar os olhos para um julgamento extra
petita decorrente de erro material?”. E conclui pela condenação única e exclusivamente dos
advogados da parte autora por litigância de má-fé, afastando a parte por eles representada. A
Ministra ainda continua em seu voto, concluindo que,
apesar da evidente má-fé dos patronos da causa, cabe ao TRF da 4ª Região corrigir o
apontado erro material, porque não pode ser penalizada a empresa
autora. Entretanto, entendo pertinente a aplicação aos advogados das penalidades
por litigância de má-fé (art. 17, V c⁄c 18 do CPC). (...) Condeno os advogados J. e R.
ao pagamento pro rata de: a)multa que ora fixo em 1% (um por cento) do valor
atualizado da causa; b)indenização de 5% (cinco por cento) do valor atualizado da
causa, a ser pago ao INSS.
Observe-se agora outra decisão do Superior Tribunal de Justiça brasileiro:
PROCESSO
CIVIL
EMBARGOS
DE
DECLARAÇÃO
NO
AGRAVO REGIMENTAL - MANDADO DE SEGURANÇA - IMPORTAÇÃO
DE VEÍCULO - PENA DE PERDIMENTO - LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ RECURSO PROTELATÓRIO -CONDENAÇÃO DO PROCURADOR AO
PAGAMENTO DE MULTA.
1. Inexistência de omissão, mas inconformismo da parte com o julgamento
do recurso especial.
2. Embargos de declaração interpostos com propósito meramente
protelatório, buscando retardar o desfecho da demanda.
3. Aplicação de multa de 1% (um por cento) do valor atualizado da causa, a
ser suportada pelo advogado subscritor do recurso, nos termos do art. 14, II c⁄c 17,
VII e 18, caput do CPC, pois é dever das partes e dos seus procuradores proceder
com lealdade e boa-fé.
4. Embargos de declaração rejeitados, com imposição de multa.
(STJ, 2º T., Edel no AgRg no REsp nº 427839, rel. Min. Eliana Calmon, j.
17/10/2002, DJU 18/11/2002)
Aqui também a Ministra Eliana Calmon entende pela condenação dos advogados por
litigância de má-fé, afirmando em seu voto o seguinte:
Observe-se que inexiste omissão alguma, mas inconformismo da parte com
o encaminhamento do julgado.
É a segunda vez que a parte recorre com o mesmo fundamento, sem ter, contudo,
nenhuma razão, o que leva a crer que tem o recurso propósito
meramente protelatórios, buscando o recorrente retardar o desfecho da demanda que
lhe é desfavorável.
Com estas considerações, rejeito os embargos e, nos termos do art. 14, II c⁄c art. 17,
VII e 18, caput, todos do CPC, condeno o Dr. Divonsir Borba Côrtes Filho,
subscritor do recurso de fls. 216⁄219, ao pagamento de multa que ora fixo em 1%
(um por cento) do valor atualizado da causa.
A CRP, em seu art. 20º, outrora mencionado, assegura o direito a fazer-se representar
por advogado. O CPCP, também já citado, prevê o dever de boa-fé processual, destinando-se
a todos os intervenientes do processo. E o Estatuto da Ordem dos Advogados de Portugal
214
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I215
(EOAP) dispõe que “o advogado é indispensável à administração da justiça”,21 também, assim
como o EOAB, regulando as obrigações do profissional em questão e a possibilidade de sofrer
sanção disciplinar,22 independentemente de responsabilização civil ou criminal.23
Acerca da fixação da multa e da indenização, a doutrina portuguesa, nas palavras de
Pedro de Albuquerque (2006, p. 167) chama atenção para o fato de que a condenação e a
fixação do percentual levam em consideração apenas a conduta do litigante de má-fé, e não o
eventual dano provocado, o qual é prescindível no caso da responsabilidade processual.
Também a jurisprudência portuguesa entende que o advogado pode ser condenado
por litigância de má-fé. Interessante julgado sobre o assunto revela tal reconhecimento pelo
Supremo Tribunal de Justiça, inclusive de forma oficiosa:
Processo nº 02B674
Relator: Ferreira Girão
Recurso de Revista
Negada a revista.
Sumário: Sem embargo de o STJ funcionar como última instância, não fica o mesmo
inibido do seu poder-dever de conhecer de todas as questões de conhecimento
oficioso, tais como a da litigância de má-fé.
Decisão:
Corridos os vistos cumpre decidir.
Eis-nos perante um (triste) exemplo de como se litiga de rotunda má fé, reagindo
aleivosamente contra decisões não recorridas na devida altura e assentes em acordos
tácitos ouexpressos estabelecidos entre as duas partes e únicos interessados no
21
Artigo 83.º/EOAP
1 - O advogado é indispensável à administração da justiça e, como tal, deve ter um comportamento público e
profissional adequado à dignidade e responsabilidades da função que exerce, cumprindo pontual e
escrupulosamente os deveres consignados no presente Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e
tradições profissionais lhe impõem.
2 - A honestidade, probidade, rectidão, lealdade, cortesia e sinceridade são obrigações profissionais.
22
Artigo 109.º/EOAP Jurisdição disciplinar
1 - Os advogados estão sujeitos à jurisdição disciplinar exclusiva dos órgãos da Ordem dos Advogados, nos
termos previstos neste Estatuto e nos respectivos regulamentos.
2 - O pedido de cancelamento ou suspensão da inscrição não faz cessar a responsabilidade disciplinar por
infracções anteriormente praticadas.
3 - Durante o tempo de suspensão da inscrição o advogado continua sujeito à jurisdição disciplinar da Ordem dos
Advogados, mas não assim após o cancelamento.
4 - A punição com a pena de expulsão não faz cessar a responsabilidade disciplinar do advogado relativamente
às infracções por ele cometidas antes da decisão definitiva que tenha aplicado aquela pena.
Artigo 110.º/EOAP Infracção disciplinar
Comete infracção disciplinar o advogado ou advogado estagiário que, por acção ou omissão, violar dolosa ou
culposamente algum dos deveres consagrados no presente Estatuto, nos respectivos regulamentos e nas demais
disposições legais aplicáveis.
23
Artigo 111.º/EOAP Independência da responsabilidade disciplinar
1 - A responsabilidade disciplinar é independente da responsabilidade civil ou criminal.
2 - Quando, com fundamento nos mesmos factos, tiver sido instaurado processo criminal contra advogado, pode
ser ordenada a suspensão do processo disciplinar, devendo a autoridade judiciária, em qualquer caso, ordenar a
remessa à Ordem dos Advogados de cópia do despacho de acusação ou de pronúncia.
3 - Sempre que, em processo criminal contra advogado, seja designado dia para julgamento, o tribunal deve
ordenar a remessa à Ordem dos Advogados de cópias da acusação, da decisão instrutória e da contestação,
quando existam, bem como quaisquer outros elementos solicitados pelo membro do conselho competente.
215
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I216
inventário, com argumentos completamente destituídos de fundamento e até, alguns,
descaradamente contraditórios.
(...)
Nesta conformidade, só por retinta má fé e compulsiva vontade de litigar é que a
recorrente vem agora reagir, com despropositados argumentos assentes na figura do
caso julgado formal, contra a eliminação da partilha dos bens móveis -- por
se encontrarem deteriorados e inutilizados, «tendo ido para o lixo» --, depois de ela
própria
ter
dado
o
seu
assentimento
a
essa
eliminação:
(...)
Depois, a vontade compulsiva de litigar da recorrente chega ao extremo de - e, no
mínimo, com negligência grave - qualificar como erros de julgamento patentes
lapsos de escrita constantes do acórdão recorrido, logo e pelo contexto detectáveis
como tais e, por isso, susceptíveis apenas de uma mera rectificação, como
determinam os artigos 249 do Código Civil e667 do Código de Processo Civil.
(...)
Em suma, todo este conjunto de inconsistências e de contraditoriedades dos
fundamentos recursivos acabados de analisar (e de repudiar) determina,
inexoravelmente, não só o improvimento do recurso, como também a condenação da
recorrente, por manifesta e inadmissível litigância de má fé, sob a forma - e, no
mínimo, como vimos dizendo - de negligência grave, nos termos das alíneas c) e d)
do
nº
2
do
artigo
456
do
Código
de
Processo
Civil.
É também evidente a forte quota-parte da responsabilidade pessoal e directa da
mandatária da recorrente em toda esta litigância de má fé, ao optar pela estratégia,
pouco ou nada leal, de não acompanhar a sua constituinte nas conferências de
interessados, para depois, enviesadamente, subscrever recursos sem fundamento ou
com fundamentos contraditórios para tentar destruir o que, por aquela, já tinha sido
aceite ou acordado.
-- tendo sido a presente revista interposta e processada já na vigência da Reforma de
1995/96, a questão da litigância de má fé não podia deixar de ser apreciada, como
foi, à luz da nova redacção do artigo 456 do Código de Processo Civil, por se tratar
de disposição geral e atento o disposto no artigo 25 do DL 329-A/95, de 12/12,
aditado pelo DL 180/96, de 25/09.
DECISÃO
Por todo o exposto decide-se:
a) negar a revista;
b) considerar rectificados, nos termos atrás referidos e ao abrigo dos artigos 249 do
Código Civil e 667 do Código de Processo Civil, todos os lapsos de escrita
constantes da acta de fls 125 e vº e do acórdão de fls. 298-303;
c) condenar a recorrente nas custas (sem prejuízo do apoio judiciário de que
beneficia), bem como na multa de 20 UCs por litigância de má fé;
d) ordenar a remessa à Ordem dos Advogados de certidão deste acórdão, nos
termos e para os fins do artigo 459 do C.P.Civil.
Lisboa, 6 de Junho de 2002. Ferreira Girão, Moitinho de Almeida, Joaquim de
Matos.
Manifesta é, portanto, a possibilidade responsabilização processual do advogado, na
qualidade de procurador judicial e ciente de seus deveres no exercício da profissão,
ressaltando, ainda, que a condenação em litigância de má-fé não exclui a possibilidade de
responsabilização na esfera cível e disciplinar.
CONCLUSÃO
Portugal e Brasil, enquanto Estados de Direito, asseguram o acesso à justiça, a
inafastabilidade do Poder Judiciário ou acesso aos tribunais e o direito de ação. Tais garantias,
no entanto não devem ser absolutas, especialmente se o princípio da boa-fé não for observado.
216
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I217
Esse é o entendimento numa tentativa de afastar a crise que assola o Judiciário, seu
descrédito, bem como punir judicialmente os responsáveis mediante reparação de ordem
pecuniária.
Nesse contexto, estudou-se o abuso de direito, em especial o abuso de direito
processual – a litigância de má-fé –, que, segundo o que se observa na prática dos tribunais
brasileiros e através da doutrina portuguesa crítica, a apreciação e a condenação de tal ordem
ainda figura timidamente.
A litigância de má-fé, instituto processual de caráter repressor à má-fé processual,
passível de ser apurado de ofício ou a requerimento do lesado nos autos do próprio processo
ensejador de ato atentatório à boa-fé, mediante petição simples, encontra previsão em norma
de caráter público, vez que atenta contra a ordem jurídica, e, uma vez apurada, pode resultar
na condenação do responsável em multa e indenização, ambos com percentual máximo
legalmente previsto. Ressalte-se que tal indenização possui natureza compensatória, devendo,
portanto, ser provado o dano material sofrido. A multa, por sua vez, possui natureza
repressora, devendo ser aplicada independentemente de dolo/culpa ou dano efetivo, bastando,
para tanto, que má-fé processual tenha sido constatada.
A condenação do litigante de má-fé não o exime de responder civil, criminal e
disciplinarmente. Caso o ato ilícito que tenha praticado esteja acompanhado dos demais
requisitos da responsabilidade civil, então sua apuração deve ocorrer, caso o lesado tenha
interesse, mediante reconvenção nos próprios autos onde a litigância de má-fé foi praticada,
ou ação autônoma. Os processos criminal e disciplinar devem tramitar, eventualmente, cada
um em sua respectiva esfera. Há que se falar em processo disciplinar se o litigante de má-fé
estiver atuando enquanto profissional, como é o caso do mandatário judicial e do perito
judicial.
Pode ser litigante de má-fé não somente cada uma das partes, mas cada um dos
intervenientes processuais, inclusive, portanto, o advogado. Este profissional, uma vez que a
lei não restringe e em razão do papel e poder que possui no processo, pode ser condenado
solidariamente ou exclusivamente, o que não afasta eventual processo disciplinar à luz do
Estatuto da Ordem dos Advogados.
Trata-se a responsabilidade processual por litigância de má-fé de assunto ainda
pouco explorado doutrinariamente e deixado à margem pelos magistrados, principais atores
na repressão à má-fé, notadamente a de ordem processual.
217
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I218
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219
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I220
ACESSO À JUSTIÇA, CELERIDADE E (IN)EFETIVIDADE
PROCESSUAL: A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 285­A
DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A (IM)POSSIBILIDADE DE
PROCEDÊNCIA PRIMA FACIE1
ACCESS TO JUSTICE, CELERITY AND PROCEDURAL
(IN)EFFECTIVENESS: THE (UN)CONSTITUTIONALITY OF THE
ARTICLE 285 OF THE CODE OF CIVIL PROCEDURE AND THE
(IM)POSSIBILITY OF PRIMA FACIE PROCEDENCE
Lara Careta Parise 2
Lara Santos Zangerolame Taroco3
RESUMO
Compatibilizar a devida prestação jurisdicional com o coeficiente temporal tem­se configurado um
dos maiores desafios do modelo jurídico brasileiro hodierno. Quando essa necessidade
transporta­se para o âmbito do Direito Processual Civil, o que se vê são incontáveis iniciativas as
quais pretendem contribuir para a estruturação de um processo célere e efetivo. Tratam­se de
investidas que pretendem assegurar o acesso à justiça para além da mera possibilidade de ingressar
em juízo, mas em uma dimensão de maior complexidade, garantindo um processo norteado pelos
preceitos constitucionais, que coaduna o tempo com a devida tutela jurisdicional. O presente estudo
pretende debruçar­se sobre uma dessas iniciativas, analisando as polêmicas questões que envolvem
a (in)constitucionalidade do artigo 285­A do Código de Processo Civil e a possibilidade de
sustentação da (im)procedência prima facie. Primeiramente, os contornos legislativos da
improcedência prima facie são expostos, posteriormente a questão dos princípios constitucionais e,
consequentemente, da constitucionalização do processo são abordadas. Por fim, discute­se, à luz de
alguns julgados, a suposta inconstitucionalidade do artigo 285­A, bem como a possibilidade de
sustentação, por meio de analogia, da procedência prima facie.
PALAVRAS­CHAVE: IMPROCEDÊNCIA PRIMA FACIE. ACESSO À JUSTIÇA.
EFETIVIDADE PROCESSUAL.
1
Artigo apresentado ao Curso de Direito da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), como requisito parcial para
aprovação na disciplina de Direito Processual Civil, ministrada pelo professor Me. Bruno Albino Ravara.
2
Graduanda em Direito pela FDV ­ Faculdade de Direito de Vitória. Contato: [email protected]
3
Graduanda em Direito pela FDV ­ Faculdade de Direito de Vitória; membro do Grupo de Pesquisa: Hermenêutica
Jurídica e Jurisdição Constitucional do Programa de Pós­Graduação Stricto Sensu da FDV; Pesquisadora bolsista
do Programa de Iniciação Científica ­ FDV. Contato: [email protected].
220
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I221
ABSTRACT
The construction of a jurisdictional model compatible with the temporal coefficient has set up one of
the biggest challenges of today's Brazilian legal model. When this necessity is transported to the field
of the Civil Procedure Law, what is seen is innumerable initiatives which aim to contribute to the
development of a swift and effective process. These are all ways that aim to ensure access to justice
beyond the mere possibility of entering into judgment, but in a dimension of greater complexity,
ensuring a process guided by constitutional principles, which is consistent over time with proper
judicial protection. This study aims to look into one of these initiatives, analyzing the controversial
issues surrounding the (un)constitutionality of article 285­A of the Code of Civil Procedure and the
ability to support the prima facie (im)procedence. At first, the outlines of legislative rejection prima
facie are exposed, then the question of constitutional principles and, consequently, the
constitutionalization process are addressed. Finally, it is discussed in the light of some jurisprudence,
the alleged unconstitutionality of Article 285­A, as well as the ability to support, through analogy, the
prima facie procedence.
KEYWORDS: PRIMA FACIE DESMISSED. ACCESS TO JUSTICE. PROCESSUAL
EFECTIVENESS.
221
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I222
INTRODUÇÃO
Com o advento da Constituição Federal de 1988 iniciou­se um processo de modernização da
legislação brasileira, necessário devido ao aumento pela busca da tutela jurisdicional. Seguindo­se a
esta, houve também uma reforma do Código de Processo Civil (CPC), com o intuito não apenas de
garantir o acesso ao Poder Judiciário, mas também a efetividade na prestação jurisdicional.
Vale destacar que a demora excessiva na tramitação de um processo acaba por gerar descrédito da
opinião pública quanto ao Poder Judiciário, além de ser danosa tanto ao autor, que demora a ter seu
direito restabelecido, quanto ao réu, que vive sob o tormento de uma possível decisão que lhe seja
desfavorável. Como forma de garantir a duração razoável do processo, o legislador brasileiro inseriu
no Código de Processo Civil o artigo 285­A, no qual há julgamento liminar pela improcedência do
pedido.
O presente estudo volta­se para a análise desta inserção, suas benesses, bem como as garantias
constitucionais que a envolvem, e se esta contribuiu, de alguma forma, para a promoção do acesso a
justiça. Além disso, será discutida acerca da constitucionalidade do artigo 285­A do CPC, devido à
existência de posicionamento contrário a aplicação desta norma. Pretende­se, portanto, analisar os
fundamentos de inconstitucionalidade e os de constitucionalidade deste artigo, à luz dos princípios
222
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I223
constitucionais do processo civil.
Ademais, será abordado sobre a omissão do legislador quanto à possibilidade de julgamento liminar
pela procedência do pedido. O estudo ainda discutirá a possibilidade de, por meio da interpretação
analógica do artigo 285­A, proceder a decisão de procedência prima facie, com a exposição dos
fundamentos de constitucionalidade e os de inconstitucionalidade.
O tema ora discutido é de grande relevância, uma vez que com o aumento pela busca da tutela
jurisdicional, torna­se cada vez mais essencial ao Poder Judiciário criar meios para atender a esta
demanda, proporcionando maior efetividade, celeridade e uma duração razoável do processo.
Desta forma, cumpre­nos realizar uma tripla inquirição, primeiro: o artigo 285­A do CPC é
constitucional e, em um segundo momento, há a possibilidade de aplicação deste, por meio da
analogia e, quando presente todos os requisitos, para proferir julgamento liminar pela procedência
do pedido? Por último, a inserção do presente dispositivo normativo auxiliou/facilitou, em alguma
medida, o acesso a justiça e a celeridade no modelo processual brasileiro?
1 A (IN)EFICIÊNCIA DA TUTELA JURISDICIONAL E O
IMPROCEDÊNCIA PRIMA FACIE: (NECESSÁRIAS)
MODIFICAÇÕES LEGISLATIVAS
Desde sua promulgação o Código de Processo Civil brasileiro passa por constantes alterações, para
que possa atender ao aumento da busca por uma tutela jurisdicional mais eficiente. Exemplo disto é
a alteração ocasionada pela Lei nº 11.277, de 2006 em que fora incorporado em seu texto o artigo
285­A, o qual gera a possibilidade de improcedência prima facie, veja:
Art. 285­A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já
houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos,
poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo­se o teor da
223
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I224
anteriormente prolatada.
§ 1o Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de 5 (cinco) dias, não
manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação.
§ 2o Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao
recurso.
É de grande relevância os dizeres de Didier Júnior4
, para o qua
ocorre quando,
[...] o magistrado, liminarmente, reconhece a improcedência do pedido e não admite
sequer a citação do réu, ato que se revela desnecessário antes a macroscópica
impertinência do pedido. Trata­se de decisão que analisa o mérito da causa, apta,
portanto a ficar imune pela coisa julgada material.
Como pôde ser aferido, a improcedência prima facie trata­se de um julgamento liminar do mérito,
no qual o magistrado entende ser desnecessária a citação do réu, ante a impertinência do pedido,
rejeitando, então, a petição inicial. Deste modo, será sempre uma decisão favorável ao réu. Vale
ressaltar que cabe ao magistrado tal decisão, ficando a seu critério a rejeição da petição inicial ante
sua impertinência. Quanto ao julgamento liminar de causas repetitivas, para assim serem
configurados, exige­se a observância de dois requisitos, consoante Didier Júnior5
. Tais são: q
matéria controvertida seja unicamente de direito e que se trate de causas repetitivas
No que se refere à que a matéria controvertida seja unicamente de direito, Didier Júnior6
que:
[...] trata­se de causa cuja matéria fática possa ser comprovada pela prova
documental. É hipótese excepcional de julgamento antecipado da lide (art.330, CPC),
que passa a ser autorizado, também, antes da citação do réu, se a conclusão do
magistrado é pela improcedência. Antecipa­se ainda mais o momento de julgamento
da causa, dispensando não só a fase instrutória, mas inclusive a própria ouvida do
4
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil e processo de
conhecimento. 14 ed. rev., ampl. e atual. Bahia: Editora JusPODIVM, 2012. v. 1, p. 479.
5
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil e processo de
conhecimento. 14 ed. rev., ampl. e atual. Bahia: Editora JusPODIVM, 2012. v. 1, 488.
6
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil e processo de
conhecimento. 14 ed. rev., ampl. e atual. Bahia: Editora JusPODIVM, 2012. v. 1, p. 488.
224
entende
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I225
réu. É exemplo de decisão definitiva, apta a ficar imune pela coisa julgada material.
Compreende­se, então, que quando o artigo 285­A do CPC dispõe que a matéria controvertida
seja unicamente de direito, refere­se ao fato de que seja comprovada unicamente pela prova
documental. Vale ressaltar que tal requisito acima elencado sofre várias críticas, uma vez que,
consoante Cassio Scarpinella Bueno,
[...] não há, propriamente, uma questão unicamente de direito no sentido que consta
da regra aqui comentada. Ela, a questão, é, no máximo, predominantemente de direito
porque a mera existência de um autor, de um réu e de um substrato fático que reclama
a incidência de uma norma jurídica já é suficiente para que haja questão de fato no
caso concreto. Mas, e aqui reside o que releva para compreensão do art. 285­A, esta
questão de fato é alheia a qualquer questionamento, a qualquer dúvida, ela é
padronizada ou, quando menos, padronizável; ela, a situação de fato, não traz, em
si, maiores questionamentos quanto à sua existência, seus contornos e sues limites.
O que predomina, assim, é saber qual o direito aplicável sobre aqueles fatos que não
geram dúvidas, que não geram controvérsia possível ou séria entre as partes e
perante o juiz7 .
Assim sendo, não há uma questão que seja exclusivamente de direito, conforme preceitua o
legislador, mas sim uma questão predominantemente de direito, uma vez que para a resolução do
conflito não há a necessidade de uma dilação probatória mais ampla, assim como a prova
testemunhal e a pericial, as quais dependem de uma análise mais complexa. Deste modo, haverá a
aplicação da lei em sua literalidade ao caso, já que não há a necessidade de uma apreciação mais
apurada do caso concreto.
Quanto à exigência de que se trate de causas repetitivas, Didier Júnior8
entende ser:
[...] causa que verse sobre questão jurídica objeto de processos semelhantes (e não
“idênticos” como se refere o legislador). É o que acontece nos litígios de massa,
como as causas previdenciárias, as tributárias, as que envolvem servidores públicos,
consumidores etc., sujeitos que se encontram em uma situação fático­jurídica
semelhante. Nessas causas, discute­se normalmente a mesma tese jurídica,
distinguindo­se apenas os sujeitos da relação jurídica discutida. São causas que
poderiam ter sido reunidas em uma ação coletiva.
7
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual
civil. 3. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. v. 1, p. 155­156.
8
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil e processo de
conhecimento. 14 ed. rev., ampl. e atual. Bahia: Editora JusPODIVM, 2012. v. 1, p. 488.
225
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I226
Assim sendo, quando o legislador dispôs que haja sentença de total improcedência em outros casos
idênticos, entende­se que desejou prever como requisito que já tenha sido proferido naquele juízo,
sentença de improcedência em processos semelhantes, uma vez que se houver um caso idêntico ao
outro, haverá de se ter os três elementos da demanda idênticos, os quais são causa de pedir, pedido
e partes. Sendo os três elementos da ação idênticos causaria a extinção do processo sem resolução
de mérito, já que haveria configurado litispendência, de acordo com o artigo 267, V, do CPC.
Ainda ao que se refere ao requisito de haja sentença de total improcedência em outros casos
idênticos, vale tecer a crítica de Daniel Amorim Assumpção Neves9
, para o qual
Também não foi feliz a redação legal quando aponta para a total improcedência da
sentença anterior, sendo plenamente possível que a improcedência tenha sido
parcial, desde que referente à matéria que será objeto da demanda a ser extinta com
julgamento de improcedência liminar
Conforme exposto, o legislador utilizou inapropriadamente o termo sentença de total improcedência,
sendo possível para que se configure improcedência prima facie que a sentença de improcedência
tenha sido parcial, e não integral. Entende­se, então, que o que deve ser igual é a causa de pedir e o
pedido. Vale lembrar que existe a possibilidade de retratação do magistrado, caso haja apelação
contra a sentença de improcedência prima facie, conforme o § 1º do artigo 285­A do CPC. No
caso de ser mantida a sentença, deverá o réu ser citado para responder o recurso, anteriormente de
se encaminhar o processo ao tribunal, consoante o § 2º do artigo 285­A do CPC.
Diante do exposto, é de grande relevância dissertar sobre alguns princípios consagrados na Carta
Magna que envolvem o disposto no artigo 285­A do CPC, o qual trata do julgamento liminar de
mérito. Ocorre que, para a criação de tal artigo, alguns princípios tiveram de preponderar em
relação a outros. Nesse passo, cumpre a nos enlevar não só os princípios em jogo no referido
dilema, mas também destacar os critérios basilares para a compreensão de um direito processual
constitucionalizado, calcado na lógica principiológica da Constituição de 1988.
9
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Editora Método, 2009, p.
274.
226
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I227
2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO E A INSERÇÃO DOS PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS NO PROCESSO: UMA ANÁLISE À LUZ DA
APROXIMAÇÃO DA ÉTICA DO DIREITO
O presente capítulo trata da interação processo/Constituição, e da importância do dialogismo entre
essas duas importantes vertentes. O marco constitucional instituiu­se como um divisor de águas, no
que diz respeito ao (re)pensar do processo. Isso em virtude da postura da própria Constituição, que
cuidou de abarcar uma série de princípios e garantias processuais, estas que viabilizam a
estruturação do due process of law. Tal conjectura possibilita que as balizas que norteiam o Estado
Democrático de Direito possam ser devidamente seguidas, para alcançar, dessa forma, a celeridade,
a economia e a própria efetividade processual, reivindicações tão aclamadas no contexto
contemporâneo.
Há que se destacar também, que o artigo 285­A do CPC, abordagem central deste estudo, vem
sofrendo algumas críticas por parte da doutrina, sob o fundamento de que esta norma feriria alguns
princípios constitucionais do processo civil. Ocorre que não há uma ofensa de alguns princípios, mas
uma preponderância de uns sobre os outros, o que no modelo clássico de sopesamento tende a
ocorrer, tendo por base a alguns critérios, princípios que norteiam para qual lado a balança deve
pender, ou seja, quais princípios devem prevalecer frente ao caso concreto, sendo estes:
necessidade, adequação e ponderação em sentido estrito.
Nesse sentido, para melhor compreender essa temática, cabe compreender a estruturação
principiológica da Constituição de 1988, bem como em que consiste a força normativa desses
princípios, para dessa maneira entender como toda essa abordagem é transportada para o Direito
Processual Civil. Para tanto, enleva­se a necessidade de analisar a reaproximação da ética do direito
e, posteriormente, a contribuição de todo esse arcabouço para o processo, que em tempos de
constitucionalização, não pode se eximir da inserção dentro dessa lógica.
227
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I228
1.
A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A (RE)APROXIMAÇÃO DA ÉTICA
DO DIREITO
A Constituição Federal de 1988 é o marco jurídico responsável por propiciar, dentre outros
avanços, a (re)democratização do Estado Brasileiro. As inúmeras conquistas humanistas e
democráticas anunciadas pela Carta de 1988 revelam o comprometimento com a observância dos
Direitos Fundamentais, pressuposto essencial para a consolidação de um legítimo Estado
Democrático de Direito. Nesse ponto, cumpre realizar uma breve digressão, a fim de inserir a
presente discussão em um cenário histórico, para melhor compreender as ordens de razão que
incitaram a ocorrência da retomada ética do direito. 10
Ao observar o transcurso da história nos deparamos com momentos de inconstâncias, nos quais,
muitas vezes, conquistas tidas como consolidadas são amplamente denegadas. Afere­se que o ser
humano, envolto de toda sua complexidade, precisou, em certas circunstâncias11
, sofrer par
aprender. O exemplo maior de tal constatação foi a Segunda Guerra Mundial, que refletiu os males
da desproteção dos direitos humanos e a completa indiferença no que diz respeito a valorização da
pessoa enquanto ser portador de dignidade. Após o fim da II Guerra, em um cenário acometido por
irreparáveis danos, restou olhar para trás, para compreender qual equivoco cometeu­se, a ponto de
gerar uma das maiores barbáries da civilização Ocidental.
Em virtude de tais circunstâncias, o Pós­Guerra foi um período reflexivo, onde se repensou a
própria postura do direito12
. Isso porq
eminentemente formais, característicos do positivismo, esvaziados de preenchimento ético,
atendendo assim, aos anseios oportunistas do dado período. É nesse cenário, que se instaura a crise
do positivismo jurídico, um modelo de e para um sistema de regras, cuja noção central de um único
10
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
38.
12
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.
45
11
228
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I229
teste fundamental para o direito, nos força a ignorar os papéis importantes desempenhados pelos
padrões que não seguem a lógica das regras13
. No que tan
sustentava mais, principalmente em face das novas reivindicações, que aclamavam por “textos
constitucionais abertos a princípios, dotados de elevada carga axiológica, com destaque para o valor
da dignidade humana”.14
Nesse patamar se imiscui o resgate ético do direito, e neste esforço “surge a força normativa dos
princípios”15
, sendo que
fundamentadores essenciais para a interpretação de todo o ordenamento jurídico, haja vista que
“uma Constituição precisa, ser Constituição (ou seja, algo mais que uma relação fática e instável de
16
domínio), precisa de uma justificação segundo princípios éticos de direito.”
. Dessa maneira, os princípios são “ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas,
são núcleos de condensações’ nos quais confluem valores e bens constitucionais”17
. Contudo,
devem ser entendidos como mandados de otimização18
dos valores
portanto, uma lógica diferenciada das regras. As regras portam o sistema all or nothing fashion, de
tudo ou nada, ao incidirem no caso concreto regem­se por questões de vigência19
, o que não o
quando se trata dos princípios, pois estes possuem uma dimensão de peso, dimension of weight,
que os distingue categoricamente das regras.
Tal compilação axiológica garante não só unidade ao ordenamento jurídico, mas o torna mais
dinâmico, criando diferenciadas interações possíveis entre tais princípios. Sustenta­se que a ordem
jurídica hodierna em muito abandonou, a estatura subsidiária que atribuía aos princípios, esta muito
bem refletida no art.4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que prevê para os
13
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 36
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. 10. ed. São Paulo: Saraiva,
2010, p. 26.
15
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. 10. ed. São Paulo: Saraiva,
2010, p. 29.
16
HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Granada: Colmares, 2004, p. 275. Ver também: MOREIRA, Nelson Camatta.
Fundamentos de uma Teoria da Constituição Dirigente. Florianópolis: Conceito, 2010, p. 76 – 79.
17
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 82
18
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed. São Paulo:
Malheiros, p. 35.
19
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 54.
14
229
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I230
casos em que a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais do direito.
Esse posicionamento mostra­se insuficiente, pois condiciona a utilização principiológica somente aos
casos em que a lei mostrar­se omissa. Nesse passo, cumpre frisar que os princípios são normas, as
quais devem “corresponder as modalidades de eficácia jurídica mais consistente”20
. Cabe desta
que essa retomada axiológica irradia­se, ou pelo menos deveria irradiar­se, por todo o sistema
jurídico.
O próprio princípio da supremacia constitucional possibilita que todas as normas devem ser
interpretadas á luz da Constituição, garantindo não só uma logicidade formal, baseada no
escalonamento do ordenamento jurídico21
, mas uma conteudística, a própria constitucionalidade material. Constata­se que na atual conjuntura os
princípios da Constituição Federal constituem a fonte primária por excelência para a tarefa
interpretativa.
Nessa medida, pertine inserir os princípios à lógica do Direito Processual Civil, este que também
deve ser tomado por uma interpretação guiada pela Constituição. Entendida a presente questão,
cabe situar tal discurso axiológico constitucional, no âmbito do Direito Processual Civil.
2.1 O PRINCÍO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA:
CONJECTURAS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
20
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da
pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 203.
21
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 215.
230
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I231
A atual conjectura do direito estrutura­se por uma carga axiológica elevada. Em virtude da digressão
feita alhures, tal ocorrência estende­se, também, para o processo. Isso porque, na maior parte dos
casos, o Direito Processual Civil guia­se pelos princípios, sejam eles constitucionais ou
infraconstitucionais, pois estes “fornecem diretrizes mínimas, mas fundamentais do próprio
comportamento do Estado­juiz”22.
É sabido que ao longo do transcurso temporal o direito processual civil percorreu diferenciadas
fases, estas, por vezes, voltadas para a afirmação científica e para a fixação de seu objeto de
estudo. Essa postura assevera o comprometimento do Direito Processual Civil com o “paradigma
racionalista, das filosofias liberais do Iluminismo europeu”23
, este que d
qualificar o direito, em seus diversos âmbitos, como ciência. A presente pretensão gerou severas
consequências, que até os dias atuais ressoam na aplicação do direito, principalmente no que diz
respeito ao estudo do direito processual civil.
Como elucida Ovídio Baptista24
o direito pr
pela metodologia cientificista, a qual trata de estabelecer questões quantitativas e mensuráveis, e
“por ser o processo aquele ramo do conhecimento jurídico mais próximo do mundo da vida, da
prática social.”, este foi fortemente prejudicado por esta dinâmica cientificista. Nesse sentido,
contrapondo­se a essa metodologia, Eduardo Cambi25
assevera q
permanecer arraigado “aos métodos arcaicos, engendrados pelo pensamento iluminista do século
XVIII”. Isso porque, o pensamento jurídico deve passar “por um aggionamento para que a sua
concretização, não fique presa a institutos inadequados aos fenômenos contemporâneos, não se
dissocie da realidade, frustrando seu escopo fundamental”.
Seguindo este escopo, cumpre destacar o princípio do contraditório e da ampla defesa, tão caros
para a construção de um legítimo Estado de Direito, sendo basilares para a estruturação do devido
22
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 92
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia. In: ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio. Anuário do
programa de pós­graduação em direito: mestrado e doutorado. São Leopoldo: Unisinos, 2002, p.169
24
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia. In: ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio. Anuário do
programa de pós­graduação em direito: mestrado e doutorado. São Leopoldo: Unisinos, 2002, p.169
25
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Panóptica, Vitória, ano 1, n.6, fev. 2007, p. 2.
Disponível em: www.panoptica.org. Acesso em: 05. Mar. 2013.
23
231
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I232
processo legal. Além disso é, ainda, estrutura capaz de conformar a tão exigida concretização
processual – exposta pelo pensamento de Ovídio Batista alhures­, na medida em que almeja garantir
a regular marcha do processo, entretanto, isso deve ocorrer sem suprimir manifestações das partes,
portanto, sem a supressão de garantias processuais, sob pena de nulidade . O referido princípio
encontra­se assegurado no artigo 5°, LV da Carta Magna, veja:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo­se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
[...] LV ­ aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em
geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes;
Consoante Nelson Nery Júnior26
Por contraditório deve entender­se, de um lado, a necessidade de dar conhecimento
da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a
possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhes sejam desfavoráveis.
Garantir­se o contraditório significa, ainda, a realização da obrigação de notificar
(Mitteilungspflicht) e da obrigação de informar (Informationspflicht) que o órgão
julgador tem, a fim de que o litigante possa exteriorizar suas manifestações.
Assim sendo, o contraditório significa a obrigação de o juiz citar o réu, para que este tome
conhecimento da ação; a possibilidade deste contestar no prazo determinado, expondo sua versão
sobre os fatos; o direito à produção das provas necessárias ao processo e, a consequente
manifestação da parte contrária diante destas; ainda a garantia de participar de todos os atos
processuais e, por final a possibilidade de recorrer à decisão do julgador que seja desfavorável a si.
Quanto á garantia constitucional da ampla defesa, Nery Júnior27
entende que a
Ampla defesa significa permitir às partes a dedução adequada de alegações que
sustentam sua pretensão (autor) ou defesa (réu) no processo judicial (civil, penal,
eleitoral, trabalhista) e no processo administrativo, com a consequente possibilidade
26
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo.
10 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 210­211.
27
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo.
10 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 248­249.
232
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I233
de fazer a prova dessas mesmas alegações e interpor os recursos cabíveis contra as
decisões judiciais e administrativas.
Destarte, a ampla defesa é uma garantia constitucional indispensável tanto no processo judicial,
quanto no processo administrativo. Tal princípio assegura às partes a ciência prévia dos atos
processuais que serão realizados, garantindo­lhes a possibilidade de participação e a consequente
oportunidade de questionar e recorrer de decisão desfavorável.
No que tange ao princípio do devido processo legal, este se encontra postulado no inciso LIV, do
artigo 5º da Constituição Federal, o qual prevê que “ninguém será privado da liberdade ou de seus
bens sem o devido processo legal”. Nery Júnior28
entende que:
[...] a cláusula procedural due processo oflaw nada mais é do que a possibilidade
efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo­se do
modo mais amplo possível.
Desta maneira, o devido processo legal é um princípio base, segundo o qual para que um processo
seja considerado como válido, há de se observar todas as etapas previstas por lei. De tal modo,
garante que as partes se defendam da maneira mais ampla possível, o que possibilita uma decisão
mais justa e adequada para o caso, com a devida fundamentação de todos os atos decisórios. 2.3 CELERIDADE, DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO E
(IN)EFETIVIDADE PROCESSUAL: PRESSUPOSTOS E ENTRAVES PARA
O ACESSO A JUSTIÇA
É importante frisar que o fenômeno da “constitucionalização dos direitos e garantias processuais,
além de retirar do Código de Processo a centralidade do ordenamento processual (fenômeno da
descodificação), ressaltou o caráter publicístico do processo” 29
. Dito de ou
precisou rever a ideologia que ordenou sua gênese, afastando­se assim de uma postura privatística,
28
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo.
10 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 87.
29
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Panóptica, Vitória, ano 1, n.6, fev. 2007, p. 2.
Disponível em: www.panoptica.org, Acesso em: 05. Mar. 2013, p.2.
233
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I234
que vê o processo como mero mecanismo de utilização individual. Agora, cabe observá­lo como
meio “à disposição do Estado, para a concretização e realização da justiça, que é um valor
eminentemente social”.30
Essa muda
tutela jurisdicional, devendo esta ser efetiva, célere e adequada. Assim, conforme aclara Carolina
Bonadiman31
, “o processo
de aplicar o direito ao caso concreto e solucionar o conflito) e eficiente (capaz de produzir
resultados com o mínimo de dispêndio de tempo e de meios)”.
A ineficiência processual conjugada com a precária celeridade imprime descrédito ao direito, e cria
óbices para o acesso à uma ordem jurídica justa. Como observar Carnelutti32
, “o tempo inimigo do direito, contra qual o juiz deve travar uma guerra sem tréguas”. Isso porque, na maioria
dos casos, postergar a devida tutela jurisdicional é causar indeléveis prejuízos aos cidadãos, que
pleiteiam dada prestação jurisdicional. Portanto, é evidente que os mecanismos processuais devem
convergir com o fator tempo, sendo dessa maneira aliados deste, pois enquanto o processo
prosseguir ao arrepio do coeficiente temporal, não se terá o devido acesso à justiça.
Entretanto, o cálculo para a estruturação de um direito processual justo, não se perfaz atendendo
somente a celeridade, pois de nada adianta um processo célere que atropela as garantias e os
princípios constitucionais, tais como o contraditório efetivo, a ampla defesa, a igualdade, a
independência e imparcialidade do juiz. Desse modo, o ideal é que a instrumentalidade do processo
­ esta que “permite a construção de técnicas processuais efetivas, rápidas e adequadas à realização
do direito processual”33
­ , seja co
fundamentais.
Em virtude da relevância do tema, o próprio legislador constitucional, com a intenção de garantir a
30
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Efetividade do processo e técnica processual. In: Revista de Processo. São
Paulo. n. 77. jan./mar. 1995. v. 20.
31
ESTEVES, Carolina Bonadiman. A forma de comunicação dos atos processuais e a garantia constitucional da
razoável duração do processo. In: ALMEIDA, Eneá De Stutz e (org.). Direitos e garantias constitucionais
Florianópolis: Boiteux, 2006, p. 39.
32
CARNELUTTI, Francesco. Diritto e processo. Buenos Aires: EJEA, 1971, p. 45. In: ESTEVES, Carolina
Bonadiman. A forma de comunicação dos atos processuais e a garantia constitucional da razoável duração do
processo. Direitos e garantias constitucionais. ALMEIDA, Eneá De Stutz e (org.). Florianópolis: Boiteux, 2006, p.
39.
33
DINAMARCO, Cândido R. A instrumentalidade do processo. 14. ed. São Paulo: Malheiros. 2009, p. 45
234
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I235
eficiência na prestação jurisdicional, acresceu, mediante a Emenda Constitucional nº 45/04, ao rol
dos direitos fundamentais da Carta Magna, o inciso LXXVIII, no artigo 5º, o qual prescreve que “a
todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os
meios que garantam a celeridade de sua tramitação”
Consoante Nery Júnior34
O princípio da duração razoável possui dupla função porque, de um lado, respeita ao
tempo do processo em sentido estrito, vale dizer, considerando­se a duração que o
processo tem desde seu início até o final com o trânsito em julgado judicial ou
administrativo, e, de outro, tem a ver com a adoção de meios alternativos de solução
de conflitos, de sorte a aliviar a carga de trabalho da justiça ordinária, o que, sem
dúvida, viria a contribuir para abreviar a duração média do processo.
De tal modo, o princípio visa assegurar efetividade na prestação jurisdicional, criando meios que
tornem o Poder Judiciário mais ágil e célere, como pela utilização de meios alternativos de resolução
de conflitos. Na visão de Nery Júnior o princípio em questão ainda possui outra função, assim,
analisando­o em sentido estrito, pode­se depreender que garante a presteza e um prazo razoável na
tramitação de um processo.
No que pertine ao acesso à justiça ­ ou ainda o princípios da inafastabilidade do controle
jurisdicional – este se encontra presente no inciso XXXV, do artigo 5º da Constituição Federal, o
qual dispõe que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Segundo Cássio Scarpinella Bueno35
A compreensão de que nenhuma lei excluirá ameaça ou lesão a direito da apreciação
do Poder Judiciário deve ser entendida no sentido de que qualquer forma de
“pretensão”, isto é, “afirmação de direito” pode ser levada ao Poder Judiciário para
solução (v. n. 1 do Capítulo 1 da Parte I). Uma vez provocado, o Estado­juiz tem o
dever de fornecer àquele que bateu às suas portas uma resposta mesmo que seja
negativa no sentido de que não há direito nenhum a ser tutelado ou, bem menos do
que isto, uma resposta que diga ao interessado que não há condições mínimas de
saber se há, ou não, direito a ser tutelado, isto é, que não há condições mínimas de
exercício da própria função jurisdicional [...]
34
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo.
10 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 319.
35 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual
civil. 3. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. v. 1, p. 104.
235
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I236
Conforme exemplificado, o princípio do acesso à justiça envolve o direito ao ingresso ao Poder
Judiciário. Todavia, o princípio em questão não se restringe apenas à garantia de acesso ao Poder
Judiciário, alcança também o direito a uma resposta do Estado­juiz, mesmo que seja no sentido de
que não há a observância das condições mínimas da ação.
É importante salientar que o princípio do acesso à justiça não se limita ao aspecto formal, garante
também o direito a uma decisão justa e adequada para o caso, alcançada de forma democrática.
Assim, diante da exposição destes princípios e da construção deste plano de fundo, cumpre analisar
a tese que enleva a inconstitucionalidade do artigo 285­A do CPC.
3 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 285­A DO CPC:
SUPRESSÃO DO CONTRADITÓRIO, PROPORCIONALIDADE E A
ADI 3.695
Há ainda na doutrina brasileira autores que defendem a tese da inconstitucionalidade do artigo
285­A do CPC. Embora tal posição doutrinária seja minoritária, é de grande relevância ser debatida
no trabalho em questão. Paulo Roberto de Gouvêa Medina36
considera que:
Nada mais incompatível com o contraditório do que a possibilidade de o litígio
resolver­se por meio de sentença transladada de outro processo, em que o autor não
interveio. Porque, dessa forma, a lide estará sendo composta sem que a parte
prejudicada tenha podido discutir, previamente, os elementos que influíram na
motivação da sentença. Esta, no caso, terá sido para o autor (e também para parte
contrária em relação à qual o pedido fora formulado) res inter alios acta.
Conforme posicionamento de Medina o artigo em questão provoca uma supressão do contraditório,
extinguindo a possibilidade dos sujeitos da relação de interferirem na decisão judicial por meio de
seus argumentos. Ainda com relação à alegada inconstitucionalidade do artigo 285­A do CPC, é de
36
MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Sentença emprestada: uma nova figura processual. Revista de processo,
São Paulo, ano 31, n. 135, p. 152­160, mai. 2006, p. 155.
236
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I237
relevância a crítica de Câmara, apesar de, atualmente, este ter adotado posicionamento diverso do
inicialmente exposto em sua obra Lições de Direito Processual Civil37 , vide:
Em primeiro lugar, o fato de haver a possibilidade de se ter juízos em que atuam
magistrados com entendimentos diferentes acerca da mesma matéria fará com que
para alguns essa regra seja aplicada e para outros não, ainda que estejam em
situações jurídicas substancialmente iguais. Não vemos qualquer razão para que
pessoas iguais sejam submetidas a processos diferentes. Há, ainda, outro ponto a
considerar: com muita frequência acontecerá de se pretender aplicar o dispositivo
aqui examinado a causas que envolvam a Fazenda Pública. Ora, ao se indeferir
liminarmente a petição inicial, proferir­se­á uma sentença que será impugnada por
apelação. Recebido o recurso, estabelece a lei que será o demandado citado para
responder ao recurso (art. 285­A, § 2º). Ocorre que a Fazenda Pública, que tem prazo
em quádruplo para contestar, não o tem para contra­arrazoar apelação. Isto fará com
que a Fazenda perca seu benefício de prazo para defender­se em todos os processos
em que seja aplicado este art. 285­A.
De tal modo, Câmara defendia a inconstitucionalidade, pois, mesmo em situações jurídicas
substancialmente iguais, o artigo abordado poderá ser aplicado ou não, e tal decisão de aplicação
da regra partirá do juízo de cada magistrado, uma vez que estes possuem entendimentos diversos a
respeito da mesma matéria. Outro ponto que Câmara aborda é acerca das ações que envolvem a
Fazenda Pública. Segundo este, o instituto da improcedência prima facie gera uma questão
prejudicial à Fazenda Pública, uma vez que esta perderia sua vantagem em quádruplo para
responder a ação.
Tendo em conta a alegada inconstitucionalidade, a Ordem dos Advogados Brasileiros ajuizou a
Ação Direta de Inconstitucionalidade de número 3.695 contra a alteração que inseriu o artigo
285­A ao CPC, sob a alegação de que a introdução do artigo viola os princípios da igualdade, da
inafastabilidade de apreciação de lesão ou ameaça a direito pelo Judiciário, do devido processo
legal, do contraditório e da ampla defesa. No entanto, em pesquisa à data de 05 de novembro de
2012, no site do Supremo Tribunal Federal foi constatado que ainda não foi julgada a Ação Direta
de Inconstitucionalidade em questão.
Ocorre que o entendimento de que o artigo 285­A é inconstitucional não é o posicionamento
37
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 16. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora
Lumen Juris, 2007. v. 1, p. 341.
237
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I238
majoritário da doutrina. Segundo Cassio Scarpinella Bueno “O art.285­A deve ser compreendido
na busca de maior racionalidade e celeridade na prestação jurisdicional [...]”38
. No que con
posicionamento de Câmara de que a Fazenda Pública perderia sua vantagem em quádruplo para
responder a ação, vale tecer o comentário de Neves39
, para o qual
O art. 188 do CPC prevê o prazo em quádruplo para a Fazenda Pública e o Ministério
Público contestarem e em dobro para recorrerem, sendo pacífico o entendimento de
que o prazo para a apresentação de contrarrazões de recurso é simples. Pois bem,
acreditando­se que a resposta da Fazenda Pública ao recurso interposto pela parte
contrária seja efetivamente uma contestação, é natural entender que o prazo seria de
60 dias para a Fazenda Pública. Essa tese pode ser corroborada com a alegação de
que, tratando­se do primeiro momento de manifestação da Fazenda Pública, mais do
que natural a contagem diferenciada de prazo. Até mesmo a redação do art. 285­A, §
2º, do CPC corroboraria essa tese, ao indicar “resposta” e não “contrarrazões”.
Como exemplificado, é fato que a Fazenda Pública tem prazo em quádruplo para contestar e em
dobro para recorrer, conforme artigo 188 do CPC. No presente caso, diante do julgamento liminar
do pedido do autor, a Fazenda Pública será intimada para contrarrazoar o provável recurso
interposto pelo autor, e, data vênia a dúvida posta pelo ilustre autor Câmara, terá prazo em
quádruplo para recorrer, visto que o caráter/natureza de sua resposta não será de contrarrazões,
mas sim pura e exclusivamente de contestação, sendo esta a primeira oportunidade do réu se
manifestar nos autos.
Quanto à tese de que o artigo feriria o princípio do contraditório Marinoni40
entende que
principal beneficiado pelo instituto do julgamento liminar das ações repetitivas, uma vez que fica
dispensando de convencer o juízo de primeiro grau a respeito da improcedência do pedido”. Como
pôde ser aferido, o julgamento liminar da ação não viola a garantia do contraditório, uma vez que a
defesa do réu é desnecessária, tendo em vista que esta em nada alteraria a decisão do magistrado, o
qual já possui seu entendimento acerca do caso, e, ainda assim, o réu será a parte favorecida de tal
38
BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: procedimento comum: ordinário e
sumário. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. v. 2. tomo I, p. 153.
39
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Editora Método, 2009, p.
319­320.
40
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. v. 1, p.
355.
238
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I239
decisão.
Já no caso do entendimento de que o artigo 285­A do CPC fere o direito de ação, Gelson Amaro
de Souza41
afirma que este
Não prejudica nem restringe o direito de ação como poderia parecer à primeira vista.
O direito de ação é exercido e o juiz presta a jurisdição julgando o mérito. Se o juiz
julga o mérito, é porque reconhece a presença do direito de ação e, em atenção ao seu
exercício, julga o mérito logo de início. O que o autor não vai ter é o julgamento de
mérito a seu favor, mas o mérito da causa é julgado e a jurisdição prestada. Mas isso
não tem nada a ver com as garantias constitucionais do direito de ação.
De tal modo, não há uma restrição do direito de ação, já que há o julgamento de mérito, sendo que
a única diferença é que este julgamento ocorrerá logo no início da ação, uma vez que se revela
desnecessário o prosseguimento do feito. Ainda assim, há a possibilidade de retratação do
magistrado e, caso esta não ocorra, o autor, insatisfeito com o resultado, tem a possibilidade de
recorrer para impugnar tal decisão.
Em seu posicionamento, Gelson Amaro de Souza42
ainda afirma que,
Princípios basilares do processo como o contraditório, a ampla defesa e o devido
procedimento legal foram instituídos em benefício da parte para evitar que ela sofra
prejuízo. No entanto, se nenhum prejuízo advier à parte, nada há a reclamar. É o que
acontece quando o mérito é julgado a favor do réu, em que a sua citação em nada
importa e mesmo desta não o prejudique.
Como discorrido pelo autor, não há nenhum prejuízo dos princípios do contraditório, da ampla
defesa e do devido processo legal, tendo em vista que a aplicação do artigo 285­A não traz
prejuízos ao réu, sendo este o maior beneficiado da decisão. Diante do exposto, defende­se no
estudo em questão a tese de que não há ocorrência de inconstitucionalidade na aplicação do artigo
285­A do CPC, visto que o autor da demanda terá sua pretensão devidamente analisada, assim,
terá exercido o direito de ação, havendo uma decisão de mérito, na qual o réu será o maior
41
SOUZA. Gelson Amaro de. Sentença de mérito sem a citação do réu (art. 285­A do CPC). Revista Dialética de
Direito Processual. São Paulo, n. 43, p. 39­52, out. 2006, p. 50.
42
SOUZA. Gelson Amaro de. Sentença de mérito sem a citação do réu (art. 285­A do CPC). Revista Dialética de
Direito Processual. São Paulo, n. 43, p. 39­52, out. 2006, p. 51.
239
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I240
beneficiado. E, caso o autor se sinta prejudicado por tal decisão, ainda tem a possibilidade de
recorrer para impugnar a decisão desfavorável a si.
De tal modo, o legislador ao incluir o artigo 285­A no CPC primou por dar maior efetividade na
prestação jurisdicional, atendendo ao direito fundamental da duração razoável do processo, uma vez
que se mostra desnecessário o prosseguimento da ação, já que, ao final desta, seria alcançado o
mesmo resultado. Não obstante, o referido artigo não deixou de observar as garantias de ingresso
ao Poder Judiciário, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
Assim, diante do entendimento da constitucionalidade do artigo 285­A do CPC, o estudo em
questão analisará a omissão do legislador quanto à questão de julgamento liminar da ação pela
procedência do pedido.
4 A ESTRUTURAÇÃO DA PROCEDÊNCIA PRIMA FACIE FRENTE A
OMISSÃO LEGISLATIVA: CONTORNOS JURISPRUDENCIAIS
O legislador brasileiro ao inserir o artigo 285­A, no CPC teve a intenção de conferir maior
celeridade e efetividade na prestação jurisdicional. Deste modo, o artigo em questão evita que ações
semelhantes tramitem até o final para se chegar ao mesmo resultado que se alcançaria ao proferir
uma sentença liminar. Ocorre que quanto ao julgamento liminar pela procedência do pedido o
legislador brasileiro foi omisso. Em sua obra, Marinoni e Arenhart43
expõem que o a
[...] trata apenas das sentenças de improcedência, esquecendo do problema das
ações repetitivas que conduziram a sentença de procedência. Será que esta última
situação não merece a mesma consideração da outra?
Tal consideração encontra respaldo no inciso LXXVIII, do artigo 5º da Carta Magna, o qual
assegura a duração razoável do processo. Assim, de forma analógica ao artigo 285­A do CPC não
há razão para não se admitir a aplicação da norma aos casos de julgamento liminar pela procedência
43
MARINONI, Luiz Guilherme; Arenhart, Sérgio Cruz. Curso de processo civil: processo de conhecimento. 8. ed.
rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. v. 2, p. 99.
240
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I241
do pedido, quando presentes todos os requisitos, uma vez que os princípios que envolvem a
aplicação de decisão pela improcedência também abarcam a decisão pela procedência do pedido.
Portanto, ao se utilizar o recurso da analogia para a aplicação de julgamento liminar pela
procedência, continuará presente a intenção do legislador de atribuir maior efetividade e celeridade
na prestação jurisdicional. Ainda assim, a analogia não prejudicará o princípio do contraditório, uma
vez que haverá a possibilidade de retratação do magistrado em caso de interposição de recurso de
apelação, igualmente como ocorre no caso de improcedência prima facie. Na hipótese de o
magistrado não se retratar, o réu ainda terá seu recurso julgado pelo tribunal, havendo, por
conseguinte, possibilidade de obter decisão favorável a si.
De modo inovador, este entendimento vem sendo adotado por parte da jurisprudência, vide:
AGRAVO INTERNO. MANDADO DE SEGURANÇA. TRIBUTÁRIO. ICMS.
CONSUMO DE ENERGIA ELÉTRICA. INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO
14, VI, "2", E VIII, "7", DO DECRETO 27.427/2000. REJEIÇÃO DAS PRELIMINARES
DE ILEGITIMIDADE ATIVA E PASSIVA AD CAUSAM. INEXISTÊNCIA DE
IMPETRAÇÃO CONTRA LEI EM TESE. INOBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA
SELETIVIDADE E ESSENCIALIDADE. RECEDENTES DO TJERJ. ARGUIÇÃO DE
INCONSTITUCIONALIDADE Nº 27/2005, E Nº 21/2008. VINCULAÇÃO DOS
ÓRGÃOS FRACIONÁRIOS POR FORÇA DO ARTIGO 103 DO RITJERJ. DECISÃO
DE PROCEDÊNCIA TOTAL DO PEDIDO, PROFERIDA EM CONSONÂNCIA
COM O DISPOSTO NO ARTIGO 285­A, DO CPC. MANUTENÇÃO DA DECISÃO
MONOCRÁTICA QUE CONCEDEU A SEGURANÇA. DESPROVIMENTO DO
AGRAVO INTERNO. (TJRJ, MS 2009.004.00416, Relator: DES. CARLOS SANTOS DE
OLIVEIRA, Data de julgamento: 30/06/2009, 9ª Câmara Cível do Rio de Janeiro) (grifo
nosso)
E M E N T A: Mandado de Segurança contra ato do Secretário de Estado de Saúde
do Estado do Rio de Janeiro, em que a Impetrante, portadora de insuficiência renal
crônica terminal, necessita com urgência dos medicamentos CICLOSPORINA, 25mg,
50mg, 100 mg, pugnando pelo deferimento de pedido liminar, para fornecimento
gratuito desses remédios pelo Estado, requerendo, ao final, a concessão da
segurança. I ­ Considerações sobre o respaldo processual da R. Decisão a ser
proferida. Art. 285­A do C.P.C. Permissão legislativa para o Julgamento imediato de
processos repetitivos. Precedentes deste Colendo Sodalício. Necessidade da
efetividade e celeridade da prestação jurisdicional, máxima prevista na Constituição
Federal como garantia fundamental, nos termos do inciso LXXVIII do seu artigo 5º.
Interpretação sistemática das regras processuais vigentes. II ­ Reconhecimento de
que o E. Tribunal de Justiça, no exercício da jurisdição de casos de sua competência
originária, atua como se fosse um Órgão Julgador de Primeira Instância, inexistindo
razão para que não disponha da liberdade descrita no artigo 285­A do C.P.C.
Aplicação analógica, por se tratar de norma processual. Permissão para que o I.
Desembargador Relator profira provimento jurisdicional de mérito de
241
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I242
improcedência ou procedência dos pedidos, em demandas cuja matéria for
exclusivamente de direito, reproduzindo o conteúdo de decisões já adotadas, por
exaustão, pela Câmara que integra. III ­ Matéria em lide com entendimento
jurisprudencial dominante deste E. Tribunal de Justiça. Exegese da Súmula n.° 65.
Vários precedentes. Fornecimento de medicamento indispensável à saúde. Aplicação
dos 6º e 196 da Constituição Federal de 1988 e da Lei n.º 8080/90. Saúde é direito de
todos e dever do Estado. Sendo a saúde dever do Poder Público, impõe­se o
fornecimento de medicamento gratuito, na forma estabelecida pela orientação médica.
Demonstrada a necessidade de uso dos medicamentos pleiteados pela Impetrante. A
impossibilidade de obtenção dos remédios pleiteados pode causar danos irreparáveis
à saúde da Suplicante, podendo resultar, inclusive, em evento fatal. IV ­ Atribuição,
também, de força concessiva da liminar requerida no presente Writ à fundamentação
desta Decisão, na hipótese de sua eventual modificação em sede recursal, face ao
julgamento Monocrático. V Concessão da ordem, determinando que a Autoridade
Coatora forneça à Impetrante os medicamentos CICLOSPORINA, 25mg, 50mg, 100
mg, nas quantidades descritas à fl. 03, enquanto necessário à manutenção de seu
estado de saúde. Procedência. (TJRJ, MS 2008.004.00420, Relator: DES. REINALDO
P. ALBERTO FILHO, Data de julgamento: 04/04/2008, 4ª Câmara Cível do Rio de
Janeiro) (grifo nosso)
Como pode ser aferido nestes julgados, o Tribunal optou pela observância do princípio da duração
razoável do processo, permitindo o provimento jurisdicional de mérito de procedência dos pedidos,
por meio da analogia do artigo 285­A do CPC, por conseguinte, manteve a decisão de primeiro
grau. Uma vez sendo desnecessário o prosseguimento do feito diante da observância dos requisitos
para a aplicação do artigo e, já tendo o caso sido comprovado unicamente pela prova documental,
além de não haver a necessidade de uma dilação probatória mais ampla, a decisão que concede a
procedência do pedido liminarmente seria perfeitamente aceitável. Deste modo, pode ser aferido
que haverá a preponderância de alguns princípios sobre outros.
Consoante Cassio Scarpinella Bueno44
os princípios
[...] convivem uns com os outros mesmo quando se encontrem em estado de total
colidência. Eles não se revogam, não se sucedem uns aos outros, mas, bem
diferentemente, preponderam, mesmo que momentaneamente, uns sobre os outros.
Eles tendem, diferentemente do que ocorre com regras colidentes, a conviverem, uns
com os outros, predominando, uns sobre os outros, mesmo que temporariamente,
mas sem eliminação (revogação) recíproca. Eles, os princípios, tendem a se acomodar
em um mesmo caso concreto que reclama sua incidência, conforme sejam as
necessidades presentes ou ausentes que justificam a sua incidência.
Pelo ensinamento citado, os princípios não se revogam, mas preponderam temporariamente uns
44
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual
civil. 3. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. v. 1, p. 99­100.
242
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I243
sobre os outros, segundo as necessidades do caso concreto. Posto isso, defende­se no estudo em
questão que haja em cada caso concreto uma análise de quais princípios devem preponderar em
relação aos outros. Frisa­se que o julgamento liminar pela procedência não deverá ser aplicado
como regra, mesmo quando presentes todos os requisitos exigidos pelo artigo 285­A do CPC, mas
tão somente nos casos em que o aplicador do direito observar que os princípios da celeridade e
eficiência devam preponderar sobre os demais princípios. Isto é, que a preponderância será
benéfica justamente pelo fato de evitar o prosseguimento da ação fadada ao mesmo fim já sabido.
Deste modo, para a aplicação da preponderância de uns princípios sobre os outros, será necessário
levar em consideração a regra da proporcionalidade ao se analisar o caso. Esta regra possui alguns
critérios que, segundo entendimento de Bueno45
são: a regra
e a regra da proporcionalidade em sentido estrito. Quanto à regra da adequação, Bueno46
entende
que “[...] o que se deve buscar é a exata correspondência entre meios e fins para que haja uma
correlação lógica entre os fins e os meios utilizados ou utilizáveis para serem alcançados.”. Como
exemplificado, segundo a regra da adequação devem ser utilizados meios apropriados para o
alcance dos fins que se pretende chegar. Já quanto à regra da necessidade, Cassio Scarpinella
Bueno47
entende que esta
[...] impõe a avaliação dos próprios meios adotados para atingimento das finalidades.
Ele leva a uma consideração crítica sobre a existência de outros meios possíveis para
ser alcançado o mesmo fim. Na exata medida em que haja outros meios, deve se dar
preferência àquele que traga menores prejuízos, a menor restrição a quaisquer outros
direitos.
Assim, de acordo com a regra da necessidade deve­se observar se o meio utilizado, dentre todos os
possíveis de serem empregados, é o que produz menos prejuízos. Com relação à regra da
proporcionalidade em sentido estrito, Cassio Scarpinella Bueno48
prescreve que esta
45
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual
civil. 3. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. v. 1, p. 101.
46
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual
civil. 3. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. v. 1, p. 102.
47
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual
civil. 3. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. v. 1, p. 102.
48
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual
civil. 3. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. v. 1, p. 102.
243
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I244
[...] faz as vezes de uma verdadeira conferência ou reexame das regras anteriores em
que se viabilize um exame da correspondência entre os meios e fins, sopesando as
vantagens e as desvantagens da solução dada ao caso concreto.
Consoante os ensinamentos de Bueno, a regra da proporcionalidade em sentido estrito exige que o
magistrado, frente ao caso concreto, valore se a decisão alcançará um resultado satisfatório,
analisando as vantagens e desvantagens de tal decisão. Deste modo, defende­se no estudo em
questão que o magistrado, ao analisar o caso concreto, deverá utilizar­se da regra da
proporcionalidade para avaliar se será favorável a decisão de procedência prima facie. Assim,
deve analisar se o meio utilizado será apropriado e, trará menos prejuízos, dentre todos os possíveis
de serem empregados e, ainda, se será obtido um resultado satisfatório com esta decisão.
Conforme exposto, ao analisar um caso concreto, o magistrado deverá observar se estão presentes
os requisitos do artigo 285­A do CPC, além dos critérios da regra da proporcionalidade acima
expostos, para verificar se será benéfica a utilização da analogia de tal regra para proferir julgamento
liminar pela procedência do pedido. Caso entenda que a procedência prima facie trará algum
prejuízo, deverá o magistrado prosseguir com a ação, assim, poderá alcançar um resultado mais
justo ao caso analisado. Todavia, prosseguir com uma ação na qual se encontram presentes todos
os requisitos do artigo 285­A do CPC e os critérios da regra da proporcionalidade e, na qual o
magistrado já possui seu convencimento, seria ilógico, tendo em vista que o resultado alcançado
seria o mesmo. Deste modo, os princípios da celeridade, da efetividade, da duração razoável do
processo e, da economia processual seriam notadamente violados ao se prosseguir com uma ação
que se revela desnecessária.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Celeridade, economia e efetividade processual são princípios constitucionais processuais que com
244
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I245
grande frequência emergem no atual contexto jurídico brasileiro. Isso se deve a própria carência de
efetivação dos referidos princípios. Nesse prisma, cumpre destacar que o artigo 285­A, do Código
de Processo Civil, não padece de inconstitucionalidade, visto que o autor da demanda terá sua
pretensão devidamente analisada, além de que o réu será o maior beneficiado da decisão. Deste
modo, não há qualquer violação dos princípios do acesso à justiça, do devido processo legal, do
contraditório e da ampla defesa.
Assim, ao incluir o artigo 285­A no Código de Processo Civil o legislador primou por dar maior
efetividade na prestação jurisdicional, atendendo ao direito fundamental da duração razoável do
processo, uma vez que se mostra desnecessário o prosseguimento da ação, já que ao final desta
seria alcançado o mesmo resultado. Ademais, o artigo em questão ainda primou pelos princípios da
economia e celeridade processual.
Conclui­se ainda, que existe a possibilidade de provimento jurisdicional de mérito pela procedência
dos pedidos, por meio da analogia do artigo 285­A do CPC, quando presentes os requisitos desta
norma, além dos critérios da regra da proporcionalidade. Todavia, para que o magistrado profira tal
decisão, deverá verificar se será benéfica a utilização da analogia de tal regra para proferir
julgamento liminar pela procedência do pedido, assim, primará pela preponderância dos princípios
da celeridade, da duração razoável do processo, da efetividade e da econômica processual.
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248
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I249
Acesso à justiça e direitos fundamentais no âmbito da Justiça do Trabalho: pela
necessidade de extinção do jus postulandi e criação de uma Defensoria Pública
especializada1
RESUMO
O efetivo acesso à justiça, não somente em seu caráter formal, de acesso aos tribunais,
com a remoção dos obstáculos sociais e econômicos que o inviabilizam, mas, também, e
principalmente, em seu caráter material, de resolução dos conflitos de forma justa, efetiva e
célere, figura como direito fundamental de suma importância para o Estado Democrático de
Direito, uma vez que proporciona, mediante a tutela do Estado, a obtenção da plenitude da
condição de cidadão.
A partir de tal pressuposto, pretende-se demonstrar que o instituto do jus postulandi,
no processo trabalhista, muito embora ofereça condições para a obtenção do acesso à
prestação jurisdicional, falha ao não viabilizar o direito a uma “justiça justa”, pois ocasiona,
na prática, um desequilíbrio na atuação processual dos litigantes.
A assistência judicial gratuita é um dever do Estado e direito de todo cidadão que não
dispuser de recursos para arcar com assistência particular, e a Justiça do Trabalho, com a
manutenção do instituto do jus postulandi, vem descumprindo preceito fundamental da
Constituição pátria, ao não garantir um efetivo acesso à justiça e igualdade das partes no
processo. Desse modo, o presente artigo almeja evidenciar a veemente necessidade de
extinção do jus postulandi no processo trabalhista e sua substituição por uma Defensoria
Pública especializada, a fim de obedecer, inclusive, ao disposto no artigo 133 da Constituição
da República.
Palavras-chave: Acesso à Justiça; Jus postulandi; Justiça justa; Defensoria Pública Trabalhista
1
REIS, Renata Olandim - Advogada – Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais –
UFMG – [email protected];
RODRIGUES, Joanna Paixão Pinto – Advogada – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – [email protected]
249
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I250
Access to justice and fundamental rights within the labor courts: the need for revocation
of jus postulandi and creation of a Public Defensory specialized
ABSTRACT
An effective access to justice, not only in its formal character of access to courts
without the social and economic obstacles that would prevent it, but also and most
importantly, in its material character of dispute resolution in a just, effective and speedy
manner, plays the role of a fundamental right of extreme importance for the State’s rule of
law, since it provides, through the State’s tutelage, the fulfillment of one’s citizenship.
From such a premise, it shall be demonstrated that the institute of jus postulandi in
labor procedure, although it offers conditions for judicial redress, it fails by not enabling the
right to a “just justice” for it allows, in practice, an unbalance between the parties in the
procedure.
A free legal assistance is a duty of the State and a right of every citizen that does not
dispose of the resources to bear the costs of private assistance, and the Labor Judiciary, with
the maintenance of the institute of jus postulandi, have been breaching a fundamental
provision of the national Constitution by not guaranteeing an effective access to justice and
equality of parties in the procedure. This way, this study seeks to evidence the clear necessity
of extinction of jus postulandi in labor procedure and its substitution for a specialized office
of Public Defenders in order to obey, among others, to the provision contained in article 133
of the Republic’s Constitution.
Keywords: Access to Justice; Jus Postulandi; Fair Justice; Labor Public Defensory
250
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I251
1 INTRODUÇÃO
A Constituição da República, ao elencar em seu rol de direitos e garantias
fundamentais a previsão de prestação de assistência jurídica integral e gratuita, por parte do
Estado, a todos os que comprovarem insuficiência de recursos, buscou não somente assegurar
os meios de acesso do cidadão hipossuficiente ao judiciário, mas, igualmente, a viabilização
de mecanismos capazes de promover a isonomia material entre as partes, abrandando as
desigualdades sociais entre elas existentes para, assim, chegar-se mais próximo a uma real
igualdade processual.
Tal objetivo, todavia, não foi alcançado na Justiça do Trabalho, porquanto o instituto
do jus postulandi, que nela vigora, ao permitir às partes a atuação judicial, até o segundo grau,
sem o intermédio de um advogado, promoveu a disparidade de condições de atuação
judiciária entre reclamante e reclamado, falhando tal instituto em concretizar, no sistema
processual trabalhista, um pleno acesso à justiça, com a consecução de uma “justiça justa”.
Em decorrência deste instituto, o trabalhador, enquanto hipossuficiente na relação
processual, diante de sua precariedade de recursos para a contratação de advogado particular,
quando se vê obrigado a fazer uso de tal prerrogativa, ingressa pessoalmente em busca de seus
direitos, enquanto o empregador, detentor do capital, na maioria das vezes, encontra-se
amparado por advogado, gerando, assim, desigualdade processual material entre as partes,
visto que, de um lado, haverá um profissional conhecedor da legislação e procedimento
aplicável ao caso, enquanto do outro, somente o trabalhador, leigo e inexperiente na função
em que se encontra.
Ainda, até mesmo o empregador, nos casos de insuficiência de recursos, quando
decide responder sozinho a ação contra ele preposta (o que se vê com menor frequência e,
portanto, uma preocupação secundária do presente estudo e aqui mencionado a título de
exemplificação da ineficiência do supra referido instituto), também se vê diante de uma
situação para a qual não está preparando, colocando em risco, assim, o fim justo do processo.
Aliado ao fato da existência de tal instituto inviabilizador de uma justiça plena, tem-se
o enorme problema da ausência de prestação de assistência judicial gratuita por parte do
Estado, por meio das Defensorias Públicas, no âmbito trabalhista. Conforme exposto por
Boaventura de Sousa Santos 2 , a Defensoria Pública no Brasil foi implantada de forma
2
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2007, p. 47 –
48.
251
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I252
incipiente, e ainda apresenta inúmeros pontos problemáticos quanto ao seu funcionamento,
como o pequeno número de defensores, à baixa cobertura dos serviços no território nacional,
e a falta de incentivos governamentais para sua fortificação e autonomia. Também Alexandre
Lobão Rocha3, ao discorrer sobre as deficiências de tal instituição, destaca a amplitude do
universo da demanda populacional, os custos de implementação operacional do modelo
preconizado na legislação, os níveis da remuneração paga pelo ente público mantenedor e a
vulnerabilidade às contingências do jogo político das forças partidárias que dão sustentação
ao governo como empecilhos de implementação de tal modelo em sua plenitude.
Todavia, a presença de tantos problemas estruturais e institucionais não justifica a
ausência de ação por parte do Estado em disponibilizar tal serviço perante a Justiça do
Trabalho, vez que há previsão legal4 pra instituição e atuação de Defensoria Pública junto a
esta especializada e, como exposto supra, a demanda e a necessidade da assistência por ela
prestada é bastante intensa.
2 JUS POSTULANDI x ACESSO À JUSTIÇA
O Acesso à Justiça ou à “ordem jurídica justa”, constitucionalmente assegurada após
décadas de construções acerca da necessidade de o Estado fornecer os meios capazes de
promover uma isonomia material e econômica entre as partes, mediante instrumentos e
garantias processuais, capazes de concretizar o exercício da cidadania, fortalecendo a
democracia. Sobre o movimento pelo Acesso à Justiça, Cândido Rangel Dinamarco, fazendo
referência à Capelletti e Garth:
Informa Cappelletti, no ensaio escrito em co-autoria com Bryant Garth, que o
movimento pelo acesso à justiça constitui um aspecto central do moderno Estado Social,
ou welfare State; nos países ocidentais, esse movimento tem transparecido em três fases
(ou ondas), iniciadas em 1965: A primeira onda constituiu na assistência jurídica
(superação dos obstáculos decorrentes da pobreza); a segunda diz respeito às reformas
necessárias para a legitimação à tutela dos interesses difusos, especialmente os
respeitantes aos consumidores e os pertinentes à higidez ambiental; e a terceira onda
3
ROCHA, Alexandre Lobão. A exclusão legal da população carente. Brasília: Thesaurus, 2009, p. 116.
Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994. “Art. A Defensoria Pública da União atuará nos Estados, no
Distrito Federal e nos Territórios, junto às Justiças Federal, do Trabalho, Eleitoral, Militar, Tribunais Superiores
e
instâncias
administrativas
da
União.”
Disponível
em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp80.htm>. Acesso em 29.04.2012.
4
252
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I253
traduz-se em múltiplas tentativas com vistas à obtenção de fins diversos, entre os quais:
a) procedimentos mais acessíveis, simples e racionais, mais econômicos, eficientes e
adequados a certos tipos de conflitos; b) promoção de uma espécie de justiça
coexistencial, baseada na conciliação e no critério de equidade social distributiva; c)
criação de formas de justiça mais acessível e participativa, atraindo a ela membros dos
grupos sociais e buscando a superação da excessiva burocratização 5.
O jus postulandi, enquanto instituto do processo do trabalho, criado para viabilizar
condições de acesso à justiça, promove, por vezes, não o almejado acesso no sentido integral
que o conceito abarca, mas sim uma ilusão de efetivação da Justiça. Esse acesso apenas
formal à Justiça, de simples “ausência de barreiras”, não possibilita à parte que se utiliza do
instituto – notadamente, o trabalhador – igualdade de atuação judiciária, de modo a prejudicálo sobremaneira e influenciar enormemente o resultado da lide, por ter sido privado, ao fazer
uso de seu direito de postular sem a representação de um advogado - direito esse garantido,
inclusive, na Constituição, em seu artigo 133 – de assistência judicial técnica e especializada.
Atualmente, já se vê superada a concepção de que o acesso à justiça resume-se
simplesmente às possibilidades de acesso aos órgãos judiciais. Mais que isso, tal direito
fundamental apresenta-se, também, como um verdadeiro exercício da cidadania, uma vez que
pretende garantir ao indivíduo a realização e efetivação de seus direitos de forma plena e
concreta, alcançando-se, assim, uma sociedade mais justa e democrática.
O jus postulandi, faculdade que as partes possuem de postularem desacompanhadas de
advogado, surgiu na Justiça do Trabalho na década de 40, com o advento da CLT, estando
previsto no art. 791 deste diploma normativo. Tal instituto surgiu como resultado da
preocupação do legislador em amparar o trabalhador, em atenção ao caráter protetivo do
Direito do Trabalho, eliminando, para tanto, os empecilhos econômicos que poderiam obstruir
o acesso ao judiciário e a consecução dos direitos trabalhistas, de modo a tornar a Justiça do
Trabalho um órgão desprovido de formalismos.
A Constituição da República de 1988, ainda que preceitue, em seu art. 133, o advogado
como sendo indispensável à administração da justiça, e traga a previsão de dever do Estado e
direito fundamental do cidadão a assistência jurídica gratuita aos necessitados, recepcionou,
mediante decisão do STF em julgamento de ADIN6, o instituto do jus postulandi.
5
DINAMARCO, Candido Rangel, A Instrumentalidade do Processo. 5.ed. São Paulo: Malheiros. p. 274
ADIN 3.168. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=474620>
Acesso em 29.04.2012
6
253
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I254
Desse modo, em decorrência da existência desse instituto, continuou o Estado se furtando
a oferecer, no âmbito trabalhista, a devida assistência gratuita, pois, sendo necessitada a parte,
por não dispor de recursos financeiros para ingressar em juízo acompanhada de advogado,
poderia, simplesmente, ingressar sozinha, sem o auxílio deste.
Todavia, não se pode negar que a realidade atual da justiça trabalhista é completamente
diversa da realidade vivenciada na década de 40, estando o princípio da simplicidade mitigado
em tal especializada, uma vez serem cada vez mais complexos os conflitos entre capital e
trabalho, sendo o instituto do jus postulandi não mais viável no sistema em que hoje vigora.
Não se pode comparar a Justiça do Trabalho de quando de sua instalação, enquanto órgão
administrativo que prezava pela informalidade, oralidade e celeridade, cuidando, basicamente,
de questões corriqueiras, como anotações na Carteira de Trabalho, horas extras, férias, com a
atual realidade da Justiça do Trabalho, que, com sua expansão, tornou-se extremamente
técnica, complexa e solene, perdendo seu caráter informal e simplificado.
Ora, se até mesmo advogados, não familiarizados com a Justiça do Trabalho, passam por
dificuldades em suas primeiras audiências trabalhistas, como exigir que as partes,
completamente leigas, consigam, por si só, defender e reivindicar os seus direitos?
Nesse sentido:
Hoje, há um sem número de categorias profissionais, cada uma com seus dissídios
coletivos, acordo coletivos, cada caso possui inúmeras particularidades, os processos
trabalhistas tramitam durante anos, há um número enorme de normas, leis, portarias
do Ministério do Trabalho, uma jurisprudência não menos vasta e assim por diante.
(...) a presença do advogado, no processo trabalhista, não se trata de situação de
corporativismo de uma classe, mas de direito fundamental da parte, principalmente
do obreiro, e condição imprescindível para que seja exercida a cidadania em sua
plenitude7 (grifamos)
Também, Jorge Luiz Souto Maior, ao dissertar sobre o jus postulandi, elenca algumas de
suas falhas, óbices ao efetivo acesso à justiça:
(...)Uma reclamação mal proposta e uma parte desassistida de profissional habilitado
é mais vulnerável a aceitar uma solução conciliada em termos não muito justos, o
que não representa a pacificação do conflito, mas apenas a eliminação de um
processo – para um belo dado estatístico.
Em segundo lugar, o problema dos custos do advogado só existe por ineficiência do
Estado em oferecer, como devia, um efetivo serviço de assistência judiciária. A mera
7
VASQUES, André Cardoso. XAVIER, Otávio Augusto. A obrigatoriedade da presença do advogado no
processo trabalhista: corporativismo ou condição indispensável para o pleno exercício da cidadania? “in”
Síntese Trabalhista, Porto Alegre, 2001, junho, vol. 12, n.º 144. p. 54-56
254
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I255
transferência dessa responsabilidade para os sindicatos, a constituição de um serviço
interno de redução a termo das reclamações verbais na Justiça do Trabalho e a
permissão para a parte atuar por si no processo não são medidas suficientes para dar
por cumprida tal obrigação.
(...) O afastamento do advogado implica relegar a causa trabalhista a uma segundo
plano de importância, agravado pelo fato de que as controvérsias trabalhistas já não
são tão simples assim. (...) Nesses termos, a não exigência de advogado, embora
pareça facilitar o acesso à justiça, na verdade inibe-o, impedindo que se atinja a
ordem jurídica justa.8
A Consolidação das Leis do Trabalho, atualmente, possui mais de mil artigos, tendo
sofrido inúmeras alterações e aditamentos em seus parágrafos, letras, incisos.
Além disso, foi criada, paralelamente, uma enorme legislação extravagante, ainda mais
extensa do que a CLT, composta por Súmulas e Orientações Jurisprudenciais, tendo o
ultrapassado instituto do jus postulandi se mostrado prejudicial ao trabalhador, ao ser incapaz
de mover-se com eficácia em um sistema processual e judicial de tamanha complexidade.
Diante do presente panorama da Justiça do Trabalho, percebe-se, facilmente, ter-se
tornado imprescindível a presença do advogado nas causas trabalhistas, uma vez que afirmar
que o jus postulandi, no contesto atual, ainda garante um efetivo acesso à justiça, no completo
sentido que tal conceito abarca, nada mais é do que uma falácia.
Em atenção à tamanha incompatibilidade do instituto com os ideais democráticos do
Estado, foi proposto, em 2004, Projeto de Lei alvitrando a alteração do art. 791 da CLT e a
consequente extinção do jus postulandi na Justiça do Trabalho, uma vez que, conforme
exposição de motivos do referido projeto, ao se exigir dos litigantes trabalhistas a
compreensão dos intricados ritos processuais tem-se como resultado pedidos mal formulados,
quando não ineptos, produção insuficiente de provas, entre outras deficiências, o que resulta
sempre em prejuízo à parte que comparece em juízo desprovido de advogado, seja ela o
empregado ou o empregador.9
Tal Projeto de Lei, ressalta-se, é originado de anteprojeto da OAB/RJ, de autoria do
ex-Ministro Arnaldo Sussekind, um dos co-autores da Consolidação das Leis do Trabalho,
verificando-se, assim, que o próprio co-criador do jus postulandi, um dos responsáveis por
sua inserção na CLT, entende ser necessária sua extinção, revendo e reconstruindo seu próprio
posicionamento, de modo a reformar a legislação trabalhista, adequando-a à realidade da atual
Justiça do Trabalho.
8
MAIOR, Jorge Luiz Souto. Direito processual do trabalho: efetividade, acesso à justiça. São Paulo: LTr, 1998,
p. 130 – 131.
9
Projeto
de
Lei
3392/2004.
Disponível
em
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=250056. Acesso em 21.04.2012
255
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I256
Entretanto, embora louvável a proposição da extinção do jus postulandi e a criação dos
honorários de sucumbência na Justiça do Trabalho, esta última também medida de suma
importância para a viabilização de tal alteração processual, a simples revogação do instituto,
desacompanhada de incentivos direcionados à assistência judicial gratuita naquela
especializada, não servirá à obtenção da almejado acesso efetivo à justiça.
Conforme Souto Maior, apenas a instituição da sucumbência não resolve os problemas
das barreiras econômicas do processo do trabalho, ficando sem solução, ainda, a questão dos
honorários do advogado que presta assistência judiciária em ação em que não se obteve
sucesso. 10 Ainda segundo Souto Maior, outro problema que permanece é o pertinente à
informação, que também deveria estar coberta pela assistência gratuita, vez que dispôs a
Constituição de 1988 que a assistência deve ser jurídica e integral, ou seja, não apenas
judicial, mas também judiciária, apontando o autor ser esse um problema estrutural cuja
solução mais eficaz seria a criação de um órgão estatal, com localização nos bairros, onde a
pobreza jurídica presumidamente demonstre-se mais intensa, devendo tal serviço ser feito
pela Defensoria Pública.11
Ademais, especificamente sobre as falhas do instituto do jus postulandi na Justiça do
Trabalho, vale observar as valiosas lições de Marco Cappelletti e Bryant Garth 12, que alertam
sobre o verdadeiro disparate gerado pela eliminação da representação por advogado como
meio para se buscar mitigar as dificuldades econômicas, causando, em consequência de tal
medida, uma verdadeira precarização da justiça, conforme corroborado na seguinte passagem:
(...) como fator complicador dos esforços para atacar as barreiras ao acesso, deve-se
enfatizar que esses obstáculos não podem simplesmente ser eliminados um por um.
Muitos problemas de acesso são inter-relacionados, e as mudanças tendentes a
melhorar o acesso por um lado podem exacerbar barreiras por outro. Por exemplo,
uma tentativa de reduzir custos é simplesmente eliminar a representação por
advogado em certos procedimentos. Com certeza, no entanto, uma vez que litigantes
de baixo nível econômico e educacional provavelmente não terão a capacidade de
apresentar seus próprios casos, de modo eficiente, eles serão mais prejudicados que
beneficiados por tal “reforma”. Sem alguns fatores de compensação, tais como um
juiz muito ativo ou outras formas de assistência jurídica, os autores indigentes
poderiam agora intentar uma demanda, mas lhes faltaria uma espécie de auxilio que
lhes pode ser essencial para que sejam bem sucedidos. Um estudo sério do acesso à
Justiça não pode negligenciar o inter-relacionamento entre as barreiras
existentes.13(Grifamos)
10
MAIOR, Jorge Luiz Souto. Direito processual do trabalho: efetividade, acesso à justiça. São Paulo: LTr,
1998, p. 137.
11
Ibdem, p. 137 – 138.
12
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988.
13
Ibidem, p. 28.
256
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I257
Importante ressaltar, também, que o caráter opcional da presença de advogado deixou de
ser defensável quando, ao preceituar ser "o advogado indispensável à administração da
Justiça", a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 133, não excetuou a Justiça do
Trabalho.
Ainda Capelletti e Garth, ao discorrerem sobre a indispensabilidade do advogado e a
necessidade de sua garantia pelo Estado, assim afirmaram:
"na maior parte das modernas sociedades, o auxílio de um advogado é essencial,
senão indispensável para decifrar leis cada vez mais complexas e procedimentos
misteriosos, necessários para ajuizar uma causa. Os métodos para proporcionar a
assistência judiciária àqueles que não a podem custear são, por isso mesmo, vitais.
Até muito recentemente, no entanto, os esquemas de assistência judiciária da maior
parte dos países eram inadequados. O direito ao acesso foi, assim, reconhecido e se
lhe deu algum suporte, mas o Estado não adotou qualquer atitude positiva para
garanti-lo. De forma previsível, o resultado é que tais sistemas de assistência
14
judiciária
eram
ineficientes".
(Grifamos)
Ressalta-se, por fim, a notória hipocrisia que se verifica na atual Justiça do Trabalho,
no tocante ao jus postulandi. É fato inegável que a utilização de tal instituto pelas partes se dá,
em sua grande maioria, somente em causas de menor valor financeiro, causas estas que,
muitas vezes, poderiam até mesmo ter sido resolvidas em via extrajudicial. Assim, quando um
trabalhador resolve pleitear judicialmente, por exemplo, uma dezena de horas extras não
recebidas, não há estranhamento quanto ao fato de fazê-lo atuando sem intermédio de um
advogado. Agora, fosse o mesmo trabalhador requerer o recebimento de, digamos, cinco anos
de horas extras habituais e não pagas. O mesmo não cogitaria fazê-lo mediante a prerrogativa
do jus postulandi, e nem seria aconselhado a tanto. Ora, o direito em questão não seria o
mesmo – o recebimento de horas extras não pagas – variando-se somente a quantidade de tais
horas? Por que então essa diferença de postura, se as provas a fazer seriam as mesmas, assim
como as dificuldades encontradas pelas partes?
A nós, tal fato nada mais é do que uma banalização e monetização do Direito do
Trabalho, com a importância e o valor dos direitos dos trabalhadores sendo medido tão
somente por seu valor econômico direto, relegando-se, assim, décadas de conquistas sociais.
Assim, entendemos que, estando o instituto do jus postulandi inegavelmente defasado
frente à atual sistemática da justiça trabalhista, sendo necessária a sua revogação nesta
especializada, o organismo jurídico que poderia, de maneira mais completa, abrandar os
problemas de efetivação do acesso à justiça em seu sentido mais amplo seria a criação de uma
14
Ibidem, p. 28.
257
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I258
Defensoria Pública especializada.
3 DA EXISTÊNCIA DE UMA ADVOCACIA PÚBLICA PERANTE A JUSTIÇA DO
TRABALHO
Ao se extinguir o jus postulandi na Justiça do Trabalho, sem que haja,
concomitantemente, a criação de uma Defensoria Pública Trabalhista, mantendo-se a atual
falha do Estado em não cumprir o seu papel de prestar assistência jurídica gratuita nas causas
laborais, estar-se-á negando ao cidadão necessitado até mesmo o acesso formal à justiça, pois,
ainda que as Defensorias Públicas da União assumam o encargo antes relegado, não
possuiriam elas meios de arcar com a enorme demanda de busca por assistência que ocorreria
quando a atuação do advogado passasse a ser indispensável naquela especializada.
Boaventura de Souza Santos, ao discorrer acerca das Defensorias Públicas brasileiras,
em 2007, já apontava a ausência de investimentos governamentais em tais órgãos e,
especificamente quanto a Defensoria Pública da União, alertou para sua pequena estrutura,
com somente 111 cargos de defensores públicos criados até 2004, para cobrirem todo o país,
sendo que tal número não alcançava nem 10% do número de unidades jurisdicionais a serem
atendidas.15
Ademais, diante da especificidade da matéria trabalhista, conforme já exposto, cada
vez mais complexa, e considerando que, para um efetivo acesso à justiça não bastaria uma
assessoria jurídica ser oferecida gratuitamente, necessitando esta, também, ser prestada com
qualidade, faz-se veementemente necessário o exercício de tal função por órgão especializado,
de modo a assegurar ao cidadão as melhores condições de ser processualmente representado.
Concernente à necessidade de criação de uma Defensoria Pública Trabalhista, vale
observar-se o posicionamento do renomado jurista e sociólogo português Boaventura de
Sousa Santos, exposto em sua obra “Para uma revolução democrática da justiça” 16 , onde,
analisando a realidade brasileira, propõe o autor a contribuição dos sistemas jurídico e judicial
como fundamentais para a uma ampla revolução democrática do Estado, da sociedade e da
justiça.
Nessa exegese, afirma Boaventura ser o surgimento de outra cultura de consulta
jurídica e de assistência e patrocínio judiciário, ressaltando, para tanto, o estímulo,
15
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2007, p. 47
– 48.
16
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2007.
258
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I259
fortalecimento e atuação da Defensoria Pública, uma das medidas indispensáveis à criação de
uma justiça mais ampla e democrática. 17 Assevera o autor, ainda, que uma assistência
judiciária de qualidade não pode ser entregue às mãos dos advogados, uma vez que tais
profissionais agem segundo a lógica de proteção a seu mercado, reservando para a advocacia
bem remunerada o desempenho profissional de qualidade.18
Especificamente quanto à atuação da Defensoria Pública no âmbito da Justiça do
Trabalho, vale ressaltar que tal atuação é prevista expressamente pela Lei Complementar
80/94, em seu artigo 14:
Art.14. A Defensoria Pública da União atuará nos Estados, no Distrito Federal e nos
Territórios, junto às Justiças Federal, do Trabalho, Eleitoral, Militar, Tribunais
Superiores e instâncias administrativas da União.
Ora, de uma simples leitura irrefletida do supracitado artigo pode-se pensar que não
há, em verdade, o problema que se discute no presente trabalho, qual seja, a ausência de
prestação de serviço de tal órgão na jurisdição trabalhista. Algumas considerações e reflexões
devem, contudo, ser tecidas.
Primeiramente, é necessário ressaltar que a Defensoria Pública não é uma instituição
forte com grande número de profissionais para atuar em todas as áreas previstas pela lei. Isso
pode ser facilmente observado pelo número de profissionais. A DPU conta, atualmente, com
481 cargos de Defensores Públicos em todo o país. 19 Mesmo com o acréscimo dos 789
profissionais não se pode garantir a presença dos Defensores Públicos da União nas causas
trabalhistas tendo em vista que o déficit de profissionais ainda é grande e que a Justiça do
Trabalho apresenta enorme demanda e está presente em diversas comarcas nas quais não há
presença da Justiça Federal comum.
Além da grande demanda, também a necessidade de se criar uma Defensoria Pública
Trabalhista apartada da defensoria Pública da União é justificada pela necessidade de maior
autonomia e à diferença primordial entre dois fatores: a vocação e a prática forense entre a
Justiça federal comum e a trabalhista.
Com a existência de uma Defensoria Pública Trabalhista independente, aqueles
17
Ibidem, p. 46.
18
Ibidem.
19
CRIAÇÃO DE 789 CARGOS DE DEFENSOR PÚBLICO PASSA PELO SENADO E AGUARDA SANÇÃO DA
PRESIDENTA.
Disponível
em:
http://www.dpu.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10035:criacao-de-789-cargos-dedefensor-publico-passa-pelo-senado-e-aguarda-sancao-da-presidenta&catid=79:noticias4&Itemid=220.
Acesso em: 17 de março de 2013.
259
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I260
verdadeiramente vocacionados a ingressar em suas fileiras poderiam se preparar
especificamente para as funções de advogado trabalhista a serem exercidas. Até porque, se a
própria organização da Justiça do Trabalho é apartada da Justiça Federal, se os concursos de
Juízes e do Ministério Público são distintos, não há razão lógica para que não seja da mesma
maneira com os Defensores.
Ainda, como justificativa para se negar a atuação da Defensoria Pública junto à Justiça
do Trabalho, é sempre abordada a questão da existência do instituto do jus postulandi e a
consequente desnecessidade de representação processual por advogado em tal especializada, o
que, em tese, dispensaria a necessidade de assistência jurídica gratuita, vez que as próprias
partes possuem direito de postular. Tal justificativa, todavia, nos parece absurdamente
descabida, vez que, ainda que se entenda que a representação por advogado não é essencial na
Justiça do Trabalho, concordando-se com o jus postulandi que nela vigora, posicionamento
este que, frise-se, repudia-se por completo no presente estudo, tal fato não exclui a
necessidade de assistência jurídica fornecida pelo Estado às partes que dela necessitam, sendo
que a precariedade na implantação e serviço prestado pelas Defensorias Públicas de forma
alguma
justifica
o
descumprimento
de
suas
funções
institucionais
e
garantias
constitucionalmente previstas.
A Constituição Federal, ao prever o dever do Estado em prestar assistência jurídica
integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, pretendeu efetivar diversos
outros princípios constitucionais, tais como igualdade, devido processo legal, ampla defesa,
contraditório e, principalmente, pleno acesso à Justiça. Sem assistência jurídica integral e
gratuita aos hipossuficientes, não haveria condições de aplicação imparcial e equânime de
Justiça. Trata-se, pois, de um direito público subjetivo consagrado [...]. 20
Também nesse sentido, Ovídio A. Batista da Silva:
"o princípio do contraditório, por outro lado, implica um outro princípio fundamental,
sem o qual ele nem sequer pode existir, que é o princípio da igualdade das partes na
relação processual. Para a completa realização do princípio do contraditório, é mister
que a lei assegure a efetiva igualdade das partes no processo, não bastando a formal e
retórica igualdade de oportunidades. Da exigência deste requisito, como pressuposto de
justiça material, decorrem todas as providências administrativas e processuais de
representação e assistência aos pobres e carentes de recursos materiais, de modo a
assegurar-lhes uma adequada e eficiente defesa judicial de seus direitos".21
20
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 7. ed. São Paulo:
Atlas, 2007, p. 395.
21
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil : processo de conhecimento, volume 1. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1998.
260
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I261
Ainda sobre a necessidade da assistência e orientação jurídica e judiciária do
jurisdicionado:
A assistência jurídica a ser prestada pelo Estado aos necessitados é integral: aquele que
se encontre e situação de miserabilidade será dispensado de despesas processuais,
providenciando-lhe ainda o Estado defensor em juízo. A Defensoria Pública é, assim,
órgão essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e
defesa, em todos os graus, dos necessitados [...].22 (grifamos)
Ressalta-se, a propósito, que uma Defensoria Pública Trabalhista, se bem equipada e
preparada, além de resguardar e buscar garantir o acesso à justiça formal na seara trabalhista,
suprimindo as falhas do sistema atual, poderia, inclusive, utilizando-se dos métodos
alternativos de resolução de conflitos, diminuir enormemente a propositura de novas ações, ao
dirimir os litígios de modo extrajudicial.
Não há que se falar, também, de uma pretensa impossibilidade material devido à
escassez de recursos de implementação da Defensoria Pública Trabalhista na Justiça do
Trabalho, posto que os Entes Públicos, quando demandados nesta Justiça Especializada, nela
atuam através de membros específicos da Advocacia Pública.
Ora, não pode ser admissível que o Poder Público, ao produzir uma norma que permite
ao jurisdicionado atuar na Justiça do trabalho sem a intervenção/auxílio de um advogado, não
crie, concomitantemente, políticas públicas efetivas que garantam ao jurisdicionado o acesso a
uma assistência jurídica e judiciária trabalhista.
Desse modo, tem-se a criação de uma Defensoria Pública Trabalhista como uma
alternativa mais completa e eficaz à diminuição do problema do acesso à justiça no âmbito da
Justiça do Trabalho, de modo a suprir as lacunas que inevitavelmente surgiriam com a
abolição do jus postulandi, abolição esta veementemente necessária à obtenção de um Acesso
à Justiça mais pleno e efetivo nas lides laborais.
4 CONCLUSÃO
Pelo exposto, conclui-se que o instituto do jus postulandi, por já ter cumprido o seu
papel histórico e não mais se adequar à realidade atual da Justiça do Trabalho, extremamente
22
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pgs
859-860.
261
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I262
técnica e complexa, necessita ser extinto, de modo a viabilizar um pleno acesso à justiça e
uma ordem social justa, fim último do Direito.
Todavia, tal extinção não pode vir desacompanhada da criação de uma Defensoria
Pública especializada, para atuação no âmbito da justiça do trabalho, garantindo-se, assim, a
prestação estatal de assessoria jurídica gratuita ao cidadão hipossuficiente, prestação esta
constitucionalmente prevista e assegurada, mas que vem sendo negligenciada pelo Estado nos
conflitos trabalhistas.
Deste modo, defende-se o fim do jus postulandi na seara trabalhista com uma
concomitante criação e estruturação de uma Defensoria Pública Trabalhista, como um
mecanismo eficaz à equiparação de direitos e poderes entre as partes, dando, finalmente, fiel
cumprimento ao disposto no inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição, bem como aos seus
artigos 133 e 134, garantindo não apenas o acesso formal à justiça, mas o acesso à justiça
justa, democrática e inclusiva.
Referências Bibliográficas
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 17. ed., rev. atual e ampl. Belo
Horizonte: Del Rey, 2011.
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Trabalho. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007.
MAIOR, Jorge Luiz Souto. Direito processual do trabalho: efetividade, acesso à justiça. São
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MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 7.
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ROCHA, Alexandre Lobão. A exclusão legal da população carente. Brasília: Thesaurus,
2009.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo:
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SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil : processo de conhecimento,
volume 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.
VASQUES, André Cardoso. XAVIER, Otávio Augusto. A obrigatoriedade da presença do
advogado no processo trabalhista: corporativismo ou condição indispensável para o pleno
exercício da cidadania? “in” Síntese Trabalhista, Porto Alegre, 2001, junho, vol. 12.
263
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I264
REFLEXÕES SOBRE OS DESAFIOS PARA EFETIVAÇÃO DA NOVA REDAÇÃO DO
ARTIGO 4º, III, DA LEI COMPLEMENTAR 80/94: A FUNÇÃO INSTITUCIONAL
DA DEFENSORIA PÚBLICA NA EDUCAÇÃO DE DIREITOS
REFLECTIONS ON THE CHALLENGES FOR REALIZATION OF NEW WORDING OF
ARTICLE 4, III, SUPPLEMENTARY LAW 80/94: THE INSTITUTIONAL ROLE OF THE
PUBLIC DEFENDER IN EDUCATION RIGHTS.
JOSÉ VAGNER DE FARIAS1
SUMÁRIO: I. Introdução; II. A Defensoria Pública e o
“necessitado” de informações para o exercício de direitos
fundamentais; III. A educação de direitos dentre as várias
atribuições da Defensoria Pública: distinção em relação à Justiça
Gratuita, Assistência Judiciária e Assistência Jurídica; IV. Os
desafios para a efetiva educação em direitos; V. Conclusões; VI.
Referências Bibliográficas.
Resumo
O presente trabalho tem por objetivo fazer uma reflexão sobre os desafios para se efetivar
uma das mais novas funções consagradas à Defensoria Pública, a qual consiste na educação
de direitos. Inicialmente, é feito uma abordagem constitucional e legal sobre a instituição
Defensoria Pública e sua regulamentação legal. Depois, é aprofundado o conceito
constitucional de “necessitado”, o qual legitima a atuação do órgão, ressaltando-se que a
adjetivação desse substantivo não é feito sob a ótica econômica apenas. Buscando-se efetivar
direitos fundamentais, destaca-se que a educação de direitos está inserida no rol de atribuições
da Defensoria Pública, dentre as quais a assistência judiciária e assistência jurídica, fazendose a distinção entre cada instituto. Por fim, são lançados vários aspectos que devem ser
trabalhados para que a instituição cumpra com seu dever republicano e possa fazer diferença
no sistema de justiça.
Palavras-chave: Defensoria Pública. Educação. Direitos.
Abstract
This paper aims to reflect on the challenges to accomplish one of the newest functions
dedicated to the Public Defender, which is the education rights. Initially, an approach is made
legal and constitutional Institution Public Defender and its legal regulation. Then, depth is the
constitutional concept of "need", which legitimizes the actions of the body, emphasizing the
adjective noun that is not done under the economic perspective only. Seeking to effect
fundamental rights, it is emphasized that the rights education is included in the list of duties of
the Public Defender, among which legal aid and legal assistance, making the distinction
between each institute. Finally, we launched several aspects that must be worked for the
institution to fulfill its duty and Republican can make a difference in the justice system.
Keywords: Public Defender. Education. Rights.
1
Defensor Público do Estado do Ceará e Aluno da Pós-Graduação em Direito da UNIFOR, no mestrado em
Direito Constitucional.
264
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I265
I. Introdução
A Defensoria Pública é Instituição jurídico-política, essencial e
permanente, criada a partir da Constituição Federal de 19882 como uma das “funções
essenciais à justiça”, que tem por missão constitucional promover a igualdade no acesso à
mesma pelas pessoas consideradas “necessitadas”. Em seu artigo 134, a Carta Magna dispõe
que a Defensoria Pública é essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a
orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º,
LXXIV.
A sua criação é mais um avanço oriundo da Constituição Federal de 1988
(CF/88), que já em seu nascimento foi designada como “Constituição-Cidadã”, não apenas
devido à maior participação popular em sua gênese comparativamente às anteriores, mas
também por ter trazido um papel político-jurídico de enaltecimento de direitos fundamentais
ao longo de todo seu corpo textual, tendo como principio maior a dignidade da pessoa
humana.
Pode-se afirmar que a Defensoria Pública é, portanto, a própria consagração
do direito fundamental de acesso à justiça, pois deve cumprir a missão de orientação jurídica e
defesa judicial e extrajudicial dos “necessitados”, que, em sua maioria, são de cunho
econômico, não podendo se valer da lógica liberal de contratar um advogado para obter sua
orientação e defesa de direitos. É a instituição que deve abrir a porta do sistema de justiça
para a grande maioria da população brasileira, pois 83% da população brasileira enquadra-se
no perfil socioeconômico do público-alvo da Defensoria Pública (CASTRO, 2010).
Em 07 de outubro de 2009, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei
Complementar (LC) 132/09, que alterou substancialmente a Lei Complementar 80/943, a qual
2
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindolhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.
§ 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos
Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na
classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da
inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais. (BRASIL, 1988)
3
Organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas
gerais para sua organização nos Estados, e dá outras providências. (BRASIL, 1994)
265
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I266
consiste no diploma regulamentar da Instituição Defensorial, nos termos do art. 134, §1º da
Carta Política.
No regime jurídico anterior, o art. 4º da LC 80/94 consagrava onze
atribuições institucionais da Defensoria Pública. Após a LC 132/09 o rol de atribuições quase
dobrou (os incisos XII e XIII foram vetados anteriormente quando do surgimento da LC
80/94), passando a perfazer vinte missões republicanas. Uma das principais inovações trazidas
pela Lei Complementar supracitada foi a explicitação no ordenamento jurídico nacional de
uma de suas funções que consiste na educação em direitos:
Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:
III – promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e
do ordenamento jurídico; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
(BRASIL, 2009)
Alguns juristas, de pronto, questionaram a suposta inovação de atribuição
institucional ao órgão sob o ponto de vista positivista, pois “ […] embora não mereçam ser
concebidas como algo novo na missão da Defensoria Pública quanto ao direito de acesso à
justiça.”. (SOARES DOS REAIS, 2011, P. 127)
Embora teleologicamente relacionado a uma das funções institucionais da
Defensoria Pública, que é o acesso à justiça de maneira ampla, a Lei Complementar é um
marco jurídico-legal importante, pois fundamentadamente deixou solidificada a determinação
legal para a busca da efetivação de um dever fundamental do Estado brasileiro que consiste na
educação, porém nesse caso, a educação em direitos especificadamente:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988)
Desta forma, o presente artigo busca uma análise reflexiva sobre os desafios
para efetivação desse papel agora consagrado legalmente da instituição Defensoria Pública,
seus desafios e a responsabilidade de ser uma instituição que faça diferença na efetiva
concretização dos direitos fundamentais constitucionais em um país em que a grande maioria
da população não tem noção de cidadania e como efetivá-la diante da máquina burocrática do
Estado.
II. A Defensoria Pública e o “necessitado” de informações para o exercício de direitos
fundamentais
266
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I267
Conforme expressa determinação constitucional e através de uma
interpretação simples do artigo 134 da Constituição, constata-se que em nenhum momento
adjetiva-se como “econômico” o substantivo “necessitado”do usuário para o qual são
destinados os serviços da Defensoria Pública.
Esse raciocínio é o principal motivo para que juristas e doutrinadores, cada
vez mais, reflitam e questionem a tradicional visão de que a Defensoria Pública é o
“advogado do pobre”, isto é, do “necessitado econômico”, podendo haver, entretanto, outras
hipóteses de necessidade, que legitimam constitucionalmente a atuação defensorial como a
decorrente de idade, incapacidades, comunidades indígenas, minorias, vitimizações,
migração, deslocamento interno, gênero, privação de liberdade e, a que mais interessa para
este trabalho, que é a cultural em seu sentido jurídico. A necessidade prevista
constitucionalmente pode, dessa forma, ter diferentes significados e não podem ser reduzidas
apenas ao aspecto econômico, como carência de bens materiais, pois a efetivação dos direitos
fundamentais a elas relacionadas, muitas vezes dependerá do direito à informação, na imensa
maioria das vezes prejudicado pela falta de educação jurídica.
Nesse sentido, Amartya Sen (2010, p. 173) infere que a pobreza deve ser
vista como privação das capacidades básicas para alcançar certos níveis minimamente
aceitáveis, ao invés do simples critério de mera baixa renda financeira.
Porém, é recorrente, embora não exclusivo e muito menos de forma
absoluta, que os cidadãos de menores recursos econômicos tendem a conhecer pior os seus
direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer um problema que os afeta como
sendo da esfera jurídica. Isso implica a situação fática de ignorar os direitos em jogo ou
ignorar as possibilidades de reparação jurídica.
Esse é o raciocínio de Flávia Schilling (2008, p. 273) quando trata do
assunto educação em direitos humanos: “A primeira constatação a ser feita é a de que a
educação é um direito humano. É um direito humano em si e, como tal, fundamental para a
realização de uma outra série de direitos”.
267
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I268
Tal concepção é fortalecida com o próprio preceito normativo já
mencionado do art. 205 da Constituição Federal de 1988, o qual estabelece que a educação
deve possuir uma de suas metas a de preparar para o execício da cidadania. O acesso de todos
à Justiça exige, portanto, o acesso efetivo à educação e à cultura.
Caracteriza-se, dessa maneira, a necessidade de efetivação do direito à
informação, pois a falta de reconhecimento prévio por parte do cidadão de seus direitos
subjetivos e de como efetivá-los é uma barreira de acesso à justiça, à efetivação dos direitos
fundamentais e, por assim dizer, da própria democracia.
Assim, para que se efetive o direito da igualdade material no que tange ao
acesso à justiça, é que também à Defensoria Pública foi imputada legalmente a tarefa de tentar
suprir essa lacuna no sistema, através da prestação de informação e orientação jurídica, a fim de
permitir ao cidadão o conhecimento da existência de seus direitos preventivamente e previamente a
qualquer caso concreto em que um dia possa se envolver.
Dessa forma, pode-se afirmar que a Defensoria Pública é mais uma
ferramenta do Estado que deve atuar no sistema amplo de educação do país, na esfera da
cidadania, para que a sociedade possa reconhecer na existência de direitos fundamentais e
dos instrumentos aptos a reivindicá-los e efetivá-los.
A necessidade de informação jurídica tal patente na população brasileira,
portanto, legitima a atuação do órgão na difusão e a conscientização dos direitos humanos, da
cidadania e do ordenamento jurídico.
III. A educação de direitos dentre as várias atribuições da Defensoria Pública: distinção
em relação à Justiça Gratuita, Assistência Judiciária e Assistência Jurídica.
A função institucional da Defensoria Pública de promover a difusão e a
conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico foi positivada
no sistema normativo pela Lei Complementar 132/2009, ratificando a idéia da atuação
Defensoria em relação ao “necessitado” de informação jurídica. Tal previsão não foi
estabelecida na redação original da Lei Complementar 80/1994. Tal alteração também possui
relevância hermenêutica porque o intérprete da lei passou a ter elementos para diferenciar de
268
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I269
outras funções institucionais do supracitado órgão, de ajudar a distinguir assistência judiciária,
orientação jurídica de educação em direitos.
O Estado Brasileiro, com o surgimento da Defensoria Pública, deixou a
posição de simplesmente oferecer assistência judiciária à população para verdadeiramente
encarregar-se de prestar efetiva e integramente assistência jurídica, não se restringindo,
portanto, a uma atuação limitada à atuação em processos judiciais - assistência judiciária4,
para também assistir o cidadão jurídica e integralmente em toda a sua vida de relações
jurídicas, seja nas searas judicial, administrativa, ou particular, ou seja, fornecendo-lhe
informações, quais meios e ferramentas para concretização de seus direitos, que podem ser
efetivados fora da órbita judicial. Portanto, a atuação da Defensoria Pública não se limita à
assistência judiciária. A previsão constitucional do inciso LXXIV, do artigo 5ª da CF/88,
estabelece a assistência jurídica e não judiciária. A atuação da Defensoria Pública transborda
os limites dos processos judiciais, mas também toda a assessoria fora de um processo judicial,
o que engloba desde procedimentos administrativos, até consultas pessoais do necessitado
sobre contratos (locação, financiamento, consumo), direito de vizinhança, etc...
A justiça gratuita corresponde à isenção do pagamento de custas, taxas,
emolumentos e despesas processuais. Trata-se de instituto que só pode ser concedido na
esfera do Poder Judiciário, razão pela qual não deve ser abordado nesse artigo.
Pretende a Constituição, coerente com a premissa de acesso à justiça, e não
apenas ao Poder Judiciário, através dos órgão da Defensoria Pública, colocar à disposição do
cidadão necessitado, todas as informações necessárias e indispensáveis a que o mesmo se
realize enquanto sujeito de direitos em uma ordem jurídica democrática. O papel da
Defensoria Pública, ao prestar “orientação jurídica” é ativo, dando ao dispositivo
constitucional que prevê a “assistência jurídica integral”, plena e completa eficácia em prol
dos necessitados.
“Não se presumem, na lei, palavras inúteis”, costuma-se ensinar o velho
brocardo jurídico. A distinção entre orientação jurídica e educação em direitos parte dessa
premissa, fundamentada legalmente, inclusive. Como paradigma da diferenciação, devemos
4
A assistência judiciária diz respeito ao patrocínio de uma causa por advogado e pode ser prestado por
um órgão estatal ou por entidades não estatais, como escritórios de modelos de faculdade de direito ou de
ONG's.
269
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I270
utilizar como esteio de argumentação o regramento contido no art. 4º, incisos I e III da LC
80/94 (após-LC 132/09)5.
A orientação jurídica é um discurso que ressalta a dogmática jurídica, na
qual o Defensor Público atua como agente de aconselhamento técnico para a solução de uma
controvérsia. Dessa forma, cabe ao Defensor agir profissionalmente diante de uma situaçãoproblema (não necessariamente há litígio, podendo estar se buscando evitar um), esclarecendo
para a pessoa (o usuário do serviço) a melhor solução legal ou jurisprudencial para o seu caso.
Quando a Constituição de 1988 alterou a expressão “assistência judiciária”
das Constituições anteriores pela expressão “assistência jurídica”, o intento do constituinte foi
tornar mais amplo possível os serviços de assistência jurídica gratuita, que vão desde a já
destacada orientação jurídica simples – inclusive aconselhamento voltado à consecução de
acordos entre potenciais litigantes para prevenir ou excluir uma demanda – até a defesa em
juízo do cidadão necessitado.
A ampliação do serviço de educação em direitos estimula o fortalecimento
do papel da Defensoria Pública de indutora de solução extrajudicial de conflitos, pois para
que a composição de conflitos de forma pacífica tenha resolutividade, pressupõe-se a vontade
de diálogo e que as partes tenham algum conhecimento de seus direitos. Não necessariamente
será o indispensável para o êxito dos litígios, pois podem haver outros aspectos em questão,
emocionais por exemplo, como no Direito de Família, mas se a preponderância for do direito
em si, terá função relevante para a paz social.
A grande distinção, portanto, fica no fato de ser a orientação jurídica
eminentemente casuística, porque é trabalhada perante um contexto de situação-problema.
Assim como a educação em direitos também tem a função de prevenir
conflitos, a orientação jurídica destaca-se pelo aspecto de tentar solucionar uma demanda já
existente no plano factual. Isso pode resultar em uma resolução de conflito na esfera
extrajudicial, o que deve sempre ser motivado tendo em vista evita ajuizamento de demandas
5
Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:
I – prestar orientação jurídica e exercer a defesa dos necessitados, em todos os graus;
(…)
III – promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento
jurídico.(Grifos nossos) (BRASIL, 1994)
270
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I271
em um Poder Judiciário já abarrotado de processos, ou, caso não seja possível, buscar a
jurisdição do Estado, a qual deve ser sempre o último caminho para se resolver conflitos.
A educação em direitos iguala-se, portanto, da mesma importância que o
patrocínio jurisdicional. Trata-se de uma questão preliminar para o exercício dos direitos à
democracia, já que sem o reconhecimento dos direitos subjetivos de um cidadão, o mesmo
não será capaz, muito menos, sentir-se capaz de participar dos grandes debates sociais e
políticos que o envolvem.
Em um país de tantas desigualdades sociais, as noções mais básicas de
direito não são contempladas com a lógica liberal segundo a qual cada indivíduo tem o
potencial de fazer valer seus direitos sem a interferência estatal. A consequência disso é que
muitas vezes por falta de informações jurídicas, conflitos mais básicos não esbarrariam em
violência, do “fazer justiça com as próprias mãos”, podendo ser facilmente resolvidos, como
briga de vizinhos, e pessoas não seriam manipuladas, sendo vítimas de setores dos mais
diversificados ramos, pela desinformação, como, por exemplo, se submeter ao
constrangimento de, para realizar um exame de DNA a fim de verificar a paternidade de uma
pessoa, ter que ir para a TV fazer baixarias em torno do relacionamento sexual de um casal.
Outra grande diferença entre orientação jurídica e educação em direitos está
no fato de a primeira tem uma lógica de atuação mais individualista, privada, enquanto que
esta tem como meta o espaço público (NUNES DE OLIVEIRA, 2006, p. 74).
IV. OS DESAFIOS PARA A EFETIVA
EDUCAÇÃO EM DIREITOS
Diante da missão de promover a difusão, a conscientização dos direitos
humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico, diversos desafios são vislumbrados em
relação a efetividade do comando legal que ratificou um dos objetivos maiores de toda e
qualquer educação: a transformação social.
O primeiro, e talvez mais difícil de se trabalhar, pela tradição, é de natureza
cultural. A tradição histórica da construção do Estado Brasileiro ter sido imposta pelas elites
de cima para baixo sem participação popular efetiva em grandes momentos para a
consolidação de direitos no país, como a independência e a promulgação da república, por
exemplo, faz com a “cultura do favor”, do voluntarismo, da caridade, esteja solidificada na
271
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I272
sociedade, principalmente nas camadas mais humildes. A maior parte dos cidadãos não tem
consciência de seus direitos e consideram os mesmos como dádivas de políticos, inclusive
para quem atua como Defensor Público, no próprio reconhecimento que a relação ali existente
entre este e o usuário não é um favor, mas um direito seu, podendo reclamar caso o
atendimento não seja satisfatório6. Para começar a fazer a diferença nessa cultura, muitas
vezes impregnada também pelo corporativismo do serviço público, é fundamental ressaltar
esse aspecto desde o começo, ressaltando que a Defensoria Pública também não faz favor a
ninguém, apenas cumpre com seu dever.
O pior erro, entretanto, que pode ser cometido no cumprimento desse dever
republicano é o de fazer mera apresentação de leis, dentro de uma pura e acrítica visão
positivista, embora seja inevitável em muitas circunstâncias, isso porque o papel da
Defensoria Pública é a educação em direitos, isto é, educação jurídica popular. O Defensor
Público deve ser estimulado a protagonizar abordagens críticas. A abordagem puramente
legalista não deveria sequer jamais ser o cerne dos cursos de direito, como têm advertido
inúmeros educadores e juristas.
A preocupação com o excesso de tecnicismo deve ser constante, pois impede
radicalmente a compreensão dos assuntos pela população, que muitas vezes, não sabe definir
o que seja uma constituição, quais as razões históricas de a mesma ter surgido, em razão de
quais lutas, o limite dos poderes, etc. Uma coisa é mencionar que todos são iguais perante a
lei, lendo o caput do artigo 5º, da Constituição Federal, outro é ressaltar que aquele direito foi
oriundo de muitas lutas, com muito “derramamento de sangue”, em razão da Revolução
Francesa, bem como essa ser apenas dentro de uma perspectiva liberal e que outras pessoas
aprofundaram tal concepção com o socialismo, por exemplo.
6
Art. 4º-A. São direitos dos assistidos da Defensoria Pública, além daqueles previstos na
legislação estadual ou em atos normativos internos:
I – a informação sobre:
a) localização e horário de funcionamento dos órgãos da Defensoria Pública;
b) a tramitação dos processos e os procedimentos para a realização de exames, perícias e
outras providências necessárias à defesa de seus interesses;
II – a qualidade e a eficiência do atendimento;
III – o direito de ter sua pretensão revista no caso de recusa de atuação pelo Defensor
Público;
IV – o patrocínio de seus direitos e interesses pelo defensor natural;
V – a atuação de Defensores Públicos distintos, quando verificada a existência de interesses
antagônicos ou colidentes entre destinatários de suas funções. Grifo nosso (BRASIL, 1994)
272
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I273
A falta de conhecimentos mais básicos para o exercício da cidadania, como
ler e escrever por exemplo, da grande maioria da população, é outro grande entrave, cabendo
ao Defensor Público ter a sensibilidade de linguagem e compreensão das dificuldades de seus
usuários compreender a máquina burocrática para se ajuizar uma demanda ou fazer uma
defesa administrativa ou uma simples consulta de problemas com o vizinho.
O mais importante é que o processo deva partir de uma visão emancipatória,
de conscientização dos cidadãos acerca de seus direitos sem se estabelecer uma hierarquia
entre a população e os Defensores Públicos, como se a população fosse mera receptora de
conhecimento positivista e acrítico. O processo inverso de se conhecer a difícil realidade das
pessoas mais necessitadas deve ocorrer, cabendo ao Defensor compreender muitas vezes a
lógica informal das relações sociais e procurar o sentido de transformá-la:
“É nesse sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos, nem
formar a ação pela qual um sujeito criador dá forma estilo ou alma a um corpo
indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e
seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição
de objeto, um do outro.” (FREIRE, 2000. p.25)
Dessa maneira, a construção do processo de conhecimento dialético sobre
direitos humanos deve ter como ponto de partida o debate de conhecimentos e, sobretudo, de
visão de mundo de cada participante do processo, pois a história mundial assim demonstra
que tais conquistas não partiram de uma lógica linear, das visões acríticas de “gerações de
direito” tão impregnadas nos bancos das faculdades de direito. Mesmo o Defensor Público, o
qual consiste na carreira jurídica que deve estar mais acessível à população, é um grande
desafio pessoal de casa Defensor romper com a tradicional concepção de ensino tradicional
que o mesmo carrega, por ter sido fruto da mesma, e que consiste segundo Paulo Freire em
um processo de conhecimento de consciência bancária, pois “o educando recebe
passivamente os conhecimentos, tornando-se um depósito do educador”. (FREIRE, 1986, p.
38):
“Isso ganha maior relevância na educação em direitos humanos com
movimentos sociais populares na medida em que, geralmente, se tratam de
sujeitos que ocupam lugares sociais diferentes. O profissional que vai trabalhar
os conteúdos com os movimentos sociais populares comumente advém de uma
situação de classe mais confortável do que as do educando. Isso redunda no
encontro de dois saberes: o institucionalizado, das ciências e da escola, e o
popular, adquirido pela experiência e transmitido pela tradição. Em razão disso,
há uma possibilidade de troca de saberes muito grande entre educadores e
educandos, uma prática educativa que relegue esse diálogo, estará
273
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I274
desperdiçando saberes e ignorando a cultura popular. Ademais, com a
participação dos educandos tanto o aprendizado fica mais fácil, em virtude da
maior atenção dispensada às aulas”. (LIMA FILHO, 2012).
Logo, se a Defensoria Pública deseja realizar uma efetiva educação em
direitos humanos pautada na educação popular, deve-se ter consciência dessa concepção e
buscar segui-la, sob pena de ser apenas uma reprodutora do sistema, sem a capacidade crítica
que tem a população de ser sujeitos da história, podendo alterar o próprio direito positivista e
a idéia de justiça.
Segundo Paulo Freire (2000. p.25), a educação popular tem como premissa
o diálogo entre educando e educador, de forma que ambos ensinam e aprendem. Existe uma
valorização das experiências sociais de cada um no processo, indispensáveis para o processo
de aprendizagem, verdadeira “mão dupla” de troca de conhecimentos. O Pedagogo rejeitava a
idéia do educador como repositório do saber e dos educandos como a ignorância absoluta.
Deve ser esse o paradigma que o órgão defensorial deve seguir em cumprir
seu dever, já que, se não for assim, sem aproximação com a sociedade, possibilitando
reconhecer melhor as demandas do “dia a dia” da população, a efetividade do processo será
ineficaz e gerará frustração tanto em seus membros como na população.
No campo político-judicial, tal mobilização devidamente trabalhada é capaz
de promover grandes transformações sociais que deverão ir, na maioria das vezes, de encontro
aos setores que desejam a manutenção do status quo. Não é a toa que a Defensoria Púbica,
única instituição voltada em sua essência para os necessitados no sistema de justiça, a maioria
de ordem econômica, é a menos estruturada e prestigiada quanto a estrutura e orçamento do
Estado, ao mesmo tempo que a grande maioria das pessoas precisam de seus serviços, sendo
também fato que a grande maioria das comarcas do país não possui representante seu. A
educação em direitos, devidamente, trabalhada, é capaz de trazer a população a favor do órgão
e assim como cobrar o respeito aos direitos fundamentais, também poderá fortalecer a
instituição, como órgão de concretização de direitos fundamentais que é, valendo das regras
do jogo democrático.
O objetivo maior da mais nova função explicitada da Defensoria Pública
deve ser de educação para ação, mudança, possibilitando que as pessoas possam assumir
274
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I275
papéis não de expectadores, mas cidadãos com consciência que podem conduzir a processo de
mudanças sociais.
Para tanto, o conteúdo desses debates com a população, conforme já
mencionado, deve estar longe de ser apenas apresentação de leis e do ordenamento jurídico de
forma distante das razões pelas quais foram originados suas mudanças ao longo do tempo, e
também colocá-los em questionamentos quando não mas atenderem as demandas sociais,
ressaltando o poder que a sociedade civil organizada tem de mudar a realidade.
V. CONCLUSÕES
O questionamento “para que educação em direitos?” a ser exercido pela
Defensoria Pública é, concomitantemente, ofensivo e necessário. A Defensoria Pública, por
ser uma instituição nova no Brasil e na América Latina, talvez seja uma das pioneiras a
consagrar normativamente a educação em direitos como uma atividade inerente ao ideal de
justiça social.
Após se fazer uma análise mais formalista do ordenamento jurídico a fim de
compreender as razões para a positivação do dever do órgão defensorial de promover a
difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico,
chega-se à conclusão da importância de implementá-la para contribuir para uma mudança do
quadro histórico de que o conteúdo das normas do Brasil geralmente é produzido de “cima
para baixo” e não de “baixo para cima”, considerando-se exceção uma ou outra situação de
participação popular no debate de sua elaboração. A justiça social, nas vezes em que avançou
no país, expandiu-se quando o movimento ocorreu “de baixo para cima”, com participação
popular, frutos de lutas de cidadãos conscientes de seu papel e como sujeitos ativos da
história, cientes de seus direitos.
Dessa maneira, tendo como referência as lições de Paulo Freire, a
Defensoria Pública vai se legitimar socialmente e fazer diferença na concretização de direitos
fundamentais se trabalhar com o viés de participação popular. O seu dever é de tentar
contribuir para que a população saiba de seus direitos subjetivos e que também saibam como
lutar pela efetivação dos mesmos, pois, parafraseando o pensamento de Rudolf Von Ihering,
todo direito é uma conquista e não um “presente dado”.
275
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I276
A lógica é evitar a cultura do paternalismo, fortemente arraigada em nosso
país, pois a Defensoria Pública deve contribuir para que a população aprenda a defender seus
direitos utilizando-a, e não que seja “protegida” pela mesma, em razão de esta ser unicamente
entidade ferramenta de seus objetivos.
Os indivíduos devem tomar consciência da situação que os oprime para que
possam vencê-las, através de articulação com outas pessoas na tarefa de recriar o mundo que
valorize o ser humano cada vez mais, passando a ser senhores de seu destino, escolhidos por
eles e não por uma minoria e sua propaganda.
“Diante do contexto de ofensiva do Capital na retirada de direitos da classe
trabalhadora, em sua mais ampla acepção atual, o papel da educação em
direitos humano assume relevância, na medida em que age como impulso
conscientizador da necessidade de organização para a defesa da manutenção e
da efetivação das conquistas sociais de gerações anteriores”(LIMA FILHO,
2012).
A educação em direitos é uma das facetas do acesso à justiça e é fundamental
para a institucionalização da vida democrática, cabendo a Defensoria Pública contribuir nesse
processo.
VI. Referências Bibliográficas
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DF, Senado, 1988.
BRASIL, Lei Complementar Nº 80 de 12 de Janeiro de 1994. Brasília, DF, Senado, 1994.
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FREIRE. Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 25.
276
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I277
FREIRE. Paulo. Educação e Mudança. São Paulo: Paz e Terra, 1986, p. 38.
NUNES DE OLIVEIRA, Rogério. Assistência jurídica gratuita. Lumen Juris, Rio de
Janeiro, 2006.
SOARES DOS REAIS, Gustavo Augusto. Educação em direitos e Defensoria Pública:
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SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010.
SCHILLING, Flávia. O direito à educação: um longo caminho, In Educação e metodologia
para os direitos humanos, Coord. Eduardo Bittar, Quartier Latin, São Paulo, 2008.
277
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I278
EFICÁCIA DA SENTENÇA E COISA JULGADA NAS AÇÕES COLETIVAS: O
NECESSÁRIO EQUILÍBRIO ENTRE A EFETIVIDADE DA TUTELA COLETIVA E
A SEGURANÇA JURÍDICA.
SENTENCE EFFICACY AND RES JUDICATA IN COLLECTIVE ACTIONS: THE
NECESSARY BALANCE BETWEEN THE EFFECTIVENESS OF COLLECTIVE
PROTECTION AND LEGAL CERTAINTY
Thaís Amoroso Paschoal
Resumo: Na tutela coletiva, a eficácia e autoridade da sentença possuem contornos próprios,
diretamente ligados à espécie de direito objeto da tutela. Poderão, assim, produzir-se erga
omnes, ultra partes, ou mesmo inter partes, dependendo da sorte da demanda coletiva - falase, nesse caso, em coisa julgada secundum eventum litis. E poderão, também, ser limitadas
subjetivamente, por alguns critérios expressamente definidos pelo legislador, como é o caso
do âmbito territorial do órgão prolator da sentença coletiva. O objeto deste trabalho é
justamente a análise desse alcance subjetivo dos efeitos da sentença e da coisa julgada
coletiva, a partir de um exame inicial da teoria geral das ações coletivas, bem como da teoria
tradicional da sentença e da coisa julgada.
Palavras-chave: instrumentalidade; ações coletivas; direitos transindividuais; direitos
individuais homogêneos; sentença; eficácia; autoridade; coisa julgada; limites subjetivos;
limitação territorial
Abstract: The necessary instruments to enforce such kind of protection are the special
standing to sue for the mass actions and the larger powers of the Court to admit and to rule
such a case. Besides, it is relevant to outline the peculiar characteristics on the efficacy and
the authority of the collective awards, that suitably safeguard transindividual and
homogeneous rights. Such awards may produce erga omnes, ultra partes or inter partes
effects, depending on the nature of the mass action, creating res iudicata secundum eventum
litis. Class actions awards may also be limited on an objective and subjective basis, acording

Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Professora de Direito Processual
Civil da Universidade Positivo, em Curitiba/PR. Professora do curso de Pós-Graduação Lato Sensu da
Universidade Curitiba e da Academia Brasileira de Direito Constitucional, em Curitiba. Advogada.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I279
to some express criteria defined by Law-makers, as the territorial range of its effects. After a
preliminary study on the general theory of class actions and on the traditional theory of
awards and res iudicata, the scope of this research deals with the analysis on the objective and
subjective range and effects of the class actions awards and res iudicata.
Key-words: civil procedure as an instrument of Justice; class actions; transindividual rights;
collective rights; award; efficacy, authority, res iudicata; subjective limits; territorial limits.
Sumário: Introdução. 1. Da tutela individual à tutela coletiva. 2. Eficácia e autoridade da
sentença coletiva. 3. Os diferentes regimes de produção de efeitos pela Sentença e da coisa
julgada nas ações coletivas: eficácia e coisa julgada erga omnes, ultra partes e secundum
eventum litis. 4. Limitação territorial dos efeitos da Sentença e da coisa julgada nas ações
coletivas: o art. 16 da LACP. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Acesso à justiça nem sempre é sinônimo de tutela jurisdicional efetiva. Embora a
garantia do acesso à ordem jurídica justa represente “a principal resposta à crise do direito e
da justiça em nossa época” (CAPELLETTI, 1991, p. 144), esse fim somente será alcançado se
o processo estiver a serviço do direito material, permeado das garantias constitucionais
ligadas ao devido processo legal e à ampla defesa.
Significa dizer que o processo somente será efetivo quando forem perseguidos todos
os meios idôneos à solução adequada do problema levado à apreciação do Poder Judiciário. É
incansável, nesse sentido, a busca pelo processo civil de resultados, que tem justificado toda a
sistemática processual moderna. Em última análise, não basta o puro e simples acesso ao
Poder Judiciário na solução dos conflitos intersubjetivos, devendo-se atender de modo
integral à ideia de instrumentalidade, a partir das técnicas adequadas, voltadas à prestação de
uma tutela jurisdicional efetiva.
E foi justamente para a concretização desse fim que surgiram as ações voltadas à
tutela de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, sobretudo considerando-se a
insuficiência do processo civil tradicional para sua efetividade.
Para que essa tutela coletiva possa responder de forma adequada ao problema de
efetividade para cuja solução foi criada, deve ser munida dos instrumentos necessários,
merecendo especial atenção a eficácia e a autoridade das sentenças coletivas. Aplicados
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I280
adequadamente, esses institutos garantem que a tutela coletiva seja, de fato, vocacionada à
proteção efetiva dos direitos transindividuais e individuais homogêneos.
O presente trabalho tem o propósito de analisar esse fenômeno, sob o aspecto da
eficácia e intangibilidade da sentença proferida nas ações que têm por objeto a prestação de
tutela jurisdicional aos direitos transindividuais, ou mesmo individuais, mas tratados
coletivamente. A preocupação, aqui, reside na resposta à indagação sobre como conciliar a
inevitável extensão subjetiva desses efeitos com a necessária cautela que deve conduzir a
atividade jurisdicional na prestação da tutela coletiva. Ao mesmo tempo em que a extensão
ilimitada dos efeitos da sentença e da coisa julgada coletivas garante, de forma mais efetiva, a
finalidade para qual a tutela coletiva foi criada, determinados fatores podem recomendar um
maior rigor no controle desses efeitos.
1. Da tutela individual à tutela coletiva
A Constituição Federal brasileira consagrou, em seu artigo 5º, inciso XXXV, a
garantia do acesso à ordem jurídica justa, elevando à ordem de preceito fundamental o direito
de ação, a ser exercido mediante o processo. Efetivou-se, assim, a consagração do processo
como instrumento do direito material, vinculando-se diretamente a efetividade dos direitos à
sua exigibilidade mediante a prestação da devida e adequada tutela jurisdicional.
O processo civil moderno, portanto, tem buscado efetivar-se como um processo civil
de resultados, na medida em que “uma reforma do direito substancial é ilusória se não é
acompanhada de adequados instrumentos de execução-atuação da mesma, o que implica na
volta de uma garantia no plano jurisdicional” (CAPELLETTI, 1991, p. 148).
Atrelado a isso, muito se tem dito acerca da tendência de universalização da tutela
jurisdicional. “Universalizar a jurisdição”, como lembra Cândido Rangel Dinamarco (2003, p.
113), “é endereçá-la à maior abrangência factível, reduzindo racionalmente os resíduos nãojurisdicionalizáveis”. E as reformas que têm sido realizadas no Código de Processo Civil
brasileiro buscam justamente esse resultado. A ideia é ampliar o acesso à justiça, permitindo o
tratamento isonômico entre os jurisdicionados e, ao mesmo tempo, diminuir a morosidade,
aumentando, em contrapartida, a efetividade do processo. Tudo isso sempre tendo em mente o
necessário atrelamento entre o acesso à justiça e a efetividade da via que garante esse acesso.
Como destaca Eduardo Couture (1993, p. 479), a expressão ‘tutela jurisdicional’
deve ser entendida como “a satisfação efetiva dos fins do direito, a realização da paz social
mediante a vigência das normas jurídicas”. Ou ainda, como afirma Cândido Rangel
280
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I281
Dinamarco (2003, p. 203), a “efetiva concretização, em benefício do vencedor, de uma
situação melhor do que a existente antes do processo e do provimento jurisdicional que ali o
juiz emite”.
O Código de Processo Civil de 1973 foi, originariamente, estruturado com vistas à
solução de conflitos muito bem definidos. Objetivava-se a disciplina de uma tutela capaz de
resolver os conflitos individuais e pré-existentes (tutelas reparatórias voltadas a direitos
rigorosamente individuais), sempre tendo como base o fato de que a finalidade da função
jurisdicional é “fazer observar o direito objetivo em seus preceitos individualizados”, como
destaca Calamandrei (1986, p. 178), ou, ainda, considerando que jurisdição é a “atividade dos
órgãos do Estado, destinada a formular e atuar praticamente a regra jurídica concreta que,
segundo o direito vigente, disciplina determinada situação jurídica”, como afirma Liebman
(1985, p. 7).
Contudo, o desenvolvimento da sociedade e, consequentemente, o surgimento de
novas espécies de conflitos, mais complexos e com potencial de atingir inúmeros indivíduos,
deixou clara a insuficiência dos instrumentos tradicionais. Com isso, foram introduzidas no
direito brasileiro, por exemplo, as cláusulas gerais e as tutelas específicas - voltadas não à
reparação, mas à prevenção do dano.
Ao lado disso, verificou-se, também, a insuficiência da tutela individual para a
proteção a direitos que extravasam a esfera de um único indivíduo. A solução foi a
construção, ao lado do processo civil individual, de um processo civil coletivo, que permita o
alcance efetivo e adequado a direitos e interesses que, por possuírem características
peculiares, não são passíveis de tutela (ao menos, de tutela efetiva) por meio do “tradicional
processo civil”. Tudo isso atendendo à ideia de que, como destaca Cândido Rangel
Dinamarco (1996, p. 61), “tutela jurídica, no sentido mais amplo, é a proteção que o Estado
confere ao homem para a consecução de situações consideradas eticamente desejáveis
segundo os valores vigentes na sociedade”.
Essa evolução não passou despercebida por Mauro Capelletti (1991, p. 148), que,
chamando a atenção para os principais obstáculos verificados pelo “movimento reformador”,
destaca o “obstáculo organizador”, por meio do qual
certos direitos ou interesses “coletivos” ou difusos” não são tutelados de
maneira eficaz se não se operar uma radical transformação de regras e
instituições tradicionais de direito processual, transformações essas que
possam ter uma coordenação, uma “organização” daqueles direitos ou
interesses.
281
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I282
E complementa, citando o que chama de “obstáculo propriamente processual, através
do qual certos tipos tradicionais de procedimentos são inadequados aos seus deveres de
tutela” (CAPELLETTI, 1991, p. 148).
Essa evolução e consequente necessidade de adaptação dos instrumentos tradicionais
também foi objeto de análise por Teori Albino Zavascki (2008, p. 31), que, em obra específica
sobre o processo coletivo, destacou,
Tornou-se consciência, à época, da quase absoluta inaptidão dos novos
métodos processuais tradicionais para fazer frente aos novos conflitos e às
novas configurações de velhos conflitos, especialmente pela particular
circunstância de que os interesses atingidos ou ameaçados extrapolavam,
em muitos casos, a esfera meramente individual, para atingir uma dimensão
maior, de transindividualidade.
Essa transição se dá, portanto, por meio da previsão de demandas em que se alcance
a defesa dos interesses de um grupo, comunidade, ou mesmo de direitos individuais, mas com
características de homogeneidade que os tornam aptos a serem coletivamente tutelados. As
ações coletivas surgem nesse contexto, com a finalidade de propiciar maior efetividade à
tutela desses direitos, além de garantir tratamento isonômico aos titulares de idêntica situação
jurídica, na medida em que “é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para
qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou
exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto”
(MELLO, 1998, p. 38).
Enfim, constatou-se que a isonomia somente seria garantida se os indivíduos
pertencentes a uma mesma classe, grupo ou categoria tivessem seus direitos tutelados da
mesma forma, por meio de decisões não discrepantes.
Foi nesse quadro que o legislador brasileiro, atento às mudanças já implementadas
em outros sistemas jurídicos, sobretudo no direito norte-americano, passou a desenhar o que
viria a ser um “processo coletivo”. O objetivo, como lembra Kazuo Watanabe (1992, p. 19),
foi o de tratar molecularmente os conflitos de interesses coletivos, em
contraposição à técnica tradicional de solução atomizada, para com isso
conferir peso político maior às demandas coletivas, solucionar mais
adequadamente os conflitos coletivos, evitar decisões conflitantes e aliviar a
sobrecarga do Poder Judiciário atulhado de demandas fragmentárias.
Assim é que nosso ordenamento passou, gradualmente, a ser permeado de
instrumentos voltados à tutela adequada dos direitos que extravasam a esfera individual.
282
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I283
O primeiro passo significativo1 foi dado com a Lei da Ação Popular (Lei 4.717/65),
que regulamentou, de forma sistemática, instituto já previsto na Constituição Federal
Brasileira de 1934, e, como lembra José Carlos Barbosa Moreira (1988, p. 114), “deu-lhe
amplitude notavelmente maior do que a que resultava da letra da Constituição de 1946, em
vigor naquela data”. O objetivo da Lei, como se depreende de seu art. 1o, foi o atribuir a
qualquer cidadão legitimidade para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos
lesivos ao patrimônio público.
Algum tempo depois, já em 1985, foi editada a Lei da Ação Civil Pública (Lei
7.347/85), com a previsão de uma “ação civil pública de responsabilidade por danos causados
ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico,
turístico”. Em seu art. 1o, está prevista a tutela aos direitos “transindividuais”, havendo
ressalva expressa, no inciso IV, de que não se trata de rol taxativo, na medida em que a tutela
ali prevista volta-se, também, a “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”. “Pode-se dizer”,
como ressalta Rodolfo de Camargo Mancuso (2007, p. 55),
que a ação civil pública regrada na Lei 7.347/85 é o parâmetro processual
básico para a tutela dos interesses metaindividuais, não somente daqueles
nominados expressamente no seu art. 1o e incisos, mas também de outros,
mesmo ainda não juspositivados, desde que socialmente relevantes (...).
A previsão dessas tutelas foi reforçada com o advento da Constituição Federal de
1988, que trouxe inúmeras previsões voltadas aos direitos coletivos em seu art. 5o, e, mais
especificamente, à possibilidade de propositura, pelo Ministério Público, da “ação civil
pública para proteção do patrimônio público e social, do meio-ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos”, tal como previsto no art. 129, III.
O acerto na inclusão da matéria na Constituição Federal de 1988 foi destacado por
Barbosa Moreira (1991, p. 193/194) que, em artigo específico sobre o tema, afirmou:
Veio a Constituição de 1988 e selou a matéria, incluindo expressamente essa
cláusula genérica [refere-se o autor à previsão de tutela de “outros direitos
difusos e coletivos”, via ação civil pública, pelo Ministério Público] que, a
rigor, até dispensaria tudo mais, porque, na verdade, os interesses
relacionados com o meio-ambiente, os interesses relacionados com o
patrimônio público e social e os próprios interesses relacionados com a
proteção ao consumidor, desde que não digam respeito a lesões patrimoniais
1
E aqui se menciona tratar-se de passo “significativo”, pois os direitos difusos já vinham tutelados nas
Constituições de 1934 e 1946, bem como em leis esparsas, como a revogada Lei 1.134/50, que regulamentava os
direitos difusos atinentes aos funcionários públicos, ou a também revogada Lei 4.215/63, que disciplinava a
representação coletiva dos advogados.
283
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I284
individualmente consideradas, mas sim aos fenômenos que abranjam ou que
envolvam um número grande de pessoas, consideradas no seu conjunto, tudo
isso entra no conceito de interesses difusos e coletivos.
Finalmente, o advento do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, com a
inserção, em seu Título III, da disciplina da “Defesa do Consumidor em Juízo”, acrescentou a
previsão de defesa coletiva de direitos individuais homogêneos, “assim entendidos os
decorrentes de origem comum”, possibilitando, então, a tutela de todo e qualquer direito
individual passível de tratamento coletivo, por possuir, ao lado de outros direitos individuais,
características de homogeneidade.
Pode-se dizer, assim, que se formou, no direito brasileiro, um “microssistema do
processo coletivo”, com regras próprias, e releituras dos tradicionais institutos do processo
civil, capazes de garantir a tutela aos direitos coletivos e aos direitos que, por suas
características, permitem tratamento coletivo.
Pouco tempo depois, em 1991, Barbosa Moreira (1991, p. 200) apregoava o que viria
a se concretizar após alguns anos: “Precisamos imprimir ao processo, como a tantas coisas no
Brasil, um sentido mais social; e acho que as ações coletivas podem servir de instrumento
para incentivar, para estimular essa necessária evolução”.
Para isso, contudo, não basta que a legislação, e a própria Constituição Federal,
tragam a previsão dessas tutelas, ainda que de forma abrangente. É necessário, sobretudo, uma
mudança de mentalidade, que permita que esse avanço legal seja efetivamente implementado
pelos aplicadores do Direito, não se podendo perder de vista, como lembra Teori Albino
Zavascki (2008, p. 24), que “o tempo, a experimentação, o estudo e, eventualmente, os ajustes
legislativos necessários sem dúvida farão dos mecanismos de tutela coletiva uma via serena
de aperfeiçoamento da prestação da tutela jurisdicional”.
Justamente por isso é que a implementação dessa nova forma de proteção aos direitos
coletivos ou individuais tratados coletivamente não é tarefa simples, exigindo, como já se
destacou, um repensar significativo acerca dos institutos tradicionais do processo civil,
voltados precipuamente à tutela individual, sempre atentos ao que apregoa Cândido Rangel
Dinamarco. Posicionando a transição da tutela individual para a tutela coletiva como uma das
ondas renovatórias do processo civil, esse autor chama a atenção para um imprescindível
cuidado que, necessariamente, deve ser tomado pelo aplicador do Direito no momento da
utilização de todos os mecanismos voltados à universalização da Jurisdição: “Augura-se que o
exagero com que às vezes alguns desses mecanismos são manipulados não conduza a uma
284
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I285
retração e a um retrocesso em relação aos progressos que eles significam” (DINAMARCO,
2003, p. 114).
Com efeito, a transposição dos instrumentos da tutela individual para a tutela coletiva
depende, muitas vezes, de cautelosas adequações e, até mesmo, do alargamento de alguns
conceitos, para que se prestem também a instrumentalizar a tutela coletiva de todo o aparato
necessário à proteção dos direitos aos quais se destina. Ficou evidente que “a visão
individualista do devido processo judicial está se fundindo com uma concepção social,
coletiva, de modo que apenas tal transformação pode assegurar a realização dos ‘direitos
públicos’ relativos a interesses difusos”, como destacam Mauro Capelletti e Bryant Garth
(1988, p. 49-50).
Não é diferente no que se refere à coisa julgada. É disso que se tratará no próximo
item.
2. Eficácia e autoridade da Sentença coletiva.
A autoridade da coisa julgada é fenômeno que tem por base os limites da eficácia
objetiva e subjetiva da Sentença, com ela, porém, não se confundindo. Assim é que a
sentença, como ato estatal, produz efeitos sobre todos (no sentido de que por todos deve ser
respeitada), atingindo, contudo, somente a esfera de interesses das partes (em regra). Como
consequência, por expressa definição do art. 472 do Código de Processo Civil, somente as
partes serão beneficiadas ou prejudicadas pela coisa julgada que sobre a sentença se forma.
A ressalva, realizada pelo uso da expressão “em regra”, deve-se ao fato de que há
certas espécies de terceiros – no caso, os “terceiros juridicamente interessados, sujeitos à
exceção de coisa julgada”, na definição de Liebman – que são, inevitavelmente, atingidos não
só pelos efeitos principais da Sentença, como também pela autoridade da coisa julgada que
sobre ela incide. Seja como for, no sistema tradicional do Código de Processo Civil, voltado à
coisa julgada individual, “as hipóteses de extensão dos efeitos da coisa julgada a terceiros são
excepcionalíssimas”, como ressalta Luiz Rodrigues Wambier (2006, p. 361).
O mesmo, contudo, não ocorre quando se trata de sentenças coletivas, em que “essa
eficácia diante de terceiros constitui regra geral” (WAMBIER, 2006, p. 361). E isso ocorre
porque esses terceiros são os titulares de direito material, que, por alguma razão específica,
não podem buscar, sponte propria, a tutela desses direitos via processo (com exceção dos
casos em que se trata de direitos individuais com características de homogeneidade). Trata-se,
285
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I286
tipicamente, dos casos de substituição processual, em que tanto o substituto, como os
substituídos, são atingidos pela autoridade da coisa julgada material.
A questão resolve-se, como já se expôs, a partir da consideração de que os
substituídos, enquanto titulares dos direitos objeto da lide coletiva, são inevitavelmente
atingidos pelos efeitos da decisão que soluciona essa lide, como também pela qualidade de
intangibilidade que ela adquire com a formação da coisa julgada material.
Seja como for, a extensão subjetiva da sentença e da coisa julgada coletivas constitui
requisito necessário à própria existência e, sobretudo, ao sucesso da tutela coletiva, tratandose, como destaca Rodolfo de Camargo Mancuso (2007, p. 18), de “condição de
operacionalidade do julgado coletivo que ele projete eficácia extra-autos”. É o que afirma,
também, Teori Albino Zavascki (2008, p. 79),
A extensão subjetiva universal (erga omnes) é conseqüência natural da
transindividualidade e da indivisibilidade do direito tutelado na demanda. Se o
que se tutela são direitos indivisíveis e pertencentes à coletividade, a sujeitos
indeterminados, não há como se estabelecer limites subjetivos à imutabilidade
da sentença. Ou ela é imutável, e, portanto, o será para todos, ou ela não é
imutável, e, portanto, não faz coisa julgada. Por outro lado, a cláusula erga
omnes não vai a ponto de comprometer a situação jurídica de terceiros.
Aplica-se também à coisa julgada nas ações civis públicas a limitação,
constante do art. 472 do CPC: os terceiros, embora possam ser beneficiados,
jamais poderão ser atingidos negativamente pela sentença proferida em
processo em que não tenham sido partes.
Não fosse assim, a propositura de ações coletivas para tutela de direitos difusos,
coletivos ou individuais homogêneos não teria sentido. Isso, aliás, já era reconhecido por
Liebman (1984, p. XIII), quando escreveu seu clássico estudo sobre os efeitos da sentença e a
autoridade da coisa julgada:
Nestes últimos tempos, importantes correntes da doutrina esforçaram-se por
alargar o âmbito de extensão da coisa julgada e, em alguns casos, até por
quebrar o clássico princípio, invalidando praticamente os seus efeitos. Não
estaria talvez errado quem visse, nessas correntes, um reflexo, provavelmente
inconsciente, da tendência socializadora e antiindividualística do direito, que
vem abrindo caminho em toda parte. O homem já não vive isolado na
sociedade. A atividade do indivíduo é de maneira crescente condicionada
pelas atividades dos seus semelhantes; aumenta a solidariedade e a
responsabilidade de cada um e seus atos se projetam em esfera sempre maior.
Embora, de fato, o art. 472 do Código de Processo Civil possa ser aplicado ao
processo coletivo para a disciplina da eficácia da Sentença e da autoridade da coisa julgada
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I287
produzidas nas ações que tutelam direitos transindividuais e individuais homogêneos,
acompanhamos a opinião de Antonio Gidi (1995, p. 57), que destaca a imprescindibilidade de
uma adaptação adequada dos institutos do processo individual para o processo coletivo,
notadamente no que toca à coisa julgada: “muitos problemas na aplicação do direito seriam
causados se fizéssemos o ‘transplante’ puro e simples – sem as necessárias adaptações – do
regime jurídico da coisa julgada nas ações individuais para as ações coletivas”. Para o autor,
“a principal nota caracterizadora da coisa julgada nas ações coletivas em face da coisa julgada
tradicional é a imperativa necessidade de delimitar, de maneira diferenciada, o rol de pessoas
que deverão ter as suas esferas jurídicas atingidas pela eficácia da coisa julgada” (GIDI, 1995,
p. 58).
Justamente por isso, no se refere aos titulares dos direitos objeto da tutela coletiva, a
Lei prevê que a coisa julgada se formará de maneira diversa, em se tratando de direitos
coletivos, difusos ou individuais homogêneos. Poder-se-á, assim, estar diante de coisa julgada
erga omnes ou ultra partes, produzida de acordo com a sorte da sentença coletiva, em se
tratando de procedência ou improcedência do pedido.
3. Os diferentes regimes de produção de efeitos pela Sentença e da coisa julgada nas
ações coletivas: eficácia e coisa julgada erga omnes, ultra partes e secundum eventum litis.
O art. 103 do Código de Defesa do Consumidor2 apresenta a disciplina da coisa
julgada produzida nas ações coletivas, diferenciando o regime aplicável aos direitos difusos,
coletivos ou individuais homogêneos.
Esse dispositivo contém a disciplina dos diversos regimes de efeitos da Sentença e da
coisa julgada que podem ser produzidos nas ações coletivas, dependendo da espécie de direito
(difuso, coletivo ou individual homogêneo) objeto da tutela.
Em se tratando de direito difusos, a eficácia é erga omnes, atingindo, portanto, todas
as pessoas indeterminadas, ligadas por circunstâncias de fato, titulares do direito
2
A coisa julgada, assim, produzir-se-á,
I – erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que
qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova, na hipótese
do inciso I do parágrafo único do art. 81;
II – ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de
provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar de hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art.
81;
III – erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na
hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.
287
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I288
transindividual. Trata-se, na verdade, de consequência decorrente da própria natureza
indivisível desses direitos.
No caso de direitos coletivos, os efeitos produzem-se ultra partes, alcançando o
grupo, categoria ou classe de pessoas titulares do direito. Nesse caso, a expressão ultra partes
possui o mesmo significado da expressão erga omnes. Somente pretendeu o legislador deixar
clara, também aqui, a diferença entre direitos difusos e coletivos. A menção à produção de
efeitos “ultra partes” evidencia que os efeitos produzem-se para além das partes (não são
‘inter partes’, portanto), alcançando, contudo, um âmbito mais restrito de terceiros. No caso,
os integrantes do grupo, categoria ou classe.
Nos direitos difusos, embora esses efeitos estejam, também, limitados às vítimas da
lesão, a eficácia se estende de forma mais indefinida do que nos direitos coletivos. Daí o uso
da expressão “erga omnes”.
Contudo, em caso de improcedência, a coisa julgada produzida nessas demandas
jamais poderá prejudicar os direitos individuais dos integrantes da coletividade, grupo,
categoria ou classe, como prevê o § 1º do art. 103 do CDC.
Já com relação aos direitos individuais homogêneos, a eficácia é também erga
omnes, somente no caso de procedência do pedido, beneficiando, então, todos os titulares do
direito individual. No caso de improcedência, contudo, a autoridade da coisa julgada se
produzirá com relação ao ente legitimado que propôs a ação, assim como, também,
relativamente a todos os demais entes legitimados, não alcançando a esfera de interesses dos
titulares do direito objeto da tutela coletiva3. E a razão para tanto está, justamente, no fato de
que seria extremamente arriscado vincular os titulares dos direitos à possível má condução do
processo por ente legitimado que não foi diligente na produção das provas necessárias à
obtenção da tutela coletiva.
Trata-se do regime da coisa julgada secundum eventum litis, cujo conceito, como
destaca Ada Pellegrini Grinover (2005, p. 14), “não tem a ver com os terceiros (sujeitos ou
não à coisa julgada...), mas diz respeito às partes no processo, podendo a coisa julgada
formar-se, ou não, de acordo com o resultado do processo”. Justamente por isso é que, “a
coisa julgada sempre se produz, embora, no caso de improcedência, não possua eficácia erga
omnes”, como destaca Luiz Rodrigues Wambier (2006, p. 363).
3
Embora o inciso III do art. 103 do CDC não seja expresso quanto a isso, a interpretação desse dispositivo frente
ao § 2º do art. 103 deixa claro que em caso de improcedência do pedido por instrução suficiente, somente “os
interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a
título individual”. Sobre a intervenção de interessado nas ações coletivas para tutela de direitos individuais
homogêneos, algumas considerações serão tecidas mais adiante.
288
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I289
4. Limitação territorial dos efeitos da Sentença e da coisa julgada nas ações coletivas: o
art. 16 da LACP.
Já se destacou que a sentença coletiva produz efeitos naturais e reflexos sobre os
“terceiros juridicamente interessados”, que, no caso, são os “substituídos”, titulares da
pretensão de direito material que será objeto da tutela coletiva. E esses terceiros, nessa
qualidade, são, também, atingidos pela autoridade da coisa julgada que se produz sobre a
sentença coletiva.
A amplitude da eficácia e da autoridade da sentença coletiva, contudo, varia de
acordo com o direito transindividual ou individual homogêneo tutelado. E essa variação
ocorre tanto no aspecto do alcance da eficácia e da imutabilidade (que será erga omnes para
os direitos difusos e individuais homogêneos, e ultra partes para os direitos coletivos), como
também no que se refere à produção, ou não, desses efeitos (trata-se, aqui, da coisa julgada
secundum eventum litis).
Mas há, ainda, o que se pode chamar de um terceiro regime para a eficácia e
autoridade da sentença coletiva, e que, na verdade, representa um dos pontos mais
controvertidos acerca do tema. Essa disciplina está prevista no art. 16 da Lei da Ação Civil
Pública, com a redação determinada pela Lei 9.494/1997: “A sentença civil fará coisa julgada
erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for
julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado
poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”.
Quatro conclusões são extraídas desse dispositivo: (i) os efeitos da sentença e a
autoridade da coisa julgada coletiva produzem-se erga omnes, alcançando, como já se
destacou, a esfera de interesses dos titulares do direito objeto da tutela coletiva, o que, algum
tempo depois, veio disciplinado no já citado art. 103 do Código de Defesa do Consumidor;
(ii) essa eficácia e autoridade erga omnes, contudo, não operam de forma irrestrita, estando,
na verdade, condicionadas à limitação territorial do órgão prolator da Sentença coletiva; (iii) a
coisa julgada que se produz sobre a sentença coletiva, seja ela de procedência ou de
improcedência, impede a repropositura de ação com mesmo pedido e causa de pedir, ainda
que por ente legitimado diverso; e (iv) essa coisa julgada somente não se produzirá se o
pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas. Nesse caso, qualquer legitimado
– inclusive aquele que propôs a demanda mal sucedida – poderá propor ação idêntica.
289
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I290
No que se refere às conclusões expostas nos itens (i), (iii) e (iv), não há dúvidas.
Trata-se da já mencionada eficácia erga omnes da sentença coletiva, assim como do alcance,
também erga omnes, da autoridade dessa sentença. Também no que se refere à possibilidade,
ou não, de propositura de ação idêntica por outros entes legitimados, a questão não apresenta
maiores complicações.
O problema está, portanto, na questão relativa à limitação territorial da eficácia e da
autoridade da sentença coletiva. A controvérsia já existia antes mesmo da nova redação do art.
16 da LACP, inserida, como já se disse, pela Lei 9.494/97. Galeno Lacerda já questionava a
redação original desse dispositivo, que não previa qualquer limitação à produção de efeitos
pela sentença coletiva (e, consequentemente, à sua imutabilidade), analisando o problema sob
o óbice do princípio Federativo. Para esse autor, não era possível que uma sentença proferida
por um juiz de uma determinada comarca produzisse efeitos sobre todas as demais (apud
GIDI, 2005, p. 87).
Antes de mais nada, é necessário destacar-se que a própria sistemática dos processos
coletivos – sobretudo, a natureza dos direitos tuteláveis por essas demandas - resulta na
aplicação relativa dessa regra para os casos direitos difusos e coletivos stricto sensu, na
medida em que, em muitos casos, tendo em vista a extensão do dano, não há, faticamente,
como se limitar a eficácia e a autoridade da sentença coletiva. Já no caso de direitos
individuais homogêneos, que, por sua natureza, são individuais e divisíveis, a regra poderá ser
normalmente aplicada.
Daí porque a limitação subjetiva estabelecida no art. 16 da LACP variará dependendo
da natureza do direito envolvido.
Para José Rogério Cruz e Tucci (2006, p. 325), “esse preceito incide apenas nas
hipóteses de direitos coletivos e individuais homogêneos, visto que, na esfera dos direitos
difusos, os respectivos titulares são indeterminados e indetermináveis”.
Neste sentido, Teori Albino Zavascki (2008, p. 81) destaca que “o sentido da
limitação territorial contida no art. 16, antes referido, há de ser identificado por interpretação
sistemática e histórica”. E acrescenta,
O que ele objetiva é limitar a eficácia subjetiva da sentença (e não da coisa
julgada), o que implica, necessariamente, limitação do rol dos substituídos no
processo (que se restringirá aos domiciliados no território da competência do
juízo). Ora, entendida nesse ambiente, como se referindo à sentença (e não à
coisa julgada), em ação para tutela coletiva de direitos subjetivos individuais
(e não em ação civil pública para tutela de direitos transindividuais), a norma
do art, 16 da Lei 7.347/85 produz algum sentido. É que, nesse caso, o objeto
290
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I291
do litígio são direitos individuais e divisíveis, formados por uma pluralidade
de relações jurídicas autônomas, que comportam tratamento separado, sem
comprometimento de sua essência. Aqui, sim, é possível cindir a tutela
jurisdicional por critério territorial, já que as relações jurídicas em causa
admitem divisão segundo o domicílio dos respectivos titulares, que são
perfeitamente individualizados (...) Compreendida a limitação territorial da
eficácia da sentença nos termos expostos, é possível conceber idêntica
limitação à eficácia da respectiva coisa julgada. Nesse pressuposto, em
interpretação sistemática e construtiva, pode-se afirmar, portanto, que a
eficácia territorial da coisa julgada a que se refere o art. 16 da Lei 7.347/85
diz respeito apenas às sentenças proferidas em ações coletivas para tutela de
direitos individuais homogêneos, de que trata o art. 2o-A da Lei 9.494, de
1997, e não, propriamente, às sentenças que tratam de típicos direitos
transindividuais.
No que se refere às sentenças que tutelam direitos transindividuais, portanto, o
entendimento é diverso, na medida em que, nesses casos,
a relação jurídica litigiosa, embora com pluralidade indeterminada de sujeitos
no seu pólo ativo, é única e incindível (indivisível). Como tal, a limitação
territorial da coisa julgada é, na prática, ineficaz em relação a ela. Não se pode
circunscrever territorialmente (circunstância do mundo físico) o juízo de
certeza sobre a existência ou inexistência ou o modo de ser da relação jurídica
(que é fenômeno do mundo dos pensamentos) (ZAVASCKI, 2008, p. 80/81).
Não diverge desse entendimento Teresa Arruda Alvim Wambier (2007, p.
573), que ressalta:
A limitação dos efeitos da sentença à comarca em que foi proferida a decisão,
assim, pode mesmo ser um critério inoperante em relação a bens
juridicamente indivisíveis, tal como ocorre com os direitos difusos. O mesmo
não ocorre com direitos que, embora similares, sejam divisíveis, tal como
acontece com os direitos individuais homogêneos, que não são
essencialmente, mas apenas acidentalmente, coletivos4.
O Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, analisou essa questão no
julgamento, em 1997, de Ação Direta de Inconstitucionalidade, concluindo:
A alusão à eficácia erga omnes sempre esteve ligada à ultrapassagem dos
limites subjetivos da ação, tendo em conta até mesmo o interesse em jogo –
difuso ou coletivo – não alcançando, portanto, situações concretas, quer sob o
ângulo objetivo, quer subjetivo, notadas além das fronteiras fixadoras do
4
A Autora cita o seguinte exemplo: “ação coletiva intentada contra empresa que polui certo rio que atravessa
três comarcas. Movida a ação na comarca n. 1, sendo a empresa coagida a instalar equipamento antipoluente, é
inevitável que os habitantes das três comarcas sejam beneficiados pelos efeitos práticos da decisão. Em outros
casos, é possível aplicar-se a restrição, como, por exemplo, nas ações movidas contra instituições bancárias. É
factível que a condenação só atinja a comunidade residente na comarca em que a ação foi proposta. Ou, ainda, o
Estado, já que também em torno deste ponto há divergências, principalmente no plano da jurisprudência” (Idem,
ibid.).
291
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I292
juízo. Por isso, tenho a mudança de redação como pedagógica, a revelar o
surgimento de efeitos erga omnes na área de atuação do juízo e, portanto, o
respeito à competência geográfica delimitada pelas leis de regência. Isso não
implica esvaziamento da ação civil pública, nem tampouco, ingerência
indevida do Poder Executivo no Judiciário.
A jurisprudência, então, vinha se consolidando no sentido de admitir a limitação
territorial, enquanto que a doutrina, representada por processualistas de renome, posicionavase de modo contrário.
Em 05 de agosto de 2008, contudo, a discussão tomou um rumo diverso, com a
publicação de decisão, proferida pelo Superior Tribunal de Justiça em caso paradigmático
sobre o tema, no julgamento do Recurso Especial nº. 411.529-SP, da relatoria da Ministra
Nancy Andrighi. Nessa decisão, decidiu o STJ,
A distinção, defendida inicialmente por Liebman, entre os conceitos de
eficácia e autoridade da sentença, torna inócua a limitação territorial dos
efeitos da coisa julgada estabelecida pelo art. 16 da LAP. A coisa julgada é
meramente a imutabilidade dos efeitos da sentença. Mesmo limitada aquela,
os efeitos da sentença produzem-se erga omnes, para além dos limites da
competência territorial do órgão julgador.
Partindo dessas premissas, o Superior Tribunal de Justiça, ao final desse julgamento,
chegou às seguintes conclusões:
(i) a eficácia da sentença, por ser distinta da eficácia da coisa julgada, se
produz independentemente desta; (ii) a eficácia da sentença, desde que não
confundida com a figura do trânsito em julgado, não sofre qualquer limitação
subjetiva: vale perante todos; (iii) a imutabilidade dessa eficácia, ou seja, a
impossibilidade de se questionar a conclusão a que se chegou na sentença,
limita-se às partes do processo perante as quais a decisão foi proferida, e só
ocorre com o trânsito em julgado da decisão”.
No que atine à última conclusão mencionada, faz-se, aqui, referência ao que já foi
dito no primeiro capítulo deste trabalho, e ao que ainda será afirmado no último item do
presente capítulo: a imutabilidade do conteúdo da sentença coletiva (e não de sua eficácia) não
se limita somente às partes do processo perante as quais a decisão foi proferida. Essas são
partes em sentido formal, os substitutos, que atuam em defesa de interesses de uma
coletividade: os substituídos, diretamente atingidos pela autoridade da coisa julgada, não se
podendo perder de vista, ainda, quem, efetivamente, são esses substituídos, no caso de ações
coletivas propostas por associações ou pela Defensoria Pública, por exemplo. A necessária
limitação da legitimidade ativa desses entes coletivos, da qual já se tratou no primeiro
292
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I293
capítulo, conduzirá, também, à limitação subjetiva dos efeitos da sentença e da coisa julgada
coletiva somente aos associados, no caso das associações, e aos carentes de recursos
financeiros, no caso da Defensoria Pública.
Quanto ao primeiro ponto, não há dúvidas: a eficácia da sentença, de fato, produz-se
independentemente da coisa julgada que sobre ela opera. Como se viu no segundo capítulo
deste trabalho, a sentença pode produzir efeitos antes mesmo do trânsito em julgado, e esses
efeitos não são alcançados pela autoridade da coisa julgada, que incide somente sobre o
conteúdo da decisão (mais especificamente, sobre seu dispositivo, correspondente ao pedido
formulado pelo autor, desconsiderados os casos de vícios ultra ou extra petita).
Essa premissa, contudo, não é suficiente à conclusão de que os efeitos de uma
sentença coletiva produzem-se erga omnes, sem qualquer limitação, sob o fundamento de que
enquanto ato proferido no exercício de um poder estatal deve ser respeitado por todos.
A Sentença que declara o divórcio de Pedro e Maria também deve ser respeitada por
todos. Mas esse “respeito” pela sentença enquanto ato estatal nada tem a ver com os efeitos
que a decisão produz na esfera de interesses de indivíduos diretamente atingidos pela eficácia
da decisão (e, neste caso, consequentemente, pela sua autoridade). No caso utilizado como
exemplo, trata-se da esfera de interesses, tão-somente, de Pedro e Maria.
Uma sentença coletiva, enquanto ato estatal, deve, igualmente, ser respeitada por
todos. Contudo, a forma como os interessados naquela sentença (que, no caso, como já se viu,
nada mais são do que as partes em sentido material) serão atingidos diretamente por sua
eficácia declaratória, constitutiva ou condenatória é muito diversa. A conclusão, assim, não
pode ser outra senão a de que a eficácia da sentença sofre, sim, limitação subjetiva, e não vale,
portanto, perante todos.
E essa limitação subjetiva, como já se destacou, é, primeiramente, restrita às partes,
assim consideradas em seu sentido material, isto é, os titulares do direito coletivo, difuso ou
individual homogêneo, que na definição adotada por Liebman, são os “terceiros juridicamente
interessados, sujeitos à exceção de coisa julgada”. E é definida, também, pela regra prevista no
artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública: a sentença coletiva produz efeitos no âmbito do órgão
prolator da decisão.
As críticas a esse dispositivo são diversas.
Pedro da Silva Dinamarco (2001, p. 40) considera a inserção do art. 16 da Lei da
Ação Civil como “a mais impopular das alterações sofridas pela Lei 7.347, de 24 de junho de
1985”. Semelhante opinião é apresentada por Rodolfo de Camargo Mancuso (2004, p.
403/404),
293
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I294
No presente estágio evolutivo da jurisdição coletiva em nosso país, impende
compreender que o comando judicial daí derivado precisa atuar de modo
uniforme e unitário por toda a extensão e compreensão do interesse
metaindividual objetivado na ação, porque de outro modo esse regime
processual não se justificaria, nem seria eficaz e o citado interesse acabaria
privado de tutela judicial em sua dimensão coletiva, reconvertido e
pulverizado em multifárias demandas individuais, assim atomizando e
desfigurando o conflito coletivo.
Ada Pellegrini Grinover (1999, p. 32) posiciona-se, também, contrariamente à
alteração, afirmando que “o Executivo – seguido pelo Legislativo – foi duplamente infeliz”:
Em primeiro lugar pecou pela intenção. Limitar a abrangência da coisa julgada
nas ações civis públicas significa multiplicar demandas, o que, de um lado,
contraria toda a filosofia dos processos coletivos, destinados a justamente
resolver molecularmente os conflitos de interesses, ao invés de atomizá-los e
pulverizá-los; e, de outro lado, contribui para a multiplicação de processos, a
sobrecarregarem os tribunais, exigindo múltiplas respostas jurisdicionais
quando uma só poderia ser suficiente. No momento em que o sistema
brasileiro busca saída até nos precedentes vinculantes, o menos que se pode
dizer do esforço redutivo do Executivo é que vai na contramão da história. Em
segundo lugar, pecou pela incompetência. Desconhecendo a interação entre a
Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor, assim como
muitos dos dispositivos deste, acreditou que seria suficiente modificar o art.
16 da Lei 7.347/85 para resolver o problema. No que se enganou
redondamente. Na verdade, o acréscimo introduzido ao art. 16 da LACP é
ineficaz.
Embora apresentando fundamentos diversos – partindo, inclusive, da plena vigência
da norma do art. 16 da LACP, pois “com a edição da Medida Provisória 1.570 (posteriormente
convertida na Lei 9.494/1997) operou-se verdadeira renovação normativa”, Elton Venturi
(2007, p. 427) também critica a disposição do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública,
destacando,
A pura e simples aplicação da literalidade do referido dispositivo que agora
restringe a eficácia da coisa julgada aos limites da competência territorial do
órgão prolator, para além de se revelar absolutamente incompatível com
conceitos como os de direito difuso, direito coletivo, indivisibilidade,
competência jurisdicional, eficácia da prestação jurisdicional, enfim, afronta
diversas previsões constitucionais.
E há aqueles, como Nelson Nery Junior (2004, p. 1456), que consideram que o
dispositivo já teria nascido ‘viciado’, uma vez que o art. 16 da LACP foi revogado pelo
294
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I295
Código de Defesa do Consumidor, sendo que, por essa razão, a Lei 9494/97 “não poderia ter
alterado o que já não existia”.
Outra parte da doutrina critica a solução encontrada pelo legislador afirmando a
“confusão” entre competência e limitação subjetiva da sentença e da coisa julgada. É essa a
opinião de Álvaro Luiz Valery Mirra (2004, p. 179), que afirma que a alteração do art. 16 da
LACP “acabou, na realidade, equivocadamente, por fazer referência à competência territorial
do órgão jurisdicional prolator da decisão, confundindo competência para o processamento e o
julgamento da causa com os limites subjetivos e objetivos da res judicata”.
A questão, contudo, não se resolve na competência, ainda que o art. 16 da Lei da
Ação Civil Pública tenha utilizado esse critério para limitar a eficácia subjetiva da sentença
coletiva.
Com efeito, em momento algum pretendeu o legislador alterar as regras de
competência do Código de Processo Civil e do Código de Defesa do Consumidor. Aliás, a
rigor, nem poderia fazê-lo. O que fez o legislador foi, simplesmente, utilizar a competência
territorial do órgão prolator da decisão como o critério mais acertado para conter a eficácia
ilimitada da sentença proferida em ações coletivas, o que em nada é incompatível com o art.
93 do Código de Defesa do Consumidor. Não se pretende, portanto, afirmar que a decisão
proferida por um juiz em determinada comarca não poderia estender-se para outras comarcas
em que o dano tenha, também, ocorrido, até mesmo porque, como lembra Barbosa Moreira
(1993, p. 194),
Não há nada de anômalo, de extraordinário, de excêntrico, ou que seja capaz
de nos escandalizar, pelo fato de que, eventualmente, uma lide seja resolvida
numa determinada comarca ou seção judiciária, e os efeitos do julgamento,
porventura, hajam de produzir-se noutra comarca ou noutra seção, até noutro
Estado. O próprio Código de Processo Civil (art. 107) tem uma disposição
expressa referente ao imóvel situado sobre a divisa entre dois Estados, e
determina que, nessa hipótese, a competência firmada pela prevenção se
estenda a toda a área do imóvel. De sorte que é perfeitamente possível que um
juiz paulista profira uma sentença destinada a produzir efeitos, em parte, pelo
menos, no Estado de Minas Gerais ou no Estado do Paraná – se o imóvel
lindeiro aí estiver situado. Isso não nos deve assustar5.
Comentando a harmoniosa convivência entre os arts. 93, do Código de Defesa do
Consumidor, e 16, da Lei da Ação Civil Pública, afirma Luiz Rodrigues Wambier (2006, p.
369),
5
Trata-se, como se vê, de hipótese aplicável às sentenças que tutelam direitos difusos.
295
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I296
O que a lei nova agora quer é estabelecer que a competência territorial do
Juiz perante o qual está correndo a ação, independentemente do que dispõe o
art. 93 – independentemente dos critérios de que se valeu o autor para
escolher onde deveria intentar a ação – deve servir de critério para delimitar
o âmbito de eficácia da sentença sob o aspecto subjetivo. Assim, serão
beneficiados pela sentença proferida em ação coletiva os sujeitos que se
encontrarem ou que tiverem domicílio no espaço territorial onde o juiz tem
competência. Embora sendo o dano estadual, e a ação tenha que ser movida
na sua capital (art. 93, II), os limites de eficácia da sentença a ser por este
Magistrado proferida se cingirão àqueles domiciliados na comarca da capital
(art. 16).
O que fez o art. 16 da LACP, portanto, não foi limitar as normas de competência,
reduzindo a amplitude do art. 93 do CDC. A “competência do órgão prolator” foi, unicamente,
o critério eleito pelo legislador para limitar a eficácia subjetiva da sentença coletiva e a
autoridade da coisa julgada que sobre ela incide. Veja-se bem: um “critério”, nada mais do
que isso. Justamente por isso é que inexiste contradição entre essas normas: pelo simples fato
de que o art. 93 do CDC estabelece regras de competência, mas o art. 16 da LACP não.
De outro lado, alguns doutrinadores defendem que esses artigos devem ser
interpretados conjuntamente. É o caso de Eduardo Talamini (2005, p. 127), para quem tanto o
art. 16 da LACP, como o art. 2o-A da Lei 9494/97 devem ser interpretados em harmonia com
a regra do art. 93 do Código de Defesa do Consumidor, “que define o ‘âmbito de competência
territorial’ do órgão prolator”, de modo que, “as ações de abrangência local devem ser
propostas no foro do lugar onde ocorreu o “dano” (inc. I); as de abrangência regional ou
nacional, no foro da Capital do Estado ou do Distrito Federal (inc. II)”. E complementa:
Em certo sentido, e uma vez conjugadas com esse dispositivo, aquelas duas
normas configuram um regime jurídico especial para a incompetência
territorial nas ações coletivas: por um lado não se prorroga a competência,
mas, por outro, os atos decisórios do juiz incompetente, em vez de serem
simplesmente considerados nulos, têm sua eficácia limitada ao âmbito de
competência territorial do órgão prolator, quando isso for possível (por
exemplo, se com a ação pretendia-se tutela que abrangesse todo o Estado, mas
ela foi proposta em foro de comarca do interior, caso o processo não seja
oportunamente remetido ao foro competente, da capital do Estado [CDC, art.
93, II] e o juízo incompetente profira a sentença, esta será eficaz apenas para
os beneficiários abrangidos pela competência territorial do órgão prolator que,
no caso, limita-se à própria comarca (TALAMINI, 2005, p. 127).
Antonio Gidi (2005, p. 89) também analisa a questão sob o enfoque do art. 93 do
Código de Defesa do Consumidor. Para esse autor, em primeiro lugar, o legislador
nitidamente confunde “jurisdição” com “extensão subjetiva da coisa julgada”. De qualquer
forma, em sua opinião, “uma vez respeitada a competência estabelecida pelo art. 93 do CDC –
296
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I297
assim como devem ser respeitadas as normas de competência para a ação de divórcio –, a
coisa julgada da ação coletiva poderá atingir toda a comunidade ou coletividade ou vítimas
lesadas pelo ato ilícito do fornecedor” (GIDI, 2005, p. 89).
Essa regra, contudo, não resolve o problema. É certo que muitas ações coletivas,
propostas com vistas à tutela de direitos individuais homogêneos, têm por objeto a defesa de
direitos individuais tratados coletivamente, que pertençam a inúmeras pessoas distribuídas por
todo o país. Neste caso, uma vez proposta a ação no Distrito Federal (respeitando-se, portanto,
a regra do art. 93 do CDC), a eficácia da sentença que presta essa tutela seria nacional, e o
problema que o legislador pretendeu evitar com a inserção, em nosso sistema, do art. 16 da
LACP, permaneceria sem solução.
O primeiro problema a ser solucionado no sentido da perfeita vigência e
aplicabilidade do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, na verdade, refere-se à normal
convivência entre essa norma e as regras do Código de Defesa do Consumidor que,
igualmente, disciplinam o alcance das sentenças coletivas (sob o aspecto da coisa julgada,
como já se viu). E isso se resolve facilmente pela mera interpretação dos dispositivos do
Código de Defesa do Consumidor.
Neste sentido, dispõe o art. 90 do CDC: “Aplicam-se às ações previstas neste título as
normas do Código de Processo Civil e da Lei no. 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no
que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições”. Por sua vez, o
próprio CDC introduziu, na Lei da Ação Civil Pública, o art. 21: “Aplicam-se à defesa dos
direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, no que for cabível, os
dispositivos do Título III da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, que instituiu o Código de
Defesa do Consumidor”.
Destacando a plena vigência do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, na medida em
que, com essa alteração, não se alterou “o direito de acesso às soluções jurisdicionais”, Luiz
Rodrigues Wambier (2006, p. 367/368) afirma,
Tenha-se presente que o caráter metaindividual das ações coletivas foi
reduzido, mas não eliminado. Isso porque a regra, hoje, é a de que as
sentenças, nas ações coletivas que dizem respeito a direitos difusos e
individuais homogêneos, produzam coisa julgada para uma coletividade, só
que restrita a um espaço territorial previamente delimitado pela lei, que é o
relativo à competência territorial do Juiz.
É perfeitamente possível e harmônica, assim, a convivência entre o art. 16 da LACP e
o art. 103 do Código de Defesa do Consumidor. Na verdade, a norma do art. 16 somente
297
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I298
complementa o que se encontra disciplinado naquele dispositivo consumerista: a sentença e a
coisa julgada coletivas produzem efeitos erga omnes, alcançando os terceiros à relação
jurídica processual, titulares do direito objeto da tutela coletiva. Essa eficácia erga omnes,
contudo, como já teve a oportunidade de afirmar Antonio Gidi (2005, p. 111), “não atinge a
todos os seres humanos existentes no planeta, mas tão só e exclusivamente a comunidade
lesada, o grupo, a categoria ou a classe lesados, e as vítimas lesadas e seus sucessores”. E
complementamos: essa eficácia erga omnes – que o art. 16 da LACP em momento algum
contrariou – é limitada, após a Lei 9191/97, também pelo âmbito territorial do órgão prolator
da decisão coletiva.
A este respeito, Luiz Rodrigues Wambier e Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos
(2009, p. 39) já tiveram a oportunidade de afirmar,
O exame da letra do referido dispositivo legal, permite que se extraia
somente uma interpretação possível: proferida uma decisão judicial em ação
civil pública, essa norma reduz significativamente a abrangência do disposto
no art. 103 do CDC, que não estabelece limitação territorial ao alcance da
decisão judicial, que produzirá efeitos erga omnes ou ultra partes, conforme
o caso. Diante disso, e considerando que as duas leis citadas formam um
micro-sistema destinado a regular as ações coletivas (conforme estabelecem
o art. 21 da Lei 7.347/1985 e o art. 90 do CDC), pensamos que o citado art.
16, por ter sido alterado em época mais recente, restringiu também o
disposto no art. 103 da Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor).
E esse entendimento, é necessário ressaltar, se coaduna com o que prevê a
Constituição Federal em seu art. 92, parágrafo único: “O Supremo Tribunal Federal e os
Tribunais Superiores têm sede na Capital Federal, e Jurisdição em todo o território nacional”,
o que demonstra, até mesmo, a inconstitucionalidade em se permitir que uma decisão
proferida por um Juízo de qualquer comarca do país produza efeitos em âmbito nacional.
O Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos procurou resolver o
problema com a inserção do § 4o no artigo 13, que dispõe: “a competência territorial do órgão
julgador não representará limitação para a coisa julgada erga omnes”. Em nosso sentir,
contudo, a alteração não foi acertada, na medida em que a limitação territorial estabelecida
com o art. 16 da LACP é legal, eficaz e, acima de tudo, adequada à realidade do Poder
Judiciário brasileiro, sobretudo considerando-se a amplitude territorial do nosso país.
O que se pretende aqui afirmar é que o legislador pode, sim, ter pecado ao introduzir
a tão questionada alteração no art. 16 da Lei da Ação Civil Pública. Pecou, contudo, pela
cautela. Para muito além de desconhecer as alterações implementadas pelo Código de Defesa
do Consumidor, sabia dos efeitos desastrosos que poderiam ser causados por uma única
298
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Sentença coletiva proferida por juiz não tão habituado com a temática dos procedimentos
coletivos. Tinha ciência, também, das inúmeras tentativas de alteração judicial do
procedimento coletivo por juízes “ativistas” (o que, como já se destacou, está ocorrendo no
âmbito do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul6). E, diante de tudo isso, optou por prevenir
os jurisdicionados de surpresas desagradáveis que, não obstante ilegais, acabassem
produzindo efeitos em âmbito nacional, sendo causa de evidente insegurança jurídica, em
verdadeiro contraponto ao fundamento da coisa julgada. Esse alerta já foi apresentado por
Luiz Rodrigues Wambier (2006, p. 370-371),
O sistema anterior a essa alteração do art. 16 consistia numa exceção muito
grande à sistemática da prestação jurisdicional, como a conhecemos, e,
também, num risco à própria sociedade. Essa exceção – agora afastada – dizia
respeito à possibilidade de concessão de provimento com efeitos de âmbito
nacional, por um único Juiz singular. Pense-se, ainda mais, na possibilidade
de concessão de medida liminar, baseada em cognição sumária, por
Magistrado recém-empossado na carreira (inexperiente, portanto),
eventualmente ávido por notoriedade, o que certamente obteria, haja vista a
produção de efeitos em todo o país.
Enfim, com base em todos esses percalços, o legislador optou por limitar as decisões
proferidas por um único juiz, de uma determinada comarca, ao âmbito territorial de sua
Comarca (ou, no máximo, de seu Estado, como defendem alguns). Entre as dificuldades que
certamente surgiriam com a propositura de inúmeras ações coletivas idênticas em diversos
entes da federação, e os riscos gravíssimos decorrentes de uma única decisão de âmbito
nacional questionável ou, ainda, de difícil, senão impossível, implementação, o legislador
ficou com a primeira opção.
Foi o que destacou o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, em julgado paradigmático
sobre o tema,
Muito se tem debatido sobre a ação civil pública, o foro competente quando
interessa a mais de um estado e o efeito erga omnes da sentença de
procedência. Na situação atual, tenho que a melhor solução é a que permite a
propositura da ação perante o Juízo estadual, ainda quando houver interesse
de cidadãos residentes em mais de um estado, com limitação da eficácia erga
omnes ao território do tribunal que julgar o recurso ordinário. A solução tem o
inconveniente de exigir o ajuizamento da mesma ação em mais de um Estado,
ao mesmo tempo em que não dá eficácia geral ao julgamento proferido em
juízo sobre uma relação jurídica que se repete em muitos lugares do país.
Ocorre que as desvantagens de entendimento diverso são maiores: a exigência
de propositura da ação em Brasília, para demandas com reflexo em mais de
6
Referimo-nos, aqui, ao entendimento que tem se consolidado no âmbito do Poder Judiciário do Rio Grande do
Sul, no sentido de criar um procedimento próprio, contrário ao que prevê o ordenamento, para a liquidação e o
cumprimento de sentenças coletivas.
299
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um Estado, dificultaria sobremaneira o acesso à justiça e limitaria a um juízo
– muitas vezes distante da realidade da causa – a decisão sobre os interesses
coletivos de todo o país. De outra parte, assegurar eficácia em todo o território
nacional para sentença proferida em ação civil pública permitiria que um
processo instaurado em qualquer juízo tivesse efeito sobre todas as relações
objeto da ação, em todo o Brasil, o que poderia ensejar surpresas e abusos.
Por isso, parece melhor, no sistema processual atual, que seja limitada a
eficácia da sentença ao território do Estado onde proferida7.
Trata-se de pura política legislativa, residente, neste caso, em uma medida cautelosa
para um país com as características territoriais e jurisdicionais que têm o Brasil, atentando-se
ao que, em trabalho sobre as possibilidades de revisão da coisa julgada, afirmou Eduardo
Talamini (2005, p. 667),
A coisa julgada é apenas a autoridade que imuniza o resultado da atuação
jurisdicional. Nessa perspectiva, a coisa julgada segue a sorte do objeto sobre
o qual ela recai. Quanto mais adequada for a atuação jurisdicional, no seu
modo de desenvolver-se e no conteúdo de suas decisões, menos se verá na
coisa julgada um problema.
De qualquer forma, e voltando-se os olhos para o contexto atual, a limitação
territorial da eficácia da sentença coletiva foi uma opção do legislador8. Essa alternativa pode,
de fato, como afirmam alguns, contrariar a efetividade do processo, uma das bases da tutela
coletiva, na medida em que exige que idênticas ações coletivas sejam propostas em vários
Estados da Federação. Contudo, ela certamente garantirá um maior controle da justiça das
decisões proferidas nas ações coletivas e nas ações civis públicas, sobretudo em razão da
natureza dos direitos (a um do passo do interesse público, como já se frisou) tuteláveis por
essa via.
CONCLUSÃO
É certo que a previsão de instrumentos voltados à tutela coletiva de direitos
transindividuais e individuais homogêneos tem por objetivo a efetividade do processo e a
observância da isonomia. E a extensão dos efeitos da sentença e da coisa julgada coletivas
contribui para que esse fim seja alcançado. Contudo, ressalvas devem ser realizadas, para que
7
STJ; REsp 253.589; 4ª Turma; Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. em 26.08.2001.
Como ressalta Luiz Rodrigues Wambier, “o sistema processual brasileiro admite, sim, incongruências lógicas:
como é que alguém pode ser filho para efeito de herdar e, posteriormente,em outra ação, não ser considerado
filho para efeito de usar o nome de alguém? Sabe-se que a causa de decidir não fica acobertada pelo efeito da
coisa julgada material (art. 469). Essa ‘ilogicidade’ nunca levou autor algum a asseverar que o art. 469 do
Código de Processo Civil seria inconstitucional” (2006, p. 368).
8
300
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I301
um instrumento vocacionado à tutela efetiva dos direitos que transcendem a esfera individual
não passe a ser causa de insegurança jurídica.
O artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor disciplina a extensão erga omnes
dos efeitos da sentença coletiva, assim como o alcance da qualidade de imutabilidade dessa
decisão, que atingirão, no caso de procedência, a esfera dos terceiros titulares do direito objeto
da ação coletiva. No caso de improcedência, contudo, essa coisa julgada não prejudicará os
direitos individuais desses titulares. Tratando-se de direitos individuais homogêneos, serão
também prejudicados pela sentença de improcedência os titulares que, nos termos do art. 94
do CDC, requereram o seu ingresso no polo ativo da ação coletiva. Ainda, tratando-se de
improcedência por falta de provas suficientes, a coisa julgada não se produzirá, nem mesmo
para o ente legitimado que propôs a demanda.
Essa eficácia e autoridade erga omnes da sentença, contudo, não operam de forma
irrestrita, estando, na verdade, condicionadas à limitação territorial do órgão prolator da
Sentença coletiva. A própria sistemática dos processos coletivos – sobretudo, a natureza dos
direitos tuteláveis por essas demandas - contudo, resulta na necessária aplicação relativa dessa
regra no que se refere aos direitos difusos e coletivos. E isso, pela simples razão de que a
extensão do dano, no âmbito dos direitos transindividuais, resulta, muitas vezes, na
impossibilidade fática de limitação da eficácia da sentença e da coisa julgada. Tratando-se,
contudo, de direitos individuais homogêneos, a regra aplica-se de forma irrestrita.
A norma do art. 16 da LACP, na verdade, somente complementa o que se encontra
disciplinado no art. 103 do CDC: a sentença e a coisa julgada coletivas produzem efeitos erga
omnes, alcançando os terceiros à relação jurídica processual, titulares do direito objeto da
tutela coletiva. Essa eficácia erga omnes, que o art. 16 da LACP em momento algum
contrariou, é limitada, após a Lei 9494/97, pelo âmbito territorial do órgão prolator da decisão
coletiva, nos casos daquelas situações que, faticamente, permitem essa limitação.
Trata-se de pura política legislativa. O limite territorial do órgão prolator da decisão
foi, simplesmente, o critério adotado pelo legislador para conter a eficácia e a autoridade das
sentenças coletivas, não se tratando, aqui, de regra de competência. Entre as dificuldades que
certamente surgiriam com a propositura de inúmeras ações coletivas idênticas em diversos
entes da Federação, e os riscos gravíssimos decorrentes de uma única decisão de âmbito
nacional questionável ou, ainda, de difícil, senão impossível, implementação, o legislador
ficou com a primeira opção.
301
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I302
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303
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I304
LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA NO CONTROLE JUDICIAL
COLETIVO DE ATOS ADMINISTRATIVOS E SUAS PERPLEXIDADES1
res judicata SUBJECTIVE LIMITS IN COLLECTIVE JUDICIAL ADMINISTRATIVE
ACTS AND THEIR PERPLEXITIES
Esther Benayon Yagodnik2
RESUMO: Pretende-se trazer com o presente trabalho uma avaliação do conteúdo e do alcance da estrutura
legislativa brasileira, no que concerne à possibilidade de impugnação judicial de atos administrativos via ação
civil pública e ação popular, na defesa de interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos. Quando se
cuida do manejo das ações coletivas que objetivam impugnar atos administrativos, certas perplexidades surgem,
de modo que deve ser adequado o sistema de representatividade, bem como o de competência para julgamento
dessas espécies de ações. Assim sendo, objetiva-se estudar os limites subjetivos da coisa julgada nas ações civis
públicas e nas ações populares, como vias de impugnação de atos administrativos, na defesa de interesses
coletivos, difusos e individuais homogêneos, aplicados a um modelo de representatividade adequada, que busque
não só a manutenção da segurança jurídica e a igualdade de tratamento aos jurisdicionados, como também a
maior efetividade das decisões judiciais.
Palavras-chave: limites subjetivos da coisa julgada; efetividade do processo; controle jurisdiconal dos atos
administrativos.
ABSTRACT: It is intended to bring to this work a review of the content and scope of Brazilian legislative
framework, regarding the possibility of judicial review of administrative acts via civil action and popular action
in defense of collective interests, diffuse and homogeneous. When it takes care of the management of collective
actions that aim to challenge administrative acts, some perplexities arise, so that should be adequate
representation of the system as well as the competence to judge these kinds of actions. Therefore, this study
focuses on the subjective limits of res judicata in civil suits and actions popular as ways of challenging
administrative acts in defense of collective interests, diffuse and homogeneous, applied to a model of proper
representation, which seek not only the maintenance of legal certainty and equal treatment to jurisdictional, but
also the greater effectiveness of judicial decisions.
Keywords: subjective limits of res judicata; effectiveness of the process; jurisdiconal control of administrative
acts.
1
Trabalho apresentado no GT “Acesso à Justiça” do XXII Encontro Nacional do CONPEDI - Conselho
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – 2013.
2
Professora auxiliar do Departamento de Direito Aplicado da Universidade Federal Fluminense (DDA/UFF),
mestranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense – UFF.
304
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I305
INTRODUÇÃO
Com o surgimento dos direitos da coletividade, novas perspectivas processuais
começaram a ser adaptadas, buscando sempre a efetividade do processo de forma a atender os
interesses coletivos em um prazo razoável. Para tanto, encontra disciplina própria nas ações
coletivas o regime de operabilidade da coisa julgada, principalmente sob a ótica subjetiva.
Indubitavelmente, somente diante de estudos concretos é que se vislumbra a
necessidade de adoção de modelo de representação adequada às ações coletivas que buscam
controlar os atos da administração pública, com o escopo de alcançar maior efetividade aos
julgados, sem, entretanto, bloquear as garantias constitucionais individuais do acesso à
justiça, da inafastabilidade do controle jurisdicional e da extensão da coisa julgada.
De fato, quando o legislador conferiu caráter erga omnes aos decisórios prolatados em
sede de ação civil pública (art. 16 da Lei 7.347/85) e ação popular (art. 18 da Lei 4.717/65),
pretendeu não apenas o tratamento do ato lesivo de forma igualitária em relação aos
prejudicados (que se encontram na mesma situação jurídica e fática), mas também conferir
segurança jurídica à coletividade atingida com o dano, além da já aludida efetividade do
decisum ao caso concreto, que, na hipótese de interesses coletivos, difusos e individuais
homogêneos, afigura-se comum, podendo apenas ser distinguido quantitativamente, no caso
dos direitos individuais homogêneos.
Entretanto, quando essa aplicação ocorre no controle de atos administrativos
normativos, certas perplexidades se revelam, que serão adiante esposadas.
Inicialmente, necessário traçar um paralelo entre a extensão dos efeitos da coisa
julgada a pessoas que não participam efetivamente do processo judicial e que, por vezes,
sequer poderiam participar, pois não são legitimadas ativas, e o modelo de representação hoje
existente, visando a proposta de nova estrutura que não ofereça desvantagem a nenhuma parte
que eventualmente possa alegar prejuízo por deficiência na representação, ou até, ausência de
representação efetiva, o que causaria, sem dúvida, a renovabilidade da ação e o reexame
daquele litígio, que não poderia ser afastado sob a alegação de coisa julgada, acarretando, em
última análise, decisão divergente e, em conseqüência, um colapso na estrutura
administrativa.
Além disso, impende ressaltar o tratamento diferenciado aos efeitos da coisa julgada
secundum eventum litis, havendo, portanto, duas hipóteses, que são a definitividade do
305
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I306
julgado no caso de procedência do pedido e, no caso de improcedência, a restrição dos limites
apenas às partes, não alcançando o mesmo caráter vinculativo.
Por mais paradoxal que possa parecer, de outra parte, restringindo-se absolutamente os
limites da coisa julgada, atingir-se-ia efeito inverso ao desejado, isto é, elevado grau de
insegurança jurídica, em razão da possibilidade de inúmeras decisões judiciais conflitantes.
Destarte, deve ser considerado que, em qualquer dos casos aqui analisados, que tratam
de proteção de interesses em face da administração pública, é preciso ter em mente que os
danos não serão quase nunca de extensão certa e determinada, pois um ato administrativo
pode atingir indistintamente toda a coletividade (direito difuso) ou um seguimento da
sociedade (direito coletivo), ou ainda, interesses individuais (direitos individuais
homogêneos), gerando, para cada situação, pretensões e satisfações diferenciadas.
Assim sendo, diante das pendências concernentes à tutela judicial coletiva, afigura-se
como mais adequado interligar todas essas questões levantadas, para eleger, ao final, um
órgão que possa representar a sociedade imparcial e constitucionalmente nas ações coletivas
que visem à impugnação de ato administrativo, a fim de se evitar ofensas aos princípios
magnos, adequando-se à extensividade da coisa julgada, de forma a manter a isonomia entre
os jurisdicionados e a plena eficácia dos atos decisórios, restringindo-se, ao máximo, as
hipóteses de renovabilidade da ação, sem ofender, contudo, o princípio da inafastabilidade e
do acesso à justiça.
1 O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário
O poder atribuído ao judiciário para anular atos administrativos que extrapolam
preceitos do ordenamento justifica-se pela própria razão de ser desse órgão e pela natureza de
suas funções. O inciso XXXV do art. 5º da Carta Magna afirma, pelo o princípio da
ubiquidade jurisdicional, que a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou
ameaça a direito. Assim, a apreciação jurisdicional abrange também os atos e decisões
administrativas, desde que provocada pelo administrado mediante ajuizamento de ação
pertinente, em atendimento ao princípio da inércia da jurisdição.
Nesse sentido, a expressão controle jurisdicional da administração encerra as
atividades de apreciação, pelo poder judiciário, de atos, contratos ou processos
administrativos em geral ou até mesmo omissão ou inércia da administração. Assim, o
controle jurisdicional é exercido de forma externa e, em geral, posterior, repressiva ou
corretivamente.
306
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I307
Impende consignar que o controle jurisdicional da administração pública se apresenta
como um dos mais importantes instrumentos de assegurar a legalidade que norteia a atuação
dos poderes públicos, evitando lesão ou ameaça aos direitos e garantias constitucionalmente
previstos. A única exigência, considerando a inércia da jurisdição, é a provocação que deve
advir do próprio administrado. Dessa forma, com o advento da CF/88, que trouxe grandes
transformações no plano administrativista, ficou reconhecido o princípio da proteção
judiciária que se desdobra em centenas de conseqüências garantidoras desse princípio, tal
como a inexigência de exaustão prévia da via administrativa para que se possa ingressar em
juízo.
A princípio, não cabe ao poder judiciário, através da revisão dos atos administrativos,
exercer
as
atividades
inerentes
aos
outros
poderes
da
administração
pública,
substitutivamente, sob o pretexto de conceder tutela aos direitos individuais ou coletivos.
Decorre daí a impossibilidade de propositura de ações de índole individual ou coletiva cujo
objeto importe em controlar, direta ou indiretamente, o mérito do ato administrativo,
consubstanciado em juízo discricionário exclusivo do administrador.
Assim, em tese, não seria possível o controle de ato administrativo discricionário pelo
poder judiciário, considerando que estes fazem parte de manifestação exclusivamente
conferida ao administrador, em juízo de conveniência e oportunidade (DE MELLO, 2006).
Entretanto, conforme ficará demonstrado adiante, existem várias razões que fundamentam o
controle do ato administrativo pelo poder judiciário.
Destarte, não obstante ser possível o controle do ato administrativo pelo Poder
Judiciário, esse controle encontra limites na própria ordem constitucional, em respeito,
principalmente, ao princípio do pacto federativo e da separação de poderes, inerentes ao
estado democrático de direito.
Assim, contemporaneamente, muito se discute, com relação ao alcance do controle
jurisdicional da administração, acerca do binômio legalidade-mérito do ato administrativo, no
sentido de permitir o controle do ato no interesse público.
Antes de adentrar no assunto, vale entender o alcance das expressões legalidade e
mérito administrativos. A primeira diz respeito à adequação do ato administrativo às normas
presentes no ordenamento, enquanto que o segundo diz respeito à margem de
discricionariedade conferida à administração pública, que, num juízo de conveniência e
oportunidade, decide aspectos relativos ao ato administrativo.
307
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I308
Assim, considerando as duas garantias, de um lado, da legalidade (do administrado) e
do outro, da discricionariedade do mérito do ato administrativo (da administração pública),
suscita-se o alcance possível de controle jurisdicional do ato administrativo.
Há quem entenda que o judiciário deve exercer controle restrito sobre os atos
administrativos, circunscrito à legalidade estrita do ato, que pode ser representado pela
competência, forma e licitude do objeto. Por outro lado, há quem sustente um controle amplo
da administração, ampliando o controle jurisdicional além da competência e forma dos atos
administrativos, para adentrar nos motivos e fins como integrantes da legalidade e não de
discricionariedade e mérito.
Nesse sentido, foi sustentado ao longo dos tempos, que ao Judiciário é defeso
controlar o mérito dos atos administrativos. Entretanto, com a evolução do direito, sustenta-se
a atenuação desse contraponto de legalidade-mérito, na medida em que cria parâmetros
normativos e valorativos, no escopo de atender o verdadeiro interesse da coletividade,
evitando abusos por parte da administração pública, quando do exercício do poder
discricionário, concernente ao mérito administrativo.
Odete Medauar, com maestria, expõe os parâmetros (limites) que devem ser
considerados para o controle dos atos administrativos, sem contudo, ter a pretensão de exaurilos (MEDAUAR, 2006, p. 114/115).
Em princípio, calcado no princípio constitucional da separação dos poderes e do pacto
federativo, não foi possível o controle dos atos administrativos de natureza discricionária,
permitindo apenas ao judiciário o controle dos atos vinculados.
Assim, inconteste que os atos administrativos vinculados possam ser revistos, no
âmbito de sua legalidade e razoabilidade, surgiram, evolutivamente, quatro teorias, criadas
para possibilitar o controle do ato administrativo discricionário. São elas: teoria do desvio de
finalidade, teoria dos motivos determinantes, teoria do conceito jurídico indeterminado e
teoria da razoabilidade (DI PIETRO, 2006).
A primeira teoria, chamada de teoria do desvio de finalidade, analisa o ato
administrativo discricionário sob a ótica do elemento vinculado, que é a finalidade. Assim, a
análise da finalidade não implica em invasão do mérito administrativo.
A segunda teoria, dos motivos determinantes, nasceu com a obrigatoriedade de
motivação para o ato administrativo vinculado que posteriormente se estendeu aos atos
administrativos discricionários3, por força do disposto nos arts. 5º, LV e 93, X, ambos da
3
Há quem entenda que a obrigatoriedade de motivação é apenas para os atos administrativos discricionários de
caráter decisório, chamados de atos administrativos de decisão.
308
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I309
CRFB. Consiste em condicionar a legalidade do ato à veracidade dos motivos esposados pelo
administrador quando da edição do ato.
A terceira teoria, do conceito jurídico indeterminado, está ligada à ideia de
discricionariedade técnica, na tentativa de limitar cada vez mais os critérios subjetivos da
conveniência e oportunidade administrativas. Nesse sentido, essa teoria não visa propriamente
a análise do ato discricionário, mas sim evitar a atuação discricionária da administração
pública, preconizando critérios objetivos de atuação, tais como jurisprudências, pareceres e
perícias, a serem utilizados antes dos critérios de ordem subjetiva.
A última teoria, da razoabilidade, não visa a invadir o mérito do ato administrativo
discricionário, mas sim controlar os limites da atuação discricionária da administração pública
através do limite legítimo ou do razoável, além do limite legal, para resguardar o estado
democrático de direito. Assim, se o administrador, ao editar o ato, extrapolar os limites do
legal ou do legítimo, haverá ilegalidade ou arbitrariedade, o que poderá perfeitamente
provocar a anulação do ato pelo poder judiciário. Esses limites da razoabilidade, de
construção doutrinária, já foram citados a título de exemplo, supra.
Tendo presentes essas considerações, o poder judiciário, contemporaneamente, pode
rever o ato administrativo vinculado em sua fundamentação; a ato administrativo vinculado
ou discricionário, quando tenha havido imoralidade, desvio de poder, finalidade, eficiência ou
razoabilidade; o ato administrativo discricionário motivado facultativamente, no mérito, pois
a administração pública fica vinculada aos motivos determinantes; e os atos administrativos
vinculados de reação impositiva.4
Infere-se do texto constitucional de 1988 que há uma prevalência de garantia dos
direitos fundamentais em detrimento do poder público. Um desses corolários que reafirma a
assertiva acima é a ampliação de parâmetros de atuação administrativa, mesmo discricionária,
tais como o princípio da moralidade, publicidade e impessoalidade, a serem seguidos pela
administração, de forma a conceder maior transparência em seus atos, permitindo maior
controle.
Note-se, a esse respeito, que a ação popular pode ter como um de seus objetivos a
anulação de ato lesivo à moralidade administrativa, independentemente de considerações de
estrita legalidade, assunto que será adiante tratado.
4
Os atos administrativos de reação impositiva decorrem do dever que tem a administração pública de reagir, por
meio de seus agentes, ao detectar infração à lei ou ao cuidar de fatos ocorridos ou por ocorrer. Por exemplo: é
dever da administração pública interditar prédio em ruínas, embargar obra em desacordo com a lei, etc. Nesses
casos, a reação da administração pública é obrigatória e vinculada, externando-se através de ato administrativo
de reação impositiva.
309
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I310
2 Controle dos atos administrativos via especial coletiva
Por todas as advertências supra, já restou claro que os atos administrativos podem ser
controlados pelo poder judiciário. Tal controle pode ser feito via individual ou coletiva, na
defesa de interesses transindividuais, quer por meio dos remédios processuais comuns, quer
por meio de remédios especiais ou extraordinários (FAGUNDES, 2006).5 Ao que nos pertine,
será estudada a via de controle de interesses transindividuais por meio de remédio
extraordinário.
Com efeito, a Constituição de 1988 consagrou o dever jurídico da boa gestão
administrativa, a ser seguido pela administração pública, através dos princípios elencados no
art. 37 da Carta, tais como o da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência. Daí conclui-se que, se houver desvio das metas constitucionais, se sujeita o
administrador ao controle até mesmo jurisdicional.
Assim, o dever implícito constitucional de boa gestão importa na consonância que
deve haver entre a conduta desempenhada pelo legislador e os princípios constitucionais, de
forma a buscar a medida mais adequada e eficiente para atender o interesse público.
Dessa forma, sustenta-se que até mesmo a discricionariedade do administrador está
vinculada ao dever de boa gestão. Logo, mesmo que pela lei seja conferido à administração
pública certa liberdade de atuação, estará ela limitada ao dever jurídico de boa gestão
administrativa.
A ação popular, como já tratado, é o instrumento processual constitucional por meio
do qual o indivíduo provoca o poder judiciário a se manifestar acerca de atos ou abstenções da
administração pública que afetem interesses da coletividade.
Assim, além de atos administrativos em geral, é juridicamente possível o controle via
ação popular de lei de efeitos concretos6, o que não ocorre, por exemplo, com o mandado de
segurança, a teor do verbete sumular nº 266 do STF7.
Com relação ao interesse da ação popular, ao contrário do que sempre se sustentou
antes do advento da CF/88, a tendência é de esvaziar o binômio lesividade e ilegalidade, para
permitir a propositura da ação popular alicerçada em apenas um desses vícios, ressalvando-se
5
Contribuiu eficazmente para a consagração da ideia de controle dos atos administrativos pelo poder judiciário a
já extinta ação sumária especial para anulação dos atos administrativos, que foi instituída pelo art. 13 da Lei
Federal nº 221, de 20/11/1894, e não mais subsistiu por força do art. 1º do Código de Processo Civil de 1939 e
de sua incorporação na consolidação das Leis da Justiça Federal de 1898.
6
Nesse sentido, já decidiu o STJ no Resp. 501.854-SC, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 24.11.2003, p. 222.
310
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I311
ainda a hipótese ao ato administrativo ferir a moralidade pública, situação em que pode não
ocorrer violação direta à legalidade nem à lesividade do patrimônio público.
Corroborando este raciocínio, já decidiu o STJ: é lícito ao poder judiciário examinar o
ato administrativo, sob o aspecto da moralidade e do desvio de poder. Com o princípio
inscrito no art. 37, a Constituição Federal cobra do administrador, além de uma conduta
legal, comportamento ético8.
No sentido oposto, e também alicerçado em entendimento jurisprudencial9, sustenta
Hely Lopes Meirelles que é imprescindível a configuração do binômio lesividade-ilegalidade,
sendo que amplia o conceito de lesividade para abrigar outros valores protegidos
constitucionalmente.
Assim sendo, de uma forma ou de outra, existe a possibilidade de controlar os atos
administrativos via ação popular, buscando sua anulação, por afronta aos bens jurídicos
tutelados de acordo com a lei e com o dispositivo constitucional que regulamenta o instituto.
3 Democratização do controle dos atos administrativos na defesa de interesses
transindividuais
Tanto a ação popular quanto a ação civil pública se destacam como institutos que
garantem o acesso à justiça, na medida em que possibilitam seus legitimados a impugnar
judicialmente interesses de índole coletiva, que podem importar, inclusive, no controle de ato
administrativo que atinja essas espécies de interesses.
Como já assentado, sob a perspectiva da segurança, quietude e paz jurídicas, a tutela
judicial coletiva se sujeita a regime diferenciado da coisa julgada, havendo, em determinadas
hipóteses, extensão dos limites subjetivos.10
Em decorrência do regime diferenciado da coisa julgada e da sujeição as suas
qualidades por pessoas que não participaram diretamente do processo, senão como
substituídos pelo legitimado ad causam, sob uma perspectiva constitucional, impende analisar
os limites razoáveis de legitimação das ações de índole coletiva, a fim de aferir a adequação e
correspondência entre o interesse defendido pelo substituto processual e o interesse coletivo.
Assim, indaga-se acerca da legitimidade do próprio substituto de propor a ação que
tutela interesses transindividuais, considerando que será possível que os efeitos da sentença
atinjam toda a coletividade.
8
Resp. 21.923 – MG. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 13.10.1992, p. 17.662.
Resp. 146.756 – SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 09.12.2003, DJ 09.02.2004, p. 139.
10
Art. 18 da Lei 4.717/65 e art. 16 da Lei 7.347/85.
9
311
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I312
Sob tal perspectiva, aduz-se que “a legitimidade extraordinária na ação popular ou
nas ações de classe é um mal necessário, ante a fragilidade dos Estados em criar mecanismos
eficazes de controle da administração pública e de acesso à justiça” (SILVA, 2007).
De verdade, o regime adotado de extensão dos efeitos da coisa julgada para as ações
de índole coletiva julgadas procedentes, no momento, apresenta-se como o mais
consentâneo11. Entretanto, de acordo com o rol de legitimados ativos para tal causa, o que
fazer quando o interesse do legitimado diverge do coletivo? E ainda, como deverá ser aferida
tal adequação da representatividade?
Em continuação às indagações, mister explicitar o que de fato ocorre no controle dos
atos administrativos pelo poder judiciário, na defesa de interesses transindividuais.
Adequando-se a classificação de interesses (que divide os direitos em difusos,
coletivos e individuais homogêneos) às espécies de tutelas cabíveis em ação popular e ação
civil pública, em análise inicial, verifica-se que as ações que visam controlar atos
administrativos na defesa de interesses transindividuais decorrem, necessariamente, de ação
ou omissão da administração, e importarão, obrigatoriamente, em impugnação do ato ou na
obrigação de edição do ato. Vejamos.
Nas ações impugnativas de atos administrativos na tutela de interesses difusos e
coletivos, é unânime que, diante da indivisibilidade do interesse, é juridicamente possível
demandar a nulificação do ato, que importará na procedência do pedido, fazendo, portanto,
coisa julgada material em relação aos representados.
Entretanto, nas ações que buscam impugnar atos administrativos na defesa de
interesses individuais homogêneos, há certa perplexidade. Por tratar-se de direito divisível,
interligado apenas por circunstância de fato que permite apreciação judicial coletiva, a
pretensão que, em regra, se busca é a de índole condenatória, na modalidade de reparação de
danos provocados pelo ato administrativo. Tal pretensão se revela apenas como a regra, posto
que haverá de ser alterada quando a impugnação judicial tiver como objeto ato administrativo
normativo, que, indubitavelmente, buscar-se-á a anulação do próprio ato.
Sustenta-se, portanto, que na hipótese de impugnação judicial coletiva de ato
administrativo normativo, que se note, são dotados de generalidade e impessoalidade, não se
trata propriamente de interesse coletivamente divisível, motivo pelo qual a pretensão haverá
de fundar-se em anulação do próprio ato que, julgado procedente, fará coisa julgada erga
omnes, a qual se subordinarão os “adequadamente representados”. Assim, aduz-se que o
11
Pois visa assegurar o acesso à justiça e a uniformidade de tratamento entre os administrados, além da
segurança, paz e quietude jurídicas.
312
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I313
procedimento mais adequado a tutelar atos administrativos normativos é por via abstrata,
ainda que se trate de interesses individuais homogêneos, que, neste aspecto, por exceção,
serão considerados indivisíveis.
Melhor explicando, considerando que o controle de atos administrativos normativos
importarão, caso procedente, em nulificação do próprio ato, vinculando a toda a coletividade,
em decorrência do regime da coisa julgada erga omnes, o meio mais adequado de impugnar
tais atos seria pela via abstrata, por tratar-se verdadeiramente de um controle normativo.
Nesse diapasão, contemporaneamente, vem sendo utilizado tanto o controle concreto
quanto o controle abstrato dos atos administrativos. No controle concreto, sabe-se que,
julgada procedente a demanda, a decisão só vinculará as partes que integraram a relação
jurídica processual, ativa ou passivamente, considerando que essa decisão conclui pela
validade ou invalidade do ato administrativo, deixando de torná-lo eficaz à luz do caso
concreto. Isso vale para os direitos e interesses que podem ser fracionados, e, portanto,
divisíveis.
O mesmo não ocorre quando se trata de direitos indivisíveis, que só irão admitir o
controle abstrato da normatividade do ato administrativo. Isso porque, com base no princípio
da segurança jurídica e na isonomia no tratamento dos jurisdicionados, não se pode admitir
que certo ato administrativo seja válido para determinado administrado, não sendo válido para
outros. Tal problemática deverá ser solucionada através de controle abstrato da normatividade
do ato, que importará em coisa julgada erga omnes e idêntica para todos os administrados, no
caso de procedência da demanda12.
Para tal controle efetivar-se, como já sustentado, importante definir ou até mesmo
redefinir a legitimação ativa para a propositura da ação popular e ação civil pública, de forma
a adequar a questão da representatividade. E ainda, aferir se a via difusa, aplicada às ações
civis públicas e ações populares seria a mais apta a esse tipo de tutela. Com relação à última
indagação, já vimos e ainda continuaremos a ver que a resposta é no sentido negativo.
4 Perplexidades na aplicação prática
4.1 Questão da legitimidade e da representatividade adequada
12
Com efeito, quando o controle do ato administrativo for causa de pedir remota, pode ser realizado através de
ações pelo sistema difuso, como por ação popular ou ação civil pública. Se, entretanto, o interesse sob tutela for
indivisível e o controle do ato importa em anulá-lo, entende-se modernamente que tais ações via controle difuso
não podem ser utilizadas para controlar por via transversa o ato administrativo, como sucedâneos, por exemplo,
da ação de controle abstrato – ADIN.
313
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I314
Pela própria perspectiva garantista do Estado Democrático de Direito, a ação popular
tornou-se uma das maiores conquistas da coletividade para o controle da atividade
administrativa.
Nesse sentido, a defesa judicial coletiva, na prática, ocorre por meio da legitimação
extraordinária, através da qual o autor da ação coletiva defende não só direito próprio, mas
também direitos alheios, divisíveis ou indivisíveis, compartilhados pela coletividade ou por
determinada categoria de pessoas.
Entretanto, conforme já restou evidenciado, de fato, ocorre problemática com
relação à legitimidade concorrente dos vários administrados atingidos por um ato
administrativo indivisível, para nulificá-lo. Na medida em que o ato impugnado é uno e
indivisível, sua anulação não tem como ser parcial, atingindo apenas o demandante da ação.
Considerando que ele representa o interesse da coletividade, a decisão que anula o ato
administrativo produzirá coisa julgada material e efeitos erga omnes para todos os
representados.
Além da problemática da coisa julgada, ressalte-se que, entre os co-legitimados,
poderá haver alguns que pretendam a manutenção do ato ao invés de sua invalidação. Como
então solucionar o impasse diante da indivisibilidade ao ato, que haverá de ser igualmente
válido ou inválido em face de todos os jurisdicionados? Diante da indivisibilidade do ato,
inevitavelmente a sentença produzirá um mesmo efeito perante os administrados. Por isso
que, no próximo tópico, será estudada a via mais correta para o controle do ato administrativo
de efeitos gerais e impessoais.
Assim, passamos a tecer comentários acerca da legitimação das ações de índole
coletiva, considerando a questão da representatividade adequada.
Inicialmente, o rol dos legitimados ativos das ações aqui estudadas encontra-se
presente no art. 1º da Lei 4.717/65 e art. 5º da Lei 7.347/85. Essa legitimidade é classificada
pela doutrina como concorrente e disjuntiva. O primeiro atributo se refere à concessão da
legitimação a vários entes ao mesmo tempo; o segundo, à possibilidade de atuação autônoma
de cada legitimado.
O reconhecimento legal da co-titularidade dos cidadãos ou dos legitimados para a
ação civil pública que podem, isoladamente, promover ações em defesa de direito comum,
decorre do fenômeno da substituição processual, previsto no art. 6º do CPC que consubstancia
a idéia de que alguém, autorizado por lei, postula em juízo direito alheio em nome próprio.
Nessa situação, repita-se, é uníssono que o substituído fica sempre sujeito à autoridade da
coisa julgada obtida pelo substituto.
314
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I315
Assim, o substituído não se submete à autoridade da coisa julgada apenas pelo fato
de que foi substituído, mas por diversas outras razões lógicas, tais como a constatação de que
a atuação processual do substituto tem necessariamente influência e eficácia sobre a posição
jurídica do substituído.
Tendo em vista a legitimação concorrente e extraordinária da ação popular e ação
civil pública, a questão que se coloca, também, é a de saber se, apesar do legislador já ter
definido os co-titulares para promover as ações de índole coletiva, ainda cabe ao juiz o
controle acerca da “representatividade adequada” do legitimado, na similitude de outros
sistemas que se inspiraram nas class actions americanas13.
Aqui no Brasil, inicialmente não foi adotada a fórmula da representatividade
adequada, operando-se a legitimação ope legis (art. 1º da Lei 4.717/65 e art. 5º da Lei
7.347/85). Entretanto, diante das perplexidades que podem surgir no controle de atos da
administração, na defesa de interesses coletivos, tal disposição legal, isoladamente, não é apta
a permitir um controle efetivo.
Dessa forma, em determinadas questões práticas, não obstante haja a legitimação
legal, aquele que ajuizou a ação nem sempre apresenta seriedade, credibilidade, conhecimento
jurídico de defesa processual, esvaziando a presunção da lei de “adequadamente
representado”. Sem falar na hipótese em que os legitimados litigam em juízo como
pseudodefensores de uma categoria cujos verdadeiros interesses contrastam com o pedido, ou
mesmo com o interesse maior da coletividade.
Em situações como esta, seria útil reconhecer ao juiz o controle sobre a legitimação,
em cada situação concreta, de modo a obstar o prosseguimento da ação coletiva cuja
representatividade do legitimado se afigure inadequada.
Vale trazer, neste momento, a título de curiosidade, que o Anteprojeto de Código
Modelo de Processos Coletivos para a Ibero-América14 reconhece expressamente a
representatividade adequada como requisito da ação coletiva.
Assim sendo, não obstante o sistema brasileiro não preveja expressamente a aferição
da “representatividade adequada”, também não a veda, motivo pelo qual a maioria da doutrina
13
O conceito de adequacy of representation advém do direito norte-americano e constitui requisito indispensável
para a admissibilidade (certification) das class actions. Segundo a doutrina norte-americana, para que um
indivíduo possa ser autor de uma class action, ele deve ter algum interesse próprio e pessoal no resultado do
processo. Ou seja, é o nexo existente entre o autor e o objeto da demanda que justifica a escolha do legitimado
(ideological plaintiff). Assim, em decorrência lógica da adequação da representatividade, estendem-se os efeitos
da coisa julgada aos substituídos.
14
Disponível em
http://www.pucsp.br/tutelacoletiva/download/codigomodelo_exposicaodemotivos_2_28_2_2005.pdf. Consulta
realizada em 20 de março de 2013, 22:00hs.
315
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I316
moderna15 entende que cabe ao juiz incluir, na análise da condição da ação (legitimidade), a
adequacy of representation, de forma a verificar aspectos como a credibilidade, a seriedade, o
conhecimento técnico-científico e processual, a colidência com os interesses que se pretende
tutelar e os verdadeiros interesses da coletividade. Na hipótese do juiz concluir pela
inadequação da representatividade, caberá a extinção do processo sem resolução de mérito,
pois ausente condição da ação coletiva referente à legitimação.
Em abordagem do assunto, defendendo o controle judicial da adequação da
representação, Fredie Didier Jr. Sustenta o seguinte (DIDIER, 2005):
...não é razoável imaginar que uma entidade, pela simples circunstância de
estar autorizada em tese para a condução de um processo coletivo, possa
propor qualquer demanda coletiva, pouco importa quais são as suas
peculiaridades. É preciso verificar se o legitimado coletivo reúne atributos
que o tornem representante adequado para melhor condução de determinado
processo coletivo, devendo esta adequação ser examinada pelo magistrado
de acordo com critérios gerais, mas sempre à luz da situação jurídica
litigiosa deduzida em juízo. Todos os critérios para a aferição da
representatividade adequada devem ser examinados a partir do conteúdo da
demanda coletiva.
Assim sendo, em busca da plena efetividade da tutela coletiva, é razoável conferir ao
julgador o poder-dever de controlar a representatividade adequada em cada caso concreto
através de parâmetros balizadores da convergência dos interesses em juízo. Tal controle
deverá ser realizado, principalmente, em duas hipóteses, a saber, quando a ação coletiva é
ajuizada por pessoa física (ação popular) ou, no caso de pessoa jurídica (ação civil pública),
para saber se há idoneidade e capacidade técnica.
4.2 A adequação da via de controle do ato administrativo que atinge interesses
indivisíveis
Pelas razões já expostas, repita-se, considerando que o ato administrativo normativo,
em regra, afeta interesses transindividuais indivisíveis, seu controle visará à anulação do
próprio ato, sendo mais adequada a via do controle abstrato e concentrado, tal como ocorre no
controle de constitucionalidade das normas via Ação Direta de Inconstitucionalidade ou Ação
Declaratória de Constitucionalidaden.
15
Nesse sentido, Pedro da Silva Dinamarco e Clarissa Diniz entendem que os legitimados para a propositura das
ações coletivas são “legitimados institucionais”, com previsão legal abstrata, podendo haver controle posterior
ope legis da representatividade adequada.
316
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I317
Para efeitos de consolidação do raciocínio seguinte, vale explicar brevemente o que
ocorre no controle difuso e concreto, para concluir-se pela viabilidade do controle abstrato e
concentrado.
No controle difuso e concreto, não há propriamente um controle de
constitucionalidade de leis ou de atos normativos; o que há, verdadeiramente, na pretensão
julgada procedente, é a não incidência dos efeitos daquela norma no caso concreto.
Isso porque, não compete a qualquer juiz ou tribunal avaliar a constitucionalidade de
lei ou ato normativo de forma permanente; permite-se, portanto, uma análise superficial da
demanda, cuja causa de pedir se funda em inconstitucionalidade de lei.
Tomando por base essas considerações, no controle difuso, a coisa julgada será inter
partes, não ferindo a competência originária para o controle de constitucionalidade das
normas e dos atos administrativos, exclusiva do STF.
Assim, no controle difuso, não é juridicamente possível o pedido de declaração de
inconstitucionalidade de norma, cujos efeitos serão, inevitavelmente, por força de lei, erga
omnes. Admitindo-se de forma diversa, certamente, em pouco tempo, ocorreria um colapso na
atividade administrativa, decorrente da própria insegurança jurídica dos administrados e da
possibilidade de decisões conflitantes.
Dessa forma também ocorre com os atos administrativos normativos que, dotados de
generalidade, impessoalidade e abstração, não se pode admitir seu controle pelo método
difuso (qualquer juiz ou tribunal é competente para apreciar a causa), sob pena de, além de
decisões dissonantes, gerar inquietude entre os administrados que haverão de sujeitar-se
àquilo decidido no controle concreto.
Seria, portanto, com relação aos atos administrativos normativos que atingem
interesses de índole coletiva, necessário um controle concentrado (apenas determinados
órgãos poderiam apreciar a demanda) para se evitar que, por via difusa, o ato seja nulificado
e, consequentemente, a coisa julgada seja erga omnes.
Por outro lado, o controle difuso, somado à legitimidade ad causam, via ação
popular e ação civil pública, procura assegurar um amplo acesso à justiça. Concentrando-se o
sistema de controle, estar-se-ia limitando essa garantia constitucional? Eis o maior impasse.
Se, por um lado, o controle difuso permite ao administrado a efetivação da garantia
constitucional do acesso à justiça, de outro, prejudica o administrado no sentido de sujeição
aos efeitos da coisa julgada naquele processo. E ainda, permitiria decisões dissonantes, o que
fere o próprio devido processo legal, gerando instabilidade.
317
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I318
Assim sendo, com o escopo de alcançar maior efetividade sem, entretanto,
inviabilizar as garantias individuais do acesso à justiça, faz-se necessária à concentração de
competência para o controle dos atos administrativos normativos que afetem interesses
coletivos e importem em nulificação do próprio ato.
Essa concentração não quer dizer necessariamente um tribunal exclusivo (sob pena
de dificultar o amplo acesso à justiça, já alcançado pela legitimação popular), mas de um
órgão capaz de apreciar certos litígios que alcancem “repercussão geral”, classificados como
interesse coletivo, em sentido estrito ou amplo.
CONCLUSÃO
A formação dos direitos transindividuais decorre necessariamente da constante
evolução e mutação dos fenômenos sociais e políticos. Por conseguinte, essa complexidade
jurídica de interesses demanda transformação na sistemática processual de certos institutos.
Ocorre que, o processo, em uma abordagem constitucional, se preocupa amplamente
com sua efetividade, em razão do seu caráter instrumental. De fato, o processo só existe para
possibilitar a concretização de direitos materiais, e isso só será alcançado se a prestação
jurisdicional ocorrer de forma célere e em prazo razoável.
Assim, pelo princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, se possibilita não
apenas o acesso à justiça, como também assegura a garantia efetiva da prestação judicial.
Nessa esteira, visando à proteção dos direitos recentemente definidos como
transindividuais, impõe-se a reapreciação de certos institutos processuais, tais como as
espécies de sentenças cabíveis em relação aos interesses sob tutela, a operabilidade da coisa
julgada, a legitimidade ad causam, entre outros.
Dessa forma, por exemplo, temos que, em desconsideração a estrita literalidade dos
dispositivos legais, e, através de uma interpretação sistemática, é possível, via ação popular e
ação civil pública demandar interesses cujo provimento final importe em declaração,
constituição ou condenação, alternativa ou cumulativamente.
Além disso, como objeto das ações populares e ações civis públicas, poderão estar
atos administrativos que, dependendo de seu conteúdo, poderão implicar em defesa de
interesses coletivos, difusos ou individuais homogêneos.
Destarte, com a constante evolução, também se consagrou a possibilidade de
controle da administração pública pelo poder judiciário. Entre as vias especiais de controle
destacam-se as ações populares e ações civis públicas.
318
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I319
Não obstante a possibilidade de controle do ato administrativo via ação popular e
ação civil pública, em decorrência das perplexidades surgidas, a tendência é de restrição desse
controle, para excluir do âmbito da ação popular o controle do ato administrativo normativo,
que importará, necessariamente, na hipótese de procedência da demanda, em anulação do
próprio ato.
Dessa forma, percebe-se que surge acentuada problemática quando da aplicação dos
institutos processuais na impugnação judicial de atos administrativos via ação popular e ação
civil pública.
Tratando-se de direitos essencialmente coletivos, de natureza indivisível, o regime
da coisa julgada é erga omnes, na medida em que, pela própria natureza das coisas (a
indivisibilidade), o resultado do julgamento há de ser uniforme para todos.
Entretanto, será difícil decisão uniforme quando se possibilita o controle do ato
administrativo via ação popular e ação civil pública, considerando que este controle é
exercido de forma difusa, isto é, qualquer juiz ou tribunal é competente para apreciar a causa.
Assim, não se pode afirmar que o juiz, na ação popular ou ação civil pública, possa exercer o
controle difuso do ato administrativo, considerando que os efeitos do provimento final terão
eficácia inter partes.
Todavia, como a sentença de procedência da ação popular é oponível erga omnes, a
nulificação de um ato administrativo nela embutida certamente implicaria em usurpação da
competência originária do Supremo Tribunal Federal para a apreciação da constitucionalidade
dos atos administrativos. Isso não significa, absolutamente, que o ato puramente
administrativo, quando ferir a constituição, possa ser impugnado via ação popular.
Ademais, como obrigar determinados indivíduos a se sujeitaram ao regime erga
omnes da coisa julgada sem participar efetivamente do processo, por serem representados por
força de lei?
Há casos em que os interesses dos legitimados legais não se compatibilizam com
aqueles defendidos em juízo. Dessa assertiva, traz-se a idéia da representatividade adequada
que, segundo a melhor doutrina, a compatibilidade entre os interesses deve ser aferida em
momento posterior ao ajuizamento da demanda, para reafirmar a segurança e efetividade do
provimento judicial, em caso de procedência, como base do estado democrático de direito.
Assim, as leis brasileiras sobre a questão abordada podem e devem ser aprimoradas,
à luz da experiência prática e das novas perplexidades que dela decorrem, sobretudo em temas
como a representatividade adequada e a competência para a apreciação de ação popular e ação
civil pública que tem por objetivo impugnar atos administrativos normativos.
319
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I320
Sugere-se, por exemplo, a concentração dessas demandas em um órgão competente
(para o controle abstrato do ato administrativo normativo) e a aferição pelo juiz, em cada caso
concreto, da representatividade adequada, a fim de evitar o recrudescimento de demandas
idênticas, uniformizando-se, por conseguinte, a prestação jurisdicional aos administrados. Só
assim poderá ser alcançada a máxima efetividade, escopo essencial do processo em sua
função instrumental.
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321
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I322
ACESSO À JUSTIÇA ATRAVES DA LIQUIDAÇÃO E CUMPRIMENTO DE
SENTENÇA GENÉRICA EM AÇÕES COLETIVAS REFERENTE AO INTERESSE
INDIVIDUAL HOMOGÊNEO
Daniele Alves Moraes*
Resumo
O presente trabalho aborda a liquidação e cumprimento de sentença genérica em Ações
Coletivas referentes ao interesse individual homogêneo. A sociedade brasileira apresenta
conflitos de massa, que necessitam de uma nova proposta processual. É preciso buscar um
processo que possa efetivamente solucionar esses conflitos. Não é solução eficaz aplicar
simplesmente ao processo coletivo os institutos tradicionais do processo civil, de caráter
individual. Regras como legitimidade, coisa julgada, prescrição, que são aplicadas ao direito
individual, não podem ser aplicadas do mesmo modo quando o processo tutela direitos que
ultrapassam a esfera da individualidade, os direitos transindividuais. A pesquisa se deu pelo
método dedutivo, correspondendo à extração discursiva do conhecimento a partir de
premissas gerais aplicáveis a hipóteses concretas. Logo em seguida será utilizado o método
argumentativo-dialético, sob a forma de lógica da persuasão. Através deste método, buscarse-á a compreensão do fenômeno jurídico que se pretende estudar, ou seja, o cumprimento da
sentença genérica em Ações Coletivas referentes ao interesse individual homogêneo, a partir
das argumentações que o tema comporta em vista dos valores que pretendam fazer valer.
Palavras–chave: Processo coletivo; Interesses Individuais Homogêneos; Liquidação e
Cumprimento de Sentença Coletiva.
ACCESS TO JUSTICE THROUGH THE SETTLEMENT AND EXECUTION OF
SENTENCE IN GENERIC COLLECTIVE ACTIONS REGARDING PERSONAL
HOMOGENEOUS INTEREST
Abstract
This paper addresses the settlement and enforcement of judgment in generic Class Actions
relating to homogeneous individual interests. Brazilian society has conflicts mass, requiring a
new procedural proposal. We must seek a process that can effectively resolve such conflicts.
No effective solution is simply to apply the collective process traditional institutes of civil
procedure, individual character. Rules such as legitimacy, res judicata, prescription, that are
applied to individual rights, can not be applied the same way when the guardianship process
rights beyond the sphere of individuality, trans rights. The study took the deductive method,
corresponding to the extraction of discursive knowledge from general assumptions applicable
to specific situations. Soon after the method used will be argumentative and dialectical, in the
*
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia, especialização em Direito Processual Penal
Constitucional pela Escola Paulista de Magistratura, Mestre em Direitos Coletivos e Função Social do Direito
pela Universidade de Ribeirão Preto, doutoranda em Direitos Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. (Endereço eletrônico: [email protected])
322
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I323
form of logical persuasion. Through this method, it will seek to understand the phenomenon
that is intended to study law, ie compliance with the judgment in generic Class Actions
relating to homogeneous individual interests, from arguments that the subject behaves in view
of values wishing enforce.
Key – words: Collective process; Homogeneous Individual Interests; Settlement and
Compliance with Judgment Collective.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Processo coletivo como vertente do acesso à tutela jurisdicional
2.1. A Tutela Coletiva dos Direitos Individuais Homogêneos; 3. Liquidação coletiva: objeto;
3.1. Procedimento da liquidação de sentença; 4. Legitimidade e Competência no cumprimento
da sentença Coletiva referente a direitos individuais homogêneos; 5. Cumprimento
individual; 6. Cumprimento coletivo da sentença; 7. Prescrição da Pretensão Executória e o
prazo do art. 100 do Código do Consumidor; 8. Reparação fluida; 9. Aproveitamento in
utilibus da sentença condenatória proferida em Ação Coletiva; 10. Considerações Finais; 11.
Referências Bibliográficas.
1. Introdução
A sociedade contemporânea apresenta conflitos de massa, que não conseguem ser
solucionados efetivamente com os institutos tradicionais do processo individual. É preciso
buscar um processo que possa solucionar esses conflitos. As Ações Coletivas são o reflexo
desse contexto.
As Ações Coletivas têm o intuito de tutelar direitos que atingem a sociedade como
um todo ou ainda determinados grupos devidamente organizados, desde que exista comunhão
de situação de fato e de direito, justificando o tratamento coletivo do problema. Aumenta a
cada dia a preocupação com a tutela de direitos como saúde, educação, cultura, segurança,
meio-ambiente sadio, entre outros. Direitos de natureza fluida, atribuindo-se sua titularidade a
todo e qualquer cidadão.
O caráter individual desses direitos não é afastado, mas eles transcendem a esfera do
indivíduo, o enfoque não se dá nas relações intersubjetivas, mas sim nas relações inerentes às
sociedades de massa. Daí o motivo de serem chamados direitos transindividuais,
metaindividuais, ou supraindividuais.
Neste novo contexto social, o processo civil clássico, individualista, não consegue
mais outorgar a toda a gama de novos direitos então surgidos (decorrentes da massificação da
sociedade), a efetividade pretendida.
Regras tradicionais de prescrição, decadência, competência, litispendência, coisa
julgada, legitimidade, usadas no processo individual não podem simplesmente ser aplicadas a
direitos que ultrapassam a esfera da individualidade.
323
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I324
Em razão desta dificuldade e da relevância que estes direitos atingiram na sociedade
contemporânea, passou a ordem jurídica a protegê-los, criando mecanismos processuais que
possibilitam a alguns grupos, indivíduos ou instituições a sua defesa, independente da
titularidade do direito material.
Contudo, no cenário jurídico nacional existem vários obstáculos para a efetividade
do Direito Coletivo, entre eles a dificuldade quanto à compreensão do Direito Coletivo por
parte dos operadores do Direito e a dispersão das vítimas.
Mesmo enfrentando todas essas dificuldades, ou por causa dessas dificuldades, nasce
a necessidade de investigar profundamente todas as questões do direito material e processual
coletivo para que se possa viabilizar a efetiva concretização do direito levado a juízo. O
cumprimento da sentença coletiva condenatória está nesse contexto.
Pelas próprias particularidades dos direitos e interesses transindividuais são
necessários sistemas de execução com certas especificidades, buscando a maior eficácia dos
provimentos jurisdicionais.
Busca-se com a tutela jurisdicional a realização do direito substancial, conferindo
àquele que tem direito tudo que lhe é devido, na sua perfeita medida e proporção. Quando o
provimento jurisdicional não é satisfativo, ou não é cumprido voluntariamente, cumpre à
execução efetivar esse provimento.
O microssistema de processos coletivos apresenta normas que tratam a execução
coletiva de maneira insuficiente. Mas a aplicação dos princípios que regem a execução
individual, somados aos institutos presentes na execução atual, evidenciam que é possível
solucionar as questões mais relevantes.
A execução nas Ações Coletivas, tanto para a defesa dos interesses difusos e
coletivos quanto para a defesa dos interesses individuais homogêneos segue sistemas próprios
de efetivação, para que possam conferir maior eficácia ao direito tutelado.
Por essa razão, a execução do provimento jurisdicional relativo aos direitos e
interesses coletivos lato sensu, referentes aos direitos e interesses difusos e coletivos,
distingue-se da execução relativa aos interesses individuais homogêneos.
Nesse trabalho, será dado enfoque à execução referente ao interesse individual
homogêneo, pois a sistematização adequada da execução da sentença coletiva, proferida em
sede de Ação Coletiva que tutela interesse individual homogêneo é de suma importância para
garantir a efetividade das Ações Coletivas.
Antes de passarmos propriamente ao estudo do cumprimento da sentença
condenatória genérica proferida em ação coletiva relativa à tutela de direitos individuais
324
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I325
homogêneos, faremos uma breve análise do embasamento histórico da defesa dos direitos
individuais homogêneos no ordenamento jurídico brasileiro.
2. Processo coletivo como vertente do acesso à tutela jurisdicional
O processo civil brasileiro, de concepção individualista, é apto a solucionar os
conflitos eminentemente privados, ou seja, protege os direitos subjetivos das pessoas
envolvidas no conflito. O processo coletivo precisa ir além.
O processo precisa proporcionar ao cidadão acesso à ordem jurídica justa,
respondendo às mais variadas situações. Nos conflitos de massa essa preocupação torna-se
ainda maior. A doutrina costuma justificar o processo coletivo com base nas ideias de acesso
à tutela jurisdicional e economia processual.
O processo coletivo não pode ficar restrito à proteção dos direitos subjetivos
envolvidos no conflito, deve ser capaz de proteger também bens e valores de interesse geral,
estabelecendo o dever jurídico de respeitar esses bens e valores e ainda medidas eficazes para
que essas obrigações sejam cumpridas.
Os princípios do acesso à tutela jurisdicional, da efetividade e da celeridade
processual tornam-se verdadeiros preceitos para a solução dos conflitos de massa, de forma
que o tratamento dispensado às questões coletivas, por qualquer de suas espécies, há de ser no
sentido de alcançar maior eficácia na solução dos litígios.
A efetividade do direito encontra correspondência com o princípio constitucional do
acesso à tutela jurisdicional que, na lição de Luiz Guilherme Marinoni:
(...) quer dizer acesso a um processo justo, a garantia a uma justiça imparcial, que
não só possibilite a participação efetiva e adequada das partes no processo
jurisdicional, mas que também permita a efetividade da tutela dos direitos,
consideradas as diferentes posições sociais e as específicas situações de direito
substancial. Acesso à justiça significa, ainda, acesso à informação e à orientação
jurídica e a todos os meios alternativos de composição de conflitos.1
De acordo com Luiz Rodrigues Wambier:
(...) contemporaneamente a garantia constitucional de acesso à tutela jurisdicional do
Estado significa direito de acesso à efetiva tutela jurisdicional, isto é, direito de obter
do Estado tutela jurisdicional capaz de promover a concretização de seus comandos,
do modo como previstos no plano do direito material. 2
1
MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 28
O Contempt of Court na Recente Experiência Brasileira – Anotações a respeito da necessidade premente de
se garantir efetividade às decisões judiciais. Academia Brasileira de Direito Processual Civil.
www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Luiz Rodrigues Wambier(5)-formatado.pdf. Acesso em 10.11.2009.
2
325
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I326
O acesso à tutela jurisdicional3 através do processo coletivo pode ser observado sob
várias vertentes. A primeira diz respeito à possibilidade de exame pelo Poder Judiciário de
lesões ou ameaças de lesões a direitos que não possuem titular determinado, como os
chamados direitos fundamentais de terceira geração ou dimensão.4
Sob outra vertente, como explica Gidi, examinando a experiência das class actions
no direito norte americano, as ações coletivas asseguram o acesso à tutela jurisdicional de
pretensões que, de outra forma, dificilmente chegariam ao Poder Judiciário, como os casos em
que o indivíduo sofre um prejuízo financeiro reduzido, não se sentindo estimulado, pelo
dispêndio de tempo e dinheiro, a recorrer ao Judiciário.5
A economia processual também é observada nos processos coletivos, pois embora
ele permita o acesso ao Judiciário de pretensões que, de outra forma, não seriam apreciadas,
possibilita que um grande número de ações individuais repetitivas, em torno de uma mesma
controvérsia, sejam substituídas por uma única Ação Coletiva.
2.1. A Tutela Coletiva dos Direitos Individuais Homogêneos
Os direitos individuais subjetivos podem ser defendidos conjuntamente no
tradicional processo individual. Dispõe expressamente o art. 46, inciso II do CPC que: “Duas
3
O chamado movimento de acesso à justiça foi capitaneado por Cappelletti que afirma que o sistema deve ser
aberto a todos e produzir resultados individuais e socialmente justos. CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça.
Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1998, p.8.
4
De acordo com Paulo Bonavides (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 514-531)
foi Karal Vasak, em aula inaugural em 1979, nos cursos do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em
Estrasburgo, quem bem delimitou o desenvolvimento das diversas categorias de direitos. Em um primeiro
momento têm-se os direitos fundamentais de primeira geração, que são os que dizem respeito às liberdades
públicas e aos direitos políticos, traduzindo o valor liberdade. Os de segunda geração resultam da Revolução
Industrial européia, a partir do século XIX, com o nascimento da classe operária e tinham como objetivo a
igualdade de oportunidades, valorizando a dignidade da pessoa humana, com garantia de alimentação, saúde e
amparo aos idosos, traduzindo o valor de igualdade. Os direitos de terceira geração tratam do valor fraternidade.
Originam-se da noção de um mundo globalizado (mudanças na comunidade internacional, sociedade de massa,
crescente desenvolvimento tecnológico e cientifico) objetivando o direito ao desenvolvimento, ao meioambiente, à paz, à propriedade em relação aos bens comuns da humanidade e à comunicação. Chega-se já a
mencionar os direitos de quarta geração que compreenderiam o direito à democracia, à informação e ao
pluralismo. O enfoque dado ao processo evolutivo dos direitos através das gerações encontra significações
semelhantes em diversos autores: Piovesan (PIOVESAN, Flávia Cristina. Proteção judicial contra omissões
legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1995, p. 20-44); Luiz Manoel (GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel. Curso de Direito Processual Civil
Coletivo. 2. ed. São Paulo: SRS, 2008, p. 1-3), Pedro Lenza (LENZA, Pedro. Teoria Geral da Ação Civil
Pública. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 30-31) entre outros. O assunto não será aprofundado,
pois se trata de mera introdução para situar a discussão sobre Processo Coletivo como vertente do acesso ao
provimento jurisdicional.
5
GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em uma
perspectiva comparada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 31.
326
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I327
ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente,
quando: (...) II - os direitos ou as obrigações derivarem do mesmo fundamento de fato ou de
direito”. Trata-se do litisconsórcio ativo facultativo, isto é, podem litigar em conjunto, no
mesmo processo, duas ou mais pessoas, cujos direitos decorrem de idêntico fundamento de
fato ou de direito.
Nesses casos, a cognição do juiz não se limita ao que os direitos tem em comum, ela
deve se estender também as características individuais de cada um dos direitos afirmados
pelos litigantes. A sentença será única, porem individualizada para cada um dos demandantes.
O objetivo do litisconsórcio ativo facultativo é propiciar uma prestação jurisdicional
célere e efetiva, ocorre que isso nem sempre é alcançado. Existem casos em que a apuração
do quantum debeatur, ou seja, o valor exato que cada litisconsorte ativo facultativo deve
auferir dependerá de enorme gasto de tempo e recursos que serão inúteis se a sentença
concluir que a demanda é improcedente.
O próprio CPC, no parágrafo único do art. 46, limita o litisconsórcio ativo facultativo
para casos em que o número de litigantes não comprometa a rápida solução do litígio ou
dificulte a defesa.
É muito mais eficaz partir a atividade cognitiva em fases distintas: uma reservada a
apurar o an debeatur (obrigação de indenizar), outra o quantum debeatur.
Atualmente situações em que se configura um grande número de direitos subjetivos,
que derivam do mesmo fundamento de fato ou de direito, pertencentes a um grande numero
de pessoas diferentes é muito comum. Tutelar essas situações pela defesa coletiva em regime
de litisconsórcio ativo é inviável, fazer com que cada um dos interessados demande
individualmente é outra solução ineficaz.
Já o tratamento coletivo dessas situações, através das ações coletivas, é solução
extremamente eficaz. As ações coletivas nesses casos apresentam diversas vantagens, como as
de facilitar o tratamento processual de causas pulverizadas, que seriam individualmente muito
pequenas, e a de obter a maior eficácia possível das decisões judiciais.
Os interesses individuais homogêneos são definidos pelo Código de Defesa do
Consumidor, em seu art. 81, parágrafo único, III, como aqueles decorrentes de origem
comum. Sua titularidade pertence a um número determinado ou determinável de pessoas que
tiveram seus direitos individuais violados de forma similar por práticas a que foram
submetidas.
Teori Albino Zavascki explica que:
327
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I328
A ação coletiva para tutela de direitos individuais homogêneos representa, portanto,
instrumento processual alternativo ao litisconsórcio ativo facultativo previsto no
CPC. Consiste num procedimento especial estruturado sob a fórmula da repartição
da atividade jurisdicional cognitiva em duas fases: uma, que constitui o objeto da
ação coletiva propriamente dita, na qual a cognição se limita as questões fáticas e
jurídicas que são comuns à universalidade dos direitos demandados, ou seja, ao seu
núcleo de homogeneidade; e outra, a ser promovida em uma ou mais ações
posteriores, propostas em caso de procedência da ação coletiva, em que a atividade
cognitiva é complementada mediante juízo especifico sobre as situações individuais
de cada um dos lesados (= margem de heterogeneidade).6
Na ação que trata dos direitos individuais homogêneos é possível se identificar os
titulares do direito defendido, ainda que não estejam identificados no momento da propositura
da ação. Não existe uma relação jurídica base entre os interessados dessa tutela, eles possuem
na verdade um fato ou um direito em comum. São qualificados de homogêneos apenas por
ficção jurídica, afim de que possam ser, também, defendidos em juízo por ação coletiva.7
Analisados individualmente, os conflitos, podem até se revelar pequenos, mas
agrupados possuem relevante fator social.8 A coletivização também impede a proliferação de
inúmeras ações individuais praticamente idênticas, evitando a existência de decisões
contraditórias sobre a mesma matéria.
De acordo com Kazuo Watanabe
a solução dos conflitos na dimensão molecular, como demandas coletivas, além de
permitir o acesso mais fácil à justiça, pelo seu barateamento e quebra de barreiras
socioculturais, evitará a sua banalização que decorre de sua fragmentação e conferirá
peso político mais adequado às ações destinadas à solução desses conflitos
coletivos.9
A homogeneidade e a origem comum são os requisitos para o tratamento coletivo dos
direitos individuais.
A origem comum refere-se à causa que gerou a lesão do direito a ser defendido,
podendo ser próxima ou remota. De acordo com Ada Pelegrini Grinover
é preciso observar que a origem comum (causa) pode ser próxima ou remota.
Próxima, ou imediata, como no caso da queda do avião, que vitimou diversas
pessoas; ou remota, mediata, como no caso de um dano à saúde, imputado a um
produto potencialmente nocivo, que pode ter tido como causa próxima as condições
pessoais ou o uso inadequado do produto. Quanto mais remota for a causa, menos
homogêneos serão os direitos. 10
6
ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Civil Coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 162.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo:
RT, 2003. p. 339.
8
Os interesses individuais homogêneos são considerados relevantes por si mesmos, sendo desnecessária a
comprovação desta relevância.”(REsp 797963/GO, Relator Ministra NANCY ANDRIGHI, 3º Turma, DJ de
05/03/2008 p. 1).
9
WATANABE, Kazuo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do
anteprojeto. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 787.
10
GRINOVER. Ada Pelegrini. Significado social, político e jurídico da tutela dos interesses difusos. Revista
de Processo, n.97, São Paulo, jan-mar.2000, p. 10.
7
328
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I329
A homogeneidade por sua vez refere-se à superioridade dos aspectos coletivos
comuns, sobre os aspectos individuais.
A origem comum e a homogeneidade devem existir conjuntamente para que a tutela
coletiva dos direitos individuais possua relevante caráter social, conferindo a máxima
eficiência e utilidade ao processo coletivo.
3. Liquidação coletiva: objeto
Os poucos dispositivos referentes à liquidação da sentença coletiva, expressos no
Código de Defesa do Consumidor, tratam especificamente dos direitos individuais
homogêneos, o que não impede que também sejam aplicados aos direitos difusos ou coletivos.
Na ausência de dispositivos específicos, acerca da liquidação de sentença, devem ser
aplicadas supletivamente as regras do Código de Processo Civil, no que couber e não for
incompatível com a natureza dos direitos tutelados.
Em razão disso, as alterações decorrentes da Lei 11.232/05 no processo individual
acarretam também alterações na liquidação da sentença proferida em ações coletivas.
No processo civil individual, a liquidação de sentença tem como objeto o quantum
debeatur, ou seja, a quantificação da obrigação devida pelo réu.
A ação coletiva que tutela direito individual homogêneo, se procedente, dá ensejo a
uma sentença condenatória genérica (art. 95 do CDC). Nessa ação, a cognição é limitada ao
núcleo de homogeneidade dos direitos individuais postos na demanda. Não existe
determinação do valor da prestação devida, nem a identificação dos sujeitos ativos da relação
de direito material.11
Sendo assim, a sentença genérica não tem eficácia executiva. Precisa ser liquidada12
para que possa apresentar os requisitos do título executivo, quais sejam: obrigação certa,
líquida e exigível. Essa liquidação, além de ter por objeto a definição do quantum a ser
11
ZAVASCKI, 2006, p. 195 et. seq.
Em sentido contrário Érica Barbosa e Silva, defende que: “Não resta dúvida de que o caráter genérico da
sentença, na tutela dos direitos individuais homogêneos, é um dogma que está perto de ser desmistificado. Há
uma crescente verificação de que essa sentença pode, sim, ser cumprida sem a liquidação. Isso será possível,
sobretudo, se a sentença apresentar todas as condições necessárias, pois a analise do cui debeatur, que a sentença
deixa de estabelecer, poderá ser analisado como condição da ação diretamente na fase de cumprimento, uma vez
que se refere à verificação da legitimidade ativa. Nessa sistemática, o réu não sofrerá qualquer prejuízo, pois o
devido processo legal será inteiramente observado e não lhe será mitigado quaisquer dos princípios basilares,
tais como contraditório e ampla defesa. SILVA, Érica Barbosa e. Cumprimento de Sentença em Ações
Coletivas. São Paulo: Atlas, 2009, p. 124-125.
12
329
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I330
indenizado, tem que demonstrar também a quem se deve indenizar (cui debeatur), ou seja, a
parte deverá também provar a sua condição de titular do direito.13
3.1 Procedimento da liquidação de sentença condenatória genérica que tutela o direito
individual homogêneo.
No processo individual, normalmente, basta que se apure a liquidez, pois os outros
requisitos já estão demonstrados na sentença. Em regra, falta apenas a determinação do
quantum debeatur. Já no processo coletivo em defesa dos direitos individuais homogêneos,
além do quantum debeatur, deve ser apurado também o cui debeatur como anteriormente
analisado.
Não se trata de nova espécie de liquidação, mas sim de uma adaptação do instituto
para as necessidades da tutela dos direitos individuais homogêneos.
Na tutela dos direitos individuais homogêneos, a ação de conhecimento é limitada à
homogeneidade do direito subjetivo. Essa ação de conhecimento não se preocupa com a
determinação do quantum debeatur, nem com a identificação dos lesados, o bem jurídico
tutelado é tratado de forma indivisível, aplicando-se a toda a coletividade a sentença genérica,
de maneira uniforme.
A sentença que julga procedente a ação coletiva é, nesse caso, genérica e não possui
os requisitos necessários para dar início à execução, quais sejam obrigação certa, líquida e
exigível, consubstanciada em título executivo.
Assim, será necessário que se proceda a uma complementação da fase cognitiva,
através da liquidação, para que se inicie a fase executiva.
Ada Pellegrini Grinover
14
afirma que: “é na liquidação que haverá verdadeira
transformação da condenação pelos prejuízos globalmente causados em indenizações pelos
danos individualmente sofridos.”
A matéria a ser discutida nessa liquidação deve respeitar os limites do comando
estabelecido na sentença proferida na ação de conhecimento.
Sérgio Shimura15 explica que “no julgamento da liquidação, é defeso renovar a
discussão da lide ou modificar a sentença que a julgou, incidindo o princípio da vinculação ou
fidelidade ao provimento.”
13
WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. 3 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2006, p.373.
14
GRINOVER, Ada Pellegrini. Da defesa do consumidor em juízo. In: ____ et al. Código brasileiro de defesa
do consumidor. 7. ed. Rev. ampl. atual. São Paulo: Forense Universitária, 2005, p. 886.
330
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I331
A liquidação das sentenças coletivas que tutelam direitos individuais homogêneos
será necessariamente realizada por artigos em virtude da necessidade de provar fatos novos 16,
como exemplo, a ocorrência do dano individual bem como a sua extensão. Cumpre ressaltar
que as respectivas liquidações individuais deverão ser realizadas com a devida e total
observância às garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.
Analisando a liquidação de sentença prevista no artigo 97, do CDC, Cândido Rangel
Dinamarco explica que a pretensão ali deduzida é:
mais complexa que aquela ordinariamente deduzida em sede de processo
liquidatório de cunho tradicional. Correspondentemente a sentença que julga o
mérito desse processo de ‘liquidação’, acolhendo a demanda do ‘liquidante’, tem
uma eficácia mais ampla: declara a condição de lesado e o quantum debeatur, não
somente este como se dá no sistema do CPC. (...) E o objeto do conhecimento do
juiz incluirá fatos e alegações referentes ao dano efetivamente sofrido pelo
‘liquidante’, relação de causalidade com o fato intrinsecamente danoso afirmado na
sentença genérica prevista no art. 95 etc., além dos fatos e alegações pertinentes ao
dimensionamento do dano sofrido (aqui, verdadeira liquidação). 17
Nesse caso será necessário provar fato novo, consistente na demonstração, por cada
uma das vitimas, ou seus sucessores, do seu dano individual, do nexo causal entre este e
aquele globalmente considerado até então e, ainda, da expressão econômica dos respectivos
prejuízos alegados.
De acordo com Paulo Henrique dos Santos Lucon e Érica Barbosa e Silva:
essa prova, porém, jamais poderá alterar aquilo que foi decidido na sentença
condenatória genérica, que reconhece a potencialidade lesiva do dano em
razão do ato praticado pelo demandado. Por isso, mesmo havendo fatos novos a
serem provados no processo de liquidação por artigos, esses devem ser
relacionados com o dano previamente estabelecido na sentença, ou seja, é
indispensável a prova do nexo de causalidade entre o fato novo e o conteúdo do
direito obrigacional declarado na sentença. 18
Em sentido contrário, afirmando que em algumas situações poderá ser realizada a
liquidação por outra modalidade, desde que estejam presentes condições para isso, temos o
15
SHIMURA, Sérgio. Tutela coletiva e sua efetividade. São Paulo: Método, 2006, p. 152.
Segundo Ricardo de Barros Leonel: “a sentença condenatória nos interesses individuais homogêneos fixa,
genericamente, a responsabilidade do réu pelos danos causados à coletividade que se amolde às circunstâncias de
fato deduzidas na demanda, i.é., o dever de indenizar, tornando imprescindível a liquidação por artigos. Nesta, o
lesado deverá comprovar a ocorrência do dano individual, o nexo causal com a situação ou conduta reconhecida
na decisão, e o montante do respectivo prejuízo”. LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.377.
17
DINAMARCO, Cândido Rangel . DINAMARCO, Cândido Rangel . As três figuras da liquidação da sentença..
In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Org.). Repertório de Jurisprudência e doutrina: atualidades sobre a
liquidação de sentença. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997, v. p. 26-29.
18
LUCON, Paulo Henrique dos Santos e SILVA, Érica Barbosa . Análise crítica da liquidação e execução na
tutela coletiva. In: Tutela Coletiva: 20 anos da Lei da Ação civil pública e do Fundo de defesa dos
direitos difusos. 15 anos do Código de defesa do consumidor. Paulo Henrique dos Santos Lucon (coord). São
Paulo: Atlas, 2006.p. 176.
16
331
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I332
seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça19 “(...) A leitura atenta do art. 98, CDC,
revela que a sentença proferida em ação coletiva sempre é ilíquida. Todavia, o CDC não
determinou um procedimento específico de liquidação. Assim, na lei, nada há que impeça a
liquidação por simples cálculos. Se é certo que muitas sentenças coletivas exigem processo de
liquidação em que se prove a condição de vítima, como é o caso de acidentes ambientais, há
outras hipóteses em que o procedimento prévio de liquidação revela-se desnecessário, como
se verifica no processo sob julgamento. Os representados pelo IDEC nesta execução
apresentaram documentos que indicam o número e agência da respectiva conta, bem como o
valor em depósito em janeiro de 89. Daí, para que se chegue ao valor devido basta uma
simples operação matemática com planilha de cálculo. Certamente, a situação poderá ser
diversa se outros beneficiados pela sentença não puderem comprovar sua condição de vítima
com extratos ou documentos. Diante da diversidade de situações fáticas postas no processo
coletivo, não se pode ler a lei de forma restritiva, como se ela estivesse a exigir sempre a
liquidação por artigos.”
Com a devida vênia discordamos desse entendimento. As vitimas ou sucessores na
liquidação, deverão provar fato novo consistente em demonstrar o nexo de causalidade entre o
dano globalmente considerado pela sentença e o seu individual. Devem ainda demonstrar o
montante almejado. Isso só será possível através de uma instrução probatória nos moldes da
determinada pelo CPC na liquidação por artigos.20
De acordo com o Código de Processo Civil em seu art. 475-E, quando, para
determinar o valor da condenação, houver necessidade de alegar e provar fato novo, a
liquidação será feita por artigos.
Dispõe o art. 475-F do CPC “na liquidação por artigos, observar-se-á, no que couber,
o procedimento comum (art. 272)”. Por sua vez, dispõe o art. 272 do mesmo diploma legal
que o procedimento comum é o ordinário ou sumário. Para a definição de um ou outro, serão
considerados os pressupostos apresentados à data da liquidação.21
Em todas as espécies de liquidação do direito vigente aplicam-se as regras do
processo civil comum, tais como a necessidade de iniciativa pelo sujeito legitimado e de
intimação do
adversário,
observância
do
procedimento
adequado,
princípio
do
contraditório, direito à prova, recorribilidade das decisões em geral, etc.
19
STJ, REsp 880385 / SP, rel., Min. Nancy Andrighi, DJ 02/09/2008.
WAMBIER, Luiz Rodrigues. Liquidação da Sentença Civil Individual e Coletiva. 4 ed. Reformulada,
atualizada e ampliada da obra Sentença Civil: Liquidação e Cumprimento. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2009, p. 317.
21
ZAVASCKI, 2006, p. 197 et. seq.
20
332
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I333
Desse modo, também nas liquidações individuais da sentença coletiva que tutela
direitos individuais homogêneos, deverá ser assegurada ao réu a ampla e efetiva participação
nesta fase do processo. Iniciada a liquidação pelo respectivo interessado, o réu deverá ser
dela regularmente citado, a fim de que possa contrapor-se à pretensão e às provas ali
deduzidas.
Portanto, proposta a demanda de liquidação, poderá o demandado impugnar as
alegações apresentadas em sua totalidade, isto é, a existência do dano individualmente
suportado, o montante demonstrado pelo
correspondente à prestação
contida
na
liquidante e a titularidade do direito
sentença
genérica. A cognição será ampla e
exauriente,22 não podendo, todavia, discutir os fatos decididos na ação coletiva, que já
constituem coisa julgada.
Não existe consenso na doutrina brasileira, acerca da natureza jurídica da decisão
interlocutória (sentença para alguns), que julga a liquidação. Duas são as principais opiniões
acerca do tema.
A primeira corrente, baseada nos ensinamentos de Liebman,23 afirma que se trata de
sentença declaratória, pois não altera a situação jurídica das partes. De acordo com
Wambier:24 “A ação com pedido condenatório terá como fim a obtenção de sentença que
determine a responsabilidade do réu pelo dano causado (ou seja, o an debeatur);
diferentemente, a liquidação terá por objeto a apuração do quantum debeatur. Na primeira,
será proferida sentença condenatória; na segunda, sentença declaratória.”
Acerca do tema, explica Teori Albino Zavascki25:
Não há duvida de que, olhada em sua funcionalidade, o provimento que define a
liquidação é de natureza integrativa. Integrar significa fazer parte, ser complemento,
e essa sua destinação é, certamente, inquestionável. Mas, como em qualquer ser
composto, a natureza integrativa não é característica exclusiva de uma das partes,
mas de cada uma das partes que compõe o todo. Sob este aspecto, a decisão sobre a
liquidação é tão integrativa quanto a proferida na ação primitivamente ajuizada.
Ambas são partes integrantes do titulo executivo. Por outro lado, apurados, na
sentença liquidanda, os elementos essenciais da norma jurídica individualizada, não
há negar-se a natureza preponderantemente declaratória da decisão posterior que, (a)
com eficácia ex tunc (e não apenas ex nunc, como é regra nas sentenças
constitutiva), (b) destina-se a, simplesmente, identificar e precisar os seus elementos
ainda faltantes para que a definição resulte completa, sem comprometer, de forma
alguma, o conteúdo do que já foi decidido (CPC, art. 475-G). Assim, embora
22
Rodolfo Camargo Mancuso explica que “tratando-se de um incidente processual, a liquidação há que
comportar um (sumário) contraditório, podendo a contraparte alegar, v.g., inconsistência ou excesso de algum
dos quesitos articulados, valendo observar que essa fase processual deve seguir o procedimento comum
(art. 475-F) vale dizer: ordinário ou sumário, conforme o caso (art. 272).” (Manual do Consumidor em
Juízo, 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 244).
23
LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de Execução. São Paulo: Saraiva, 3 ed. 1968, p. 56.
24
WAMBIER, 2006, p. 110 et. seq.
25
ZAVASCKI, 2006, p. 196-197 et. seq.
333
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I334
funcionalmente constitutiva integrativa, a sentença que julga a ação de liquidação
tem, substancialmente, natureza declaratória.
Outra, sustentada por sua vez nas lições de Pontes de Miranda, afirma ser sentença
constitutiva integrativa,26 pois mais do que declarar, a sentença complementa, através da
integração com a sentença condenatória, o titulo executivo.27
De acordo com Erica Barbosa e Silva:28
Sobre a natureza da decisão que encerra a liquidação, analisando o processo
coletivo, especificamente a defesa dos direitos individuais homogêneos, não resta
duvida de que essa decisão tem natureza constitutiva-integrativa, pois se destina a
agregar elementos da obrigação que posteriormente poderá ser executada. A
liquidação individual deverá complementar o titulo executivo, ou seja, a sentença
genérica.
De fato o provimento que define a liquidação de sentença é de natureza integrativa,
mas destina-se simplesmente a identificar, precisar os elementos da sentença condenatória
genérica, sem discutir de novo a lide ou modificar a sentença que a julgou (art. 475-G do
CPC). Sendo assim, apesar de ser funcionalmente constitutiva integrativa, a sentença que
julga a liquidação tem substancialmente natureza declaratória.29
4. Legitimidade e Competência no cumprimento da sentença Coletiva referente a
direitos individuais homogêneos
De acordo com o art. 97 do Código de Defesa do Consumidor, a liquidação e a
execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como
pelos legitimados de que trata o art. 82.
Ocorre que a indivisibilidade do objeto da fase de cognição da Ação Coletiva que
tutela direito individual homogêneo se perde no cumprimento da sentença genérica, dando
lugar à pretensão individual. 30
Em sua fase cognitiva, essa modalidade de ação coletiva preocupa-se com o dano
provocado indistintamente. Já na fase de cumprimento da sentença a preocupação é com o
dano individual sofrido. Diante desse caráter individual do cumprimento da sentença, os
26
PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Comentários ao Código de Processo Civil. tomo IX, p. 506, São
Paulo: Forense, 1976. p. 506; ASSIS, Araken de. Manual de Execução. 12 ed. rev., atual., ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2009. p. 326.
27
ZAVASCKI, op. cit., p. 196.
28
SILVA, Érica Barbosa e. Cumprimento de Sentença em Ações Coletivas. São Paulo: Atlas, 2009, p. 122.
29
ZAVASCKI, 2006, p; 196 et. seq.; WAMBIER, 2009, p. 52 et. seq.
30
SILVA, 2009, p. 105 et. seq.
334
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I335
legitimados do art. 82, que estão autorizados a promover a liquidação e execução da sentença,
encontram dificuldades.
Existe uma preferência pelo cumprimento individual da sentença coletiva. A
legitimidade coletiva é permitida de forma subsidiária.
Arruda Alvim31 explica que a legitimidade dos entes indicados no art. 82 do CDC é
subsidiária, pois a vitima e seus sucessores possuem preferência para iniciar a liquidação. Os
demais entes devem obedecer a regra do art. 100 do CDC.
Luiz Rodrigues Wambier32 explica que: “segundo dispõe o art. 100 do Código de
Defesa do Consumidor, os legitimados do art. 82 somente poderão propor a liquidação e a
execução da sentença condenatória se houver decorrido o prazo de um ano sem que tenha
havido qualquer iniciativa dos interessados”. 33
De acordo com o art. 100 do CDC, não havendo a habilitação dos interessados
(vitimas ou sucessores), em número compatível com a gravidade do dano, no prazo de um
ano, a legitimidade para liquidação e/ou a execução da sentença será outorgada aos entes
legitimados do art. 82 do CDC, cujo valor arrecadado será revertido ao Fundo previsto na Lei
da Ação Civil Pública.34 35
Esse valor deve corresponder ao dano global ou coletivo e nos termos do parágrafo
único do art. 100 do CDC, deve integrar um fundo previsto pelo art. 13 da Lei da Ação Civil
Pública, chamado Fundo de Defesa dos Direitos Difusos.
De acordo com o art.1º, § 1º da Lei 9.008/95, que cria, no âmbito da estrutura
organizacional do Ministério da Justiça, o Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa de
Direitos Difusos (CFDD), o Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD), criado pela Lei nº
7.347, de 24 de julho de 1985, tem por finalidade a reparação dos danos causados ao meio
ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico,
paisagístico, por infração à ordem econômica e a outros interesses difusos e coletivos.
31
ALVIM, Arruda, ALVIM, Thereza, ALVIM, Eduardo Arruda, MARINS, James. Código do Consumidor
Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 435.
32
WAMBIER, 2009, p. 312 et. seq.
33
No mesmo sentido: PIZZOL, Patrícia Miranda. Liquidação nas Ações Coletivas. São Paulo: Lejus, 1998, p.
184.
34
Luiz Manoel Gomes Jr., Curso de Direito Processual Civil Coletivo, 2. Ed. São Paulo: SRS editora, 2008. p.
361.
35
“A reversão do produto da indenização para o fundo criado pela Lei n.º 7.347/85 é possível, desde que,
decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano,
tenha a entidade associativa de defesa dos consumidores promovido a liquidação e execução da indenização
devida (art. 100 do CDC). Sendo o pedido genérico, a condenação não se particulariza em valores líquidos, razão
pela qual é preciso proceder a sua liquidação e, posteriormente, à sua execução.” (STJ, REsp 761.114/RS, rel.
Min. Nancy Andrighi, j. 03.08.2006, DJ 14.08.2006, p. 280).
335
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I336
Os recursos revertidos ao Fundo podem ser usados para recuperação de bens,
promoção de eventos educativos e científicos, edição de material informativo relacionado
com a lesão, bem como na modernização administrativa dos órgãos públicos responsáveis
pela execução da política relacionada com a defesa do interesse envolvido.
Através da analise do art. 100 do CDC pode-se afirmar que os direitos de natureza
individual possuem primazia sobre os coletivos. Corroborando esse entendimento, o art. 99 do
mesmo diploma legal dispõe que em caso de concurso de créditos decorrentes de condenação
prevista na Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, e de indenizações pelos prejuízos individuais
resultantes do mesmo evento danoso, estas terão preferência no pagamento.
O art. 99 do CDC demonstra ainda a possibilidade de ocorrer, ao mesmo tempo,
liquidação coletiva e liquidações individuais em relação à mesma sentença coletiva
genérica.36
Assim, quando uma mesma ação tutelar mais de uma espécie de direito
transindividual, como exemplo, direitos difusos e individuais homogêneos, será permitido aos
indivíduos que liquidem a sentença na parte que lhes caiba.
Embora a lei não traga um dispositivo expresso a esse respeito, pode-se concluir
que é competente para tal liquidação, tanto o mesmo juízo em que tramitou a ação de
conhecimento, o juízo do local onde se encontram bens sujeitos à expropriação ou pelo juízo
do atual domicílio do respectivo beneficiário, para realizar a sua liquidação individual.37
Ainda, a teor do disposto no parágrafo 2°, artigo 98, do CDC, a execução da sentença
coletiva, quando feita coletivamente, somente poderá ser promovida perante o mesmo juízo
em que tramitou a ação de conhecimento, ressalvadas as possibilidades permitidas pelo art.
475-P do CPC. 38 39
36
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO COLETIVA. EXECUÇÕES INDIVIDUAIS E COLETIVAS.
LITISPENDÊNCIA INEXISTENTE. 1.Não se configura litispendência quando o beneficiário de ação coletiva
busca executar individualmente a sentença da ação principal, mesmo já havendo execução pelo ente sindical que
encabeçara a ação. Inteligência do artigo 219 do Código de Processo Civil e 97 e 98 do Código de Defesa do
Consumidor. (STJ, REsp 995932 / RS, rel. Min. Castro Meira, DJ 20/05/2008).
37
De acordo com o entendimento do STJ: “Considerando o princípio da instrumentalidade das formas e do
amplo acesso à Justiça, desponta como um consectário natural dessa eficácia territorial a possibilidade de os
agravados, consumidores titulares de direitos individuais homogêneos, beneficiários do título executivo havido
na Ação Civil Pública, promoverem a liquidação e a execução individual desse título no foro da comarca de seu
domicílio. Não há necessidade, pois, que as execuções individuais sejam propostas no Juízo ao qual distribuída a
ação coletiva.”(STJ, AgRg no REsp 755429 / PR rel. Min. Sidnei Beneti, DJ 17.12.2009 ).
38
SILVA, 2009, p. 112 et. seq.
39
Em sentido contrário “COMPETÊNCIA – EXECUÇÃO COLETIVA AJUIZADA POR ASSOCIAÇÃO DE
PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR LEGITIMADA NO ART. 82 DO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR, PARA LIQUIDAR DANOS INDIVIDUAIS – Extração de carta de sentença com vistas a
iniciar a execução provisória do julgado – Omissão legal quanto ao foro competente que deve ser suprida pela
analogia com a regra do inciso I parágrafo 2° do artigo 98 do Código de Defesa do Consumidor e pela aplicação
dos princípios gerais do direito, no caso o principio da facilitação de defesa do consumidor em juízo – Art. 6°,
inc. VIII da Lei 8078/90 – Possibilidade de ajuizamento no foro de domicilio da referida entidade – Recurso
336
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I337
5. Cumprimento individual
O Cumprimento individual da sentença condenatória genérica, na tutela dos direitos
individuais homogêneos, será dividido em duas fases: liquidação, destinada a declarar e
complementar a atividade cognitiva, e execução, em que serão realizadas atividades práticas
destinadas à satisfação do direito.
Na liquidação individual, o direito defendido não será tratado como um todo, e sim
como interesses individuais, que poderão ou não ser agrupados. Cada lesado deverá provar a
existência de seu dano pessoal e seu nexo causal com o dano globalmente causado, e ainda,
buscar a fixação do quantum debeatur.
A liquidação da sentença proferida em ação coletiva que tutela direitos individuais
homogêneos segue o disposto no art. 97 do CDC e, subsidiariamente, os arts. 475-A a 475-H
do CPC. Ocorre que alguns dispositivos precisam ser adaptados para as necessidades do
processo coletivo.
No CPC originariamente, a liquidação se realizava em processo de conhecimento
autônomo, distinto do processo de conhecimento e do processo de execução. Como foi
observado, as recentes reformas processuais unificaram, em um mesmo processo, as ações de
conhecimento, liquidação e execução.
Atualmente, de acordo com o art. 475-A, parágrafo primeiro do CPC, a liquidação
segue por simples requerimento do credor. Desse requerimento o devedor será intimado, na
pessoa de seu advogado.
Ocorre que, com relação ao cumprimento individual da sentença proferida na tutela
dos direitos individuais homogêneos, existe a necessidade de citação do devedor, pois não
existe uma relação jurídica previamente estabelecida. A sentença será transportada do
processo de conhecimento para ser liquidada e executada por cada um dos lesados ou seus
sucessores.
Sérgio Shimura40 afirma que no cumprimento da sentença condenatória originária de
Ação Coletiva que tenha por finalidade o ressarcimento de danos a direitos individuais
homogêneos, se tem verdadeiro processo autônomo de execução de sentença.41
provido para esse fim” (TJSP – Agravo de Instrumento n° 7010344-7 – São Paulo - 23° Câmara de Direito
Privado – 5/10/05 – Rel. Dês. Rizzato Nunes – m.v.).
40
SHIMURA, 2006, p. 166 et. seq.
337
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I338
Basta que se aplique nesse caso, por analogia, o disposto no artigo 475-N, parágrafo
único do CPC. O ajuizamento da liquidação de sentença condenatória originária de Ação
Coletiva que tenha por finalidade o ressarcimento de danos a direitos individuais homogêneos
deverá ser realizado por petição inicial, observando todos os pressupostos processuais e
condições da ação, incluindo a ordem de citação do devedor e a juntada do título executivo
que informa o pedido de liquidação.42
Nesse caso poderá também ser aplicada a multa do art. 475-J do CPC sobre a parte
incontroversa do cálculo apresentado pelo liquidante.43
A multa do art. 475-J do CPC (10% sobre o valor da condenação) não poder ser
aplicada de maneira indiscriminada. Feita a liquidação, o credor deverá requerer ao juízo
que dê ciência ao devedor sobre o montante apurado, consoante memória de cálculo
discriminada e atualizada. O réu será intimado para realizar o pagamento no prazo de 15 dias,
compreendendo-se o termo inicial do referido prazo o primeiro dia útil posterior à data
da publicação de intimação do devedor na pessoa de seu advogado.
Cumpre ressaltar ainda que a liquidação da sentença pode ser iniciada mesmo na
pendência de recurso, independentemente do efeito em que foi recebido. De acordo com o art.
475-A § 2o do CPC, a liquidação poderá ser requerida na pendência de recurso, processandose em autos apartados, no juízo de origem, cumprindo ao liquidante instruir o pedido com
cópias das peças processuais pertinentes.44
O recurso a ser interposto da decisão de liquidação de sentença é o agravo de
instrumento, nos termos do art. 475-H do CPC.
O microssistema de processo coletivo não traz considerações especificas sobre a
execução individual na tutela dos direitos individuais homogêneos. Portanto, pela
subsidiariedade existente, será aplicado o Código de Processo Civil, com as alterações
introduzidas pela Lei 11.232/2005.
A execução será mera fase procedimental, já que a relação jurídica foi instaurada
pela liquidação. O devedor não será citado, basta sua intimação.
O credor deve requerer o cumprimento da sentença.
O ato inicial da fase de cumprimento da sentença que condena o devedor a pagar
quantia certa (pois já houve sua prévia liquidação), é a apresentação de um memorial de
41
Em sentido contrário Luiz Manoel Gomes Junior afirmando que na verdade trata-se de cumprimento de
sentença, pois existe prévio titulo judicial e como observado anteriormente, as alterações introduzidas pela Lei
11.232/2005 devem ser observadas também no processo coletivo. GOMES JR, 2008, p. 368 et. seq.
42
SILVA, 2009, p. 124 et. seq.
43
Ibid., p. 125.
44
SILVA, 2009, p. 125 et. seq.
338
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I339
cálculos, através de uma petição dirigida ao próprio juízo da liquidação, atualizando o valor
da condenação liquidada até a data presente; única forma possível de se determinar o valor
exato da obrigação nesse momento processual.
Uma vez apresentado o descritivo de cálculo nos autos, o devedor demandado deverá
ser intimado, na pessoa de seu advogado para que tome conhecimento de quanto é o valor
atualizado de sua obrigação de pagar quantia até aquele momento, dando-lhe ciência de
quanto deverá pagar para que se considere satisfeito o direito do credor.
Assim, avisado de que o cumprimento da sentença foi requerido pelo credor, o
devedor deve voluntariamente pagar o valor atualizado de sua obrigação. Não procedendo ao
pagamento voluntário em 15 (quinze) dias, o montante da condenação será acrescido de multa
no percentual de dez por cento de acordo com o art. 475-J do CPC.
O credor, ainda, em seu requerimento de cumprimento da sentença pode indicar bens
à penhora, conforme o art. 475-J, parágrafo 3° do CPC, que observará a ordem preferencial do
art. 655 do mesmo diploma legal.
Na realização da penhora e avaliação, o próprio oficial deve avaliar o bem, a não ser
que não tenha conhecimentos especializados para tanto. Nesse caso, o juiz nomeará avaliador
“assinando-lhe breve prazo para a entrega do laudo” (art. 475-J, parágrafo 2° do CPC).
Feita a penhora e a avaliação, o devedor será intimado na pessoa de seu advogado, 45
por meio da imprensa oficial, para oferecer impugnação, no prazo de 15 (quinze) dias.
Em seguida, o autor seguirá com as medidas sub-rogatórias de costume. Aplicam-se
ao cumprimento da sentença as regras do Livro II do CPC atinentes a arrematação, alienação
por iniciativa particular, adjudicação, usufruto judicial, entrega de dinheiro ao credor, remição
da execução, suspensão e extinção da execução.46
As decisões proferidas na fase de cumprimento da sentença são decisões
interlocutórias, portanto, agraváveis. A decisão que põe fim ao procedimento de cumprimento
da sentença, nesse caso ao processo como um todo é sentença, portanto cabe apelação.47
6. Cumprimento coletivo da sentença
45
A intimação feita na pessoa do advogado do devedor depende logicamente de existir um advogado
representando o réu. Como o cumprimento da sentença é fase subseqüente do processo cognitivo e do
liquidatório é normal que o devedor esteja representado por um advogado. Se o advogado não estiver presente
nesse momento por qualquer motivo (renuncia de mandato após fase cognitiva, processo que correu à revelia do
devedor, entre outros), o réu pode ser intimado pessoalmente ou através de representante legal.
46
WAMBIER, 2009, p. 311 et. seq.
47
Ibid., p. 312.
339
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I340
O cumprimento da sentença proferida em ação coletiva que tutela direito individual
homogêneo pode ser feito de maneira coletiva em duas hipóteses.
Na primeira hipótese, de acordo com o art. 98 do CDC a execução poderá ser
coletiva através do agrupamento das execuções individuais. Será promovida pelos legitimados
do art. 82 do mesmo diploma, abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiveram sido
fixadas em sentença de liquidação, sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções.
De acordo com o parágrafo primeiro do art. 98 a execução coletiva far-se-á com base
em certidão das sentenças de liquidação, da qual deverá constar a ocorrência ou não do
trânsito em julgado. A sentença genérica também deverá constar na execução coletiva.
Essa solução não é a mais adequada, pois nessa fase processual, a homogeneidade
que permitia a defesa coletiva se perde, acarretando a ilegitimidade para alguns legitimados
do art. 82 do CDC. Serão legitimados para ingressar nessa modalidade de execução coletiva
apenas as associações e os sindicatos.48
Analisando o tema, Érica Barbosa e Silva49 aponta outra inconveniência:
(...) a partir da liquidação, o autor individualmente poderá prosseguir com a
execução como mera fase processual, sem necessidade de nova instauração da
relação jurídica, o que não acontecerá se houver a junção das liquidações individuais
para a propositura de uma execução coletiva. Se assim for, deverá haver interposição
dessa execução por petição inicial e formação de nova relação jurídica, inclusive
com outra citação do réu.
Por essas razões, mesmo existindo o permissivo legal para proceder a execução
coletiva por agrupamento das liquidações individuais, pensamos não ser essa a melhor
solução.
Na segunda hipótese tem-se a liquidação e execução coletiva do art. 100 do CDC e
do art. 15 da Lei 7.347/85. Nessa modalidade de cumprimento coletivo da sentença será
levado em consideração o dano globalmente causado e o produto da indenização será
revertido para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos.
Como já mencionado, depois de ser proferida a sentença genérica condenatória na
Ação Coletiva que tutela interesse individual homogêneo, a homogeneidade se perde. Perdese o interesse social de agrupar as demandas individuais.
Ocorre que mesmo nessa fase processual, o interesse individual pode ser pequeno
frente às dificuldades processuais que serão enfrentadas para se efetivar o direito assegurado
pela sentença coletiva, desestimulando o cumprimento individual da mesma.
48
49
SILVA, 2009, p. 127 et. seq.
Ibid. p. 127.
340
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I341
Nesse caso, o ordenamento jurídico brasileiro garante a execução coletiva. De acordo
com o art. 100 do CDC “decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em
número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a
liquidação e execução da indenização devida.” Por sua vez o art. 15 da Lei 7.347/85 dispõe
que “Decorridos sessenta dias do trânsito em julgado da sentença condenatória, sem que a
associação autora lhe promova a execução, deverá fazê-lo o Ministério Público, facultada
igual iniciativa aos demais legitimados.”
Essa modalidade de execução coletiva só terá lugar caso não haja habilitações
individuais compatíveis com a extensão do dano, após o prazo de 01 (um) ano, se a
condenação coletiva decorreu de ação proposta com fundamento no Código de Defesa do
Consumidor. Se, no entanto, a condenação coletiva decorreu de ação proposta com
fundamento na Lei da Ação Civil Pública basta respeitar o prazo de 60 dias após o transito em
julgado da sentença coletiva condenatória. O produto da indenização será revertido ao Fundo
de Defesa dos Direitos Difusos.50
7. Prescrição da Pretensão
Executória e o prazo do art. 100 do Código do
Consumidor
Como já analisado anteriormente, de acordo com o art. 100 do CDC, não havendo a
habilitação das vitimas ou sucessores em número compatível com a gravidade do dano,
poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida.
Essa legitimidade é subsidiária.
No caso dos direitos individuais homogêneos, o cumprimento individual da sentença
coletiva, possui preferência em relação ao cumprimento coletivo, preferência determinada
expressamente pelo art. 99 do CDC.
Assim, no cumprimento individual os autores possuem total legitimidade sobre o
direito material pleiteado. Como nessa fase se perde a homogeneidade existente na fase
cognitiva, a indisponibilidade do direito também se perde. Portanto, podemos concluir que
poderá ocorrer prescrição da pretensão individual executória na tutela dos direitos individuais
homogêneos, que devem ser computados de acordo com o direito material.51
50
Ressalta Wambier que “(...) é preciso destacar que, se a condenação coletiva decorrer de ação proposta não
com fundamento no Código de Defesa do Consumidor, mas com base na Lei da Ação Civil Pública, não há falar
no prazo de um ano, porque esta ultima norma contém disciplina expressa sobre a liquidação, que não exige o
decurso desse prazo, como o exige o art. 100 do CDC. WAMBIER, 2009, p. 315 et. seq.
51
GRINOVER, 2005, p. 886 et. seq.
341
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I342
Sobre o prazo prescricional da execução referente à execução coletiva do art. 100 do
CDC há grande divergência na doutrina. O tema não é tratado de forma explicita pelo
microssistema de processos coletivos, que apresenta somente prazos específicos nos artigos
26 e 27 do Código de Defesa do Consumidor referente à caducidade dos vícios aparentes ou
de difícil constatação e da prescrição da pretensão à reparação pelos danos causados por fato
do produto ou do serviço.
Em uma primeira analise poderia se afirmar que com relação à execução coletiva
permitida pelo art. 100 do CDC, não há que se falar em prescrição da pretensão coletiva
executória na tutela dos direitos individuais homogêneos.
A execução coletiva do art. 100 tem cabimento porque foi elaborada para proveito
da sociedade. O montante da indenização é arbitrado levando em consideração o dano
causado globalmente e a punição ao agente causador do dano. Esse montante será revertido
para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos.
Somente os legitimados do art. 82, que não são os titulares do direito material,
poderão ingressar com essa execução. Portanto, diante da indisponibilidade do interesse
material deduzido pelos legitimados coletivos, não incidiria a prescrição sobre a pretensão
executória desses direitos.
Nesse sentido, Elton Venturi afirma que: “ação executiva da obrigação decorrente de
violação a direitos metaindividuais não prescreve, uma vez que a obrigação de indenizar as
lesões ocasionadas a direito transindividuais, estampada já em título executivo, para além de
ser indisponível, possui a via especial do processo coletivo para viabilizá-la”.52
Ocorre que a prescrição é a perda da pretensão jurídica relativa ao direito pelo
decurso de tempo, é uma regra imposta pela necessidade de segurança nas relações jurídicas.
Sua principal função é preservar a garantia e a estabilidade das relações jurídicas.
Portanto, mesmo na execução coletiva do art. 100 do CDC incide a prescrição da
pretensão executória, que deve seguir o prazo legalmente previsto para a prescrição do direito
material. 53
Qual seria o termo a quo para a contagem do prazo de um ano para a liquidação e
execução coletiva?
52
VENTURI, Elton. Execução da Tutela coletiva. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 108.
Execução de sentença. Improcedência da alegação de prescrição.1. Nos termos da Súmula 150/STF, a ação de
execução prescreve no mesmo prazo da ação de conhecimento. Precedentes. 2. Prescreve em 5 (cinco) anos a
ação civil pública ajuizada contra a Fazenda Pública, e a contagem do prazo prescricional da execução inicia-se
com o trânsito em julgado da sentença. (STJ, AgRg no REsp 1070595 / RS, rel. Min Ministro Nilson Naves, DJ
25/09/2008).
53
342
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I343
Na Ação Civil Pública há disposição legal expressa (art. 15 da Lei 7.347/85) que
determina ser o transito em julgado o termo inicial para a contagem do prazo de um ano, o
que não faz sentido, pois, se existir recurso contra a sentença proferida em sede de Ação Civil
Pública, esse não possuirá efeito suspensivo.
De acordo com Luiz Rodrigues Wambier,54 invocando a regra do parágrafo 1° do art.
98 do CDC e Luiz Manoel Gomes Junior55 o prazo de um ano tem início com a publicação da
sentença.
O prazo de um ano do art. 100 do CDC não tem natureza decadencial ou
prescricional, pois esses devem ser computados de acordo com o direito material.56
Cumpre ressaltar que mesmo que decorrido o prazo de um ano previsto no art. 100
do CDC, as vítimas ou sucessores ainda poderão se habilitar na liquidação.57 O prazo de um
ano do art. 100 não pode ser interpretado como prazo preclusivo para a habilitação dos
interessados individuais. O prazo preclusivo para a reparação individual será aquele previsto
no direito material para a prescrição do direito, ou da pretensão material. 58
8. Reparação fluida
O artigo 100 do CDC, dispõe que decorrido o prazo de 01 (um) ano sem habilitação
de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os
legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução coletiva da indenização global
devida, sendo que, de acordo com o parágrafo único deste mesmo artigo, o produto da
indenização devida reverterá ao Fundo criado pela Lei 7.347/85, a lei da Ação Civil Pública.
O Fundo de Defesa dos Direitos Difusos – FDD, foi criado pela Lei 7.347/85,
regulamentado pelo Decreto n. 92.302 de 16/01/1986, Decreto n. 96.617 de 31/08/1988 e
Decreto n. 407 de 27/12/1991. Atualmente encontra-se regulamentado pelo Decreto n. 1.306
de 09/11/1994 e pela Lei 9.008/95.
Esse Fundo, dividido em federal e estaduais, tem por finalidade a reparação dos
danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético,
histórico, turístico, paisagístico, por infração à ordem econômica e a outros interesses difusos
e coletivos, de acordo com o parágrafo 1° do art. 1° da Lei 9.008/95.
54
WAMBIER, 2006, p. 378 et. seq.
GOMES JR, 2008, p. 362 et. seq.
56
GOMES JR, 2008. p. 362.et. seq.
57
WAMBIER, 2006, p. 378 et. seq.
58
GRINOVER, 2005, p. 906-907 et. seq.
55
343
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I344
De acordo ainda com parágrafo 2°, art. 1° da Lei 9.008/95, constituem recursos do
Fundo o produto da arrecadação, entre outras, as condenações judiciais de que tratam os arts.
11 e 13 da Lei 7.347/85 e os valores relativos ao produto de indenização prevista no art. 100,
parágrafo único, do CDC.
Trata-se de uma indenização “residual”, que pode ser pleiteada por qualquer dos
entes legitimados do art. 82, do CDC, somente após decorrido o prazo de um ano - a contar
do trânsito em julgado da respectiva decisão condenatória genérica - e desde que as
vítimas ou seus sucessores não tenham promovido a sua liquidação e execução, ou não
tenha havido a habilitação dos respectivos interessados em número compatível com a
gravidade do dano.
Desse modo, mesmo que o titular do direito material não pleiteie o que lhe é devido,
o sistema responsabiliza o causador do dano e compensa a sociedade lesada, mesmo que de
forma indireta, aplicando essa indenização para compensar o dano sofrido, educar a sociedade
ou até mesmo modernizar e aparelhar órgãos públicos destinados a fiscalizar e conservar o
patrimônio público.
No direito norte-americano, esse mecanismo é denominado Fluid Recovery, ou seja,
reparação fluida. É utilizado principalmente quando a reparação individual é impossível pela
inviabilidade de indenizar diretamente os lesados. O valor apurado é depositado em uma
conta judicial vinculada à ação coletiva original e fica à disposição do juiz, que deve destinar
esse valor à compensação dos lesados ou, não sendo possível, dar lhe o melhor
aproveitamento possível.59
Devido ao seu caráter residual, não é possível o seu requerimento na petição
inicial da ação coletiva, pois deve ser dada prioridade à reparação individual dos danos
antes de partir-se para a reparação fluida.
Cumpre ressaltar que essa reparação residual global é subsidiária. Nas palavras de
Wambier:
Esse direito ao recebimento do quantum relativo a cada uma das indenizações
individuais não decai com o termo do prazo de um ano, razão pela qual tanto as
execuções em andamento, ainda que em numero pequeno, quanto aquelas que
venham a ser propostas posteriormente, devem chegar satisfatoriamente a seu termo,
não podendo ocorrer prejuízo para os autores individuais em beneficio do Fundo de
Defesa dos Direitos Difusos. 60
O art. 99 do CDC dispõe exatamente sobre a preferência dos créditos individuais
frente às indenizações que serão revertidas ao Fundo.
59
60
SILVA, 2009, p. 136 et. seq.
WAMBIER, 2006, p. 389 et. seq..
344
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I345
O Fundo de Defesa dos Direitos Difusos empregado na defesa dos direitos
individuais homogêneos se mostra bastante eficaz e representa muito bem a filosofia das
Ações Coletivas. O montante arrecadado pelo Fundo combate a impunidade do causador do
dano e emprega os valores arrecadados na defesa dos direitos transindividuais, pois esses
recursos retornam à sociedade, ainda que de modo indireto.
9. Aproveitamento in utilibus da sentença condenatória proferida em Ação Coletiva.
De acordo com o art. 475-N, inciso I do CPC, a sentença condenatória proferida em
Ação Coletiva, que tutela direitos difusos e coletivos, resultará em um título executivo
judicial. Esse título judicial poderá ser utilizado para a defesa dos direitos individuais
homogêneos.
Caracterizado o dano em uma ação coletiva, não será necessária nova cognição para
verificação do eventus danni, relacionado ao mesmo fato. O parágrafo 3º, do art. 103, do CDC
autoriza o transporte, in utilibus, da coisa julgada, resultante de sentença proferida na Ação
Coletiva para defesa dos direitos difusos e coletivos às ações individuais.61
Assim também ocorre no Direito Penal. O art. 91 do Código Penal dispõe que é
efeito da condenação penal tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime.
Comprovado o dano causado pelo crime, em uma futura ação de indenização cível, esse dano
não precisa ser rediscutido porque já restou comprovado na sentença penal condenatória.
As vitimas do dano, reconhecido na sentença coletiva, poderão promover, desde
logo, a sua liquidação e execução, nos termos dos artigos 96 a 99 do CDC, sem a
necessidade de realizar nova cognição.
Esse dispositivo do CDC, o parágrafo 3° do art. 103, está amparado no princípio da
economia processual e abrange qualquer dano pessoalmente sofrido. Antonio Gidi analisando
o tema explica que “...se uma pessoa não ficou doente com a poluição do rio, mas sofreu
prejuízos em sua lavoura ou rebanho, ainda assim terá um título executivo judicial contra a
industria condenada na ação civil pública”.62
De acordo com Teori Albino Zavascki63 esse é um efeito secundário da sentença de
procedência da Ação Coletiva em defesa dos direitos difusos e coletivos.
61
Cf. GRINOVER, 2005, p. 129.
GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 160.
63
ZAVASCKI, 2006, p. 81, et. seq.
62
345
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I346
Dessa forma, reconhecida a responsabilidade do agente causador do dano, na
sentença coletiva, pelas infrações que causem lesão a direitos transindividuais, fica
comprovada também sua responsabilidade pelos danos individuais decorrentes do mesmo
dano.64
Cumpre ressaltar que nesses casos será imprescindível a realização de liquidação por
artigos pela necessidade de se provar fato novo consistente na demonstração, pelo interessado,
do seu dano individual, do nexo causal entre este e aquele globalmente considerado na
sentença coletiva e, ainda, da expressão econômica dos respectivos prejuízos alegados.
10. Considerações Finais
A liquidação de sentença e o cumprimento do título judicial, de acordo com o
previsto no Código de Defesa do Consumidor no art. 97, poderá ser promovido pelas vítimas
e seus sucessores e/ou pelos legitimados do art. 82 do mesmo diploma legal.
Há um tratamento legal para a liquidação e cumprimento das ações que tutelam os
interesses difusos e coletivos em sentido estrito e outra forma de proceder para a liquidação e
cumprimento das ações que tutelam os interesses individuais homogêneos.
A liquidação de sentença deve ser processada de acordo com os arts. 475-A a 475-H
do Código de Processo Civil, já que esse procedimento não é completamente regulamentado
pelo microssistema coletivo.
Quando a liquidação é promovida pela vítima, esta visa a definir o quantum
indenizatório que irá reparar o dano individual. Já a liquidação coletiva, promovida pelos
legitimados do art. 5º da Lei de Ação Civil Pública, objetiva obter o quantum que irá para o
Fundo de Defesa Dos Direitos difusos, criado pela Lei 9.008/95.
Na liquidação de obrigações relativas aos direitos individuais homogêneos deve
haver prova do nexo de causalidade entre o dano e o prejuízo individualmente sofrido, por
isso a liquidação por artigos, com utilização subsidiária do Código de Processo Civil é a mais
indicada, já que se faz necessário prova de fato novo.
A liquidação das obrigações relativas aos direitos difusos e coletivos é considerada,
em seu produto final, indivisíveis e, desse modo, o valor é destinado ao já mencionado Fundo.
64
Ibid., p. 8.
346
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I347
Também nesse caso é indicada a liquidação por artigos para que se possa definir o quantum
de reparação destinado à sociedade.
O cumprimento de sentença do Código de Processo Civil, embora voltado para as
ações individuais, é aplicável, portanto, à tutela coletiva, mas necessita de interpretações
voltadas para o coletivo para solucionar os problemas advindos do cumprimento individual de
sentença coletiva, em que as partes não são coincidentes.
11. Referências Bibliográficas
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349
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I350
JUSTIÇA AGRÁRIA: A ESPECIALIDADE PARA O ACESSO À JUSTIÇA
JUSTICIA AGRARIA: LA ESPECIALIDAD POR EL ACCESO A LA JUSTICIA
Caroline Vargas Barbosa 1
Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega2
Resumo: O artigo problematiza o acesso à justiça dos trabalhadores rurais que vêem talhado
os direitos de acesso à terra, dignidade da pessoa humana e cidadania. Tem como objetivo
principal, portanto, a análise dos óbices que estes trabalhadores encontram ao procurar o
respaldo jurisdicional em suas demandas. Outrossim, identificados os óbices analisar-se-á
concomitantemente a instituição de justiça agrária conforme previsão constitucional.
Desmiuçar-se-á o texto da Carta Principiológica identificando sua aplicabilidade, competência
e real satisfação de direitos, para tanto, aproveita o método dedutivo. Finaliza o artigo
encontrando na especialidade das decisões judiciais, o pensamento jus agrarista de justiça
social em prol dos trabalhadores rurais. Diminuindo a dicotomia da absolutização da
propriedade privada e a justiça social e promovendo a equidade e desenvolvimento estatal.
Busca, dentre os resultados esperados, demonstrar que em um país de vocação agrícola o que
se espera é a devida atenção aos trabalhadores rurais defendendo o texto constitucional e
fornecendo o respaldo jurisdicional necessário.
Palavras-chave: acesso à justiça; justiça agrária; trabalhador rural; especialidade; cidadania;
dignidade da pessoa humana
Resumen: El artículo analiza el acceso a la justicia para los trabajadores rurales, que ven el
derecho tallado de acceso a la tierra, la dignidad humana y la ciudadanía. Su principal
objetivo es analizar los obstáculos que enfrentan los trabajadores cuando buscan respaldo
1
Especialista em Processo Civil pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestranda em Direito
Agrário na Universidade Federal de Goiás. Pesquisadora Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa
de Goiás – FAPEG. Contato: [email protected]
2
Mestre e Doutora em Direito Empresarial pela PUC SP. Professora titular da Universidade Federal
de Goiás. Pesquisadora bolsista produtividade do CNPq. Contato: [email protected]
350
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I351
judicial en sus demandas. Por otra parte, los obstáculos identificados se analizarán de forma
concomitante a la institución de la justicia agraria como disposición constitucional. Estudiar
el texto de la Carta de principios y identificar su aplicabilidad, la competencia y la
satisfacción de los derechos reales, por lo tanto, toma ventaja del método deductivo. Finaliza
el artículo encontrado en la especialidad de las decisiones judiciales, la jus pensamiento
agrarista y la justicia social en nombre de los trabajadores agrícolas. La disminución de la
dicotomía del absolutismo de la propiedad privada y de la justicia social y promoviendo la
equidad y el desarrollo del estado. Los resultados esperados, muestran que en un país de
vocación agrícola que se espera la debida atención a los trabajadores rurales que defienden la
Constitución y al órgano jurisdiccional lo apoyo necesario.
Palabras clave: acceso a la justicia; la justicia de la tierra; trabajador agrícola; especialidad;
la ciudadanía; la dignidad humana
1 INTRODUÇÃO
O acesso à justiça dos movimentos sociais de trabalhadores rurais se dá por meio de
ações possessórias em busca do acesso à terra. Condição fundamental de dignidade de pessoa
humana, para trabalho e subsistência. De modo que a instituição de varas especializadas em
matéria agrária poderão elucidar o problema ofertando eficácia de direitos.
Objetiva-se a análise dos institutos de acesso à justiça que permeiam os movimentos
sociais nas ações possessórias em geral. Bem como, a análise da justiça agrária como meio de
especialidade visando a consciência social e cidadã nas decisões e a disseminação do
pensamento jus agrarista.
Então, pretende-se aduzir conceitos de acesso à justiça, de abrangência geral e
posteriormente aplicada aos trabalhadores rurais. Tecendo assim, pormenorizado, os
principais óbices à justiça e o ferimento dos direitos fundamentais.
Posteriormente, explanaremos sobre a justiça agrária e a vara agrária propriamente
ditas. Por meio da previsão constitucional buscar-se-á desmiuçar a competência e abrangência
do instituto. Elucidando a justiça agrária como meio de especialidade, e portanto ferramenta
de alcance ao acesso à justiça.
351
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I352
2 DO ACESSO À JUSTICA
O acesso à justiça traz à baila a dimensão social do processo como instrumento de
consolidação de garantias fundamentais presentes na atual Constituição Brasileira. Para tanto,
necessário é o esboço histórico que o Estado passou até a democratização de direitos.
2.1 Do Estado Democrático de Direito
O Estado Democrático de Direito é o principal alicerce do acesso à justiça
contemporâneo. O alcance deste estágio político-social, foi decorrente do Estado Liberal e do
Social de Direito. O Estado Liberal de Direito que tem como característica as liberdades
individuais, é um estado absteísta, ou seja, sem intervenção. Como consta na Declaração
Universal dos Direitos do Homem, de 1789. De modo que:
No Estado liberal não estava em questão a liberdade do homem das ruas,
mas sim a liberdade do cidadão. A igualdade era simples acessório da
liberdade, importando apenas para o reconhecimento de que todos eram
igualmente livres. A crise do Estado liberal, provocada pela insuficiência de
sues próprios fundamentos, fez emergir a questão da justiça social.
(MARINONI, 1996 p. 22)
Outrossim, posteriormente, surge o Estado Social de Direito, em que o Estado se
torna interventor, a fim de garantir direitos em uma sociedade complexa que começa a
requerer respaldo estatal. Após a deflagração dos movimentos fascistas, surge a preocupação
do homem com o homem. Em que o Estado deveria proteger e garantir o direito à vida.
Assim, no decorrer do século XVIII e seguintes, vivencia-se a fase de constitucionalização
dos Estados. Tendo como o exemplo a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de
Alemã Weiemar de 1919.
No Brasil, essa constitucionalização fez surgir o Estado Democrático de Direito.
Momento ruptorial com a ditadura militar então existente. Havia a
necessidade de
reorganização do Estado com a soberania do povo, consagrando os direitos individuais,
coletivos e difusos. Elucida-se:
À medida que essas sociedade evoluíram e se tornaram complexas, passou a
haver também a necessidade de regrar a forma de exercício do poder no seu
interior; foi necessário institucionalizar o poder e as formas de acesso a ele.
Surgiu o Estado, e com ele as regras sociais também passaram a ser
institucionalizadas, dando origem à legislação estatal. Deixaram elas de ser
apenas normas de convivência, para tornarem-se normas de controle:
controle do Estado pela sociedade e controle dos indivíduos e grupos sociais
pelo próprio Estado. (RODRIGUES, 1994, p. 22)
352
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I353
Há, ainda, prestações negativas e positivas, com equilíbrio da autonomia pública e
privada, e a interdependência entre ambas.
A Constituição traz em seu texto normas
programáticas, e o dever ser de cada cidadão, na construção de uma sociedade igualitária e
justa. Ocorre que, embora o Estado, procure efetivar suas normas programáticas, o fato é que
por si só, não deu por findo os conflitos. Nesse sentido, acrescenta o autor supra citado:
Ou seja, nem sempre essas normas foram ou são respeitadas. Houve então a
necessidade de ser criar, ao lado delas, normas que definissem as formas
pelas quais seriam resolvidos os conflitos e insatisfações, quando existentes;
também foi necessário definir quem os resolveria. Tem-se aí a origem do
direito processual e da jurisdição.3
O Judiciário, por sua vez, tem papel primordial, não apenas dirimir os conflitos, mas
prol do equilíbrio e efetivação da democracia. Nessa visão, o acesso à justiça é a forma
concreta de garantia de direitos proclamados na Constituição 1988. Nesse sentido, acrescenta
o autor:
A crise do Welfare State e a consequente perda de importância do
Legislativo e do Executivo, tornados meras agencias burocráticas e
tecnocráticas a responder, de forma contingente e arbitrária, à imediata
conjuntura econômica, redefiniu a função do Judiciário. Num contexto social
aflitivo, a emergência da jurisdição, na ausência de Estado, de ideologias, de
religião, de organização familiar e dos movimentos sociais e das
associações, se identifica com a bandeira do direito, com seus procedimentos
e instituições, para pleitear as promessas democráticas ainda não realizadas
na modernidade . (ABREU, 2004, p. 35-36)
Portanto, nítida a importância do judiciário como fiel garantidor da Constituição.
Nesse aspecto, o acesso à justiça é a afirmação cidadã da sociedade, por meio da tutela
jurisdicional contemplado pelo Estado Democrático de Direito.
2.2 Acepções de Acesso à Justiça
O termo acesso à justiça contempla a garantia cidadã dos anseios dos direitos dos
movimentos sociais do campo, que são objetos deste trabalho. A jurisdição tem papel então
para amenizar a ineficácia do texto constitucional e o descrédito societário. Não trata-se
somente de igualdade, mas de preceitos básicos de dignidade da pessoa humana. Assim,
leciona Ada Pellegrini Grinover que a função jurisdicional intrínseca à justiça social é o
acesso à justiça como meio do alcance de direitos cidadãos de igualdade:
Falar da instrumentalidade nesse sentido positivo, pois, é alertar para a
necessária efetividade do processo, ou seja, para a necessidade e ter-se um
3
Op. Cit, p. 22
353
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I354
sistema processual capaz de servir de eficiente caminho à ‘ordem jurídica
justa’. Para tanto, não só é preciso ter a consciência dos objetivos a atingir,
como também conhecer e saber superar os óbices econômicos e jurídicos
que se antepõem ao livre acesso à justiça. (GRINOVER, 2006 p. 47)
De modo que o acesso à justiça será efetivado em uma sociedade em que o direito
material cumpra a função social da própria carta de direitos. Com a busca da justiça social,
por meio da igualdade e democracia, defendidas e disseminadas pela administração pública e
Judiciário. (RODRIGUES, 1994, p. 15)
Há doutrinadores adeptos que o real acesso à justiça dar-se-á com a supressão do
déficit Estatal, com a concepção democrática de direitos de fins sociais, pois:
A jurisdição deve realizar os fins do Estado e, inclusive, permitir a
participação popular, através do processo, no poder. Por outro lado, o direito
à adequada tutela jurisdicional e à efetividade da defesa são garantias de
justiça do cidadão que descendem da Constituição. Em suma, não se pode
pensar o processo na ausência da luz constitucional. Ou melhor, a teoria do
Estado e o direito constitucional fazem parte da moderna processualística.
[...] É que o tema do acesso à justiça trabalha a teoria do processo a partir da
ideia de Democracia Social. O acesso à justiça é o rótulo da teoria processual
preocupada com a questão da justiça social, justamente posta pela
Democracia Social. (MARINONI, 1996, p. 21-22)
Acrescenta a propósito Cândido Rangel Dinamarco que:
O sistema processual tem a missão institucional de produzir com rigorosa
precisão os resultados jurídicos determinados pela norma substancial e de
produzi-los exclusivamente nos casos em que ela assim preceitua.
Sinteticamente, cabe-lhe cumprir de modo exauriente a promessa
constitucional de proporcionar tutelas jurisdicionais justas, mediante
processos justos. (DINAMARCO, 2005, p. 34)
Voltamos, então, a pensar na função social da própria Constituição, como
instrumento da paz e equidade social. Por meio de normas programáticas busca-se a
restauração de desigualdades históricas. Buscando-se assim, uma sociedade com seio
democrático para a evolução social. O processo, assim, tem sua instrumentalidade, por meio
da jurisdição, sendo um dos atores principais ao acesso à justiça e preservação de direitos.
Nesse sentido:
Seja ao legislar ou ao realizar atos de jurisdição, o Estado exercer o seu
poder (poder estatal). E, assim como a jurisdição desempenha uma função
instrumental perante a ordem jurídica substancial (para que esta se imponha
em casos concretos) – assim também toda a atividade jurídica exercida pelo
Estado (legislação e jurisdição, consideradas globalmente) visa a um
objetivo maior, que é a pacificação social. É antes de tudo para evitar ou
eliminar conflitos entre pessoas, fazendo justiça, que o Estado legisla, julga e
executa ( o escopo social magno do processo e do direito como um todo).
354
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I355
O processo é, nesse quadro, um instrumento a serviço da paz social. (
GRINOVER, 2006 p. 47)
Nesse diapasão, o acesso à justiça está intimamente ligado à igualdade. Assim,
embora assegurado na Constituição a acessibilidade (art. 5o, XXXV), as condições formais do
processo passam pela possibilidade de pleitear o direito, mesmo em condições fáticas
(econômica ou social) antagônicas.
Com efeito, o papel da justiça é primordial, especialmente quando, aplicado pelo
magistrado na redução de injustiça e na promoção do acessibilidade jurisdicional. Para tanto,
há que se considerar que a complexidade societária abrange novos conceitos quanto aos
indivíduos capazes de postular e reivindicar direitos frente a uma ordem econômica, política e
social de avanço capitalista:
A realização de igualdade perante a justiça, assim, exige a busca da
igualização de condições dos desiguais, o que implica conduzir o juiz a dois
imperativos, como observa Ingber: cumpre-lhe reconhecer a existência de
categorias cada vez mais numerosas e diversificadas, que substituem a ideia
de homem, entidade abstrata, pela noção mais precisa de individuo
caracterizada pelo grupo em que se insere de fato; de outro lado deve ele
apreciar os critérios de relevância que foram adotados pelo legislador.
(SILVA, 1997, p. 215)
Os trabalhadores rurais necessitam da mão estatal para proteção e eficácia de
direitos. Portanto, o acesso à justiça está intimamente ligado à dignidade da pessoa humana e
igualdade.
2.3 Dos óbices ao acesso jurisdicional
Em se tratando da jurisdição e do processo como meio de efetivação, necessário se é,
a explanação dos óbices que atrasam esta prestação à sociedade.
2.3.1. Desigualdade Socioeconômica
As custas que a demanda judicial cobra pela atenção jurisdicional ao pleito de
direitos são determinantes para a exclusão de grande parte da população da efetiva justiça. Por
conseguinte, observa-se que o mais abonado financeiramente tenha um maior leque
processual a sua disposição para a defesa de seus interesses, de maneira que:
[...] que a desigualdade sócio-econômica gera, em termos de acesso à justiça,
dois problemas: (a) dificulta o acesso ao Direito e ao Judiciário, tendo em
vista a falta de condições materiais de grande parte da população para fazer
frente aos gastos que impõe uma demanda judicial; e (b) mesmo quando há
355
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I356
esse acesso, a desigualdade material, em contraste com a igualdade formal
prevista no ordenamento jurídico, acaba colocando o mais pobre em situação
de desvantagem dentro do processo. (RODRIGUES, 1994, p. 35)
Outrossim, a morosidade processual, afigura-se, como óbice, que será estudada
oportunamente neste trabalho, também faz aumentar o custo processual. Nesse sentido:
Pessoas ou organizações que possuam recursos financeiros consideráveis a
serem utilizados tem vantagens obvias ao propor o defender demandas. Em
primeiro lugar, elas podem pagar para litigar. Podem além disso, suportar as
delongas do litigio. (CAPPELLETTI, GARTH, 1988, p. 19)
A liberdade, democracia e igualdade somente poderá ser fornecida àqueles que
possuem condição socioeconômica para tanto. Assim não o sendo, decair-se-á novamente no
acesso jurisdicional a poucos.
2.3.2 Desigualdade Sociocultural
A diferença sociocultural entre as partes é predominante precursora de injustiças.
Quer, por falta de informação acerca dos próprios direitos, ou ainda por descrédito na justiça.
Assim,
Num primeiro nível está a questão de reconhecer a existência de um direito
juridicamente exigível. Essa barreira fundamental é especialmente séria para
os despossuídos, mas não afeta apenas os pobres. Ela diz respeito a toda a
população em muitas tipos de conflitos que envolvem direitos. [...] Ademais,
as pessoas tem limitados conhecimentos a respeito da maneira de ajuizar
uma demanda. (CAPPELLETTI, GARTH, 1988, p. 23)
A discrepância sociocultural, é delineada pela falta de informação quanto aos
direitos, afastando que cada qual tenha ciência da possibilidade postulatória de requerimento
do que lhe é de direito. De modo que:
O acesso à justiça pressupõe, como já colocado anteriormente, o
conhecimento dos direitos. [...] Em primeiro lugar, o esclarecimento de quais
são os direitos fundamentais que o indivíduo e a sociedade possuem e quais
os instrumentos adequados para a sua reivindicação e efetivação. Em
segundo lugar, devem criar uma mentalidade de busca dos direitos, de
educação para a cidadania: o respeito aos direitos passa pela consciência de
seu desrespeito levará à utilização dos mecanismos estatais de solução dos
conflitos. (RODRIGUES, 1994, p. 37-38)
Nesse particular, o acesso à justiça deve ser balizado pelo conhecimento de seus
direitos, e a faculdade de os pleitear.
356
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I357
2.3.3 Óbices Políticos
O entrave político inicia-se com a insuficiência de respostas do Judiciário à
sociedade. São fruto disto, decisões revestidas de formalismos, em um sistema burocratizado
e por vezes concepções retrógadas do direito frente a complexa sociedade. Sob a premissa de
neutralidade do magistrado, faz com que se abstenha de decisões acarretariam em
modificação da vida não somente entre partes, mas de todo um sistema. (ABREU, 2004 p. 6370) Nesse sentido:
O magistrado, portanto, não se limita à atividade de natureza meramente
interpretativa ou dedutiva daquilo que lhe é dado, mas sua tarefa consiste na
revelação de uma forma jurídica mais adequada, mais equânime e mais justa.
(WOLKMER, 2000, p. 177)
Assevera, ainda, Horácio Wanderlei Rodrigues:
Em resumo, a burocratização do Poder Judiciário, os longos prazos que
transcorrem entre o ingresso em juízo e o resultado final dos processos e a
inadequação de muitas se suas decisões aos valores sociais fazem com
que, em muitos momentos, haja uma série de questionamentos sobre a
sua legitimidade. (grifo nosso) (RODRIGUES, 1994, p. 47)
Cristalizado o óbice político, como a ausência de consciência social, nas decisões
judiciais. Dentro de uma ordem estatal, dotada de princípios e preceitos, de diversas ordens
(econômica, política ou social) o magistrado deve antes de se pautar somente na lei, atender
aos anseios societários.
2.3.4 Óbices Processuais
O cerceamento processual, é percebido principalmente quanto à morosidade
processual decorrente dos inúmeros recursos processuais e o abarrotamento de ações no
judiciário. Desta forma:
É óbvio que a morosidade processual estrangula os direitos fundamentais do
cidadão. E o pior é que, algumas vezes, a morosidade da justiça é opção dos
próprios detentores do poder. [...] O uso arbitrário do poder, sem duvida,
caminha na razão proporcional inversa da efetividade da tutela jurisdicional.
(MARINONI, 1996, p. 33)
Primordialmente, nota-se aqui, o papel efetivo do Poder Judiciário como percursor
da justiça social. Ou por meio da celeridade processual, abarcando a postura em prol da
sociedade, e não somente dirimindo conflitos entre partes. Ou por meio de assistência e
conhecimento adequado, para criação de uma consciência quanto aos direitos individuais,
coletivos ou difusos ao aplicá-los e com isso promover um efetivo acesso à justiça.
357
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I358
2.4 Do acesso à justiça dos trabalhadores rurais
A acessibilidade dos trabalhadores rurais à justiça compreende o déficit
constitucional do acesso à terra. De maneira que cabe ao Judiciário o respaldo quanto a justiça
social perquirida, que coloca em xeque o próprio Estado Democrático de Direito.
De um lado temos uma Constituição principiológica que determina a erradicação da
pobreza, por meio de direitos sociais e fundamentais ao homem. Incluindo assim, os
trabalhadores do campo, em busca de condições mínimas de vida e melhoria de seu status a
quo na sociedade. E de outro, a defesa, balizada pela função social, da propriedade privada.
E no escopo deste problema, surge o Judiciário, em busca de soluções sociais por
meio de decisões judiciais. O entrave entre a propriedade privada (preceitos constitucionais e
civilistas) e o acesso à terra (preceitos constitucionais e sociais). Nesse sentido:
[...] no caso da terra, confrontam-se fundamentalmente duas concepções de
propriedade: a concepção que tem na sua base o direito agrário, ligado ao
trabalho; e as concepções individualistas do direito civil, com uma
concepção de propriedade mais ligada ou à posse directa ou ao título.
(SANTOS, 2011, p. 36)
O Poder Judiciário comporta dois atributos: fiscalizador de direitos e promovente de
justiça social atendendo a cidadania e direitos fundamentais do homem decorrentes de
desigualdades estruturais do país. Nortear os entendimentos pela de absolutização da
propriedade privada, sem contudo praticar a justiça social é um dos aspectos que obstaculiza o
acesso à justiça. (FACHIN, 2003) Isso porque:
O exercício pleno da cidadania reclama também a justiça no campo, e esta
passa, necessariamente, pela correção das distorções que ainda perduram na
estrutura fundiária brasileira. São exatamente estas distorções que motivam
os conflitos, que geram chacinas, que ceifam vidas, que envergonham a
nação quedando-se, o Estado, na impotência operacional para a busca de
soluções definitivas ou menos duradouras. (MARQUES, 2005, p. 120)
Entende-se assim que o acesso à justiça, é o direito de cidadania em seu sentido
pleno. De forma que o papel do judiciário, apesar de competência interdependente, é de sanar
as injustiças sociais, que surgem com o déficit constitucional. É a garantia prestacional do
Estado, sendo assegurada pelo judiciário. A representação efetiva de todas as camadas da
sociedade por meio do acesso à justiça, é o que expressa Ricardo Zeledón:
Os sistemas judiciais deverão permitir acesso à justiça a todos os grupos e
setores da sociedade, bem como gerar opções claras para garantir o exercício
pelo e transparente de seus direitos. (ZELEDÓN, 2005, p. 43)
358
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I359
O acesso dos trabalhadores rurais em grande parte, a hipossuficiência de recursos é
regra. Nesse aspecto seja pelas custas ou honorários a serem suportados, ou ainda pela
morosidade judicial, que acarretará em perda financeira direta.
Há ainda o constrangimento social pela intimidação de interpor ações contra grandes
proprietários ou ainda pela própria estrutura do judiciário. Esta, que em grande parte, prioriza
a propriedade privada, deixando a lacuna social, às honras do Estado, por intermédio de ações
afirmativas ou políticas públicas. Que evidentemente ainda são mínimas, quiçá inócuas. Frisa
nesse sentido Alcir Gursen Miranda:
O homem do campo sofre dupla agressão à sua cidadania quando procura a
Justiça - são os obstáculos de acesso à Justiça: primeiro é a conhecida
dificuldade de acesso à justiça; segundo, quando tem acesso, encontra um
juiz sem a habilitação jurídica suficiente para lidar com as questões agrárias,
sem a necessária mentalidade agrarista. (MIRANDA, 2002, p. 3)
Outrossim, traz-se à baila:
As tradicionais limitações ao ingresso na Justiça, jurídicas ou de fato
(econômicas, sociais) são óbices graves à conseccução dos objetivos
processuais, e do ponto-de-vista da potencial clientela do Poder Judiciário,
constituem para cada qual um fator de decepções em face de esperanças
frustradas e insatisfações que se perpetuam [...] (DINAMARCO, 1987, p.
391)
Destarte, o acesso à justiça além do exercício da cidadania, é a possibilidade de
esperança e de dignidade da pessoas humana. Sobrepor todos os óbices à justiça significa
dizer, que a sociedade caminha para um desenvolvimento social e político.
3 ESPECIALIDADE: NECESSÁRIO INSTRUMENTO DE ACESSO À JUSTIÇA
Como tema central deste trabalho buscar-se-á encontrar na especialidade, o efetivo
acesso à justiça. De modo que, a especialidade no caso dos trabalhadores do campo é
justificada pelo tratamento o qual deverão ser tratadas as lides: justiça social para
desenvolvimento do Estado.
Ao se tratar de uma lide possessória, em que é parte o movimento social de
trabalhadores do campo, mais do que a absolutização da propriedade, protegida
constitucionalmente, deverá o magistrado analisar sobre o viés de justiça social, e da função
social da propriedade e da terra.
Não obstante, porque é necessário o cuidado Estatal com os trabalhadores rurais?
Será que a especialidade de matéria é alcançada pela instituição de varas agrárias? Qual a
359
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I360
competência das varas agrárias? O pensamento societário compõe a instrução de justiça
social? São as questões que pretendemos esmiuçar no que segue.
3.1 Breve histórico do acesso à terra
As terras brasileiras, desde a gênese da colonização portuguesa eram voltadas para a
simples ocupação, abertas as necessidades econômicas externas. Assim cedeu-se grandes
extensões de terra para uma minoria, baseado em um modelo agroexportador. (BITTAR, 2000)
Estava introduzido o sistema de sesmarias: terras distribuídas pela Coroa, sob concessão.
A concessão era norteada pelo princípio de utilidade da terra. A terra que não fosse devidamente
aproveitada, poderia ser retomada pela Coroa (terras devolutas). Configurava-se a gênese do atual
quadro: a desigualdade da divisão de terras brasileiras:
Estavam geradas as condições que permitiram o surgimento do latifúndio no
Brasil. Sesmaria, monocultura de cana-de-açúcar, Nordeste, escravidão, nobreza
da terra e fábricas de açúcar para exportação: essas foram as engrenagens
fundamentais do sistema latifundiário nos primórdios da colonização. (BITTAR,
2000)
Em 1854, criou-se a Lei das Terras. Legislação que não afetou negativamente o latifúndio
instalado no país. Balizou em três linhas de ação: a primeira a manutenção da propriedade privada,
a segunda na estrutura fundiária e terceiro em um mercado de trabalho livre organizado. Assim foi
introduzido a propriedade privada, sem afetar a burguesia. Estrutura latifundiária permaneceu, eis
que agora normatizado o acesso à terra por aqueles que possuíam capital (MARTINS, 1996 e
PAULA, 2001).
Durante o regime ditatorial o caos agrário, que nunca havia sido visto como problema de
possível retrocesso social-econômico, passa a ser analisado por intermédio do Estatuto da Terra.
Promulgado, dava disposições aos imóveis rurais e projetava uma reforma agrária. Assim,
segundo a Lei 4.504/64:
Art. 1° Esta Lei regula os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis
rurais, para os fins de execução da Reforma Agrária e promoção da Política
Agrícola.
§ 1° Considera-se Reforma Agrária o conjunto de medidas que visem a
promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de
sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao
aumento de produtividade. (grifo nosso) (BRASIL, Lei 4.504/64)
Poder-se-á dizer, que o princípio da questão agrária brasileira cristalizou neste
360
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I361
momento. O conflito de demarcações, registros incoerentes alicerçados pelo Estatuto e a
convivência da sesmarias com posseiros, não havendo caracterização da posse sendo considerada
ilegal. A dissonância entre a prática agrária brasileira e as leis fortificou o quadro e desenrola até
hoje. (MARTINS, 1996)
Após anos de repressão, nasce a atual Constituição Brasileira. Exaltou-se a
sociedade, em um Estado ideal. Um poder-ser de cada cidadão para a construção de um país
entrelaçado na democracia. Uma carta programática, garantindo direitos e deveres aos
cidadãos e ao Estado. Nas palavras de Carlos Frederico Marés:
[...] a constituição limitou os juros, defendeu o nacionalismo, privilegiou a
empresa nacional, ofereceu garantias individuais e reconheceu direitos
coletivos, além de estabelecer como objetivo fundamental da República a
erradicação da pobreza. Por isso foi chamada de cidadã, verde, ambiental,
plurisocial, índia, democrática e quantos adjetivos enaltecedores pode ter um
diploma que se escreveu para gerir os destinos do povo. E ela e tudo isso.
(MARÉS, 2003)
No que tange a propriedade privada, condicionada a sua função social. Impondo-se
ao proprietário o exercício desse direito, não apenas vislumbrando um interesse individual,
mas coletivo. (GRAU, 2003)
Os movimentos sociais, e os trabalhadores do campo, tiveram seus desejos atendidos
pela Constituição, porém ainda sem o acesso à terra para trabalho e sobrevivência. As lutas
passaram a ser pela efetivação de direitos. O fiel cumprimento da função social da terra.
Ilustra assim:
A atividade jurisdicional deve adaptar-se a essa nova realidade, cumpre aos
juízes, sem temor de modificar o status quo estabelecido e imposto com o
suor e sangue dos menos afortunados, se empreender para que sejam
implementados os objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil, com a construção de uma sociedade, livre, justa e solidária, com a
erradicação da pobreza e as desigualdades sociais, como exige o art. 3o da
Carta Republicana de 1988. (DRESCH, 2006, p. 156)
Evidente, então,
a atuação do Judiciário como promotor de justiça social e
efetividade de direitos humanos. Por meio das decisões, são responsáveis da mudança
estrutural e histórica de consciência social aos trabalhadores do campo.
361
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I362
3.2 A vara agrária
A vara agrária deverá dirimir os conflitos entre proprietários e os trabalhadores
rurais, representados ou não pelos movimentos sociais. Por meio da sua instituição buscar-seá a criação de precedentes decorrentes das sentenças de mérito. A serem consolidadas em uma
justiça agrária, composta de Tribunais específicos, por meio da uniformização jurisprudencial
como segurança jurídica. A consolidação jurídica de institutos que compõe o direito agrário.
E o desenvolvimento de consciência jus-agrarista, com enfoque social. Defende assim:
Não há o que se discutir sobre a necessidade e a excelência da instituição da
Justiça Agrária no Brasil. Tanto do ponto de vista cientifico, de
enriquecimento da matéria agro-jurídica, como do ponto de vista de
melhoria da realidade fática, na qual milhares de pessoas precisam dela.
(LARANJEIRA, 1984, p. 72)
Adverso ao tema, temos as seguintes perspectivas de Jacy de Assis, Messias
Junqueira e Miguel Reale, trazidas à baila por Benedito Marques:
O primeiro lança mão de dois argumentos: “é onerosa e difícil e que não
apresentará os necessários resultados”. O segundo limitou a sua discordância
a um argumento singelo: “não estamos ainda amadurecidos...”. E o terceiro
utilizou-se de argumentos de saber duvidoso, ao dizer, ipsis verbis: “...admirome que haja quem pense que a estrutura de uma magistratura agrária
especializada, aliás de discutível utilidade, possa ser feita de improviso, como
se se tratasse de montar um palco na praça pública para representação de um
drama campestre...” (MARQUES, 1996, p. 16-17)
Assunto controverso, porém relevante. Seja pela diminuição da violência e excedente
urbanos, ou pelo acesso à terra como dignidade da pessoa humano; passando ainda pelo viés
da segurança alimentar e do desenvolvimento econômico e social.
3.2.1 A mobilização
A mobilização para a criação de varas agrárias não se trata de assunto
contemporâneo. Em 1850 houve a criação de juiz Territorial pela Lei de Terras do Império
(Lei n. 601/1850). Posteriormente, em 1922, por meio de lei paulista n. 1.869/1922, houve a
criação de Tribunais Rurais. No ano de 1941, nascem as Comissões de Conciliação e
julgamento, do Estatuto da Lavoura Canavieira (Decreto-Lei n. 3.855/1941) e em 1963 os
Conselhos arbitrais do Estatuto do Trabalhador rural (Lei n. 4.214/1963). Com o advento do
Estatuto da Terra são criadas as Comissões Agrárias. (MIRANDA, 2002, p. 7)
362
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I363
Destaca-se assim, a Carta de Cruz Alta, elaborado em 1975 no I Seminário Brasileiro
de Direito Agrário, I Seminário Ibero-Americano de Direito Agrário e I Conferência sobre
Alimentação a qual recomenda:
JUSTIÇA AGRÁRIA A criação e implantação de justiça agrária, setor
especializado que dirimirá os conflitos oriundos das atividades agrárias e das
relações que delas emergem. Na reformulação do Poder Judiciário, agora em
estudo, torna-se oportuno reencetar os relativos à especialização agrária, a
exemplo do que se faz no Peru e em outros países, tanto latino-americano
como europeu (Trecho da Carta de Cruz Alta in MIRANDA, 2002, p. 7)
Porém pouco avanço se teve. Com a Constituinte de 1988 houve atenção as questões
agrárias no art. 126, antes redigido:
Art. 126 - Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça, designará
juízes de entrância especial, com competência exclusiva para as questões
agrárias. Parágrafo único - Sempre que necessário à eficiente prestação
jurisdicional, o juiz far-se-á presente no local do litígio.(grifo nosso)
(BRASIL, CF/1988)
Frente a previsão então constitucional, meramente programática sem contudo
viabilizar para o avanço da realidade, comentou o professor:
Considero, porém, péssimo que a Constituição não tenha instituído a Justiça
agrária. Isto de Varas especializadas ou entrâncias especiais, com
competência exclusiva para questões agrarias (CF. Art. 126), é engodo. Não
resolve, nem ajuda. Preciso, isto sim, é de juízes especializados, isto é, juízes
com cabeça agraristas, juízes com mentalidade agrarista. (BORGES, 1992,
p. 161)
Somente com a Reforma do Judiciário em 2004 (EC 45/2004) houve previsão
constitucional para a instituição de varas agrarias. De forma que:
Art. 126 - Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça proporá a
criação de varas especializadas, com competência exclusiva para
questões agrárias. Parágrafo único - Sempre que necessário à eficiente
prestação jurisdicional, o juiz far-se-á presente no local do litígio. (grifo
nosso) (BRASIL, CF/1988 – EC 45/2004)
Nesse sentido, comenta Miranda, as principais adversidades que a Constituição não
elucidou no referido artigo. Quanto a especialidade:
Não se deve abstrair que o julgamento das questões agrárias em todos os
graus de jurisdição exige conhecimento do mundo agrário, com realidade
própria; as normas jurídicas agrárias exigem interpretação, integração e
aplicação de acordo com a realidade agrária; exige o estudo por especialista
na matéria; exige jurista com mentalidade agrarista. (...) Se existe o civilista,
363
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I364
o penalista, o tributarista, o trabalhista, o constitucionalista, nada mais justo
que o juiz agrarista. O alerta é oportuno de um Pontes de Miranda, para
quem, antes de ser especialista, o jurista precisa ser um generalista, conhecer
a teoria geral do Direito. (MIRANDA, 2004, p. 4)
Quanto ao procedimento:
[...] Para completar a linha de pensamento, cabe lembrar o processo agrário,
pois, de nada valerá uma Justiça Agrária se forem utilizados os lentos
procedimentos do processo civil. (MIRANDA, 2004, p. 4)
Quanto à competência:
Com efeito, é difícil compreender e aceitar a competência das questões
agrárias no Brasil (CF/88: art. 126) dividida entre a justiça estadual e a
justiça federal. O que seriam os conflitos fundiários vinculados ao plano
nacional de reforma agrária, para delimitar a competência da vara agrária
federal? Certamente é mais um elemento complicador, longe da melhor
solução. É um problema. (MIRANDA, 2004, p. 4)
Evidente o avanço político que houve com a determinação constitucional de
instituição de varas agrárias. Porém para sua aplicação prática surgem demasiados problemas
técnicos, práticos e jurídicos. Havendo a necessidade, neste aspecto, de mudança do
pensamento jurista e social quanto as demandas agrárias. A necessidade social de intervenção
jurisdicional, para crescimento.
Não obstante, a determinação constitucional, não fora, norma aplicada em todas os
Estados. Verdade, que deve ser dita, a realidade agrária é diversa em todo o território
nacional. Havendo estados em que a vara agrária é de extrema premência, e outros que os
conflitos agrários absorvem menor demanda.
No entanto, a verdadeira riqueza da instituição da justiça agrária é o acesso à justiça
dos trabalhadores rurais e da segurança jurídica por meio de consolidação de institutos,
obtendo êxito à toda a sociedade.
3.2.2 A competência
Com a emenda constitucional, surge a delimitação necessária de quais questões
versam a competência das varas agrárias.
O Direito Agrário abrange diversos ramos do direito. No direito constitucional, as
demandas de desapropriação pelo não cumprimento de função social. No direito civil, como
364
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I365
por exemplo, os contratos de arrendamento e a responsabilidade entre partes. No direito
processual civil, as ações possessórias movidas pelo movimentos de trabalhadores rurais,
como meio de aquisição de terras. No âmbito penal, a violência no campo. O direito
trabalhista, traz as relações de trabalho do homem do campo. Ainda, o direito previdenciário,
sob os aspecto dos benefícios dos trabalhadores rurais.
Além de questões ambientais,
indígenas, de mineração e de garimpagem. Assim vejamos.
Indubitavelmente convergem os doutrinadores agraristas, que as ações que versam
sobre os direitos indígenas, ambientais de mineração e garimpagem, pertencem ao Direito
Agrário. Assevera assim:
Dai a competência da Justiça agrária para processar e julgar as questões
decorrentes dos fatos regulados pela legislação agrária, ou seja, as questões
agrárias e fundiárias, as questões ambientais, as questões indígenas e as
questões minerais e de garimpagem.
A competência da Justiça agraria, assim, é definida, pelo próprio conteúdo
do Direito Agrário. O que for conteúdo do Direito Agrário é de competência
da Justiça Agrária. (MIRANDA, 2002, p. 9)
As ações possessórias movidas pelos movimentos de luta pela terra e dos
trabalhadores rurais também são de competência de tais varas. Pois bem. Ilustra Laranjeira:
Restando a hipótese de utilização de estrutura dos Estados, temos, então, de
ressaltar que a concreção da ideia ali, não trará resultados esperados, porque
não haveria grande novidade, em matéria de competência. Praticamente, estarse-ia mantendo a competência que ja dispõe a Justiça Comum, para decidir as
causas agrarias, a partir das questões sobre a propriedade a posse rurais, que
lhe pertencem. [...]
Instrumento regulador das relações decorrentes da reforma das estruturas
arcaicas e injustas- segundo o interpretamos agora- significa a Justiça agraria
que se ha de inserir num processo de mudança [...] (LARANJEIRA, 1984, p.
73-76)
Nos casos dos contratos agrários, não se pode ser analisado somente pelo prisma
civil, mas agrário-social. Elucida-se, assim:
O civilista trata as partes como iguais e leva em altíssima consideração sua
manifestação de vontade. O agrarista recorre a estes subsídios, mas terá em
vista que o débil econômico merece tratamento especial, e terá em conta,
igualmente, que a terra é objeto nobre, a ser tratado com carinho, a fim de
ficarem preservados os recursos naturais renováveis, para proveito continuo
da geração presente, e, indefinidamente, das gerações futuras. (BORGES,
1992, p.161)
Nesse âmbito, a justiça traria celeridade e uniformização jurisprudencial de decisões
com pensamento agrarista pelo função social da terra. Aumentando o acesso do homem à
365
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I366
terra, para trabalho e sobrevivência. Sem no entanto, deixar de lado o direito a propriedade
privada, mas com visão ampliada de conceito social.
No atual estágio que se encontra o direito agrário brasileiro, não há um direito
processual específico. Aplicado nas ações possessórias, portanto, o direito processual civil e o
direito civil. Balizado na função social da propriedade, princípio elencado na Constituição.
Quiçá, em um momento futuro, possa ter-se a consolidação das leis agrárias e um possível
procedimento específico para as ações. Ensina, deste modo:
Como a doutrina vem perfilando cientificamente os elementos característicos
do direito agrário, então necessária a medida do direito processual agrário
que receberá base sólida, que dão personalidade e caráter, impossíveis de
obter se não por pelo caminho do direito substantivo. (CARROZA,
ZELEDÓN, 1990, p. 386)4
Porém, a grande dificuldade do acesso à justiça e da eficácia dos direitos
fundamentais ao trabalhador rural, não se dá pelo procedimento. E sim, pela morosidade da
justiça, devido ao abarrotamento de ações em geral e pela ausência de consciência jus
agrarista em decisões.
Passemos então, a questão laboral dos trabalhadores rurais. A partir do momento em
que os trabalhadores rurais buscam a terra para o próprio trabalhado, transcende os direitos
individuais do trabalho e adentra o ramo do direito agrário. (LARANJEIRA, 1989, p. 88)
Nesse sentido:
Tais dados nos levam à conclusão derradeira de que, enquanto do Direito do
Trabalho oferece proteção pelo direito básico do salário, ou subsistência
frente a patrões, o Direito Agrário pode oferecer protegimento pelo direito à
propriedade da terra, individual ou coletiva, para subsistência, sem
patronato.
Desta maneira, a finalidade última ou fundamento de cada uma das espécies
jurídicas estudadas, não parece justificar a pretensão de uma uniformidade
de tratamento, sob só um conceito. (LARANJEIRA, 1989, p. 92)
Mesmo assim, entende-se que a Consolidação Trabalhista não anula o direito agrário
e vice versa, podendo o magistrado trabalhista, trabalhar sob a égide de ambos. O mesmo
aplica-se ao direito penal, e a violência no campo.
4
Como la doctrina ha ido ya perfilando cientificamente los elementos caracterizantes del derecho agrario,
entonces en buena medida el derecho procesal agrario recibirá aportes constitutivos de bases sólidas que le
otorgan personalidad y carácter, imposibles de obtener si no fuera precisamente por el largo camino recorrido
por el derecho sustantivo. (tradução livre)
366
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I367
A competência federal das ações de desapropriação propostas pelos órgãos federais,
para fins de reforma agrária, não há que ser discutida. Eis a determinação constitucional:
Art. 184 - Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de
reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social
[...]. (BRASIL, CF/1988)
Art. 109 - Aos juízes federais compete processar e julgar:
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal
forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, [...]
(BRASIL, CF/1988)
No entanto, discorda o mestre Alcir Gursen de Miranda, dando maior amplitude a
competência:
Especificamente, a Justiça Agrária deve julgar questões oriundas do domínio
e da posse da terra rural, pública ou particular; as ações discriminatórias de
terras devolutas, federais ou estaduais; as ações demarcatórias ou divisórias
de imóveis rurais; as desapropriações, por interesse social, para fins de
reforma agrária; as questões relativa aos negócios jurídicos agrários,
compreendendo contratos agrários, financiamentos, seguros, armazenagem,
transporte; os registros públicos pertinentes a imóvel rural incluindo o
registro Torrens; as questões derivadas da interferência do governo na vida
rural como tributação; os delitos agrários, assim considerados os que tenham
causas, objetos e/ou consequências predominantemente agrárias
(MIRANDA, 2002, p. 9-10)
Torna-se a dizer, a estruturação de uma vara agrária teria como competência os
conflitos agrários principalmente de acesso à terra. O magistrado deverá compatibilizar
institutos a fim de o alcance de justiça social e efetivação de direitos.
3.2.3 A estruturação e o custo despendido
Não há nenhuma normatização quanto a estruturação da Justiça Agrária. No entanto,
válido ressaltar o entendimento de que assim como a Justiça Eleitoral e a Justiça Trabalhistas,
necessário far-se-ia, uma justiça estruturada em diversas instâncias, permanecendo a
consciência jus agrarista da gênese ao fim do processo. Relata assim:
[...] durante a Constituinte de 87/88, a Justiça Agrária sofreu altos e baixos.
Surgiu durante a Comissão Afonso Arinos, ora como órgão autônomo do
judiciário, ora dentro da competência da Justiça Federal, ora finalmente
dentro da Justiça Comum estadual, apenas com juízes de entrância especial,
designados pelos Tribunais de Justiça, permitindo seu deslocamento aos
locais de litigio. Assim diz o art. 126, notoriamente restrito, premio de
consolação aos juristas insatisfeitos [...] (MENDONÇA, 2000, p. 806)
Logicamente, referia-se antes da EC 45/2004, porém consolida o entendimento de
que a justiça agrária deveria ser composta em instâncias. Devido a complexidade e a
367
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I368
necessidade de um pensamento social nas decisões. Assim como na instituição da justiça
laboral, houveram aqueles que não defendiam. Porém a necessidade à época de nova
consciência frente aos trabalhadores, fez com que a justiça trabalhista efetivasse papel
democrático e necessário no país.
Analogicamente aplicamos aos conflitos agrários. Tendo em vista um país com
vocação agrícola, de imensidão territorial é inconcebível o destrato com as demandas rurais.
Assim, como vimos anteriormente um dos argumentos contra a instituição de uma
justiça agrária, são os custos que acarretaria. Pois bem. Vejamos:
Haver gastos inúteis com a implementação de cargos decorativos e
desnecessários nos próprios órgãos judiciários já existentes. Estes gastos
poderiam ser repassados para a organização da Justiça Agraria. A divisão do
trabalho judicante com esta Justiça levaria à criação de cargos e funções para
a mesma, evitando, por exemplo, a ampliação do número de câmaras e
turmas nas instancias superiores, compensando, assim, o dispêndio que, de
qualquer forma, teria de ser feito. (LARANJEIRA, 1984, p. 96-97)
De modo que, haveria de fato um custo despedido, mas o bem social que poderá ser
alcançado frente a concretização dos direitos fundamentais, como o de acesso à justiça e
dignidade da pessoa humana seriam ganhos a toda sociedade.
3.3 Especialidade: A vara agrária para justiça social e cidadania
Evidentemente, a especialidade sobre as questões agrárias surge como uma
pensamento de justiça social para eficácia de direitos, principalmente concernentes à
cidadania. Explana, deste modo:
O esforço para criar tribunais e procedimentos especializados para certos
tipos de causas socialmente importantes não é, evidentemente, novo. Já se
percebeu, no passado, que procedimentos especiais e julgadores
especialmente sensíveis são necessários quando a lei substantiva é
relativamente nova e se encontra em rápida evolução. [...] O que não é novo
no esforço recente, no entanto, é a tentativa, em larga escala, de dar direitos
efetivos aos despossuídos contra os economicamente poderosos: a pressão,
sem precedentes, para confrontar e atacar barreiras reais enfrentadas pelos
indivíduos. Verificou-se ser necessário mais do que a criação de cortes
especializadas; é preciso também cogitar de novos enfoques do processo
civil. (CAPPELLETTI, GARTH, 1988, p. 94)
No mesmo sentido:
O Judiciário é um instrumento do Estado para a concretização de seus
objetivos, através do exercício da atividade jurisdicional, não um fim em si
mesmo. Para que haja realmente a possibilidade de um efetivo acesso à
368
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I369
justiça, faz-se necessário também repensá-lo em sua estrutura e funções.
(RODRIGUES, 1994, p. 91)
Surge então o primordial papel do magistrado em atender as necessidades sociais a
prestação jurisdicional transformando a realidade fundiária instaurada no país. Leciona então:
[...] o juiz possui papel bem maior do que lhe é atribuído, exercendo
ideologicamente uma extraordinário e dinâmica atividade. [...] A atividade
do Juiz, em relação à lei, não se caracteriza jamais pela passividade nem
tampouco será a lei considerada elemento exclusivo na busca de soluções
justas aos conflitos; a lei se constitui em um outro elemento, entre tantos que
intervém no exercício da função jurisdicional. (WOLKER, 2000, p.186)
Acrescenta-se:
Aos juízes regulares pode faltar experiência e sensibilidade necessárias para
ajustas a nova lei a uma ordem social dinâmica, e os procedimentos judiciais
podem ser pesados demais para que lhes confie a tarefa de executar e, até
certo ponto, adaptar e moldar importantes leis novas. (CAPPELLETTI,
GARTH, 1988, p. 94)
Importante, ainda, a visão de que:
Do magistrado tem exigido a isenção e a neutralidade [...], fazendo com que
ele, ao assumir a função jurisdicional, busque se despir da sua condição de
cidadão, [...] passando a agir apenas tecnicamente. Comportando-se desta
forma, acaba ele transformado em um burocrata distante dos anseios sociais,
ou em um mero braço do poder politico de plantão. (RODRIGUES, 1994, p.
91)
De modo que, o insucesso do acesso à justiça hoje, é cravado por decisões
meramente civilistas e tecnicistas. Que não dão respaldo suficiente aos trabalhadores rurais
para o acesso à terra. Diferencia assim:
Na justiça comutativa um particular dá a outro particular o bem que lhe é
devido, ou seja, cada pessoa deve receber de outra o valor igual pelo que
deu. Na justiça comutativa é a sociedade quem dá a cada particular o bem
que lhe é devido, ou seja, cada pessoa recebe pelo seu desempenho no seio
da sociedade. E, na justiça social, todos devem dar a todos o bem que lhe é
devido. (MIRANDA, 1989, P. 175)
Ao julgar uma tutela antecipatória em ação possessória que versa sobre conflito
agrário o magistrado pode analisar somente os aspectos formais da concessão. Sem contudo,
verificar a grande amplitude do processo. Na fase do contraditório, se comprovado o inverso,
a tutela pode ser revertida. Mas até esse ponto poderão ter surgido conflitos violentos, e
talhado o direito do acesso à terra. Explica então:
[...] a violência no campo indica a existência de uma face da sociedade
incapaz de reconhecer direitos e negociar interesses, visto que nega o outro.
Como há, de um lado, a defesa dos interesses absolutos da propriedade,
369
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I370
nega-se qualquer possibilidade de discuti-los através da constituição de uma
outra concepção de direito que coloque em pauta o tradicional lugar da
propriedade fundiária. (MEDEIROS, 1996, p. 126)
Destarte, o acesso à justiça dos trabalhadores rurais permeia uma mudança na
prestação jurisdicional, a fim do alcance dos direitos de dignidade da pessoa humana e
cidadania. Somente efetivados pelo acesso à terra, atendendo a necessidade básica de trabalho
e sobrevivência. Dos diferentes ramos do direito, aplicados sob a perspectiva jus agrarista, a
especialidade então, alcançaria o bem social almejado. De modo que:
Esta perspectiva analítica reivindica uma mudança de orientação
epistemológica: a relação entre o sistema jurídico estatal e as outras ordens
jurídicas já não vistas como ordens separas e culturalmente diferentes. O
pluralismo jurídico é assim visto como parte do campo social, integrado uma
complexa relação interativa entre diferentes ordens normativas. (SANTOS,
2011, p.115)
Haveria maior celeridade e a prestação jurisdicional capaz de modificar estruturas
eminentemente injustas. É a compatibilidade do rural com o urbano, em prol de uma
sociedade equitativa. Na defesa deste tema:
Há de se entender que a Justiça Agrária é imprescindível para harmonizar
a vida da sociedade. A sociedade agrária com suas características deve esta
perfeitamente harmonizada com a sociedade urbana, haja vista a necessidade
do homem do campo em relação às técnicas que advêm da cidade. Cada qual
com realidades bem distintas. Nessa linha, a Justiça Agrária é o caminho
mais seguro para conquista da cidadania. Uma Justiça com acesso rápido
e fácil pelo homem do campo. Uma Justiça com magistrado de mentalidade
agrarista. Uma Justiça para garantir a estabilidade no campo e na cidade.
(grifo nosso) (MIRANDA, 2002, p. 3)
A especialidade da justiça agrária traz a reformulação de conceitos arcaicos que
causam o entrave social. Nesse papel, a justiça agrária torna-se imprescindível como alertado
na Carta Cidadã de 1988. Assim não o sendo, não haveria a preocupação política de inserir no
texto constitucional. Necessário pensar-se daqui para a frente, a aplicação desta justiça como
fundamental à atenção aos trabalhadores rurais. E como ganho para toda a sociedade em
busca de uma caminho democrático de cidadãos iguais, em direitos, deveres e oportunidades.
4 CONCLUSÃO
A partir da primeira parte deste trabalho podemos verificar as diferentes concepções
de acesso à justiça, bem como, os óbices que atravancam o caminho para a efetividade do
acesso jurisdicional. Inseridos em tal contexto, estão os trabalhadores rurais. O acesso à
370
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I371
justiça destes, é obstaculizado em grande parte pela hipossuficiência econômica, ausência de
conhecimento e abismos culturais.
A prestação jurisdicional é determinante para a concretização de direitos
fundamentais elencado da Carta de Princípios/1988. Por tal motivo, o acesso à justiça é
elemento primordial para o exercício da cidadania. Os trabalhadores rurais poderão ter o
efetivo acesso à terra, cumprindo o disposto de dignidade da pessoa humana, quando a justiça
social por meio das decisões for entregue a estes.
Tratando da especialidade como alcance da prestação jurisdicional ao que tange os
trabalhadores rurais, chegamos ao ponto central deste trabalho.
De modo que, traçamos um breve histórico da dificuldade do acesso à terra ao
homem do campo. Claro o entendimento de que a distribuição de terras no Brasil, não atinge
o ideal de justiça social e equidade cidadã. E, portanto, a luta dos trabalhadores rurais percorre
o tempo e o território brasileiro. Em razão disto, por diversas vezes, viu-se a preocupação
estatal em diminuir, quiçá, dirimir os conflitos existentes, concretizado na Carta Cidadã de
1988.
No berço de seu texto, traz-se a baila as noções de função socioambiental da
propriedade e de desenvolvimento econômico do país. Sem, contudo, olvidar-se da dignidade
da pessoa humana, por meio do acesso à terra para sobrevivência e da igualdade de brasileiros
pela entrega equânime de oportunidades.
A justiça agrária, nesse contexto, passa a ser prevista após a EC45/2004, no art. 126.
Demonstração evidente da ciência do Estado que os conflitos agrários atingem hoje, grandes
proporções que são causa de um dos indícios de retrocessos societários. Não obstante, a
previsão constitucional, no plano fatídico pouco se desenvolveu. Embora as políticas públicas
de acesso à terra, a grande massa dos trabalhadores rurais não possui terra para moradia e
sobrevivência.
Por tal motivo, as varas agrárias podem dar o efetivo acesso à justiça aos
trabalhadores rurais, com magistrados dotados de uma consciência jus agrarista em prol da
justiça social. A especialidade toma corpo nesse momento. Nas ações em que o trabalhador
rural é parte dever-se-á se exaltar a cidadania, e por tal razão, as decisões deverão ser dotadas
de consciência social. Somente por meio dela o poder jurisdicional poderá diminuir as lacunas
371
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I372
que o Estado não suporta na realidade. É por meio do judiciário que se terá concretizado os
preceitos da Constituição 1988.
A previsão constitucional não detalhou de que maneira seria aplicada a instituição de
justiça agrária para resolução de conflitos agrários. Por isso, tecem estudiosos do ramo
agrarista a dimensão da justiça agrária em sua competência.
Elucidamos as matérias que já possuem competência federal, não seriam
competência da justiça agrária neste momento. Tais como trabalhadores rurais e suas relações
de trabalho e consequentemente a previdência que os abarca. A competência que se vê
necessária, diz respeito aos conflitos agrários de acesso à terra por meio de ações
possessórias, hoje ingressadas na esfera civil.
Do abarrotamento do judiciário, decorre a morosidade, fatal aos trabalhadores rurais.
E as decisões meramente procedimentais e de proteção a propriedade talham os direitos
sociais de trabalhadores do campo. Assevera-se que a competência está intrinsecamente
ligada a especialidade para a justiça social.
O que se demonstrou foi que a justiça agrária nada mais é que a justiça social
concretizada, e a promoção da cidadania. O que se pretende com a implementação de justiça
agrária é a efetividade da cidadania, balizada na igualdade entre todos.
Em um país com a estigmatização de vocação agrícola, é de pensar o congelamento
societário em que se vive. O mínimo que se deve a estes trabalhadores rurais é a prestação
jurisdicional de segurança jurídica e decisões conscientes e balizadas na justiça social para a
cidadania. Em uma sociedade totalmente segmentada, foram proporcionados justiças
especiais aos trabalhadores, aos militares e procedimentos como ações afirmativas às
mulheres e idosos. E aos trabalhadores rurais, inseridos em conflitos agrários nada lhes é
ofertado. É em nome destes, que este trabalho declara sua importância.
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374
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I375
O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO AMBIENTAL À LUZ
DOS ARGUMENTOS DE JEREMY WALDRON CONTRA O JUDICIAL REVIEW
THE
PRINCIPLE
OF
PROHIBITION
OF
ENVIRONMENTAL
RETROGRESSION ACCORDING TO THE ARGUMENTS OF JEREMY WALDRON
AGAINST THE JUDICIAL REVIEW
ANGELA CASSIA COSTALDELO1, JÚLIO CÉSAR GARCIA2
RESUMO
Após décadas de avanço e sistematização o Direito Ambiental brasileiro começa a sofrer
alterações e movimentos legislativos que podem configurar retrocessos. A partir de uma
descrição do princípio da proibição do retrocesso ambiental, o presente artigo apresenta a
posição de Jeremy Waldron contra o judicial review e busca investigar se a adoção daquele
princípio implica, por razões lógicas e práticas, no possível aumento da atuação do Poder do
Judiciário na tomada de decisões sobre a validade de opções legislativas propugnadas pelo
Poder Legislativo especialmente na seara ambiental. Com base no método dedutivo e por
meio da revisão bibliográfica, é realizada uma análise dos aspectos considerados importantes
para a apreciação de questões legislativas pelo Poder Judiciário. A hipótese defendida é a de
que o arranjo institucional brasileiro ainda não é capaz de atender aos requisitos estabelecidos
por Jeremy Waldron para sustentar sua tese contra o judicial review. O Judiciário brasileiro
ainda se coloca como instância necessária para a defesa do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, e o princípio da proibição do retrocesso ambiental, por si só, não
é causa necessária da ocorrência ou aumento da revisão judicial.
PALAVRAS-CHAVE: Poder Judiciário; Judicialização de demandas; Direto Ambiental;
Retrocesso Ambiental.
ABSTRACT
After decades of improvement and systematization the Brazilian Environmental Law starts to
undergo changes and movements that can configure legislative setbacks. From a description
of the principle of prohibition of environmental retrogression, this paper presents the position
of Jeremy Waldron against judicial review and investigates whether the adoption of that
principle means, for logical or pratical reasons, the increase of the interference of the
Judiciary Power in making decisions about the validity of legislative options advocated by the
legislature especially in environmental cases. Based on the deductive method and through the
literature review it analyses the aspects considered important to allow the judicial review over
legislative decisions. The hypothesis is that the Brazilian institutional arrangement is not yet
able to meet the requirements established by Jeremy Waldron to support his argument against
judicial review. The Brazilian Judiciary instance still stands as necessary for the defense of
the right to an ecologically balanced environment, and the principle of prohibition of
environmental retrogression, by itself, is not cause for the occurrence or increase of judicial
review.
KEYWORDS: Judicial Power; Judicial review; Environmental Law; Environmental
Retrogression.
1
Doutora em Direito, docente do curso de Doutorado em Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná, e Coordenadora do Núcleo de estudos do Direito Administrativo, Urbanístico, Ambiental e
Desenvolvimento – PRÓ-POLIS
2
Mestre em Direito, aluno do curso de Doutorado em Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal do Paraná, membro do Núcleo de estudos do Direito Administrativo, Urbanístico, Ambiental e Desenvolvimento –
PRÓ-POLIS, docente do curso de Direito da Unioeste, campus de Foz do Iguaçu-PR, integrante do GEDAI.
375
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I376
Introdução
O Estado Democrático de Direito tem como um de seus pressupostos consagrados a
observância do princípio da separação dos poderes. Por outro lado, em temas complexos e que
exigem posicionamentos contundentes uma polêmica permanece intensa: se um dos poderes
deve ter a última palavra e qual poder seria este.
Em diversos países, como ocorre no Brasil, há a preponderância das decisões do
Poder Judiciário sobre os demais, especialmente com a previsão de uma Corte superior que
detenha a competência de resguardar a Constituição Federal. Este fenômeno é comumente
chamado de judicial review e, apesar de defendido por diversos autores, sofre sérias críticas
por outros.
Dentre os autores que se destacam na oposição ao judicial review o presente estudo
analisará os argumentos mais recentes de Jeremy Waldron, em um artigo no qual apresenta o
ponto central desta discussão.
Esta análise tem por objetivo situar o papel do Poder Judiciário frente a aplicação de
um novo princípio do Direito Ambiental que está no foco principal da doutrina internacional
atual: o princípio da proibição do retrocesso ambiental.
A questão é saber se a aplicação do princípio que prevê a impossibilidade de uma
revisão legal resultar em uma situação de proteção ambiental pior do que a anterior sem lhe
oferecer alternativas compensatórias implicará no fortalecimento do Poder Judiciário e do
sistema do judicial review.
Da mesma maneira que Jeremy Waldron, este artigo também se concentra no judicial
review especificamente aplicado à atuação do Poder Legislativo na criação, alteração e
revogação de textos legais.
Na seara ambiental, estas questões surgem com frequência, e um aspecto a saber se
assenta no debate sobre a divisão dos poderes e até que ponto o sistema democrático brasileiro
admite a incursão do Poder Judiciário em decisões de política legislativa.
Aplicando o método dedutivo, este artigo se dividirá em três partes principais,
iniciando por uma descrição do princípio da proibição do retrocesso ambiental e
características de sua aplicação, para então tratar da posição de Jeremy Waldron sobre o
judicial review, destacando seus argumento contrários a esta prática. Finalmente serão
376
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I377
contrapostas diversas hipóteses visando analisar os questionamentos principais deste estudo,
apresentando-se inclusive o exemplo prático e atual da revisão do Código Florestal brasileiro.
1. O princípio da proibição do retrocesso ambiental
O estudo acerca do princípio da proibição do retrocesso ambiental é bastante recente
e, por esta razão, não é possível encontrar muitas referências doutrinárias, jurisprudenciais ou
pesquisas científicas a seu respeito.3
A este propósito é possível considerar tal princípio como em fase ainda propositiva
ou de reconhecimento, razão pela qual é importante ressaltar a sua definição, de maneira a
delimitar o escopo, finalidade e fundamentos jurídicos de sua aplicação.
Por retrocesso entende-se o retorno a uma situação anterior considerada pior ou
ultrapassada4. Portanto, não é o simples retorno da situação atual para a anterior que deve ser
considerado um retrocesso, mas o fato de que este retorno ocorrer de maneira prejudicial,
ultrapassada, gerando prejuízos sociais, políticos, econômicos e ou ambientais. Observa-se
nestes casos, uma desconstrução ou inobservância do progresso já obtido, normalmente
refletido no desenvolvimento de ações, institutos, instrumentos, políticas, programas, padrões
de qualidade, etc. O retorno sadio a uma situação anterior pode ser denominado de
restauração, porém o retorno em sentido pejorativo, uma regressão, é o que caracteriza o
retrocesso que se visa evitar ou impedir a partir da construção deste princípio jurídico.
Ainda não há consenso quanto à terminologia empregada hoje para expressar o
princípio da proibição do retrocesso ambiental, que também recebe as seguintes
denominações: (a) princípio do standstill no Direito belga; (b) "efeito catraca" ou "regra
3
Além dos estudos de Ingo Sarlet sobre o princípio da proibição do retrocesso social (dentre os quais destacam: A Assim
Designada Proibição de Retrocesso Social e a Construção de um Direito Constitucional Comum Latino-Americano. Revista
brasileira de estudos constitucionais, v. 11, p. 167-204, 2009; Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso:
algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito
Constitucional, São Paulo: ESDC, 2004, v. 4, n. jul-dez, p. 241-271, 2004; A eficácia do direito fundamental à segurança
jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no Direito Constitucional
brasileiro. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, Malheiros, v. 39, p. 53-86, 2002; Princípio da Proibição de
Retrocesso. In: Ricardo Lobo Torres; Edurado Takemi Kataoka; Flavio Galdino. (Org.). Dicionário de Princípios Jurídicos.
Rio de Janeiro/RJ: Elsevier, 2011, v. 01, p. 1043-1071), destaca-se a obra de Carlos Alberto Molinaro no Brasil (Direito
Ambiental. Proibição de Retrocesso, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007). Recentemente, sob a coordenação de
Michel Prieur e Gozalo Sozzo, foi lançada a obra “La non régression en droit de l’environnement” pela editora belga
Bruylant (2012). Ainda no direito estrangeiro destaca-se a obra de Isabelle Hachez “Le principe de standstill dans le droit des
droits fondamentaux: une irréversibilité relative.” Bruxelles: Bruylant, 2008.
4
Originário do latim retrocessus, este é o sentido apresentado pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS,
2009, p. 1661): 1. ato, processo ou efeito de retroceder, retrogradação, retrocessão - 2. deslocamento físico para trás, retorno
ao local de onde se saiu; retirada, recuo - 3. retorno no tempo; volta ao passado - 4. volta ao primitivo estado ou ordem,
considerada ultrapassada em relação a uma determinada época (r. política) - 5. estado ou condição do que está começando a
se degradar; decadência. (grifos nossos)
377
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I378
catraca anti-retorno" na doutrina francesa; (c) intangibilidade dos direitos fundamentais, para
Olivier de Frouville; (d) direitos legislativos adquiridos ou a irreversibilidade dos direitos
humanos, para Konrad Hesse; (e) a cláusula do status quo ou de proibição da retrogressão,
para S. R. Osmani. Em inglês se encontra a expressão ratchet principle, em espanhol
prohibicion de regressividad o de retrocesso; e em português "proibição de retrocesso".
(PRIEUR, 2012, p. 08)
Para Michel Prieur (2012, p. 08) o melhor ainda é optar pela expressão "princípio de
não retrocesso" (principe de non régression) por ela "bem demonstrar que o que está em jogo
é a salvaguarda do progresso adquirido no conteúdo da legislação ambiental"5. O autor
explica que até se poderia utilizar a terminologia "princípio do progresso", mas ele é muito
vago e na prática toda a legislação pressupõe garantir o progresso da sociedade. Além disto, o
objetivo é destacar a especificidade do Direito Ambiental quanto aos recuos que constituem
retrocesso na proteção do meio ambiente, mesmo quando estes não sejam absolutos, mas
apenas gradações da regressão.
Já Carlos Molinaro (2007, p. 67) defende a noção da proibição da retrogradação
ambiental, pois “a vedação da degradação ambiental constitui-se no objeto do princípio da
proibição da retrogradação socioambiental em sede de direito ambiental” e também que
“retrogradar expressa melhor a ideia de retroceder”. E continua: “o que o direito ambiental
objetiva é proteger, promover e evitar a degradação do ambiente”.
O Direito Ambiental manifesta em suas normas e objetivos, associando-o também a
um caráter finalista de progresso e desenvolvimento sustentável. Esta é a lógica defendida por
Michel Prieur e Gonzalo Sozzo. Para o autor francês "o objetivo do Direito Ambiental é de
lutar contra a poluição e preservar a biodiversidade". (PRIEUR, 2012, p. 09) Em outras
palavras, "aquele que devido a seu conteúdo contribui para a saúde pública e à manutenção do
equilíbrio ecológico integra o Direito Ambiental"6. (PRIEUR, 2012, p. 10)
Para Gonzalo Sozzo (2012, p. 73), a finalidade assume o caráter de um progresso
como perdurabilidade, o que leva a uma permanência transgeracional. De acordo com ele “a
5
“[…] pour bien montrer que ce qui est en jeu c’est la sauvergarde des progrès acquis dans le contenu des législation
environnementales.” (Tradução livre)
6
“[…] c’est un droit engagé dans la lutte contre les pollutions et la perte de biodiversité. […] c’est celui qui par son conteny
contribue à la santé publique et au maintien des équilibres écologiques, c’est un droit pour l’environnement.” (Tradução
livre)
378
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I379
fundação do princípio da proibição do retrocesso exige uma base teórica mais ousada, mais
universal, mais cosmopolita. Esta base é a ideia do progresso como perdurabilidade”7.
Segundo o autor argentino, a partir da segunda modernidade o futuro deixa de ser
visto como progresso e começa a ser visualizado como duração, surgindo uma nova metáfora
para se referir ao futuro: as gerações futuras. (SOZZO, 2012, p. 73) Assim observa-se uma
nova transformação da noção de progresso: concepção aliada à perdurabilidade, o que nas
palavras do autor "implica admitir que se progride quando se assegura as gerações futuras a
transmissão de um certo volume de bens e o progresso como perdurável, não durável".8
(SOZZO, 2012, p. 74)
Observe-se que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, juntamente
com a noção de preservação dos processos ecológicos essenciais, indicam marcos ou limites
mínimos para a proteção ambiental, mas mais do que isto, criam feixes complexos de direitos
humanos e deveres constitucionais interligados a partir da finalidade mediata desta proteção,
qual seja, a promoção da qualidade de vida. Na prática, podem existir retrocessos ambientais
que não impliquem necessariamente na degradação ambiental, razão pela qual a opção pela
denominação “proibição do retrocesso ambiental” ainda se mostra mais abrangente e
adequada.
Para Ingo Sarlet, (2009, p. 04) considera-se o retrocesso uma situação
constitucionalmente ilegítima que se configura:
[...] quando forem transpostas certas barreiras, representadas, por sua vez, por um conjunto
de limites expressos e implícitos estabelecidos pela ordem jurídico-constitucional, sem
prejuízo de barreiras inerentes ao processo político e social, em geral mais eficazes quando
se trata de conter determinadas reformas.
José Gomes Canotilho (S/d, p. 337) reconhece não ser possível fazer frente à
reversibilidade fática, tal como em recessões ou crises econômicas, porém entende que o
princípio da proibição do retrocesso (analisado no âmbito social):
[...] limita a reversibilidade dos direitos adquiridos, em clara violação do princípio da
protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e
cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da
pessoa humana. (grifos do autor)
Outra questão recorrente é a da defesa da soberania dos parlamentos frente ao direito
adquirido das leis postas. Verifica-se que o excesso de poder legislativo se choca contra a
7
“Que la fundación del principio de no regresión exige una base teórica más osada, mas universal, mas cosmopolita. Esa
nase es la ideia de progreso como perdurabilidad.” (Tradução livre)
8
“[…] implica admitir que se progresa cuando se asegura a las generaciones futuras la transmisión de un cierto volumen de
bienes y el progreso como ‘perdurable’, no durable.” (Tradução livre)
379
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I380
busca da equidade ambiental. Afirmar que a proibição do retrocesso dos direitos ambientais
implicaria no engessamento legislativo ou mesmo no desrespeito ao papel e soberania do
Poder Legislativo é um equívoco. Para tanto, fundamental será o reconhecimento de claros e
seguros indicadores da Constituição Federal e dos princípios fundamentais do ordenamento
jurídico que apontem para os limites às mudanças legais e administrativas.
É nesta linha de raciocínio que Éric Naim-Gesbert (2012, p. 126) explica que "o
princípio da proibição do retrocesso significa o não-retorno sobre o acervo jurídico - contra
ventos e mares - e uma concepção aberta à adaptação da norma"9. Busca assim mostrar que o
princípio não induz a imutabilidade, mas apenas estabelece um nível de proteção que não
pode ser reduzido, seja material ou processualmente, de tal sorte que a modificação de uma
norma que regule direitos fundamentais deve apresentar soluções no mínimo equivalentes em
termos de resultados, demonstrando o caráter finalista do direito ambiental.
Pietro Costa (2010, p. 258) faz uma análise histórica da criação do Estado de Direito
na cultura europeia, e destaca o papel que a teoria kelseniana do Estado enquanto criação
jurídica desempenhou para permitir o controle da soberania legislativa. Da mesma maneira
que Jhering e Jellinek teorizaram a autolimitação estatal e seus efeitos para a vinculação do
Estado a limites no seu âmbito administrativo, a teoria de Kelsen atuou no controle do poder
legislativo, uma vez que
A sua degeneração tirânica é impedida pela ação conjunta de dois elementos: o primado da
norma sobre o poder (a superioridade hierárquica da constituição nos confrontos da lei) e a
possibilidade de confiar a um órgão judiciário o controle da atividade legislativa.
Outro argumento importante apresentado por Michel Prieur é o de que o meio
ambiente é um “valor-político” que busca um ajuste entre o humano e o animal em busca do
progresso permanente da sociedade. Se as políticas ambientais atuam na condição de reflexo
do progresso, elas deveriam impedir todos os tipos de retrocesso. (PRIEUR, 2012, p. 15)
Dentre as principais formas de fundamentação do princípio da proibição do
retrocesso ambiental no ordenamento jurídico brasileiro, as três seguintes destacam-se devido
a sua relação com a temática do judicial review:
a) A interpretação do Art. 225, caput e parágrafos, da Constituição Federal de 1988
conduz à criação do chamado Estado de Direito Ambiental, o qual se fundamenta em um
indicador de referência ou limite de tolerabilidade: o meio ambiente ecologicamente
equilibrado. Sendo este o objetivo maior deste Estado, qualquer norma, programa ou atividade
9
“Le principe de non-régression signifie le nonpretour sur l’acquis juridique – contre vents et marées – en une conception
ouverte à l’adaptation de la norme”. (Tradução livre)
380
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I381
governamental que denote um retrocesso no nível de proteção deste equilíbrio ou que atente
contra os denominados processos ecológicos essenciais deve ser considerado inconstitucional.
b) A Constituição Federal também regula de maneira expressa as cláusulas pétreas,
apresentando entre o rol destas, previsto no artigo 60, §4º, os direitos e garantias individuais
(inciso IV). Considerando o caráter multidimensional do bem ambiental (GARCIA, 2004, p.
107), o seu aspecto individual também representa um direito fundamental do indivíduo, de
maneira que a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado pode ser
considerada uma cláusula pétrea, servindo também de fundamento para o princípio da
proibição do retrocesso ambiental.
c) Uma hipótese complementar às anteriores é a da caracterização do direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado como um direito humano e fundamental. Nesta
qualidade, este direito passa a gozar das mesmas prerrogativas dos direitos fundamentais em
geral, e dentre elas a de não permitir o retrocesso no nível de proteção do ser humano.
Ao explicar a força normativa da Constituição ambiental, Joaquim Gomes
Canotilho (s/d, p. 12) destaca o fenômeno da ecologização da ordem jurídica. Além de impor
aos vários decisores (legislador, tribunais, administração) o respeito ao bem ambiental
constitucional, a responsabilidade estatal por omissão, e a obrigação de agir do Estado em
matéria ambiental, este fenômeno jurídico também fundamenta o princípio da proibição do
retrocesso em matéria ambiental:
[...] a liberdade de conformação política do legislador no âmbito das políticas ambientais tem
menos folga no que respeita à reversibilidade político-jurídica da protecção ambiental,
sendo-lhe vedado adoptar novas políticas que se traduzam em retrocesso retroactivo de
posições jurídico-ambientais fortemente enraizadas na cultura dos povos e na consciência
jurídica geral.
Quanto a cláusula pétrea, verifica-se que toda lei, atividade governamental ou
alteração administrativa ambiental que denote um sistema pior, ultrapassado ou mais brando
em relação a preservação do meio ambiente e que por consequência atente contra o bem
ambiental constitucional deverá ser considerado como um atentado a uma cláusula pétrea.
Ainda que este afronte não seja direto ao texto constitucional no sentido formal, bastará que
ele ocorra no sentido material.10
Segundo Michel Prieur e Gozalo Sozzo (2012, p. 01), são duas as principais ameaças
ao recuo do Direito Ambiental, a (i) políticas: a vontade demagógica de simplificar o direito
por meio da desregulação, em virtude do grande número de normas jurídicas ambientais tanto
10
Sobre os limites materiais às emendas a Constituição vide: CHIMENTI, Ricardo Cunha; et al. Curso de direito
constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 17.
381
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I382
no plano internacional quanto nacional; e as (ii) econômicas: a crise econômica mundial
favorece o discurso que exige menos obrigações jurídicas no domínio ambiental pois
constituiriam um freio ao desenvolvimento e a erradicação da pobreza.
No Brasil o tema da proibição do retrocesso normativo foi estudado por Ingo Sarlet,
que apresenta vários argumentos que fundamentam a aplicabilidade e validade do princípio no
ordenamento jurídico pátrio, especialmente no tocante aos direitos sociais11. Apesar da
viabilidade de sustentação do princípio da proibição do retrocesso ambiental nestes termos, há
que se considerar também a possibilidade de diferenciação dos fundamentos. Ao atrelar o
princípio da proibição do retrocesso social à dignidade da pessoa humana, Ingo Sarlet (1999,
p. 111-132) deixa margem para questionamentos na ordem ambiental quanto ao significado e
limites da dignidade humana frente ao bem jurídico ambiental, com o qual guarda absoluta
ligação, mas não mais primazia absoluta.
Com a mesma lógica, Carlos Molinaro (2007, p. 74) entende que o princípio da
proibição da retrogradação ambiental “está diretamente subsumido no entrelaçamento dos
princípios matrizes: dignidade da pessoa humana/segurança jurídica”. Porém não ficam claras
as hipóteses nas quais o interesse de proteção do bem ambiental se choca diretamente com
interesses sociais, especialmente a partir de efeitos jurídicos da aplicação dos valores
denominados biocêntricos.
A questão que surge com a previsão e aplicação do princípio da proibição do
retrocesso ambiental diz respeito aos limites e poderes do Poder Judicial para rever decisões
do Poder Legislativo, em especial no tocante a edição e revisão de leis regularmente
aprovadas.
2. A posição de Jeremy Waldron sobre o Judicial Review
Podendo também ser denominado de “jurisdicionalização de demandas”, o judicial
review consiste na atuação do Poder Judiciário frente a temas que são por natureza ou opção
legislativa atribuídos ao outros Poderes. Desta maneira, a “revisão judicial” pode ocorrer tanto
perante demandas de conteúdo político, como também atividades próprias do processo
legislativo ou ainda de decisões administrativas pelo Poder Executivo.
11
SARLET, Ingo Wolfgang. O Estado Social de Direito, a Proibição de Retrocesso e a Garantia Fundamental da
Propriedade, in: Revista da Faculdade de Direito da UFRGS nº 17, 1999, p. 111-132. E ainda: A Eficácia dos Direitos
Fundamentais, 9. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p., 436 e ss., artigo na primeira edição da já clássica obra de
Lenio Luiz Streck, Hermenêutica Jurídica e (m) Crise, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 39.
382
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I383
Um dos grandes opositores ao judicial review, com diversos trabalhos dedicados a
desconstruir esta forma de atuação do Poder Judiciário, Jeremy Waldron (2006, p. 1351),
publicou mais um artigo sobre o tema, desta vez procurando atacar o que chamou de o
“núcleo” ou “ponto central” dos argumentos contrários ao judicial review, porém de maneira
independente de suas manifestações históricas e efeitos em casos particulares.
São os fundamentos apresentados por Jeremy Waldron neste artigo que serão
sistematizados neste tópico, visando orientar a reflexão seguinte sobre as consequências da
adoção do princípio da proibição do retrocesso ambiental sobre eventual fortalecimento da
atuação do Poder Judiciário na tomada de decisões pertinentes a outros poderes.
De acordo com Jeremy Waldron (2006, p. 1353) o judicial review que ele próprio
procura analisar diz respeito a “revisão judicial” de atos do Poder Legislativo. Segundo o
autor existem diversos tipos de judicial review no mundo, mas que podem ser diferenciados a
partir de algumas características quanto: (i) a força com que ocorrem (fortes/fracos), (ii) a
posição em que se situam os direitos individuais no ordenamento jurídico (protegidos na
Constituição/leis ou atos esparsos), (iii) o momento em que a revisão ocorre (a
posteriori/previamente), (iv) e a instância na qual ocorre (cortes comuns/cortes
constitucionais especiais).
Para sua discussão, o autor indica claramente tratar do judicial review forte, baseado
em um sistema expresso de direitos individuais, que ocorrem a posteriori e por cortes comuns
e considera um judicial review forte quando
as cortes possuem a autoridade de recusar a aplicação de uma lei a um caso particular
(mesmo quando a lei prevê em seus próprios termos aplicar-se ao caso) ou a modificar o
efeito da lei para fazer sua aplicação conforme direitos individuais (de maneira que a lei em
si própria não prevê). Além disto, as cortes neste sistema têm a autoridade de estabelecer que
uma determinada lei não será aplicada tornando-a assim letra morta. (WALDRON, 2006, p.
1354)12
O autor explica que posições contrárias ao judicial review existem há muito tempo,
em especial quanto ao seu déficit democrático em uma sociedade que mantém um legislativo
composto por representantes eleitos em contraposição a juízes não eleitos. (WALDRON,
2006, p. 1349)
Em síntese, argumenta que o judicial review está vulnerável a crítice em duas frentes
12
“[…] courts have the authority to decline to apply a statute in a particular case (even though the statute on its own terms
plainly applies in that case) or to modify the effect of a statute to make its application conform with individual rights (in ways
that the statute itself does not envisage). Moreover, courts in this system have the authority to establish as a matter of law that
a given statute or legislative provision will not be applied, so that as a result of stare decisis and issue preclusion a law that
they have refused to apply becomes in effect a dead letter.” (Tradução livre)
383
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I384
principais:
Diferente do que é normalmente aclamado, ele não provê um caminho para a sociedade focar
de maneira clara nas reais questões em jogo quando cidadãos discordam quanto a direitos; ao
contrário, ele cria uma distração por meio de questões secundárias sobre precedentes, textos,
e interpretação. E é politicamente ilegítimo, enquanto se referir a valores democráticos: por
privilegiar o voto majoritário entre um pequeno número de juízes não eleitos e não
suscetíveis de revisão, ele desvaloriza cidadãos ordinários e desconsidera princípios de
representatividade e igualdade política no processo de decisão final sobre controvérsias
13
envolvendo direitos. (WALDRON, 2006, p. 1353)
Para fazer valer estas teses, o autor apresenta um sociedade idealizada, a partir de
quatro pressupostos condicionais (pré-condições) para sua tese, quais sejam: (1) de que o
legislativo funcione adequadamente; (2) que o judiciário funcione adequadamente; (3) que os
direitos fundamentais sejam aceitos por todos; (4) que exista discordância quanto a
interpretação de direitos fundamentais. (WALDRON, 2006, p. 1360)
Apesar disto, faz uma ressalva quanto a hipóteses excepcionais nas quais o judicial
review possa ser necessário, especialmente no contexto de alguns países onde ocorrem o que
denomina de “patologias legislativas” relacionadas a gênero, raça ou religião. (WALDRON,
2006, p. 1352)
Mas mesmo nestes exemplos questiona se a defesa do judicial review vai ao cerne da
questão ou limita-se apenas a uma excepcionalidade “que busca impedir o seguimento de uma
tendência que, na maioria das circunstâncias, apresentaria um argumento normativo
convincente contra esta prática”.14 (WALDRON, 2006, p. 1352)
Apesar de toda sua fundamentação, o fato de sustentá-la em uma sociedade com
requisitos muito específicos abre margem para diversas críticas e, talvez por isto, o próprio
autor conclui o texto abrindo a possibilidade de que
Talvez existam circunstâncias — patologias peculiares, instituições legislativas
disfuncionais, culturas políticas corruptas, legados de racismo e outras formas de preconceito
endêmicos — nos quais os custos deste “ofuscamento” e “desempoderamento” sejam válidos
13
“It does not, as is often claimed, provide a way for a society to focus clearly on the real issues at stake when citizens
disagree about rights; on the contrary, it distracts them with side-issues about precedent, texts, and interpretation. And it is
politically illegitimate, so far as democratic values are concerned: By privileging majority voting among a small number of
unelected and unaccountable judges, it disenfranchises ordinary citizens and brushes aside cherished principles of
representation and political equality in the final resolution of issues about rights.” (Tradução livre)
14
an exceptional reason to refrain from following the tendency of what, in most circumstances, would be a compelling
normative argument against the practice. (Tradução livre).
384
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I385
por enquanto.15 (WALDRON, 2006, p. 1406)
É sobre esta margem de abertura argumentativa que o tópico seguinte procurará
discutir a situação atual brasileira, especialmente no tocante às recentes proposições de
mudanças legislativas ambientais e a defesa de seu bloqueio por meio do Poder Judiciário
fundado no princípio da proibição do retrocesso ambiental.
3. Retrocesso ambiental ou retrocesso democrático?
A adoção e aplicação do princípio da proibição do retrocesso ambiental pode gerar
situações nas quais tentativas ou efetivas mudanças legislativas esbarrem em valores, padrões
ou limites ambientais estabelecidos na Constituição Federal ou mesmo em leis anteriores.
Como visto no tópico 1, alguns dos fundamentos do princípio do retrocesso
ambiental tem base constitucional. Neste sentido, todo retrocesso ambiental será sempre
considerado inconstitucional e, portanto, passível de revisão pelo Poder Judiciário. Tanto o
processo quanto o mérito da questão são fundados no sistema de controle de
constitucionalidade vigente no direito brasileiro.
O aspecto principal criticado por Jeremy Waldron diz respeito a legitimidade do
Poder Judiciário, no caso brasileiro manifestado no controle difuso ou concentrado de
constitucionalidade, fazer valer sua decisão como última instância, especialmente
considerando-se uma decisão final do Supremo Tribunal Federal.
Em primeiro lugar, deve-se ressaltar que o princípio da proibição do retrocesso
ambiental deve instruir o próprio processo de formação do texto legal e das alterações
propostas pelo Poder Legislativo, sendo um dos principais aspectos a serem considerados
pelas chamadas Comissões Parlamentares de Constituição e Justiça.
Nesta hipótese, a proposta de Jeremy Waldron mostra-se bastante adequada ao
transferir ao Poder Legislativo a capacidade plena de tomada de decisões que busquem sanar
controvérsias entre direitos, buscando escolher a melhor situação considerando também o
nível de proteção ambiental existente e o almejado.
15
Maybe there are circumstances—peculiar pathologies, dysfunctional legislative institutions, corrupt political cultures,
legacies of racism and other forms of endemic prejudice—in which these costs of obfuscation and disenfranchisement are
worth bearing for the time being. (Tradução livre).
385
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I386
Por outro lado, faz-se necessário verificar se o Poder Legislativo brasileiro, nas três
esferas da Federação, apresenta-se nas condições exigidas por Jeremy Waldron para que sua
tese seja sustentada. Para além dos requisitos 3 e 4 (que os direitos fundamentais sejam
aceitos por todos e que exista discordância quanto a interpretação de direitos fundamentais), o
problema brasileiro se concentra no correto funcionamento de suas instituições estatais,
notadamente o Legislativo e o Judiciário.
A partir disto, os problemas recorrentes do Legislativo brasileiro vêm à tona:
corrupção, ausência de preparo dos parlamentares, falta de embasamento técnico para as
discussões, interferências políticas, predomínio de interesses e grandes lobbys econômicos,
dentre outros.
Para além destas “patologias legislativas”, J. Vasconcelos (2012, passim) alerta para
outros comprometimentos da legitimidade do Poder Legislativo, desde o surgimento da figura
do político profissional (desvinculado da representação de interesses gerais e associada a um
esquema permanente de reeleição de grupos políticos) a falta de real representatividade dos
parlamentares eleitos.
Conrado H. Mendes (2011, p. 88) também enfrenta o tema da separação dos poderes
e
apresenta uma descrição sintética das principais correntes defensoras e críticas da
“supremacia judicial”. Quanto às defensoras, apresenta um modelo ideal de juiz e de corte
constitucional, e em determinados casos apresenta um argumento positivo pela revisão
judicial, e em outros são negativos contrários a absoluta supremacia parlamentar. E sintetiza
da seguinte maneira os pontos centrais da visão de cada corrente ao assinalar que
Num cenário, um legislador predominantemente egoísta e venal, dedicado exclusivamente ao
alpinismo político, à expansão e perpetuação de seu poder, contra um heróico e impassível
juiz defensor de direitos, líder do debate moral, e consciência crítica e educadora da
democracia. No outro, um juiz verborrágico, legalista e ideológico contra um legislador
virtuoso e de espírito público. (MENDES, 2011, p. 104)
Para além destas visões pessimistas e voltadas aos problemas e vícios de cada Poder,
importa resgatar suas potencialidades e qualidades no cenário de efetivo exercício
democrático, sem com isso negligenciar instrumentos que protejam a democracia do pior
cenário possível.
No Brasil Virgílio Afonso da Silva (2009, p. 199) busca inovar na abordagem deste
assunto ao demonstrar o fato de que, no Brasil, o modelo de controle de constitucionalidade
está cada vez mais concentrado no Supremo Tribunal Federal, restando ainda muito distante
dos modelos europeus de tribunais constitucionais.
386
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 1 - Acesso à Justiça I387
O mito de o controle de constitucionalidade dever ser, necessariamente, realizado
pelo Poder Judiciário, por razões de ordem lógica é derrubado, segundo o autor, pelos
baldrames apresentados por Carlos Santiago Nino (Apud SILVA, 2009, p. 202), ao defender
que
[...] decidir sobre que tipo de controle se deseja é uma questão prática (e política) e não
lógica, o que implica dizer que uma eventual escolha por um determinado tipo de controle
de constitucionalidade deve ser feita e justificada dentro de um debate sobre desenho
institucional e não a partir de um pretenso raciocínio jurídico-formal.
A Constituição não perderia seu caráter de limite ao Poder Legislativo se a lei
aparentemente inconstitucional tivesse que ser aplicada sem questionamentos pelos juízes
pois “a supremacia de uma Constituição não tem nenhuma relação lógica necessária com a
possibilidade ou impossibilidade de que juízes possam controlar a constitucionalidade das
leis”. (NINO, Apud SILVA, 2009, p. 202)
Para Virgílio Afonso da Silva (2009, p. 204) o cerne do debate sobre o controle
constitucional atual pode ser resumido na contraposição entre o fórum dos princípios e a
maximização da participação popular, ou seja, a contraposição entre as idéias de Dworkin e
Waldron, as quais sintetiza nos seguintes termos:
De forma muito resumida, na concepção de Dworkin, uma democracia constitucional tem
necessariamente duas dimensões: a da política, na qual os membros de uma comunidade
decidem em conjunto questões relativas aos interesses coletivos; e a dimensão dos
princípios, relativa à proteção dos direitos individuais dos cidadãos. No fórum dos
princípios, cujo locus por excelência é o Judiciário - ou, mais precisamente, o tribunal de
cúpula do Judiciário ou um tribunal constitucional -, esses direitos servem como trunfos
contra decisões de política. Daí a justificação de um controle de constitucionalidade dos atos
políticos: garantir os direitos individuais contra a política e contra maiorias circunstanciais.
Seria a garantia de direitos que conferiria legitimidade ao controle de constitucionalidade.
[...] Para Waldron, contudo, justificar o controle judicial de constitucionalidade a partir da
ideia de que direitos devem funcionar como trunfo contra decisões legislativas majoritárias
ignoraria o desacordo moral existente em sociedades plurais, ou seja, ignoraria o fato de que
as pessoas têm concepções diferentes acerca dos seus direitos mais básicos (da mesma forma
que têm concepções diferentes sobre justiça social e políticas públicas). Em decorrência
disso, isto é, em face da existência de um amplo desacordo acerca dos direitos fundamentais,
a decisão acerca da questão “quem deve decidir sobre esses direitos?” deve ser tomada em
igualdade de condições pelos cidadãos em uma comunidade, algo que não corre quando se
reserva essa decisão a uma elite judiciária. Percebe-se, com isso, que a ideia de participação,
especialmente a de “participação em igualdade de condições” é central na tese de Waldron.
Não por outra razão, ele denomina direito à participação como “o direito dos direitos”.
A partir deste debate que considera maniqueísta, como se o problema se resumisse às
alternativas “todo poder aos juízes” ou “todo poder ao legislador”, Virgílio Afonso da Silva
(2009, p. 203) oferece sua visão alternativa, que propõe “a existência de um contínuo de
possibilidades de arranjos institucionais diversos que extrapolam essa contraposição
simplista”.
387
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O autor apresenta a necessidade de diálogo constitucional, por meio da deliberação e
da razão pública, no que vem se chamando de “democracia deliberativa”. Seguindo a tese de
John Rawls, apresenta a ideia de que a Suprema Corte tem tudo para ser o locus por
excelência da deliberação racional e da razão pública. (SILVA, 2009, p. 209)
Estas teses possuem grande relevância teórica, porém precisam passar pelo teste da
realidade. Para melhor compreensão deste cenário, interessante analisar o recente caso da
aprovação do “novo” Código Florestal brasileiro no Congresso Nacional.
Trata-se do projeto de Lei nº 1.876-E/99 que, após aprovação polêmica e
controvertida no Congresso Nacional, alterou o Código Florestal Brasileiro, podendo ser
considerado um exemplo recente de grande e sério retrocesso ambiental, sob diversos
aspectos.16
Em primeiro lugar, o novo texto propõe uma série de abrandamentos das exigências
de preservação florestal, diminuindo a extensão e obrigatoriedade da reserva legal e das áreas
de preservação permanente.17 Ao mesmo tempo, o país passa pelo aumento das áreas
desmatadas18, aumento este estimado em mais de 127% nos últimos 10 anos nas áreas de
proteção, e uma condição de déficit de áreas verdes nativas por habitante, considerando-se o
índice recomendado pela Organização Mundial de Saúde.19
16
DUARTE, Geiza. Código Florestal é aprovado na Câmara dos Deputados - Para ambientalistas, texto é um retrocesso na
defesa do meio ambiente. Jorn

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