representações sociais do sucesso acadêmico na
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representações sociais do sucesso acadêmico na
JÚLIO JOSÉ CARDOSO EGREJA REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO SUCESSO ACADÊMICO NA PERSPECTIVA DE ESTUDANTES BEM-SUCEDIDOS Dissertação de Mestrado submetida Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Educação da Universidade Católica Brasília, visando à obtenção do grau Mestre. ao em de de Orientador: Dr. Afonso Celso Tanus Galvão Brasília 2007 E32r Egreja, Júlio José Cardoso. Representações sociais do sucesso acadêmico na perspectiva de estudantes bem-sucedidos / Júlio José Cardoso Egreja. – 2007. 88f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Universidade Católica de Brasília, 2007. Orientação: Afonso Celso Tanus Galvão 1. Ensino médio. 2. Rendimento escolar. 2. Motivação na educação. I. Galvão, Afonso Celso Tanus, orient. II. Título CDU 371.26 Ficha elaborada pela Coordenação de Processamento do Acervo do SIBI – UCB. Aos meus pais, pela aposta incondicional no meu sucesso e na minha felicidade, e por me fazerem acreditar nisso. A Andrea, companheira de todas as ocasiões, que soube compreender meus momentos de ansiedade e de solidão. A Bruna e Júlia, que suportaram minha parcial ausência, sempre de forma carinhosa. AGRADECIMENTOS A Deus, por intuir-me e mostrar-me que os desafios são oportunidades. Aos familiares, pelo apoio. Aos amigos e amigas que me confortaram com sua presença constante e escuta atenta, em especial a Ricardo Mariz. Ao professor Afonso Galvão, que soube demonstrar muitas qualidades de grande professor e de competente orientador. Aos gestores do Colégio Marista de Brasília, pelo incentivo. A todos os que colaboraram para a realização das entrevistas desta pesquisa, em especial os alunos e alunas participantes. Ao corpo docente do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Católica de Brasília, em especial às professoras Eunice Soriano Alencar, Jacira Câmara e ao professor Cândido Alberto Gomes. À professora Denise Fleith, por sua disponibilidade e disposição em contribuir para a realização deste trabalho. Ao professor e amigo Reinaldo Reis, pela contribuição da revisão textual. “A representação social é um corpus organizado de conhecimentos e uma das atividades psíquicas graças às quais os homens tornam inteligível a realidade física e social, inserem-se num grupo ou numa ligação cotidiana de trocas, e liberam os poderes de sua imaginação” (MOSCOVICI, 1978. p. 28) RESUMO Este trabalho objetivou investigar as representações sociais do sucesso acadêmico por meio de pesquisa qualitativa. Participaram da pesquisa 36 estudantes da terceira série do ensino médio de três escolas privadas de Brasília, que integram o universo dos 10% de maior desempenho acadêmico de sua série, em cada escola. Foram realizadas 12 entrevistas individuais semiestruturadas e três entrevistas de grupo focal, com 8 jovens em cada um. A pesquisa buscou identificar as significações do sucesso acadêmico, assim como investigar informações, imagens e atitudes relacionadas a esse sucesso. Os resultados sugerem que as significações do sucesso acadêmico giram em torno de reconhecimento, poder e inserção social. Inicialmente, o reconhecimento pode ser interpretado como a materialização social do sucesso, ou seja, aquilo que o transforma em um construto socialmente aceito e valorizado. Portanto, há um elemento de constituição de identidade operando nesse processo. O discurso dos entrevistados revelou também o poder como fator significacional de construção da imagem no grupo, de tratamento diferenciado dos professores, de inserção social, de popularidade e aumento do círculo de amizades. Esse fato torna-se ainda mais relevante se considerarmos que a maioria se declarou introvertida. Em se tratando de estratégias motivacionais para o estudo, observouse tanto o apelo a metas relacionadas à aprendizagem profunda, mantidas pelo prazer em aprender, quanto àquelas baseadas em aprendizagem superficial, com foco no alcance de boas notas. Os entrevistados demonstraram em geral forte necessidade de manutenção de expectativas daqueles que atuam como referências, freqüentemente os pais. Palavras-chave: representações sociais, sucesso acadêmico, estudo deliberado, expertise, motivação para aprendizagem. ABSTRACT This study aimed at investigating the social representations of academic success in the perspective successful students by using qualitative method. Participants were 36 students of the last year of the secondary school of three private schools of Brasilia. They were amongst their schools’ best 10% in academic performance. Participants took part in twelve individual semi-structured interviews and three focal groups interviews with 8 students each one. The research tried to identify the meanings of the academic high performance and to examine information, images and attitudes concerned to these matters. Results suggest the meanings of academic success carry out the idea of recognition, power and social insertion. Recognition can be interpreted as the social materialization of social success: something that makes it a construct socially accepted and valued. So this process stands for a strong factor of identity construction. From the group’s discourse emerged the notion of power. The image of power as meaning of academic success was also expressed in the privileged treatment by their teachers. The popularity derived from academic excellence makes it possible for these students to expand their friendship network. This becomes particularly important if we consider that most participants declared themselves introverts. Concerning motivational strategies to keep working, it was observed the use of both strategies intrinsically based on learning for pleasure and focused on aims related to deep learning, as well as those based on more superficial strategies associated to merely achieving good grades. In general interviewees showed a strong need for keeping themselves up to the expectations of those important to them, particularly parents. Keywords: social representations, academic success, deliberate practice, expertise, motivation to learn. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 9 1. REVISÃO DA LITERATURA: sucesso acadêmico................................................... 11 1.1. Sucesso acadêmico e inteligência............................................................................. 12 1.1.1. Inteligência e testes psicométricos................................................................. 13 1.1.2. Natureza X ambiente..................................................................................... 17 1.2. Motivação ............................................................................................................... 18 1.2.1. Motivação para a aprendizagem................................................................... 20 1.3. Expertise.................................................................................................................. 23 1.4. Fatores sociais do sucesso acadêmico...................................................................... 24 1.4.1. O ambiente escolar........................................................................................ 25 1.4.2. O contexto familiar e o sucesso acadêmico................................................... 27 1.4.3. Os colegas e o sucesso acadêmico................................................................. 29 2. NATUREZA DA PESQUISA E METODOLOGIA................................................... 31 2.1. Problema................................................................................................................... 31 2.2. Justificativa............................................................................................................... 33 2.3. Objetivos................................................................................................................... 34 2.3.1. Objetivo geral................................................................................................ 34 2.3.2. Objetivos específicos..................................................................................... 34 2.4. Método...................................................................................................................... 35 2.4.1. Instrumentos de coleta de dados.................................................................... 35 2.4.2. Participantes e local....................................................................................... 36 2.4.3. Procedimentos............................................................................................... 38 2.4.4. Estratégia de análise...................................................................................... 38 2.4.5. A teoria das representações sociais e o ambiente escolar............................. 40 3. RESULTADOS.............................................................................................................. 42 3.1. Significações do sucesso acadêmico........................................................................ 42 3.1.1. Reconhecimento............................................................................................ 42 3.1.2. Poder.............................................................................................................. 45 3.1.3. Inserção social............................................................................................... 47 3.2. Motivações para o sucesso acadêmico..................................................................... 49 3.2.1. Atender a expectativas................................................................................... 50 3.2.2. O papel dos professores................................................................................. 53 3.2.3. Modelos......................................................................................................... 56 3.2.4. Vestibulares e PAS........................................................................................ 58 3.2.5. Competição.................................................................................................... 59 3.2.6. Aprendizagem x notas................................................................................... 62 3.3. Imagens negativas relacionadas ao sucesso escolar................................................. 63 3.3.1. Apelidos......................................................................................................... 64 3.3.2. Pressão excessiva........................................................................................... 65 3.3.3. Insucessos...................................................................................................... 67 3.4. Inteligência e sucesso acadêmico............................................................................. 68 4. DISCUSSÃO E CONCLUSÕES.................................................................................. 72 4.1. Discussão.................................................................................................................. 72 4.2. Conclusões................................................................................................................ 81 REFERÊNCIAS………………………………………………………………………….. 83 ANEXO…………………………………………………………………………………… 88 9 INTRODUÇÃO Sucesso acadêmico pode ser considerado resultado da aprendizagem dos conteúdos escolares e é caracterizado pela manutenção de alto desempenho escolar, expresso na forma de boas notas ao longo de anos. Há uma série de fatores e processos que contribuem para esse elevado rendimento, que podem ser próprios do indivíduo, enquanto outros podem ter origem no meio, como as expectativas e investimentos materiais e afetivos dos familiares. As causas do sucesso podem ser, portanto, de natureza individual ou de construção coletiva. Dentre os fatores que influenciam o sucesso acadêmico destaca-se a motivação para a aprendizagem, caracterizada como força que move o indivíduo na direção da aquisição de novos conhecimentos. A motivação pode ter orientação intrínseca, centrada no processo de aprendizagem, ou extrínseca, com foco no desempenho, dependente de fatores externos tais como recompensas. Assim sendo, também na motivação, torna-se difícil, se não impossível, distinguir exatamente o que é fator puramente pessoal e o que é fruto de interação social (STREET, 2001). A inteligência, um construto de definições tão diversas, apresenta grande relevância nesse contexto. Muitas vezes é definida como capacidade de aprender a partir da experiência, ou como conjunto de processos mobilizados na resolução de problemas (ROAZZI; SPINILLO; ALMEIDA, 1991). Há uma quantidade de testes que vêm sendo desenvolvidos desde o século XIX e que têm por função avaliar o desempenho cognitivo das pessoas. Os testes de inteligência, segundo Coll (1996a), continuam sendo preditivos de sucesso acadêmico. O estudante do ensino médio está inserido em um contexto que, por um lado, exige dedicação em virtude da proximidade dos processos seletivos para o ensino superior; e 10 por outro lado oferece uma quantidade de atividades para ou extra-escolares que concorrem com a necessária dedicação. Com a intenção de investigar as imagens e atitudes que compõem as representações sociais do sucesso acadêmico, o presente trabalho visou pesquisar também, por meio de entrevistas com estudantes bem-sucedidos, as conseqüências do sucesso na vida social, familiar e escolar desses jovens. As significações do sucesso acadêmico que emergiram neste estudo vão muito além da manutenção de elevados escores nos boletins escolares. Os fatores motivacionais se mostraram bem diversos, tendo o modelo e a expectativa dos pais como elementos decisivos. Esperamos que, durante a apreciação deste trabalho, fiquem explicitados ao leitor ou à leitora os valores que dão significação às análises dos resultados acadêmicos desvelados nas pesquisas. 11 1. REVISÃO DA LITERATURA: sucesso acadêmico Do ponto de vista da gestão de sistemas de ensino, o sucesso escolar é geralmente avaliado por meio da análise de indicadores como o número de matrículas, a freqüência dos estudantes, as taxas de evasão escolar e o desempenho de escolas ou sistemas em avaliações de larga escala (INEP, 2002). Porém, considerando-se o aprendente, tal sucesso pode ser considerado a partir dos sinais exteriores de competência, baseados nos produtos e nas atitudes avaliadas pela escola como, por exemplo, o rendimento escolar acumulado (notas ou médias de final de período escolar). Para o estabelecimento desses sinais exteriores, o estudo individual deliberado representa uma importante dimensão a ser considerada. Em termos gerais, estudantes de sucesso dedicam quantidade considerável de tempo ao estudo individual superando dificuldades como a fadiga e o desejo de desenvolver tarefas que gerem mais prazer em curto prazo (GALVÃO, 2001). Entretanto, para Perrenoud (1995), alguns casos de elevados resultados podem ser frutos de manipulação por parte do estudante, que passa a jogar com as regras que o jogo permite. Há um jogo tácito entre professor e aluno, no qual muitas vezes este tenta manipular a situação em seu favor percebendo suas lacunas. Em outras palavras, aprender a ter sucesso acadêmico é aprender também a preparar-se para as provas. Estudo realizado por Nogueira (2004) revelou que estudantes economicamente favorecidos estabelecem relações predominantemente instrumentais com a escola e com o saber, ou seja, as metas perseguidas pelos estudantes são, em sua maior parte, pautadas no utilitarismo (ex., obtenção de notas), e não no conhecimento em si mesmo. A partir dessas metas, esses alunos e alunas assimilam a maneira de cada professor avaliar, por meio da 12 análise de provas anteriores, por exemplo, e pautam seu estudo nessa preparação para a realização de exames. Portanto, a concretização do sucesso acadêmico envolve estratégias previstas no currículo formal e outras pertinentes ao currículo oculto, que abrange o conjunto de processos e recursos não explicitados nos planos escolares, mas que exercem influência nas relações entre os membros da comunidade educativa, de forma tácita. No que diz respeito ao sucesso acadêmico, duas dimensões são particularmente esclarecedoras. Envolvem aspectos psicológicos e sociológicos que parecem influenciar o desempenho escolar. Assim, o sucesso acadêmico será apresentado sob dois vieses: psicológico e sociológico. Na abordagem psicológica, será relacionado a construtos como inteligência e motivação. Sob o viés social, o sucesso acadêmico será tratado nos contextos escolar e extra-escolar. 1.1. Sucesso acadêmico e inteligência No senso comum, aplica-se o termo inteligência em situações bem diversas. Por exemplo, a criança que logo aprendeu a falar, o jovem que passou no vestibular, o orador que prende a atenção da platéia, o mecânico que facilmente conseguiu diagnosticar e resolver o problema do automóvel. Entre os pesquisadores que investigam o tema, várias são as definições de inteligência. Embora não haja consenso em relação ao conceito, a capacidade para aprender a partir da experiência e para adaptar-se ao ambiente são pontos recorrentes nas definições da inteligência (STERNBERG, 2000). Para Fontana (1998), por exemplo, inteligência se caracteriza como a capacidade de perceber relações e usá-las para solucionar 13 problemas. Roazzi, Spinillo e Almeida (1991) a definem como um conjunto de processos mobilizados na resolução de problemas. A despeito do caráter subjetivo dos conceitos de inteligência, uma categoria que a acompanha desde o século XIX é sua aferição por meio de testes de inteligência. 1.1.1. Inteligência e testes psicométricos A medição do nível de inteligência de um indivíduo foi objetivo seguido por muitos especialistas. Galton (1883) criou um teste de inteligência baseado em questões que avaliavam a capacidade motora e sensorial (de percepção de diferenças sutis como volume de som, peso de objetos, notas musicais), com o intuito de classificá-las. Para ele, deveria ser estimulada a reprodução daquelas pessoas consideradas mais inteligentes (aquelas capazes de detectar diferenças sutis por meio dos órgãos sensoriais), em detrimento das que obtinham menor desempenho em seus testes. Tal visão, além de enfatizar somente processos perceptivos sensoriais, é uma proposta eugênica, isto é, traz implícita a idéia de uma apuração da raça em direção a um modelo ideal. Algo que, embora soe absurdo, possui até hoje defensores no meio acadêmico, como por exemplo, Watson (2005), renomado geneticista e um dos descobridores da estrutura do DNA, que afirmou recentemente não enxergar problemas na utilização de recursos de manipulação genética para o aprimoramento da espécie humana. Para ele, não faz sentido permitir o nascimento de uma pessoa que apresente, sabidamente, capacidade cognitiva muito inferior à média da população. Como proposta alternativa à abordagem psicofísica de Galton, os pesquisadores Binet e Simon (1905) criaram teste baseado em julgamentos mentais relativos à direção (saber o que tem de ser feito e como fazê-lo), à adaptação (habituar uma estratégia e monitorá-la) e à 14 crítica (reflexão sobre seus próprios pensamentos e ações). O resultado obtido pela criança era comparado ao de outras com a mesma idade cronológica, obtendo-se o que foi denominado idade mental, tendo como objetivo principal a identificação de crianças medianamente retardadas ou com dificuldades de aprendizagem para que a elas fosse dada a oportunidade de uma educação adequada às suas necessidades. A partir daí, Stern (1912) sugeriu a criação de um quociente de inteligência (QI), caracterizado pela razão entre a idade mental e a idade cronológica. Assim, QIs acima de 100 caracterizam idade mental superior à cronológica. No contexto de uma ciência positivista, os testes de QI mostravam-se adequados (COLL, 1996a; STERNBERG, 2000). Posteriormente, vários modelos de testes de inteligência surgiram. Spearman (1923) propôs, por exemplo, o fator de inteligência geral, ou fator g, uma espécie de energia mental responsável inclusive pelo desempenho nos testes específicos. Muitos foram os pesquisadores que propuseram modelos multifatoriais (CARROLL, 1993; CATTELL, 1971; GUILFORD, 1967). Por meio de análises multifatoriais, fragmenta-se estatisticamente um construto, nesse caso a inteligência, para se interpretar cada fator ou habilidade a ele atribuída. Thurstone (1938, citado por STERNBERG, 2000), por exemplo, analisou a inteligência em sete fatores denominados capacidades mentais primárias: compreensão verbal, fluência verbal, raciocínio indutivo, visualização espacial, habilidade numérica, memória e rapidez perceptiva. Para Gardner (1994), por exemplo, não há um só fator geral de inteligência, porém várias capacidades independentes (inteligências múltiplas). Nessa perspectiva, uma mesma pessoa pode ter uma determinada inteligência mais desenvolvida que outra, embora ainda continuem as dificuldades de se medir psicometricamente as inteligências (PATTO, 1997; STERNBERG, 2000). 15 Sternberg (1981) também criou testes que analisavam a inteligência, basicamente segundo o tempo de processamento em cada uma de duas etapas do processo cognitivo: o planejamento global (conhecimento do problema e elaboração de estratégias de resolução) e planejamento local (a implementação das estratégias de resolução e seus detalhes). Percebeu que, em geral, pessoas consideradas mais inteligentes (ou seja, de melhor desempenho nos testes de inteligência) levam mais tempo no planejamento global, porém menos tempo na execução da tarefa. Por analogia, segundo o autor, pesquisadores mais brilhantes levariam mais tempo no planejamento e pesquisa, porém seriam mais rápidos na redação do trabalho que os menos brilhantes. Sternberg (2000), ainda, considera a inteligência dependente de três capacidades, ou formas de pensamento: analítica (para problemas conhecidos), criativa (para problemas novos) e prática (para problemas de contextos cotidianos). Os conhecimentos oriundos dessa classificação ficaram conhecidos como a teoria triárquica da inteligência de Sternberg. Gardner (1995), além de criticar os testes psicométricos de inteligência, contesta o sistema educacional no qual e para o qual esses testes foram desenvolvidos. Para o autor, a escola deveria ser centrada no indivíduo, de modo a atender os interesses e habilidades dos estudantes. Escola em que os educadores são especialistas em avaliação, sensíveis e preparados o suficiente para perceber e potencializar as capacidades e as diversas inteligências do aluno – lógico-matemática, lingüística, interpessoal, intrapessoal, musical, corporal-cinestésica e espacial. Portanto, Gardner (1994) defende a idéia do talento como característica inata, embora não possa determinar satisfatoriamente a estrutura mental sobre a qual esta noção se sustenta. Um problema advindo das avaliações psicométricas da inteligência, em geral, é a estigmatização dos indivíduos classificados nos extremos. Ser classificado como muito acima 16 ou muito abaixo da média pode gerar nas crianças dificuldades de várias ordens no campo relacional e afetar a aprendizagem (FONTANA, 1998). Outra crítica em relação a essas avaliações psicométricas é que elas geralmente não levam em conta a diversidade regional e cultural dos avaliados. Os testes são padronizados, e, em geral, traduções de instrumentos elaborados por pesquisadores europeus ou norte-americanos. Sabemos que, mesmo entre aqueles que habitam a mesma região geográfica, há diferenças culturais que variam, por exemplo, de acordo com a origem étnica ou socioeconômica. Muitos pesquisadores (ex. JENKINGS, 1979; KEATING, 1984) construíram testes de inteligência que empregam habilidades e conhecimentos relacionados às experiências dos respondentes. A criação desses testes relevantes à cultura envolve mais do que somente a adaptação lingüística. Leva em consideração o contexto social em seus diversos matizes (especificidades de gênero, de ambiente físico e outras). Ceci e Bronfenbrenner (1985), por exemplo, perceberam que adolescentes apresentam desempenhos diferentes em uma mesma habilidade, a depender da forma como é exigida. No campo educacional, os resultados dos estudos sobre a inteligência devem ser analisados a fim de se aprimorar os processos de ensino-aprendizagem buscando um trabalho inclusivo, visando o desenvolvimento de habilidades distintas nos estudantes, de acordo com seus interesses e possibilidades. Até os dias de hoje, os testes de inteligência continuam sendo preditivos de sucesso acadêmico, pelo menos até o nível do ensino médio. Nesse sentido, podem-se identificar com relativa margem de segurança alunos com potencial acadêmico, ainda no início de sua escolaridade (COLL, 1996a; 2000). Pelo exposto, quantificar a inteligência representa uma meta perseguida por muitos pesquisadores. Porém, investigar os fundamentos da inteligência nos parece mais relevante que buscar formas de medi-la. Na discussão acerca dos fatores determinantes da 17 inteligência, é presença constante o debate que estabelece a dualidade entre fatores ambientais e fatores biológicos como colaborativos para seu estabelecimento. 1.1.2. Natureza X ambiente Anatomicamente, o cérebro humano é bem conhecido. Suas regiões estão relativamente bem descritas nos manuais de anatomia. Em termos fisiológicos, muitas áreas do encéfalo já foram mapeadas. Sabe-se, por exemplo, quais são as regiões responsáveis pela fala, visão, equilíbrio, coordenação motora, emoções. Porém, em relação aos processos cognitivos, as bases psicofisiológicas são ainda bastante inconsistentes. Vários estudiosos (ex. HAIER, 1992; VERNON; MORI, 1992) já tentaram correlacionar inteligência (avaliada em testes de inteligência) a fatores neurofisiológicos ou anatômicos, como à massa cerebral, à velocidade de condução do impulso nervoso e à taxa de consumo de glicose no cérebro. Entretanto os resultados dessas pesquisas se mostraram inconsistentes ou carentes de maiores investigações (STERNBERG, 2000). Para muitos autores (ex. PLOMIN; PETRILL, 1997, citados por COLOM, 1998), a influência genética é um dos determinantes das diferenças intelectuais entre as pessoas, embora não seja a única, e suas bases não estejam esclarecidas. Pesquisas demonstraram que indivíduos geneticamente relacionados que foram criados em famílias distintas têm uma semelhança cognitiva significativa, verificada em testes de inteligência. Os membros de uma família geneticamente relacionados que vivem juntos têm, em geral, desempenhos mais similares do que os membros de uma família adotiva. Os gêmeos univitelinos, que são geneticamente idênticos, apresentam resultados nos testes mais semelhantes que os dos gêmeos bivitelinos, que compartilham somente da metade de seus 18 genes. Segundo Plomim e Petrill (1997), independentemente da estimação precisa da hereditariabilidade, o fato é que a influência genética sobre o desempenho nos testes de inteligência não é somente estatisticamente significativa, como também é substancial. Nem todos os autores comungam dessa tese. Smith (1998), por exemplo, defende a idéia de que o desenvolvimento humano é impulsionado menos pelos traços biológicos e mais pelas experiências culturais heterogêneas que o próprio aprendiz tornou significativas. Mesmo as diferenças transculturais têm sido correlacionadas a diferenças no desempenho em testes de inteligência: comunidades rurais versus urbanas; proporções baixas versus altas de adolescentes dentro das comunidades, nível socioeconômico baixo versus alto das comunidades (STERNBERG, 2000). Com base em todo este debate, talvez seja plausível pensar que o construto inteligência é tampouco influenciado por fatores exclusivamente biológicos, nem somente por aqueles atribuídos ao ambiente: trata-se de um construto multifatorial, para o qual a restrição a algum desses fatores nos parece uma posição reducionista, inclusive porque, até o presente momento, e com os recursos disponíveis, não é possível segregar os fatores biológicos dos culturais, já que eles se relacionam e se influenciam mutuamente. 1.2. Motivação Diferentes correntes da Psicologia definem e interpretam a motivação de maneiras diversas. Nos animais, a motivação está intimamente ligada à homeostase, que é a tendência do organismo em se manter funcional, em equilíbrio dinâmico com o meio. Nesse sentido, a motivação nos animais está relacionada à saciedade das funções básicas da manutenção da vida e da espécie, tais como fome, sede e sexo (FONTANA, 1998). 19 Na visão dos comportamentalistas, motivação, recompensa e punição caminham muito próximas. A motivação corresponde a um impulso proveniente de um estímulo externo gerador de resposta, que é um comportamento observável (COUTINHO; MOREIRA, 1999). Quando se quer motivar o indivíduo em direção a um comportamento desejado, usa-se a recompensa. Quando não se quer tal comportamento, a punição atua como fator motivador da extinção desse comportamento observável. À medida que o estímulo é repetido, ocorre uma associação entre ele e a resposta, que passa a ser automatizada, transformando-se em hábito. Nessa visão, o ambiente é determinante da motivação e, portanto, controlador das aprendizagens. Portanto essa abordagem não prestigia as estruturas cognitivas (MIZUKAMI, 1996; STERNBERG, 2000). Para a teoria psicanalítica, a motivação está relacionada à satisfação dos instintos e dos desejos, que por sua vez estão ligados à sobrevivência do indivíduo e ao prazer (fome, sede, sexo etc.). Esses impulsos motivadores, denominados pulsões, atuam em direção à satisfação de desejos inconscientes. Braghirolli (1990) ressalta que, para Freud, os fenômenos do inconsciente, tais como os sonhos, podem influenciar a motivação do indivíduo. Autores de influência cognitivista (STERNBERG, 2000) acreditam que a motivação origina-se tanto de processos conscientes do indivíduo como dos acontecimentos do meio sobre os quais não tem controle. Por meio da percepção, valores, crenças, opiniões e expectativas, o indivíduo regulará sua conduta em direção à meta desejada. O discurso de psicólogos cognitivistas enfatiza o papel da criatividade como agente motivador de descobertas de padrões e significações. À luz da psicologia humanista, a motivação não é oriunda apenas de sua fisiologia, necessidade cognitiva, impulso ou instinto, mas da conjunção de todos esses fatores 20 (MIZUKAMI, 1996). Para Maslow (1970), a motivação segue uma escala hierárquica das necessidades básicas (sede, fome, proteção ao perigo) passando pelas afetivas (amor, aceitação, auto-estima) até as intelectuais (cognitivas, estéticas, auto-realização). Para ele, o indivíduo só irá motivar-se intensamente por uma determinada necessidade se a anterior estiver atendida (FONTANA, 1998). Para Freire (1980), em abordagem sociocultural, a motivação corresponde à energia libertadora da submissão do oprimido, tendo como meta a consciência crítica e a humanização das relações sociais. 1.2.1. Motivação para a aprendizagem A aprendizagem é definida por Fontana (1998, p. 156) como “mudança relativamente persistente no comportamento potencial do indivíduo devido à experiência”. Para Hilgard (1973, p. 3) aprendizagem é o [...] processo pelo qual uma atividade tem origem ou é modificada pela reação a uma situação encontrada, desde que as características da mudança não possam ser explicadas por tendências inatas de respostas, maturação ou estados temporários do organismo. Nesse contexto, estudar a motivação para a aprendizagem significa pesquisar o que move o indivíduo a atingir essa mudança no comportamento, ou seja, onde ele se inspira, busca forças para adquirir novos conhecimentos. Na educação escolar, motivação para a aprendizagem pode ser definida como aquilo que serve de incentivo ao estudante para aprender e como isso se reflete no grau de aceitação ou negação das tarefas e a maior ou menor tendência a perseverar na realização dessas tarefas (COLL, 2000). 21 A motivação para a aprendizagem tem característica dinâmica e desenvolve-se na relação entre o indivíduo e seu meio. Pode ser categorizada segundo três dimensões: origem, estabilidade e possibilidade de controle. Se a motivação é originada e sustentada a partir do desejo, necessidade ou satisfação do aprendiz, é denominada interna; se o motivo advém do ambiente, é classificada como externa. Nesse caso, o estudante mantém-se dependente de fator externo para continuar interessado na tarefa. Alunos com forte motivação extrínseca dependem de um ambiente competitivo que gere comparações entre as pessoas. Do ponto de vista da avaliação, as que apresentam função classificatória atuam como motivadoras extrínsecas (STREET, 2001). Segundo o mesmo autor, a motivação intrínseca é aquela alimentada pela curiosidade, necessidade de exploração, de descoberta. É caracterizada por gerar metas de longo prazo, centradas na aprendizagem. Portanto, o estudante foca mais o processo, a tarefa em si, do que o resultado que ela produzirá. Se a motivação é dependente de um fator dificilmente alterável, como habilidade, é considerada estável; se depender de fatores volúveis como humor, é considerada instável. Quanto à controlabilidade, a motivação é considerada controlável ou incontrolável, dependendo da possibilidade de controle do sujeito sobre o fator motivacional. (TAPIA; GARCIA-CELAY, 1996; DRISCOLL, 1999). Entre os indivíduos com altas habilidades, a motivação intrínseca parece ser o principal agente incentivador da aprendizagem. Em diversos modelos relacionados à superdotação, encontra-se o fator motivação como integrante da própria definição de superdotado. No modelo de Renzulli, o que caracteriza o indivíduo superdotado é uma conjunção de três fatores: envolvimento com a tarefa (a motivação ocupa aí papel central), criatividade e habilidade acima da média. (ALENCAR, 2001; ALENCAR; FLEITH, 2001). 22 A motivação intrínseca é também decisiva para o alto desempenho criativo. Impulso para a realização, dedicação ao trabalho, desejo pelo novo (ALENCAR, 1991), amor à criação e curiosidade intelectual são fatores motivacionais à criatividade, e ao desenvolvimento de altas habilidades (MARTÍNEZ, 1995). Csikszentmihalyi (1996) denominou de estado flow o ápice da motivação intrínseca, quando o indivíduo concentra-se tanto na atividade que acaba por perder a noção do tempo. Nesse caso, a satisfação pelo processo e o sentimento de controle são tão intensos que a atividade passa a ter um fim em si mesma, sendo denominada “autotélica”, superandose resistências como o cansaço e a ansiedade (ALENCAR; GALVÃO, 2007; COLL, 1996a). Níveis de ansiedade e de controle interno interferem na motivação. Em geral, existe uma faixa ótima de ansiedade geradora de incremento à motivação para a aprendizagem e para a performance. Portanto, a ansiedade nem sempre atua como fator de resistência à realização da tarefa. Se a pessoa encontra-se abaixo dessa faixa, tende à letargia. Se estiver acima, pode passar a sentir medo do fracasso, que pode gerar aprendizagem superficial (preenchimento de requisitos formais da tarefa para não fracassar) ou conduta estereotipada (ex. “eu já sei”, ou “essa tarefa é banal”), o que dificulta o avanço (COLL, 1996a; FONTANA, 1998). Dentre as fontes de motivação para a aprendizagem, destacam-se a curiosidade, a relevância da tarefa de aprendizagem (interesse e necessidade), o estabelecimento de objetivos de curto, médio e longo prazos. Cumprir as metas traçadas (experiência positiva) reforça a auto-estima (juízo valorativo de si), gera imagem positiva de si mesmo e influencia positivamente a forma de enfrentar novos desafios ativando mecanismos de auto-regulação. A relação entre a noção da dificuldade de uma determinada tarefa e a do seu resultado é chamada de auto-eficácia, que pode ser influenciada por alguns fatores, tais como a 23 experiência anterior em tarefa semelhante, o conhecimento do desempenho de alguém na mesma tarefa, a persuasão verbal feita por outra pessoa e o estado fisiológico ou psicológico (emocional) do aprendiz. Estudantes com autoconceito e auto-estima elevados obtêm melhores resultados na escola (BANDURA, 1977; COLL, 1996a, 2000). Para Weiner (1979), a motivação para ações futuras depende da maneira como atribuímos razões para o sucesso ou fracasso de ações passadas. As causas atribuídas podem ser classificadas em categorias. Quanto à origem, podem ser internas ou externas. Em relação ao controle, elas podem ser controláveis ou não-controláveis (pelo próprio indivíduo). Por exemplo, afirmação causal como “... não me saí bem porque eu estudei pouco, de fato” denota atribuição interna e controlável (na próxima vez, poderá se dedicar mais), enquanto “não fui bem porque o professor não explicou bem a tarefa” caracteriza atribuição causal externa, nãocontrolável. Segundo o autor, estudantes mais motivados são aqueles que atribuem a causa do sucesso ao próprio esforço (interna, controlável). Pode-se traçar um paralelo entre o sucesso acadêmico e o elevado nível de desempenho em tarefas específicas, ou seja, a expertise. 1.3. Expertise Para Galvão (2001), expertise pode ser definida como a “capacidade, adquirida através de prática ou estudo individual deliberado, de desempenhar particularmente bem uma tarefa específica de um domínio” (p. 225). Expertise e inteligência são construtos próximos. Alguns autores consideram-nas sinônimos (CECI; LIKER, 1986); outros vêem a expertise como um caso de elevado raciocínio inteligente (FRENSCH; STERNBERG, 1989). 24 Sentir-se valorizado e capaz são importantes fatores para se atingir a excelência. A atribuição causal interna também é uma característica presente no desenvolvimento da expertise. Portanto, pessoas que atingem a expertise tomaram para si a responsabilidade de sua aprendizagem dedicando-se intensamente ao estudo individual deliberado ao longo de muitos anos, o que lhes passa a conferir amplo domínio na área de expertise. São geralmente determinadas a atingir alta qualidade de performance, ou seja, dedicam-se intensamente ao estudo e à atuação na tarefa em si. Para Ericsson e Smith (1994), o desenvolvimento da expertise se dá por etapas, em que se observa uma progressiva mudança de fatores motivacionais: dos externos (pais, professores auxiliando na construção de uma rotina de estudo e organização) aos internos (auto-reguladores, ou seja, a pessoa desenvolve mecanismos próprios de estabelecimento e perseguição de metas e de rotinas de estudo individual). Segundo Galvão (2001), entre outras características do especialista, destacam-se a excelente memória e o uso de diferentes estratégias para a resolução e representação de problemas, além da capacidade de concentração na atividade da expertise, muitas vezes solitária e monótona. Expertos constroem estratégias de adiamento de gratificações, ou seja, desenvolvem mecanismos de resistir às ofertas para atividades outras potencialmente mais prazerosas em curto prazo optando pela atividade em que se especializarão. 1.4. Fatores sociais do sucesso acadêmico Dentre os fatores que cooperam para o sucesso acadêmico, serão agora abordados aqueles predominantemente externos ao indivíduo, ou seja, oriundos do ambiente sociocultural onde o estudante se insere e constrói sua vida. Há na literatura uma quantidade 25 de considerações sobre a relação entre o sucesso acadêmico e alguns fatores, tais como o nível socioeconômico e os ambientes escolar e familiar. Pesquisas diversas avaliaram a relação entre o desempenho dos alunos em provas e diversos fatores ligados ao contexto sociocultural. Muitas dessas pesquisas foram desenvolvidas simultaneamente em vários países (GOMES, 2005). Cientes do risco do reducionismo e de relegarmos alguns aspectos relevantes, optamos por categorizar esta abordagem em três contextos: o ambiente escolar, o ambiente familiar e os colegas. Mesmo sabendo que integram o ambiente escolar, optamos por enfatizar a participação dos colegas na obtenção e manutenção do sucesso escolar. 1.4.1. O ambiente escolar Há na literatura a visão de que escolas com maior autonomia na gestão e com diretores com visão estratégica, capacidade de liderança e de motivação do corpo docente, e que tratam bem os alunos e professores, apresentam índices maiores de rendimento escolar. Portanto, a capacidade de decisão acerca de compras, nomeações, demissões e outras atribuições do gestor têm implicação no aumento de desempenho dos estudantes (GOMES, 2005). Mais que controlar, gestores de escolas eficientes incentivam o desenvolvimento dos potenciais de seus educadores e alunos. Estimulam e encorajam o corpo docente a prosseguir estudos, tratam os estudantes cordialmente, possuem certo grau de autonomia, zelam por um ambiente democrático e por uma atmosfera de ordem. No que concerne à estrutura física da escola, a literatura disponível é bastante diversificada no que diz respeito à relação entre ser bem equipada e ser bem sucedida. Em geral, escolas bem equipadas com material didático apresentam alunos de maior desempenho 26 que as menos equipadas. Não há dúvidas de que as instalações e equipamentos influenciam no sucesso acadêmico, porém é difícil quantificar essa influência, já que escolas bem equipadas, em geral, apresentam também outros atributos e atraem estudantes de destaque acadêmico que representam um público auto-seletivo. Embora os recursos sejam prevalecentes, percebe-se que os processos, mais que os recursos, exercem maior influência no favorecimento de elevados desempenhos escolares (CASASSUS, 2002). Em relação ao número de alunos por turma, pesquisa na América Latina demonstrou que turmas com 25 estudantes apresentam melhores desempenhos que outras significativamente menores ou maiores (CASASSUS, 2002). Gomes (2005) mostra que, em países de outros continentes, o número de alunos pode não ter influência direta no rendimento dos estudantes. Em outras palavras, mais importante que a quantidade de alunos por turma é o tipo de estratégia de ensino adotada e o clima da sala de aula. Para alguns autores (CASSASSUS, 2002; GOMES, 2005), dos fatores ligados à escola, o clima emocional de sala de aula é o que mais influencia no desempenho dos estudantes. Casassus (2002) chega a afirmar que esse fator tem, quantitativamente, a mesma significância que todos os outros juntos. Várias características concorrem para o estabelecimento de saudáveis relacionamentos interpessoais na sala de aula que repercutem na elevação do desempenho dos alunos: ambiente cooperativo, cumprimento de normas estabelecidas em conjunto, confiança, cordialidade, liderança, clima de ordem, ausência ou baixos níveis de violências (GOMES, 2005; UNESCO, 2003). O que denominamos “clima de sala de aula”, portanto, é um conjunto segmentado de fatores que abrangem desde a formação e personalidade do professor até as condições físicas da sala. Vários aspectos relacionados aos docentes têm implicação direta ou indireta no rendimento de seus alunos. Casassus (2002) observou que professores mais reflexivos em 27 relação à sua prática e mais autônomos têm alunos com melhores desempenhos acadêmicos. O mesmo autor mostra que, em relação às atribuições causais, aqueles professores que atribuem a causa do sucesso ou do fracasso a fatores externos (geralmente familiares) apresentam estudantes com menores desempenhos. Alunos que obtêm maiores rendimentos têm professores que trazem para si a responsabilidade do sucesso ou fracasso escolar, isto é, professores que centram as atenções nas próprias habilidades e nas dos estudantes bem como nas estratégias de ensino. Em relação a essa atribuição causal, podemos traçar um paralelo com a expertise: pessoas que atingem alto nível de desempenho em uma atividade também apresentam atribuição causal interna, ou seja, chamam para si a responsabilidade sobre o sucesso ou fracasso (GALVÃO, 2001). Em outras palavras, este parece ser um indiscutível ingrediente de sucesso, não só no contexto educacional. Escolas cujos alunos apresentam alto desempenho acadêmico têm professores com elevado grau de satisfação (não apenas financeira), reflexivos sobre sua prática e com certo grau de autonomia para o planejamento e a ação pedagógica. Professores que dão importância à avaliação e seus registros e que avaliam a aprendizagem de seus alunos de forma sistemática e processual. Embora o conflito entre idéias e posicionamento de docentes seja previsível, é imperioso também haver certo grau de consenso entre os professores (CASASSUS, 2002; GOMES, 2005). 1.4.2. O contexto familiar e o sucesso acadêmico O sucesso acadêmico pode variar de acordo com as condições familiares. No que tange ao nível socioeconômico, vários exames de avaliação de sistemas – por exemplo, o 28 Saeb (INEP, 2002) –, constatam correlação positiva entre essa condição e o resultado em testes. Gomes (2005, p. 220) afirma que “quanto mais alto o status socioeconômico, maior é o estímulo para ir adiante na escala educacional, e vice-versa”. Dubet (2003, p. 36) reforça essa retroalimentação assegurando que “alunos mais favorecidos socialmente, que dispõem de maiores recursos para o sucesso, são também privilegiados por um conjunto de mecanismos sutis, próprios do funcionamento da escola, que beneficia os mais beneficiados”. Em relação ao número de filhos, Castro (1984) mostra que famílias menos numerosas têm maiores proporções de estudantes de maior desempenho e com escolarização mais longa. A ordem de nascimento também pode ser fator de influência. Percebe-se que, numa mesma família, alguns filhos podem desenvolver uma carreira escolar mais bem sucedida que outros. O primogênito costuma levar vantagem em relação aos demais irmãos (CAMACHO, 2000; SOUZA E SILVA, 1999). O interesse dos pais pela leitura (e pela leitura para os filhos), o tempo de permanência deles em casa e de diálogo com os filhos, o nível de escolaridade dos pais, a expectativa dos pais em relação ao sucesso dos filhos e o envolvimento dos pais nas atividades escolares, entre outros, são fatores que apresentam correlação positiva com o sucesso acadêmico (CASASSUS, 2002; GOMES, 2005). Dentre eles, destacamos a alimentação de elevadas expectativas em relação ao sucesso dos filhos e a participação em atividades escolares, inclusive nas decisões institucionais, por meio de conselhos de pais, por exemplo (MELLA et al., 2002). O nível de instrução dos pais tem forte impacto sobre a probabilidade de um filho freqüentar a escola e obter sucesso escolar, sendo que a influência da educação da mãe costuma ser maior do que a do pai (IBGE, 2001). Isso pode ser explicado pelo fato de a mãe estar mais envolvida no acompanhamento escolar dos filhos. 29 1.4.3. Os colegas e o sucesso acadêmico Alunos que se aproximam de colegas mais privilegiados e interagem com eles obtêm aspirações mais altas e melhores resultados no estudo, o oposto sendo verdadeiro (GOMES, 2005). Assim sendo, um misto de cooperação e competição entre colegas parece ser fator benéfico à melhora do desempenho. Por outro lado, os colegas podem exercer influência negativa, por meio de violências simbólicas e incivilidades, até porque essas atitudes hostis acabam por contaminar o grupo e geram novos atos hostis (ABRAMOVAY, 2002). Com isso, estudantes potencialmente bem-sucedidos podem não se desenvolver plenamente em relação às habilidades cognitivas. Ser destacadamente bem-sucedido é ser diferente, e isso geralmente é motivo de manifestações como segregações, exclusões e indiferenças por parte de colegas, sejam elas explícitas ou disfarçadas. Essa crise de socialização, para Dubet e Martuccelli (1995), ocorre pelo fato de a escola não estar conseguindo desempenhar de forma satisfatória seus dois papéis, pedagógico e relacional, sendo permissiva – de forma velada ou declarada – a essas formas de violência. É necessário, portanto, que educadores e gestores assumam, em todos os níveis da educação, esse papel de socialização pertencente, embora não exclusivamente, à instituição escolar (CAMACHO, 2000). Essa ação conjunta atuará na diminuição do que Tedesco (2002) denomina déficit de socialização, que é a carência de referenciais de valores gerada pelo fato de família e escola terem diminuído sua ação no sentido da socialização de suas crianças e jovens, culpando-se mutuamente. Portanto, o sucesso acadêmico é apresentado como resultado de processos diversos que, por serem psicológicos, biológicos e sociais, são dotados de grande complexidade. Pode ser considerada reducionista qualquer tentativa de simplificação, a ponto de se eliminar um conjunto de fatores causais. 30 Sem entrar no mérito das conseqüências do sucesso acadêmico, o que se pretendeu com esta revisão foi a apresentação sucinta de alguns desses fatores relacionados ao alcance de elevados desempenhos escolares. Para fins de organização da apresentação, optouse por separar os de origem psicológica daqueles de natureza social. Na realidade, porém, como já fora dito, esses diversos fatores estão intimamente intricados, a ponto de, muitas vezes, ser difícil a tarefa de segregá-los, ainda que para fins de análise e explicação. 31 2. NATUREZA DA PESQUISA E METODOLOGIA 2.1. Problema O sucesso acadêmico é caracterizado nesta pesquisa como aquele resultante do alto desempenho no rendimento escolar, manifestado por elevadas notas durante um período relativamente longo (pelo menos um ano letivo). Portanto, partimos do princípio de que, no ambiente escolar, estudante que alcança resultados superiores é considerado bem-sucedido academicamente, independente das conseqüências que esse sucesso poderá trazer à sua vida. Logo, não se pretendeu com este estudo entrar no julgamento do valor do sucesso acadêmico como preditivo de sucesso pessoal ou profissional, assim como não foi intenção desta pesquisa avaliar ou discutir a qualidade educacional dos estabelecimentos de ensino dos grupos pesquisados. Pretendeu-se compreender, portanto, como estudantes bem-sucedidos representam o sucesso acadêmico, quais são suas significações, como estas se relacionam com a vida prática do aluno, com a sua vida afetiva, com a sua rede social, entre outras. A investigação sobre o sucesso acadêmico na perspectiva de estudantes bemsucedidos, objeto desta pesquisa, foi ancorada na teoria das representações sociais. De acordo com essa teoria, o indivíduo constrói uma estrutura cognitiva da sociedade em que vive. Essa estrutura, denominada por Moscovici (2003) de representações sociais, constitui uma forma de conhecimento primordial, socialmente elaborado e partilhado, que auxilia o sujeito a conhecer o mundo e a agir sobre ele atendendo às necessidades cotidianas. O verbo representar significa reproduzir o pensamento em imagem ou símbolo. Portanto, este estudo das representações sociais do sucesso acadêmico se propõe a fazer emergir esse construto e seu papel na forma de agir e pensar de estudantes bem-sucedidos, permitindo a compreensão, pelo menos em parte, de sua postura frente aos estudos, ao grupo social e à família. 32 Ao longo da história, o sentido do conhecimento tem passado por transformações. Na sociedade atual, conhecimento apresenta íntima relação com sucesso profissional, sendo inclusive considerado um tipo de capital (DEMO, 1997). Nesse contexto, a possibilidade de valorização do sucesso acadêmico é ainda maior, inclusive por ser considerado fator preditivo de êxito profissional. Este é, ainda, um dos argumentos de professores e pais para persuadir seus alunos e filhos no sentido da dedicação aos estudos. Tomamos neste trabalho o rendimento escolar como referência de excelência observável. É razoável observar que o ser e o parecer ser excelente podem não se tratar da mesma coisa, ou seja, seria ingênuo imaginar que os processos avaliativos escolares identificam precisamente estudantes de excelência acadêmica. Ou seja, é importante destacar que há uma possibilidade de estudantes selecionados para a pesquisa terem chegado ao sucesso acadêmico por meio de manipulações que o sistema permite, como o da preparação para os exames com base na aprendizagem mecânica, na qual a memorização é a estratégia principal. Em outras palavras, embora tenhamos consciência das limitações da avaliação escolar, por outro lado deve-se reconhecer o seu impacto na rede social, afinal é amplamente difundido que bons alunos tiram boas notas. Independentemente da forma com que alcançaram o sucesso e das suas possíveis conseqüências, o relevante é que, nos ambientes escolar e familiar, os participantes são vistos como bem-sucedidos e estão sujeitos a todas as decorrências dessa circunstância. Nesse contexto, torna-se preponderante investigar que fatores motivacionais levaram o estudante ao sucesso acadêmico, assim como o que esse sucesso significa para o aluno bem-sucedido, ou seja, como isso faz parte de seu mundo; como o influencia em sua inclusão social, que preço ele paga por ser bem-sucedido e que possíveis satisfações e insatisfações o sucesso traz. 33 2.2. Justificativa A presente pesquisa pretendeu contribuir para os estudos sobre a motivação para a aprendizagem fornecendo conhecimentos que poderão auxiliar na orientação educacional de professores, estudantes e familiares, no sentido do fomento ao desenvolvimento acadêmico. Por explorar as conseqüências do sucesso, a pesquisa contribui com os estudos sobre o ajustamento de estudantes com alto desempenho acadêmico, assim como dá pistas a educadores e familiares quanto à orientação desses alunos, principalmente no sentido de auxiliar em direção a uma inserção social saudável. A partir do conhecimento do mundo do estudante de sucesso, o estudo sinaliza rumos para o estabelecimento de condições favoráveis ao desenvolvimento do potencial acadêmico. 34 2.3. Objetivos 2.3.1. Objetivo geral Investigar as representações sociais do sucesso acadêmico na perspectiva de estudantes bem-sucedidos. 2.3.2. Objetivos específicos Identificar as significações do sucesso acadêmico; Investigar informações, imagens e atitudes relacionadas ao sucesso acadêmico; Caracterizar os fatores motivacionais que levaram o estudante ao sucesso acadêmico; Investigar as conseqüências do sucesso acadêmico na vida social, cognitiva e emocional do estudante. 35 2.4. Método A pesquisa teve caráter qualitativo e exploratório. Bauer e Gaskel (2002) caracterizam a pesquisa qualitativa como aquela que evita números e lida com interpretações das realidades sociais, ao passo que a quantitativa lida com números e usa modelos estatísticos para explicar os dados. Não se trata de modelos antagônicos, porém diversos, sendo cada um adequado a um determinado tipo de análise, ou seja, cada tipo se destina a um propósito. Podem ser complementares, inclusive (triangulação). Assim, pode-se utilizar, em uma mesma pesquisa, de métodos quantitativos para medir-se a extensão de um fenômeno, e qualitativos a fim de se avaliar a sua intensidade (LÜDKE; ANDRÉ, 1986). Pelo seu caráter qualitativo e exploratório, a presente pesquisa visou trabalhar profundamente o tema do sucesso acadêmico em uma quantidade de participantes menor que a de um estudo quantitativo clássico, que tem como principal característica sua grande extensão. Ao invés dessa amplitude, o estudo qualitativo objetivou prioritariamente a intensidade da abordagem, permitindo-se assim a exploração do universo de cada participante ou grupo. 2.4.1. Instrumentos de coleta de dados Esta pesquisa utilizou as técnicas de entrevista semi-estruturada e de entrevistas de grupo focal. A opção pela entrevista deve-se ao nível de profundidade que se pretendeu atingir na exploração do tema. Segundo Bauer e Gaskel (2002), na pesquisa social, “estamos interessados na maneira como as pessoas espontaneamente se expressam e falam sobre o que é importante para elas e como elas pensam sobre suas ações e as dos outros” (p. 21). A flexibilidade em relação à seqüência determinada pela naturalidade do discurso dos sujeitos 36 também é uma vantagem desta técnica. As entrevistas coletivas (grupos focais) permitiram ao pesquisador explorar o tema a partir da interação entre os entrevistados, o que se torna interessante em uma pesquisa de representações sociais. As entrevistas tiveram por meta a exploração da significação do sucesso acadêmico, os fatores motivacionais que cooperam para seu desenvolvimento e as suas conseqüências para a vida do estudante. Para isso, o roteiro conteve as seguintes questões: Para você, o que representa ser bem-sucedido(a) academicamente? Como e onde você aprendeu que ser bem-sucedido é isso? A que você atribui esse sucesso? O que motivou ou motiva seus estudos? Que conseqüências o sucesso acadêmico traz em termos de suas relações sociais? Há algo mais que você gostaria de falar sobre o assunto? No transcorrer das entrevistas, outras perguntas surgiram a partir da fala dos participantes, algo natural em entrevistas semi-estruturadas, permitindo-se assim exploração mais profunda dos significados contidos nos discursos. 2.4.2. Participantes e local Participaram da investigação 36 estudantes do terceiro ano do ensino médio, sendo 18 moças e 18 rapazes. A opção pela terceira série do ensino médio se fez por ser o último ano da educação básica e pela relativa maturidade e autocrítica dos estudantes. Foram selecionadas três escolas privadas do Distrito Federal, região que apresenta elevado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). 37 O cálculo do IDH é feito em três variáveis: renda, longevidade e educação. O índice máximo de 1,0 não foi atingido até agora em nenhum lugar do mundo. O campeão de IDH, entre os países, é a Noruega, com índice de 0.942, seguido da Suécia, com 0,941. O índice na Região Administrativa de Brasília, onde está instalado o chamado Plano Piloto, chega perto dos melhores do mundo, com a marca de 0,936 (IBGE, 2001). A opção por escolas privadas de elevado nível socioeconômico pode ser justificada pelo fato de perceberse correlação positiva entre status sociocultural e rendimento escolar (CASASSUS, 2002). Outro motivo da escolha por participantes privilegiados economicamente é o fato de haver poucos estudos sobre a escolarização das elites. A sociologia da educação, tanto no Brasil como em outros países, tem se detido a estudar sistematicamente a escolarização dos menos aquinhoados financeiramente (NOGUEIRA, 2004). Os participantes foram selecionados de acordo com o desempenho acadêmico. Foram convidados doze jovens por escola, que encerraram o ano letivo anterior no decil superior de sua série, de acordo com os registros disponíveis emitidos pela coordenação pedagógica ou pela secretaria escolar. Em outras palavras, participaram da pesquisa estudantes que pertenciam ao grupo dos 10% de maior rendimento em sua série. Dessa forma, a pesquisa teve como sujeitos estudantes que se destacam academicamente em um contexto de elevado índice de sucesso escolar. A média de idade dos participantes era de 17 anos e 4 meses. O mais novo tinha 16 anos e idade, e o mais velho 18. Pouco mais da metade deles é filho mais velho (19 participantes), mais de um quarto localiza-se no meio da prole (10 jovens), menos de um quarto é filho caçula (6 estudantes), apenas um filho único. A quase totalidade dos pais (um genitor como exceção) tem nível superior completo. 38 A dedicação média dos entrevistados ao estudo individual era de 17 horas semanais. Esse estudo ocorre, para dois terços dos entrevistados, em casa. Um terço costuma estudar na escola. Todos eles tinham carga horária escolar concentrada principalmente no período matutino, e a maioria declarou dedicar-se ao estudo individual prioritariamente no turno vespertino. 2.4.3. Procedimentos Foram realizadas doze entrevistas semi-estruturadas individuais (quatro em cada escola) e três entrevistas de grupo focal (uma por escola), com oito alunos por grupo. As entrevistas ocorreram no próprio ambiente escolar, durante o turno vespertino. Foram gravadas em áudio e transcritas pelo pesquisador. A duração média da entrevista individual foi de 53 minutos, e do grupo focal, uma hora e 26 minutos. Para viabilizar a coleta de dados, foi encaminhada a cada escola carta de apresentação emitida pela Universidade Católica de Brasília. Além disso, cada estudante leu, assinou e ficou com uma via do termo de consentimento livre e esclarecido (presente em anexo). 2.4.4. Estratégia de análise Os dados foram analisados segundo a análise de conteúdo. Para Bardin (1977), a análise de conteúdo corresponde a um conjunto de técnicas que, de forma sistemática e objetiva, visa obter indicadores que permitam ao pesquisador inferir conhecimentos relativos à produção da mensagem. Segundo o autor, o desmembramento do texto em categorias 39 possibilita posterior agrupamento de categorias análogas de diversos sujeitos. Isso permite o levantamento da freqüência com que cada idéia ocorre no conjunto dos sujeitos pesquisados. Esse processo o autor denominou análise freqüencial ou temática. A análise de conteúdo, para o mesmo autor, também possibilita a interpretação do que está por trás do conteúdo, ou seja, as motivações, desejos e outras características e manifestações de cunho afetivo, como risos, pausas e perturbações, o que facilita a interpretação do conteúdo, seus significados e encadeamentos. Essa parte da análise do conteúdo Bardin (1977) chamou de análise da enunciação. Nessa proposta, a análise dos dados seguiu os seguintes passos: a. Transcrição de cada uma das entrevistas individuais semi-estruturadas e das entrevistas de grupo focal; b. Leitura atenta dos textos das entrevistas; c. Seleção de palavras ou termos geradores das categorias e subcategorias; d. Estabelecimento das categorias e subcategorias, cada uma delas nomeada; e. Organização hierárquica das categorias, de acordo com a freqüência, relevância e pertinência ao tema da pesquisa; f. Comparação, por analogia ou por confronto, das categorias oriundas de entrevistas de sujeitos distintos, levando-se em consideração a análise da enunciação, interpretando-se o sentido da fala dos entrevistados. 40 2.4.5. A teoria das representações sociais e o ambiente escolar Esta pesquisa está ancorada na teoria das representações sociais, que possibilitou ao pesquisador a exploração do modo como o aluno bem-sucedido se percebe e como essa percepção influencia sua maneira de ser e agir. A teoria das representações sociais congrega aspectos localizados entre a psicologia cognitivista e a sociologia durkheimiana. A visão cognitivista da psicologia da aprendizagem em muitos aspectos se confronta com o determinismo econômico-social proposto pela sociologia de Durkheim. Enquanto a primeira tende a ser excessivamente focada no indivíduo, a segunda dá importância exagerada ao contexto social (GUARESCHI; JOVCHELOVITCH, 1995). Moscovici (1976) propõe uma perspectiva em que as representações geradas no ambiente social são reelaboradas pelo indivíduo e passam a interferir na maneira como ele pensa e interpreta o cotidiano, em relação dialética com o meio. O que a teoria das representações sociais traz é mais do que uma investigação do senso comum. São conhecimentos individuais que só ocorrem no momento em que a interação com o outro se dá. Os objetos não são, portanto, captados isoladamente pelos indivíduos, mas em determinados contextos e relações. Representar um objeto significa criá-lo simbolicamente, passando assim a fazer parte de seu mundo (MOSCOVICI, 1976). Esse objeto simbólico age como campo de interação entre o processo ideológico e o representativo, podendo enfatizar diferenças individuais e cristalizar preconceitos (PATTO, 1997). De grande importância à psicologia social em seus mais diversos campos de pesquisa, a teoria das representações sociais encontra no ambiente escolar um espaço privilegiado para investigação. Se o comportamento humano é alterado por pressões sociais, isso é mais evidente entre escolares, especialmente adolescentes. Vários são os exemplos, 41 muitos não-construtivos, de atitudes de grupos de jovens que se caracterizam pela falta de reflexão e de medida das conseqüências. Atitudes que não seriam tomadas individualmente, mas que no grupo passam a fazer sentido, negando princípios éticos e morais a que esses jovens foram submetidos durante sua formação (BRAGHIROLLI, 1990). Em relação ao contexto escolar, Almeida (1991) ressalta que a prática educativa transcende os marcos escolares e envolve processos formais e não-formais de aprendizagem. Por ser atividade socialmente estabelecida, a prática pedagógica influencia e é influenciada por sistemas de significações construídos socialmente, sendo assim um palco privilegiado ao estudo das representações sociais. Segundo Jodelet (2002), a formação da representação social se dá através dos processos de objetivação, síntese e ancoragem. A objetivação se caracteriza pela construção do conhecimento coletivizado. O indivíduo procura tornar um fato, objeto e/ou conhecimento novo em algo familiar forjando uma visão do objeto que seja coerente com sua visão de mundo. Em seguida, materializa os elementos de representação em sua realidade de senso comum naturalizando os esquemas conceituais, dotando-os de realidade própria. No processo de síntese, o conhecimento elaborado na representação social é reestruturado a fim de que o indivíduo possa ser mais bem inserido ou aceito no grupo, negando muitas vezes o conflito cognitivo existente entre o conhecimento da representação e o anterior que ele possuía. A ancoragem, ainda segundo a autora, consiste em materializar coletivamente o conhecimento da representação, que passa a ser referencial para o estabelecimento de relações entre seus agentes, segundo seus valores e contravalores sociais e culturais. 42 3. RESULTADOS A diversidade de conteúdos presentes na fala dos entrevistados permitiu o estabelecimento de uma série de categorias de análise. Optou-se por organizar as categorias mais freqüentes em quatro grandes blocos: significações, motivações, imagens negativas e inteligência. 3.1. Significações do sucesso acadêmico Para os participantes da pesquisa, a noção de sucesso acadêmico estrutura-se dentro de uma cadeia discursiva que remeteu a um calidoscópio de expressões, as quais, por sua vez, remeteram a outras cadeias discursivas cujo ponto de repetição é algo, às vezes, difícil de encontrar. No entanto, três significações emergiram de um modo mais sistemático: sucesso acadêmico como reconhecimento, como poder e como inserção social. 3.1.1. Reconhecimento O primeiro tema investigado em relação às representações sociais do sucesso acadêmico focalizou as significações que estudantes bem-sucedidos têm do tema. As falas sobre o que vem a ser sucesso acadêmico tiveram como núcleo significacional a noção de reconhecimento. Trata-se de um termo que apareceu no discurso da maioria dos participantes e foi devidamente aprofundado no contexto da entrevista. Inicialmente, o reconhecimento pode ser interpretado como a materialização social do sucesso, ou seja, aquilo que o transforma em um construto socialmente aceito e valorizado. Um exemplo interessante diz respeito ao modo como os participantes se implicaram com esta pesquisa. Os entrevistados demonstraram, em geral, sentimento de 43 orgulho por terem sido selecionados para a pesquisa e fizeram uso da situação como exemplo de recompensa pelo esforço empreendido na construção do sucesso escolar, que significa primeiramente reconhecimento. Ser reconhecido é algo muito valorizado pelos entrevistados e oferece oportunidades de análise em diferentes dimensões. [O que representa o sucesso acadêmico?] Acho que é motivo de orgulho, né, porque você se esforça, estuda e acaba sendo recompensado por isso. A., 17 anos É uma espécie de retribuição que eu recebo. Ao longo da minha vida de estudante de ensino fundamental, eu sempre fui muito esforçada, muito mais dedicada do que os meus colegas em geral. Então, chegar hoje e você me chamar pra uma entrevista por eu ser destaque, é um esquema de reconhecimento seu, de reconhecimento das pessoas que vêem isso em mim. Eu acho que é isso que toca mais, como se eu estivesse colhendo... D., 17 anos Subjacente ao reconhecimento, além do orgulho, percebe-se a idéia de justiça. Estudantes bem-sucedidos em geral se esforçam mantendo rotinas disciplinadas de estudo individual deliberado, que requerem adiamento de gratificações em curto prazo. Em especial, na faixa etária pesquisada há grande oferta de atividades lúdicas, presenciais ou pela rede mundial de computadores. A maioria dos entrevistados considera justo o reconhecimento pelos resultados alcançados como fruto desse esforço. O reconhecimento pelo outro como alguém de sucesso compõe o autoconceito dos entrevistados e parece alimentar seu ego. É nítida a expressão de satisfação quando se aborda a publicidade do sucesso, marcadamente quando o reconhecimento é declarado por pessoas próximas, notadamente colegas da escola e pais. Isso parece atenuar uma possível autodúvida. Portanto, há um elemento de constituição de identidade operando nesse processo. Ter sucesso acadêmico significa sair do anonimato por meio do próprio esforço e capacidade, e isso agrega ainda mais valor ao sucesso, em comparação àqueles gerados por privilegiada 44 condição econômica, por exemplo. Ocupar posição de destaque pelo desempenho escolar gera satisfação diferente daquela proporcionada pela aquisição de um bem material. [...] o sucesso acadêmico se baseia em uma coisa sólida, né? Você não tá hoje conversando aqui comigo porque eu tenho um carro caro ou porque eu tenho um par de olhos azuis. Não é nada disso. É uma construção longa, um processo que existe mesmo. Se eu tenho sucesso acadêmico, não é superficial. D., 17 anos É interessante perceber as conotações assumidas pelo sucesso acadêmico no depoimento anterior, em comparação a outros sucessos. A entrevistada estabelece dicotomias durante a definição do sucesso escolar. Embora materialmente concretos, carro e olhos são tratados como bens voláteis, superficiais, ao passo que o sucesso acadêmico, bem aparentemente abstrato, é considerado sólido, profundo, palpável, real. Como a nota obtida nas avaliações escolares é o principal meio de explicitação dos resultados escolares, para os entrevistados parece ser o maior referencial do sucesso acadêmico. Em muitos momentos, é até mesmo confundida com ele. É citada do início ao fim das entrevistas como indicador de rendimento escolar. [Você tem um apelo forte e constante em relação a notas, a escores elevados...] É, porque manter altas notas também é estar no auge. Mesmo que eu tire um 7 e seja a maior nota de todas, não vai ser um 10 que vai estar no meu boletim, vai ser um 7. G., 17 anos Esse apelo por nota, evidente nos discursos, pode ser revelador de estilo de estudo baseado na busca de resultado, por meio de aprendizagem muitas vezes superficial, passiva, mecânica, baseada em recepção de conteúdo e memorização por repetição. Apesar de alguns entrevistados terem dito que gostam de aprender, em vez de explicitarem esse declarado sentimento pela citação dos objetos específicos aprendidos, referem-se muito mais aos resultados dessa aprendizagem: freqüentemente as notas obtidas. É a conseqüência assumindo 45 o papel de objetivo final do estudo. Os discursos da maioria dos entrevistados, portanto, revelam prioridade de foco no resultado (nota) em vez do processo (aprendizagem). O valor do reconhecimento é explicitado em muitos momentos dos discursos, como no fato de, com freqüência, serem procurados por colegas para o esclarecimento de dúvidas acerca dos conteúdos escolares. Nas várias ocasiões em que esse auxílio surgiu nas falas, foi claro o sentido unidirecional da procura: são os colegas que buscam o auxílio, o que faz emergir outra significação evidente: o poder. Se eu estou num lugar e alguma pessoa me pede alguma dúvida, eu não vou até ela, ela é que tem que vir até a mim pra tirar a dúvida. [E você se sente confortável assim?] Sim, me sinto. Se eu tivesse que tirar a dúvida, eu iria até a pessoa. G., 17 anos 3.1.2. Poder Ser referência, além de atuar como forte agente motivacional para a manutenção do sucesso, parece causar um misto de sensação de poder e cooperação, superioridade e solidariedade. É importante sentir-se detentor de conhecimentos e com possibilidades de socializá-los com os colegas, porém esse auxílio é seletivo. Na fala a seguir, “G” salienta este poder ao falar sobre dependência. Está bastante firme a idéia de que os dependentes se adaptam aos independentes, àqueles que oferecem ajuda. Mais ainda, há o poder da escolha de quem ajudar. Neste caso, os melhores amigos. Poder ajudar os amigos coloca alguém numa função de utilidade capaz de promover o estreitamento de laços de amizade e a própria consolidação do seu papel e importância no grupo. [Sensação de poder?] É, também, porque às vezes as pessoas estão dependendo de você. Se eu estivesse dependendo delas, eu teria de me adequar ao jeito delas. E se elas estão dependendo de mim, elas têm que se adaptar ao meu jeito. [Você acha que a ordem natural é essa?] Acho. Vou ajudar quem mais me interessa, meus melhores amigos. G., 17 anos 46 Alguns estudantes incomodam-se quando percebem que são procurados por jovens com quem não mantêm cotidianamente relação próxima. Sentem-se explorados quando a solicitação parte de algum colega distante, o que revela que o sucesso, ou o conhecimento construído, atua como ferramenta para colocá-los em posição hierarquicamente favorável no grupo social. Por outro lado, perceber-se instrumento de auxílio aos colegas confere ao sucesso sua característica utilitária, assim como àquele que auxilia, o sentimento de solidariedade. Cooperar é, ao mesmo tempo, uma forma de reafirmar-se bem-sucedido, confirmar sua posição de destaque no grupo e auxiliar os colegas próximos que o procuram. Sendo assim, o sucesso significa também a possibilidade de inserção social. Eu acho que eu tenho mais acesso à coordenação da escola do que quase todos os demais alunos da escola. Apesar de que soe arrogante, eu só estou sendo direta, curta e grossa. Eu acho que se... se... os alunos querem fazer alguma reivindicação, estão transtornados, chateados com a escola em algum aspecto, eu sou uma boa pessoa pra encaminhar isso pra coordenação. Talvez, uma das pessoas que mais teria esse acesso, que a coordenação ouviria com mais seriedade, digamos, que seria mais levada a sério. D., 17 anos A fala da entrevistada revela também a idéia de credibilidade aliada ao sucesso acadêmico. Mostra que outros estudantes creditam a ela a responsabilidade de atuar como ponte entre o corpo discente e a equipe gestora da escola. Sua voz seria, em sua perspectiva, mais ouvida e mais considerada. Em outras palavras, a direção da escola é a instância máxima da estrutura de poder numa escola. Ser considerado excelente é ter acesso a esse poder. Em outros casos, fica clara a imagem de privilégios concedidos por parte de docentes a um estudante, em função de ocupar posição de destaque. Para alguns entrevistados, professores acabam sendo mais condescendentes ou complacentes com os “bons alunos”, em relação à correção de instrumentos avaliativos, por exemplo. 47 [E do ponto de vista social, você acha que tem alguma posição de destaque?] Em alguns casos sim. Com os professores, por exemplo, acho que eles consideram mais as minhas respostas em provas do que as de alunos que dormem em sala. A., 17 anos Para muitos sujeitos pesquisados, estar em posição de destaque também traz conseqüências sociais entre colegas, como ser motivo de comentários, curiosidades, o que facilita a inserção social. 3.1.3. Inserção social Segundo muitos entrevistados, o fato de ocuparem posição de destaque gera, entre jovens não-próximos, motivo de comentários e curiosidade. Embora de forma tácita, é possível notar que, em muitos momentos, estar no centro de conversas gera ao estudante bemsucedido a possibilidade de inserção social. Isso fica ainda mais evidente considerando-se o fato de que a maioria dos jovens que participaram da entrevista se declarou introvertida. A própria introversão contribui para o sucesso acadêmico, na medida em que alunos introspectivos apresentam, em geral, maior facilidade em passar horas em estudo individual. Por outro lado, têm geralmente mais dificuldade em fazer amizades. Por esse ponto de vista, a introversão acaba por ser aliviada pela popularidade, liderança e poder que o sucesso escolar gera. Dessa forma, o sucesso atua incrementando a possibilidade de aumento no círculo de amizades. [De uma certa forma, usar seu conhecimento pra manter a amizade?] É, talvez... é, pode ser, manter a amizade. Manter a aceitação no meio, tudo. G., 17 anos 48 Esse testemunho expõe uma tendência marcante nas falas em geral, embora muitas vezes de forma velada: a necessidade de ser aceito e, também, de ser amado. Algumas falas demonstraram contínua busca em atender metas e expectativas de outras pessoas, freqüentemente os pais, cuja admiração é evidente em muitos momentos. Isso parece ser forte agente motivacional para o estudo, já que o sucesso escolar é valorizado pelos pais. [Então você sempre teve também a preocupação da comparação com os demais?] É, também. Se você está junto com os melhores, você, sei lá, você tem alguma... [hesitação] [Tente dizer isso...] Sei lá, você é aceito, as pessoas gostam de você... G., 17 anos Por outro lado, percebeu-se incômodo na exposição social, principalmente em relação a dois aspectos: os preconceitos e os oportunismos. Em muitos discursos, fica evidente o incômodo gerado pelos rótulos criados por aqueles menos conhecidos, que tecem um perfil do aluno de sucesso sem conhecê-lo, muitas vezes atribuindo-lhe adjetivos indesejáveis. Portanto, o mesmo sucesso que auxilia a inserção social, em outros pode dificultá-la. Ser tratado de forma diferente é bom porque eu levo o estudo como um hobbie, assim como se eu fosse um bom músico, um bom esportista, eu ia achar legal. É ruim porque... eu não diria nem dos meus amigos, mas amigos dos meus amigos, que não me conhecem, então eles ficam... não sei... meio que com receio de falar comigo, têm medo de mim, eles acham que eu sou mau, ‘...olha lá o Fulano. Nossa, eu tenho medo dele...’ E na verdade eu sou tímido, eu não falo com ninguém. Se a pessoa vier falar comigo, eu falo tranqüilamente com ela, mas eu não chego em ninguém pra conversar. Aí eles meio que se afastam de mim. Quem é meu amigo é porque um dia veio e se interessou em conversar comigo. L., 17 anos Como fechamento desta subseção que versa sobre as significações de sucesso acadêmico, destacamos um fragmento de discurso que, embora curto, ilustra bem a multiplicidade de significados e de causas do sucesso escolar. 49 [O que representa pra você ter um desempenho superior, se comparado com seus colegas?] Representa que eu tirei nota, né, que eu consegui aprender, os professores estão falando e eu consegui assimilar, talvez porque eu tenha tido uma base melhor no passado, ou porque eu me dedico mais do que algumas pessoas. G., 17 anos Sucintamente, o entrevistado ressaltou a importância da nota como materialização do sucesso. Além disso, situou o valor da aprendizagem – por assimilação – de conteúdos apresentados pelos professores. Citou a relevância dos conhecimentos prévios como fundamentais à aprendizagem ao longo dos anos, ou seja, a visão processual da construção do sucesso. Por fim, localizou o próprio esforço como fator importante, e comparando-o ao esforço de colegas, o que denuncia visão competitiva. Portanto, o entrevistado agrega fatores motivacionais às significações do sucesso escolar. 3.2. Motivações para o sucesso acadêmico Durante a composição desta análise, foi tarefa complexa desmembrar aquilo que é significação do que é fator motivacional, já que estão intimamente relacionados. O que o sucesso representa atua também como motivo para mantê-lo. Portanto, podemos dizer que o reconhecimento, o poder e a possibilidade de inserção social são, ao mesmo tempo, significações e fatores motivacionais. Além desses, outros fatores aparecem fortemente nos discursos: o apelo das expectativas geradas, o sucesso nos processos seletivos para o ensino superior, a competição e a aparente dualidade entre o prazer em aprender e a necessidade de atingir altos resultados. A entrevistada “A” enumera as razões para continuar fazendo o melhor. Nota-se que o primeiro argumento diz respeito à expectativa da família, professores e colegas. Aqui, para além da hierarquização das pessoas significantes (família, professores, colegas), há também uma hierarquização das razões (competição, necessidade da bolsa). É mister também enfatizar que ela é boa num ambiente livre de cobranças. 50 [Por que você tem que continuar fazendo melhor?] De tudo um pouco: expectativa da família, dos professores, dos colegas, competição com os colegas, as bolsas... é, essa questão de ser a primeira da turma pra mim é importante, pra manter a bolsa. É engraçado que minha mãe nunca cobrou isso. Eu é que faço a questão de correr atrás. Se eu consegui, vou me manter em primeiro. A., 16 anos 3.2.1. Atender a expectativas As falas dos entrevistados sugerem forte relação entre sucesso acadêmico e necessidade de atender aos desejos daqueles que servem como referência ao aluno de sucesso. É nítida a preocupação em manter as elevadas expectativas de colegas e, principalmente, pais. Em muitas falas, as metas próprias confundem-se com aquelas traçadas por essas outras pessoas, ao longo de toda a escolaridade. Denotam pessoas aparentemente autônomas e seguras em relação ao estabelecimento de metas, mas que no íntimo buscam sempre atender a expectativas traçadas por aqueles que atuam como referenciais. Reconhecer-se bem-sucedido gera compromisso em manter elevados desempenhos, a fim de continuar alimentando expectativas. É como se o papel representado o transformasse em um mito, que deve ser alimentado e mantido tão intensamente quanto mais duradouro for o sucesso. Percebe-se medo em ver desmoronado o castelo construído à custa de tanta dedicação. O depoimento abaixo ilustra a necessidade de manutenção de expectativas de colegas. Observa-se que a quebra do padrão de alto rendimento do entrevistado gerou certa frustração entre colegas, o que lhe ocasionou incômodo também. Percebe-se ainda, embora de modo sutil, necessidade de justificar ao entrevistador o baixo rendimento obtido, nesse caso em função da falta de afinidade pelo componente curricular. [Você tem essa preocupação constantemente, de não decepcionar o outro?] É involuntário, né? Acho que é um mecanismo que eu criei... é porque sempre eles ficam: ‘oh, é o Fulano, ele sempre tira notas boas’... e você quebrar isso é muito chato, porque se eu fosse um aluno, sei lá, de desempenho menor, aí isso não ia me afetar em nada. Já aconteceu isso no 1º ano, de eu tirar 10% da prova de literatura, 51 não gosto muito de literatura, aí aconteceu de ficarem a semana inteira me enchendo o saco: ‘como que ele foi tão mal na prova de literatura, logo ele...’ L., 17 anos Curiosamente, em um dos casos, ter atingido a meta gerou certo desânimo. Chegar ao objetivo traçado ocasionou a abertura de uma lacuna provisória. É como se não houvesse mais nada além. Nesse caso, o jovem teve que aprender a estabelecer novas metas. No primeiro simulado da escola eu fiquei em primeiro lugar. Aí eu tinha uma meta: ficar em primeiro lugar. Eu atingi o primeiro lugar. Aí, como eu tinha alcançado todas as minhas metas, eu relaxei. A pressão externa de ficar entre os melhores eu atingi, aí não tinha mais pressão, porque eu atingi o topo. R., 17 anos Metas traçadas pelos pais são absorvidas intensamente pelos filhos, como nos recortes a seguir. “V” e “D” assumem como seus os compromissos estabelecidos por seus pais. Nesses casos, como em muitos outros, a expectativa gerada pelos pais, materializada em metas traduzidas em notas de provas, foi fator preponderante para gerar no estudante a necessidade de manutenção de elevados desempenhos. Meus pais são bastante exigentes em relação ao desempenho. Pra eles, nota boa é no mínimo 8. Só querem nove, dez. Eu vejo amigos meus satisfeitos com seis. Se eu tiro oito numa prova, isso não é um grande feito pra mim. V., 17 anos Ah, eu não podia aparecer com um 8,5 no boletim, que meu pai diria que aquilo não condizia com o meu potencial, entendeu? D., 17 anos Metade dos entrevistados citou o investimento financeiro feito pelos pais para custear sua educação básica. Vale lembrar que o estudo foi realizado em escolas privadas, com mensalidades relativamente altas. Para eles, manter elevados desempenhos escolares é uma contrapartida, uma forma de retribuição de toda a provisão material despendida pelos responsáveis durante o processo de formação em família. Minha mãe paga o colégio, faz o maior esforço pra pagar, tô tendo essa oportunidade, então eu tenho que fazer o melhor pra aproveitar essa oportunidade. G., 17 anos 52 A associação entre desempenho escolar e investimento material também apareceu de outras formas. Em dois casos, a expectativa da contrapartida financeira (desconto nas mensalidades) ou na forma de bem tangível (automóvel) parecem ter atuado como fortes agentes motivacionais para o estudo. [E essa recompensa é de que forma?] Vou te dar um exemplo bem palpável: quando eu estava na 8ª serie, eles ofereceram uma bolsa pra quem fosse os melhores da turma, e eu ganhei essa bolsa pro 1º ano, e se eu mantivesse o desempenho eles me manteriam com a bolsa, e eu consegui manter essa bolsa até hoje. [Então a ultima vez que você pagou escola foi na 7ª serie?] Foi. Então pra mim a recompensa é bem mais palpável, e me motiva a continuar estudando. A., 16 anos Meu pai me prometeu um carro se eu passar no vestibular da UnB. E., 17 anos A imagem expressa pelos entrevistados em relação a seus pais é de acompanhamento da vida escolar. Presença física na escola, perguntas sobre fatos ocorridos ou resultados de provas são eventos freqüentes nos discursos. Percebe-se que, de forma geral, essas questões são postas de forma dialógica (pelo menos na fase atual de escolaridade) porém firme, estabelecendo-se relação de cumplicidade e confiança, com responsabilidades bem definidas. [E seus pais, que papel tiveram na construção do seu sucesso?] Meu pai fala muito na UnB. Diz que se eu passar lá vai ser meu mérito, mas que se eu não quiser fazer lá, não vai ser nenhum demérito, que eu tenho que fazer o que eu achar que for o melhor pra mim. [Eles acompanham?] Minha mãe sim, meu pai nem tanto. Com o passar dos anos, eles adquiriram confiança, viram que eu não dou problema. A., 16 anos [Seus pais acompanham?] Acompanham. Acho que minha mãe ficou preocupada com isso, mas à medida que eu vou ficando mais velho, meus pais vão me dando mais responsabilidade. É lógico que ele vai cobrar porque eu não tirei boa nota, mas se ele percebe que eu estou estudando pra recuperar, ele não vai me incomodar. 53 [E como incomodaria?] Ele é dialogal. Ele conversa, você tem que estudar... Ele já foi mais rigoroso. Mas aí vai ficando mais leve, ganhando confiança. Minha mãe também, mas pra ela é mais inaceitável tirar nota abaixo da média. Mas ela não fala muito, porque ela sabe que eu vou recuperar. V., 17 anos Em outro caso, fica clara a busca pela recompensa da liberdade de escolhas. Para “L”, as notas altas serviram também como instrumento de barganha de liberdade para desfrutar de encontros sociais. Houve o estabelecimento de um jogo entre pai e filho. Este último avalia a proposta como adequada. Mais uma vez, como em muitas outras falas, fica clara a relação íntima estabelecida entre “ser bom aluno” e “ter boas notas”. E meu pai foi importante porque ele sempre falou assim pra mim: ‘se você tiver notas boas na escola, se for um bom aluno, você faz o que você quiser com os seus amigos. Seja um bom aluno, que eu não vou pegar no seu pé’. Acho que isso foi bom. L., 17 anos 3.2.2. O papel dos professores Em geral, os indivíduos pesquisados demonstraram afinidade por professores que estabelecem o diálogo como principal instrumento de persuasão e que consideram a pessoa do aluno em sua totalidade, ou seja, não vêem os jovens somente como aprendizes, e sim como sujeitos únicos, com necessidades e desejos individuais. [Esses professores que te marcaram positivamente. Que características eles têm/tinham para ficarem em um lugar bom na sua memória?] Eles estavam preocupados com o indivíduo, sabe? Eu tive uma professora na 7ª e na 8ª série, de História, que se eu levantasse o dedo pra falar alguma coisa, ela dizia ‘dá sua opinião, o que você acha, como você enxerga? Você acha que o golpe de 64 foi um golpe ou uma revolução?’ Então se tinha a preocupação de fora da sala, a professora me perguntar como tinha sido o meu dia, me parar na porta e conversar comigo enquanto as pessoas entram... isso é importante demais. Na escola tem figuras que eu não me interesso nem um pouco pela matéria, mas... nem um pouco mesmo, por exemplo, Biologia não me interesso nada, no entanto passa o professor na porta e fala ‘salve!, bom dia, tudo bem? Você está melhor do que na semana passada? Tá tranqüila, algum problema em casa?’ Isso é essencial. Eu acho que o que eu sou hoje, o que eu vou ser daqui a dez anos, espero que seja também um profissional de sucesso, se deve muito aos professores que me levaram junto com eles, porque os professores que eu tenho melhor lembrança foram coincidentemente os professores de História, de Geografia, que é a área que eu tenho mais interesse. É claro que você tem uma propensão natural por uma área ou outra, segundo características pessoais, sociológicas, hereditárias, sei lá. Mas tem muita importância pra mim. D., 17 anos 54 Vê-se, no exemplo, que a professora de História, em vez de oferecer uma definição sobre revolução ou golpe, oferece à aluna a possibilidade de fazê-lo, o que possibilita a expansão de sua capacidade crítica e de seu envolvimento. Essa estratégia revelou-se marcante para a estudante, a ponto de ser lembrada quatro anos depois. O exemplo anterior faz emergir também o valor do reconhecimento da estudante como pessoa. Ela reconhece naqueles que considera bons professores a capacidade de fazer aparecer, na aluna, a pessoa que ela é, algo que vai além da relação mecânica da transmissão de informações. Há subjetividade em operação: antes (e além) de desempenharem papéis sociais de professor e aluna, são sujeitos em pleno exercício de relacionamento interpessoal. A empatia mostra-se como condição básica – e valorizada pela entrevistada – à manutenção da harmonia dessa relação. De forma geral são valorizados aqueles profissionais que mantêm um discurso direto e reflexivo e que primam pela organização didática, estabelecendo de forma clara e concisa a seqüência de tópicos explorados na aula. Essa sistematização proposta pelo professor parece contribuir para a organização mental do aluno, no sentido de orientá-lo para a compreensão da estrutura epistemológica da área de conhecimento em questão. A fala abaixo ilustra a assertiva. [E do ponto de vista acadêmico, que influências os professores tiveram no seu bom desempenho?] Academicamente falando, uns eu considero bons professores, e outros não tão bons. Quando eu estou nas aulas, aprendendo as matérias, eu gosto de tudo muito bem dividido: tópicos, subtópicos, gosto de tudo organizado pra eu saber onde eu estou, quando eu for estudar. E tem professores bons também que não fazem isso, e isso me atrapalha um pouco. Mas eu não reclamo deles, eu gosto. L., 17 anos Um defeito que eu acho no ensino brasileiro é que o professor passa a matéria sem fazer discussão sobre ela. R., 17 anos 55 Professores que elogiam e que são disponíveis a atendimentos também são muito estimados. O reconhecimento do esforço eleva a auto-estima e motiva o estudante para novas aprendizagens. O testemunho abaixo ilustra a importância dada aos retornos positivos (elogios, pontos) e ao estabelecimento de situações-problema como desafios cognitivos. Por exemplo, eu tive um excelente professor de matemática no primeiro grau. Ele atendia todos os alunos que procuravam. Se ele percebia que o aluno tinha facilidade, ele dava desafios pra ele resolver. E dava alguns pontos extras. Tinha também uma de português que também incentivava, elogiando. Eu acho até mais importante o de procurar desafios. Pra quem não se interessava tanto, ele dava o básico, e aprofundava aqueles que quisessem mais. R., 17 anos Entretanto a relação com os professores nem sempre foi estabelecida em palco de harmonia e diálogo. Surgiu até mesmo ambiente competitivo entre aluno e professor, como ilustrado no depoimento abaixo. Já aconteceu de eu sentir rivalidade de professor em relação a mim, antipatia gratuita, sabe, eu não posso dizer isso porque eu tô dentro do problema, né, então é claro que se você for conversar com o professor, vai ver que tem motivo, uma resposta atravessada, porque eu sou mestre em fazer isso, né? Mas muitas vezes eu senti isso. Eu tive uma professora na sétima série dava pra sentir um lance de ódio naquela relação. [E o que isso influenciou no seu estudo?] Eu acho que me motivava. Eu desafiei muito até a minha oitava série. Então o quão mais eu estava preparada, mais putos eles ficavam, né... então eu acho que era um fator de... sei lá, pra eu produzir mais. D., 17 anos Esse fragmento explicita, além da competição estabelecida, um sentimento hostil que ela projetava no professor, numa relação de transferência. Esse sentimento gerava o estabelecimento de duelos, que alimentavam ainda mais o sentimento projetado, que era agente motivador de estudo levando a novas aprendizagens. Com outros entrevistados, é nítida a tentativa de se evitar conflitos com professores, como estratégia de aprendizagem. O discurso abaixo ilustra essa tentativa de se afinizar com o docente por meio da aceitação. 56 Eu tento gostar do professor. Eu acho que se eu não gostar dele, toda vez que ele chegar eu vou dizer: nossa, eu não vou ouvir a aula desse cara chato. E aí eu não vou aprender a matéria dele. Não vou depois ser capaz de saber o que ele quer que eu saiba, na hora da prova. G., 17 anos Esse testemunho também expõe, mais uma vez, um detalhe bem evidente nos discursos e já abordado anteriormente, que é a necessidade de se atender às expectativas (“saber o que ele quer que eu saiba”), especialmente em momentos avaliativos. De qualquer forma, embora a postura dialógica do professor seja a preferida, os discursos referem-se a esquemas expositivos de aula, ou seja, o ensino focado no discurso do professor e nas estratégias por ele estabelecidas. Caracteriza, principalmente, aprendizagem por recepção. As falas remetem também a uma preocupação em se “descobrir” os estilos e as estratégias avaliativas de cada um dos professores. 3.2.3. Modelos A comparação com pessoas de referência surge em boa parte dos discursos, em alguns casos com irmãos mais velhos e, na totalidade, com os pais. Sem exceção, os sujeitos pesquisados afirmaram ter a imagem de pelo menos um dos pais como pessoa muito estudiosa. Na quase totalidade dos casos, essa imagem se aplicava a ambos os genitores. Como a referência aos pais é constante, parece que a imitação do modelo dos pais é importante fator motivacional para o estudo. Demonstrar atitudes favoráveis ao estudo e valorizar o ambiente escolar gera nos filhos o desejo de valorização semelhante, contribuindo para a dedicação ao estudo individual. Os recortes a seguir, extraídos de quatro entrevistas, ilustram de maneira bem clara a influência da imagem dos pais na atitude dos filhos. “A.” destaca o hábito de leitura dos pais. 57 [Tente se lembrar do início da sua escolaridade. Houve alguma ação, ou conjunto de ações, que acabaram influenciando esse seu sucesso acadêmico de hoje?] Acho que pelo jeito dos meus pais, talvez. Meu pai sempre gostou muito de ler, lê muitos livros, conversa muito sobre as leituras, sobre pessoas conhecidas que adquiriram sucesso profissional pelo estudo. Minha mãe também sempre gostou muito de ler, de estudar, então acaba que você tem em quem se espelhar, é um reflexo. [Algum outro espelho, modelo, além dos pais?] Não sei... acho que não. Nunca parei pra pensar... A., 16 anos “V.” relaciona os títulos dos pais à imagem de pessoas estudiosas, ao listar os cursos superiores. [Tem irmãos?] Sim, uma irmã mais velha dois anos. [E isso de alguma forma te motivou a ser um bom estudante?] Não. Acho que o que me motivou foi muito mais meus pais. [Você considera seus pais estudiosos?] Sim, muito. Meu pai acabou de fazer um curso de Direito, e já tinha formação superior, engenheiro. Minha mãe tem formação em Biblioteconomia, mas trabalha como gestora pública. V., 17 anos A imagem de pais estudiosos também emerge nos discursos de “L.” e “G.”. Este último ainda estabelece relação entre estudo e sucesso profissional. [Seus pais te influenciaram?] É... eu não consigo ver isso, mas eu sei que sim. A família é importante. Meus pais foram bem-sucedidos academicamente. L., 17 anos [Você acha seus pais estudiosos?] Acho, até hoje. Meu pai principalmente. Minha mãe é estudiosa, ela passou em concurso público, teve que estudar muito pra isso. G., 17 anos 58 3.2.4. Vestibulares e PAS Passar no vestibular da UnB ou no Programa de Avaliação Seriada da Universidade de Brasília – PAS é uma das mais significativas materializações do sucesso acadêmico. Em termos mercadológicos, é para algumas escolas a principal forma de demonstrar esse sucesso. Portanto, a pressão sobre o aluno é enorme, porque o êxito integra o conjunto de expectativas sociais geradas. Embora o pesquisador se referisse a toda a escolaridade do entrevistado, era comum nas entrevistas o jovem referir-se ao passado recente e ao presente. Como a pesquisa foi realizada entre estudantes da terceira série do ensino médio, um fator motivador para o estudo, amplamente citado, foi a possibilidade de sucesso (ou o medo do insucesso) nos concursos vestibulares e no Programa de Avaliação Seriada da Universidade de Brasília, o PAS. A quase totalidade dos entrevistados relatou ter ampliado consideravelmente o tempo de estudo individual deliberado na última série do ensino médio. A possibilidade de ingressar na Universidade de Brasília com menos dificuldade é um forte agente motivacional para “V.”, como ele atesta a seguir. Eu acho que não tem importância você falar pra mim ‘você está entre os melhores’, acho que eu não ligo pra isso. Acho mais importante a questão de aprender, de passar no vestibular. Agora, a vantagem de estudar, pra te falar a verdade, é que estar entre os primeiros significa que no vestibular eu terei mais facilidade. [Então uma coisa que você mira é o vestibular...] É porque quando você estuda em uma escola boa, e essa é uma escola boa, e você está entre os melhores, você pode ter uma idéia de como será seu desempenho no vestibular. V., 17 anos O estudo também é visto como uma possibilidade de estar no controle da opção de curso superior, o que remete à questão do poder, já abordado anteriormente, só que desta vez com foco no poder de escolha, no foro privilegiado, em função do esforço investido ao longo dos anos. 59 Acho que o que mais me motiva é a possibilidade de eu escolher a melhor opção no PAS, de eu não chegar no final desse objetivo e dizer: ‘ah, não posso fazer aquilo porque eu não tenho nota’. R., 18 anos A forte motivação gerada pela aprovação no processo seletivo também proporciona vencer as adversidades geradas pelo estudo, principalmente daqueles objetos de conhecimento de menor afinidade por parte do estudante. No caso de “A.”, essa motivação foi decisiva para que ela encontrasse energias para perseverar no estudo individual, mesmo em momentos de maior dificuldade. [O que realmente te move a se manter no topo da crista?] Bom, esse ano a questão do vestibular acaba sendo forte. Eu quero UnB, e a melhor forma de entrar na UnB é o PAS. E isso me impulsiona. Entrar na faculdade. Tem muita coisa que você tem que estudar e que você não gosta, mas você precisa, pra passar no vestibular e chegar no lugar em que você quer, na profissão que você quer seguir. A., 16 anos Esse universo da corrida rumo a uma vaga no ensino superior ilustra uma realidade vivida por muitos jovens de sucesso acadêmico, ao longo de toda a escolaridade: a competição. 3.2.5. Competição Nos vários momentos em que a competição surgiu nos discursos, veio acompanhada de sentimento positivo, como motivador para o estudo. Os competidores mais freqüentes são os colegas de turma. Os fatores de competição são os resultados, expressos em forma de notas. A competição é disputada prova a prova, ora de forma tácita e geral, em brincadeiras e comentários aparentemente amistosos em relação a desempenhos de diversos colegas, ora de forma explícita e específica, quando o competidor é um colega exclusivo, e muitas vezes esse jogo perdura por mais de um ano letivo. No fragmento a seguir, “V.” 60 explicita a preocupação em manter-se informado sobre o desempenho de seus colegas. Além disso, deixa claro que perceber-se distante do melhor desempenho o motiva a se dedicar ao estudo. [Competição com colegas?] Eu procuro saber, pra saber como é que eu estou em relação à turma, quantos foram melhores do que eu. [E se você descobre que está abaixo?] Aí eu tomo vergonha na cara e estudo. Eu fico um pouco incomodado, aí eu vou recuperar a matéria. V., 17 anos Em casos em que há irmãos com pouca diferença de idade e também de elevados desempenhos escolares, é comum estabelecer-se jogo competitivo, algumas vezes alimentado por comentários dos pais. No caso de “D.”, também de professores. Esses comentários, freqüentemente comparativos, algumas vezes aparecem nas falas dos entrevistados, geralmente carregados de certa carga emocional negativa. O meu irmão sempre foi a ovelha branca da família. Minha mãe sempre o exaltou muito, sempre... ele sempre foi um exemplo, um referencial, porque ele é uma pessoa metódica, pontual, disciplinada, responsável, muito bonito, muito inteligente, é... tudo. E minha mãe sempre deixou isso muito evidente. Muito... sempre comparou a gente, muito. Só que eu nunca percebi isso. Só fui perceber isso agora. Então eu acho que meu irmão foi uma coisa que eu quis ser durante muito tempo. Eu acho que é por isso que esse lance de você me conhecer pela minha inteligência, pelo meu sucesso acadêmico foi tão importante pra mim durante tanto tempo, porque ele era tudo isso. E como ele é três anos mais velho e estudou nas mesmas escolas que eu, tivemos muitos professores repetidos. Aí os professores falavam: Ah, você é irmão do fulano? Nossa, adoro seu irmão, ele é um exemplo de aluno etc. etc. Então, assim, eu nunca estabeleci uma rivalidade consciente com ele, não percebi que fiz isso, mas agora eu começo a entender que eu queria um pouco do trono que meu irmão tinha, porque minha mãe colocou ele lá. Então durante muito tempo eu fui uma pessoa que não tinha muito a ver com a minha essência. Esse lance de número, de nota, de muito importante eu ser a primeira colocada, na verdade eu percebo que foi uma transferência que eu fiz, já que em casa eu não era. D., 17 anos Esse depoimento evidencia o forte papel motivador que a competição pode assumir. Nesse caso, é clara para a entrevistada a preferência da mãe em relação a um dos filhos, e a competição entre irmãos ocorreu por disputa pelo lugar principal: o trono materno. 61 Revela ter assumido o papel competitivo sem a plena consciência de que sua luta era pelo colo maternal, consciência essa só estabelecida ao final da escolaridade básica. Nesse caso, a escola supriu a lacuna deixada pela família. O discurso indica a percepção de si como a contraface do outro: o irmão. Ele era tudo o que ela não é, porém gostaria de ser. É um misto de amor e ódio. Considera, portanto, o irmão um referencial a ser alcançado. A competição foi potencializada por comentários de professores, que acabaram por fortalecer, mesmo que sem intenção, o clima competitivo estabelecido na relação com o irmão. Outros casos de competição entre irmãos apareceram nas falas, como o fragmento a seguir, no qual aspectos do exemplo anterior ressurgem. Influência dos pais no estabelecimento de ambiente competitivo, visão positiva da competição e o irmão como referencial são imagens presentes no discurso. [Você acha que seu irmão contribuiu para esse sucesso?] Contribuiu. Porque desde moleque a gente sempre competiu muito, eu acho que até por educação dos pais. [Você acha a competição negativa?] Eu não acho negativa. Acho que o modo como ela é feita pode torná-la negativa ou positiva. Você depreciar as pessoas na competição, eu acho negativo. Uma referência minha era o meu irmão. Ele é um cara inteligente. Às vezes, eu fazia as coisas só pra provar pra ele que eu conseguia. R., 18 anos No caso de “R.”, a competição fraternal, além de ser alimentada por comentários dos pais, vai além de uma simples rivalidade. O irmão assume o papel de referencial e legitimador do sucesso. Não adiantava apenas ser bom. Era essencial, ainda, que o irmão atestasse sua competência. 62 3.2.6. Aprendizagem x notas Os discursos analisados desfizeram a aparente dualidade entre o prazer em aprender e a perseguição de atingir altas notas. Apesar da constante busca à nota máxima, a quase totalidade dos alunos declarou sentir satisfação em aprender e, mais que isso, que essa satisfação é, por si só, motivadora de novas aprendizagens. Provocados para escolher entre processo (aprender) ou produto (nota), os pesquisados em geral demonstraram dúvida confirmando que ambos são inerentes. A constante referência a notas leva a sugerir que estudar por curiosidade ou pelo prazer do tema pode parecer menos significativo, mas na verdade muitos que declararam mirar notas também declaram prazer em aprender, principalmente conteúdos de disciplinas de maior afinidade. Talvez sejam aspectos mais complementares do que auto-excludentes. Por outro lado, muitos deixaram claro que as notas nem sempre refletem a aprendizagem, referindo-se a situações de descompasso. Por exemplo, quando o instrumento avaliativo é mal elaborado e não contempla o conteúdo trabalhado. Outra situação citada é o acerto ao acaso em provas objetivas. [É possível ter boa nota sem ter aprendido?] Em alguns tipos de prova é. Em provas objetivas, tem gente que tira notas altas e que não sabem... [É possível o contrário? Você ter entendido, e na prova não ter conseguido resultado alto?] Pode. Você pode estar mal no dia, ou até você consegue pensar daquele jeito, mas na hora algum fator te atrapalhou. [E qual das duas situações você preferiria?] Olha... eu acho que é saber, mas na prova não ir muito bem, porque quando você tira nota baixa numa prova e você entendeu, na outra você vai bem. G., 17 anos No trecho destacado, “G.” expõe algumas fragilidades da avaliação com característica somativa e pontual, especialmente aquelas construídas em instrumentos 63 objetivos, que aumentam a chance do acerto ao acaso. Além disso, demonstrou sua preferência pela aprendizagem, ao invés do resultado expresso pela nota. A fala a seguir também sinaliza a fragilidade dos instrumentos avaliativos escritos praticados nas escolas. Denuncia também a possibilidade de se atingir bons resultados por meio de aprendizagem superficial, baseada em estratégias que privilegiam a memorização por repetição, em detrimento à aprendizagem profunda, significativa. “V.” dá o testemunho de alcance de resultados a partir da transferência de informações dos livros para os instrumentos avaliativos. Essa aprendizagem, mecânica, ancora-se em campos da memória de curta duração. Assim, as informações volatilizam-se com facilidade preservando-se apenas nos escritos das provas. A prova não é um bom instrumento de avaliação, porque ela coloca o aluno numa situação que não prova que o aluno sabe a matéria. Prova que ele decorou a matéria. Tem provas que eu fiz muito bem, mas hoje eu não lembro a matéria. Eu acho que um bom instrumento de avaliação, por mais complexo e demorado que fosse, seria entre o mestre e o aluno. Ninguém melhor do que aquele que domina a matéria pra avaliar se ele aprendeu ou não. V. 17 anos 3.3. Imagens negativas relacionadas ao sucesso escolar O sucesso acadêmico nem sempre é relacionado a imagens boas. Em vários momentos, estimulados por perguntas ou espontaneamente, entrevistados expuseram situações de desconforto relacionadas ao sucesso. Além das já citadas, apresentamos a seguir algumas dessas imagens e situações. 64 3.3.1. Apelidos A maior parte dos entrevistados relatou ter tido, durante a escolaridade, apelidos decorrentes do sucesso acadêmico. Alguns efêmeros, outros com duração superior ao ano escolar. “Nerd”, “Cabeção” e outros termos empregados por colegas causaram incômodo no ensino fundamental, porém hoje são aparentemente bem tolerados pelos entrevistados que citaram essas situações. Já me chamaram de muita coisa. Isso me incomodava antes, agora não mais. C., 17 anos [Apelidos?] Não muito. Tem sempre um babaca da sala que fica falando alguma coisa... G., 17 anos A forma hostil como “G.” se refere aos colegas que o assediam verbalmente denota o incômodo ainda gerado pelos comentários considerados inconvenientes. Os apelidos já me incomodaram muito, porque me colocavam lá numa posição como um E.T., mas eu sempre achei que não estava fazendo nada mais que minha obrigação. Quem tá errado é você, não eu. Hoje em dia eu levo na brincadeira, eu sei que quem faz isso são meus amigos. [E alguma vez, quando essas brincadeiras te incomodavam, você já teve o impulso de reduzir seu rendimento, para ser inserida no grupo?] Com certeza isso já passou pela minha cabeça, mas eu sempre chegava à conclusão de que era bobagem, aí eu desistia da idéia logo, mas que já passou pela cabeça, isso já. A., 16 anos É ilustrativo ressaltar que as entrevistas foram realizadas entre alunos da terceira série do ensino médio. Atingiram o sucesso porque, entre outros fatores, venceram diversas dificuldades, inclusive a do assédio moral, como ilustra a fala acima, em que “A.” assume que já se viu em situações de ceder às pressões do grupo para ser mais aceita socialmente. Portanto, uma das habilidades desenvolvidas por eles foi a resistência às influências do grupo, 65 que em muitos momentos tenta conduzi-los a atividades ou situações divergentes em relação à meta do sucesso escolar. No ensino médio, é particularmente estratégico o assédio para encontros sociais, tais como festas, cinema etc. Muitas vezes os convites são aceitos, embora com certa parcela de culpa, dado o envolvimento com o estudo. Dessa forma, aquilo que seria uma atividade natural para qualquer indivíduo, especialmente nessa faixa etária, transforma-se em concorrente ao estudo deliberado. O que mais me provoca é quando meus amigos me chamam pra sair quando eu estou querendo estudar. Às vezes não dá pra resistir, e eu vou com eles. F., 17 anos Nesse trecho, “F.” revela a dificuldade em perseguir a meta do estudo individual, quando confrontada aos convites para eventos sociais. Percebe-se nesses jovens a imagem da dualidade entre a diversão e o estudo. Nota-se certa dificuldade dos entrevistados em lidar com essa questão. “G.”, por exemplo, expõe seu incômodo com a imagem de que alunos de sucesso escolar apresentam restrição de vida social. Também me incomoda quando as pessoas ficam falando que eu não tenho vida. Eu tenho vida, eu saio, vou a festas, ao cinema com os meus amigos. G., 17 anos 3.3.2. Pressão excessiva Em algumas falas percebe-se que a pressão, alimentada principalmente por sentimentos do próprio entrevistado, parece ter gerado níveis elevados de estresse. O perfeccionismo para resultados escolares é nítido, e esse fator, aliado a outros, como a exigência dos pais e o cansaço, deixou imagens de sofrimento. 66 Essa busca por ser a melhor acaba que gera um pouco de pressão. Às vezes, nem por outras pessoas, mas por você mesma. Você sabe que pode fazer melhor, então você corre atrás... A., 16 anos Por exemplo, eu tenho que ficar aqui todas as tardes. Eu poderia almoçar em casa, eu almoço aqui todos os dias, e isso desgasta. Eu acordo praticamente como se não tivesse dormido. Eu volto pra casa, durmo e acordo cansado. G., 17 anos Os fragmentos apresentados expressam de forma clara o sofrimento embutido no sucesso escolar, o que agrega ainda mais valor. Paralelamente a esse sofrimento, é possível notar nas entrelinhas certo ar de heroísmo nessa conquista. [Alguma outra lembrança negativa, em relação à sua vida escolar?] Em termos de pressão, tem hora que eu não agüento mais, o estudo enche o saco demais, eu tenho vontade de ir embora,... fico saturada. [Saturada de estudar ou saturada de tentar se manter em primeiro?] Os dois, os dois. [E o que te incomoda mais?] Já rolou vontade de me contentar com seis, de não me exigir muito, já tentei, mas nunca consegui fazer isso. [De que maneira?] Ah... não sei... Por exemplo em Química, já larguei assim: pô, não vou aprender mesmo... aí vem a prova e eu tiro seis, ou seis e meio. Aí rola aquele arrependimento, porque eu podia ter ido melhor. Aí depois eu meto a cara no estudo. Não consigo. Nem quero ser a melhor de todos sempre, mas quero ser o melhor que eu puder ser. K., 17 anos Esse último trecho ilustra a exigência desenvolvida pela aluna em relação aos próprios resultados e à incapacidade estabelecida em contentar-se com o mínimo exigido pelo sistema educacional. O discurso demonstra também o papel motivador que o insucesso desempenha na retomada da aprendizagem. A consciência sobre o fracasso ativou na jovem a vontade de superar a dificuldade, com foco na própria potencialidade, numa atitude de autoconhecimento. 67 3.3.3. Insucessos Durante as entrevistas, os sujeitos foram provocados a discorrer acerca dos insucessos e seus desdobramentos. Mais uma vez, fica evidente a auto-exigência por elevados desempenhos. Na quinta serie, quando mudei pra escola particular, eu tinha uma dificuldade grande com algumas matérias. Na escola pública, em geral, eu só tirava 10 ou 9,5. Chega lá, você tira um 7. Aí, você: ‘nossa, muito baixo’. Isso diminuiu a autoestima, porque você pensa que está piorando. E também porque você chega e tenta estudar mais, como eu tentei. Me desafiou, mas na época foi ruim. Eu não me sentia eu. Eu gostava de ser bem-sucedido nas provas. G., 17 anos Percebe-se no excerto a busca pelo bom resultado, a relação entre nota e bemestar e a forma como o jovem lidou com pequenos fracassos, chamando para si a responsabilidade. É dada muita relevância aos erros, cuja causa é geralmente localizada em procedimentos do próprio aluno (atribuição causal interna, controlável). Um termo recorrente quando se fala em sucesso é culpa. Na interação abaixo, o entrevistado relaciona culpa à responsabilidade e também localiza a causa do erro nas próprias ações. Como no caso anterior, percebe-se também forte preocupação em corrigir os erros, de modo a não repeti-los e, assim, atingir as metas estabelecidas. [Você citou mais uma vez a palavra culpa. É a primeira coisa que você busca após um insucesso?] Sim. [E esse culpado, geralmente, é quem?] No meu caso, geralmente sou eu. Geralmente é a quem é incumbida a responsabilidade. [E o que você faz depois de ter descoberto a culpa?] Eu vejo o que eu fiz de errado. A partir daí é aprender com os erros e fazer de tudo pra conseguir atingir minhas metas. R., 18 anos 68 3.4. Inteligência e sucesso acadêmico O construto inteligência está longe de ser consenso na pesquisa sobre o tema. Apesar disso, os participantes tenderam a reificar o conceito. Assim, quando perguntados em relação ao assunto, a quase totalidade dos entrevistados se autodenominou inteligente. Entretanto as imagens relacionadas a esse construto foram diversas. Em muitos discursos, nota-se a clara influência dos pais, professores e colegas na construção dessa auto-imagem. A percepção dos outros em relação a si influi diretamente na construção do autoconceito de alguém. Portanto, os elogios recebidos ao longo da escolaridade parecem ter sido fundamentais para a elaboração dessa imagem de si próprio como alguém capaz. Apenas duas entrevistadas disseram que não se consideram inteligentes, mas estudiosas, estabelecendo uma dicotomia entre esforço (estudo) e talento (inteligência). Para essa duas estudantes, a inteligência constitui-se em talento inato, que não depende do esforço para se construir. Entretanto, no caso delas, o empenho, a determinação foram fundamentais para estarem em igualdade de condições com aqueles que consideram privilegiados por terem nascido inteligentes. Não me considero inteligente, mas sim estudiosa. Meu irmão sim é inteligente. Sem estudar, ele consegue ir tão bem quanto eu. Eu tenho que estudar muito pra ter o resultado dele. L., 17 anos Os significados de inteligência apresentados pelos participantes circularam em torno de cinco idéias principais: capacidade de se atingir metas; capacidade de resolução de problemas; inteligência relacionada a habilidades diversas (escolares e extra-escolares); capacidade de retenção de informações; preocupação com o bem-estar de si próprio e com o 69 do próximo. Os recortes abaixo ilustram alguns desses significados que emergiram na fala dos entrevistados. [Você se considera inteligente?] Sim [risos]. [O que é ser inteligente?] Olha, pra mim é conseguir aprender as coisas. Alguém dizer alguma coisa e eu aprender. [E o que é aprender?] É chegar ao objetivo que a pessoa quer. Se o meu professor de Matemática quer que eu chegue à conclusão de que isso é aquilo e a conclusão está certa, eu tenho que chegar até ela. Ele não tem que chegar até ela por mim. Eu tenho que ter a capacidade de aprender, de chegar à conclusão sozinho, sem ter que depender de ninguém. G., 17 anos Para “G.”, a inteligência é considerada a capacidade de aprender e de se atingir metas com relativa autonomia. Esse sentimento contribui ao estudo individual deliberado, atividade que depende da capacidade autônoma, da disciplina. Portanto, é possível que essa imagem de inteligência alimente a atitude de perseverar no estudo administrando as próprias dificuldades. De forma semelhante, surgiu a associação entre inteligência e capacidade de resolução de problemas. [Você então se acha inteligente?] Acho. [E o que é ser inteligente?] Capacidade de resolver problemas. [E você acha que consegue resolver com certa facilidade?] Acho. D., 17 anos A inteligência também foi relacionada a habilidades escolares e extra-escolares. A fala de “V.” remete à idéia das múltiplas inteligências quando estabelece diferenças entre habilidades valorizadas não somente no ambiente escolar. 70 [Mas como você quantifica essa capacidade sua?] Acho que pela facilidade de aprender. Também pelas notas, que é o método que a gente quantifica no colégio, e apesar disso eu não acho que seja necessariamente inteligente. Acho que inteligência é uma coisa muito mais ampla. [E o que é inteligência?] O que é inteligência?... Inteligência é... acho que é a capacidade de você saber lidar com determinadas situações e se sair bem nelas. Por exemplo, socialmente, a hora de falar, a hora de ficar calado. Em matemática, conseguir resolver situaçõesproblema. Lingüística, a capacidade de escrever bem, de saber usar bem as palavras, usar seus argumentos. Acho que inteligência é algo mais do que simplesmente colégio. V., 17 anos Por sua vez, “A.” relaciona a inteligência à capacidade de retenção de informações, à curiosidade e à capacidade de discorrer sobre temas diversos. [E você se acha inteligente?] Sim. [E o que é isso?] Boa pergunta... [risos]...eu não sei, nunca parei pra pensar nisso... Não sei, talvez seja ser acima da média... [Média de quê?] Da inteligência... [risos] é conhecer mais que os outros... [E o que é conhecer mais?] [risos, incomodada com a insistência do entrevistador] ...Quanto mais responde, mais informação... Eu acho meu irmão do meio muito mais inteligente que eu. Qualquer assunto que você puxe com ele, ele sabe falar. Sabe falar sobre história, arte, ele é de ficar horas lendo um livro, vai pro computador e fica vasculhando, é mais curioso que eu. A., 16 anos Surgiu inclusive a relação entre inteligência intrapessoal e a interpessoal, ou seja, a prática de atitudes favoráveis a si mesmo, sem que tragam prejuízos a outrem. [Você se considera inteligente?] Sim. [E o que é ser inteligente?] Ser inteligente... eu acho que é... fazer o que é bom pra você sem que isso seja mal para as outras pessoas. L., 17 anos 71 A abordagem acerca do tema inteligência por parte dos entrevistados vem confirmar a diversidade de imagens em torno desse construto. Embora a quase totalidade tenha se julgado inteligente, as concepções do que vem a ser variaram bastante em termos de significado. Considerações Os resultados da presente investigação revelaram que o significado do sucesso acadêmico extrapola a dimensão da aprendizagem de conteúdos escolares. Estar nesse seleto grupo é ser reconhecido como alguém capaz, alimentar expectativas, ter poder e maior possibilidade de inserção social. Ao mesmo tempo que caracterizam o sucesso acadêmico, esses significados agem como motivadores do estudo e, portanto, atuam na manutenção desse objeto simbólico. A introversão desses estudantes pesquisados, que dificulta a ampliação do círculo de amizades, facilita a dedicação ao estudo individual deliberado por eles declarada, que é uma atividade solitária, necessitando o estudante de suportar com satisfação sua única companhia e seu próprio silêncio. A aparente segurança e autodeterminação desses jovens oculta uma forte necessidade de seguir metas traçadas por outras pessoas, e atender a expectativas, que são com freqüência os pais. Percebeu-se grande identificação com modelos estabelecidos que incluem professores e colegas, mas estes nem se comparam, em grau de influência, à força do modelo dos pais. 72 4. DISCUSSÃO E CONCLUSÕES 4.1. Discussão O perfil dos entrevistados corrobora o que a literatura apresenta sobre as possibilidades do sucesso acadêmico, já que são estudantes oriundos de famílias pouco numerosas, de elevado nível socioeconômico, e em sua maioria primogênitos (CAMACHO, 2000; CASSASSUS, 2002; CASTRO, 1984). Os resultados desta pesquisa apontam para a questão de que o sucesso acadêmico, na perspectiva de alunos bem-sucedidos, não se resume a manter elevados resultados no desempenho escolar. As imagens e atitudes que emergiram nas entrevistas sugerem que são muitas as significações desse construto, e corroboram a teoria das representações sociais (JODELET, 2002). O reconhecimento gerado pelo sucesso escolar parece ser elemento de objetivação do construto, ou seja, uma forma de torná-lo socialmente aceito e compartilhado. Em outras palavras, ter excelentes notas no boletim escolar não caracteriza por si só esse sucesso, cujo significado se complementa no reconhecimento por parte dos outros. A possibilidade de inserção social que o sucesso acadêmico proporciona sugere atuar no processo de síntese desse objeto simbólico, na qual o conhecimento elaborado na representação social é ressignificado, a fim de que o indivíduo possa ser mais bem inserido ou aceito no grupo. É um tipo de recompensa social oriunda desse objeto, a partir da qual o estudante bem-sucedido tem a possibilidade de alterar seus conceitos sobre o mundo circundante, já que esse mundo passa a vê-lo de forma diferenciada. O empoderamento e a credibilidade do aluno bem-sucedido são exemplos da ancoragem desse construto. Nesse processo, ocorre a materialização coletiva do conhecimento 73 da representação, que passa a ser referencial para o estabelecimento de relações entre seus agentes, segundo seus valores e contravalores sociais e culturais. Dito de outra forma, trata-se da reificação do objeto simbólico, no caso o sucesso acadêmico, um construto socialmente aceito, compartilhado e carregado de conceitos e valores estabelecidos no contexto das relações entre os indivíduos. Este estudo revelou também o forte papel motivacional dos pais em relação ao alcance do sucesso acadêmico dos jovens pesquisados, principalmente por meio da adoção, pelo estudante, de pelo menos um dos pais como modelo para esse sucesso. Para Bandura (1986), o meio social exerce decisiva influência, positiva ou negativa, na determinação dos comportamentos que serão desenvolvidos ou ativados. Esse suporte social, estabelecido por meio de interações contínuas, controla as ações dos componentes de uma família, por exemplo. Outras aprendizagens, além daquelas relacionadas aos conteúdos escolares formais, também são passiveis de ser influenciadas pelas ações e expectativas dos pais. Davidson e colaboradores (1996) demonstraram essa influência no desenvolvimento da habilidade musical. As crianças de melhores performances foram aquelas de maior interesse, apoio e participação dos pais, que se envolviam cada vez mais, na proporção do progresso dos filhos. Assim, se o ambiente familiar privilegia o estudo, ou seja, se o considera um de seus principais valores, essa inclinação terá grande chance de determinar o comportamento dos filhos em direção a esse valor. Como foi dito, todos os entrevistados consideram pelo menos um dos pais (para a grande maioria, ambos) bastante estudioso. Além disso, freqüentemente se remeteram aos pais como referenciais para o sucesso escolar, quase sempre 74 com o argumento de não decepcioná-los demonstrando as elevadas expectativas depositadas pelos pais em relação ao sucesso dos filhos. Casassus (2002) e Gomes (2005) afirmam que o interesse dos pais pela leitura, o tempo de permanência deles em casa e de diálogo com os filhos, o nível de escolaridade, a expectativa em relação ao sucesso dos filhos e o envolvimento nas atividades escolares, dentre outros, são fatores que apresentam correlação positiva com o sucesso acadêmico. Por outro lado, Bandura (1977) não atribui a motivação apenas ao contexto social. Para o autor, a modelagem cognitiva depende fortemente do que denominou auto-eficácia, que é a crença do indivíduo sobre sua capacidade de se motivar e de exercer controle sobre as atividades relacionadas à sua vida. Em outras palavras, a auto-eficácia envolve não só a capacidade do indivíduo de executar determinada tarefa como também o julgamento, a representação dessa capacidade, o que depende também de experiências anteriores. Dessa forma, atividades carregadas de forte sentimento de auto-eficácia apresentam altas possibilidades de serem bem executadas, ou seja, o bom desempenho de uma tarefa depende não só da capacidade em realizá-la como também da crença, por parte do realizador, de sua capacidade de realização, motivação e controle sobre processos e resultados. As imagens que emergiram das falas dos entrevistados corroboram essa idéia da auto-eficácia, na medida em que revelaram jovens com razoável controle sobre suas atividades de estudo, incluindo estratégias motivacionais. São estudantes que demonstram ter o controle sobre sua aprendizagem, suas estruturas metacognitivas, quando narram as formas de estudar os diferentes conteúdos das diversas disciplinas de maneiras variadas, de acordo com sua afinidade, capacidade de aprendizagem e tempo disponível. Esses resultados permitem inferir forte atribuição causal interna dos estudantes, o que para Weiner (1979) é fator primordial ao sucesso. Isso se torna mais evidente nos relatos 75 de insucessos, quando entrevistados atribuem as falhas a omissões ou desacertos em sua própria conduta indicando os rumos para corrigi-las. A freqüência dessas falhas, a facilidade em repará-las e a energia despendida no estudo têm relação com a forma como alguns entrevistados representam o construto inteligência. Para eles, ser inteligente se opõe a ser esforçado. O inteligente é aquele que atinge resultado sem muito esforço, ou seja, que não demonstra necessidade de grande dedicação para manter elevado desempenho. Essa noção relaciona-se à idéia de dom inato, de talento, outro construto carregado de significações diversas e controversas (GALVÃO, 2007). Além da motivação intrínseca, os jovens entrevistados demonstraram em geral boa resposta quando elogiados e quando desafiados por professores, por meio de atividades escolares com graus crescentes de complexidade. O papel do elogio na motivação desses jovens confunde-se com uma das principais significações do sucesso acadêmico: o reconhecimento. Isso nos remete a Freud (1976), que descreve o narcisismo como um comportamento no qual o indivíduo ama a si mesmo, ou trata a si mesmo como se tratasse uma pessoa amada. Para o autor, o narcisismo é uma fase necessária à evolução da libido. Antes de se voltar ao mundo externo, o indivíduo tem a necessidade de formar o “eu”, que corresponde à auto-imagem idealizada, acrescida de todos os valores, julgamentos e declarações de perfeição dessa imagem ideal. Essa imagem ideal é construída a partir de enunciações pronunciadas por aqueles que estão próximos, principalmente os pais, que se projetam no filho, resgatando o narcisismo que também tiveram, mas que a realidade os forçou a abandonar. Portanto, o reconhecimento como uma das principais significações do sucesso e a referência que os jovens entrevistados têm em seus pais são questões intimamente 76 relacionadas. Ser reconhecido como bem-sucedido alimenta seu narcisismo, que foi construído à custa dos valores e declarações dos pais, que continuam exercendo elevada influência na manutenção desse significado e desse sentimento. Como mencionado, os desafios também se mostraram importantes agentes motivacionais. No ambiente escolar, atividades cognitivas desafiadoras levaram os estudantes pesquisados a se interessarem mais pelo objeto de estudo, o que nos obriga a revisitar o conceito de zona de desenvolvimento proximal (ZDP), de Vigotsky (1989). Para o autor, é importante que o educador estabeleça no estudante o conflito cognitivo, por meio de estratégias educativas que o desafiem a progredir do nível de desenvolvimento real (situação atual) ao nível de desenvolvimento potencial (situação desejada). Para isso, devem ser propostas atividades que fujam do trivial, mas que, ao mesmo tempo, não sejam tão difíceis a ponto de gerar desmotivação. O ambiente competitivo gerado e alimentado por colegas ou irmãos contribui para esse clima de desafio, motivador do estudo. Apesar de causar, por vezes, pressão excessiva e desgastante, na maior parte dos casos parece exercer influência positiva na manutenção do estudo e do sucesso. A comparação de seus resultados com os dos colegas de sucesso é menção constante nos discursos. Alunos que se aproximam de colegas mais privilegiados e interagem com eles obtêm aspirações mais altas e melhores resultados no estudo (GOMES, 2005). Por vezes, uma nota aparentemente medíocre é considerada meritória, por ser, embora baixa em termos absolutos, a melhor nota da turma ou maior do que a do colega competidor. Aqueles entrevistados que apresentam irmãos mais velhos e bem-sucedidos verbalizaram forte preocupação em manter o clima competitivo em relação ao desempenho escolar. É de se supor que essa rivalidade deve ter se iniciado na disputa pelo amor dos pais (FREUD, 1976). Observando que na sala de aula ocorre disputa entre alunos de sucesso em 77 relação à admiração por parte do professor, podemos estabelecer analogia entre a rivalidade fraternal disputando o amor dos pais e aquela escolar, na disputa pela atenção e respeito do professor (MILLOT, 1987). O discurso dos entrevistados permite concluir que, em alguns casos, o apelo por manter elevados desempenhos traz o foco para a realização de instrumentos avaliativos, ou seja, uma aprendizagem superficial ativa que seja suficiente para o alcance de boas notas em provas e um bom desempenho em concursos vestibulares, com nível razoável de compreensão sobre o assunto (ENTWISTLE, 1998). Isso se revela especialmente naquelas disciplinas de menor afinidade por parte do estudante. Os conteúdos de interesse parecem ser assimilados de forma profunda, a partir de estratégias de estudo individual que envolvem várias horas de dedicação e o contato com fontes diversas de informação, gerando ótimo nível de compreensão. Estudantes que apresentam estratégias bem definidas de aprendizagem possuem dois focos de ação distintos, que são o conteúdo acadêmico e o sistema de avaliação, que podem ser relacionadas a estratégias de aprendizagem profunda e superficial, respectivamente. Portanto, é comum estudantes conviverem com focos diversos, a depender de fatores tais como afinidade pelo conteúdo ou pelo professor e tempo disponível para o estudo (ENTWISTLE, 1998). Além do estabelecimento de situações desafiadoras, estudantes pesquisados viram também como qualidade de seus “melhores” professores a afetividade como fator de qualidade do ensino. Os professores mais valorizados foram aqueles que aliaram conhecimento técnico à competência relacional, ou seja, que demonstraram empatia para com os alunos. Isso nos remete, mais uma vez, a Freud (1976), que considera o afeto o principal alimento da pulsão. Assim, o afeto, cuja manifestação é percebida como um sentimento, 78 portanto consciente, é o principal influenciador da pulsão, que ocupa um lugar no inconsciente. Embora Freud não tenha se utilizado do termo motivação, atrevemo-nos a estabelecer relação estreita entre pulsão e motivação. Como a motivação está intimamente relacionada à aprendizagem, os resultados desta pesquisa reforçam a idéia de que afetividade e cognição são temas intimamente relacionados, posição que converge com a de diversos autores (DAMÁSIO, 1996; GALVÃO, 2006). Transportando esse conceito ao ambiente familiar dos sujeitos da pesquisa, podemos concluir que a afetividade dos familiares também contribuiu para zelar pelo ambiente de aprendizagem observado na imagem dos entrevistados, que consideram seus pais, embora exigentes, compreensivos e dialogais. Em outras palavras, além de cobrarem resultados, são pais que, na perspectiva dos estudantes pesquisados, acompanham os processos escolares e se solidarizam com seus filhos, inclusive nos episódios em que há insucessos. Isso se mostra ainda mais claro quando nos referimos a desempenho em testes avaliativos. A tendência à preocupação excessiva e, mais especificamente, o medo de avaliação é um componente poderoso da ansiedade em testes (SARASON, 1988). Muitos jovens disseram remeterem-se à imagem de seus professores quando realizavam provas, o que sugere que imagens positivas de professores geram ambiente mental favorável à realização de exames, com redução do nível de ansiedade. Ainda em relação aos exames, notou-se em muitos fragmentos de discursos uma preocupação em perceber a forma de cobrança do professor, ou seja, a maneira como ele elabora as questões, o que nos remete à metáfora do quarto chinês (SEARLE, 1984), na qual um matemático trancado em um quarto consegue responder, em chinês mandarim, a perguntas 79 elaboradas também em chinês, sem nunca ter tido contato com a língua, a partir do entendimento da lógica com que se estruturam os ideogramas. De certa forma, isso revela a fragilidade dos processos avaliativos escolares, baseados em provas escritas em que se espera do estudante uma resposta semelhante ao que fora dito em sala pelo professor. Dessa forma, a avaliação passa a constituir um processo frágil, passível de dissimulações e que facilite o desenvolvimento de estratégias que levem à aprendizagem superficial passiva, em detrimento ao que Ausubel e colaboradores (1980) denominaram aprendizagem significativa, para cuja avaliação outras estratégias são requeridas além, ou em vez, da prova escrita, para se perceber os atalhos cognitivos construídos pelo estudante. Espera-se que o processo avaliativo seja regulador das aprendizagens dos estudantes (PERRENOUD, 2000), de forma que as intervenções avaliativas ocorram não só ao final como também ao longo do processo de aprendizagem, comunicando ao aluno suas possibilidades de progresso, de forma a permitir alterações de posturas e procedimentos durante a ação educativa. Essa avaliação, denominada formativa (HADJI, 2001), requer do professor uma atenção especial aos modelos mentais dos seus alunos, o que implica grande conhecimento sobre estratégias de aprendizagem e contato próximo com o estudante em atividade, o que não é fácil tarefa em turmas numerosas e com poucos encontros semanais. Assim, espera-se que as estratégias de ensino e avaliação sejam planejadas tendose como meta o estabelecimento de um clima de sala de aula que seja suficientemente motivador (intrínseca e extrinsecamente), estimulando-se o trabalho em grupo, por meio de projetos em que haja participação dos estudantes no planejamento de atividades vinculadas à sua realidade (HERNÁNDEZ, 1998). Os processos avaliativos reguladores estabelecem constante comunicação orientando mutuamente aluno e professor. O primeiro, em direção à 80 aprendizagem. O professor, rumo ao replanejamento das estratégias de ensino (PERRENOUD, 2000). Uma vez motivado o aluno, as aprendizagens se dão de maneira natural, significativa, de modo compreensivo, interativo, lógico. Assim, é interessante que o processo valorize também a aprendizagem em si, e não só os resultados, incentive a produção do conhecimento e o estudo contínuo, fomente as habilidades e talentos a fim de se atingir o enfoque profundo no cumprimento das tarefas (COLL, 1996b; ENTWISTLE, 1998). Nesse sentido, é interessante que a escola seja suficientemente capaz de promover um clima que seja equilibrado e simultaneamente cooperativo e competitivo, de forma a alimentar a motivação dos estudantes extrínseca e intrinsecamente cultivando a curiosidade, o espírito de pesquisa e a criatividade, desenvolvendo habilidades por meio de múltiplas linguagens. Os estudantes entrevistados encontravam-se no último ano da educação básica, portanto apresentavam pelo menos onze anos de vida escolar. Como o sucesso acadêmico, da forma como foi concebido nesta pesquisa, é considerado exceção no ambiente escolar, e tendo em vista que muitas vezes o grupo de crianças e jovens trata as exceções de forma hostil, esses estudantes tiveram que desenvolver estratégias para resistir às pressões do grupo. Vários indivíduos pesquisados narraram experiências em que foram expostos a situações que os fizeram questionar o preço de serem bem-sucedidos, seja por meio de apelidos, de comentários ou de outras atitudes discriminatórias. Isso faz supor que muitos outros alunos com grande potencial acabam por sucumbir a essas pressões em prol de uma inserção social mais “natural”, já que aquela gerada pelo sucesso é considerada por muitos alunos bem-sucedidos como “por interesse”, pois os demais necessitam do apoio dos alunos de sucesso, seja nos momentos de estudo, seja em momentos avaliativos. Muitos desses alunos de destaque acadêmico não são convidados para 81 os eventos sociais, embora sejam intensamente requisitados para trabalhos em grupo, por exemplo, nos quais muitas vezes acabam por realizar a maior parte da tarefa, enquanto outros alunos tiram proveito. É de se imaginar que uma parcela considerável de alunos abandone sua dedicação intensa aos estudos ou preserve-a sob o sofrimento da violência simbólica ou física daqueles que não toleram o diferente. No fenômeno bullying, nem sempre a vítima é sempre só vítima, ou seja, muitas vezes ela aceita por certo tempo as agressões, com o intuito de ser incluída no grupo social. Essas manifestações de violência podem causar sérios danos psicológicos, muitas vezes imperceptíveis aos olhares pouco sensíveis de educadores e pais, mas passíveis de gerar comportamentos patológicos futuros (FANTE, 2005). 4.2. Conclusões Este estudo pretendeu identificar as significações do sucesso acadêmico e suas conseqüências sociais, na visão de estudantes bem-sucedidos. Uma interessante sugestão de prosseguimento seria o estudo longitudinal da trajetória acadêmica e profissional desses jovens, de forma a relacionar o sucesso acadêmico na educação básica aos seus desdobramentos futuros mapeando-se seus destinos e satisfações profissionais. Uma outra sugestão de estudo seria uma pesquisa semelhante, porém envolvendo estudantes de classe socioeconômica menos favorecida, a fim de se traçar perfil comparativo das representações sociais de estudantes bem-sucedidos de realidades distintas. Durante a escrita deste documento, puderam-se colher notícias dos entrevistados. Todos entraram em universidades federais, a maioria na Universidade de Brasília, sendo que um deles obteve a primeira colocação para o curso de Medicina. 82 Independentemente do valor futuro desse sucesso, este estudo permitiu a extrapolação de interessantes sugestões para se manter crianças e jovens com elevados desempenhos escolares: aos professores, uma postura dialógica, franca e cognitivamente desafiadora; aos pais, o apreço pelo estudo, a partir do próprio exemplo, e a necessidade de verbalizar metas e elogios. Porém sugerimos também ações no sentido da construção de autonomia emocional desses jovens, haja vista a forte dependência afetiva às pessoas de referência. A aparente independência desses estudantes oculta uma forte busca por atender a metas e expectativas de outras pessoas. Embora não tenha sido o foco da pesquisa a investigação de altas habilidades nos sujeitos pesquisados, nota-se que muitos apresentam comportamentos compatíveis a casos de superdotação. Nesse sentido, é interessante que as escolas procedam a investigações psicopedagógicas desses alunos de destaque, a fim de se dar o tratamento adequado aos portadores de altas habilidades, tanto na dimensão acadêmica quanto na afetiva. Os resultados incitam a escola a uma discussão sobre os métodos avaliativos, visto que muitas estratégias são sabotáveis, seja pelo acerto ao acaso (no caso de provas objetivas), seja pelo fato de permitirem a aprendizagem superficial passiva: aquela altamente volátil e desprovida de significados. O aluno transcreve algumas informações que foram memorizadas às vésperas da prova, e que são esquecidas logo após a realização da verificação. Embora imaginemos que os alunos continuem focando também as estratégias de se fazer um bom exame (PERRENOUD, 1995), é desejável que esses exames sejam cada vez mais qualificados. 83 REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, M. Juventude, violência e vulnerabilidade social na América Latina: desafios para políticas públicas. 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Você está sendo convidado(a) a participar de uma pesquisa da Universidade Católica de Brasília sobre as representações sociais do sucesso acadêmico. Este estudo será conduzido por Júlio Egreja, e integra sua dissertação de mestrado em Educação. O objetivo deste estudo é identificar o significado do sucesso acadêmico para um(a) aluno(a) bem-sucedido(a), assim como os fatores motivacionais para os estudos e as conseqüências do sucesso. Você foi selecionado(a) para a pesquisa por estar entre os alunos de melhor desempenho escolar de sua série. A coleta de dados se dará na forma de entrevista, que será gravada. Sua identidade será mantida em sigilo. Somente o pesquisador terá acesso às suas informações para verificar os dados do estudo. Você pode escolher não fazer parte dele, ou desistir a qualquer momento. A sua participação é voluntária, e será documentada através da assinatura deste Termo de consentimento livre e esclarecido, do qual você receberá uma cópia. Muito obrigado. Declaro que li e entendi o termo de consentimento, sendo minhas dúvidas esclarecidas, e que sou voluntário(a) a tomar parte neste estudo. Brasília, ____ de ______________ de _____. __________________________________ Participante __________________________________ Pesquisador