Projecto de Promoção de Leitura para Jardim-de

Transcrição

Projecto de Promoção de Leitura para Jardim-de
Colégio de Nossa Senhora da Paz
[Porto]
Projecto de Promoção de Leitura
para Jardim-de-Infância e 1º Ciclo
Uma reportagem de Mariana Sim-Sim David
Casa da Leitura, Abril de 2010
|1|
Índice
1.
2.
3.
Introdução
Projecto de Promoção de Leitura do Colégio de Nossa Senhora da Paz
Perfil de Competências de um animador de leitura
Anexos
03
03
09
|2|
1. Introdução
O Projecto de Promoção de Leitura desenvolvido por Inês Duarte no Colégio de
Nossa Senhora da Paz, no Porto, é um espaço de contacto com a literatura e a leitura para
as salas de Jardim-de-Infância, e uma disciplina leccionada nos quatro anos do 1º Ciclo
de escolaridade. A professora responsável pelo projecto desde o início (no ano lectivo de
2006/2007), serviu-se do seu «perfil misto» (isto é, da formação que fez em diferentes áreas)
para criar diversas dinâmicas e exercícios à roda da leitura e dos livros que constituem o
programa de estudo desta disciplina. Entrevistámos a professora para conhecer melhor
o projecto e algumas actividades desenvolvidas no seu âmbito, e também para perceber
de forma mais aprofundada o que é um animador de leitura. Sendo uma área de
trabalho relativamente recente, a animação de leitura tem vindo a ganhar visibilidade
e importância, mas dispõe ainda de pouco trabalho teórico e conceptualização, o que
dificulta o exercício da profissão de animador. Inês Duarte tem procurado, através da
investigação que vem desenvolvendo, colmatar essa lacuna.
2. Projecto de Promoção de Leitura do Colégio de Nossa Senhora da Paz
Como construir um projecto de promoção da leitura? Foi esta a pergunta que Inês
Duarte, então com 21 anos, se colocou ao saber que o Colégio de Nossa Senhora da Paz,
no Porto, a convidava para ser sua professora, não do 1º Ciclo (posição a que se tinha
candidatado), mas de uma área nova, estreada no ano lectivo de 2006/2007, o Projecto
de Promoção de Leitura. «Quando entrei cá, queriam, sobretudo, criar hábitos de leitura
– neste caso, em crianças do 1º Ciclo – e queriam preparar pré-leitores, portanto, no
pré-escolar. Não sabiam muito bem como é que isso se poderia processar, e, por isso,
pediram-me ajuda. Ora, eu tinha uma vontade enorme de ler – normalmente, já fazia
animação de leitura fora de portas – e pensei: “Tenho de estruturar um projecto para
fazer com que as crianças mais pequenas comecem a gostar do objecto-livro e a gostar
de ouvir histórias, etc.”» A surpresa inicial pelo convite recebido deu lugar a um trabalho
exigente de planificação de aulas, leitura e selecção de livros e elaboração de estratégias,
pensadas para aliciar os mais novos para a leitura. Inês foi, gradualmente, trabalhando
com mais turmas do pré-escolar e do 1º Ciclo. O Colégio, instituição privada de tradição
e boa reputação no Porto, possuía um fundo de biblioteca desactualizado e a precisar
de novo fôlego, necessidade que se tornava ainda mais evidente quando comparado
com as escolas públicas, que vinham sendo melhoradas com estruturas como a rede de
bibliotecas escolares e equipadas com quadros interactivos e computadores.
«Deram-me carta-branca para uma série de coisas! Nunca tive entraves em relação
aos livros que pedia, ao tipo de livros que pedia e até em relação ao envolvimento dos
pais nas actividades. É um projecto muito fluído e que foi crescendo, foi avolumando com
cada vez mais tempo, mais esforço, mais empenho por parte dos colegas.»
Inês trabalha com as salas do Jardim-de-Infância e as turmas do 1º Ciclo (do 1º
ao 4º ano) do Colégio, engendrando actividades diferentes para cada um destes grupos.
No caso do pré-escolar, o programa do Projecto de Promoção de Leitura articula-se com
|3|
o tema escolhido pelos meninos de cada uma das salas, que pode variar de ano para
ano. «O pré-escolar, aqui, trabalha com metodologia de projecto. Ou seja, quando as
educadoras conhecem os grupos, vão percebendo os seus focos de interesse e é escolhido
um tema. Imaginemos: este ano, temos uma sala de 5 anos que quer saber mais sobre
dinossáurios, então vou falar com as educadoras, e juntamente com elas pensamos qual
pode ser o meu papel ali.» Começa assim o trabalho de caracterização: «Assumo uma
personagem, por exemplo, um paleontólogo – neste caso, sou uma paleontóloga, a
Joana Pegadas, que vai à sala do pré-escolar.» Depois de vestir esta personagem, Inês
Duarte documenta-se sobre o assunto, passando posteriormente a fazer pesquisas em
conjunto com os alunos. «Tento iniciar os meninos na organização da sua biblioteca, por
exemplo, dividindo o que são os livros de histórias e o que são livros de investigação (eles
conseguem distingui-los pelas capas; esse é um tipo de leitura que também treino com
eles). À medida que o projecto vai evoluindo, vai crescendo o número de livros, facto
de que eles têm noção, e eu vou fazendo pesquisas com eles enquanto Joana Pegadas.»
A construção da «Biblioteca de Sala» parte de uma selecção de livros realizada pela
educadora responsável pelo grupo, pelas estagiárias de educação de infância, auxiliares
e encarregados de educação que contribuem entusiasticamente no desenvolvimento da
temática escolhida pelas crianças. Mais tarde, a professora regressa à sala, já não como
Joana Pegadas, mas como professora Inês, e assume o papel de contadora de histórias:
«Leio livros que estejam ligados à temática – estou a pensar naquele livro, Quero um
Dinossáurio1 – e, à medida que o projecto vai evoluindo, as crianças deixam de querer
saber só sobre os dinossáurios; querem também saber sobre determinadas épocas da
História – ora, há que fazer uma nova pesquisa.» Este trabalho é feito quinzenalmente,
ao longo do ano lectivo, com as quatro salas de pré-escolar do Colégio, que podem ter
como tema de projecto assuntos totalmente diferentes, e ir mudando o tema de trabalho
à medida que o ano lectivo avança – «No início do ano nunca sei qual é a “surpresa” que
me vai sair… Já trabalhámos a China; neste momento tenho a História Medieval na sala
dos 4 e 5 anos, já tive a Quinta nos 3 anos… Cada uma das salas obriga-me a vestir uma
personagem, organizar, dividir livros e avançar com estratégias de animação de leitura
para relacionar com as temáticas escolhidas.»
A passagem das crianças do Jardim-de-Infância para o 1º Ciclo também é
acompanhada. As crianças que incorrem pela primeira vez na leitura e na escrita no 1º
ano de escolaridade exigem uma abordagem diferente. As estratégias podem passar pela
leitura de histórias, por actividades como a dramatização, a ilustração, a pintura e a criação
de uma espécie de árvores conceptuais, onde vão sendo escritas palavras relacionadas com
os temas escolhidos à medida que o trabalho sobre os mesmos evolui, um exercício que
permite às crianças alargar o seu léxico. Cada aluno possui uma «caderneta de cromos»,
onde vai colando imagens das capas dos livros das histórias que vão sendo ouvidas e
trabalhadas na sala de aula, e, segundo a professora, «pela altura do Natal, mesmo não
conhecendo todas as letras e casos de leitura, as crianças já conseguem copiar os títulos
dos livros e ilustram a parte que para eles é representativa daquela história.»
ORAM, H. (2006) (2ª ed.). Quero um Dinossáurio (ilustrações de Satoshi Kitamura). Lisboa: Caminho (col. Livros do Arco-íris).
1
|4|
Assim, nas turmas de 1º Ciclo,
«Não quero pegar no Plano
o Projecto de Promoção de Leitura
Nacional de Leitura, abrir
assume moldes diferentes, visto
a página que diz “Leitura
que é uma disciplina integrante
do plano curricular, com objectivos
orientada” ou “Leitura
de aprendizagem estabelecidos e
autónoma para o 3º ano
diversos momentos de avaliação
(auto-avaliação, hetero-avaliação e
de escolaridade”, imprimir
avaliação colectiva) no final de cada
e dizer: “É isto!”»
período. A professora desloca-se às
salas de aula do 1º e 2º anos duas
vezes por semana, em blocos de 45 minutos, e às salas do 3º e 4º anos uma vez por semana,
em blocos de hora e meia. Torna-se obrigatório, para ela, conhecer, não só o programa de
estudo de cada um dos anos, como as especificidades e gostos dos alunos de cada turma.
«Há turmas que são mais femininas, turmas mais masculinas; há ambientes na turma. Não
quero pegar no Plano Nacional de Leitura, abrir a página que diz “Leitura orientada”
ou “Leitura autónoma para o 3º ano de escolaridade”, imprimir e dizer: “É isto!” Tudo
depende de quem temos à frente e do bom senso do educador. Se os alunos de uma
turma conseguem ler um determinado livro aconselhado, sozinhos, e após a conclusão
dessa leitura pedem mais, sou obrigada a pensar fora do Plano Nacional de Leitura. Tenho
pena que, muitas vezes, as escolas adoptem o Plano Nacional de Leitura como espécie de
manual pré-feito.» Seguem-se longas horas de leitura e pesquisa nas livrarias e bibliotecas,
a conhecer os livros e as novidades editoriais, e a elaborar «uma lista de livros daquilo
que eu acho que é estruturante para aquele ano de escolaridade e para aqueles alunos
em particular». Os livros destas listas são criteriosamente escolhidos, procurando sugerir
uma diversidade de autores e ilustradores (nacionais e estrangeiros) de qualidade e/ou
consagrados e de géneros literários diferentes. E assim é construída a Biblioteca de Sala
das turmas de 1º Ciclo. Inês fornece aos pais cópias deste elenco de obras e sugere-lhes
a compra de dois títulos diferentes. Todas estas obras devem ir sendo requisitadas pelos
alunos e lidas por eles em casa. De modo semelhante ao que acontece com as cadernetas
de cromos do 1º ano, os alunos do 2º, 3º e 4º anos têm passaportes, cujas páginas vão
sendo carimbadas pelos professores e preenchidas com informação sobre o livro lido
(autor, ilustrador, editora e um desenho ou um texto relacionado com a história). Estes
passaportes são, na verdade, uma versão adaptada e mais aliciante das fichas de leitura.
Por meio deles, os alunos, por um lado, vão-se sempre sentindo incentivados a ler mais
livros (em parte para terem um passaporte «viajado») e, por outro, conseguem memorizar
com maior facilidade alguns aspectos da história, mas também as outras informações que
constam num livro – «Eles aqui vêem a ficha técnica, têm de a trabalhar: saber o que
é uma editora, o que é uma edição, uma colecção, uma tradução, o número de cópias
impresso, o ano de edição… Começam a construir referências. Eles chegam a uma FNAC
e sabem o que procuram. Quantos pais chegam a uma livraria e ficam perdidos com a
oferta? Querem chegar, comprar o livro e ir embora. Neste momento, consigo assegurar
que os meninos começam a saber escolher.»
São muitos, e diferentes, os momentos de leitura por que passam, semanalmente,
os alunos do 1º Ciclo do Colégio de Nossa Senhora da Paz. Para além da leitura orientada
|5|
na sala de aula, com o professor da turma (enquanto mediador de leitura) ou com a
professora Inês Duarte (enquanto animadora de leitura2) e da leitura autónoma em casa
(leituras que depois figuram no passaporte), há ainda a leitura autónoma na sala de
aula: «Todos os meninos têm um livro, adoptado para aquele ano de escolaridade, e nos
tempos em que acabam de trabalhar podem ler esse livro ou os professores param a aula
e oferecem 20 minutos (ou mais) de leitura. O próprio professor é convidado a trazer de
casa um livro e a lê-lo enquanto os alunos lêem os deles, para que este hábito não tenha o
carácter de obrigatoriedade; é um momento de leitura partilhado. Parece-me importante
que os alunos compreendam que os seus professores também são leitores e a leitura não
é só um espaço de aprendizagem, mas sim um espaço de prazer que deve ser alimentado
diariamente.»
À semelhança do que acontece com as salas de Jardim-de-Infância, as listas de
livros do 1º Ciclo podem relacionar-se, em parte, com projectos ou temas trabalhados pela
turma ocasionalmente. O objectivo é construir com os alunos uma «enciclopédia pessoal»
(o conceito foi introduzido por Umberto Eco). «Eu não posso achar que eles sabem ou
têm as mesmas referências que eu. Logo, se eu quero tratar alguma temática no 1º Ciclo
– seja o Porto, seja as Mil e Uma Noites –, tenho de criar uma espécie de “almofada
fofa” de imagens, sons… Tenho de contribuir para o alargamento dessa enciclopédia
pessoal, para que quando esteja a ler uma história, saiba à partida que as crianças estão
a construir imagens com aquilo que ouvem. Se não têm imagens do Porto, não posso ler
textos que façam referências à cidade, porque eles não os percebem. É preciso aplicar
questionários, saber para onde costumam sair com os pais ou com os avós, depois passar
imagens para ver o que conhecem e o que não conhecem, o que gostariam de conhecer,
pesquisar e encontrar livros que falem disto. Depois desta bateria de trabalho, quando
vêm os livros, até pedem que lhes conte histórias! Há maior solidez e entendimento do
que estão a ouvir ou a ler depois desta base ser construída; não lhes atiro para cima um
livro só porque me lembro.» A acompanhar o trabalho na sala, surgem por vezes alguns
trabalhos de casa (ou «desafios»), «que os pais percebem logo que vêm da professora
Inês»: gravar cantigas que passam na rádio e que são relacionadas com o(s) livro(s) lido(s),
tirar fotografias ao pé de monumentos ou a comer um prato típico e entrevistar pais e avós
são alguns exemplos. «O ano passado, houve um desafio que era entrar numa mercearia
muito antiga cá do Porto, a Favorita do Bolhão, e tirar uma fotografia segurando um
queijo. Isto, porque estávamos a trabalhar Contos da Cidade das Pontes3, uma colectânea
que tem um texto do José Vaz, chamado “Celestino, o rato da biblioteca”, e o Celestino
come um queijo da Favorita do Bolhão. O que me interessa com este desafio é promover
junto dos mais pequenos a consciência de que é preciso preservar o património social, que
eles percebam, por exemplo, a importância das mercearias na cultura portuense, porque
estas mantêm-se, não fecharam.»
«Dependendo dos textos, pode haver saídas diferenciadas. Posso ler o livro de
forma integral, de fio a pavio (o que é raro), posso ler/contar o texto, adaptar partes
Mais dados sobre animação e mediação de leitura e a diferença entre elas no ponto 3 deste trabalho.
AA., VV. (2001). Contos da Cidade das Pontes. Porto: Ambar.
Este desafio estava integrado no trabalho em torno da cidade do Porto que os alunos dos 2º e 3º anos A e B
desenvolveram. É possível ver algumas das actividades desenvolvidas e dos livros lidos no blog: http://portoacaminho.
blogspot.com/ (consultado em 23.04.2010).
2
3
|6|
continuando com a mesma estrutura, ou, se
«Eu neste momento
há um final que não me apetece ler, excluínão posso ler
-lo, mas tentando não trair o autor. Só depois
ingenuamente; tenho
de ter consciência destas várias saídas, é que
eu posso perceber que trabalho pode ser
de perceber quais são
desenvolvido.» O trabalho de um animador
os caminhos que um
passa muito por esta criação e escolha das
livro me dá: se aponta
estratégias mais adequadas ao estudo de
um texto: «Eu neste momento não posso
para a expressão
ler ingenuamente; tenho de perceber quais
dramática, se pede
são os caminhos que um livro me dá: se
que use estratégias de
aponta para a expressão dramática, se pede
que use estratégias de animação de leitura
animação de leitura
que tenham a ver com expressão plástica,
que tenham a ver com
expressão musical, expressão corporal… Ou
expressão plástica,
até combinar todas elas! Mas há que o fazer
de uma forma que não seja ligeira; não pode
expressão musical,
ser só: “Acabaram de ler o livro e agora
expressão corporal…
vamos ilustrar o que acabaram de ouvir.”
Ou até combinar
Faz parte, mas não chega. Pô-los a fazer
ilustração criativa depois de terem conhecido
todas elas!»
um sem número de ilustradores; perceberem
as diferenças entre ilustradores; pegar
em capas de livros e fazer concursos em que adivinham quem as ilustrou (porque
há diferenças claras de estilo entre ilustradores, e eles sabem-no). Mais uma vez, é o
que dizia: é criar a “almofada fofa” para eles próprios começarem a criar ilustração.»
Os livros são trabalhados com o objectivo de desenvolver as ditas enciclopédias
pessoais, mas também há alguma gestão de acordo com o que é pedido pelos professores
responsáveis pelas turmas. «Por exemplo: numa turma em que a professora diz “Eles
estão com problemas a nível da escrita. São pouco criativos; escrevem o chamado texto
standard: ‘Eu gosto muito da Primavera, na Primavera há flores e andorinhas’ e acaba
‘Eu gosto muito da Primavera’, que é para bater certo com o título lá em cima.” Então,
com o professor da turma, decidimos que vamos abrir um período para escrita criativa. Os
professores começam também, nas suas horas, a estimular actividades em coordenação
com as minhas. Não há a sensação de descontinuidade entre as aulas regulares e as
aulas do Projecto de Promoção de Leitura.» E se as «aulas normais» costumam decorrer
dentro da sala, as do Projecto de Promoção de Leitura dividem-se pelos muitos espaços do
Colégio: «Eu tenho uma sala de Projecto de Promoção de Leitura, a que chamo “estaleiro”
– porque é lá que se constrói, não é só o “cantinho para contar histórias” –, mas posso ir
às salas dos professores, à Biblioteca, à sala de informática, à cozinha… acho que já dei
aulas em todos os cantos do Colégio, até na horta!»
Segundo Inês Duarte, uma das iniciativas mais importantes que desenvolveu
no Colégio de Nossa Senhora da Paz, e que acontece anualmente, foi a Feira do Livro.
«A organização da Feira ultrapassa largamente o conceito de “contactar a editora”,
|7|
marcar um dia e uma hora, despejar os livros escolhidos pelos critérios da editora e
esperar para fazer vendas.» A professora entrou em contacto com uma livraria local e foi
seleccionando os livros a figurar na feira («lia uma média de trinta a quarenta títulos por
semana»), tendo em atenção as faixas etárias a que se destinavam e também a qualidade
do texto e da ilustração. A iniciativa organizou-se com o intuito de que fossem os alunos
a escolher os livros que queriam levar. «Inventei um “mealheiro da leitura”: garrafas de
água de 50cl com uma ranhura, que foram decoradas por eles numa aula, sendo que eram
obrigados a deixar espaços transparentes, para poderem ver que o dinheiro aumentava.
Eu selava as garrafas, para não terem como tirar o dinheiro antes da feira. O mealheiro é
construído em meados de Outubro, e é suposto que os alunos poupem dinheiro até Abril,
data em que se realiza a semana da Feira do Livro. Enviei uma carta aos pais explicando
a iniciativa, pedindo a supervisão dos mealheiros pelos pais, tendo em conta que o valor
do mealheiro não podia exceder os 30 euros, para não existir muita diferença no poder
de compra dos meninos. Queria assegurar a compra de pelo menos um livro; um tecto
de 30 euros garante a aquisição de dois ou três livros, porque o livro infantil é uma coisa
cara.» Chegada a altura da feira, organizaram-se horários de visita, onde as compras
eram feitas pelos alunos e supervisionadas pelo professor da turma e por Inês Duarte: «Os
pais não podiam mexer no mealheiro da leitura, mas se quisessem comprar mais livros,
estavam à vontade, tinham apenas de se assegurar que os miúdos liam em casa. Achamos
fundamental, aqui no Colégio, que se construam bibliotecas em casa que cresçam com
eles.»
E porque a leitura não é sempre literária, «outra coisa que valorizamos são os
trabalhos de pesquisa: os alunos têm tempos em que podem ir para a internet, fazer
pesquisas orientadas pelo professor, e têm pesquisas orientadas em casa; contactam com
a palavra escrita muitas vezes durante o dia.»
Quando questionada sobre a importância de familiarizar os mais novos com
o objecto-livro e de desenvolver hábitos de leitura desde tenra idade, Inês Duarte
sumariza: «Quanto mais lêem, mais capacidades ganham para a análise do mundo. A
leitura é fundamental. Pode ser visceral – quando uma pessoa está muito zangada e lê
um determinado livro, essa leitura pode ter um efeito catártico; há meninos que precisam
de fazer muitas leituras e leituras diversificadas; há outros que sonham mais, têm um
universo de fadas e dragões, e que procuram bastante o texto maravilhoso. Se lerem mais,
o universo que constroem é muito mais rico, com maior potencial (há melhores fadas,
personagens e ambientes mais complexos, enredos mais sugestivos). Basta ver pelos livros:
à medida que se avança, não há só “o bom” e “o mau”, isso existe até uma determinada
etapa. Quando as personagens começam a ser modeladas e a ter nuances, eles próprios
começam a rever-se nelas e a pensar até que ponto fariam aquilo, e é interessante, às
vezes, ver como os livros podem suscitar alguns dilemas morais nos miúdos. Ganham
também uma noção de passado, importantíssima, através de livros como O Tesouro, de
Manuel Pina4, por meio dos quais são capazes de imaginar uma época com as proibições
que, para eles, numa determinada idade, não fazem sentido. O livro humaniza, afina as
emoções e, com ele, os leitores ganham mundo. Bom, também depende do tipo de livros
e do tipo de leitores que são; se lerem livros que não apelam a nada, nada se constrói…»
PINA, M.A. (2007) (22ª ed.). O Tesouro (ilustrações de Evelina Oliveira) [1ª ed. – 1994, Associação 25 de Abril/APRIL].
Porto: Campo das Letras (col. Palmo e meio).
4
|8|
3. Competências de um animador de leitura
Profissão ainda jovem, uma das maiores dificuldades com que se depara é a pouca
teorização sobre a animação de leitura. «É preciso construir este novo perfil – porque se
trata de um novo perfil de competências dentro da escola –, e fazer com que os meus
colegas me aceitem e percebam o tipo de trabalho que quero desenvolver com eles.»
Aproveitando a pós-graduação em Supervisão Pedagógica e Formação de Formadores que
estava a frequentar no ano lectivo de 2008/2009, Inês Duarte dedicou-lhe um trabalho de
investigação5 onde procurou começar a estabelecer, à semelhança do que acontece com
as outras profissões ligadas ao ensino, as competências necessárias para ser animador de
leitura.
Antes de mais, há que distinguir entre animador de leitura e mediador de
leitura. No trabalho de investigação anteriormente referido, esclarece-se que o papel
de um mediador é, acima de tudo, o de facilitar o acesso à informação. Assim, integram
o seu perfil funções como a promoção do livro, da leitura e da escrita, a dinamização
e organização de bibliotecas, dos seus instrumentos e de recursos documentais. É um
profissional que procura apoiar os utilizadores, promover junto deles o uso das novas
tecnologias na biblioteca, divulgar projectos e experiências e impulsionar a formação em
campos como a bibliografia e a pesquisa documental, possuindo conhecimentos nas áreas
de literatura portuguesa e literatura infantil.
Já a animação de leitura (a que muitas vezes se dá também o nome de mediação6)
implica uma série de estratégias e competências de que o profissional se serve para
informar, sensibilizar e cativar para a leitura, nos seus diversos géneros, desde a primeira
infância, e promover o livro. Para o fazer, recorre à narração, a técnicas de leitura em voz
alta, à informática e tecnologias da informação e a estratégias de animação por meio das
quais se ligam a leitura e a escrita e a leitura e as diversas formas de expressão artística
(poesia, música, teatro, desenho, pintura…).
Como explica Inês Duarte, «para fazer animação de leitura, preciso de ter um “perfil
misto”. O que é que uso para poder dar aulas? A minha formação em 1º Ciclo; formação em
teatro; formação a nível de literatura infantil – conhecimento dos livros; biblioteconomia
– perceber como se faz a organização dos livros, como se organizam colecções, como
se faz um catálogo, como se organiza um acervo; cultura pessoal e, claro, o facto de
ser leitora.» O animador de leitura tem a responsabilidade de possuir uma enciclopédia
pessoal mais vasta que a dos seus alunos: deve conhecer bem a literatura de tradição oral,
tradicional e contemporânea, nacional e estrangeira, e estar a par das novidades que
chegam ao mercado, pois só assim conseguirá antecipar as perguntas que possam surgir
relativamente aos livros estudados; deve também conhecer as estratégias discursivas e
MARTINS VILHENA, Alexandra & DUARTE MARTINS, Inês (2008/2009). Perfil do Profissional de Leitura no Contexto
Escolar (1º Ciclo do ensino básico). Projecto de investigação realizado no âmbito da Pós-graduação em Supervisão
Pedagógica e Formação de Formadores, não publicado. Porto: Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti.
6
Apesar da separação entre animação de leitura e mediação de leitura que Alexandra Martins Vilhena e Inês Duarte
Martins fazem no trabalho de investigação já referido, é difícil distinguir os dois termos, sendo frequente atribuírem-se
as competências de um animador de leitura a um mediador. Um exemplo é o Plano Nacional de Leitura, onde se traça
um perfil de competências de um mediador de leitura, sendo que as autoras consideram tais competências próprias, mais
do que de um mediador de leitura, de um animador de leitura. Na entrevista que lhe dirigimos, Inês Duarte esclarece
que «um animador é também um mediador; um mediador não é necessariamente um animador. Há muita gente nas
bibliotecas escolares a fazer mediação, e muito bem, mas não animação.»
5
|9|
os recursos técnico-expressivos de
Entre muitas outras
que fazem uso as obras de literatura
competências, o animador
infanto-juvenis, bem como as
marcas de estilo de autores e
deve dispor e desenvolver
ilustradores, pois só assim será
uma série de práticas de
capaz de aconselhar livros. «Por
dinamização de literatura de
exemplo, há um período em que [os
miúdos] amam ler Uma Aventura7,
entre as quais possa escolher
e nós sabemos que se trata de
qual ou quais se adequam
uma colecção extensíssima e que
mais no trabalho de uma
existem leitores que são leitores de
colecções, porque encontram nelas
obra; deve também ter
a receita de que estão à espera.
conhecimentos (e manterDeve respeitar-se isso até certo
-se actualizado) em áreas
ponto, mas também mostrar outros
exemplos parecidos. Tenho de ter
tais como a dramaturgia, as
sempre o cuidado de saber quem
artes plásticas e o reconto, e
são os “primos” dos livros de que
estar consciente do poder da
eles gostam, para que quando se
perguntem “Para onde é que eu
literatura enquanto geradora
vou?”, eu conheça um “primo”,
de emoções e reacções.
como o Triângulo Jota do Álvaro
Magalhães8, que lhes sugiro.»
Entre muitas outras competências, o animador deve dispor e desenvolver uma série
de práticas de dinamização de literatura de entre as quais possa escolher qual ou quais
se adequam mais no trabalho de uma obra. Assim, deve também ter conhecimentos (e
manter-se actualizado) em áreas tais como a dramaturgia, as artes plásticas e o reconto,
e estar consciente do poder da literatura enquanto geradora de emoções e reacções.
É necessário que transmita aos seus destinatários, nos exercícios colectivos que desenvolve,
o gosto de ler, e que promova neles hábitos de leitura, para que estes se transformem em
leitores activos. Esta familiarização com a leitura e a literatura permitirá às crianças que
beneficiam das estratégias de animação de leitura o alargamento do seu conhecimento
em campos que não apenas a literatura (como a arte), mas também o desenvolvimento
da sua capacidade criativa. «Ninguém cria nada no vazio. Uma vez, em correspondência
com a Dra. Eduarda Coquet, ela dizia-me, e parece-me absolutamente acertado, que as
crianças não são criativas de forma espontânea; a criatividade é uma construção; ninguém
constrói sem imagens. As crianças têm representações naïf da realidade, que expressam
através das suas histórias, dos seus desenhos e da sua leitura do mundo, e que muitas vezes
“comovem” os adultos pela sua simplicidade e singularidade. Mas, a meu ver, é apenas isso.
Simplicidade. Dificilmente o vejo como trabalho criativo. Para fazer trabalho criativo, é
necessária essa construção da enciclopédia pessoal, através de cheiros, desenhos, pinturas,
etc. É preciso ir ao cinema, ao teatro, a concertos. É preciso ler muito, ler mais e melhor.»
MAGALHÃES, A.M. & ALÇADA, I. Colecção Uma Aventura [data de edição dos primeiros volumes: 1982]. Alfragide:
Caminho. Site da colecção: http://www.uma-aventura.pt/index.htm (consultado em 23.04.2010).
8
MAGALHÃES, A. Colecção Triângulo Jota [data de edição dos primeiros volumes: 1989]. Alfragide: Leya.
7
| 10 |
Anexos
| 11 |
Anexo 1
| 12 |
| 13 |
| 14 |
Anexo 2
| 15 |
| 16 |
Anexo 3
| 17 |
| 18 |