RH 166 - Tradução - Português-Inglês

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RH 166 - Tradução - Português-Inglês
PORTUGUÊS-INGLÊS
Eduardo Natalino dos SANTOS. Editorial
EDITORIAL
Depois da publicação de uma sequência de três dossiês – História e futebol;
Ensino de história; A imagem medieval: história e teoria –, a Revista de História
apresenta aos seus leitores uma edição totalmente composta por artigos e resenhas
enviados por seus colaboradores em regime de fluxo contínuo. Esse tipo de reunião
de artigos e resenhas contempla uma das mais constantes e tradicionais características deste periódico: a pluralidade de temas e períodos históricos combinada com a
diversidade de abordagens historiográficas, provenientes dos trabalhos recentes de
pesquisadores das várias regiões do Brasil e do mundo.
O artigo que abre esta edição, Situações postas à História, de François Hartog,
pesquisador e professor na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, apresenta
um conjunto de reflexões – emoldurado pelo debate acerca da concepção de moderno – sobre a prática historiográfica e sobre a História como conceito socialmente
compartilhado, privilegiando, para isso, dois momentos históricos distintos: a época
atual e as décadas centrais do século XX. No artigo seguinte, José Luiz Romero y
la historia del siglo XXI, Carlos Barros, pesquisador e professor na Universidad de
Santiago de Compostela, analisa a obra do historiador argentino mencionado no título,
mostrando como ela, movimentando-se entre a Escola dos Annales e o marxismo
e qualificada como História total, pode ser um caso paradigmático para pensarmos
desafios historiográficos atuais, marcados pelo recuo do entusiasmo com as grandes
escolas historiográficas do século XX. No terceiro artigo desta edição, Ranke e
Niebuhr: a apoteose tucidideana, Francisco Murari Pires, professor e pesquisador
da própria Universidade de São Paulo, analisa a eleição e (re)construção da figura
de Tucídides como gênio e modelo supremo do fazer historiográfico no momento
de fundação da ciência histórica, que tem nos trabalhos de Leopoldo von Ranke e
Barthold Georg Niebuhr obras fundacionais.
Depois desse primeiro grupo de artigos, que versam centralmente sobre a práxis
historiográfica moderna, temos dois artigos da área de História Medieval. O primeiro
deles, Considerações sobre o trabalho na Idade Média: intelectuais medievais e
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 11-13, jan./jun. 2012
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Eduardo Natalino dos SANTOS. Editorial
historiografia, de Terezinha Oliveira, professora e pesquisadora da Universidade
Estadual de Maringá, apresenta uma reflexão sobre os modos como a historiografia
tem tratado o tema do trabalho nas pesquisas sobre esse longo período histórico. Em
seguida, encontra-se o texto de Leandro Duarte Rust, intitulado Bulas inquisitoriais:
Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199). Nele, o pesquisador e professor
da Universidade Federal do Mato Grosso apresenta a tradução inédita ao português de
dois documentos medievais em latim, mencionados no título do artigo, considerados
como textos basilares da Inquisição. As traduções, além de apresentarem o texto
original, são acompanhadas de um texto introdutório de fôlego e de apontamentos
de pesquisa relacionados aos documentos em questão.
Os dois artigos seguintes abordam distintos aspectos do mundo luso-brasileiro
do final do século XVIII e começo do século XIX por meio de suas relações com
Angola. O primeiro deles, José Pinto de Azeredo e as enfermidades de Angola: saber
médico e experiências coloniais nas últimas décadas do século XVIII, de Jean Luiz
Neves Abreu, professor e pesquisador na Universidade Federal de Uberlândia, analisa
a obra do médico luso-brasileiro referido no título, em conjunto com outras fontes da
época, para entender a relação dessa obra com a medicina praticada e teorizada nas
últimas décadas do século XVIII e avançar na compreensão dos saberes médicos desse
período. O segundo artigo, As “geometrias” do tráfico: o comércio metropolitano
e o tráfico de escravo em Angola (1796-1807), de Maximiliano M. Menz, professor
e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo, avalia, a partir da análise de
fontes primárias de caráter serial, a dimensão da participação dos mercadores lusos
e brasileiros no tráfico de escravos de Angola, relacionando os dados analisados com
o debate historiográfico sobre a importância relativa das rotas comerciais e negócios
que ligavam Brasil, Angola e Portugal.
Na sequência, tratando ainda do período que vai do final do século XVIII às
primeiras décadas do século XIX, o artigo Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845), de Vânia
Maria Losada Moreira, professora e pesquisadora da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro, aborda a aplicação da Carta Régia de 12 de maio de 1798 nas
vilas indígenas do Espírito Santo para refletir sobre a existência do autogoverno dos
índios como uma forma de garantir os interesses do Estado na região em questão,
que também viabilizou relações assimétricas de reciprocidade entre os indígenas e
o governo da província.
O artigo seguinte, Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora: Juiz de Fora (Minas Gerais), século XIX, de Jonis Freire, doutor em
História pela Universidade Estadual de Campinas, insere-se no debate historiográfico sobre as estratégias empregadas pelos proprietários para a aquisição de suas
escravarias, utilizando-se, para isso, do estudo pormenorizado de grandes famílias
proprietárias de cativos da Zona da Mata Mineira. Encerrando a seção de artigos
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 11-13, jan./jun. 2012
Eduardo Natalino dos SANTOS. Editorial
desta edição, está O magonismo e a Revolução Mexicana. Um balanço político e
ideológico, de Fabio Luis Barbosa dos Santos, doutor em História pela Universidade
de São Paulo, que analisa a trajetória do grupo político liberal mexicano nomeado no
título do artigo a partir do momento de eclosão da Revolução Mexicana, em 1910,
buscando entender porque tal grupo teve importância secundária na direção desse
processo revolucionário.
A seção de resenhas desta edição conta com a participação de Alberto Luiz
Schneider, que realiza pós-doutorado no Departamento de História da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e analisa, em
seu texto, o mais recente livro do historiador Ronaldo Vainfas – Jerusalém Colonial:
judeus portugueses no Brasil holandês (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010)
–, que trata da presença holandesa e da formação de uma comunidade de judeus
sefaraditas em Pernambuco. Além dessa contribuição, temos também a de Luciano
Aronne de Abreu, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, que resenha a recente obra de Jorge Ferreira – João Goulart: uma biografia (Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011) –, na qual se analisam a vida e a atuação
política, além da memória social construída sobre esse presidente brasileiro.
Esta edição encerra-se com uma homenagem a Eni de Mesquita Samara, professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo que faleceu em 29 de agosto de 2011 e dedicou cerca de quarenta anos à pesquisa e à docência na área de História do Brasil,
especialmente ao campo da demografia histórica, da história da família e da história
de gênero. Para apresentar as contribuições de Eni de Mesquita Samara para esses
campos de estudo, contamos com os textos de dois de seus colegas de pesquisa e de
docência no referido departamento: Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura e Horacio
Gutiérrez. Além disso, encerra esta homenagem, uma relação dos livros escritos ou
organizados por Eni de Mesquista Samara.
Com esses breves comentários, que procuraram apenas nomear os temas centrais
abordados em cada artigo e resenha, entregamos aos leitores a centésima sexagésima
sexta edição da Revista de História, que, por sua anunciada diversidade de temas,
abordagens e procedência dos autores, coloca-se mais uma vez a serviço do debate e
do diálogo historiográficos, permitindo ao seu leitor compor suas próprias conexões
e avaliações em relação aos saberes e opiniões expressos neste diverso conjunto de
textos. Boa leitura!
Eduardo Natalino dos Santos
Editor
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 11-13, jan./jun. 2012
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ARTIGOS
SITUAÇÕES POSTAS À HISTÓRIA*
François Hartog
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales
Resumo
O objetivo principal do artigo é refletir sobre a história como conceito e como prática,
além de interrogá-la como crença socialmente compartilhada. Nessa longa história de
uma crença, com seus tempos de certeza e outros de dúvida, dois momentos serão privilegiados neste artigo. Em primeiro lugar, os meados do século XX, quando, logo após
o fim da Segunda Guerra Mundial, a evidência da história será rapidamente reafirmada.
Em segundo lugar, o momento atual, encarado como aquele em que a evidência se
esfuma e em que a crença se fissura. Tratar-se-á, portanto, de refletir sobre a resistência
de um dos conceitos centrais do mundo moderno e de algumas de suas transformações.
Palavras-chave
historiografia • história • moderno/modernidade • prática historiográfica
Contato:
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales - CRH
Bureau 544
190-198 – Avenue de France
75.244 – Paris – Cedex 13
E-mail: [email protected]
* Tradução de Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, professor do Departamento de História da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012
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SITUATIONS PUT TO HISTORY*
François Hartog
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales
Summary
The principal objective of this article is to consider History as a concept and as a practice, as well as to examine it as a socially-shared belief. Throughout the long history
of this belief, amongst times of certainty and times of doubt, two moments will be
elaborated in this article: firstly, the mid-twentieth century, when, immediately after
the end of the Second World War, evidence for History will be quickly reasserted; and,
secondly, present day, seen as the time in which evidence fades, and belief is divided.
Therefore, it will deal with reflecting on the resistance of one of the central concepts
of the modern world, and with some of its key transformations.
Keywords
historiography • history • modern/modernity • the practice of historiography
Contact:
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales - CRH
Bureau 544
190-198 – Avenue de France
75.244 – Paris – Cedex 13
E-mail: [email protected]
* Translated to Portuguese by Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, researcher at Departamento
de História of the Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas of the Universidade de
São Paulo.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012
François HARTOG. Situações Postas à História.
“Um historiador que permanecesse fixado numa meditação sobre a situação
posta à história não a faria avançar muito!” Essas palavras, com sua carga irônica,
são de Charles Péguy, num texto de 1906, sobre “A situação posta à história e
à sociologia nos tempos modernos”.1 Poeta, filósofo, publicista, sem dúvida ele
é o autor que, entre o caso Dreyfus e sua morte no campo de batalha em 1914,
mais escreveu sobre a história e contra a história; aquela, ao menos, que triunfava
então na Sorbonne e que, em sua opinião, era encarnada por um trio infernal que
reunia Ernest Lavisse, Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos, os mestres
da história positivista que ele perseguiu com a sua condenação pública e com os
seus sarcasmos. Polemista temível, por certo, Péguy é também o pensador que
não cessou de refletir sobre o conceito moderno de história, essa história dos
modernos na qual ele havia reconhecido “a mestra do seu mundo”. (Eu voltarei
a isso). Então, propondo-lhes refletir sobre a situação, ou melhor, as situações
postas à história hoje; será que eu posso escapar das tiradas irônicas de Péguy?
Tentemo-lo, apesar de tudo.
Eis, então, aquilo sobre o que eu gostaria de refletir com vocês: não sobre a
disciplina história e seus numerosos profissionais espalhados pelo mundo. Quem
poderia, ainda que ao preço de um trabalho imenso, arriscar-se a descrever o seu
estado atual e o inventário das questões, as quais forçosamente oscilariam entre o
demasiado geral e o demasiado particular, sem saber onde passa a fronteira entre
o global e o local, ou, mais difícil ainda, sofrendo para apreender com alguma
precisão as interações ou as reverberações entre os dois registros? Assim, para
escapar a um inventário interminável, o qual, de resto, não faria avançar grande
coisa a história, eu me deterei sobre a história como conceito e como prática, e
interrogarei a história como crença. Se o século XIX reivindicou vaidosamente
ser o século da História, não foi porque viemos então, em toda parte, a crer nela?
Ela tornou-se uma crença compartilhada. Que ela fosse celebrada, temida, ou que
se sonhasse escapar dela, ela impunha-se então como uma potência que arrastava
tudo consigo. Qual é a situação hoje?
Ainda acreditamos nela tanto assim? Sua evidência, não foi ela questionada,
desde há uns trinta anos, em diversos lugares e de diferentes maneiras? Exatamente quando a disciplina história avançava, às vezes mesmo com velocidade,
quer se tratasse do número de vagas nas universidades, do número de publicações,
ou dos novos territórios abertos ou explorados? Este é o ponto que eu gostaria
1
PÉGUY, Charles. Œuvres en prose Complètes. Bibliothèque de la Pléiade, Paris: Gallimard,
1988, II, p. 494.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012
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François HARTOG. Situações Postas à História.
de levantar: não estamos passando de uma evidência segura e partilhada a uma
evidência questionada e fragmentada? Nessa longa história de uma crença, com
seus tempos de certeza e outros de dúvida, eu me deterei, aqui, sobre dois momentos. Em primeiro lugar, os meados do século XX, quando, logo após o fim da
Segunda Guerra Mundial, a evidência da história será rapidamente reafirmada.
Mas, devo acrescentar imediatamente que existia uma base sólida que, mesmo
tendo sido sacudida pela Primeira Guerra Mundial, ainda estava lá. Esses anos
correspondem àqueles quando foi criada a Associação que vocês celebram, hoje,
o cinquentenário. Em segundo lugar, o momento atual, encarado como aquele
em que a evidência se esfuma e em que a crença se fissura. Tratar-se-á, em suma,
da resistência de um dos conceitos centrais do mundo moderno e de algumas de
suas transformações.
Fundada em 1961, com o nome de Associação dos Professores de História e
do Ensino Superior, dez anos mais tarde, Associação Nacional, esse agrupamento
marca uma etapa importante da profissionalização e da institucionalização da
história no Brasil. Acompanhando o rápido crescimento da universidade e da
pesquisa, a associação desempenhou e desempenha uma dupla função: internamente, a de ser uma ágora da disciplina, uma praça pública onde se trocam
notícias e onde se debate; onde novas perspectivas recebem direito de cidadania
e onde orientações se desenham. Externamente, ela opera, sobretudo, como uma
comporta: propostas vindas de outros lugares podem ser apresentadas, difundidas,
permitindo assim iniciar todo um trabalho de apropriação e de reformulação.
Claro, a questão da história, sob a forma da história do Brasil, estava colocada
desde há muito tempo. Pois tudo começou com o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, que reteve a atenção de muitos historiadores nos últimos vinte anos,
em particular do saudoso Manoel Salgado, que presidiu a ANPUH entre 2007 e
2009. Em diversas ocasiões, ele confiou-me a que ponto essa tarefa parecia-lhe
importante e quanto ela era pesada. Nós devemos ser-lhe reconhecidos por tê-la
assumido com a energia, a seriedade e também o humor que o caracterizava.
Em que ponto estava a história nos anos 1950-1960?
Poderíamos falar de uma evidência reencontrada e reformulada. Três nomes,
os de dois historiadores e o de um antropólogo, que estiveram e trabalharam no
Brasil antes da Guerra, me permitirão tornar preciso o meu argumento. Em 1950,
Fernand Braudel, entrando no Collège de France, pronuncia sua conferência
inaugural, que ele intitula Posições da História [Positions de l’histoire]. Para um
mundo novo, ele escreve, é necessária uma nova história, no momento mesmo
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em que “desaparece” a primeira metade do século XX. Justamente aquela que
desenha em O Mediterrâneo [La Méditerranée et le monde méditerranéen à
l’époque de Philippe II], seu livro manifesto, publicado no ano precedente, e que
logo será sintetizada no conceito de longa duração. Para tornar apreensível a insuficiência do acontecimento, que brilha mas pouco ilumina, ele utiliza a imagem
dos vaga-lumes que o circundaram certa noite, perto de Salvador da Bahia.2 Mais
importante, todavia: no Brasil, ele teve a experiência de contemplar o Atlântico
a partir de suas margens ocidentais, assim como, jovem professor na Argélia,
ele teve a experiência do Mediterrâneo a partir da margem sul. Ocorreu, ali, o
início de um descentramento do olhar histórico ou, ao menos, de uma história
de maior alcance e preocupada com as circulações.3
Braudel sente-se ainda mais seguro do seu diagnóstico e da sua proposta
porque, no ano precedente, Lucien Febvre passou-lhe o bastão em um artigo
programático intitulado Em direção a uma outra história [Vers une autre histoire]
e, significativamente, concluído no Rio de Janeiro. Febvre encontrava-se, de fato,
uma vez mais no Brasil, onde ele acabava de pronunciar uma série de conferências,
particularmente em São Paulo. Essa outra história, Febvre a via afirmar-se em três
direções: a do programa braudeliano, a de uma história das civilizações atenta
às diversas historicidades e a de um engajamento do historiador no seu presente.
Ele a havia lançado, desde 1946, no Manifesto dos Novos Anais [Manifeste des
Annales nouvelles]. O título era claro – De frente para o vento [Face au Vent]
–, assim como o subtítulo: “Economias, sociedades, civilizações” [“Economies,
sociétés, civilisations”]. Pretendia assinalar que, doravante, havíamos entrado num
mundo “em estado de instabilidade definitiva”, onde as ruínas eram imensas; mas
onde havia “muito mais do que ruínas, e mais grave: essa prodigiosa aceleração
da velocidade que, engavetando os continentes uns sobre os outros, abolindo os
oceanos, suprimindo os desertos, colocava bruscamente em contato agrupamentos
humanos portadores de cargas elétricas contrárias”. A urgência, sob o risco de nada
mais compreendermos do mundo globalizado de amanhã, ou já de hoje, era de
olhar, não para trás, para aquilo que acabara de acontecer, mas a diante de si, para
frente. “É findo o mundo de ontem. Para sempre terminado. Se nós temos uma
chance de escapar, nós franceses, é compreendendo, mais rapidamente e melhor
que os outros, essa verdade da evidência. Abandonando o navio. Ao mar! – eu
digo – e nadem com determinação.” Explicar “o mundo ao mundo”, responder
2
3
BRAUDEL, Fernand. Ecrits sur l’histoire. Paris: Flammarion, 1969, p. 23.
GEMELLI, Giulana. Fernand Braudel. Paris: Odile Jacob, 1995, p. 55-64.
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às questões que se coloca o homem de hoje, tal era então a tarefa do historiador
que pretendia colocar-se de frente para o vento.4 Quanto à interrogação sobre a
civilização, ou melhor, sobre as civilizações, ela vinha de mais longe: dos anos
1930. De fato, é na primeira semana de Síntese, organizada em 1929 por Henri
Berr, que a noção de civilização (assim como a de evolução) havia sido escrutada.
Encarregado do relatório introdutório, Febvre havia conduzido a investigação
até o momento em que apareceram no uso comum, ao lado de civilização (cuja
noção emerge no século XVIII, na França e na Inglaterra), as civilizações.5
Febvre e Braudel haviam se encontrado em 1937 no navio que os trazia do
Brasil. Dois anos antes, Claude Lévi-Strauss, no navio que o trouxe para o Rio
de Janeiro, tinha se despedido do Velho Mundo e da sua “civilização estreita” que
era encarnada, para ele, por uma Atena, qualificada de “deusa anêmica”. Aquele
que ainda não era mais que um aprendiz de etnólogo escolhia assim o Selvagem:
“Huronianos, Iroqueses, Caribes, Tupis, eis-me aqui!”, proferia, com uma grande
eloquência que lembrava o jovem Chateaubriand desembarcando em Baltimore, em 1791. Ele colocava o selvagem contra o moderno, ou, mais exatamente,
segundo a prática do olhar distanciado que ele reivindicará, instaurava-se um
duplo questionamento de um e de outro pelo etnólogo, tornando-se estrangeiro
à sua própria sociedade, permanecendo, todavia, estrangeiro à sociedade que
o acolhe. Da mesma maneira, foi a partir dessa experiência de campo que ele
formulará, um pouco mais tarde, a distinção, logo famosa, entre “sociedades
quentes” e “sociedades frias”. Se as primeiras foram modeladas por um tempo
ativo e ator, do qual, num dado momento, elas fizeram o princípio do seu desenvolvimento, as segundas não, ou não ainda, ou apenas parcialmente; mas é
certo que todas são igualmente sociedades na história e produtoras de história,
porém com modos diferentes de ser no tempo.6 Finalmente, em Raça e história
[Race et histoire], publicado em 1952, ele tematiza, por sua vez, a questão das
civilizações. Recusando o evolucionismo, ele convida a encarar as civilizações
menos como escalonadas no tempo do que distribuídas no espaço. Assim, é
lógico tornar a “categoria universal” progresso apenas “um modo particular de
existência próprio à nossa sociedade”.7
4
5
6
7
22
FEBVRE, Lucien. Face au Vent, Manifeste des Annales Nouvelles. Combats pour l’histoire.
Paris: Armand Colin, 1992, p. 35, 40, 41.
FEBVRE, Lucien. Civilisation, le mot, l’idée. Paris, 1930, p. 45. Ele voltará a essa questão no
prefácio que fez ao livro de Gilberto Freyre.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Anthropologie structurale deux. Paris: Plon, 1973.
Idem, Ibidem, p. 40-41.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012
François HARTOG. Situações Postas à História.
Por esses três nomes passa uma parte significativa das renovações e das reafirmações do pós-guerra: uma atenção às civilizações e às suas especificidades,
que carrega consigo certo relativismo; a longa duração, que Braudel vai se aplicar
a promover com vistas à constituição de um mercado comum das ciências sociais
que ele deseja ver se instaurar; o Selvagem, cujo papel será mais ambíguo. No
quadro do estruturalismo, ele pôde ser mobilizado ou compreendido como uma
alternativa à história (o selvagem promovido a modelo para as ciências sociais,
como uma maneira de expulsar a história para uma França, ela mesma expulsa
da História)8 ou, em sentido inverso, ele pôde servir de inspiração para uma
maneira de fazer a história que, logo, iria se chamar antropologia histórica. Para
Lévi-Strauss, ele possuía também, não o esqueçamos, um valor ético: afirmar,
reclamando-se de Rousseau, a igual humanidade de todos e de cada um, justamente quando a Europa acaba de falhar inequivocamente a este respeito.
A esses nomes convém acrescentar um quarto, o de um sociólogo ligado não
ao Brasil, mas à África, Georges Ballandier, que, em 1951, introduz o conceito
marcante de “situação colonial”.9 A noção de situação, ele precisava, não está
vinculada unicamente ao existencialismo; ela é empregada entre os sociólogos
e foi preparada pela noção de “fenômeno social total” elaborada por [Marcel]
Mauss. Do que se trata? De considerar a “colônia” como uma sociedade global
que implica igualmente o colonizado e o colonizador. Pois a dominação conduz
“ao relacionamento de civilizações radicalmente heterogêneas: uma civilização do maquinismo, com uma economia possante, com um ritmo rápido e de
origem cristã impondo-se a civilizações sem maquinismo, com uma economia
‘atrasada’, com um ritmo lento e radicalmente ‘não cristãs’”. Donde, “o caráter
fundamentalmente antagônico das relações existentes entre essas duas sociedades
que se explica pelo papel de instrumento ao qual está condenada a sociedade
colonizada” e “a necessidade, para manter a dominação, de recorrer não apenas à
‘força’, mas igualmente a um sistema de pseudojustificações e de comportamentos estereotipados”. Assim, qualquer estudo, incluído aquele do antropólogo em
busca de sociedades primitivas ou atento aos problemas do contato, deve levar
em consideração essa dupla realidade e apreciar a colônia como um sistema
historicamente datado e que se modifica rapidamente.
8
9
FURET, François. Les intellectuels et le structuralisme, 1967.
BALANDIER, Georges. La Situation coloniale: Approche théorique. Cahiers internationaux de
sociologie, 110, 2001/1, p. 9-29 (republication de l’article de 1951).
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012
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François HARTOG. Situações Postas à História.
Menos de quinze anos mais tarde, o jogo colonial estava terminado, mas, no
intervalo, o conceito proposto por Ballandier tinha fornecido às ciências sociais
um meio de enriquecer seu questionário e de afinar suas análises, especialmente
quando elas apelavam demasiado rapidamente ou mecanicamente à teoria marxista. A partir dos anos cinquenta, igualmente, outro conceito se impõe sobre todos
os demais: o de modernização.10 Colonizadores e colonizados reivindicam-no,
ainda mais porque existe um modelo americano e um modelo marxista. Por sua
composição, com seu sufixo em –zação, como antes dele civilização, ele indica
uma marcha em direção a. Se o civilizado é aquele que se beneficiou do processo
de civilização, o moderno é aquele que atravessou o processo de modernização.
Ao final da modernização (a marcha devendo ser mais ou menos longa, conforme
o ponto de onde se parte), deve-se atingir a modernidade. Inteiramente voltada
para o futuro, modernização é um conceito fortemente temporalizado, que nomeia um movimento de conjunto das sociedades. Ele pode operar como conceito
articulador entre a história já antiga de uns e a história ainda por vir de outros.
A esse respeito, ele é, entre os anos cinquenta e setenta, uma expressão clara
de uma evidência reafirmada da História, uma possante expressão da crença da
qual ela se encontra sempre, e mesmo mais do que nunca, investida, e uma forte
injunção à ação com vistas à transformação da sociedade.
De onde vínhamos nós? O império de uma crença, o tempo de uma crença
Nos anos 1950 a História certamente já era uma velha crença que Febvre ou
Braudel se empenham em reformular em termos que eles julgam ser adaptados
à nova conjuntura. Não se trata, aqui, de retraçar nem a sua formação, nem a
maneira pela qual ela se impôs, mas simplesmente de sublinhar, a partir de alguns indícios tomados de domínios diferentes, a força da evidência. Péguy, já
evocado aqui, é um bom observador daquilo que ele foi o primeiro a nomear
como a “situação” posta à história. Nela, ele vê “a mestra do mundo moderno”.
Ciência dos modernos, filosofia que se ignora, ela encontra sua Bíblia, conforme
ele afirma, n’O futuro da ciência [L’avenir de la science] de [Ernest] Renan e,
sob sua modéstia aparente, o historiador ambiciona, no fundo, criar o mundo pela
segunda vez, ao mesmo tempo em que pretende descrevê-lo.
Um quadro – um entre tantos outros – pintado em favor da glória de Napoleão, demonstra bem o poder e o domínio da História. Executado por Alexandre
10
24
COOPER, Frederick. Colonialism in Question, Theory, Knowledge, History. Berkeley: University
of California Press, 2005, p. 96, 116-119.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012
François HARTOG. Situações Postas à História.
Véron-Bellecourt, um pintor acadêmico, é sua falta de originalidade que o torna
interessante para o meu argumento. Utilizando os procedimentos da alegoria, ele
tem o seguinte título: “Clio mostra às nações os fatos memoráveis de seu reino”
[“Clio montre aux nations les faits mémorables de son règne”] (ver figura).
Vemos Clio indicando com o dedo o que ela acaba de inscrever sobre uma
grande estela, a saber, os grandes feitos de Napoleão, para um grupo de homens
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012
25
François HARTOG. Situações Postas à História.
com roupas mais ou menos exóticas, ali reunidos como se fossem alunos diante
de uma lousa. Napoleão está presente, sob a forma de seu busto, como imperador
romano, com a inscrição “Veni, vidi, vici”, que o identifica como um novo César. A cena, clássica, obedece ainda aos cânones da historia magistra vitae: um
exemplo de grande homem, à maneira de Plutarco. Mas há algo mais: Napoleão
não é apenas um herói à antiga; ele é também a encarnação da História, ele é
essa força que avança, cujos efeitos se fazem sentir até o fim do mundo. Aquele
em que Hegel acreditou reconhecer o Espírito do mundo, quando atravessava
Iena a cavalo. Nas suas Memórias de além-túmulo [Mémoires d’outre-tombe],
Chateaubriand dizia dele que, durante dezesseis anos, havia sido o Destino, e um
Destino que não descansava jamais, correndo incessantemente para remodelar
a Europa.11 Nele tornaram-se manifestos dois traços da História moderna: seu
domínio sobre a sorte dos países e dos homens e sua rapidez de execução, ele
que não repousa jamais. Napoleão aparece bruscamente, quando o esperávamos
alhures ou mais tarde. Esses anos correspondem a um sentimento, amplamente
partilhado, de uma aceleração da História. Sob o efeito de um tempo tornado ator
e processo, opera-se uma sincronização do mundo: até a China. O que Véron-Bellecourt traduz por meio da composição de seu quadro. Para se escrever, a
História passa dos sincronismos (indispensáveis para estabelecer o antes e o
depois) à sincronização, que estabelece, segundo uma escala de tempo, o antes
que, o após que, o avanço ou o atraso, e circunscreve o anacrônico.
Rapidamente, a literatura percebeu toda a importância desse novo ator e
engajou-se na tarefa de dizer esse novo mundo apreendido pela História. Começava a grande época do romance. De Balzac a Tolstói, ele vai girar em torno da
História. Segundo Milan Kundera, a escrita de Balzac parte dessa experiência da
aceleração da História: “antes, se ritmo lento tornava-a quase invisível, depois
ela acelerou o passo e subitamente tudo está se transformando em torno dos homens durante sua vida”.12 Segue-se uma dupla tarefa para o romancista: retraçar
as trajetórias aceleradas ou rompidas de personagens que sobem muito alto ou
caem muito baixo, que surgem subitamente na cena mundana para em seguida
desaparecerem também rapidamente. Estar atento, em seguida, ao segundo plano,
que é necessário apreender, porque tampouco ele vai durar. Entramos, conforme nota Kundera, na “época das descrições”. Há, por exemplo, esses salões de
11
12
26
CHATEAUBRIAND. Mémoires d’outre-tombe. Édition de J.-Cl. Berchet, Paris: Classiques
Garnier, 1989-1998, vol I, p. 1219.
KUNDERA, Milan. Œuvre. Bibliothèque de la Pléiade, Paris: Gallimard, 2011, p. 852, 953.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012
François HARTOG. Situações Postas à História.
província, que são os sobreviventes gastos e mais ou menos remendados de um
tempo passado. Interiores, roupagens, casas, bairros, maneiras de ser e de falar
figuram como sobrevivências que logo se eclipsarão. São anacronismos. Trabalhado pela História, o mundo de Balzac é atravessado por tempos em desacordo
que se friccionam, se batem, se enfrentam.
Recuando meio século até as guerras napoleônicas, Tolstói, em Guerra e paz,
medita sobre a história “enquanto nova dimensão da existência humana”. Suas
conclusões são conhecidas: certamente Napoleão não faz a História (estamos
bem distantes do quadro de Véron-Bellecourt); mas Koutouzov tampouco a faz,
ou antes, ele a faz apenas na medida em que ele não tenta fazê-la. “A História
faz-se a si mesma, obedecendo às suas próprias leis, que, no entanto, permanecem obscuras para o homem. (...) A História, isto é, a vida inconsciente, geral,
gregária da humanidade”.13 Se suprimirmos Deus, resta apenas a História diante
da qual podemos ter uma atitude positiva e otimista, pessimista e negativa ou
francamente niilista (ela não tem nenhum sentido). Mas, em todos os casos, sua
evidência se impõe e ela é uma crença partilhada. A guerra de 1914 reforçou
ainda mais sua pregnância, “Esse massacre absurdo e gigantesco”, para retomar
as palavras de Kundera, “inaugurou na Europa uma nova época onde a História,
autoritária e ávida, surgiu diante de um homem e tomou conta dele. É desde fora
que, doravante, o homem será determinado em primeiro lugar”.14
Uma evidência questionada, uma crença gasta
Essa longa duração de Braudel, representada como “essas camadas de história
lenta”, “no limite do movente”, não traduzia, com outras palavras, uma visão
análoga da história? Nascido em 1902 no leste da França, Braudel enfrentou, de
fato, a Primeira Guerra Mundial e viveu a Segunda como prisioneiro num Oflag
[campo para oficiais], na Alemanha. Por isso, “à orgulhosa palavra unilateral de
[Heinrich von] Treitschke, ‘os homens fazem a história’”, ele preferia opor “a
história faz também os homens e modela seu destino”.15 Mas, se ele era reservado
quanto ao fazer a história, ele não tinha a menor dúvida nem sobre a história ela
mesma, nem sobre o interesse que havia em fazer a história de suas estruturas mais
profundas, lá onde se atinge o mais explicativo. O que mudou entre a “situação”
dos anos 1950-1960 e a de hoje? Tudo ou quase: o mundo “novo” que Braudel
13
14
15
Idem, Ibidem, p. 909.
Idem, Ibidem, p. 1173.
BRAUDEL, Fernand, op. cit. p. 21.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012
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François HARTOG. Situações Postas à História.
via não existe mais. Assim como já não o fizera no início, não me engajarei agora
na elaboração de um inventário, ainda que sumário, do que desapareceu ou se
transformou. Ater-me-ei ao registro que escolhi, o da história como evidência
e como crença, apoiando-me em algumas palavras e conceitos. E, desde já, eu
pergunto: o que aconteceu com aqueles que haviam servido como vetores da reafirmação de uma evidência da história, mas mensageira de outras temporalidades?
A longa duração não possui mais o valor de uma frente pioneira; ela permanece, no melhor dos casos, como uma escala de análise entre outras. Quanto ao
acontecimento, que Braudel situava no polo oposto, ele voltou ao primeiro plano, a
ponto de já não vermos nada além dele, sendo preciso consumi-lo incessantemente, produzi-lo (a descrição de acontecimentos faz parte, hoje, do organograma de
qualquer empresa ou instituição), suportá-lo inclusive sob a forma da catástrofe.
A civilização foi carregada pelo avanço da globalização e a modernização foi
rudemente maltratada. Quanto ao Selvagem, na sua acepção lévi-straussiana,
como objeto “bom para ser pensado”, ele foi totalmente depreciado. Ele pertence
à idade de ouro do estruturalismo, às variações eurocêntricas sobre a alteridade,
enfim, a tudo que é recusado como culturalismo. Para os adeptos dessa corrente
da antropologia, convém, inclusive, se desfazer do conceito de cultura e se concentrar sobre a contemporaneidade da situação de interlocução existente entre o
etnólogo e seus “informantes”.
Civilização era um conceito futurista (vai-se em direção a ela) e um conceito
normativo (há graus de civilização). Elemento central do regime moderno de
historicidade, ela invocava um tempo aberto sobre o futuro e progressivo. O
mesmo acontecia com o conceito de modernização, que se limitava, se assim o
quisermos, ao segmento mais recente do processo de civilização, e concedia maior
importância à aceleração. Ela era a forma contemporânea da civilização. Era,
então, a belle-époque dos planos e da futurologia. Segundo a etimologia latina
da palavra, moderno significa, de fato, recente e, portanto, de agora. Entre 1950 e
1970, modernização, conceito-articulador como eu disse, foi um imperativo, uma
palavra de ordem, um projeto que todo mundo podia subscrever: no Leste como
no Oeste, entre os ex-colonizados assim como entre os ex-colonizadores. Mas
essa unanimidade, que na verdade recobria profundos mal-entendidos, se desagregou. Aqui, também não posso fazer mais do que ir ao essencial. Logo, falou-se
menos de modernização e mais de modernidade.16 Uma é o caminho e o passo, a
outra o resultado: eis aquilo a que conduziu a modernização. Ela é o quadro que
16
28
Cooper, Frederick, op.cit., p. 113-149.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012
François HARTOG. Situações Postas à História.
podemos desenhar ou, de maneira ainda mais crítica, ela é o avesso do quadro.
O inventário da modernidade, realizado (desde o exterior ou desde a periferia)
pelos antigos colonizados, desemboca num questionamento da modernização: dos
seus pressupostos, dos seus não-ditos, das suas destruições e dos seus crimes. Ela
vê, ela diz, ela organiza o mundo desde o centro e para o seu próprio benefício.
Se voltarmos bastante no tempo, a modernidade assim questionada podia
desconstruir ao mesmo tempo os conceitos de modernização e mesmo de civilização. Para não renunciar completamente ao conceito de modernidade, alguns se
dedicaram a multiplicá-la, identificando “modernidades múltiplas”; outros, mais
radicais, arriscaram “modernidades alternativas”. Mas, se atingimos uma proposição do tipo “há múltiplas maneiras de ser moderno” ou, em última instância,
“cada um com a sua modernidade”, segue-se que a noção de moderno perde toda
e qualquer pertinência. De que é composto o “moderno” de uma modernidade
alternativa? A modernidade foi igualmente questionada a partir do “centro”,
quero dizer da Europa e, mais amplamente, do Ocidente. O que se nomeou
pós-modernismo começou como uma crítica do moderno e uma atualização do
que havia sido o verdadeiro rosto da modernidade e seus resultados perniciosos.
Entenda-se bem: os dois lados dessa crítica, distinguidos por simples comodidade, não são dissociáveis um do outro, mesmo que seus respectivos contextos
de elaboração e seus campos de aplicação não sejam estritamente os mesmos.
No que concerne à carga temporal dos conceitos e, mais amplamente, à relação
com o tempo, passar de modernização a modernidade e a pós-moderno é, sem
se perceber, renunciar ao tempo. Modernização, como civilização, são conceitos
teleológicos, o fim a ser atingido nomeia o processo: o futuro atua. Nada parecido
ocorre com modernidade, que designa o estado de moderno, moderno sendo ele
mesmo tomado absolutamente. Porque moderno não foi plenamente dinâmico e
futurista a não ser enquanto ele teve um face a face com quem disputar: o antigo.17
Erodida já pela crítica da modernidade, a modernização foi, mais recentemente, marginalizada pela globalização. A palavra designa um processo: o
global avança, como uma maré, até recobrir tudo. Ela tem por objetivo um
mundo globalizado. Mas, à diferença dos conceitos precedentes, ele não carrega
consigo nenhuma carga temporal específica: ele é espacial e não temporal ou
destemporalizado;18 mesmo se todos concordam que a globalização não se fará
17
18
HARTOG, François. Anciens, Modernes, Sauvages. Paris: Seuil, 2008.
Se se trata de reconhecer como sendo do globo, pertencimento comum ou partilhado, a palavra
cosmopolita já o dizia, em grego é verdade, mas de maneira mais política.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012
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François HARTOG. Situações Postas à História.
em um dia, ou mesmo que ela não se concluirá jamais completamente – mas,
isso é outra questão. Ela visa sempre a ser mais englobante e a se aproximar o
máximo possível do tempo real: ubiquidade e instantaneidade são suas palavras
de ordem. Buscando liberar-se sempre mais dos constrangimentos do espaço
e do tempo, ela se desdobra numa espécie de presente permanente. O passado
não vigora e tampouco o futuro: importa apenas colocar-se em situação de ser
sempre mais rápido, de ser o que chega primeiro, o que reage mais rapidamente.
Nessa corrida pela velocidade, são os computadores que ganham, e são os mais
recentes e os mais potentes que têm a última palavra.
Do ponto de vista da história, os críticos da modernidade e o fenômeno da
globalização conduziram a questionamentos e a reformulações. Para estes últimos, com uma bibliografia em rápida expansão, conta-se ao menos a connected
history, a shared history e a global history.19 Quanto aos questionamentos (formulados no cruzamento entre “centro” e “periferia”), os subaltern, em seguida
os post-colonial e os cultural studies lançaram o movimento e invocaram uma
provincianização da Europa, da qual o livro de Dipesh Chakrabarty tornou-se o
porta-estandarte.20 Visto de outros lugares, a Europa (mas o que é essa Europa
reduzida a alguns traços essenciais?) perde a excepcionalidade da qual, desde ao
menos o século XVIII, ela faz, no sentido próprio do termo, seu filão comercial.
Sobre essas bases pode se iniciar a construção de histórias alternativas ou se
exprimir, às vezes, recusas da história; recusada como invenção ocidental que os
colonizadores trouxeram nas suas bagagens. Delas, existem numerosas formas,
mais ou menos elaboradas, mas elas possuem como traço comum querer restabelecer, reencontrar uma continuidade com as origens desaparecidas, apagadas
e, no entanto, presentes. E, hoje, reencontradas e promovidas como patrimônio.
Os fundamentalismos religiosos (em particular o islamismo radical) são antes
a expressão da recusa da história que é também uma adaptação à globalização.
Por fim, vindo não de um historiador, mas de um antropólogo habituado a fazer
amplas comparações, foi editado um livro que empurra a questão um grau mais
adiante. Com O roubo da história [Le vol de l’histoire], Jack Goody pretende,
de fato, demonstrar como a Europa impôs a narrativa do seu passado ao resto do
mundo.21 O argumento se desenvolve sobre um duplo registro: o de uma ampla
19
20
21
30
HARTOG, François. De l’histoire universelle à l’histoire globale. Le Débat.
CHAKRABARTY, Dipesh. Provincialiser l’Europe: la pensée post-coloniale et la différence
historique. Trad. fr. Paris: Amsterdam, 2009 (ed. original: 2000).
GOODY, Jack. Le vol de l’histoire. Comment l’Europe a imposé le récit de son passé au reste
du monde. Trad. fr. Paris: Gallimard, 2010.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012
François HARTOG. Situações Postas à História.
comparação entre a Ásia e a Europa e o de uma crítica de autores que não são
reputados por terem sido os mais caseiros: Braudel, [Joseph] Needham, [Norbert]
Elias ou [Moses] Finley. Adentrando o ateliê do historiador, Goody constata que,
confiscando o tempo, o espaço, monopolizando os conceitos históricos, a Europa
“falsificou muito” nossa compreensão da Ásia.22
Desde a publicação de O roubo da história, surgem obras que colocam não
tanto a questão da existência de uma história global (tida como conquistada),
mas a de saber o que pode ser uma história global da história e como fazê-la.
Isto é, uma reflexão de segundo grau sobre o global. Eu penso, em particular, em
Georg Iggers e Q. Edward Wang, Uma história global da historiografia moderna
[A Global History of Modern Historiography] e, mais recentemente, em Daniel
Woolf, Uma história global da história [A Global History of History].23 Todas
essas investigações críticas, todas essas pesquisas com vistas a outras maneiras
de escrever a história pressupõem certamente que há alguma coisa que é compartilhada e que nós podemos chamar “história”. Nesse sentido, deve-se começar por
renunciar ao conceito moderno de história; esse, justamente, que se apresentava
como a História e como referência universal para se definir quem estava ou não
estava na história e para medir a que distância tal ou tal população longínqua se
situava (ainda) da história verdadeira. Vem, em seguida, um segundo momento:
dar à história um sentido mais amplo, falando de consciência histórica e de
cultura histórica, e, mais ainda, lembrando que não há grupo humano que tenha
se desinteressado de seu passado, ou mesmo baseando-se nesse fato da natureza
segundo o qual é característico do ser humano lembrar-se e comunicar-se com
seus semelhantes.24 Em suma, o conceito moderno de história, baixado do pedestal sobre o qual ele tinha se alçado, entra na fileira para não ser mais do que
um momento de uma longuíssima história dos modos de relação com o passado
e dos seus usos. Em resumo, tudo isso não é o fim da história; no máximo, é o
fim da História (entendida como esse conceito moderno)! Assim, ainda cremos
na história, que, afinal, reencontraria uma forma de evidência, menos gloriosa e
imperiosa, mas ordinária e partilhada.
Então está tudo resolvido? Pressentimos que não, pois seria uma conclusão
apressada. Certamente, descentrar o olhar posto sobre a história é esclarecedor,
22
23
24
Idem, Ibidem, p. 23.
IGGERS, Georg; WANG, Q. Edward; with contributions from MUKHERJEE, Supriya. A Global
History of Modern Historiography. Harlow: Pearson Education Limited, 2008; WOOLF, Daniel.
A Global History of History. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.
WOOLF, Daniel, op.cit., p. 1-2.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012
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François HARTOG. Situações Postas à História.
mas isso não resolve tudo. Basta trocar o sentido da palavra, abrindo bastante
seu conceito para se safar? Cada um com a sua história, em suma, com todas
as misturas que se desejar. De todas as maneiras, o próprio conceito moderno
de história não surgiu prontinho uma bela manhã, da cabeça de um professor
alemão, lá para os lados de Göttingen, no final do final do século XVIII; ele era
o resultado de uma elaboração lenta e complexa e era inseparável de um tempo
ativo e ator, marcado pela aceleração e no qual o futuro vinha ocupar o primeiro
lugar. O que havia de moderno na história moderna é que ela iluminava o passado
a partir do futuro e desenvolvia uma série de conceitos temporalizados, tais como
os de civilização, modernização e, o primeiro de todos, revolução. Enquanto que
a história antiga, aquela que derivava daquilo que eu chamo o antigo regime de
historicidade, iluminava o presente pelo passado. Ela se designava, todavia, pelo
nome de história. Vindo dos antigos, o nome allait de soi. Quando a história dos
modernos se instalou, evidentemente ela manteve o nome, fingindo, porém, ser
a primeira a lhe dar seu pleno sentido.
No decorrer dos últimos trinta anos a mudança mais notável foi o recuo do
futuro. Falou-se de crise do futuro, do seu fechamento, enquanto, simultaneamente, o presente tendia a ocupar todo o espaço. Essa transformação de nossas
relações com o tempo desenha uma configuração inédita que eu propus nomear
presentismo. Como se o presente, o do capitalismo financeiro, da revolução da
informação, da globalização, absorvesse nele as categorias (tornadas mais ou
menos obsoletas) do passado e do futuro. Como se, tornando-se seu próprio
horizonte, ele se transformasse em um presente perpétuo. Com ele, vieram
ao primeiro plano de nossos espaços públicos palavras que são também palavras de ordem, práticas e que se traduzem em políticas: memória, patrimônio,
comemoração etc. Elas correspondem a outras tantas maneiras de convocar
o passado no presente, privilegiando uma relação imediata, apelando à empatia e à identificação. Basta visitar os memoriais e outros museus de história,
inaugurados em grande número nesses últimos anos, para convencer-se disso.
Na linguagem comum, memória tendeu a se tornar o termo mais englobante,
mais evidente, em substituição ao de história. Esse presente presentista cerca-se igualmente de noções ou de conceitos destemporalizados, tais como o de
modernidade, pós-moderno, mas também globalização, ao qual seria necessário juntar ao menos o de identidade: o mais invocado, o mais mobilizado.
Com tais deslocamentos, e mesmo esta reviravolta, evocados aqui de maneira esquemática, estamos nós diante de um fenômeno duradouro ou transitório?
Ninguém o sabe, nesse momento em que começamos apenas a tomar sua medida.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012
François HARTOG. Situações Postas à História.
No mínimo, nós atravessamos uma situação de passagem: o conceito moderno de
história (centrado no futuro) perdeu sua eficácia para dar sentido a um mundo que,
ou se absorve inteiramente apenas no presente, ou, cada vez mais nitidamente,
não sabe como regrar suas relações com um futuro, percebido como uma ameaça
e uma catástrofe iminente. Um futuro não mais aberto indefinidamente, mas um
futuro mais e mais constrangido, senão fechado, particularmente devido à irreversibilidade gerada por várias de nossas ações. Forjada na Europa, ligada à sua expansão e à sua dominação, essa História moderna (a ponto de tornar-se antiga) não
deixou de reger o mundo, sob formas diversas e por meio de múltiplas interações,
oscilando entre sentido, falta de sentido e ciência da História. Não acreditamos
mais em tal conceito, não verdadeiramente, mas continuamos a usá-lo; ele está
aí, ainda nos é familiar e um pouco obsoleto, tornado incerto, mas sempre disponível, ao menos enquanto outro não vier a substituí-lo. Os políticos não hesitam
em mobilizá-lo, assim como a mídia; a literatura interroga-o, e os historiadores,
trabalhando-o incessantemente, acreditam ainda em seus poderes cognitivos. Nós
dispomos, além disso, da velha palavra história, que, vinda da Grécia, traduzida
e retraduzida em diversas línguas ao longo dos séculos, retomou o serviço, por
assim dizer, para, ao redor do mundo, designar as maneiras de dar lugar, ou um
lugar ao passado. A história global da história entrega-se, nesse momento, a
elaborar inventários comentados. Quanto à globalização, uma última palavra:
conceito mais descritivo que analítico, destemporalizado, como eu notei, ele é
igualmente uma maneira de dizer que se há história, ela se produz em toda parte
e em lugar algum; que o Ocidente não tem mais, em todo caso, o seu monopólio,
e que a velha Europa percebe cada dia mais que ela a vê passar sob suas janelas.
Recebido: 30/08/2011 – Aprovado: 09/03/2012
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 17-33, jan./jun. 2012
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RANKE E NIEBUHR:
A APOTEOSE TUCIDIDEANA
Francisco Murari Pires
Universidade de São Paulo
Resumo
Por Niebuhr mais Ranke, Wihelm Roscher e Eduard Meyer, compondo o quarteto de
historiadores do século XIX que Santo Mazarino qualificou de “os Alemães Tucidideanos”, a fama de Tucídides, então “idealizado como historiador perfeito”, alcançou uma
espécie de apoteose, estimando-se sua história como obra extraordinária, singularmente
excelsa, inigualável. Por declarações de júbilo entusiasmado quer de Niebuhr quer de
Ranke, revive e renova-se por inícios do século XIX a glorificação fulgurante de Tucídides. Então, os modernos, tendo por missão fundar a ciência da história, o elegeram
por modelo supremo, projetando de sua figura uma espécie de apoteose. Para Ranke,
Tucídides, assim como Homero para a epopeia e Platão para a filosofia, bem pode ser
considerado o gênio da história, a qual, graças a ele, alcançou a perfeição.
Palavras-chave
Tucídides • Leopold von Ranke • Barthold Georg Niebuhr • heroico • gênio •
historiografia
Contato:
Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de História
Av. Prof. Lineu Prestes, 338
05508-900 – Cidade Universitária – São Paulo – SP
E-mail: [email protected]
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
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RANKE AND NIEBUHR:
THE TUCIDIDEAN APOTHEOSIS
Francisco Murari Pires
Universidade de São Paulo
Abstract
The modern representation of Thucydides crystallized in the nineteenth century in the
works of the so-called “Thucydidean’s Germans”: Barthold Georg Niebuhr, Leopold von
Ranke, Wilhelm Roscher, and Eduard Meyer. Thucydides’ reputation then underwent
a kind of historiographical apotheosis, his history coming to be thought of as a unique
and extraordinary work. Niebuhr was emphatic in his judgment: “the first real and true
historian, according to our notion, was Thucydides: as he is the most perfect historian
among all that have ever written, so he is at the same time the first: he is the Homer of
historians”. As for the subject matter of his History, Niebuhr likewise proclaimed that
“the Peloponnesian War (…) is the most immortal of all wars, because it is described by
the greatest of all historians that ever lived”. In a similar vein, Ranke stated that “(…)
Thucydides, who is the real originator of historical writing, still cannot be surpassed
(…). No one can (…) have a pretension to be a greater historian than Thucydides”.
Keywords
Thucydides • Leopold von Ranke • Barthold Georg Niebuhr • hero • genius • historiography
Contact:
Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de História
Av. Prof. Lineu Prestes, 338
05508-900 – Cidade Universitária – São Paulo – SP
E-mail: [email protected]
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
1. Leopold von Ranke
Conta-se que Ranke mantinha em seu estúdio um herma bifronte contrapondo os bustos de Heródoto e Tucídides.1 Espécie de Jano historiográfico de valor
emblemático2 porque a presença escultural antiga na convivência quotidiana do
historiador moderno assinalasse a dualidade de princípios fundantes: método
crítico mais história universal. Imagens, pois, de suas respectivas realizações
modelares: Tucídides responde pelo método, e Heródoto pela história universal.
Num dos capítulos da História Universal3, Ranke sistematizou as razões
dessa imagem de configuração modelar dual, porque Heródoto e Tucídides referissem os fundamentos “opostos”, mas complementares, de “toda ciência e arte
da história”, uma vez que “as tarefas que Heródoto e Tucídides respectivamente
realizaram são de natureza tão diversa que elas não podiam ser executadas por
um só homem, requerendo dois autores de diferente caráter e diferentes dons”.
Já as circunstâncias históricas em que compuseram suas obras indicam
trajetórias de destinos políticos inversos. Heródoto era um estrangeiro vivendo
exilado em Atenas, ao passo que Tucídides também o era, mas de Atenas. Integração políade feliz que, no caso do halicarnássio, dispunha pendores afetivos
envolvendo a composição de sua história. Marginalização políade adversa que,
no caso do ateniense, ensejou desvinculação das injunções pátrias, assim favorecendo história que melhor viabilizasse imparcialidade. Então, primeira oposição:
Enquanto Heródoto, “estrangeiro em Atenas, vinculara-se aos atenienses de todo
coração e com calorosa admiração”, Tucídides, “não obstante ateniense, tinha bons
motivos para observar os atos de seus concidadãos sem um patriotismo unilateral”.
Também as histórias que ambos vivenciaram dispuseram diversos horizontes
de experiências catalisadoras de distintas obras. O tempo de Heródoto estava
dominado pelo “portentoso antagonismo entre gregos e persas”, ao passo que
o de Tucídides o era pelas “lutas dos próprios gregos, entre Atenas e Esparta”.
O olhar historiográfico do primeiro, “antes de tudo um viajante” por “intenso
desejo de adquirir sempre maiores conhecimentos”, tem o foco histórico, embora
1
2
3
O informe consta dos registros do Diário do próprio Ranke (Tagebücher. Aus Werk un Nachlass
I, herausgegeben von Walther Peter Fuchs, München-Wien, 1964, p. 416).
Assim já o diz Girolamo Imbruglia. Tucidide nella Storiografia moderna. A cura di MONTEPAONE, C.; IMBRUGLIA, G.; CATARZI, M.; SILVESTRE, M.L. Napoli: Morano Editore, 1994, p. 73.
As citações a seguir são derivadas da versão inglesa em Universal History. The Oldest Historical
Group of Nations and the Greeks. Edited by PROTHERO, G.W. New York: Harper & Brothers,
1885, p. 305-317; confira-se igualmente a tradução italiana de NAPPI, A. reproduzida por Girolamo Imbruglia em Tucidide nella Storiografia moderna. Napoli, 1994, p. 107-117.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
centrado em Atenas, de “atenção voltada para o mundo”. Já o olhar historiográfico
do segundo tem o foco histórico, apesar de situado fora de Atenas, de “atenção
voltada para a pólis”.
O espírito historiográfico de Heródoto abre a perspectiva da história univer4
sal. A unidade de sua história reflete o tempo em que vivera: “dominado pelas
relações recíprocas entre o Oriente e o mundo grego”, constituindo “as bases sobre
as quais se apoiava a situação mundial daquela época”. Esse, então, o fundamento
virtuoso de sua excelência historiográfica: “apresentar os acontecimentos em suas
conexões todas” constituiu seu grandioso desígnio, “a primeira verdadeira história
que já foi escrita”. Pois, “a história não poderia crescer no exclusivo âmbito interno do solo nacional, já que as nações se tornam cônscias de sua própria existência
somente quando entram em contato umas com as outras”. “Por tal concepção
grandiosa”, afirma Ranke, “a obra de Heródoto não foi mais igualada, e menos
ainda sobrepujada”. Paradigma primoroso, pois, de ideia de história universal.
Uma restrição, todavia, delimita a insuficiência da história herodoteana,
aprisionando sua realização metodológica, de modo a que não pudesse “satisfazer aos requisitos de uma obra histórica perfeita”. O tempo histórico para o qual
ela voltava o olhar comportava apenas recordações transmitidas por tradições
orais, “informes de segunda mão, desconhecendo-se autoridades confiáveis”, e
assim turvando a visão dos acontecimentos, inviabilizando a “firmeza” de sua
percepção cristalina.
A obra de Tucídides abriu a saída para essa aporia cognitiva: suprimir a
distância da temporalidade historiográfica ao voltar o olhar para o tempo presente, de modo a que a visão dos acontecimentos comportasse disponibilidade
cognitiva imediata, livre dos gravames de suas intermediações memorizadoras.
A circunscrição temporalmente controlada do olhar pelo fato da presença historiante enseja acuidade, propicia-lhe exatidão. A fundação da obra historiográfica
requer, então, a transcrição da visão imediata, presenciada, dos acontecimentos
como garantia de seus informes e relatos.5
4
5
74
Para os nexos que a elaboração da ideia de história universal mantêm com a leitura e consequente apreciação de Heródoto por Ranke veja-se o estudo de Girolamo Imbruglia (obra citada, p.
92-96) bem como o de Ernst Schulin (L’idea di Oriente in Hegel e Ranke. A cura di Maurizio
Martiniano, Liguori Editore, 1999, p. 215-226).
Veja-se ainda a argumentação desenvolvida em 1848 por Ranke (Aus Werk und Nachlass. Vorlesungseinleitungen. v. IV, herausgegeben von Volker Dotterweich und Walther Peter Fuchs,
München-Wien, R. Oldenbourg Verlag, 1975, p. 206) na Introdução da primeira parte de seu
curso de História Universal tendo por objeto o Mundo Antigo, na qual contrapõe, por um lado, os
méritos e virtudes maiores de Tucídides (precisão e rigor de narrativa factual), contra, de outro, suas
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
Espírito de seu tempo, Tucídides associa mais outras virtudes metodológicas. A racionalidade da Hélade clássica humaniza-lhe o olhar historiográfico,
desvencilhando a percepção dos fatos de suas visões religiosas, que ainda travavam a história herodoteana impregnada de teleologias divinas de conformação
trágica. Tucídides afasta a história da religião porque aprofunda a percepção da
natureza humana: olhar penetrante que capta no desenrolar dos acontecimentos
as vicissitudes das “razões que movem os atos dos homens”. Narrando os fatos
históricos, Tucídides dispõe-nos um compêndio de ética humana arrolando teores
tanto virtuosos quanto viciosos, antes apontando estes males do que aqueles bens.
Olhar historiográfico de enfoque ético também solidário de definição metodológica, a qual afirma o primado absoluto dos fatos assim como eles ocorreram,
a marcar porque com ele a história na época clássica se distingue da tragédia,
razão porque Tucídides difere de Eurípides.
A virtude da imparcialidade historiográfica tucidideana enraíza-se em “talento inato” por dom de equidade, que o imuniza contra as contaminações dos
engajamentos circunstanciais: história que “não laconiza, mesmo que assegurada pela convivência com os lacedemônios”; e história, assim também se pode
subentender, que tampouco malquista Atenas, malgrado a adversidade de seu
infortúnio político lá passado. Não, Tucídides “faz justiça a ambos os lados”.
Precisamente porque ele “ateve-se estritamente à verdade dos simples fatos”
apenas aprofundando “a investigação de suas motivações humanas”, “conferiu
à história do curto período contemplado aquele apreço de lucidez perceptiva e
força de vivacidade descritiva que nós maximamente admiramos”.
Na síntese de apreciações sobre a História Universal tecida em seus anos
finais de vida, Ranke exalta, pela figuração de modelos que conjuga Heródoto
com Tucídides, a plenitude de virtudes condensadoras de seu próprio, moderno,
receituário de epistemologia historiográfica, assim reconhecida pela projetação
na leitura daqueles historiadores antigos.
Conjugação de interesses historiográficos da “velhice” com os da “juventude”
pelo estudo dos autores antigos, assim declarado pelo próprio Ranke quando se
pôs a escrever sua História Universal aos 82 anos6, mais afinidades historiográficas tucidideanas marcam os inícios da trajetória do historiador, anos entre 1815
6
limitações (elegância narrativa e universalidade do tema), relativamente a Heródoto, justo porque
dispunha ele de acesso presencial aos acontecimentos historiados na guerra entre Atenas e Esparta,
ao passo que Heródoto, por desconhecer a língua dos povos estrangeiros retratados em sua história,
teve que recorrer a relatos de segunda mão, prejudicando a justeza a que sua investigação almejava.
Citado por Schulin (obra citada, p. 268).
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
a 1824. Estudos de filologia clássica, associados a horizontes de preocupações
teológicas, em meios de pietismo luterano7, envolvem os anos de sua formação,
desde o ginásio em Pforta, mais a estada na Universidade de Leipzig8 ao período
de atividade docente no ginásio de Frankfurt an der Oder, onde lecionava língua e
literatura clássica. Pelo tempo dos estudos juvenis, ano de 1813, firmara toda sua
admiração pelos dois historiadores antigos, Heródoto e Tucídides, que, apesar de
contemporâneos dos sofistas, não se deixaram contaminar pelas “infantilidades e
disparates” da arte retórica.9 Pouco depois, 1817, mais ou menos contemporâneo
ao ensaio sobre Lutero, defendeu tese de láurea acadêmica10, a qual versava sobre
a história de Tucídides, infelizmente perdida. Pelas rememorações ativadas nos
anos 1860, porque lembrava-se de seus tempos juvenis, Ranke reconhecia que
Tucídides fora “o primeiro grande historiador” que “profundamente o impressionara”, então “diligentemente empenhando-se em sua leitura”.11
Ecos de diálogos tucidideanos ressoam pelas reflexões com que Ranke
compõe, em 1824, o Prefácio de sua primeira obra, Geschichte der romanischen
und germanischen Völker von 1494 bis 1514, assim reconhecíveis lendo-se em
7
8
9
10
11
76
LAUE, Theodore H. von. Leopold Ranke. The Formative Years. Princeton: Princeton University
Press, 1950, p. 11-12; WINES. Leopold von Ranke. The Secret of World History. New York, 1981,
p. 3; HINRICHS, Carl. Ranke e la Teologia della Storia dell’età di Goethe. A cura di Rosario
Diana, Napoli: Liguori Editore, 1999, p. 112.
O apego com que Ranke estimava, nesses anos iniciais de sua formação, a singularidade original que marcava a identidade da cultura grega clássica porque fosse, pois, ocioso reconstituir a
história de eventuais influências de nexos orientais nos tempos primordiais de sua constituição,
é registrado em apontamento de seu diário de 1816 (Aus Werk und Nachlass I. Tagebücher,
herausgegeben von Walther Peter Fuchs, München-Wien, R. Oldenbourg Verlag, 1964, p.
92); confira-se: BELLA, Santi di. Leopold von Ranke. Glia anni della formazione. Rubbetino
Editore, 2005, p. 67. O horizonte das leituras e interesses do jovem Ranke e sua influência na
conformação de seu pensamento historiográfico é especialmente analisado por Fulvio Tessitore
(RANKE. Il Lutherfragment e la Universalgeschichte. In: Lutero e l’idea di storia universale.
A cura di Francesco Donadio e Fulvio Tessitore, Napoli: Guida editori, 1986, p. 180).
Tagebücher, p. 85.
Confiram-se: IMBRUGLIA, op. cit., p. 81; DESIDERI, P. Scrivere gli eventi storici, in Noi e i
Greci. Torino: editado por S. Settis, 1996, p. 1003; FUCHS, Peter. Ranke, Aus Werk und Nachlass
III. Frühe Schriften, herausgegeben von Walther Peter Fuchs, München-Wien: R. Oldenbourg
Verlag, 1973, p. 33-34 e 330; e especialmente BELLA, Santi di (op. cit., p. 64-73) que analisa
mais detidamente os nexos porque a concepção de história de Ranke, tendo por ponto de partida
as diretrizes de filologia histórica firmadas por Gottfried Hermann, dela diverge cientificando
suas insuficiências enquanto fundamento metodológico para a escrita da história.
DESIDERI, op. cit., p. 1003. Confiram-se ainda os apontamentos dados por Francesco Donadio
(RANKE, Leopold von. Lutero e l’idea di Storia Universale. A cura di Francesco Donadio e Fulvio
Tessitore, Napoli: Guida editori, 1986, p. 12) referindo-se a recordações do ano de 1863 em que
Ranke identificava “os elementos fundamentais” da fermentação de sua concepção de história,
associando Tucídides, Niebuhr, Lutero e Fichte, mais os de BELLA, Santi di. op. cit., p. 56.
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
paralelo12 os teores do Prólogo da Guerra dos Peloponésios e Atenienses. Contrapontos de pensamentos respeitantes à escrita da história, quer por similitudes
de princípios, quer por diferenças de categorias conceituais, dadas as distintas
historicidades, pontuam os textos dos dois historiadores, antigo e moderno.
A reflexão de Ranke principia fazendo divergir as proposições de sua história
das recomendações ditadas tradicionalmente pelo tópos da historia magistra vitae:
“À história tem sido atribuído o ofício de julgar o passado e instruir o presente
em benefício dos tempos futuros. A um tal elevado ofício a presente obra não
aspira; ela pretende apenas dizer [mostrar] o que realmente aconteceu [wie es
eigentlich gewesen]”.13
Tal o “famigerado” lema historiográfico, eternamente repetido como espécie de dístico emblemático da história rankeana, não raro “vilipendiada” por
“positivista”: zeigen wie es eigentlich gewesen. Alguns entendem inclusive – é
a tese proposta por K. Repgen14 – que Ranke derivara esta célebre fórmula de
Tucídides, quase que uma citação, pois o historiador ateniense expressara em
termos similares o princípio de narrativa factual porque ele descrevera a peste
de Atenas (II.48): “ich will nur schildern, wie es war”. A autoridade de Moses I.
Finley referendou a tese.15 Santo Mazzarino igualmente a sugeriu, nisto também
12
13
14
15
O paralelo foi já explorado por Hajo Holborn (The Science of History. In: History and the Humanities, New York: Doubleday & Company, 1972, p. 81-97) por argumentos diversos dos que
estamos propondo.
Pela tradução inglesa de Roger Wines (op. cit., p. 58), apenas repondo o “sagen” (dizer) da edição
original de 1824, substituído por “zeigen” (mostrar) na de 1874 (LOBO, Ana Lúcia Mandacarú;
PAYEN, Pascal. La ‘Question Historique’ de ‘L’Unité’: L’Herméneutique de Droysen face à Hegel
et Ranke. In: Johann Gustav Droysen. L’avènement du paradigme herméneutique dans les sciences
humaines. Sous la direction de Jean-Claude Gens, Argenteuil: Le Cercle herméneutique, 2009, p.
63). Para as variantes da fórmula original nos textos posteriores de Ranke mais o destaque dado ao
entendimento do “wie” da frase rankeana, vejam-se as indicações e as análises de Ana Lúcia Lobo
no ensaio conjunto com Pascal Payen (op. cit., p. 59 e 62) e em seu artigo de 2007 (LOBO, Ana
Lúcia Mandacarú. “Wie es eigentlich gewesen ist”, “Wie es eigentlich geschehen ist”: a percepção
rankeana da história frente às vicissitudes da subjetividade em Freud. In: Antigos e Modernos:
diálogos sobre a (escrita da) história. Organizado por Francisco Murari Pires. São Paulo: Alameda-Capes-CNPq, 2009, p. 497-498). Para o entendimento do “eigentlich” rankeano confiram-se
os estudos de Georg G. Iggers (The German Conception of History. The National Tradition of
Historical Thought from Herder to the Present. rev. ed., Hanover, 1988, p. 54) e os comentários de
Fulvio Tessitore (Teoria del Verstehen e Idea della Weltgeschichte in Ranke. In: Le Epoche della
Storia Moderna. A cura di Franco Pugliese Carratelli, Napoli: Bibliopolis, 1984, p. 36-37 e 59).
Über Rankes Diktum von 1824: ‘bloss sagen, wie es eigentlich gewesen’. Historisches Jahrbuch.
102, 1982, p. 439-449.
FINLEY, Moses I. História Antiga. Testemunhos e Modelos. Tradução de Walter Lellis Siqueira,
São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 64 e 151.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
seguido por Marcello Catarzi16 mais Maria Luisa Silvestre17, e ainda Anthony
Grafton18, Donald R. Kelley19 mais Reinhart Koselleck20.
O filólogo clássico Ronald S. Stroud, em breve artigo publicado no periódico
germânico Hermes de secular tradição exegética no campo dos Estudos Clássicos,
contestou a suposta identificação tucidideana do lema de Ranke. Submetendo a
tese de Repgen a acurado e minucioso exame, perscrutou a sintaxe que estrutura,
quer a frase de Ranke (no alemão), quer a de Tucídides (no original grego e em
seu (des)entendimento pela versão alemã que Repgen segue) para concluir que
a tese de Repgen repousa apenas num mal-entendido filológico: o que Tucídides
disse em grego referindo-se à descrição da peste de Atenas não corresponderia
exatamente à ideia sobre a escrita da história que Ranke formulara em alemão.21
Já Arnaldo Momigliano apontava na fórmula de Ranke antes a herança de
Luciano (Como escrever a história, 39): “Foi ele, como todos sabemos, o homem
que proveu Ranke de uma antecipação de seu motto: ‘a única tarefa do historiador
é contar a história como ela aconteceu’”.22 Mas, como bem o lembra Peter Burke,
o tópos que essa expressão consagra difundira-se pela modernidade vindo desde
o século XVI, presente quer em Johann Sleidan, em seus Comentários sobre
o reinado de Carlos V (“prout quaeque res acta fuit”), quer em La Popelinière
(“réciter la chose comme elle est advenue”).23 Girolamo Cotroneo, de seu lado,
reconhece a presença do lema rankeano já em Francesco Robortello (De facultate
historica disputatio, 1548).24 Precisamente, uma formulação similar encontra-se
também em Wilhelm von Humboldt, logo na frase inaugural de seu ensaio sobre
16
17
18
19
20
21
22
23
24
78
CATARZI, Marcello. Tucidide nella Storiografia Moderna. op. cit., p. 126-7.
SILVESTRE, Maria Luisa. Tucidide nella Storiografia moderna. op. cit., p. 350.
GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição. Pequeno Tratado sobre a nota de rodapé.
Trad. de Enid Abreu Dobranszky, Campinas: Papirus, 1998, p. 68-69.
KELLEY, Donald R. Fortunes of History. Historical Inquiry from Herder to Huizinga. New-Haven; London: Yale University Press, 2003, p. 134-135.
KOSELLECK, Reinhart. Le concept d’histoire. In: L’expérience de l’histoire. Traduit de
l’allemand par Alexandre Escudier avec la collaboration de Diane Meur, Marie-Claire Hoock et
Jochen Hoock, Paris: Gallimard; Le Seuil, 1997, p. 216.
STROUD, Ronald S. Wie es eigentlich gewesen and Thucydides 2.48.3. Hermes, 115, 1987, p. 381.
MOMIGLIANO, Arnaldo. History between Medicine and Rhetoric. In: Ottavo Contributo alla
Storia degli Studi Classici e del Mondo Antico. Roma, 1987, p. 19. Em sua nota bibliográfica ao
fim do ensaio, Momigliano faz referência ao artigo de Repgen.
BURKE, Peter. Ranke the Reactionary. In: Leopold von Ranke and the Shaping of the Historical
Discipline. Edited by Georg G. Iggers and James M. Powell, Syracuse: Syracuse University Press,
1990, p. 37.
“... un diverso modo di sporre i fatti che potesse, pur nel rispetto della verità (“uti gestae fuerint”
dice il Robortello anticipando di trecento anni la formula di Ranke”. COTRONEO, Girolamo. I
trattatisti dell’Ars historica. Napoli: Giannini editore, 1971, p. 143.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
a Tarefa do Historiador, que data de 1821, apenas três anos antes da frase de
Ranke: “A tarefa do historiador é apresentar o que efetivamente aconteceu (was
sich wirklich zugetragen hat)”.25
Dissociando nossa reflexão de uma tal polêmica de pruridos exegéticos de
reconstituição da história em termos de Quellenforschung, que antes desanda
por trilhas ociosas de investigação, retomemos o texto de Ranke enveredando
por outras vias os modos de operar a aproximação com as questões postas pela
escrita da história tucidideana.
Por aquela, apenas aparentemente singela e modesta fórmula por que o historiador define sinteticamente qual fosse todo o propósito do saber histórico – zeigen
wie es eigentlich gewesen –, Ranke busca ancorar em bases firmes a vocação da
história, resguardando-a contra as pretensões de voos altaneiros porque outrora a
haviam desviado e, pois, perdido. O saber histórico atém-se ao horizonte cognitivo
dos fatos. Não lhe respeitam, portanto, propriamente os atos do juízo que decide
a axiologia da experiência legada pelo passado, para arrogar-se então o poder de
direcionar o futuro humano pelas lições históricas atualizadas no presente.26 O
que não deixa de lembrar a similar aparente modéstia da proclamação teleológica tucidideana, que também deposita no conhecimento dos fatos a pretensão
maior de valia do saber historiográfico, sem mais outras precisas e específicas
recomendações de teor vislumbrado que não as assim ambiguamente aludidas
ou senão mesmo silenciadas por sua declaração:
Mas, a quantos desejarem observar com clareza os acontecimentos ocorridos, e também os
futuros que então novamente, pelo que respeita ao humano, ocorrerão tais quais e análogos,
julgarem tais coisas úteis, será o bastante. Constituem uma aquisição para sempre, antes
do que uma récita ouvida em um concurso.27
Se apreciada na trilha dos diálogos com o tesouro clássico antigo, a reflexão
de Ranke, por oposição à utilidade recomendada pela historia magistra vitae28
25
26
27
28
Pela tradução inglesa editada em History and Theory; HUMBOLDT, Wilhelm von. On the
Historian’s Task. History and Theory, 6.1, 1967, p. 57. Confira-se também o apontamento dado
por Fulvio Tessitore (op. cit., 1984, p. 49).
Confiram-se nesse sentido as ponderações de Koselleck respeitantes à mutação na concepção de história de fins do século XVIII passando da “moralização” pelo “julgamento do historiador” para a “história processo” que comporta a figuração da própria “história como tribunal” (op. cit., 1997, p. 37-40).
Tucídides, I.22.4.
O apelo à fórmula retornaria anos depois quando da atuação de Ranke como redator da Historisch-politische Zeitschrift. KOSELLECK, Reinhart. “Historia magistra vitae”. De la dissolution du
“topos” dans l’histoire moderne en mouvement. In: Le Futur Passé. Contribution à la sémantique
des temps historiques. Traduit de l’allemand par Jochen Hoock et Marie-Claire Hoock, Paris:
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
latina (ainda moderna até fins do século XVIII29), reclama um modo de autonomia
cognitiva para a história que remonta, originariamente, às questões implicadas
pelo ktema es aei tucidideano, dizendo que o saber histórico não sujeita sua teleologia pelos imperativos ditados pelas vicissitudes pragmáticas do presente.30
Firmado o desígnio cognitivo por que se define a escrita da história como
exposição dos fatos, o primeiro passo metodológico requer o delineamento heurístico que repertoria o leque de registros memorizados que informam e noticiam
os acontecimentos:
A base desta obra, as fontes de seus materiais, foi toda uma série de memórias, diários,
cartas, memoriais de embaixadores e relatos diretos de testemunhos presenciais dos fatos
historiados. Somente recorremos a outra classe de escritos nos casos em que estes apareciam baseados diretamente naqueles testemunhos ou acreditavam, em mais ou menos
larga medida, num conhecimento original dos mesmos.31
À heurística rankeana, que se fundamenta no primado das fontes primárias
enquanto instâncias discursivas por testemunhas presenciais dos acontecimentos,
corresponde o imperativo da autópsia tucidideana: “Já quanto às ações praticadas
na guerra, preferi registrar não a partir de informes ocasionais e nem por minha
apreciação, mas sim por aquelas a que eu próprio presenciei e também junto
a outros (que as presenciaram) obtendo com tanta exatidão quanto possível a
respeito de cada uma”.32 A realidade dos fatos históricos deriva da atualidade
29
30
31
32
80
Éditions de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1990, p. 47.
Para a crise do topos da historia magistra vitae por fins do século XVIII ver: Reinhart Koselleck,
op. cit., 1990, p. 37-62 e François Hartog, Time, History and the Writing of History: the Order
of Time. KVHAA Konferenser 37 (1996), p. 95-113.
Na preleção ao curso de História do nosso tempo desde 1815 ministrado no semestre de verão
de 1845, Ranke (Lutero e l’idea di Storia Universale, op. cit., p. 214-215) reafirma, em nome de
sua própria concepção de história e consoante ideal de “imparcialidade”, o lema tucidideano do
ktema es aei porque o saber histórico seja projetado como “uma aquisição, um bem para sempre,
independente das paixões do momento”; confira-se também RANKE, Vorlesungseileitungen, op.
cit., p. 162. Para o entendimento que, em aproximando, faz antagonisar a famosa fórmula rankeana relativamente à concepção de história tucidideana, veja-se HOLBORN, Hajo. The Science
of History. In: History and the Humanities. New York: Doubleday & Company, 1972, p. 90-91;
já para o entendimento do ktema es aei tucidideano como pré-concepção da historia magistra
vitae, vejam-se as reflexões por que François Hartog (Le cas grec: du ktêma à l’exemplum en
passant par l’Archéologie. Extrême Orient, Extrême Occident, 19, 1997, p. 127-137) acompanha
a trajetória histórica que leva daquele a esta.
WINES, op. cit., p. 58.
Tucídides, I.22.1-3. A aproximação tucidideana do princípio proposto por Ranke é também
apontada por BELLA, Santi di, op. cit., p. 49.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
constitutiva de seus informes: dizem os acontecimentos quem os presenciou,
deles partícipes e/ou testemunhas.
Correspondência de princípio de heurística historiográfica que, entretanto,
busca seus fundamentos por epistemologias de concepções de temporalidades
históricas, antiga-tucidideana e moderna-rankeana, ironicamente inversas. Para
Tucídides, a ciência da história se dá pelo tempo presente definido em termos
de unicidade temporal: concomitância entre tempo por que se efetivam os acontecimentos mesmos e tempo em que se executa a ação discursiva de seu sujeito
historiante. Tempo presente que, conjugando a duração dos acontecimentos com
a existência do historiador, demarca a viabilidade humana constitutiva de sua
autópsia cognitiva (a possibilidade temporal de fundar os informes pelo fato da
presença factual).33 Imperativo de um saber cristalino, privilegia o presente como
tempo histórico contra a exclusão do passado, assim definido em oposição. Para
Ranke, pelo contrário, o tempo histórico é pensado em termos de uma consciência de defasagem, distância entre o passado dos acontecimentos e o presente
do sujeito historiante: é justo pelo distanciamento que se viabiliza a moderna
ciência histórica.34 A epistemologia antiga, especialmente tucidideana, radicaliza
a identidade presente da história, ao passo que a moderna, de herança rankeana,
delimita a distância passada da história.
Repertório documental de registros memorizados dos acontecimentos demarca a matéria bruta da história, a ser então trabalhada criticamente pelo método
investigativo, consolidado por fundamento “filológico”.35 Este, pelas formulações
firmadas pelo prefácio rankeano, constitui operação de crítica histórica primordial para a (re)constituição dos fatos.36 Tanto que sua exposição discursiva se
33
34
35
36
HARTOG, François. L’oeil de Thucydide et l’histoire véritable. Poétique, 49, 1982, p. 23-25; e
Idem, 1997, op. cit., p. 128-129; MURARI PIRES, Francisco. Mithistória. São Paulo: Humanitas;
Fapesp, 1999, p. 256-272.
Vejam-se especialmente as ponderações externadas na Preleção à Primeira Parte da História
Universal ou História do Mundo Antigo ministrada no semestre de verão de 1848 (Vorlesungseinleitungen, op. cit., p. 198; RANKE. Lutero e l’idea di Storia Universale, op. cit., p. 223)
bem como a citação feita por CALVEZ, Jean-Yves. Politique et histoire en Allemagne au XIXe
siècle. Paris: Presses Universitaires de France, 2001, p. 119. Confiram-se ainda: HOLBORN,
Hajo. Introducing Thucydides. In: History and the Humanities. New York: Doubleday & Company, 1972, p. 43; MAZZARINO, Santo. Il Pensiero Storico Classico. Bari: Editori Laterza,
1990, v. 3, p. 368; mais as considerações respeitantes à “Escola histórica alemã” apontadas por
KOSELLECK, R. op. cit., 1990, p. 52-53.
O alinhamento metodológico das concepções historiográficas do jovem Ranke pela vertente da
tradição filológica é marcado por Santi di Bella (op. cit., p. 17 e 34).
Ainda quando da elaboração da Weltgeschichte nos anos finais de sua vida, Ranke insistia na
prescrição fundamental da “história investigada à luz da crítica” (confiram-se as indicações dadas
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
autonomiza, corporificando obra reflexiva paralela: “O método de investigação
e os resultados críticos serão expostos em outro livro, que entregamos à prensa
juntamente com este”.37 Decisão que diz tanto da essencialidade da questão do
método38 quanto, todavia, de um intrigante alheamento de seus teores no que respeita à definitiva apreciação dos méritos porque se avalia o êxito de uma obra historiográfica. Trata-se agora, prossegue Ranke, de pensar antes a questão da forma:
O propósito e o assunto delineiam a forma do livro (...). A estrita apresentação dos fatos,
por contingentes e não atraentes que possam ser, constitui a mais elevada lei da história.
Uma segunda, no meu entender, é o desenvolvimento da unidade e progresso dos acontecimentos (...). Desse modo estaremos melhor habilitados para apreender a linha geral de seu
desenvolvimento, os percursos que eles seguiram, e as ideias pelas quais foram motivados.39
História é a estrita exposição dos fatos, que, todavia, ganha sentido se
sublimada por forma narrativa que desvende a(s) ideia(s) que determina(m) a
singularidade de seu desenvolvimento, subordinando sua exposição a uma dada
ordem e nexos de sentidos. Daí o dilema que impende sobre sua realização:
Finally what will be said of my treatment of particulars, which is such an essential part of
the writing of history? Will it not often seem harsh, disconnected, colorless, and tiring?
There are, of course, noble models both ancient and – be it remembered – modern. I have
not dared to emulate them: theirs was a different world. A sublime ideal does exist: the
event in its human intelligibility, its unity, and its diversity; this should be within one’s
reach. I know to what extent I have fallen short of my aim. One tries, one strives, but in the
end it is not attained. Let none be disheartened by this! The most important thing is always
what we deal with, as Jakobi says, humanity as it is, explicable or inexplicable: the life of
the individual, of generations, and of nations, and at times the hand of God above them.40
37
38
39
40
82
por TESSITORE, Fulvio, op. cit., 1984, p. 71).
Trata-se do Zur Kritik neurer Geschichtsschreiber (WINES, op. cit., p. 58).
Confiram-se nesse sentido os comentários de Santi di Bella (op. cit., p. 64) apontando a diferença
que a proposição de Ranke marca em relação à orientação até então vigente, assim consagrada
por Niebuhr, a qual entrelaçava os argumentos das questões do método crítico na própria conformação narrativa (re)constituidora dos acontecimentos.
WINES, op. cit., p. 58. O requisito da “forma” da história que apreenda a unidade e sentido
do desenrolar dos acontecimentos consta das formulações de Humboldt em seu célebre ensaio
datando de 1821 (confiram-se os comentários de KOSELLECK, op. cit., 1997, p. 36-37).
STERN, Fritz. The Varieties of History From Voltaire to the Present. Edited, selected and
introduced by Fritz Stern, New York: Vintage Books, 1973, p. 57-58. Meus encarecidos agradecimentos a Ana Mandacarú Lobo, atualmente terminando Tese de Doutorado na EPHE (Paris,
sob orientação de Jacques Le Rider) sobre as concepções de temporalidade histórica em Ranke,
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
Os críticos modernos apontam do texto de Ranke nuances de um jogo entre
“desespero” e/ou “modéstia” permeando sua retórica.41 Mas ambas, “desespero e
modéstia”, no meu entender, ambíguas. É “desencorajador” na medida em que o
historiador, face à obra acabada, ganha consciência de um certo fracasso, talvez
aflitivo. E, todavia, “ninguém deve desencorajar, pois o mais importante sempre é
aquilo de que tratamos, como disse Jakobi, a humanidade como ela é, explicável
ou inexplicável: a vida do indivíduo, das gerações, dos povos, às vezes a mão de
Deus sobre eles”. É “aflitivo” porque não realiza plenamente o ideal que inspirava
a razão por que o trabalho fora encetado, mas que no fim, e só no fim, se conscientiza como sendo de algum modo ilusório, inalcançável, dado que o sublime
é transcendente. Mas, também, não é “aflitivo”, porque só assim o é enquanto
algo inconsequentemente aflitivo: uma aflição que não deve, entretanto, causar
o que é sua efetividade própria, o “desespero” que “desencoraja”! Porque, se o
sujeito historiante fracassa ou fica aquém de seu ideal, o objeto historiado não,
antes é levado a cabo, avançou-se em seu conhecimento. A missão de historiador
submete os penares, as limitações e mesmo os fracassos do sujeito historiante
aos valores imanentes dos destinos humanos que são por ele historiados. Pela
axiologia que define o valor da práxis historiográfica enquanto modalidade humana de constituição de conhecimento, a valoração do que respeita ao sujeito, a
um indivíduo historiador, é superada pela valoração do que respeita ao objeto de
sua obra, ou seja, a humanidade, e mais ainda, além dela, quando apreensível, a
Providência, a “mão de Deus”. Axiologia historiográfica que se firma, portanto,
deslocando a questão dos valores: do âmbito do sujeito para o da obra.
E a obra resultante, assim assinalada por Ranke, é dupla: é tanto a obra
acerca da unidade do objeto factual em questão quanto a obra acerca do método,
ambas produtos de seu singular e individual trabalho historiante. Curiosamente,
em Tucídides a retórica epistemológica do Prólogo de sua obra opera um similar
deslocamento entre valoração pelo sujeito e valoração pela obra, o que também se
articula, por um lado, com a questão da axiologia suposta pela obra (a unidade do
objeto avaliada em sua grandeza superlativa imanente: a Guerra dos peloponésios
41
Droysen e Freud, e que me advertiu dos problemas intrincados da tradução desta passagem de
Ranke, de que presentemente ela prepara uma tradução (o Prefácio de 1824) para o português,
a partir do texto original em alemão, e que em breve será editada com comentários. No aguardo
desta melhor tradução, transcrevemos acima a versão inglesa de Fritz Stern, em contraposição
à de Wines que vínhamos adotando até aqui a assim marcar a questão da problemática tradução
com que os intérpretes avaliam o sentido da frase rankeana.
KRIEGER, Leonard. Ranke. The Meaning of History. Chicago: The University of Chicago Press,
1977, p. 110; IGGERS, op. cit., p. 67.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
e atenienses), e, por outro, com a questão da “metodologia”, em especial com o
que se costumou denominar, no horizonte da tradição dos estudos tucidideanos42,
de o silêncio ou a elisão de sua presença narrativa enquanto sujeito da composição.
Também para Tucídides, como em Ranke, aquela primeira questão, a da axiologia, tem, pela retórica do Prólogo, primado sobre a segunda, a da metodologia.
A metodologia integra a reflexão do Prólogo porque é reclamada pela axiologia,
porque é dela decorrente: constitui item argumentativo de fundamentação das
razões por que se prova a grandeza superior da guerra a ser narrada. E é pela
grandeza superlativa do objeto, que ele consagra em sua obra, que se consolida
a primazia historiográfica de Tucídides na agonística com seus antecessores,
quer poetas (Homero, pela guerra de Tróia), quer logógrafos (Heródoto, pelas
guerras Medas). A valoração da obra reverbera seus efeitos glorificantes sobre a
valoração do sujeito que a compõe.
Quanto ao procedimento de ocultamento metodológico tucidideano, ele é intrigado pela declaração com que Tucídides encerra a exposição de seus princípios
de (re)constituição dos fatos: “no que respeita às ações praticadas na guerra, penosamente as apreendi, porque os que estiveram presentes a cada um dos acontecimentos não diziam as mesmas coisas acerca dos mesmos fatos, mas sim conforme
sua inclinação por um dos lados ou sua memória”.43 Esse penosamente apreendi
os fatos ressoa eco paralelo à confissão rankeana que diz do ideal (in)alcançável:
“Este ideal vale também para nós, mas sei muito bem o quão longe estou dele.
Uma pessoa se esforça por alcançá-lo, aspira a ele; porém, tardiamente (no fim:
am Ende) dá-se conta de que não o conseguiu”. O paralelo assim estabelecido
contrapõe, na obra do historiador apreciada em termos de seu ideal de apreensão
dos fatos, por um lado, a declaração do êxito ou sucesso tucidideano, contra, de
outro, o reconhecimento do fracasso ou frustração rankeana. Disparidade de consciências tanto mais intrigante pelo fato de que ambos dedicaram nesse empenho
historiante trabalhos igualmente ingentes. Não se trata, pois, de uma questão de
diligência e método por Tucídides (daí, o ideal consumado), contra, de outro,
sua falta ou negligência por Ranke (daí, o ideal frustrado)! A intriga a que este
ecoamento dos dizeres dos Prólogos responde tem antes a ver com a formulação
retórica por que ambos envolvem as declarações de seus respectivos prólogos.
Por Tucídides, a capacidade historiográfica é representada por tal excelência distintiva de superioridade individual (areté) que configura a autoridade de
42
43
84
LORAUX, Nicole. Thucydide a écrit la Guerre du Péloponnèse. Metis, 1, 1986, p. 139-140.
Tucídides, I.22.3. Confira-se MURARI PIRES, op. cit., p. 278.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
seu sujeito humano em padrões heroicizantes.44 O historiador alcança e realiza
como obra algo que é humanamente impossível, algo que transcende o âmbito
do humano, que supera suas limitações ordinárias: algo, portanto, por um lado,
divino; mas, por outro, porque é consumado com dificuldades, com trabalho e
penar, algo também acusado como próprio da condição humana, de que o trabalho
e o penar compõem item estigmatizador. Justamente, então, obra heroica, essa
ambígua categoria por que se (con)funde humano com divino.45
Ora, pelos dizeres do Prólogo de Ranke, especialmente apreciados em termos
do jogo entre “modéstia” e “angústia”, similarmente se os articula numa retórica
de formulação ambígua. Por um lado, considerando a obra rankeana como a obra
do método – o sistema de ordenação das regras e princípios da crítica – tem-se
a antípoda moderna, no horizonte histórico da “religiosidade” rankeana, do que
fosse a virtude heroicizante antiga. Ao conscientizar a “angústia” e assumir a
“modéstia”, Ranke firma plenamente o reconhecimento da humanidade de seu
trabalho e de sua obra. Ele não julga o passado histórico, pois não seria esse um
juízo equívoco e indevido?46 Se os humanos jamais alcançam os fatos mesmos
na sua plenitude e unidade, como julgar com propriedade justiceira? O Juízo da
História, se é que ele se impõe, só pode respeitar à onisciência divina47 e não às
limitações cognitivas dos homens, historiadores inclusive.
Já o “zeigen wie es eigentlich gewesen” viabiliza a história enquanto práxis
humana. Dessa teleologia histórica resulta a aquisição do método, o qual disponibiliza o ofício historiográfico como bem comum, a ser cultivado e exercitado (a
instituição dos seminários responde por essa prática48), e mesmo preceituado como
imperativo para a obra de todo historiador indistintamente49: todos seguem as
44
45
46
47
48
49
LORAUX, op. cit., p. 146-147 e 154-155; MURARI PIRES, Francisco. Thucydide et l’assemblée
sur Pylos (IV.26-28): rhétorique de la méthode, figure de l’autorité et détours de la mémoire.
Ancient History Bulletin, 17, 2003, p. 115.
MURARI PIRES, op. cit., p. 287-292; MURARI PIRES, op. cit., p. 114-115.
Anos depois, em Serbien und die Türkei, Ranke afirmaria, antagonizando Hegel: “a historia
não é um tribunal” (citado por TESSITORE, Fulvio, op. cit., 1984, p. 43). E no manuscrito dos
anos 1830 sobre “O caráter da ciência histórica” argumenta novamente contra tal proposição
porque arruína o imperativo da imparcialidade, então proclamando que ao historiador se impõe
primordialmente “compreender” antes do que “julgar”. RANKE, Leopold von. Le Epoche della
Storia Moderna. A cura di Franco Pugliese Carratelli, Napoli: Bibliopolis, 1984. p. 297.
“Somente Deus conhece a história universal”, declararia Ranke no manuscrito dos anos 1830
Epoche della storia moderna, 1984, p. 299.
KRIEGER, op. cit., p. 2.
Já apontado por CASSIRER, Ernst. The Problem of Knowledge. Philosophy, Science & History
since Hegel. Translated by William H. Woglom and Charles W. Hendel, New Haven; London:
Yale University Press, 1978, p. 236.
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
mesmas regras e preceitos, todos reiteram as mesmas atitudes de trabalho de crítica
a configurar no historiador moderno, não mais a figura de um herói, e sim, antes,
a de uma falange historiográfica. Todavia, todo o compêndio metodológico, por
primorosas e mais completas que sejam suas virtudes de crítica historiográfica, não
assegura, para cada historiador, que ele alcance o que de mais excelso há na obra
de história, a apreensão da unidade, da ideia que conforma o sentido dos acontecimentos e fatos. Então, é antes pela excelência da obra efetivada, quando nela fulguram momentos por que ganhamos (cons)ciência da “mão de Deus” na história,
que melhor se aprecia a virtuosidade distintiva de seu singular sujeito historiante.50
Pela moderna concepção rankeana de história, o deslocamento da figura
do herói antigo faz vislumbrar alguma figuração de “genialidade” na obra do
historiador51, a assim apontar, em novo âmbito histórico de pietismo religioso
em que se move a reflexão do jovem Ranke52, a ambígua proximidade/distância
a contrapor/conciliar a condição humana com a sublimidade divina.53
50
51
52
53
86
A importância decisiva do aspecto “criativo” (“imaginativo-intuitivo”) - “talento” algo “visionário” por “pressentimento” ativado por “espontânea simpatia” (RANKE, Tagebücher, op. cit.,
p. 120; confira-se BELLA, Santi di, op. cit., p. 34) porque, pela figuração de “genialidade” da
práxis historiográfica, se aprecie a formulação excelsa do saber histórico, que nossa análise
vislumbra na argumentação do prefácio de 1824, é plenamente desenvolvida para os anos de
amadurecimento da “metodologia” rankeana (1828-1836, especialmente “em torno a 1830-1831
quando se intensifica o confronto de Ranke com a lógica da filosofia da história de Hegel e se
detalham no plano técnico do método as razões de sua refutação”) pelas análises de Santi di Bella
no capítulo final de sua obra (L’oggetività estetica dello storico, op. cit., p. 281-315). Os nexos
de articulação conceitual porque assim se diz do especial procedimento de práxis historiográfica
como “intuição”, “imaginação” e “divinatio” são apontados profusamente por Santi di Bella,
comparecendo igualmente nas análises de Theodor von Laue (op. cit., p. 43) e de Peter Hans
Reill (History and the Life-Sciences in the Early Nineteenth Century. Wilhelm von Humboldt and
Leopold von Ranke. In: Leopold von Ranke and the Shaping of the Historical Discipline. Edited
by Georg G. Iggers and James M. Powell. Syracuse: Syracuse University Press, 1990, p. 27-28).
Uma apreciação analítica da “antecipação” desse conglomerado conceitual na abordagem da praxis
historiográfica teorizada por Johann Christian Gatterer, um dos principais historiadores da Escola
de Göttingen, veja-se o artigo de REILL, Peter Hans. History and Hermeneutics in the Aufklärung:
The Thought of Johann Christoph Gatterer. The Journal of Modern History, 45.1, 1973, p. 41ss.
Para uma similar aproximação da obra historiográfica em termos da ideia de genialidade, vejam-se as expressas reflexões de Eduard Meyer em seu ensaio Sobre La Teoria y La Metodologia
de La Historia, El historiador y la Historia antigua, Mexico; Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica, 1955 (trad. de l’allemand par C. Silva), p. 14; e de DROYSEN, J. G. Istorica. Milan:
Alfredo Guida, 2003, p. 151-153.
Neste sentido vejam-se os comentários de Iggers (op. cit., p. 76-80), de Tessitore (op. cit., 1984,
p. 38-40) e de Santi di Bella (op. cit., p. 73-91).
Confiram-se nesse sentido as análises de Fulvio Tessitore (op. cit., 1984, p. 72s) respeitantes ao
“pathos religioso da história rankena”, bem como as reflexões da obra de Carl Hinrichs (Ranke
e la teologia della storia dell’età di Goethe) respeitantes à passagem da figuração prometeica da
mitologia clássica à centralidade da do Cristo na Weltgeschichte de Ranke também comentadas
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
2. Barthold Georg Niebuhr
Na Páscoa de 1794, aos dezessete anos e meio, Niebuhr começou a frequentar
os cursos de Ciências Naturais, Filosofia e História na universidade de Kiel.54 O
direcionamento por que se encaminhavam os rumos de seu futuro profissional
logo se descortinaram ao jovem por novembro daquele ano, então vislumbrados ao
refletir as recomendações com que o aconselhava o tutor acadêmico, Dr. Hensler,
que “acalentava ideias a respeito de sua carreira, desejando que ele se tornasse
um filósofo natural, e tomasse a história natural da Antiguidade como o objeto
especial de suas investigações”. “Boa, bela e digna ocupação”, assentiu Niebuhr
em carta endereçada aos pais55, sem, todavia, deixar-se seduzir pessoalmente,
ao antes firmar a ambiguidade de sua (dis) concordância: assim o era “para os
que a apreciam”. Tinha já bem claros quais eram os anseios por que estimava as
vocações de seu destino:
pelo peculiar direcionamento de minha mente e talentos, acredito que a natureza pretende
que eu seja um homem de letras, um historiador dos tempos antigos e modernos, um estadista e talvez um homem do mundo; conquanto que este último, queira Deus, nem no sentido
estrito do termo nem naquele horroroso que usualmente se lhe associa. Entrementes, meu
pendor individual certamente se imporá; e, se meu nome vier a ser celebrado, gostaria de
ser conhecido como um historiador e escritor político, como um antiquarianista e filólogo.
Não, “a história era sua vocação”.56 Apenas nessa medida Niebuhr projetava a
finalidade porque acolhia aqueles estudos filosóficos sugeridos por Hensler, então
conscientizando a valia de qualidades que eles prestariam à melhor realização
de sua missão historiográfica:
Estudo as ciências de que Hensler gostaria que fossem meu propósito último meramente
como meios de prover uma maior riqueza de ideias, de tornar meu coração e meu pensamento claros e lúcidos, ou mesmo a fim de submeter meu pobre coração, que se entregaria
a sentimentalismos e errâncias, a meu pensamento.57
54
55
56
57
por Fulvio Tessitore (op. cit., 1984, p. 76s).
A cidade, então integrada à Dinamarca (desde 1773), passaria a domínio prussiano somente em 1866.
Kiel, 16 de novembro de 1794. NIEBUHR, Barthold Georg. The Life and Letters of Barthold
Georg Niebuhr. 3 v., edited and translated by Susanna Winkworth, London: Chapman and Hall,
1852, v. 1, p. 47.
Kiel, 2 de agosto de 1794. Idem, Ibidem, v. 1, p. 42-43.
Kiel, 16 de novembro de 1794. Idem, Ibidem, v. 1, p. 47.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
Mesmo quando tolhia seus desejos de entregar-se aos estudos históricos, pois
reprimidos pelo dever dos empenhos filosóficos, tanto mais firmava a axiologia
de sua estima:
Infelizmente não disponho de tempo no momento para empregar em tais [questões]. E,
todavia, cada vez mais aumenta meu amor pela história, tanto que meu fervor pela leitura
da história interfere em minha dedicação à filosofia, ao passo que nenhuma filosofia pode
abrandar minha inclinação pela história.58
Dez anos mais tarde, maio de 1804, as feições do destino vocacional de Niebuhr ganhavam fisionomia cristalina: seria o historiador de Roma Antiga, êmulo
moderno de Tito Lívio. Ele assim narra as descobertas então experienciadas:
(...) estava me dedicando a uma obra que me propiciou horas do mais intenso contentamento. Estive empenhando todos os poderes de minha mente na investigação da história romana
desde seus inícios até a época da tirania, por todas as reminiscências de autores antigos que
pude obter. Este trabalho me deu uma visão aprofundada e viva da antiguidade romana,
como jamais tivera antes, e tal que me fez perceber, ao mesmo tempo, com clareza e vida,
que as representações de todos os modernos, sem exceção, estão equivocadas, relances
imperfeitos da verdade. (...) De volta a casa, retomei minhas investigações com redobrada
energia, e pela primeira vez senti fortemente a consciência de que poderia produzir algo
digno de estudo, fama e imortalidade, e o desejo de empreender uma tal obra. Dei início
a um tratado, de descortino abrangente e de corajosa liberdade de pensamento, acerca das
leis romanas respeitantes à propriedade mais a história das leis agrárias. (...) bem como
uma série de ensaios sobre tópicos e períodos isolados da história antiga.59
Algum tempo depois, opção de um destino já decidido e mesmo vislumbrado
seu desfecho:
Invejo-vos as lembranças de vossa viagem à Itália. É duro para mim pensar que jamais
verei a terra que foi o cenário dos feitos com os quais talvez eu possa dizer que tenha maior
conhecimento do que qualquer de meus contemporâneos. Estudei a história romana com
todo o empenho de que minha mente tem sido capaz em seus momentos mais felizes, e
acredito que possa afirmar esse conhecimento sem vaidade. Essa história comporá também,
se me puser a escrever, o objeto da maioria de minhas obras.60
58
59
60
88
Kiel, 30 de novembro de 1794. Idem, Ibidem, v. 1, p. 49.
Ao Conde Adam Moltke, Copenhague, 21 de maio de 1804 (op. cit., v. 1, p. 183-184).
Carta ao Conde Adam Moltke, Copenhague 21 novembro 1804. NIEBUHR, Barthold Georg.
Die Briefe Barthold Georg Niebuhrs. Herausgegeben von Dietrich Gerhard und William Norvin,
Band I, 1776-1809, Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1926, v. 1, p. 314-319.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
A 14 de outubro de 1806 Napoleão derrotava o exército prussiano em Iena.
Paralelamente em Auerstadt, outra parte do exército fora derrotada por Louis-Nicolas Davout. A 25 de outubro Bonaparte entra em Berlin, e dez dias depois
as forças prussianas capitulam em Lübeck. Terminava a campanha da Prússia.
No ano seguinte, a 9 de julho de 1807, o Tratado de Tilsit reestabelecia a paz. A
Prússia perdera todo seu território a oeste do rio Elba, mais a parte da Polônia que
ganhara recentemente. Seu território fora assim reduzido à metade, e seu exército
a um quinto, não dispondo mais do que 40.000 homens. Frederico Guilherme III,
rei da Prússia desde 1797, aceitou reformas que revigorassem o Estado. À sua
frente estavam Karl Stein e Karl von Hardenberg. Proclamava o rei: “Devemos
compensar com a força intelectual o que perdemos em poder material”.61 “A recém
fundada Universidade de Berlin proveria o ponto de reunião para todos os que
desejassem reconstruir o vacilante edifício do Estado prussiano”.62
Niebuhr, que desde outubro de 1806 fora integrado ao Estado prussiano63
a convite do governo “reformista nacional” conduzido pelo Barão von Stein, o
acompanha ainda em sua volta no novo ministério de 1807. É por ele encarregado
de transacionar os empréstimos dos capitalistas holandeses ao governo prussiano, já em março de 1808, passando a ocupar, desde julho, o cargo de Ministro
Prussiano junto à Corte holandesa.64
Em maio desse mesmo ano de 1808, em meio às atribuladas vicissitudes de
suas ocupações junto às esferas governamentais65, Niebuhr não se esquecia dos
antigos desejos juvenis, tristemente preteridos em prol dos encargos públicos a
que se vira levado. Em uma de suas cartas, revela:
E, todavia, não fui ainda capaz de realizar minhas aspirações, vendo-me obrigado a substituir as bravas tropas que tombaram por uma miserável turba; ao invés de poesia, arqueologia e história antiga, tive que cultivar finanças, gerência bancária, administração – tudo
o que, cá entre nós, são (comparado com meus bravos velhos camaradas) um conjunto
61
62
63
64
65
GOOCH, George P. Historia e Historiadores en el Siglo XIX. Traducción de Ernestina de Champourgín y Ramón Iglesia, Fondo de Cultura Economica, 1977, p. 24.
Idem, Ibidem.
Então nomeado para a Junta de Direção do Banco de Berlim, mais Companhia Comercial de
Negócios Marítimos. WINKWORTH, Susanna. In: NIEBUHR. Life and Letters. Op. cit., 1852,
v. 1, p. 164; 194.
Idem, Ibidem, v. 1, p. 227-8.
Encontrando-se então em Amsterdam comissionado a transacionar empréstimos junto aos capitalistas holandeses.
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89
Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
de miseráveis companheiros, que por vezes quase me põem louco, especialmente quando
qualquer coisa me lembra fortemente de todos aqueles a quem perdi.66
Chega, nessa ocasião, a sugerir a Stein que ele bem apreciaria obter alguma
“missão na Itália, a fim de compor a História de Roma (uma continuação de Tito
Lívio, do ano 588 ao 625) em meio às suas ruínas”. Todavia, recusado o pedido,
resignou-se ainda a permanecer sob “o jugo” daqueles negócios.
Assim esteve por mais dois anos. Com, primeiro, a queda de von Stein em
janeiro de 1809 consequente à descoberta por Napoleão de seus projetos de
“libertação germânica”67 e, depois, em junho de 1810 a ascensão de Hardenberg
ao poder (Primeiro Ministro sob o título de Chanceler de Estado), Niebuhr, dissentindo de seus programas financeiros, solicitou ao Rei sua exoneração. Foi,
agora, nomeado historiógrafo real em substituição a Johannes von Müller. Como,
desde 25 de janeiro de 1810, era já membro da Academia de Ciências da Prússia,
Niebuhr podia ministrar cursos na recém fundada Universidade de Berlin68, cuja
abertura se daria, a 29 de setembro, quando da Festa de São Miguel.69
Em Niebuhr, a sedução pela história de Roma conjugava-se perfeitamente
com o espírito de regeneração nacional prussiana alentado pelo projeto régio de
renovação educacional. Convicto da primorosa valia ética e patriótica de espírito
nacional do ensino da História Romana70 que então passa a ministrar, almejava,
por suas preleções, “regenerar os jovens, para torná-los capazes de realizar
grandes coisas, dispondo diante deles os nobres exemplos da Antiguidade”.71
Assim, também diria:
A triste época da humilhação prussiana influiu em parte na produção de minha história.
Pouco mais podíamos fazer do que esperar fervorosamente por dias melhores e prepararmo-
66
67
68
69
70
71
90
Carta ao Conde Adam Moltke, Amsterdan 18 de maio de 1808. NIEBUHR, Life and Letters, op.
cit., 1852, v. 1, p. 245.
Idem, Ibidem, p. 229.
MOMIGLIANO, Arnaldo. Niebuhr and the Agrarian Problems of Rome. History and Theory,
21.4, 1982, p. 8.
WINKWORTH, Susanna. In: NIEBUHR, Life and Letters. 1852, v. 1, p. 236 e 304.
Confira-se o comentário de Dilthey sobre Niebuhr: “Egli ha inteso le antiche età di Roma sulla
base della fondamentale intuizione di uno spirito colletivo nazionale e operante nel costume,
nel diritto, nella tradizione poetica della storia, il quale ha prodotto la struttura sepcifica di tale
popolo”; citado por HINRICHS, Carl, op. cit., p. 116.
Citado por GOOCH, op. cit., p. 24.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
-nos para eles. Voltei-me para uma grande nação para fortalecer meu espírito e o de meus
ouvintes. Sentíamos o mesmo que Tácito.72
Os dois primeiros cursos foram logo transformados em livro: pelos anos de
1811 e 1812 Niebuhr edita sua História de Roma (Römische Geschichte), com
uma dedicatória ao Rei. O terceiro volume viria à luz alguns anos mais tarde, já
então revistos e reeditados em nova versão os dois primeiros. A 8 de dezembro
de 1826 quando compõe o novo Prefácio ao I volume, Niebuhr altivamente
proclama: “É a obra de minha vida, que deve preservar para mim um nome não
indigno do de meu pai”.73
A excelência da escrita da história, assevera Niebuhr, supõe uma conjugação
de virtudes. Antes de tudo, preceitos de deveres éticos. Assim, ter “a mente livre
de preconceitos”, como Perizonius74, consoante princípio inaugural de “liberdade” intelectiva que a humanidade alcançara já com a emergência das ciências
no século XVII: “espírito de enfrentamento direto dos problemas, liberdade na
investigação, autonomia de entendimento, razão e julgamento”.75 E ter o “espírito
(tomado por) elevada pureza”, que extravasa apenas “os verdadeiros sentimentos
humanos” de um coração “sincero” e “honesto”, sem tendenciosidades, como
Massillon.76 Em sua Histoire de la Minorité de Louis XIV, “a melhor obra histórica da literatura francesa”, conjugam-se, ao ver de Niebuhr, todos os primores
dessa virtuosidade historiográfica:
A obra toda exibe um espírito de elevada pureza, os verdadeiros sentimentos humanos que
dão vida a seus sermões, o arranjo clássico de seu pensamento, e a veracidade de um homem
que está de bem consigo mesmo – seu desvencilhamento de todos os vínculos de classe e
opinião, tão forte quanto era sua própria fé; seu amor pela liberdade, sua justa apreciação
dos deveres deste mundo; por fim, ele transpira em tudo o espírito primorosamente belo
do ‘Petit Carème’, espírito que, em seus Discursos, ensejou aquele delineamento da época
de Luís XIV que deve ter causado arrepios em seus ouvintes à medida em que o grande
homem, apenas conjecturando seus sentimentos, extravasava sua própria alma.
72
73
74
75
76
Idem, Ibidem.
NIEBUHR, Barthold Georg. The History of Rome. Translated by Julius Charles Hare and Connop
Thirlwall, Philadelphia: Lea & Blanchard, 1844, v. I, p. viii.
NIEBUHR, Barthold Georg. Lectures on the History of Rome. Edited by Dr. Leonhard Schmitz,
London: Charles Taylor, 1898, fifth edition, p. 53.
The history of Rome, op. cit., 1844, p. vi.
Carta de 15 de janeiro de 1809. Life and Letters, op. cit., 1852, v. 1, p. 268.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
91
Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
“Livro precioso”, verdadeira “pérola”, cuja dignidade assim primorosa o
elevara à honra de ser contemplado por posição de destaque, prestigiosa, ao lado
de Tucídides e Salústio.77
Ética humanitária bem assegurada por fundamento religioso cristão: “acima
de tudo, consciência e candura”, pois, “cientes de que o conhecimento é fruto
da piedade”, é “pela sinceridade de nossos corações, pelo conhecimento de nós
mesmos e pela trilha seguida à vista de Deus”, que nos guardamos contra descair
pelas seduções do falso orgulho e da vaidade a “aparentar o que não somos”,
amante de lisonjas que desviam os homens e os fazem “perder a via da verdade”.78
Daí, os princípios do método, então subsumidos pelo nome de uma ciência:
Filologia.79 No centro constitutivo dessa confluência de história e filologia, vindo
já dos séculos anteriores (XVII e XVIII), um conceito: espírito crítico. Desde
fins do XVII, entretanto, a crítica assumira a figura do pirronismo, cujos ataques
de ceticismo avançaram também contra os domínios da história. Roma antiga,
em especial, fora atingida: “um relato do tratamento dado à história romana nos
fornece um retrato da trajetória da filologia em geral”80, ruindo então boa parte
de seu “passado”, os tempos primordiais, de que se desacreditavam as tradições, meros produtos de fantasias poéticas. Niebuhr81 localiza o começo desse
pirronismo com Bayle (Dictionnaire historique et critique, 1697). A urgência de
consciência crítica então reclamada tinha por mira acusar os erros que a história
consagrava. Princípio, portanto, de intuito já essencialmente negativo, que depois
se exacerba especialmente com Louis de Beaufort (Sur l’incertitude des cinq
premiers siècles de l’histoire romaine, 1738): “a alma do livro”, diz Niebuhr, “é o
ceticismo”, afeito estritamente a “denegar e destruir”. Ainda por inícios do século
XIX, Pierre-Charles Levesque (Doutes, conjectures et discussions sur différents
points de l’histoire romaine, 1815), sentenciava o mesmo destino infausto para
a história da Roma primordial, por ele agora de bom grado sepultada em razão
da irrelevância mesma de sua “barbárie primitiva”.82
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Carta ao Conde Adam Moltke, Amsterdam, de 15 de janeiro de 1809. Life and Letters, op. cit.,
1852, v. 1, p. 268-269.
Lectures of the History of Rome, op. cit., 1898, p. 56.
Confiram-se os apontamentos porque Niebuhr assim a destaca respeitantes a: “plêiade filológica
que assistia suas preleções, integrando, entre outros, Savigny e Schleiermacher. Carta de Berlin,
9 de novembro de 1810. Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 317-318.
NIEBUHR, Lectures of the History of Rome, op. cit., p. 52.
Lectures on the History of Rome, op. cit., 1898, p. 53-54.
Confira-se a passagem citada por Sophie-Anne Leterrier. Le XIXe siècle historien. Anthologie
raisonnée. Paris: Belin, 1997, p. 22: “Si la critique peut renverser, en grande partie, l’histoire
des premiers siècles de Rome, que nous importe? En sacrifiant tout ce qu’elle nous enlève, n’en
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O tratamento de uma investigação crítica, enquanto razão fundamentadora
do conhecimento histórico, não pode, entretanto, ser confundido, assevera Niebuhr, com mero ceticismo, como o fazia o pirronismo histórico. Este tem em
mira “apenas destruir” a história; jamais cuida de, então, a “reconstruir”. Sua
perspectiva é insuficiente, pois volta o olhar apenas para acusar o que na história
é mentira, quando há que nela, antes, detetá-la não como fim em si, mas tendo por
desígnio discernir e firmar a verdade. Consciência crítica firmada pelo pirronismo,
pois, deturpada, assim deficiente, cega pela obsessão negativa de uma teleologia destrutiva. “Ceticismo”, na história, sentencia Niebuhr, peca por nihilismo,
“não leva a nada”, e assim “ofende” (ou injuria) o espírito humano”.83 A história
de Roma antiga há, pois, que ser tratada não “ceticamente, mas criticamente”:
tem por objetivo “ganhar resultados” de conhecimento “positivo”84, “definido
e certo”, das “coisas e relações que realmente existiram”, que assim “tomem o
lugar da ficção e do falso”, firmando “o que deve ser acreditado contra o que
dever ser rejeitado”.85
A obra de (re)composição, ou (re)construção da história antiga, se apresenta,
perante a ciência do historiador, concebida por imagens da realidade fragmentadas, ruínas de cidades destruídas ou restos de corpos mortos:
A Antiguidade pode ser comparada com uma enorme cidade em ruínas, da qual não se
tem nem mesmo uma planta subsistente; na qual cada um deve encontrar seu caminho
por si mesmo, e aprender a compreender o todo pelas partes, e as partes a partir de uma
comparação e estudo cuidadoso, mais a devida consideração de sua relação com o todo.86
O ofício do historiador se depara com essa singular aporia de indiciar a vida
antiga pela realidade presente da morte. Ao apreciar a acuidade de perícia analítica com que ele operava o método filológico-histórico porque enfrentasse tal
dificuldade, Niebuhr sentenciava: “Disseco palavras como o anatomista disseca
corpos”.87 Ciência da história que consiste, pois, para Niebuhr, em elaborar, a
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saurons nous pas assez sur un peuple qui ne cultivait point alors les lettres, dont les moeurs étaient
dures et grossières ainsi que le langage, qui ne savait encore que se battre, et que, malgré tout
l’éclat qu’il répandit par la suite, nous pouvons, relativement à cette époque, appeler barbare?”
Lectures of the History of Rome, op. cit., p. 55-56.
Lectures of the History of Rome, op. cit., p. 53. Assim enfatizado pelos comentários de Ernst
Cassirer, op. cit., p. 229.
Lectures of the History of Rome, op. cit., p. 55-56.
Carta a um Jovem Filólogo, verão de 1822. Life and Letters, op. cit., 1852, v. 2, p. 244.
Citado por KRIEGER, Leonard Krieger, op. cit., p. 359, nota 2; e por GOOCH, op. cit., p. 26.
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partir da dispersão desconexa dos fragmentos subsistentes, a reconstituição de
sua plena factualidade.
O exame, então, a que o historiador busca cuidadosamente submeter os restos
do corpo morto da história, almeja resgatar (e, pois, fazer novamente sentir) as
formas e imagens de sua realidade viva, alcançada em sua essência distintiva,
a assim dissipar as nebulosidades de sua fantasmagoria subsistente na memória
histórica. Numa carta, ele firma toda sua convicção em tal alcance de (re)vivenciamento histórico operado pelo método por ele eleito:
Oh! o quão seria estimada a filologia, se as pessoas conhecessem o prazer mágico que
há em viver e mover-se em meio às mais belas cenas do passado! A mera leitura compõe
sua menor parte; o melhor está em sentir-se familiar a Grécia e Roma durante seus mais
amplamente diversos períodos! Quero escrever história com tal vivacidade, a tanto deslocar
imagens vagas por bem definidas, a tanto desenredar representações confusas.88
Há, então, que plenificar de vida as imagens do passado histórico, ao que
recomenda Niebuhr em carta endereçada ao Conde Adam Moltke:
A música me é, em geral, bem desagradável, uma vez que eu não consigo concentrá-la em
um ponto, e tudo que é fragmentário oprime minha mente. Por isso, também, não sou um
matemático, mas um historiador; pois, a partir dos aspectos singulares subsistentes, consigo
compor um quadro completo e saber onde faltam grupos e como suplementá-los. Acredito
que seja este também o vosso caso, e bem gostaria que pudesses, como eu, aplicar vossas
reflexões sobre os acontecimentos passados, fixar as imagens na tela, e então empregar
vossa imaginação, trabalhando apenas com os verdadeiros matizes históricos, a dar-lhes coloração. Tomai a história como vosso assunto: trata-se de objeto inesgotável, e ninguém tem
ideia o quanto, aquilo que parece perdido, pode ser restaurado com a mais clara evidência.89
Conjugação de virtudes de talento historiográfico intelectivo são, pois,
solicitadas para a (re)criação das “imagens de épocas passadas”, então inteligentemente apreendidas90 graças à ativação concatenada de uma visão intuitiva,
imaginativa porque se as reconstitui a partir de sua disposição subsistente apenas
fragmentada e lacunar. Obra de “descoberta” de natureza heroica, distinguindo
inteligência que resolve “os enigmas” dispostos pela história.91 E obra de afinidade
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94
Carta ao Conde Adam Moltke, 15 de agosto de 1812. The Life and Letters of Barthold George
Niebuhr, op. cit., v. 1, 1852, p. 350-351.
Carta ao Conde Adam Moltke, Copenhague, 21 de novembro 1804. NIEBUHR. Die Briefe, op.
cit., v. 1, p. 314-319.
Carta de Roma, véspera de Natal de 1816. Life and Letters, op.cit., v. 2, p. 70-71.
Confiram-se: Carta de Berlin, 9 de novembro de 1810. Life and Letters, op.cit., v. 1, p. 318; Carta
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
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demiúrgica, que dissipa as trevas do caos dos dados dispersos, desordenados e
emaranhados, graças à inteligibilidade de uma visão luminosa, imaginativa, de
sua totalidade plenificada de vida.92 O historiador, como Niebuhr representa e
concebe suas virtudes, é assimilado à figura do herói, ou privilegiado por poderes
que “dependem de um talismã externo como a força de Sansão”93, ou dotado de
dons proféticos como os de Cassandra94, a vislumbrar as revelações dos mistérios
passados ou futuros, como se “tivesse sido inspirado pelos espíritos dos Antigos
em recompensa por seus leais esforços em nome da memória deles”.95 Em síntese,
pois, o método crítico filológico bem se diz, por Niebuhr, como divinatio.96 Correspondentemente, pela conjugação de tais nexos conceituais (ingenium e gênio;
inventividade, criatividade e originalidade; imaginação, inspiração e divinatio;
intuição e insight)97, a figuração da excelência de talento historiográfico gravita
igualmente em torno da ideia moderna de gênio.
Pelo feito da obra historiográfica enquanto produto do ingente trabalho de
(re)criação filológica, o historiador, ao que então dizia Niebuhr, “quase fica imortal”, não fosse o fardo de sua humanidade constitutiva por todas as limitações
e correspondentes trabalhos e penares hercúleos98 que a estigmatizam: “ai de
mim!, quantos impedimentos em meio do caminho!”99 Nem bem o historiador
vislumbra o esplendor divino que sua obra alcança, em imediata contrapartida
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de Berlin, 19 de março de 1810. Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 320; Berlin, 28 de janeiro de 1812.
Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 334-335; Roma, 7 dezembro 1816. Life and Letters, op. cit., v.
2, p. 69; Carta a Madame Hensler, Roma, 1 setembro 1818. Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 157.
Confiram-se: Carta de 1 de julho de 1808. Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 248-249; carta de
Berlin, 18 de maio de 1811. Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 324-325; Carta de Bonn, 20 outubro
1825. Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 352-353; Carta a Perthes de Bonn, 21 junho 1826. Life
and Letters, op. cit., v. 2, p. 359.
Carta de Amsterdam, 12 de dezembro de 1808. Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 262-263.
Carta a Savigny, Roma, 16 fevereiro 1817. Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 88; Carta ao Conde
de Serre, Roma, 9 fevereiro 1823. Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 257; e Roma, 18 março 1823.
Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 266.
Carta de Bonn, 20 dezembro 1829. Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 395-396.
O procedimento seria objeto de críticas já por seus contemporâneos que acusavam a exploração
abusiva que dele fazia uso Niebuhr (GOOCH, op. cit., p. 26-27). A presença da divinatio nas
formulações conceituais de Ranke é apontada por Fulvio Tessitore (op. cit., 1984, p. 49).
Confiram as indicações dadas por WITTKOWER, Rudolf. Genius. Individualism in Arts and
Artists. Dictionnary of the History of Ideas. Edited by Philip. P. Wiener, New York: Charles
Scribner’ Sons, v. 2, 1968, p. 305-308.
O que reclama e exige do historiador, entende Niebuhr, todo um nexo ético de disposições de
espírito heroico (zelo, dedicação, empenho, perseverança, etc.), a que Niebuhr constantemente
faz referência e ressalta em seus textos: carta de Berlin 9 novembro 1810. Life and Letters, op.
cit., v. 1, p. 317.
Carta de 1 de julho de 1808. Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 249.
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assoma a consciência da inexorável condição humana que circunscreve seu penoso percurso face aos imensos esforços que tal tarefa requer. A experiência do
divino, quando se é humano, tem a (in)consistência fugaz do instante.
Um poderoso recurso metodológico, especialmente associado a amplo domínio de conhecimentos históricos100, favorece, e mormente operacionaliza, essa
reconstituição das imagens do passado histórico, de início apenas disponibilizadas
em configurações fragmentadas e lacunares: as analogias que outras histórias
conhecidas propiciam. Caso exemplar, magistralmente examinado por Arnaldo
Momigliano: ager publicus e correlatas questões fundiárias da antiga história
romana, especialmente as leis agrárias do período republicano, se esclarecem, e
consoantemente resolvem, por Niebuhr, uma vez estabelecido seu paralelismo
histórico com as situações congêneres do arcaico regime indiano, particularmente
pela figura histórica do zamindar101, ainda vigentes por fins do século XVIII.102
Passara-se em Roma o que ocorria na Índia: o que foram, na origem, apenas
direitos ancestrais de posse (ocupação e uso)103 das terras comunais, acabaram
ilegalmente cristalizados, com o passar do tempo e a sucessão das gerações, em
práticas de exploração transgressora, que configuravam situações de propriedade
privada abusiva (permanente e hereditária).
Aquelas leis da República romana não tinham, portanto, se insurgido e
atentado contra a propriedade privada porque se acusasse historicamente sua
ilegitimidade, como equivocada e deturpadamente o haviam explorado os revolucionários recentes, mas sim contra as mazelas de seus excessos desnaturadores
por ambições de acumulação expropriadora. Os espectros “romanos”, despertados
pelos projetos franceses de 1792-3 que reclamavam leis agrárias traduzidas por
confisco e redistribuição das propriedades104, eram assim exorcizados pela crítica
histórico-filológica niebuhriana. Diálogo histórico do presente moderno com o
100
Confiram-se os apontamentos dados por Gooch (op. cit., p. 23) nesse sentido, particularmente
destacando seu conhecimento da história e desenvolvimento constitucional britânico.
101
Zamindar, que coletava as taxas hereditárias pagas pelos camponeses como concessão de direitos de cultivo dos lotes de terras das aldeias, originariamente detendo essa atribuição apenas
na qualidade de representante do soberano nativo, mas que acabara, na prática, com o passar do
tempo, a abusivamente explorar o sistema como se fosse o proprietário.
102
MOMIGLIANO, op. cit., 1982, p. 3-15.
103
Niebuhr vale-se da distinção conceitual formulada por Savigny entre possessio e propriedade.
MOMIGLIANO, op. cit., 1982, p. 13.
104
“Loi agraire, égalitée réelle” constituía um dos mottos proclamado nos projetos de Babeuf em
1792, que Robespierre, entretanto, rejeitaria em termos bem ácidos, vilipendiando-o como “uma
fantasmagoria criada por patifes para aterrorizar imbecís”. A “Declaração de 1793” reconheceu
assim plenamente o direito de propriedade privada. MOMIGLIANO, op. cit., 1982, p. 9.
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passado arcaico, de história indiana e romana, que assim operava em consonância
com a atualidade da orientação política de Niebuhr em prol da liberação dos servos
na Dinamarca e na Prússia, entretanto acautelada contra sua contaminação por
aquelas distorções revolucionárias.105 Niebuhr invertia, pois, o sentido da lição
histórica alegadamente embutida no prestigioso precedente romano, revirando
sua imagem de uma face radical revolucionária francesa para uma moderada
conservadora britânica106: a Roma antiga, republicana, fundamentava antes uma
ordenação embasada em uma sociedade de camponeses livres, detentores de
propriedades modestas de moderada prosperidade, por cujas consoantes virtudes
“romanas” de simplicidade e honestidade se ancorassem socialmente a disposição patriótica de segurança e defesa nacional contra as agressões estrangeiras,
justamente alertadas pela falência da velha ordem militar aristocrática prussiana
quando das recentes invasões napoleônicas.107
História Antiga (Roma), nascente em tempos de historicidade burguesa liberal, exorciza os espectros da Revolução em França de 1789/1793.108
Similar presença fantasmagórica na História Antiga (Grécia) de Niebuhr: a
Atenas de Péricles e a democracia.
A admiração de Niebuhr pela Atenas pericleana não se confunde com qualquer
apego maior pelo regime democrático, a que também se a associa. Justo pelo
contrário, a excelência histórica do estado ateniense resulta, para Niebuhr bem
como já originariamente para Tucídides, precisamente do fato de que fosse apenas
aparente e nominalmente uma “democracia”, a assim formalmente dissimular
o domínio governamental de seu melhor cidadão. Tal era justa a conformação
política em que se harmonizava a imperiosa autoridade de uma liderança virtuosa com a correspondente nobreza obediente e respeitadora do povo de Atenas.
“Cordialidade e natureza benigna constituíam suas características peculiares”.109
A “nobreza de seu caráter” se revela particularmente no regozijo com que aprecia
e acata a genialidade da liderança, prontamente agilizando a realização de sua
105
Idem, Ibidem, p. 10.
Idem, Ibidem, p. 13.
107
Idem, Ibidem, p. 10.
108
A “repugnância” de Niebuhr pela Revolução Francesa é destacada por Gooch (op. cit., p. 23),
que também aponta como os desdobramentos do processo revolucionário com a ascensão de
Bonaparte conforma os juizos de valor com que Niebuhr elabora sua percepção do colapso da
Grécia Antiga diante da conquista macedônia. Idem, Ibidem, p. 29.
109
Lectures of Ancient History, op. cit., v. 2, 1852, p. 77.
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orientação política, ao invés de antepor estorvos em seu caminho.110 Pois, pondera Niebuhr, “sempre que um homem assim [superior] aparece, o povo deve se
acomodar e não opor-se a ele”.111
Enquanto Atenas dispôs de um manancial de lideres genuinamente aristocráticos a cidade progrediu, alcançando o apogeu com Péricles, precisamente porque sua
liderança realizava exemplarmente aquela conjugação de inteligência do cérebro
de direção política da cidade com o acatamento acolhedor pelo corpo da cidadania.
Aos olhos de Niebuhr, a face negativa da atuação pericleana à frente do Estado
ateniense concerne aos desdobramentos degenerativos ocasionados pelos vezos
demagógicos de sua política instituticional, ao assim ensejar a deterioração da,
apenas aparente, “democracia” de sua própria época na “anarquia” que a seguiu.
Desvanecimento do Areópago mais desaparecimento dos quadros aristocráticos de
composição da liderança; a democracia ateniense deparou-se com dilema terrível, “o
maior infortúnio” que um estado enfrenta, entende Niebuhr, ao ver-se diante de duas
alternativas de rumos, ambas ruins: ou o princípio de distinção social de privilégio
político se degrada, com a riqueza preenchendo o vazio deixado pela extinção do
mérito, o que constitui “a mais vulgar e miserável de todas as distinções”; ou, pelo
contrário, extingue-se o próprio princípio político da distinção social, de modo que
“a massa toda do povo governa soberana”. Ora, conclui Niebuhr, quando isto ocorre
e tem-se uma “democracia” descontrolada, pois carente dos freios da liderança
aristocrática, “nada pode ser mais miserável, como bem o exemplifica “o caso da
Suíça”. Daí o grande infortúnio que então rondava a Grécia: “todas as constituições
gregas à época da guerra do Peloponeso estavam maduras para as revoluções”.112
Os espectros da revolução, que assombraram Niebuhr do início ao fim de
sua trajetória intelectual113, (re)apareciam em suas leituras sob feições antigas.
Para Niebuhr, nada certamente poderia ser pior ou mais desastroso, a ele que
o espectro da revolução contemporânea desencadeada em França aterrorizava.
Fundação da História Antiga se dá por exorcismos da Revolução.
110
Idem, Ibidem, p. 94.
Idem, Ibidem, p. 115.
112
Idem, Ibidem, p. 48-50.
113
Desde os primeiros escritos em 1804, quando se referia à Revolução Francesa como “uma gangue
de criminosos”, até o fim da vida, por ocasião da de Julho de 1830 em episódio emblemático;
comportando, algo “romanticamente”, desfechos de pathos um tanto “trágico”: foi na esteira das
aflições com a nova Revolução em França, sempre ávido por buscar nos jornais as notícias de
seus avanços e “imaginação exaltada receosa de deparar a repetição do terrível acontecimento,
angustiado com a segurança de sua própria família” (GOOCH, op. cit., p. 30), que Niebuhr apanhou, de retorno da biblioteca para casa na noite de Natal fria e úmida daquele ano, “o resfriado”
que o levou, desde aquela noite, ao leito que só deixaria já morto, a 1 de janeiro do ano seguinte.
111
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Em Niebuhr o princípio fundante da assim dita ciência da história bem se
encontra delineado: capacidade cognitiva de reconstituição do passado!
Passando em revista as bases documentais respeitantes aos tempos mais
antigos da Grécia (dos primórdios ao início das Olimpíadas), Niebuhr examina,
entre outras fontes, Tucídides, que também consagrara em sua obra uma história
daquele passado remoto.
Para Niebuhr, o primor positivo do espírito crítico tucidideano pode ser
apreciado já pelos fundamentos com que ele circunscreve a realidade histórica
da época mais antiga do mundo grego, dispondo o arcabouço cronológico do
passado que remonta até o início das Olimpíadas, de que são precisadas as datas
dos acontecimentos e dimensionados seus relacionamentos cronológicos.114 Afirmada a precisão da cronologia tucidideana, exemplificada quer na ‘Arqueologia’
(a data de invenção da trirreme) quer na exposição siciliana do livro VI (as datas
de fundação das colônias), Niebuhr conjectura, por esse indiciamento, a existência
de uma fonte histórica de que Tucídides (supostamente) teria derivado seus dados
cronológicos: “tábuas analísticas”.115 Consistência positiva de arquitetura cronológica tão firme e segura que deve, certamente, responder por metodologia crítica, a
qual, ajuizando a “autenticidade” de (tais supostas) bases documentais, enquadra
a realidade histórica dos acontecimentos em devida ordenação sequencial.116
Apreciando, por conjecturas que desdobram-se em encadeamento de outras
tantas suposições a imaginar os princípios com que Tucídides operasse eficiente
metodologia de crítica factual, a circunscrever os fundamentos positivos com que
restabelecesse a realidade histórica daqueles tempos da Grécia arcaica, a leitura
niebuhriana consagra em Tucídides todo um nexo de virtudes historiográficas:
•
diligência de acuidade crítica, “prudente e escrupulosa”, no ajuizamento da
“autenticidade” de suas bases documentais;
•
aprimorada percepção de realidade histórica, que certamente pode acolher
dados cronológicos equivocados dos informes de que depende, mas que jamais erra por inconsciência crítica que não distinguisse dados fantasiosos117;
114
Lectures of Ancient History, op. cit., v. 1, p. 211.
Idem, Ibidem, p. 212.
116
Idem, Ibidem, p. 212.
117
Idem, Ibidem, p. 212.
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gravidade virtuosa de aferição de realidade histórica que pode igualmente
ser estimada pelo equilíbrio de escrúpulos narrativos com que ele resguarda
os limites possíveis do conhecimento histórico para os tempos primitivos da
Grécia, de que pouco se dispunha de informes seguros, de modo a assim não
comprometer sua distintiva capacidade de ajuizamento historiográfico: para
o que antecede a Guerra de Tróia, não camufla as incertezas; para a Guerra
de Tróia, bem discerne a melhor fonte, “seguindo apenas Homero”, tanto
mais que acautela a linguagem de sua narrativa por condizente resguardo de
consciência crítica, remetendo o que diz a um “phaínetai”, sem “comprometer sua distintiva convicção pessoal”; por não dispor de elementos para
um juízo mais decisivo quanto à realidade desse famigerado acontecimento,
compreensivelmente o enquadrou pelos ditames da (in)consciência histórica
de sua época, fosse ou por comungar ou, justo pelo contrário, por discordar,
do entendimento então vigente quanto à sua problemática facticidade118.
Também pela arte apurada de sua escrita, aliada à certeza positiva do conhecimento factual, Tucídides merece a palma da historiografia, razão porque Niebuhr
o proclama “o maior historiador que jamais existiu”: o estilo de sua narrativa
torna a história plena de vida.119 Graças à experiência decorrente de participação
ativa na vida pública porque dominava os acontecimentos relatados em sua história, os descreve tão primorosamente, por discurso em que todas as palavras são
justamente sopesadas, que nos disponibiliza a visibilidade mesma de quem os
presenciasse.120 Teores do relato discursivo e realidade dos acontecimentos assim
se espelham correspondentemente em sua obra pela virtuosidade da narrativa.
Perversa é, então, a tradição que nos legaram os antigos que, acusando as
deficiências artísticas do livro VIII, apontavam a pretensa inferioridade de sua
composição, apenas a justificando ou porque texto inacabado, ainda carente de aprimoramento, ou talvez mesmo porque produto de outro autor (Teopompo). Pelo contrário, também pelo teor com que conformou essa parte final da obra, Tucídides fora
primoroso em arte narrativa, pois apresentou os acontecimentos justo consoante a
atmosfera e imagem de sua realidade mesma: tanto manteve o estilo solene e sublime
da narrativa para acompanhar a ascensão de Atenas quanto, correspondentemente,
o abandonou por narrativa dura para que retratasse a brutal perda de sua grandeza
118
Idem, Ibidem, p. 212.
Idem, Ibidem, v. 2, p. 54.
120
Idem, Ibidem, p. 54.
119
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
naquele tempo em que a cidade conhecera miséria e infortúnio.121 Bem se compreende então, pelo contrário, a propriedade da ausência de discursos nesse livro:
reflete justamente o fato do esvaziamento da deliberação popular enquanto processo
de decisão política, nesse tempo em que “a férrea necessidade do destino decretara” a perda do arbítrio da cidadania sobre direcionamento dos acontecimentos.122
Os termos e parâmetros da consciência crítica de inícios do século XIX
acerca da (ir)realidade histórica da Grécia primeva assim perpassam e transitam de Niebuhr para Tucídides, a (con)figurar a especular metodologia de que
comunga(ria)m suas obras historiográficas.
3. Apoteose Tucidideana
Por Niebuhr mais Ranke, Wihelm Roscher e Eduard Meyer, compondo o quarteto de historiadores do século XIX que Santo Mazarino qualificou de “os Alemães
Tucidideanos”123, a fama de Tucídides, então “idealizado como historiador perfeito”124, é
consagrada por uma espécie de apoteose historiográfica, estimando-se sua história como
obra extraordinária, singularmente excelsa, inigualável.
Por declarações esparsas ao longo de sua volumosa obra mais apontamentos biográficos registrados em seu diário, dispomos de ditos significativos que
enfatizam toda a admiração e entusiasmo porque Ranke, desde os anos juvenis
até o final de sua vida, reiteradamente exaltou a figura do historiador ateniense.
Modelo especialmente virtuoso por compêndio de saber político conformado
como história, porque, ao lado de Tácito, Tucídides figura como “mestre da
historiografia política” por formulação “exemplar inigualável”.125 Realização
narrativa impecável de fundamentação crítica de factualidade126, por permanente
121
Idem, Ibidem, v. 2 p. 54-55.
Idem, Ibidem, p. 55.
123
MAZZARINO, op. cit., p. 359-370; MONTEPAONE e outros. Tucidide nella historiografia
moderna. 1994.
124
MOMIGLIANO, Arnaldo. Problèmes d’historiographie ancienne et moderne. Traduit par A.
Tachet, Paris, 1983, p. 27.
125
RANKE. Tagebücher, op. cit.,1964, p. 242; e Introdução ao curso de História Moderna no
semestre de inverno de 1867-68. Aus Werk und Nachlass. Vorlesungseinleitung, vol. IV, p. 412;
Lutero e l’idea di storia universale, op. cit., p. 250. Confira-se ainda o comentário externado
sobre Tácito: “um dos maiores historiadores que já existiram”, entretanto não tendo alcançado
em sua história de Roma “o universal”, antes apreendido propriamente pelos historiadores gregos
como Apiano e Plutarco. Epoche della storia moderna, op. cit., p. 120.
126
Introdução ao curso de História Moderna sobre a ideia de História Universal no verão de 1847.
Aus Werk und Nachlass. Vorlesungseinleitungen, vol. IV, p.187; confira-se a tradução italiana:
RANKE, op. cit., 1986, p. 218.
122
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atenção que jamais se perde extraviada pelos desafios das fábulas que perpassaos informes.127 Excelência de padrão de objetividade historiográfica sublime,
insuperável, situando ideal de imparcialidade narrativa luminar, porque todos
historiadores o almejassem sem jamais igualar128. Ranke considerava-o não
apenas como a origem mesma da escrita da história, mas também como seu
modelo insuperável: “ninguém pode ter a pretensão de ser maior historiador do
que o foi Tucídides”.129
Em termos similares aos de Ranke, já Niebuhr se pronunciara. Em Tucídides,
dons de “espírito magnânimo e nobre” propiciam narrativa historiográfica em que
refulge “o brilho fulgurante da imparcialidade”.130 Primor de justiça e correção no
tratamento narrativo dos acontecimentos inabalável, que nem mesmo é afetado
por extravios deformadores conexos aos dissabores e injustiças que o vitimaram
pessoalmente.131 Pelo que, “se há alguma autoridade confiável em toda a história,
esse homem é Tucídides, cujas palavras podem ser incondicionalmente aceitas,
ele que nada diz de que não esteja perfeitamente convencido e que é incapaz de
pronunciar uma inverdade a respeito de um amigo ou de um inimigo”.132
Com Tucídides, diz ainda Niebuhr, tem-se primor de arte narrativa de fascinante sedução, que “gentilmente prende os leitores”, assim equiparável apenas
a Tito Lívio. Entretanto, num e noutro diferenças estilísticas mesmo opostas.
“Abundância e eloquência indescritível” no romano, conjugadas por “celeste serenidade do intelecto, nisto igual a Homero”. Já “perfeita concisão e vigor” no ateniense, porque Tucídides se recomenda exemplarmente também pelo estilo, justo
apropriado aos modernos face ao ritmo acelerado com que então pulsa o mundo.133
Por tais declarações de júbilo entusiasmado quer de Niebuhr quer de Ranke,
revive e renova-se por inícios do século XIX a glorificação fulgurante de Tucídides. Então os modernos, tendo por missão fundar a ciência da história, o elegeram
por modelo supremo, projetando de sua figura uma espécie de apoteose. Para
127
Aus Werk und Nachlass. Vorlesungseinleitungen, vol. IV, p. 189-190.
Preleção introdutória ao curso de História Moderna ministrado no verão de 1845, em que refletia
sobre o imperativo da objetividade historiográfica. Aus Werk und Nachlass. Vorlesungseinleitungen, vol. IV, p. 162. Confira-se igualmente o comentário na Introdução ao Curso de História
Moderna de 27 abril 1847. Aus Werk und Nachlass, Vorlesungseinleitungen, vol. IV, p. 190.
129
Pela tradução inglesa de R. Wienes (op. cit., p. 163-164); confira-se igualmente a tradução espanhola de Dalmacio Negro Pavón, Sobre las Epocas de la Historia Moderna, 1984, p. 80 e 82;
e a italiana de Gabriella Valera, Le Epoche della Storia Moderna, 1984, p. 109 e 111.
130
Lectures on Ancient History, op. cit., v. 2, p. 420.
131
Lectures on Ancient History, op. cit., v. 2, p. 106.
132
Lectures on Ancient History, op. cit., v. 2, p. 103-104.
133
Life and Letters, op. cit., v. 1, p. 186.
128
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Ranke, Tucídides, assim como Homero para a epopeia e Platão para a filosofia,
bem pode ser considerado o gênio da história, a qual, graças a ele, alcançou a
perfeição.134 Niebuhr também assim o ajuiza. Do historiador, diz: “O primeiro
real e verdadeiro historiador, no nosso entender, foi Tucídides: ele é o mais
perfeito historiador dentre os que já escreveram (...) o primeiro, o Homero dos
historiadores”.135 Para o objeto de sua história, reverberando-lhe o louvor, proclama: “A Guerra do Peloponeso (...) é a mais imortal de todas as obras, dado que
foi descrita pelo maior historiador que jamais existiu”.136 Com e por Tucídides,
“a história surge de uma só vez em sua mais alta perfeição”.137
O imortal138, o divino Tucídides, declarava Niebuhr. Objeto de veneração
cultual, confessava Ranke: “um espírito portentoso, grandioso, diante de quem
me ajoelho”.139
Eduard Meyer similarmente o sentencia:
(...) continua existindo, hoje como outrora, um único modo de escrever a história e de
tratar os problemas históricos: aquele mesmo que o ateniense Tucídides pôs em prática pela
primeira vez e promoveu o exemplo, com uma perfeição que nenhum de seus sucessores,
até hoje, conseguiu sobrepujar.140
Apreciação reiterada em outro ensaio, poucos anos depois: “Quis apenas
mostrar como Tucídides criou e realizou numa obra a ciência da história, e como
esta obra (...) teve na literatura histórica até hoje apenas rivais do seu calibre,
mas nenhum que o superasse”.141
Dentre os modernos, dizia Ranke em sua autobiografia (1885), só Niebuhr
se equiparava a Tucídides, assim tido por padrão de excelência historiográfica.142
134
Aus Werk und Nachlass, Vorlesungseinleitungen, vol. IV, p. 256-257. Tradução italiana em Lutero
e l’idea di storia universale, op. cit., p. 232.
135
Lectures on Ancient History, op. cit., v. 1, p. 211.
136
Lectures on Ancient History, op. cit., v. 2, p. 54. Confiram-se ainda os ajuizamentos externados
acerca dos discursos integrados por Tucídides em sua obra, Life and Letters, op. cit., v. 2, p. 352.
137
Lectures on Ancient History, op. cit., v. 2, p. 391. Confira-se ainda: Lectures on Ancient History,
op. cit., v. 1, p. 54.
138
Lectures on Ancient History, op. cit., v. 2, p. 105.
139
Apontamento ditado em outubro de 1863 e em novembro de 1885 (SW 53/54: 26-31, 58-59:
WINES, op. cit., p. 4), citado também por Walter Peter Fuchs, (RANKE, Leopold von. Aus Werk
und Nachlass III. Frühe Schriften, herausgegeben von Walther Peter Fuchs, München-Wien: R.
Oldenbourg Verlag, 1973, p. 329).
140
El historiador y la Historia antigua, op. cit., 52-53.
141
Tucidide e l’origine della Storiografia Scientifica. Ttradução italiana de Claudia Montepaone e
Marcello Catarzi. In: Tucidide nella storiografia moderna, op. cit., 1994, p. 446.
142
Referido por Maria Luisa Silvestre. In: Tucidide nella storiografia moderna, op. cit., p. 350.
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
Com Ranke concordava Meyer, igualmente apreciando o mérito de Niebuhr,
por quem a história retomava o primor da metodologia crítica tucidideana.143
Na esteira de Niebuhr, acrescenta Meyer, viera Ranke, cuja História dos Papas
aproximara a historiografia novamente dos píncaros tucidideanos.144
4. Entre heroico e gênio
Desde o princípio com Heródoto, porque o lógos se sobreponha ao mito como
fundamento discursivo de civilização, o dilema da historiografia se configura: relatos verídicos contra mentirosos, isentos contra parciais; como firmar a dignidade
distintiva da história porque se memorizem as realidades dos feitos, das obras e
dos modos com que nela agem os homens? Porque as histórias se contam tendo
em vista um público a que elas se dirigem, como deve o historiador conformar
modos narrativos que assegurem convicção de veracidade para as coisas que ele
relata como fatos reais? Que virtudes excepcionais lhe são exigidas por recomendação de preceitos e deveres que consagrem a autoridade de sua narração?
Mas a apreensão da verdade do fato unívoco, adverte Tucídides, é obra penosa. Reclama ingente empenho de inteligência para resolver a aporia intrínseca
de sua consecução, pois, para tanto, o historiador se defronta com a dialética
inconciliável dos relatos conflitantes apresentados pelos que presenciaram os
acontecimentos e, consoantemente, os informaram. Supõe sujeito humano dotado
de espírito superior, distinguido por excelência de plena maturidade experiente
que a razão capacita, de modo a poder discernir toda a verdade que desaparece
confundida por essa dialética informativa. Via de trajeto difícil, percurso penoso
de ingentes trabalhos, restrito a um único caminho que conduz justo à descoberta
da verdade do fato. Via de conhecimento histórico própria a um destino pessoal
heroico por areté de intelecto excepcional, privilégio de um indivíduo cujo nome
chancela a obra por seu primeiro termo declarativo: Tucídides de Atenas.145
143
Referido por Maria Luisa Silvestre. In: Tucidide nella storiografia moderna, op. cit., p. 346.
Confiram-se: Tucidide e l’origine della Storiografia Scientifica. Tradução italiana de Claudia
Montepaone e Marcello Catarzi. In: Tucidide nella storiografia moderna, op. cit., 1994, p. 435.
144
I Discorsi di Tucidide [Forschungen zur alten Geschichte]. Tradução italiana de Maria Luisa
Silvestre. In: Tucidide nella storiografia moderna, op. cit., 1994, p. 398.
145
Confiram-se os argumentos por nós firmados em: MURARI PIRES, Francisco. A Retórica do
Método (Tucídides, I.22 e II.35). Revista de História, 138, 1998, p. 12-15; MURARI PIRES,
Francisco. Mithistória, op. cit., p. 286-291; MURARI PIRES, Francisco. O Porto de Pilos e
a Baía de Navarino, Tucídides e o Coronel Leake: Akribeía antiga mais Crítica moderna e as
Temporalidades da História Tucidideana. Phaos, 3, 2003, p. 107-112; MURARI PIRES, Francisco. Tucídides e o (re)acerto do fato da tirania de Hípias: alcance e limites dos indiciamentos
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
Similarmente o dá a entender Luciano listando o acúmulo de virtudes reclamadas por que se almeje escrever história excelente.146 Ser historiador requer
tanto pessoa provida de complexo de virtudes excepcional por domínio absoluto
de paixões, (res)sentimentos e (des)afetos, quanto indivíduo cuja situação no
mundo pode mais propriamente ser dita inexistencial, pois intriga pertinência a
um lugar, dito a-polis, que antes o desvincula do mundo humano147, situa-o fora
porque acima dele, sobrepairando as histórias de seus acontecimentos, como o
olhar de Zeus. Ideal que, pois, configura persona de qualificação divina, na medida em que se concebe sua ideia por atributos definidos por negação de modos
e aspectos inerentemente humanos.
No horizonte de historicidade do pensamento antigo, a categoria do heroico
responde por essa (con)fusão de humano com divino porque ganha inteligibilidade a projeção de tal persona de historiador ideal. Nesse sentido, a distinção
de dignidade historiográfica figurada por Tucídides aproxima-o propriamente
da excelência de arte discursiva que tem por nome conceitual em Homero: Nestor. Especialmente na cena da querela entre Agamêmnon e Aquiles, a figura do
venerando conselheiro atua particularmente em função judicante, pois discerne
a decisão que acerta a dialética das (des)razões de duas partes em conflito. Similarmente a como também o poeta memoriza na cena do escudo de Aquiles,
conselheiro vale por histor.148
Na intriga dessas heranças entre epopeia e história, o historiador então
figuraria, correspondentemente a Nestor, apreciado como conselheiro cuja narrativa dos fatos acontecidos, assim acertados univocamente a superar a dialética
investigativos da verdade. Phaos, 6, 2006, p. 70-72; MURARI PIRES, Francisco. Tucídides: a
Retórica do Método, a Figura de Autoridade e os Desvios da Memória. In: BRESCIANI, Stella;
NAXARA, Márcia (Orgs.). Memória e (Res)Sentimento. Indagações sobre uma questão sensível.
São Paulo: Editora Unicamp, 2009, p. 98-101; MURARI PIRES, Francisco. Antigos e Modernos,
o Fardo e o Fio. Revista de História, número especial “Antigos, Modernos, Selvagens”, 2010, p.
9-18; MURARI PIRES, Francisco. Machiavel et Thucydide: le(s) regard(s) de l’histoire et les
figurations de l’historien. Cahiers de Études Anciennes, 47, 2010, Tome 2, p. 274-276.
146
Luciano, Como escrever história 41 (François Hartog, A História de Homero a Agostinho. Belo
Horizonte, 2001, p. 224-231). Considerem-se ainda mais estas duas passagens: “Sobretudo,
que seu pensamento se torne semelhante a um espelho impoluto, brilhante, preciso quanto a
seu centro - e, qualquer que seja a forma dos fatos que recebe, assim os mostre, sem nenhuma
distorção, diferença de cor ou alteração de aspecto”; “(...) de modo que se diga de ti: Aquele era
seguramente um homem livre e totalmente franco, nada bajulador, nada de servil, mas verdadeiro
em tudo”. Luciano, Como escrever história 50 e 61.
147
“ou animal (escravo) ou deus”, disse Aristóteles. Política, I.1253a.
148
Confiram-se nossos comentários nos artigos referidos à nota 145 em que procuramos aproximar
as figurações (ditas) “metodológicas” da escrita da história tucidideana justamente das correspondentes figurações de atuação judicante do histor arcaico.
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
conflitante dos relatos parciais e comprometidos que os relataram, responde pelo
discurso sapiencial que reitera os preceitos da ordem política por singulares
modos nestorianos de saber historiante, assim heroicizante.149
Na terceira edição de seu tratado Iconologia (Roma, 1603), Cesare Ripa define
a figura de Clio pela conjugação de três ícones nucleares porque se a represente
imageticamente: uma coroa de louros à cabeça, uma trombeta segura pela mão
direita e um livro pela esquerda, em que se registram os feitos dos homens,
passados e presentes, assinalando, pois, a História, atributo dessa Musa. Mas
ícone este que comporta uma precisão: o livro, é de Tucídides, por nome nele
inscrito.150 A razão de tal privilégio onomástico com que se honre condignamente
a história: porque Tucídides, Historiador famoso.151
Praticamente contemporânea dessa figuração de uma Clio tucidideana por
Cesare Ripa, La Popelinière firma, na Histoire des Histoires (Paris, 1599), similarmente a fama maior de Tucídides, então o intitulando Príncipe da História.152
Três décadas antes (1566), Jean Bodin também proclamara, no Methodus, que
não Heródoto, mas sim Tucídides, devesse ser tido por o mais verdadeiro Pai
da História.153 Três décadas depois (1629), Thomas Hobbes, em sua tradução de
Tucídides, consagra fórmula de similar fama historiográfica, mas já por teores
reflexivos mais precisamente direcionados: Tucídides, “the most politick historian who ever writ”.154 Por todas essas celebrações da memória de Tucídides
enquanto ideal ou modelo historiográfico, ela assim comparace em figuração de
sabedoria ajuizante, similar à heroicidade nestoriana, que resolve os conflitos e
divergências porque situada acima dos partidos e facções.
Por tais projeções de excelência historiográfica porque o nome de Tucídides emblematize a escrita da história do século XVI para o XVII, a persona do
149
Para esta caracterização da figura de heroicidade com que o historiador recomenda sua obra,
vejam-se os artigos citados à nota 145.
150
“Rappresentaremo Clio donzella con una ghirlanda di lauro, che con la destra mano tenghi una
tromba et con la sinistra un libro che di fuora sia scritto Tucidides”. RIPA, Cesare. Iconologia,
Roma, 1603, disponível em: Biblioteca Virtuale On-Line; http://bivio.signum.sns.it/.
151
“Si dipinge con il libro Tucidides, percioché attribuendosi a questa Musa l’historia, dicendo Virg.
in opusc. de Musis: Clio gesta canens transacti tempora reddit. Convien che ciò si dimostri con
l’opere di famoso Historico, qual fu il detto Tucidide”. Idem, Ibidem.
152
LA POPELINIÈRE. L’ Histoire des Histoires. L’Idée de l’Histoire Accomplie. Paris: Fayard,
deux tomes, 1989, p. 143.
153
BODIN, Jean. Method for the Easy Comprehension of History. Translated by Beatrice Reynolds,
New York: W.W. Norton & Company, 1969, p. 298.
154
HOBBES, Thomas. Hobbes’s Thucydides. Edited with an introduction by Richard Schlatter, New
Brunswick: Rutgers University Press, 1975, p. 7.
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
historiador é apreciada por enredamentos de intrigas agonísticas com seus pares
antigos. Por uma delas, que avança de La Popelinière a Hobbes, subjaz um agón
com Tácito, ou mais precisamente com o tacitismo, avatar de maquiavelismo
de fins do XVI. Por outra intriga agonística, agora de Tucídides com Heródoto,
remonta-se de La Popelinière a Bodin, por meados do século. E, por Bodin, com
as intrigas dessa agonística pondo em paralelo Tucídides e Políbio, o diálogo
remonta a Maquiavel.
Por tais diálogos de modernos e antigos, a identidade da história ao longo
do século XVI para inícios do XVII (de Maquiavel a Hobbes), ao instaurar a
exemplaridade tucidideana de sua escrita155, transita os modos de seu saber dos
domínios da arte retórica para os da ciência política. Em tempos inaugurais da
modernidade, pelo que assim diz Maquiavel ou pelo que similarmente imagina
Bruegel em Paisagem com a queda de Ícaro156, refigura-se o heroico herdado
do imaginário da Antiguidade Clássica. Por tais jogos retóricos situando nexos
figurativos entre humano e divino, querer e poder, retomados dos antigos porque os modernos refletem sobre os dilemas da escrita da história, indecide-se o
nexo conceitual que, dizendo da excelência superlativa do historiador, ordena a
epistemologia da, ou arte, ou ciência do discurso historiográfico, assim vacilante
no trânsito entre sua apreensão pelo evanescente conceito antigo do heroico e o
moderno do gênio então apenas florescente.157
155
Para o primeiro parâmetro (Maquiavel, inícios do XVI), confiram-se os argumentos por nós desenvolvidos no artigo publicado em Cahiers des Études Anciennes. Machiavel et Thucydide: Le(s)
regard(s) de l’histoire et les figurations de l’historien (op. cit., p. 263-281), também publicado no
número especial Antigos, Modernos, Selvagens, da Revista de História (op.cit., p. 51-67). Para
o segundo parâmtero (La Popelinière, fins do XVI), confiram-se as análises por nós elaboradas
em MURARI PIRES, Francisco. La Popelinière et la Clio thucydidéenne: quelques propositions
pour (re)penser un dialogue entre L’idée d’histoire accomplie et le ktema es aei. In: Ombres de
Thucydide. La réception de l’historien depuis l’Antiquité jusqu’au début du XXe siècle. Textes
réunis par Valérie Fromentin; Sophie Gotteland; Pascal Payen, Bordeaux-Paris: Diffusion De
Boccard, 2010, p. 665-678.
156
MURARI PIRES, Francisco. A morte do herói(co). In: ROSENFIELD, Kathrin H. Filosofia e
Literatura: o trágico. Filosofia e Política. III.1, Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 102-114.
157
A questão é abordada especialmente por BRANN, Noel L. The Debate over the Origin of Genius
during the Italian Renaissance. Leyden, 2002, p. 50. Confiram-se igualmente: os estudos de Giorgio Tonelli no Dictionnary of the History of Ideas (Genius. From the Renaissance to 1770, v. 2,
p. 293-297); de Rudolf Wittkower no Dictionnary of the History of Ideas (Genius. Individualism
in Arts and Artists, v. 2, p. 304-307); de Rudolf and Margot Wittkower, Born under Saturn, New
York, 1969; e de Raymond Klibansky, Erwin Panofsky et Fritz Saxl, Saturne et la Mélancholie,
Paris, 1989.
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Francisco MURARI PIRES. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana.
Com o conceito de gênio bem firmado entre fins do século XVIII e inícios
do XIX158, a moderna concepção “científica” de história inaugurada por Niebuhr
e Ranke atualiza esse diálogo epistemológico porque o deslocamento da figura
(antiga) do “herói” dê lugar, nos horizontes de suas respectivas sensibilidades de
pietismo religioso159, à figura (moderna) do “gênio”160 enquanto parâmetro conceitual que catalisa a apreciação da excelência da práxis historiográfica. Por tais
historicizadas figurações conceituais, articula-se a ideia ajuizadora da vocação do
historiador consoante a ambígua afinidade versus distância porque se representem
as limitações da condição humana face ao caráter sublime da projeção divina.
Recebido: 26/10/2010 – Aprovado: 03/06/2011
158
Rudolf and Margot Wittikower, Born under Saturn, op. cit.
Vejam-se, neste sentido, os comentários de Georg Iggers, op. cit., p. 76-80.
160
Nos termos com que o “jovem Ranke” (Lutero e l’idea di Storia Universale, p. 172-173) concebe a figura do “gênio” histórico em suas reflexões dos anos 1816-1817 (“o verdadeiramente
grande”, “fiel à tendência da época em consonância com o gênio”, manifestação e atuação da
“ideia divina” porque se define seu destino “grandioso”, desde que “purificado do egoísmo” que
antes o “cegasse” de modo a “ignorar ou desprezar” tal finalidade sublime, causa de sua “ruína”),
tem-se conglomerado de nexos conceituais que guarda correspondência com condizente discurso
porque os Antigos conceitualizaram a figura do herói especialmente apreciada em sua dimensão
“hibrística” de desfecho trágico.
159
108
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012
CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRABALHO NA IDADE MÉDIA:
INTELECTUAIS MEDIEVAIS
E HISTORIOGRAFIA*
Terezinha Oliveira
Universidade Estadual de Maringá
RESUMO
Neste artigo analisaremos o conceito e a atividade ‘trabalho’ no Ocidente medieval.
Trata-se de um tema demasiado amplo e, por isso, corremos o risco de generalizar a
ponto de não apreendermos seu significado, ou, então, fazer um recorte singular que
não possibilite apreender o processo em sua inteireza. Atentos a esses dois problemas,
consideraremos o trabalho levando em consideração as diferentes formas que este
assumiu nesta época.
PALAVRAS-CHAVE
intelectuais • historiografia • trabalho.
Contato:
Rua Marechal Floriano Peixoto, 436, apto. 401
87030-030 – Maringá – PR
E-mail: [email protected]
*
Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/PQII
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 109-128, jan./jun. 2012
109
CONSIDERATIONS ABOUT LABOR IN THE MIDDLE AGES:
MEDIEVAL SCHOLARS
AND HISTORIOGRAPHY
Terezinha Oliveira
Universidade Estadual de Maringá
Abstract
In this article we shall analyze the concept of “labor” and of “labor activity” in the
medieval western world. As this is a very broad subject, generalizing it involves the
risk of not grasping its meaning, or of making otherwire a so singular clipping that
grasping the whole process becomes difficult. Being aware of these two problems, we
shall consider “labor” in the different forms it assumed at this age.
Keywords
scholars • historiography • labor
Contact:
Rua Marechal Floriano Peixoto, 436, apto. 401
87030-030 – Maringá – PR
E-mail: [email protected]
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 109-128, jan./jun. 2012
Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
O objetivo deste texto é analisar o conceito e a atividade ‘trabalho’ no Ocidente medieval. Evidentemente, trata-se de um tema demasiado amplo e, por
isso, corremos o risco de, com a intenção de compreendê-lo em todos os seus
aspectos, generalizar a ponto de não apreendermos seu significado para a época
em tela. Ou, então, cair no extremo oposto, fazendo um recorte excessivamente
singular que não possibilite apreender a organização de nenhuma forma do trabalho. Atentos a esses dois problemas, destacamos que consideraremos o trabalho
da mesma maneira que concebemos o homem medieval, ou seja, que não há um
único homem para os dez séculos que sinalizam esta época, mas, diferentes homens medievais. Da mesma forma, existiram diferentes modalidades do trabalho.
As vicissitudes sociais no medievo ocidental foram tão intensas que, em alguns séculos, não se pode supor que os homens (relações sociais) que o iniciaram
são idênticos aos da sua segunda metade. Como exemplos podem ser mencionados
os séculos V e VI, por ocasião das incursões nômades; os séculos X e XI, quando da formação do sistema feudal, ou, ainda, os séculos XIII e XIV, momento
em que verificamos a organização das cidades, das corporações de ofício, das
Universidades e quando são dados os primeiros passos para a constituição dos
estados modernos. As mudanças ocorridas nestes séculos foram tão profundas
que, ainda que os homens e, por conseguinte, suas relações continuassem medievais não eram mais os mesmos homens. Isso também pode ser verificado no
que diz respeito ao trabalho.
Em geral, encontramos obras na historiografia que consideram o trabalho
camponês como a forma própria do trabalho medieval; outras consideram o
comércio como a atividade central no Ocidente; outras, ainda, entendem que o
trabalho do artesão era aquele que melhor caracterizava o trabalho no medievo.
Nossa intenção não é, contudo, debater essas diferentes concepções, mas chamar
a atenção para a permanência e concomitância dessas diversas atividades ao longo
desta época. Além disso, queremos destacar outra modalidade de trabalho que
existiu durante os séculos do medievo, mas que, nem sempre, é valorizada pela
historiografia. Trata-se do trabalho intelectual, muitas vezes preterido em favor
do trabalho manual. A valorização de um ideário mental do homem medieval
na História constitui um fato marcante a partir da Nova História, em meados da
década de 1970, ao menos em termos de Brasil. Temos, então, uma valorização
da mentalidade medieval, da espiritualidade, particularmente no interior da
História Social, História das Mentalidades, História das Religiões, dentre outras
tendências. Ainda assim, nem sempre encontramos nelas um destaque significativo para o trabalho intelectual.
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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
A nosso ver, reside nesse ponto um dos maiores problemas para se tratar
do conceito de trabalho na Idade Média ocidental. De um lado, encontramos
estudiosos que, seguramente, herdeiros de uma concepção marxiana da História,
consideram o trabalho ‘material’ como o único produtor e condutor dos homens
e de suas relações sociais. De outro, deparamo-nos com tendências que, no
afã de opor-se a uma perspectiva materialista de história, valorizam as ideias a
ponto de retirar de cena o ato/agir cotidiano dos homens. Em nossa opinião, são
concepções extremadas que não nos permitem compreender a própria natureza
humana que, como Tomás de Aquino já afirmara em sua Suma de Teologia no
século XIII, é constituída pelo intelecto e pela matéria. Assim, trabalho material
e trabalho intelectual são partes integrantes da atividade humana. Somente a
partir dessa concepção poderemos compreender o homem em sua totalidade.
Por conseguinte, é dessa perspectiva que consideraremos o trabalho medieval,
material e intelectual.
Alertamos o leitor, portanto, que consideraremos o trabalho medieval a partir
de dois enfoques que se complementam: primeiro, a concepção de homem suscitada pelas reflexões de Tomás de Aquino; segundo, a sugerida por três autores
de épocas distintas, mas que, indubitavelmente, são autoridades no campo da
História: Políbios (203 a.C. – 120 a.C.), François Guizot (1787 – 1874) e Marc
Bloch (1888 – 1944). Principiaremos por Políbios, buscando aprender um pouco
do fazer História.
De fato, quem espera, examinando Histórias parciais, adquirir uma visão
correta da História em seu conjunto está, segundo me parece, na situação de
alguém que, depois de ter visto os membros esparsos de um animal antes vivo e
belo, imagina haver contemplado exatamente o próprio animal cheio de energia
e na plenitude de sua beleza; se alguém pudesse reconstituir instantaneamente
este animal, restaurando-lhe a forma e a graça de criatura viva, e então o mostrasse à mesma pessoa, na minha opinião, esta confessaria prontamente que antes
estava muito longe da verdade e se assemelhava mais a alguém que sonhasse.
Podemos de fato fazer uma ideia do todo vendo uma parte, mas nunca chegar ao
conhecimento e à opiniões exatas. As Histórias parciais, portanto, contribuem
muito pouco para o conhecimento do todo e para formar uma convicção quanto
à sua veracidade; somente pelo estudo de todas as particularidades, semelhanças
e diferenças ficamos capacitados a fazer uma apreciação geral, e assim tirar ao
mesmo tempo proveito e prazer da História.1
1
POLÍBIOS. História. Brasília: UnB, 1985, p. 43-44.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 109-128, jan./jun. 2012
Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
A analogia do autor, comparando os acontecimentos humanos com o corpo
de um animal esquartejado, é simbólica, mas, de grande profundidade. Afinal,
se não conhecemos o todo do animal e considerarmos somente seus membros
separadamente, poderemos até imaginar como ele era quando vivo e inteiro,
mas, isso é somente uma imagem, não o real em sua totalidade. Do seu ponto
de vista, o mesmo ocorria com a História, se conhecermos somente partes de
um acontecimento, e não construirmos o todo. Desse modo, não conhecemos a
história, mas apenas partes de uma dada época.
A concepção de história de Guizot – professor de história moderna da Sorbonne no século XIX, depois político da Restauração – não é, pelo menos na
sua essência, diferente da maneira de Políbios concebê-la. No Terceiro Ensaio
da obra Essais sur l’Histoire de France, ao tratar das razões que provocaram a
queda dos merovíngios e dos carolíngios, destacou:
As causas das revoluções são sempre mais gerais do que se supõe; o espírito mais penetrante
e mais vasto não o é nunca o suficiente para perceber desde a primeira origem e as abarcar
em toda a sua extensão. E não falo aqui deste encadeamento necessário dos acontecimentos
que faz com que eles nasçam constantemente uns dos outros, e que, o primeiro dia traz
em seu seio o futuro inteiro. Independentemente deste laço eterno e universal de todos
os fatos, é verdadeiro dizer que essas grandes vicissitudes das sociedades humanas que
denominamos de revoluções, o deslocamento dos poderes sociais, a subversão das formas
de governo, a queda das dinastias, datam de mais distante do que diz a história, e provêm
de causas bem menos especiais do que aquela que se lhe atribui comumente. Em outras
palavras, os acontecimentos são maiores do que sabem os homens, e aqueles mesmos que
parecem a obra de um acidente, de um indivíduo, de interesses particulares ou que qualquer
circunstância exterior, têm fontes bem mais profundas e de outro alcance.2
As palavras de Guizot nos apontam para os acontecimentos históricos de uma
perspectiva de longa duração. Do seu ponto de vista, um dado acontecimento não
decorre de atos súbitos e imediatos, mas, em geral, teve seu início muito tempo
antes de sua eclosão. Logo, a história não poderia ser compreendida se levarmos
em conta apenas a curta duração. Para o autor, os acontecimentos novos sempre
trazem em seu bojo elementos das antigas relações que o fizeram nascer. Dentro
deste princípio existiria o velho no novo e a possibilidade de germes do novo nas
relações sociais maduras e consolidadas. Apreende-se, dessa forma de conceber
a história em Políbios e em Guizot, que nos processos de rupturas há também
2
GUIZOT, François. III Essai. Des causes de la chute des Mérovingiens et des Carlovingiens. In:
Idem. Essai sur l’Histoire de França. Paris: Bonaventure et Ducessois, 1857, p. 57.
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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
permanências. É nesse movimento de permanências e rupturas que as relações
sociais e as instituições são construídas pela e na história.
A lição que retiramos desses dois autores permite-nos refletir acerca de uma
questão muito presente na historiografia do século XX e que permanece nos
dias atuais: pensar os processos históricos a partir de rupturas, ou seja, existiria
sempre um novo brotando e colocando por terra o passado e, deste passado, nada
deveria ser preservado. Na verdade, esta visão da história torna-se um impeditivo
para se entender e construir a própria história, na medida em que perdemos sua
essência: um movimento feito de mudanças e de continuidades.
Considerando da perspectiva da concepção fundada na ideia de rupturas
completas, a Idade Média nos fornece pelo menos dois exemplos notáveis. O
primeiro diz respeito ao nascimento da Idade Média. Comumente se considera
que, por ocasião da dissolução das instituições romanas e das incursões nômades,
os homens do Ocidente latino caíram em uma obscuridade intensa uma vez que
a cultura, a civilização, as leis romanas teriam sucumbido junto com o Império.
Todavia, isso não se verificou. Ao contrário, foram preservados os costumes,
leis, política e saberes do mundo greco-latino. Essa preservação foi, inclusive,
condição da manutenção dos homens e um elemento essencial para a constituição das novas relações sociais. Nesse sentido, devemos destacar que a principal
instituição medieval da Alta Idade Média nasceu precisamente das entranhas do
mundo romano: a Igreja Católica.
O segundo exemplo localiza-se na passagem da Baixa Idade Média para o
mundo moderno. Supôs-se, frequentemente, que a ruptura entre essas duas épocas
históricas foi radical. Isto se deve ao fato de a historiografia apoiar-se, de um
modo geral, no olhar dos humanistas e renascentistas. Mas, trata-se de um olhar
enviesado destes autores, porque alguns – como Erasmo, Morus, Francis Bacon
– não destruíram por completo o mundo medievo. Por outro lado, conservaram
um dos aspectos mais essenciais desse tempo, que era o espírito de religiosidade.
Inclusive, deve-se notar, foi a partir desse espírito que fizeram formulações basilares para as novas relações sociais. Evidentemente combateram, incansavelmente,
as instituições do medievo, especialmente a Igreja, pois, esta se constituía em
obstáculo à nova ordem nascente: a Modernidade. No entanto, conservaram parte
de sua mentalidade, ou seja, a concepção cristã de homem. Cabe mesmo salientar
que, sob este aspecto, os autores da modernidade não foram os iniciadores dessa
luta. No passado (no século XIII, Tomás de Aquino e João de Quidort; Dante, na
virada do XIII; no XIV, Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham), encontramos
autores que explicitaram em seus escritos, uns com mais intensidade, outros com
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 109-128, jan./jun. 2012
Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
menos, a crítica à Igreja, particularmente, em relação ao fato de ela ser governante.
Logo, os autores do XVI e XVII prosseguem, com um olhar novo, um debate já
colocado na ordem do dia pelo menos quatro séculos antes.
Desse modo, o que podemos observar em Políbios, Tomás de Aquino e Guizot é que os problemas e os debates de um tempo presente certamente tiveram
seu início em outra época que não a da sua eclosão. Todavia, é neste presente
que os homens, por meio de suas relações sociais, do seu agir, se posicionam e
encontram, ou não, soluções para seus embates e crises.
Assim, se podemos perceber nesses autores uma preocupação ou, mesmo,
um entendimento da história a partir de processos de longa duração, no qual o
conhecimento do passado torna-se vital para as relações do presente, em escritos
de Marc Bloch, também aprendemos que a história se faz nesse diálogo constante
entre presente e passado. De acordo com Bloch, são as inquietações com e do
presente que nos tornam historiadores. Na passagem a seguir, na qual o autor
narra uma conversa com Pirenne, esta ideia é explicitada.
Já contei em outro lugar o episódio: eu estava acompanhando, em Estocolmo, Henri Pirenne.
Mal chegamos, ele me diz: “O que vamos ver primeiro? Parece que há uma prefeitura nova
em folha. Comecemos por ela”. Depois, como se quisesse prevenir um espanto acrescentou:
“Se eu fosse antiquário, só teria olhos para as coisas velhas. Mas sou um historiador. É
por isso que amo a vida”. Essa faculdade de apreensão do que é vivo, eis justamente, com
efeito, a qualidade mestra do historiador. Não nos deixamos enganar por certa frieza de
estilo, os maiores entre nós a possuíram todos: (...) E talvez ela seja, em seu princípio,
um dom das fadas, que ninguém pode pretender adquirir, se não o trouxe do berço. Nem
por isso ela deixa de precisar ser constantemente exercitada e desenvolvida. Como, senão,
assim como o próprio Pirenne, por um contato perpétuo com o hoje?3
Para o autor, o que transforma um estudioso da história não é o fato de conhecer o passado, mas inquietar-se com o presente, com o vivido do cotidiano. Ser
historiador é comprometer-se com os embates de seu tempo. Bloch vai além, a
nosso ver, ao afiançar que, ainda que a qualidade de historiador possa ser trazida do
‘berço’, contudo, a pessoa somente se torna, de fato, um profissional do ofício de
historiador se desenvolver a habilidade e sensibilidade para perceber o seu ‘hoje’.
Essa formulação é fundamental ao explicitar que os historiadores não deveriam se debruçar sobre o passado e viver dos acontecimentos antigos. Aliás,
3
BLOCH, Marc. Apologia da História, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001,
p. 65-66, grifo nosso.
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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
evidencia isso ao afirmar que quem gosta de ‘coisas velhas’ é o antiquário. O
historiador, por seu turno, cuidaria das coisas vivas.
Por conseguinte, é este vivo cotidiano que importa para o campo da história.
Todavia, esse presente é alterado a todo instante pelas atitudes e escolhas dos
homens. As pessoas mudam seus hábitos e costumes. Essas transformações são
próprias da natureza social. Mas, apesar disso, os homens conservam aspectos
essenciais que propiciam a permanência sua e da sociedade, que o autor define
como ‘fundo permanente’.
Já não pensamos hoje, realmente, como o escrevia Maquiavel, como o pensava Hume
ou Bonald, que há no tempo “uma coisa, pelo menos, que é imutável: o homem”. Aprendemos que também o homem mudou muito: no seu espírito e, provavelmente, até nos
mais delicados mecanismos do corpo. Como poderia ser de outro modo? Transformou-se
profundamente a sua atmosfera mental; e também a sua higiene, a sua alimentação. Convimos, todavia, em que existe na natureza humana e nas sociedades humanas um fundo
permanente. Se assim não fosse, os próprios vocábulos de “homem” e de “sociedade” não
significariam coisa nenhuma.4
De acordo com Bloch, as ações e relações dos homens se modificam sempre
e velozmente. Todavia, mantêm-se no tempo as noções de homem e de história
e, na medida em que são conservadas, possibilitam a permanência de estreitas
relações entre passado e presente, ou entre os ‘mortos e os vivos’. Para o autor,
o presente é muito efêmero e não há como negar isso. Os atos que praticamos
pela manhã, na metade do dia já se constituem em passado, e não podem mais
ser alterados. Entretanto, sempre preservamos o passado, seja em nossos atos,
seja interferindo em nosso pensamento.
Essas formulações tiveram grande repercussão, influenciando, inclusive, os
autores da Nova História, uma concepção de História que tem grande predileção,
segundo as definições de tempo de Braudel, pelo tempo curto. Todavia, em Bloch,
a história ainda é a da longa duração, possuindo características universalizantes.
Portanto, não há senão uma ciência dos homens no tempo e que incessantemente tem necessidade de unir o estudo dos mortos ao dos vivos. Como chamá-lo?
Já disse por que o antigo nome de história me parece o mais compreensivo, o
menos exclusivo, o menos carregado também das comoventes lembranças de um
esforço muito mais que secular: portanto, o melhor. Propondo assim estendê-lo,
contrariamente a certos preconceitos, aliás muito menos velhos do que ela, até o
4
BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-América, 1969, p. 42.
116
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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
conhecimento do presente, não buscamos – será preciso defender-nos? – nenhuma
reivindicação corporativa.
A vida é muito breve, os conhecimentos a adquirir muito longos para permitir, até para o
mais belo gênio, uma experiência total da humanidade. O mundo atual terá sempre seus
especialistas, como a idade da pedra ou a egiptologia. A ambos pede-se simplesmente
para se lembrarem de que compreenderá nada senão pela metade, mesmo em seu próprio
campo de estudos; e a única história verdadeira, que só pode ser feita através de ajuda
mútua, é a historia universal.5
Há que se considerar, todavia, na passagem, uma mudança entre o olhar de
Bloch e o dos autores anteriormente mencionados. Nele, a universalização da
história pressupunha o diálogo com diversos campos do conhecimento, como
a geografia e a antropologia. Sob este aspecto, ele inaugura um tempo novo da
história, dentre outras razões porque as mudanças sociais ocorridas no Ocidente, após a primeira guerra mundial, não permitiram mais uma compreensão da
história como os autores do século XIX, dentre eles Guizot, a concebiam. Os
tempos eram outros e as posições diante dos problemas sociais exigiam novos
olhares. Todavia, uma questão não pode ser ignorada: Bloch foi um autor da
transição entre a antiga concepção de história e a nova, que estava nascendo.
Sob esse aspecto, foi o liame entre as duas grandes tendências históricas dos
séculos XIX e XX. Assim, não podemos afirmar que ele é o novo, mas, também,
não podemos dizer que é o velho. Seus escritos espelharam precisamente o seu
tempo, um momento em que se deixava de praticar uma concepção totalizante
e universalizante da história, abrindo caminho para uma nova, dominada pelo
‘presentismo’. O próprio Bloch explicitou isso.
(...) nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do estudo de seu momento.
Isso é verdade para todas as etapas da evolução. Tanto daquelas em que vivemos como
das outras. O provérbio árabe disse antes de nós: “Os homens se parecem mais com sua
época do que com seus pais”. Por não ter meditado essa sabedoria oriental, o estudo do
passado às vezes caiu em descrédito.6
A questão que se coloca nesta passagem é o indicador dos novos horizontes para a história. Para Bloch, nunca poderemos compreender completamente
um acontecimento passado porque não vivenciamos o processo. Com efeito, o
5
6
BLOCH, Marc. Apologia da História, ou, ..., op. cit., p. 67-68.
BLOCH, Marc. Apologia da História, ou,..., op.cit., p. 60.
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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
episódio foi vivenciado por outros homens, com outras inquietações, por conseguinte, distintas das nossas. Todavia, o autor também nos chamou a atenção para
o fato de que os acontecimentos do presente não poderiam ser conhecidos na
sua totalidade em virtude de os mesmos não estarem ainda concluídos. Contudo,
ele nos aponta um caminho extremamente salutar para o ‘fazer’ da história, que
é procurar conhecer, o máximo possível, o tempo vivido do acontecimento, na
medida em que é dessa maneira que poderemos chegar ao conhecimento. Exatamente por isso indicava que conheceremos mais acerca de um tempo histórico
se soubermos como os homens se relacionavam do que se soubermos a árvore
genealógica do acontecimento em si.
Baseando-nos nas reflexões desses historiadores, teceremos algumas considerações sobre o trabalho material e intelectual em dois tempos medievos, quando de
seu nascimento e quando do amadurecimento das cidades nos séculos XII e XIII.
Os poucos registros que temos sobre o trabalho na primeira Idade Média
tratam diretamente das atividades no campo. Um dos historiadores do século XX
que analisou o trabalho desse período foi George Duby, em duas obras clássicas:
Guerreiros e Camponeses e Economia rural e vida no campo no Ocidente medieval. Nelas, o historiador explicitou a forma rústica e, em diversos aspectos, o
domínio da natureza sobre o homem.
Um primeiro facto, bem assente: na civilização deste tempo, o campo é tudo. Vastas regiões,
a Inglaterra e quase toda a Germânia, não têm uma única cidade. Mas existem noutras
regiões: antigas cidades romanas, menos profundamente degradadas no sul do Ocidente, ou
então pequenos burgos de comércio muito recente, acabados de nascer ao longo dos rios,
que correm para os mares do Norte. Salvo algumas excepções lombardas, estas “cidades”
parecem todas elas aglomerações irrisórias, que reúnem no máximo algumas centenas
de habitantes permanentes e vivem profundamente ligadas ao campo. Na verdade, nem
sequer se distinguem dele. Estão cercadas por vinhas, interpenetradas com os campos;
cheias de animais, celeiros e rapazes nos trabalhos da terra. Todos os homens, mesmo os
mais ricos, os bispos, os próprios reis, e os raros especialistas, judeus ou cristãos, que nas
cidades exercem o ofício do comércio a longa distância, todos eles permanecem rurais, e
sua existência é ritmada pelo ciclo das estações agrícolas, a sua subsistência depende da
terra-mãe, dela retirando no imediato todos os recursos.7
7
DUBY, George. Economia rural e vida no campo no Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70,
1987, p. 19-20.
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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
A passagem de Duby explicita que a vida, no início da Idade Média, transcorria no campo e era daí que o homem retirava sua subsistência. As poucas
cidades que permaneceram e as atividades nelas desenvolvidas somente existiam
devido ao campo. Mais adiante, o historiador nos chama a atenção para o caráter
rústico da vida nessa época, na medida em que as atividades eram limitadas e
dependiam dos ciclos da natureza.
Mal equipados, os homens consagravam todas as forças à produção da sua própria alimentação; o gado grosso vinha depois. Colhiam um pouco de folhagem, mas bem pouco,
o estritamente necessário para a subsistência, melhor ou pior, dos poucos animais que não
tinham sido mortos no Outono, durante os meses maus em que a natureza virgem pouco
oferece para o alimento dos animais. Mas na maior parte do ano, o gado alimenta-se sozinho,
ao ar livre, no espaço não vedado pelas cercas. (...) Eram, pois, necessários vastos campos
de pousio. E sentimos novamente porque razão cada aldeia, cada família, tinha necessidade
de uma área de subsistência muito extensa, que devia incluir, além de imensas terras de
pasto, um espaço arável muito superior à superfície utilizada em cada ano. Finalmente,
apesar destes longos repousos, os rendimentos continuavam a ser certamente muito fracos.8
O quadro esboçado por Duby nos descreve com clareza a situação do camponês: a vida era dependente diretamente do ciclo da natureza. A agricultura era
de cunho familiar e a produção, em virtude dos poucos instrumentos, se restringia quase à subsistência. Mesmo a criação de animais era limitada àqueles que
sobrevivessem às intempéries da natureza.
Em outra obra que tratou também da primeira Idade Média, Guerreiros e
Camponeses, Duby chamou a atenção para o nível tecnológico dos instrumentos
de trabalho.
Como poderemos identificar os objectos, a sua forma, o material de que eram feitos e seu
grau de utilidade através destes nomes? Que informação podemos colher de palavras como
aratrum, carruca, que são mencionados aqui e além, em todos os documentos escritos,
sempre lacônicos, que procuram descrever o trabalho no campo naquela época? Estes dois
termos, sem dúvida permutáveis, indicam simplesmente um instrumento puxado por uma
parelha e usado para arar.
O primeiro termo era preferido pelos escrivães mais cultos, porque provinha do vocabulário
clássico; o segundo traduzia mais literalmente a linguagem popular. O termo carruca pode
fazer pensar que este instrumento estava provido de rodas, mas não existe comentário que
nos permita verificar qual a acção da sua relha ou se se tornava mais eficiente pela atrelagem
de uma aiveca, isto é, se o lavrador dispunha de um verdadeiro arado, com capacidade de
8
Idem, Ibidem, p. 42-43.
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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
revolver e arejar completamente o solo, ou se simplesmente possuía um arado, cuja relha
simétrica apenas podia abrir o sulco sem virar o torrão.9
A situação dos instrumentos técnicos não apresentava um quadro diferente
do estado de sobrevivência no qual viviam os camponeses. Nem poderia ser
diferente, pois a forma de vida decorria, necessariamente, do grau de civilidade
atingido por esta população que estabelecia uma relação de interdependência com
os instrumentos de trabalho. A descrição feita por Duby do que seria o possível
arado e a charrua revela o caráter primitivo destes. Inclusive, sequer se sabe se
existia a possibilidade de serem atrelados a bois ou cavalos, tal o grau limitado
dos instrumentos e a fragilidade das fontes, segundo o próprio autor narrou.
Nesta mesma condição encontravam-se os utensílios domésticos.
Utensílios (utensilia): duas bacias de cobre, dois vasos de beber, dois caldeirões de cobre
e outro de ferro, uma panela, um gancho de panela, um cão de chaminé, uma candeia,
dois machados, uma enxó, dois verrumões, uma machadinha, um raspador, uma plaina,
um formão, duas foices grandes, duas foices pequenas, duas pás com ponta de ferro. Há
muitos utensílios de madeira.10
De acordo com a descrição do autor, os camponeses da primeira Idade
Média viviam parcamente sob as intempéries da natureza, com rudimentares
utensílios e poucos instrumentos de trabalho. Em última instância, a vida material
da população, em geral, era muito simples, fosse ela a dos camponeses ou dos
ricos, cristãos ou judeus. Todos tinham uma vida muito restrita. Dependiam da
natureza e, por isso mesmo, dependiam uns dos outros, não podendo viver de
maneira isolada. Habitavam aldeias ou pequenas comunidades, pois, os riscos
das incursões de outros povos, de ataques de animais e a pobreza eminente e
constante impunham relações de dependência mútua.
Se no âmbito da materialidade as condições eram frágeis e rudimentares, como nos relatou
Duby, no campo da vida espiritual a realidade não era diferente. Contudo, nem por isso
deixou de existir e, neste sentido, a religião cristã teve um papel fundamental.11
Sob esse aspecto, deve-se destacar a importância dos mosteiros na preservação
e divulgação da cultura nessa época. Segundo Ullmann, caso não tivessem existido,
9
10
11
DUBY, George. Guerreiros e Camponeses. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 25-26.
Idem, Ibidem, p. 27.
Em nossa tese de doutorado analisamos, com vagar, o papel do cristianismo e da Igreja na organização da civilidade ocidental neste tempo. O título da tese é Guizot e a Idade Média: civilização
120
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 109-128, jan./jun. 2012
Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
muitas obras da Antiguidade teriam desaparecido. “Salvaram-se, assim, muitas
obras, que, sem o labor persistente dos monges, para sempre teriam desaparecido.
Graças a eles, sobreviveram as humanidades clássicas”.12 As palavras de nosso
filósofo apresentam uma situação que é expressa, em geral, nos documentos da
época. Cassiodoro (485 – 580), em suas Instituições13, descreveu a importância
dos monges e dos mosteiros para a preservação e disseminação da cultura nesse
tempo do medievo.
Quanto a mim, eu vos manifesto minha predileção: entre as tarefas que podeis realizar
com esforço corporal, a dedicação dos copistas, se escrevem sem erros, é – e talvez não
injustamente – o que mais me agrada. Pois, relendo as Escrituras divinas, instruem de
modo salutar sua mente e copiando espalham por toda parte os preceitos do Senhor.14
De acordo com Cassiodoro, uma das mais importantes atividades laborais
dos monges era o trabalho de copista, pois mantinha suas mentes sãs e, ao mesmo
tempo, difundia as palavras da Sagrada Escritura.
Em um tempo em que a vida material dependia totalmente da natureza,
como vimos anteriormente, o estabelecimento de uma atividade cujo fito era a
preservação da memória dos homens de outros tempos implicava na existência,
ainda que de forma precária, de homens que se preocupavam com o saber, com
a escrita, que pautavam suas vidas pela intenção de preservar a cultura e a civilização. Em última instância, os homens do Ocidente medievo, por meio do
trabalho de seus copistas, conservavam o espírito de humanitas produzido no
passado.15 “(...) o pregar aos homens com a mão, abrir línguas com os dedos,
dar em silêncio salvação aos mortais e – com a cana e a tinta – lutar contra as
ilícitas insinuações do diabo”.16 As palavras de Cassiodoro dizem tudo sobre a
12
13
14
15
16
e lutas políticas. Departamento de história da UNESP, 1997.
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. As Universidades na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs,
2000, p. 37.
As referências e citações que faremos neste texto foram retiradas da introdução e tradução feita
pelo professor Jean Lauand em Cassiodoro e as Institutiones: o trabalho do copista.
CASSIODORO. Instituições. Capítulo 30. In: LAUAND, Jean Luiz. Cassiodoro e as Institutiones:
o trabalho dos copistas. Disponível em: http://www.hottopos.com. Acesso em: 18/09/2008.
As palavras de Kant não nos deixam dúvidas quanto à importância da escrita e de quanto de
civilidade ela possui em si. “Não é fácil conceber um desenvolvimento, partindo do estado rude
(daí também a dificuldade de formar uma ideia do primeiro homem); e vemos que, sempre que se
partiu deste estado, o homem sempre recaiu na rudeza e novamente se levantou a partir daí. Até
nos povos bastante civilizados reencontramos ausência de limites para a rudeza, o que é atestado
pelos mais antigos monumentos escritos, que nos foram legados – e que grau de cultura a escrita
já não supõe?” KANT, 1996, p. 21.
CASSIODORO, op. cit.
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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
importância da atividade dos copistas. O copista, sem sair do seu mosteiro, muitas vezes de sua cela, infundia e difundia a palavra sagrada. Aliás, é importante
destacar, tendo feito o voto de silêncio, difundia-a apenas com a mão e a tinta.
Com efeito, o silêncio era uma das características solicitadas e prezadas pelos
monges, portanto, a escrita era, praticamente, a única forma de comunicação.
(...) Os povos ouvem e podem renunciar à sua vontade perversa e servir o Senhor com
mente pura. Com seu trabalho, ele age, mesmo estando ausente.
(...) Muitas coisas podem se dizer desta tão ilustre arte, mas basta chamá-los de livreiros
[librarios], que se consagram à libra [balança] da justiça do Senhor.17
A atividade do copista resultou, com seu trabalho, em um bem para os homens. Preservou a cultura antiga, especialmente os escritos sagrados, mas não
se restringiu a isso. Difundiu o cristianismo, conservando a arte da escrita, já
conquistada pelos homens há muitos séculos e desenvolveu, segundo Cassiodoro, uma arte nova, dentro daquele contexto de crise e de submissão à natureza
no campo material, a dos livreiros. Esta nova arte, por seu turno, encontra-se
vinculada ao campo espiritual.
Na primeira Idade Média é possível destacar, no âmbito do trabalho material
e intelectual, estes aspectos e condições; nos séculos XII e XIII, o destaque é
outro. Trata-se de um cenário distinto, especialmente em regiões como a Gália,
a Bretanha e as Penínsulas Ibérica e Itálica. Nesses locais, o desenvolvimento
do sistema feudal impulsionou a vida material e mental do homem medieval de
forma bastante diversa daquela atestada no início do medievo.
Inúmeras são as obras historiográficas e documentos que revelam esse processo de desenvolvimento material e mental. Trata-se do momento do renascimento
das cidades, do surgimento das escolas citadinas e, em seguida, das universidades.
Personagens como o comerciante, o usurário, o mestre e a prostituta passam a
fazer parte da nova lista do trabalho.
Pirenne (1982), em sua obra História Econômica e Social da Europa Medieval18, destacou a figura dos artesãos, dos jornaleiros, ressaltou a importância dos
mercadores no desenvolvimento de uma sociedade ocidental medieval bastante
17
18
CASSIODORO. op.cit.
Sabemos, indubitavelmente, das severas críticas, muitas com fundamentação, feitas à tese de
Pirenne acerca de uma Idade Média fechada para as trocas comerciais entre os séculos VII e XII.
Todavia, também, consideramos relevantes os estudos que este autor belga fez sobre a Idade
Média e nos parece importante conservar seus ensinamentos no âmbito da história e historiografia
direcionadas ao medievo.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 109-128, jan./jun. 2012
Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
distinta daquela que a antecedeu. Um dos aspectos que julgamos relevantes para
nossa análise reside no fato de que, segundo o autor, o mercador do século XII
precisava saber ler e escrever.
O desenvolvimento dos instrumentos de crédito supõe necessariamente que os mercadores
sabiam ler. A atividade comercial foi, sem dúvida alguma, a causa da criação das primeiras
escolas para filhos de burgueses.19
Para dominar suas atividades, exigia-se dos comerciantes novas habilidades, dentre elas, a escrita. Além desta, essa nova atividade no Ocidente exigia
daqueles que a praticavam o conhecimento de línguas estrangeiras. Assim,
ainda que o latim continuasse sendo a língua mais conhecida, tornava-se cada
vez mais importante o conhecimento das línguas nacionais. Le Goff destacou,
em Mercadores e Banqueiros20, do mesmo modo que Pirenne, algumas décadas
depois, a importância da escrita e das línguas nacionais na prática do comércio.
Sob este aspecto é importante destacar que, grosso modo, a historiografia inglesa
e francesa do século XX, e mesmo a historiografia romântica francesa do século
XIX – com Guizot, Michelet, Cousin, Mignet, Thierry –, insistiram na importância das cidades, das atividades comerciais e artesanais para o desenvolvimento
de novas modalidades do trabalho no Ocidente medieval a partir do século XII.
Alertaram, ainda, que elas tiveram como resultado mudanças e um profundo
desenvolvimento nas estruturas materiais das relações sociais nessa época e
espaço social. Existe um elo que vincula essas interpretações: apontam o desenvolvimento das relações feudais como um fato importante para este processo de
mudança no trabalho material.
Exemplo notável deste processo é fornecido por Peter Haidu, na obra Sujeito
medieval/moderno, na qual apresenta as inovações na arquitetura militar como
decorrências do desenvolvimento do sistema feudal e do amadurecimento do
poder dos príncipes.
Nesta época, as transformações súbitas na arquitetura militar são revolucionárias. As
conquistas territoriais, a manutenção de novas fronteiras, levaram a novas exigências.
Augustus criou um corpo de engenheiros, desenvolveu uma nova arquitetura militar. Um
documento lista mais de uma dúzia de homens, a maioria dos quais com o título de Magister, tidos como encarregados da arquitetura de fortificações em regiões extremamente
19
20
PIRENNE, Henri. História Econômica e Social da Idade Média. São Paulo: Mestre Jou, 1982,
p. 129.
LE GOFF, Jacques. Mercadores e banqueiros da Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 109-128, jan./jun. 2012
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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
dispersas. As inovações arquitetônicas do período são explicadas em parte pelo estudo de
Vegetius, em parte pela análise das muralhas e fortificações clássicas. Essas construções
faziam parte de uma política coerente de conquistas por etapas, ocupação de territórios
conquistados e subsequente controle populacional. As políticas referentes aos castelos
eram semelhantes em ambos os lados do Canal.21
A passagem de Haidu explicita um dado importante: as mudanças no campo,
o renascimento das cidades e o fortalecimento dos poderes laicos propiciaram o
ressurgimento de atividades e desenvolveram profissões que, até então, não eram
necessárias à vida cotidiana dos homens medievais do Ocidente. A arte militar,
uma das mais antigas praticadas pelos homens, precisava de novos ofícios, de
arquitetos, de engenheiros para construir pontes, castelos, aprimorar caminhos.
A exigência dessas novas profissões implicava um grau de complexidade nas
atividades laborais muito diferente das exigidas na primeira Idade Média. Essa
complexidade decorria, necessariamente, do desenvolvimento material e mental
dos homens oriundos do sistema feudal e das cidades.
Mudança similar é detectada também no aspecto mental. Se no início da Idade
Média o ensino, a produção intelectual e a escrita estavam restritos à ambiência
do monastério – e nem poderia ser diferente em virtude das condições sociais
daquele tempo –, o florescimento das novas relações distintas exigia também
novos intelectuais, e eles surgiam22, em decorrência, inclusive, da permanência
dos intelectuais palacianos e monásticos ao longo de todo o medievo.
Ainda que possamos indicar muitos mestres como exemplos desse novo
modelo de homem de saber, ou intelectual, que proliferaram nessa época, destacaremos dois, por considerarmos expoentes significativos de seus respectivos
tempos históricos e ambiências. Trata-se de Hugo de São Vitor para o século XII,
mestre da escola Vitorina, uma das mais importantes da cidade de Paris, e Tomás
de Aquino, um dos maiores mestres da Universidade de Paris no século XIII.
Principiemos pelo mestre Vitorino e sua obra Didascálicon, cujo subtítulo
é, sintomaticamente, Da arte de ler.
21
22
HAIDU, Peter. Sujeito Medieval/Moderno. Texto e governo na Idade Média. São Leopoldo: Ed.
Unisinos, 2005, p. 271-272.
Quando mencionamos o surgimento de novos intelectuais não estamos afirmando que não havia
mestres e alunos em tempos anteriores no Medievo ocidental, nossa ideia é justamente o oposto.
Contudo, assistimos neste momento ao nascimento de mestres citadinos, que passam a viver e
ser custeados no e pelo ensino.
124
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 109-128, jan./jun. 2012
Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
Aqueles que se dedicam ao saber teórico devem dispor de inteligência e de memória ao
mesmo tempo, coisas que em qualquer estudo ou disciplina estão tão conexas que, se uma
faltar, a outra não pode conduzir ninguém para a perfeição, da mesma forma que os lucros
servem para nada se faltar o armazenamento e inutilmente constrói armazéns aquele que
tem nada para guardar. O engenho descobre e a memória custodia a Sabedoria.23
Ao descrever as duas primeiras qualidades concernentes ao saber teórico no
homem, a inteligência e a memória, e ao fazer uma analogia com a finalidade
do armazenamento de produtos e do lucro, o mestre Vitorino revelou claramente que nas duas atividades – o estudo e a produção de alimentos – os homens
deveriam estar municiados das habilidades necessárias e saber, com discernimento, a finalidade de suas ocupações. O homem não aprenderia se não usasse
a inteligência e a memória do mesmo modo que a finalidade do comércio não se
realizaria caso não houvesse produtos e locais de armazenamento. Hugo de São
Vitor estabeleceu essa relação entre as duas atividades com naturalidade, pois
as encarava como inerentes ao homem: ao homem eram necessários o trabalho
intelectual e o material.
Em outra passagem estabeleceu idêntica relação entre o trabalho intelectual e
o material “(...) a teoria racional da agricultura é coisa do filósofo, sua execução
é coisa do camponês”.24 Fica patente que, para o mestre, havia a necessidade da
aliança entre aquele que pensava o trabalho e aquele que o realizava. Explicitou,
por isso, que quem investigava e melhorava as possibilidades da agricultura era
o filósofo, mas quem a executava era o camponês. Hugo de São Vitor mostrou,
assim, a divisão do trabalho.
Dando sequência às suas reflexões, ele destacou a importância do intelecto
para o desenvolvimento do homem, por conseguinte, das suas atividades. Neste
sentido, fez uma comparação importante entre os animais que não possuem
capacidade cognitiva e os homens.
Não foi sem razão que, enquanto cada um dos seres animados possui por nascença as armas
de sua própria natureza, somente o homem nasce sem armas e nu. Foi conveniente que a
natureza provesse àqueles que não conseguem prover a si mesmos, enquanto ao homem
foi reservada uma maior oportunidade de experimentar, ao ter que encontrar para si com
a razão aquilo que aos outros é dado naturalmente.
23
24
HUGO DE SÃO VITOR. Didascálicon. Da arte de ler. Petrópolis: Zahar, 2001, L. III, c. 7, § 1.
Idem, Ibidem, L. I, c. 4, § 2.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 109-128, jan./jun. 2012
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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
Muito mais brilha a razão do homem inventando estas mesmas coisas, de quanto teria
resplandecido se já as tivesse. Não sem razão o provérbio reza que: A fome engenhosa
forjou todas as artes.25
A partir das palavras desse mestre citadino do século XII, fica-nos patente que
os homens sobreviviam e desenvolviam suas habilidades e as mais diversas atividades porque possuíam a possibilidade de usufruir de sua inteligência. Era ela que
permitia que os homens criassem coisas, imitassem a natureza e a subordinassem,
de acordo com suas necessidades. A frase destacada pelo autor é de fundamental
importância, pois revela que o homem, diferentemente dos demais animais, não
consegue prover suas necessidades e sobreviver se não usar da arte, ou seja, se
não criar artes que satisfaçam as suas exigências, por meio do intelecto. Por
conseguinte, em última instância, é o uso do intelecto que faz com que o homem
crie instrumentos e ‘forje’ meios para suprir suas necessidades materiais básicas.
Em suma, o mestre Vitorino, na escola do século XII, ensinou e depositou
no intelecto humano a possibilidade da criação das artes.
Para Tomás de Aquino – mestre da Universidade no século XIII, no texto Unidade do intelecto contra os averroistas –, por seu turno, o intelecto era o próprio
homem “(...) ora, a operação própria do homem, enquanto é homem, consiste em
pensar, pois é nisto que difere dos animais, e por isso é que Aristóteles deposita
a última felicidade nessa operação”.26 Do seu ponto de vista, era o intelecto que
fazia o homem se diferenciar dos demais animais e se aproximar da quase perfeição divina, na medida em que a alma pensava por meio do intelecto.
É de facto evidente que este homem em concreto pensa, pois nunca chegaríamos a
procurar saber o que é o intelecto se não pensássemos; nem quando procuramos saber o
que o intelecto é de nenhum princípio mais procuramos saber senão daquele pelo qual
pensamos. Daí que Aristóteles diga: “Chamo intelecto àquilo pelo qual a alma pensa”.
Portanto, Aristóteles conclui que se há um princípio primeiro pelo qual pensamos ele deve
ser a forma do corpo, pois já tinha demonstrado antes que a forma é aquilo pelo qual em
primeiro lugar alguma coisa age.27
Para o mestre Aquinate, as atividades humanas existiam e os homens podiam
aprender e ensinar da mesma maneira que os anjos e Deus exatamente porque
pensavam e faziam uso do pensar para tornar suas habilidades, que existiam
25
26
27
Idem, Ibidem, L. I, c. IX, §. 4, destaque do autor.
TOMÁS DE AQUINO. A Unidade do Intelecto contra os Averroístas. Lisboa: Edições 70, c. III, § 77.
Idem, Ibidem, c. III, § 61.
126
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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
enquanto potência, em ato. Era a capacidade do pensar que permitia a capacidade cognitiva do homem dirigir sua ação para coisas justas ou injustas. Era esta
possibilidade intelectiva que conduzia os homens à prudência, que possibilitava
a existência de governos justos e equitativos. Para o mestre Tomás, o intelecto
humano era o grande motor da existência dos homens.
Após essas análises dos mestres citadinos quanto à importância do desenvolvimento intelectual dos homens para a construção de novas habilidades e
atitudes diante da vida contemplativa e material, retomaremos, para concluir
nossas considerações, dois autores da historiografia contemporânea que nos
apontam para as mudanças que ocorreram nas cidades e que impuseram aos
homens trabalhos distintos daqueles que existiam antes da ambiência citadina
no Ocidente medievo.
Mariateresa F. B. Brocchieri, no artigo Intelectual, salientou o fato de que
a vida na cidade criou diversas modalidades do trabalho. Dentre elas, uma, até
então desconhecida como trabalho para os medievos, o ensino.
A estrutura e a vida das cidades eram, agora, regidas por um trabalho especializado e
subdividido e o ensino era mais um desses trabalhos, como as actividades artesanais e
comerciais. Tornava-se, portanto, necessária uma definição precisa do ensino, o que foi
feito, mediante a indicação das tarefas, das vantagens e das áreas em que essa actividade
podia ser exercida e dos tempos de trabalho do docente e do estudante.28
Na cidade, o ensino deixou de ser um dom divino e passou a ser regido como
atividade dividida em tarefas, tal como as demais atividades. Com efeito, as Universidades foram organizadas, no século XIII, do mesmo modo que as demais
atividades artesanais, ou seja, sob a forma de corporação de ofício.
Da mesma maneira que essa autora, Le Goff já tinha chamado a atenção para
essa questão na obra Intelectuais na Idade Média. O renomado medievalista
francês afirmou que: “As escolas são oficinas de onde se exportam as ideias,
como se fossem mercadorias”.29 Mais adiante, na obra, enfatizou:
(...) o intelectual, no seu lugar, com as suas aptidões específicas, deve colaborar no trabalho criador que se elabora. Não tem como instrumento apenas o espírito, mas também
28
29
BROCCHIERI, Mariateresa Fumagalli Beonio. O Intelectual. In: LE GOFF, Jacques. O homem
medieval. Lisboa: Presença, 1989, p. 128.
LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva, 1984, p. 66.
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Terezinha OLIVEIRA. Considerações sobre o trabalho na Idade Média.
os livros que são a sua ferramenta de operário. Como nos afastamos, com eles, do ensino
oral da Alta Idade Média!30
O intelectual descrito por Le Goff é um profissional que criava e exercia
sua atividade do mesmo modo que os demais profissionais de ofícios. Como
os demais trabalhadores, possuía, também, instrumentos próprios de seu ofício,
como a habilidade proveniente de seu intelecto cognitivo e o livro, que era o
instrumental de seu labor. O próprio Le Goff salientou a diferença e a distância
entre estes intelectuais e os primeiros mestres do medievo, os monges e copistas,
como mencionamos anteriormente.
Para concluirmos, consideremos alguns aspectos que arrolamos ao longo da
nossa análise. O primeiro diz respeito à importância de se considerar a história
pelo caminho da longa duração e aprendermos sempre com o passado, não para
o copiarmos, mas para que nos sirva de exemplo. O segundo, derivado do primeiro, relaciona-se com o fato de, pela longa duração, podermos compreender
as mudanças que ocorreram na história e, por conseguinte, ainda que uma época
permaneça por séculos, como foi a Idade Média, produziu uma diversidade imensa
de homens, de relações e de profissões. Por fim, o aspecto, mais importante de
nossa discussão reside no fato de que o homem é um todo, formado pelo material
e pelo mental. Não podemos, portanto, conceber que uma forma de trabalho é
superior a outra, ou seja, é a junção do trabalho material e intelectual que constrói
o homem e todas as suas artes.
Recebido: 13/04/2011 – Aprovado: 02/09/2011
30
Idem, Ibidem.
128
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 109-128, jan./jun. 2012
BULAS INQUISITORIAIS:
AD ABOLENDAM (1184) E
VERGENTIS IN SENIUM (1199)*
Leandro Duarte Rust
Universidade Federal de Mato Grosso
Resumo
Neste trabalho apresentamos numa tradução bilíngue, latim-português, dois importantes documentos medievais, as decretais Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium
(1199). Usualmente qualificadas como “textos fundadores da Inquisição”, essas bulas
são documentos valiosos do cenário político de fins do século XII. A tradução, inédita
em língua portuguesa, é acompanhada de breve texto introdutório e alguns apontamentos para pesquisa.
Palavras-Chave
documentos medievais • bulas inquisitoriais • história política.
Contato:
Universidade Federal de Mato Grosso
Departamento de História
Av. Fernando Corrêa da Costa, nº 2.367
78060-900 – Cuiabá – MT
E-mail: [email protected].
* Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq. Prezado leitor: todas as citações realizadas e que
emergem neste texto desacompanhadas de referências integram os textos traduzidos ao final.
Agradeço, imensamente, ao Professor Doutor José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza pela
minuciosa revisão destas traduções. Se o diabo está nos detalhes, como diz o velho ditado popular
inglês, devo dizer que este pequeno trabalho foi “exorcizado” pelo professor José Antônio.
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INQUISITORIAL BULLS:
AD ABOLENDAM (1184) AND
VERGENTIS IN SENIUM (1199)
Leandro Duarte Rust
Universidade Federal de Mato Grosso
Abstract
In this paper we present two important medieval documents, the decretals Ad Abolendam (1184) and Vergentis in Senium (1199), in a bilingual edition, Latin-Portuguese.
Usually described as “the founding texts of the Inquisition”, these bulls record the
political scene at the end of the 12th century. Unpublished in Portuguese, the translation
comes to public with a brief introductory text and some notes for historical information.
Keywords
medieval documents • inquisitorial bulls • political history.
Contact:
Universidade Federal de Mato Grosso
Departamento de História
Av. Fernando Corrêa da Costa, nº 2.367
78060-900 – Cuiabá – MT
E-mail: [email protected].
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 129-161, jan./jun. 2012
Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
A vitória não amanheceu em triunfo. Foi o que descobriu o pontífice Lúcio
III com o passar dos anos. Após duas longas e penosas décadas de conflito, a paz
selada entre o Papado e o Império na cidade de Veneza, nos idos de 1177, não
calou as contestações lançadas contra o Trono de Pedro. Na ocasião, Frederico I
finalmente curvou sua recusa de mais de vinte anos e reconheceu Alexandre III
como legítimo papa. Mas o gesto não embalou qualquer atitude de rendição da
corte teutônica. Sete anos transcorreram e o Hohenstaufen continuou a pressionar
e a perturbar o Papado com demandas que sobressaltavam o espírito de Lúcio,
escolhido pelos cardeais como sucessor de Alexandre.1
No Lácio, tudo em redor da Sé Romana persistia ameaçador. Os exílios de
Alexandre, sucessivamente empurrado para longe pelo inclemente conflito com
o Império, abriram caminho para a afirmação de um governo comunal almejado
em Roma há décadas. Quando retornou de suas prolongadas ausências, o pontífice encontrou a “Cidade dos Apóstolos” regida por agudo anticlericalismo.
Encurralado pela oposição romana, ele se viu completamente dependente daquele
que fora até então o seu maior adversário, Frederico I. Para chegar à basílica de
São Pedro e ao Palácio Lateranense, o séquito papal teve de ser escoltado por
Cristiano, arcebispo de Mainz. A Cúria permaneceu em Roma enquanto o odiado
arcebispo, homem de armas dos Hohenstaufen, fez jus à terrível reputação de
“criminoso” (nefarii) e se pôs a “difundir muitos males”.2 Cristiano ateou suas
tropas sobre as áreas vizinhas e aterrorizou os cinturões rurais da Cidade Eterna
1
2
A Paz de Veneza deixou inconclusa uma questão de primeira ordem para a política papal: a reivindicação imperial da herança patrimonial deixada pela Condessa Matilde, que incluía áreas extensas
e estratégicas no norte peninsular. Após sua eleição em 1181, Lúcio recusou todas as ofertas para
o reconhecimento da legítima posse imperial das terras matildinas, desgastando seriamente as relações com o monarca “Barba Ruiva”. Além disso, o entendimento entre eles era ainda dificultado
pela resistência papal em consentir com as solicitações imperiais de uma ampla aprovação pontifícia para a investidura de bispos germânicos, ocorridas durante o cisma vivido por Alexandre III.
Neste sentido, é possível afirmar que ao longo dos anos as recusas de Lúcio foram tomando a forma
de uma política anti-imperial: ROBINSON, Ian Stuart. The Papacy: 1073-1198. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 497-503. Ver ainda: PARTNER, Peter. The Lands of St Peter: the
papal state in the middle ages and the early renaissance. Londres: Methuen, 1972, p. 171-245; WALEY, Daniel. The Papal State in the Thirteenth Century. Londres: MacMillan & Co., 1961, p. 5-22.
Christianus cancellarius imperatoris Frederici, qui multa mala Tuscis intulit. ANNALES PISANI.
MGH SS 19: 265. Em outras palavras, a permanência de Alexandre em Roma dependia das
mesmas ações que seus partidários até então condenavam veementemente como responsáveis
pelos “dias terríveis” do cisma. A Vita Alexander III Papae até então apontava a violência das
campanhas imperiais empreendidas na península como o sopro de uma destruição quase inigualável que tornou insustentável a estadia do papa no Lácio. O texto evoca a ferocidade das tropas
germânicas como causa que intimidou os espíritos até então fiéis à autoridade petrina. CARDEAL
BOSO. Vita Alexander III. Liber Pontificalis 2: 414.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 129-161, jan./jun. 2012
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
com constantes ataques e pilhagens. Graças à proteção assim obtida, o papa pôde
reunir um concílio na basílica de São João de Latrão, em março de 1179. Mas,
quando as intrigas locais levaram à captura de Cristiano, lançando-o em cativeiro
por longo tempo, Alexandre teve de deixar Roma uma vez mais e faleceu, em
exílio, em agosto de 1181.3
O pacto de 1177 dera à luz uma paz machucada, franzina. Desde então, Lúcio
via seus receios se multiplicarem, ceifando as esperanças semeadas pela reconciliação com o Império. As incertezas ferviam o juízo daquele prelado experiente,
calejado por mais de trinta anos de cardinalato. A vitória de seu antecessor era
uma promessa de segurança que teimava em não concretizar-se por inteiro. Ele
esperava por definições que pareciam desaguar na impotência. Desde a saída de
Roma, a Cúria perambulava pela península: todo seu governo seria vivido no
exílio, em Velletri, Anagni e, por fim, Verona. O próprio Frederico I tirou proveito
da visível dependência política da Sé Apostólica, ao transformar a estadia do
Papado nesta última cidade em um conveniente confinamento. Arfando sua vulnerabilidade, Lúcio tornou-se refém das garantias estendidas pelo imperador, que
soube penhorar seu apoio como um meio de manter o séquito pontifício em Verona, sob atenta vigilância e privado de livres comunicações com a Cristandade.4
Acuado naquelas cidades, o papa se viu ainda rodeado por outro perigo: a
“heresia”. Dominado por paisagens dinâmicas, que sobejavam em riquezas e em
circulação de homens e ideias, o norte peninsular tornou-se palco de intensas
transformações sociais e projetou novos grupos laicos. O exílio forçou Lúcio a
travar um face a face com a nova realidade de práticas, ideias e aspirações fomentadas pelos agudos contrastes sociais urbanos, comumente arredios aos preceitos
hierárquicos da eclesiologia papal.5 À medida que o tempo passava tais grupos
se insinuavam cada vez mais nos quadros das elites senhoriais. Enraizavam sua
presença nos espaços públicos, nos postos de autoridade.6 Suas pregações e seu
3
4
5
6
MUNZ, Peter. Frederick Barbarossa: a study in medieval politics. Ithaca: Cornell University
Press, 1969, p. 363.
ZERBI, Piero. Un inedito dell Archivio Vaticano e il Convegno di Verona. Aevum, n. 28, 1954,
p. 470-48. Ver ainda: FIGUEIRA, Robert C. (Ed.). The Plenitude of Power: the doctrines and
exercise of authority in the Middle Ages – essays in memory of Robert Louis Benson. Aldershot:
Ashgate, 2006, p. 38; BOLTON, Brenda; DUGGAN, Anne J. (Org.). Adrian IV: the english pope
(1154-1159). Aldershot: Ashgate, 2003, p. 135-137.
DEAN, Trevor. The Towns of Italy in the Later Middle Ages. Manchester: Manchester University
Press, 2000, p. 68-75; ABULAFIA, David. Italy in the Central Middle Ages: 1000-1300. Oxford:
Oxford University Press, 2004, p. 9-12; CAMERON, Euan. Waldenses: rejections of holy church
in medieval Europe. Oxford: Blackwell, 2000, p. 37-48.
LANSING, Carol. Power & Purity: Cathar heresy in medieval Italy. Oxford: Oxford University
132
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 129-161, jan./jun. 2012
Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
modo de vida deixavam em difícil situação a obediência à autoridade apostólica.
Vendo-se no limiar de um nevoeiro de fraquezas, Lúcio aferrou-se à sua voz de
legislador e em 4 de novembro de 1184 anunciou um conjunto de instruções
contra os hereges.7 O texto, proclamado diante do plenário eclesiástico reunido
em Verona, ficou conhecido entre os historiadores como a bula Ad Abolendam.
É o primeiro documento aqui traduzido em versão bilíngue.
Suas palavras depositavam nos bispos as prerrogativas de erradicação da
“depravação das heresias”: tudo o que dizia respeito à missão de localizar, corrigir e punir os violadores da unidade cristã estaria atrelado ao juízo daqueles
prelados. Duas vezes por ano caberia a eles percorrer as paróquias e desentocar
“todos que não receiam sentir ou ensinar algo distinto do que a sacrossanta igreja
romana prega e observa”. Segundo a bula, os procedimentos de investigação e
punição pertenciam à jurisdição dos bispados. Portanto, a Ad Abolendam pode
ser considerada o registro de uma característica que costumamos recobrir com
esquecimento: os procedimentos judiciais (inquisitiones) estabelecidos por ela
foram instituídos pelo Papado, mas estavam politicamente constituídos como uma
instituição episcopal. Por conseguinte, formavam uma descentralizada e intricada
rede de poderes particulares e interesses locais. Tal autonomia não desapareceria
nas décadas seguintes. A história inquisitorial seguiu marcada pelas fortes tensões
oriundas desta articulação de diferentes instâncias decisórias, desta junção de
lideranças amiúde divergentes, como demonstraram Henry Charles Lea, Mariano
Alatri, Edward Peters, James Buchanan Given e Michael Thomsett.8 Em páginas
referenciais, John Tedeschi advertiu: “the Inquisition, far from being a monolithic
7
8
Press, 1998, p. 11; MILLER, Maureen Catherine. The Bishop’s Palace: architeture & authority
in medieval Italy. Ithaca: Cornell University Press, 2000, p. 164-165.
FRIEDBERG, Emil (Ed.). Corpus Iuris Canonici: pars secunda Decretalium Collectiones. Graz:
Akademische Druck-U. Verlagsanstalt, 1959, p. 780-782. E ainda: HEFELE, Charles Joseph;
LECLERCQ, Henry. Histoire des Conciles aprés les documents originaux. Paris: Letouzey et
Ané, 1912-1915, tomo 5/2, p. 1087-1095, p. 1116-1127; WATTERICH, Johann Matthias. (Ed.).
Pontificum Romanorum Vitae qui fuerunt inde ab exeunte saeculo IX usque ad finem saeculi
XIII. Leipzig: 1860-1862, vol. 2, p. 658.
LEA, Henry Charles. A History of the Inquisition of the Middle Ages. Londres: Harper & Brothers, 1887, p. 1-23; ALATRI, Mariano. Eretici e inquisitori in Italia: studi e documenti. Brindisi:
Collegio San Lorenzo da Brindisi, Istituto Storico dei Cappuccini, 1987, v. 1, p. 125; PETERS,
Edward. Heresy and authority in medieval Europe: documents in translation. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1980, p. 189; GIVEN, James B. Inquisition and Medieval Society:
power, discipline & resistance in Languedoc. Ithaca/Londres: Cornell University Press, 1997;
THOMSETT, Michael C. The Inquisition: a history. Jefferson: McFarland & Co., 2010, p. 11-16.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 129-161, jan./jun. 2012
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
structure, was an institution which experienced development and change, in terms
of organization, procedures and definitions of the law”.9
O austero texto proclamado por Lúcio impressiona. Não sem razão; afinal,
tratava-se de um filho pródigo do racionalismo letrado do século XII. Herdeiro
de dezenas de cânones anti-heréticos presentes no Decretum de Graciano10 e das
medidas proclamadas por Alexandre III nos Concílios de Tours (1163) e de Latrão
(1179),11 seu texto enrijeceu as medidas relativas à denúncia, à excomunhão e ao
confisco de bens dos “claramente surpreendidos em heresia”.
Com linguagem áspera, a bula declarou sanções não somente contra a heresia
em si, mas direcionadas a um espectro maior de comportamentos dissidentes.
Não bastava endireitar uns poucos espíritos desviantes. Era preciso desbaratar o
nicho que os abrigava, arrancar em toda extensão as raízes de sua “insolência e
falsidade”. Por isso as penas canônicas deveriam recair também sobre os “acolhedores e protetores, todos que de alguma forma oferecem apoio ou favor aos
mencionados hereges”, e a classificação como herege deveria tingir todos que
se negassem a jurar o que fosse exigido pelo arbítrio do bispo.
Imbuída dos rigores da razão letrada, a bula ganhou outra singularidade: ela
não se limitou a identificar os acusados de heresia de maneira genérica, referindo-se a eles como uma indistinta massa de transgressores. A Ad Abolendam os distinguiu em grupos, enumerando-os nominalmente como “Cátaros, Patarinos, os
Humilhados ou Pobres de Lyon, Passaginos, Josefinos e Arnaldistas”. Ela declinou
as identidades heréticas. Porém, ao embaralhá-las na mesma condenação seu texto
revestiu a política papal com uma aparente coerência, fazendo ver uma rejeição
9
10
11
TEDESCHI, John. Preliminary Observations on Writing a History of the Roman Inquisition. In:
CHURCH, F. F. & GEORGE, Timothy (Ed.). Continuity and Discontinuity in Church History.
Leiden: Brill, 1979, p. 239.
Cabe ressaltar que o próprio Decretum sintetizava uma longeva trajetória de elaborações canônicas,
incluindo o Decretum de Burchard de Worms, o Panormia de Ivo de Chartres, a Collectio Canonum do cardeal Deusdedit e o texto homônimo de Anselmo de Lucca. GALLAGHER, Clarence.
Canon Law and the Christian Community. Roma: Università Gregoriana Editrice, 1978, p. 185;
WINROTH, Anders. The Making of Gratian’s “Decretum”. Cambridge: Cambridge University
Press, 2000, p. 34-78.
Sobre a Assembleia Eclesiástica de Tours: CARDEAL BOSO. Vita Alexander III. Liber Pontificalis 2: 407-412; FRIEDBERG, Emil (Ed.). Quinque Compilationes Antiquae. Leipzig: Bernhard
Tauschnitz, 1882, p. 56. Ver ainda: SOMERVILLE, Robert. Pope Alexander III and the Council of
Tours. Los Angeles: University of California Press, 1977. Sobre o Concílio de Latrão: MANSI, Johannes D. (Ed.). Sacrorum Conciliorum Nova et Amplissima Collectio. Graz: Akademische Druck,
1961, tomo 22, col. 217-223; HEFELE, Charles Joseph; LECLERCQ, Henry. Histoire des Conciles
aprés les documents originaux. Paris: Letouzey et Ané, 1912-1915, tomo 5/2, p. 1087-1095 ; FOREVILLE, Raymonde. Lateranense I, II y III. Vitoria: Eset, 1972, p. 172-294; LONGÈRE, Jean. Le
Troisième Concile de Latran (1179): sa place dans l’histoire. Paris: Études Augustiniennes, 1982.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
integral e inflexível lá onde havia constantes oscilações das atitudes perante
estes mesmos grupos, por vezes tolerados e noutras até mesmo encorajados.12
Esta atenção às funções representativas dos nomes dos grupos heréticos, somada
à promulgação da bula em um ambiente sinodal – como uma constituição não
apenas do papa, mas do conjunto da Igreja romana, reunido em assembleia –,
consolidou uma importante inflexão jurídica: impôs a plena categorização legal
da heresia como crime capital e público, razão suficiente para legitimar diversas
ações de marginalização e expropriação dos acusados, antes mesmo da formalização das sentenças. Como relembrou Frances Andrews, a autoridade pontifícia
delineou os nomes heréticos de modo a torná-los categorias através das quais as
consciências comunitárias cristãs deveriam reconhecer a identidade do desvio,
do esfacelamento do pertencimento coletivo, enfim, do alheamento à identidade
religiosa então partilhada.13 Estas e outras características justificariam a reputação
deste documento como tendo sido, à época, “the most elaborate juridical statement
concerning the treatment of heretics made to that date by the Latin Church”.14
Todavia, é preciso não se deixar seduzir pela rispidez e firmeza da linguagem papal. Como indicamos nas páginas acima, a virulência das palavras de
Lúcio III não deve ofuscar a preocupante realidade que enchia suas entrelinhas,
impregnando-as de limitações políticas e de uma vulnerabilidade inquietante.
A Ad Abolendam ganhou contornos em meio ao cerceamento do governo
papal, que só repousava quando se acomodava nas dobras da hegemonia imperial.
12
13
14
Sobre as a trajetória do conceito de “cátaros” e seu controverso emprego por parte dos historiadores ver: MACEDO, José Rivair. Heresia, Cruzada e Inquisição na França Medieval. Porto
Alegre: EDPUCRS, 2000. A Ad Abolendam é diretamente responsável por converter o nome
“Patarino” em sinônimo de “Cátaro”, algo para o qual não se tem registros documentais precedentes. Ao fazê-lo, ela imprimiu inequívoca classificação herética a um movimento ao qual o
papado esteve estritamente associado durante o século XI, inclusive como aliado imprescindível
na realização da assim chamada “Reforma Papal”. HAMILTON, Janet; HAMILTON, Sarah;
HAMILTON, Bernard (Eds.). Hugh Eteriano: Contra Patarenos. Leiden: Brill, 2004, p. 9-10.
Sequer é preciso examinar a aplicação ou a vigência da Ad Abolendam para reconhecer, como
indicou Jennifer Kolpacoff Deane, que o próprio texto da bula de 1184 acabava por implicar em
repercussões diversas para os grupos mencionados, tal era o caso de, por exemplo, os “Catáros”
e os “Valdenses”. Ver: DEANE, Jennifer Kolpacoff. A History of Medieval Heresy and Inquisition. Lanham: Rowman & Littlefield Co., 2011, p. 68. Uma opinião divergente é apresentada
em: FRASSETTO, Michael. Heretic Lives: medieval heresy from Bogomil and the Cathars to
Wyclif and Hus. Londres: Profile Books, 2007, p. 67-71.
ANDREWS, Frances. Self-representation in time of crisis: the case of early Humiliati. In: MÜLLER, Anne; STÖBER, Karen (Eds.). Self-Representation of Medieval Religious Communities.
Berlim: LIT Verlag Münster, 2009, p. 221; ANDREWS, Frances. The Early Humiliati. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999, p. 38-98.
PETERS, Edward. Inquisition. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1989, p. 48.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
É preciso dar ouvidos a Lúcio e à declaração, gravada no próprio documento,
de que ele e seu séquito se encontravam “sustentados com a força de nosso filho
caríssimo, Frederico, ilustre imperador dos romanos, sempre augusto”. Tais
palavras foram mais do que fórmula de estilo ou deferência retórica: neste caso,
elas podem ser tomadas como verdadeira avaliação política. Portanto, talvez seja
o momento de dar razão a Peter Diehl e reconhecer o ríspido texto de 1184 como
um “diploma imperial” tanto quanto uma bula – futuramente uma decretal – e
não um documento papal em sentido estrito.15 As referências ao imperador não
seriam alusões a um “auxiliar”, um mero “protetor” ou “colaborador” recrutado
para aplicar as sanções estipuladas. Personificados na figura de Frederico I, os
poderes seculares evocados na bula não estariam limitados ao subordinado papel
de “braço secular” da abolição das heresias, como afirmou R. H. Helmholz em
estudo notável.16 A Ad Abolendam emergia da autoridade imperial, seu texto expressa a interpenetração medieval dos poderes temporal e espiritual. Tratava-se,
por assim dizer, de uma “bula do imperador”, não exclusivamente do pontífice:
um “estatuto simultaneamente imperial e eclesiástico”.
Aliás, quando nos voltamos para os domínios temporais do Papado – o Patrimônio de São Pedro –, constatamos sua flagrante incapacidade em fazer valer
a decretal de 1184. Os sucessores de Lúcio zelaram por sua incorporação na
primeira grande coletânea de decretais, conhecida como Compilatio I e composta
por Bernardo de Pávia entre 1188 e 1192;17 mas seu fracasso em alojá-la nos
domínios efetivos da política era retumbante, como demonstra o caso sintomático
apresentado a seguir.
Entrincheirada num formidável sítio militar, Orvieto foi a primeira comuna
italiana da qual se teve notícias da presença dos cátaros, expressamente condenados pela Ad Abolendam. Logo no início de seu pontificado, em abril de 1198,
15
16
17
DIEHL, Peter. Ad abolendam (X 5.7.9) and Imperial Legislation against Heresy. Bulletin of
Medieval Canon Law, vol. 19, 1989, p. 1-11.
HELMHOLZ, R. H. The Spirit of Classical Canon Law. Athens: University of Georgia Press,
1996, p. 363. Diferentemente de Helmolz, chegamos à perspectiva de que a vinculação do documento à autoridade de Frederico I, somada às circunstâncias de sua promulgação, atuaram como
uma formalização da Ad Abolendam como um texto oficialmente vigente como uma lei imperial:
razão pela qual recorremos à improvável expressão “diploma imperial”, embora saibamos que
tal caracterização seja incompatível tanto com os princípios técnicos como com os jurídicos da
usual classificação documental aplicada aos resquícios escritos do período.
FRIEDBERG, Emil (Ed.). Quinque Compilationes Antiquae. Leipzig: Bernhard Tauschnitz, 1882,
p. 226. Ver ainda: MÜLLER, Wolfgang; SOMMAR, Mary (Eds.). Medieval Church Law and
the Origins of the Western Legal Tradition. Washington: Catholic University of America Press,
2006, p. 154-158.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
Inocêncio III pôs a cidade sob interdito. Embora fosse cada vez mais frequente, a
medida era drástica, pois consistia na “formalização coletiva da máxima culpa”,
segundo a afortunada expressão cunhada por Peter Clarke.18 Os “ofícios divinos”
deveriam cessar; missas, sermões e horas canônicas deveriam ser suspensos; os
templos permaneceriam fechados; os sacramentos celebrados em segredo, quando
muito.19 A punição deveria dissuadir as lideranças citadinas de sua reivindicação sobre Aquapendente, fortaleza estratégica para o Papado, persuadindo-as a
obedecer.20 Mas a proclamação agiu em outra direção: acendeu os sentimentos
de desprezo pela hierarquia clerical, minando a já tênue obediência devida pelos habitantes ao poder eclesiástico local, malvisto por muitos como um agente
dos interesses romanos. Desgastada por uma sucessão de embates envolvendo
bispos, cônegos regulares, aristocratas e a própria comuna desde os anos 1150, a
autoridade episcopal perdeu força, seus aliados recuaram.21 Acossado por tantos
impasses, Ricardo, então bispo de Orvieto, deixou a diocese e se refugiou na Cúria.
Sua ausência cedeu espaço ao “catarismo”, atraindo pregadores heréticos de localidades vizinhas, como Viterbo, outra sede política do Patrimônio de São Pedro.
Com a cidade ainda sob interdito, Inocêncio enviou o senador romano Pietro
Parenzo. Em fevereiro de 1199, encarregou-o de restaurar a ordem política e dar
cabo dos hereges. O pontífice fiava-se pelas instruções de seu antecessor, agarrava-se
às orientações de Lúcio III: como rector da cidade, o enviado deveria recompor a
18
19
20
21
CLARKE, Peter. The Interdict in the Thirteenth Century. Oxford: Oxford University Press, 2007.
KREHBIEL, Edward. The Interdict: its history and its operations. Washington: AHA, 1909, p.
15-74. Ver ainda o útil estudo: CONRAN, Edward J. The Interdict. Washington: The Catholic
University of America, 1930.
Embora a fortaleza de Aquapendente tenha sido o estopim do agravamento das tensões entre a
Sé Apostólica e a comuna de Orvieto, certamente, é apropriado situar a interdição imposta por
Inocêncio III em quadro maior de medidas anti-heréticas pontifícias, que incluíam as decretais
Mirari Cogimur et (16 de abril de 1198) Cum unus Dominus (21 de abril de 1198): POTTHAST,
n. 82, 95. Ver ainda: VACANDARD, Elphège. The Inquisition: A Critical and Historical Study
of the Coercive Power of the Church. Fairford: Echo Library, 2010, p. 36.
LAMBERT, Malcolm D. The Cathars. Oxford: Blackwell Publishing, 1998, p. 92-95; LANSING,
Carol. Power & Purity: Cathar heresy in medieval Italy. Oxford: Oxford University Press,
1998, p. 25-41; LANSING, Carol. Passion and Order: restraint of grief in the medieval Italian
communes. Ithaca: Cornell University Press, 2008, p. 25-97, 228-243; LOOS, Milan. Dualist
Heresy in the Middle Ages. Praga: s/e., 1974, p. 279; WALEY, Daniel. Mediaeval Orvieto: the
political history of an Italian city-state, 1157-1334. Cambridge: Cambridge University Press,
1952, p. 11-15. Como demonstrou Augustine Thompson, o “catarismo” teve ampla difusão nas
comunas da Itália setentrional, indicador de que os grupos classificados como heréticos estavam
efetivamente inseridos nos quadros das elites locais, implicados nas disputas sobre o controle
dos espaços públicos e a constituição dos governos comunais. THOMPSON, Augustine. Cities
of God: the religion of the Italian communes, 1125-1325. University Park: The Pennsylvania
State University Press, 2005, p. 141-234.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
autoridade episcopal e garantir o livre curso dos procedimentos da inquisitio. Mas
sua esperança logo minguou. Em maio, Parenzo foi emboscado e encerrou quatro
agitados meses de governo sangrando até a morte em um casebre entrouxado junto
aos portões da cidade. Embora a causa pontifícia tenha encontrado um mártir –
cultuado em meio a uma generosa multiplicação de relatos sobre milagres – “this
loss of authority over heresy and the evident failure of Ad Abolendam produced in
Italy a state very like crisis by the end of the century”.22 O sangrento desfecho era
igualmente efeito da instabilidade imperial: a repressão pontifícia à heresia carecia
de seu sustentáculo político, então enfraquecido por uma inclemente guerra sucessória, deflagrada pela morte de Henrique VI – filho de Frederico I – dois anos antes.
Dilacerada por conflitos internos, a hegemonia imperial fraquejava, revelando-se
incapaz de impulsionar seus exércitos e ministeriales para além dos Alpes, sobre
a península italiana e as cidades do Patrimônio de São Pedro.
Antes mesmo do assassinato, Inocêncio descobriu-se desarmado perante a
difusão das heresias no Patrimônio Petrino e, como seus antecessores, sentiu sua
autoridade desnudar-se. Era preciso, uma vez mais, vestir o pesado manto das
leis canônicas. Foi então, no dia 25 de março de 1199, que o papa ditou a decretal
Vergentis in Senium, a segunda bula inquisitorial aqui traduzida.
Dirigida aos magistrados de Viterbo,23 outra cidade papal povoada pelo
crescimento da presença catára, a nova bula tem um início peculiar. Como uma
homilia, ela entoa um tom pastoral carregado de marcas da educação de Inocêncio.24 Suas primeiras linhas concebem a proliferação das heresias como efeito
do “envelhecimento do mundo”. Segundo a decretal, se a dissidência crescia,
ganhando contornos ainda mais apavorantes, era por que a decrepitude humana
avançara ao seu último estágio, apoderando-se por completo dos corações cris-
22
23
24
LAMBERT, Malcolm. Medieval heresy: popular movements from the Gregorian reform to the
Reformation. Oxford: Blackwell Publishing, 2002, p. 90; VINCENZO, Natalini (Ed.). S. Pietro
Parenzo: la leggenda scritta dal Maestro Giovanni canonico di Orvieto. Roma: Facultas Theologica Pontificii Athenaei Seminarii Romani, 1936; MACCARRONE, Michele. Studi su Innocenzo
III. Pádua: Antenore, 1972, p. 30-51; WAUGH, Scott; DIEHL, Peter (Eds.). Christendom and Its
Discontents: exclusion, persecution, and rebellion, 1000-1500. Cambridge: Cambridge University
Press, 1996, p. 22-25.
POTTHAST, Augustus (Ed.). Regesta Pontificum Romanorum inde ab a. post Christum natum
MCXCVIII ad a. MCCCIV. Berlin: Academia Litterarum Berolinensi, 1874-1875, n. 643.
Toda a bula é marcada por uma linguagem pastoral característica do círculo eclesiástico formado
em Paris, em redor da figura de Pedro, o Cantor. Círculo que incluía Inocêncio III e os cardeais
Robert de Courson e Estevão de Langton. Ver o clássico estudo: BALDWIN, John. Masters,
Princes, and Merchants: the social views of Peter the Chanter & his circle. Princeton: Princeton
University Press, 1970, vol. 1.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
tãos, contaminando a todos. Pois a “semente dos iníquos recobre a colheita do
Senhor” quando a fé está em frangalhos, corroída pela macabra decadência das
criaturas, perdidas em seu decrépito apego às coisas vãs. A vida estaria podre e sua
decomposição permitiria aos pecados e vícios se espalharem sem peia, manchando as almas, arrastando-as para o abismo dos erros. Estes temas, típicos de uma
longínqua tradição letrada associada ao ideal do Contemptus Mundi (Desprezo
pelo Mundo), estavam frescos na pena e na memória papais. Afinal, cerca de
cinco anos antes, quando era ainda um jovem cardeal, Inocêncio transpôs noites
debruçado sobre aqueles pensamentos lúgubres, que reuniu no ilustre opúsculo
De contemptu mundi sive de miseria conditionis humanae.25
Contudo, esse pessimismo estava longe de se resumir a uma convenção de
estilos ou inspiração de fervor pastoral. Ele era alimentado por fracassos políticos. A própria Vergentis registrou a ineficácia das medidas anti-heréticas até
então proclamadas pela Sé Romana. Em seu texto o papa derramou seu lamento:
“diversos predecessores nossos divulgaram medidas em diferentes ocasiões,
mas não a ponto de aniquilar as pestes mortíferas, sobretudo contra este câncer
que se espalhou amplamente de modo oculto e que agora derrama abertamente
a iniquidade de seu veneno”. A imagem do mundo sucumbindo a tantas “formas
farsescas de religião” feria a consciência de Inocêncio como um espinheiro,
verrumando-lhe na cabeça a dura certeza de testemunhar o ocaso da autoridade
clerical. O fantasma da impotência política assombrava-o com a ideia de “ser
chamado de cachorro mudo, incapaz de latir” contra as “raposas que estão destruindo a vinha do Senhor”, segundo as palavras da própria bula.26
Tentando cravar um fim naquela luta sem descanso, o Papado fez do novo
texto uma confirmação prática das regras estabelecidas pela Ad Abolendam e
atuou como continuador direto das decisões outrora proclamadas por Lúcio III,
25
26
LOTÁRIO DI SEGNI. De Contemptus Mundi sive De Miseria Conditionis Humanae. PL vol.
217, col. 703-737; ARCHTERFELDT, Johannes (Ed.). Innocentii III De Contemptus Mundi.
Bonn: Eduard Weber, 1855. A tradição literária do Contemptus Mundi era constituída por um
descentrado e longevo universo de escritos, em especial, oriundos dos claustros medievais. Ver:
HOWARD, Donald R. The Three Temptations: medieval man in search of the World. Princeton:
Princeton University Press, 1966, p. 56-160. O opúsculo de Inocêncio III alcançou grande fortuna
manuscrita e tornou-se um modelo consagrado para a retórica da “tristeza do finito”, em especial
para o período renascentista e as escolas neoplatônicas, como demonstra: DELUMEAU, Jean.
O Pecado e o Medo: a culpabilização no Ocidente (séculos 13-18). Bauru: EDUSC, 2003, vol.
1, p. 19-160.
KENDAL, Keith. ‘Mute Dogs, Unable to Bark’: Innocent III’s call to combat heresy. In: MÜLLER, Wolfgang; SOMMAR, Mary (Eds.). Medieval Church Law and the Origins of the Legal
Western Tradition. Washington: The Catholic University of America Press, 2006, p. 170-178.
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como notaram Brenda Bolton e James B. Given.27 Entretanto, a Sé Apostólica
foi além. Ela reavivou uma severa categoria do antigo direito dos Césares:
a noção do “crime de lesa majestade”. Na realidade, o conceito de laesum
maiestas era bem conhecido pelos eclesiásticos do século XII familiarizados
com os textos canônicos e as tradicionais fórmulas de glorificação do poder
monárquico. Formulado pela Lex Quisquis, redigida por ordem dos imperadores Honório e Acádio, em 4 de setembro de 397,28 o conceito era mencionado
pelo Concílio de Calcedônia (451),29 pelos Annales Regni Francorum (863?),30
constava em notórias epístolas atribuídas ao papa João VIII (875)31 e a Fulberto
de Chartres (1020?),32 no fragmento de uma constitutio do imperador Henrique
27
28
29
30
31
32
BOLTON, Brenda. Tradition and Temerity: papal attitudes to deviants, 1159-1216. In: BAKER,
Derek (Ed.). Schism, Heresy and Religious Protest. Cambridge: Cambridge University Press,
1972, p. 79-92; GIVEN, James Buchanan. Inquisition and medieval society: power, discipline,
and resistance in Languedoc. Ithaca: Cornell University Press, 1998, p. 13.
Como tal a noção figurava no Codex Justinianus: “Quisquis cum militibus vel privatis barbaris
etiam scelestam inierit factionem aut factionis ipsius susceperit sacramenta vel dederit, de nece
etiam virorum illustrium qui consiliis et consistorio nostro intersunt, senatorum etiam (nam et ipsi
pars corporis nostri sunt), cuiuslibet postremo qui nobis militat cogitarit (eadem enim severitate
voluntatem sceleris qua effectum puniri iura voluerunt), ipse quidem utpote maiestatis reus gladio
feriatur, bonis eius omnibus fisco nostro addictis: Arcad. et Honor. aa. eutychiano pp. a 397 d.
prid. non. sept. ancyrae caesario et attico conss”. In: KRUEGER, Paulus. Corpus Iuris Civilis:
volumen secundum, codex. Berlim: Weidmannos, 1889, vol. 2, 9.8.5. Ainda: BAUMANN, R. A.
Some Problems of the Lex Quisquis. Antichthon, vol. 1, 1967, p. 49-59.
Neste caso nos reportamos ao cânone 18, cujo texto proibia a realização de conjurações contra
os membros da hierarquia eclesiástica: “Conjurationis vel sodalitatis crimen ab externis etiam
legibus est omnino prohibitum; multo autem magis hoc in Dei Ecclesia fieri prohibere oportet.
Si qui ergo Clerici vel Monachi inventi fuerint, vel conjurati, vel sodalitates comparantes, vel
aliquid struentes adversus Episcopos aut Clericos proprio graduo omnino excident”. CHALCEDONENSIS CONCILII. MANSI, Johannes D. (Ed.). Sacrorum Conciliorum Nova et Amplissima
Collectio. Graz: Akademische Druck, 1961, tomo 7, col. 366.
Neste caso trata-se da descrição de um pronunciamento do papa Leão III logo após a coroação
imperial de Carlos Magno: “Post paucos autem dies iussit eos, qui pontificem anno superiore deposuerunt, exhiberi; et habita de eis questione secundum legem Romanam ut maiestatis rei capitis
dampnati sunt”. ANNALES FULDENSIS SIVE ANNALES REGNI FRANCORUM ORIENTALIS. MGH SS rer. Germ., tomo 7, p. 15. E ainda: NOBLE, Thomas F. X. The Republic of St. Peter:
the birth of the Papal State, 680-825. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1991, p. 294.
Trata-se da carta enviada aos habitantes de Nápoles, Salerno e Amalfi com o propósito de dissuadi-los de uma aliança com os sarracenos: “Cum enim regis rebellionibus quocumque particípio
coniunguntur, pariter maiestatis criminibus obnoxii iudicantur, parique sententia condemnantur;
quantum a corpore Christi probantur extranei, qui eius hostibus federati, membra ipsius tanto
perniciosius lacerant, quanto5 vicinius ecclesie Dei colliminant?” JOÃO VIII. Epistola 53. MGH
Epp., tomo 7, p. 306.
A epístola em questão é direcionada ao conde Fulque de Nera e a passagem relevante consiste em
suas linhas iniciais: Tam horrendo facinore praesentiam domini regis tui dedecoravere satellites,
ut mundani iudices asserant capitale te quoque reum maiestatis qui eis postea patrocinium tuum
et receptacula praebuisti. FULBERTO DE CHARTRES. Epistola 95. PL vol. 141, col. 246.
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III (1052?) de grande circulação no século XI,33 além de ocupar espaço de
destaque no Decretum de Ivo de Chartres (1094?)34 e no de Graciano (1140).35
Segundo Inocêncio III, os condenados por heresia deveriam ser declarados
“culpados pelo delito de lesa majestade”. Eles carregariam as marcas da alta
traição, que não necessitava chegar às raias da conspiração para ser revelada:
a perfídia estava na sombra da infidelidade, bastava ser considerado desleal à
autoridade clerical para ser culpado de contrariar a “divina majestade de Jesus
Cristo”. A heresia deveria ser vista, de uma vez por todas, como “crime de desobediência”. Quem não estivesse de acordo com a Sé Romana não poderia ser
considerado catholicus. Ao amparar-se nesta premissa, a Vergentis reascendeu
um princípio presente no Dictatus Papae (1075?), de Gregório VII, relação à
qual Othmar Haegeneder dedicou páginas memoráveis.36
A condenação como herege provaria a infâmia do acusado, que estaria sujeito
à pena de excomunhão e ao confisco de seu patrimônio. Seus filhos partilhariam o
mesmo infortúnio, suportando a privação de bens e a interdição a qualquer ofício
público, pois a ignomínia dos genitores estaria impregnada em suas carnes, como
se a heresia fosse uma essência impura que corresse em suas veias.37 Conforme
as próprias palavras papais: “segundo o juízo divino, também os filhos sofrem
33
34
35
36
37
O fragmento contém o que segue: “Heinricus divina pietate secundus Romanorum imperator
augustus omnibus decet imperialem solertiam contemptorem suae praesentiae capitali dampnare
sententia”. CONSTITUTIO DE CONTEMPTORIBUS IMPERATORIS. MGH Const., tomo 1, p.
102. Este fragmento seria veiculado por Wipo, Anselmo de Besate e Benzo de Alba, alcançando
grande notoriedade entre os propagandista imperiais de fins do século XI. Ver: ROBINSON, Ian
Stuart. Authority and Resistance in the Investiture Contest: the polemical literature of the late
eleventh century. Nova York: Manchester University Press, 1978, p. 81-82.
Neste caso trata-se do capítulo 90 do décimo primeiro livro, no qual é reproduzida a epístola do
papa João VIII. IVO DE CHARTRES. Decretum. PL, vol. 161, col. 775. Ver ainda: ROLKER,
Christof. Canon Law and the Letters of Ivo of Chartres. Cambridge: Cambridge University Press,
2009, p. 54-57.
Sane quisquis hanc sanctam et uenerandam antistitis sedem pecuniae interuentu subisse, aut si
quis, ut alterum ordinaret uel eligeret, aliquid accepisse detegitur, ad instar publici criminis et
lesae maiestatis accusatione proposita, a gradu sacerdotis retrahatur. Nec hoc solum deinceps
honore priuari, sed perpetuae quoque infamiae dampnari decernimus, ut e facinus quos par
coinquinat et equat, utrosque similis pena comitetur. FRIEDBERG, Emil (Ed.). Corpus Iuris
Canonici: pars prior Decretum Magistri Gratiani. Graz: Akademische Druck-U. Verlagsanstalt,
1959, parte secunda, causa XV, q. III, c. VI p. 752.
Tratava-se do capítulo 26 do memorandum papal ditado por Gregório, provavelmente, em 1075.
DICTATUS PAPAE. MGH Epp. sel. , p. 203. Ver ainda: HAGENEDER, Othmar. Il Sole e la
Luna:Papato, impero e regni nella teoria e nella prassi dei secoli XII e XIII. Milão: Vita e Pensiero, 2000, p. 213-234.
CHIFFOLEAU, Jacques. Sur le crime de majesté medieval. In : GENET, Jean-Philippe (Ed.).
Genèse de l’Etat moderne en Méditerranée. Rome, Collection de l’Ecole française de Rome,
1993, p. 183-313.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
(...) por seus pais e (...) o castigo recai não apenas sobre os autores dos crimes,
mas também sobre a descendência dos condenados”. A falha dos pais deixou-os
desprovidos da “herança divina”: por que haveriam de manter a herança terrena?
Ratione Peccati. O herético estava poluído pelo pecado e as falhas que habitavam seu peito eram altamente contagiosas. Sua “depravação” derramava-se
como uma mancha de óleo sobre tudo o que ele tocava: bens, ofícios, negócios,
testemunhos, escrita. Era preciso arrancá-lo do convívio cristão e purgar tudo
que carregava os traços de sua nefasta presença: terras, prerrogativas, objetos,
pergaminhos. Se fosse mercador, seus negócios não gerariam qualquer obrigação.
Se juiz, suas sentenças seriam nulas e seu tribunal maldito de toda maneira. Caso
se tratasse de um notário, os registros lavrados por ele seriam inválidos. Legislando “em razão do pecado”, a Vergentis coroou a heresia como causa jurídica
suficiente para justificar amplas intervenções nos espaços considerados públicos e
nas relações de poder e autoridade. Foi o que ocorreu nos anos seguintes, quando
o Papado ditou medidas de supressão da autonomia de “cidades heréticas” no
interior do Patrimônio de São Pedro38 e ofereceu o amplo perdão da indulgência
aos que tomaram parte da violenta conquista senhorial no Languedoc a partir de
1209, a chamada “cruzada albigense”.39
Diferentemente da Ad Abolendam, a bula inocenciana não contava com
o respaldo de um plenário conciliar. Seu texto era um digno representante da
tradição epistolar dos séculos XI e XII: era uma orientação conferida a um caso
pontual, circunstancial. Porém, seu alcance histórico não foi menor do que o
da bula promulgada por Lúcio III: ambas foram tratadas pela tradição canônica
posterior como documentos igualmente fundadores, detentoras das regras a serem seguidas nos procedimentos públicos de repressão à heresia e à dissidência
cristã. De fato, as duas bulas figuram lado a lado nas coleções documentais que
conferiram sustentação normativa e legitimidade jurisdicional às posteriores
ações dos Tribunais do Santo Ofício, como demonstra a edição do Bulario de
38
39
WEBB, Diana. The Church and Sovereignty c.590-1918: essays in honour of Michael Wilks.
Cambridge: Publ. Blackwell, 1991, p. 139-141. Ver ainda: BOLTON, Brenda. Innocent III: studies on papal authority and pastoral care. Aldershot: Ashgate Publishing, 1995, n. III, p. 208;
GAULIN, Jean-Louis et alii (Dir.). Villes d’Italie: textes et documents des XIIe, XIIIe et XIVe
siècles. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2005, p. 136.
HAGENEDER, Othmar. Il Sole e la Luna... op. cit., p. 149-153. Vale aqui lembrar a célebre epístola
com a qual os legados no Languedoc justficaram ao papa a elevação de Simon de Montfort a “príncipe” daquelas terras em razão de sua liderança na “supressão das heresias”: MILO & ARNALDO
AMAURY. Epistola. PL 216: 137-141.
142
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
la Inquisición Española hasta la muerte de Fernando el Católico, realizada por
Gonzalo Martínez Díez.40
Tais características têm feito os historiadores insistirem na reputação da Vergentis in Senium como um feito de importância inigualável. Seu aparecimento foi
“the major step in the formalization of the persecution of heretics” já realizado
pelo Papado, segundo a avaliação de Edward Peters.41 Suas linhas decretaram “la
fine del lungo periodo di disorientamento e d’indecisione da parte della gerarchia”,
afirmaram Franco Cardini e Marina Montesano.42 Recentemente Ruth Karras referiu-se a ela como uma das razões que fizeram do governo de Inocêncio III um divisor de águas na compreensão cristã da relação entre a lei e a ilicitude.43 Opinião que
parece seguir de perto a análise realizada por Laura Baietto há duas décadas: “la
Vergentis segnò un momento significativo nella costruzione di una societas christiana intesa in senso unitario, a prescindere dalle distinzioni laico-ecclesiastico”.44
Maurice Bévenot viu na bula razão para localizar o pontificado inocenciano
como marco fundador da Inquisição.45 Opinião assim arrematada por Kenneth
Pennington: “until the persecution of heresy fell into desuetude in the eighteenth
century, the law of heresy was governed by the stark provisions of Vergentis”.46
Entretanto, seria um equívoco tratar a Vergentis in Senium como uma “criação papal”, o “inovador fruto” de uma racionalidade governamental estritamente
pontifícia. Ao contrário do que sugeriu o seminal The Significance of Innocent
III’s Decretal Vergentis, publicado por Walter Ullmann na década de 1960,47 a bula
inocenciana não foi um ponto de ruptura ou de “re-orientação” das práticas repres-
40
41
42
43
44
45
46
47
MARTÍNEZ DÍEZ, Gonzalo. Bulario de la Inquisición Española hasta la muerte de Fernando
el Católico. Madrid: Editorial Complutense, 1997.
PETERS, Edward. Inquisition... op. cit., p. 48.
CARDINI, Franco; MONTESANO, Marina. La Lunga Storia dell’Inquisizione: luci e ombre
della “leggenda nera”. Roma: Città Nuova, 2007, p. 19.
KARRAS, Ruth Mazo et alii (Ed.). Law and the Illicit in medieval Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2008, p. 13.
BAIETTO, Laura. Il Papa e le Città: papato e comuni in Italia centro-settentrionale secolo XIII.
Clio, vol. 21, 1985, p. 345-393.
BÉVENOT, Maurice. The Inquisition and its antecedents III. Heythrop Journal, vol. 8, n. 1,
1967, p. 52-69. Ver ainda: FICHTENAU, Heinrich. Heretics and Scholars in the Middle Ages:
1000-1200. Philadelphia: The Pennsylvania State University Press, 1998, p. 148.
PENNINGTON, Kenneth. “Pro Peccatis Patrum Puniri”: A Moral and Legal Problem of the
Inquisition. Church History, vol. 47, 1978, p. 137-154, neste caso a citação deriva da p. 137. Ver:
PENNINGTON, Kenneth; EICHBAUER, Melodie Harris (Orgs.). Law as Profession and Practice
in Medieval Europe: essays in honor of James A. Brundage. Farnham: Ashgate Publishing, 2011,
p. 41-48.
ULLMANN, Walter. The Significence of Innocent III’s Decretal Vergentis. Études d´histoire du
droit canonique dédiées à Gabriel Le Bras. Paris: Sirey, 1965, vol. 1, p. 729-742.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
soras medievais. O argumento pode soar estranho, talvez absurdo ou “apologético”
para alguns, mas essa bula pode ser considerada um mecanismo de refreamento da
violência socialmente difundida, ao invés de um vetor de agravamento da opressão
manejada pelas instituições. Vejamos um exemplo.
A fórmula do laesa maiestatis já havia sido aplicada sobre acusados de
heresia antes de Inocêncio ordenar que ela fosse entregue ao pergaminho. Em
outubro de 1194, Afonso II de Aragão sacou-a contra os valdenses e demais
hereges durante as celebrações do sínodo de Lleida. Sem surtir o efeito desejado, a decisão foi confirmada pelo sucessor no trono, Pedro II, em fevereiro
de 1198, na assembleia de Gerona.48 Nas duas ocasiões, a coroa fortaleceu sua
posição ordenando sanções ainda mais severas do que o Papado: as medidas já
indicadas pela Ad Abolendam vieram acompanhadas de ordens de expulsão do
reino, a concessão de amplos favores régios aos delatores da heresia e a ordem
para que os corpos dos condenados fossem queimados (corpora eorum ignibus
crementur).49 No âmbito da política papal, ações como estas eram abafadas pela
ênfase depositada sobre o confisco de patrimônio e o banimento de ofícios como
punições anti-heréticas. A prioridade destas penas tornou-se empecilho prático
para aplicação de sentenças letais. Como bem ressaltou Peter Clarke, no raiar
do século XIII, a lei canônica não estipulava a morte para o expurgo da culpa.50
Embora evocassem as bulas papais como os textos instauradores de sua ação repressora, aqueles monarcas ibéricos não se limitavam a acatar suas disposições. Ao
48
49
50
GONNET, Giovani. Enchiridion Fontium Valdensium. Torre Pellice: Ed. Claudiana, 1958, vol. 1,
p. 92; Edicto antiherético promulgado por el rey de Aragón Alfonso el Trovador contra valdenses,
pobres de Lyon y otros herejes. In: MARQUÈS, Jaume. Alfonso II, el Casto, y la Seo de Gerona.
VII Congreso de Historia de la Corona de Aragón. Barcelona: Vda. de Fidel Rodríguez, 1962,
tomo II, p. 207-222; ALVIRA CABRER, Martín. Pedro el Católico, Rey de Aragón y Conde de
Barcelona (1196-1213): documentos, testimonios y memoria histórica. Zaragoza: C.S.I.C., tomo
I, p. 265 (Fuentes Históricas Aragonesas 52).
BARAUT, Cebriá. Els inicis de la inquisició a Catalunya i les seves actuacions al bisbat d´Urgell
(segles XII-XIII). Urgellia: Anuari d’estudis històrics dels antics comtats de Cerdanya, Urgell
i Pallars, d’Andorra i la Vall d’Aran, n. 13, 1996-1997, p. 407-438. Ver igualmente: ALVIRA
CABRER, Martín. El cuerpo derrotado: cómo trataban musulmanes y cristianos a los enemigos
vencidos (Península Ibérica, siglos VIII-XIII). Madrid: C.S.I.C, 2008, p. 249-256; GASCÓN
CHOPO, Carles. La carta de Niquinta y la Ecclesia Aranensis: una reflexión sobre los orígenes
del catarismo en Catanluña. Espacio, Tiempo y Forma, serie 3, tomo 21, 2008, p. 139-158; SMITH, Damian J. Innocent III and the crown of Aragon. Aldershot: Ashgate Publishing, 2004, p.
33-36; SMITH, Damian. Crusade, Heresy and Inquisition in the Lands of the Crown of Aragon,
c. 1167-1276. Leiden: Brill, 2010, p. 91.
CLARKE, Peter. Innocen III, Canon Law and the Punishment of the Guiltness. In: MOORE, John
C.; BOLTON, Brenda et alii (Ed.). Pope Innocent and His World. Aldershot: Ashgate Publishing,
p. 272-285.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
contrário, eles as aplicavam de maneira autônoma, superavam-nas, excediam-nas,
subordinavam-nas a dinâmicas jurídicas diversas, a realidades políticas em que o
lugar de instância decisória não estava ocupado pelo poder pontifício.
O exemplo aragonês – um entre muitos possíveis – realça a descentralização
medieval das práticas inquisitoriais e, simultaneamente, age como uma ferroada
em nossa recorrente postura de tratar estas bulas como fontes de um sistema
normativo. Afinal, nós historiadores, teimamos em enquadrá-las neste modelo
de ordem jurídica firmado pelo constitucionalismo do século XIX. Agimos assim
toda vez que olhamos para as decretais papais e julgamos ver as linhas de forças
que permitem deduzir o vasto quadro do direito daquela época, como se os comportamentos sociais, em sua amplitude, estivessem ligados aos princípios gerais
contidos nestas páginas, de onde emanaria certa unidade jurídica essencial.51
Nesta perspectiva, a Ad Abolendam e a Vergentis in Senium são encaradas como
pontos aos quais a realidade deveria permanecer acorrentada. Bastaria tomar suas
normas como verdadeiro farol histórico, como o vértice em função do qual os
poderes medievais traçariam a extensão da legalidade e o mais-além da ilicitude.52
Tal atitude retrata a imensa dívida intelectual que temos com os constitucionalistas e sua fervorosa “paixão pelas leis”, que elevou o texto jurídico ao patamar de
instituidor da vida social, exaltando-o como plataforma de fundação das condutas
e decisões coletivas. Não sem razão esta imagem das leis como os eixos de grandes
afrescos históricos tem nos atraído há décadas ao reconfortar nossa racionalidade
científica: “o monismo jurídico oferece vantagens e autoriza o repouso das certezas: o que pode ser mais tranquilizador que um astro único num céu fixo?”53
Os textos aqui traduzidos pertenciam a um irredutível ambiente de pluralismo jurídico. As bulas apresentadas nas páginas seguintes estavam situadas nos
cruzamentos de múltiplas ordens jurídicas, atravessadas por diversos parâmetros
de normatização. Esses documentos da história inquisitorial não eram as chaves
51
52
53
GOYARD-FABRE, Simone. Os Fundamentos da Ordem Jurídica. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 113.
Sob este olhar, os preceitos escritos figuram como imperativos de conduta, e qualquer desvio ou
inobservância a seu respeito significaria, para os agentes históricos, violação ou grave distúrbio.
Interpretação que advém de um modo de pensar proveniente do século XIX e dos códigos legais
elaborados sob inspiração do positivismo jurídico. Entendimento frequentemente sugerido por
estudos de grande relevância historiográfica e inegável capacidade erudita: PIERGIOVANNI, Vito.
La punibilità degli innocenti nel diritto canonico dell’età classica. Milão: Giuffrè, 1971-1974,
2 vol.; PENNINGTON, Kenneth. Popes, Canonists and Texts, 1150-1550. Londres: Variorum,
1993; MAISONNEUVE, Henri. Le droit romain et la doctrine inquisitoriale. In: Études d’histoire
du droit canonique dédiées à Gabriel Le Bras. Paris: Sirey, 1965, p. 931-942.
ROULAND, Norbert. Nos Confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 159.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
lógicas da ordem legal dos séculos XII e XIII, mas algumas de suas muitas partes:
fragmentos de uma época juridicamente descentrada e distante da uniformização
institucional.54 No que tange ao período em questão, é preciso reconhecer que os
textos canônicos, embora cristalizassem o racionalismo das universidades medievais, frequentemente figuravam como confins da ordem jurídica existente, não
como “o cerne” que a estruturava. Entre eles e a concretização da prática legal
havia um longo e contraditório caminho a ser percorrido pelas elites senhoriais,
impondo sobre situações idênticas àquelas mencionadas nos textos das bulas a
legítima incidência de mecanismos jurídicos diferentes, díspares. Por conseguinte, incorremos em certos abusos quando pressupomos que as relações entre as
formulas textuais e a efetiva decisão jurídica estariam calcadas na linearidade
ou mesmo em alguma transposição direta.
A bula de 1199 foi rapidamente difundida pela Igreja Romana, que em menos
de cinco anos garantiu sua presença no Languedoc e em cortes cristãs de Aragão
até a Hungria.55 Mas a política anti-herética registrada em suas linhas a precedia:
o regime repressor expressado por ela jamais esteve dado na própria letra da
lei, ele a ultrapassava como uma densa e dispersa nuvem de poderes locais, não
como um governo unitário e coeso irradiado por um “centro” sobre o mundo
cristão. Em suma, um ângulo de observação cada vez mais promissor para o
estudo de documentos como a Ad Abolendam e a Vergentis in Senium parece ser
o de tratá-los como mediadores sociais, que, como tal, devem ter seu significado
histórico avaliado à luz da incidência de diversos outros fatores juridicamente
decisivos, quiçá proeminentes em relação às lógicas das práticas escriturísticas.
Se ainda sentimos desconforto perante esta proposição, talvez isso se deva ao
54
55
MESCHINI, Marco. L’evoluzione della normativa antiereticale di Innocenzo III dalla Vergentis
in Senium (1199) al IV concilio lateranense (1215). Bullettino dell’Istituto Storico Italiano per
il Medio Evo, n. 106, vol. 2, 2004, p. 207-231; MESCHINI, Marco. Validità, novità e carattere
della decretale “Vergentis in senium” di Innocenzo III (25 marzo 1199). Bulletin of Medieval
Canon Law, n. 25, 2002/2003, p. 94-113.
Em 1200 a bula foi enviada a Giovanni São Paulo, cardeal presbítero de Sancta Prisca e legado
no Languedoc, para instruir a luta contra os cátaros: POTTHAST, n. 1092; THOUZELLIER,
Christine. Catharisme et Valdéisme em Languedoc à la fin du XIIe siècle et au début du XIIIe
siècle. Paris: PUF, 1966, p. 156. Em outubro do mesmo ano seu texto foi integrado à correspondência destinada a Emerico, rei da Hungria, exortando-o a expulsar de suas terras o banus Culin
de Bosnia, reputado como protetor dos hereges bogomilos: INNOCÊNCIO III. Epistola 3.5. PL
vol. 214, col. 872. Em 1203, a bula foi endereçada à rainha Sancha de Aragão: CABRER, Martín
Alvira; SMITH, Damian. Política Antiherética en la corona de Aragón: una carta inédita de Inocencio III a la Reina Sancha. Acta Historica Archaeologica Mediaevalia, n. 27-28, 2006, p. 65-88.
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velho hábito de permanecer impressionados pela tenebrosa grandeza histórica
reputada às inquisições.
“Inquisição”. Aí está um nome refém de uma lenda negra ainda hoje alimentada pelo pensamento liberal.56 São poucos os que o pronunciam sem deixar a voz
cair num tom tétrico ou o semblante ser carregado por um ar grave. Mais raros
ainda os que deixam de sentir um respeito reverencial pelos conceitos atrelados
a ele. Nós, historiadores, costumamos enxergá-lo como a marca de crimes quase
impronunciáveis, uma chaga de obscurantismos, o funesto privilégio de uma
herança acima de tudo católica e ibérica.57 Reconhecer e condenar esta “agência
de segregação e sofrimento” figura em nossa cultura acadêmica como um hábito
intelectual tanto quanto um dever moral.
Porém, há quase um século esta imagem enraizada tem sido alvo de valiosos
esforços de revisão crítica,58 graças aos quais pudemos perceber que as inquisições não foram criações alheias à vida social comum, como se tivessem sido
instrumentos de um terror excepcional, chamado à vida por instituições triunfantes e imposto “dos pináculos do poder” sobre o tecido do convívio coletivo. As
práticas inquisitoriais medievais não eram tentáculos de uma esfera majestática
superior, que desfigurava as relações sociais para melhor dominá-las do alto,
de fora. Não. Elas decorriam de vastos movimentos sociológicos, resultavam
56
57
58
MORENO MARTÍNEZ, Doris. La Invención de la Inquisición. Madri: Marcial Pons, 2004, p.
231-305.
Ver o panorama crítico de: MOLINO MARTÍNEZ, Miguel. Historia de la Leyenda Negra Hispanoamericana. Madrid: Marcial Pons, 2004. Ver ainda: THOMAS, Werner. Los Protestantes y la
Inquisición en España en tiempos de Reforma y Contrarreforma. Louvain: Presses Universitaires
de Louvain, 2001, p. 6-30.
A extensa discussão sobre este tópico pode ser encontrada em: KAMEN, Henry. La Inquisición
Española: una revisión histórica. Barcelona: Crítica, 1999; DUFOUR, Gérard. Los orígenes de
la historiografía sobre la Inquisición: la obra de Juan Antonio Llorente y su evolución de 1797 a
1817. In: GONZÁLEZ TROYANO, Alberto et alii (Org.). Historia, memoria y ficción: 1750-1850.
IX Encuentro de la Ilustración al Romanticismo. Cádiz: Ed. Universidad de Cádiz, 1999, p. 15-22.
Para o período medieval, algumas das principais referências são: ARNOLD, John H. Inquisition
and Power: catharism and the confessing subject in medieval Languedoc. Philadelphia: University
of Pennsylvania Press, 2001; ESCUDERO, José Antonio. Intolerancia e Inquisición. Madrid:
Sociedad Estatal de Conmemoraciones Culturales, 2006; FOUCAULT, Michel. A Verdade e as
Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: EDPUC, 2003; HANAWALT, Barbara ; WALLACE, David
(Eds.). Medieval Crime and Social Control. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2001;
IOGNA-PRAT, Dominique. Ordonner et exclure: Cluny et la societe chretienne face a l’heresie,
au judaisme et a l’islam, 1000-1150. Paris: Aubier, 1998; PETERS, Edward. Inquisition... op. cit.;
PETERS, Edward. Torture. Oxford: Basil Blackwell, 1985; RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio
e Danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
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da interação social: para o historiador a repressão inquisitorial pressupõe uma
sociedade repressora, mais do que algum gênio malévolo.59
As engrenagens repressoras da inquisitio devem ser restituídas à ordem social
que as abrigava. Este parece um raciocínio elementar, verdadeiramente basilar.
Parece, e é só. Pois, nós, historiadores, insistimos em recusá-lo. Quando se trata
da “Inquisição”, nós persistimos na atitude (ou seria “costume”?) de vislumbrá-la
em formato quase absoluto, como um círculo autônomo de poderes, fechado sobre
interesses sigilosos, nicho de uma forma toda peculiar de entender o mundo. Fiéis
às raízes oitocentistas de nossas ideias, nos agarramos ao hábito de ver as práticas
inquisitoriais como atos de uma “Instituição Política”. Isto é, como ações de um
robusto organismo de poder, diferenciado da sociedade para se tornar impetuosamente eficaz.60 A “Inquisição Medieval” figura em nossas mentes como um
vilão, como o algoz da “correta ordem social”, e surge, segundo a sagaz crítica
de Alfredo Alvar Ezquerra, como “un instrumento impuesto por no se sabe bien
quién contra el ‘pueblo’, un ente angelical que es siempre el buen salvaje”.61
Concretamente, isto implica em afirmar que as inquisições medievais não
cabem na caracterização de poderes delegados por pontífices. Porém, mais do
que a imagem do Papado, o que esta afirmação coloca em debate é o próprio
conceito de poder. Em fenômenos como as inquisições, cujas forças e impactos trespassaram estruturas sociais e perduraram por séculos, teriam sido as
relações de poder grandezas vetoriais? Puderam ser exercidas unilateralmente?
Controladas e apontadas como setas para os conflitos e a interação sociológica?
A repressão e a intolerância vivenciadas em larga escala eram efeitos de pontos
de efusão do poder, como se ele emanasse de núcleos originários de coerção e
de desigualdade? Nas vicissitudes de tempos violentos, o poder foi um “objeto”
manipulado somente pelas instituições, que o disparavam contra o conjunto
social, ditando sua direção, curso e eficácia?
Se a resposta para perguntas como estas for “sim”, então devemos preservar
a imagem das inquisições medievais como “criações pontifícias”, como instrumentos do “governo dos papas”. Entretanto, se a Antropologia Política62 e a Nova
59
60
61
62
MOORE, Robert I. La Formación de una... op. cit. Ver igualmente: JOHNSTONE, Nathan. The
Devil and Demonism in Early Modern England. Cambridge: Cambridge University Press, 2006,
p. 1-59.
SHAPIRO, Ian; SKOWRONEK, Stephen; GALVIN, Daniel (Ed.). Rethinking Political Institutions: the art of the State. Nova York: New York University Press, 2006, p. 1-90.
EZQUERRA, Alfredo Alvar. La Inquisición Española. Madri: Akal, 2009, p. 4.
CLAVERO, Bartolomé. Tantas Personas como Estados: por una antropología política de la
historia europea. Madrid: Tecnos, 1986. Ver ainda: CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o
148
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Ciência Política63 estiverem corretas ao problematizar o poder como fenômeno
intrinsecamente dinâmico e multidirecional, como complexos domínios de tensões
sociais, então será preciso – e essa é nossa opinião – deter o passo e repensar o
papel do Papado medieval na movente realidade dos poderes inquisitoriais. Não
se trata de eximir os governos pontifícios deste passado ou empurrá-los para o
fundo de contextos que nos façam perder de vista sua condição de promotores
da violência. Tampouco de agraciá-los com uma “lenda branca da Inquisição”.
Trata-se, mais do que antes, de encará-los como partes dos horizontes maiores de
uma história social e política da repressão. Vê-los como integrantes dos processos
históricos e não como seus artífices soberanos, senhores dos comportamentos
coletivos, instâncias capazes de reger épocas inteiras de cima, do alto de sua
alegada autoridade. Em síntese, ações pontifícias como as bulas aqui traduzidas
não são autoexplicativas: seus textos não foram declarações fundadoras do que
se passou, nem detentores da “lógica essencial” das experiências de intolerância,
exclusão e coação que compartilhamos como sociedade por obra da constituição
do Ocidente e da própria Cristandade.
Se quebrarmos o encantamento deste olhar que nos remete sempre à imagem
de um “self-supporting body”64 e explorarmos a constelação das forças sociológicas e políticas que envolviam as ações repressoras, descobriremos cenários
históricos dinâmicos, amiúde muito instáveis, quiçá imprevisíveis. Movidos
por esta expectativa traduzimos a Ad Abolendam e a Vergentis in Senium e as
apresentamos em versão bilíngue, latim-português, pela primeira vez no Brasil:
dispostas em versões mais acessíveis, que elas possam fecundar nossa compreensão da história inquisitorial.
63
64
Estado. São Paulo: Cosac & Naify, 2003; CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência. São
Paulo: Cosac & Naify, 2005; DONOVAN, James M. Legal Anthropology: an introduction. Lanham: AltaMira Press, 2008; KURTZ, Donald V. Political Anthropology: paradigms and power.
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MCFALLS, Laurent. Construire le politique: contingence, causalité et connaissance dans la
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 129-161, jan./jun. 2012
149
Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
1184, novembris 4. Veronae.
Lucii III Constitutio Apostolica
Bula Ad Abolendam
Liber Quintus. Ed.: Emil Friedberg. Corpus Iuris
Canonici. Leipzig: Bernhard Tauchnitz, 1881, vol.
2, col. 780-782. Reeditado em Graz: Akademische Druck-U. Verlagsanstalt, 1959.
4 de novembro de 1184. Verona.
Constituição Apostólica de Lúcio III.
Bula Ad Abolendam
[1] Ad abolendam diversam haeresium
pravitatem, quae in plerisque mundi
partibus modernis coepit temporibus
pullulare, vigore debet ecclesiasticus excitari, cui nimirum imperialis fortitudinis suffragante potentia, et haereticorum
protervitas in ipsis falsitatis suae conatibus elidatur, et catholicae simplicitas
veritatis in ecclesia sancta resplendens,
eam ubique demonstret ab omni exsecratione falsorum dogmatum expiatam.
[1] Para abolir a depravação pervertida
das heresias que no tempo presente
tem começado a pulular em várias
partes do mundo, deve-se provocar o
eclesiástico com vigor, através do qual,
com o auxílio do poder imperial, não só
seja esmagada a insolência dos hereges
nos próprios esforços de sua falsidade,
mas também a simplicidade da verdade
católica, resplandecendo na santa igreja,
mostre-a por toda parte purificada de
toda maldição de falsos dogmas.
[2] Ideoque nos carissimi filii nostri
Friderici, illustris Romanorum imperatoris semper Augusti praesentia pariter
et vigore suffulti, de communi fratrum
nostrorum consilio, nec non aliorum patriarcharum archiepiscoporum multorumque principum, qui de diversis partibus
imperii convenerunt, contra ipsos haereticos, quibus diversa capitula diversarum
indidit professio falsitatum, praesentis
decreti generali sanctione consurgimus,
et omnem haeresim, quocumque nomine
censeatur, per huius constitutionis seriem
auctoritate apostolica condemnamus.
[2] Por isso, sustentados com a força
de nosso filho caríssimo, Frederico,
ilustre imperador dos romanos, sempre augusto, com o habitual conselho
de nossos irmãos, [os cardeais], bem
como de outros patriarcas, arcebispos
e muitos príncipes, que vieram de outras regiões longínquas do império,
mediante a promulgação do presente
decreto geral, nos erguemos contra os
próprios hereges, cuja explicitação de
falsidades pervertidas gerou proposições desvirtuadas e, por meio desta
constituição, com a autoridade apostólica, condenamos toda a heresia, seja
qual for o nome pelo qual é conhecida.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 129-161, jan./jun. 2012
Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
[3] In primis ergo Catharos et Patarinos
et eos, qui se Humiliatos vel Pauperes de
Ludguno falso nomine mentiuntur, Passaginos, Iosephinos, Arnaldistas perpetuo
decernimus anathemati subiacere.
[3] Portanto, inicialmente determinamos
que Cátaros, Patarinos, aqueles que são
designados pelo falso nome de Humilhados ou Pobres de Lyon, Passaginos,
Josefinos e Arnaldistas sejam submetidos ao anátema perpétuo.
[4] Et quoniam nonnulli, sub specie
pietatis virtutum eius, iuxta quod ait
Apostolus, denegantes, auctoritatem
sibi vendicant praedicandi: quum idem
Apostolus dicat: “quomodo praedicabunt, nisi mittantur?” omnes, qui vel
prohibiti, vel non missi, praeter auctoritatem, ab apostolica sede vel ab episcopo loci susceptam, publice vel privatim
praedicare praesumpserint.
[4] E porque alguns deles, sob a aparência de piedade e denegrindo a virtude,
conforme diz o Apóstolo, reivindicam
para si a autoridade para pregar, mesmo
quando o mencionado Apóstolo disse
“Como pregarão, se não foram enviados?”, [condenamos] todos que, proibidos ou não foram enviados, ousaram
pregar publicamente ou em privado, sem
ter recebido a autoridade da Sé Apostólica ou do bispo do lugar.
[5] Et universos, qui de sacramento
corporis et sanguinis Domini nostri Iesu
Christi, vel de baptismate, seu de peccatorum confessione, matrimonio vel
reliquis ecclesiasticis sacramentis aliter
sentire aut docere non metuunt, quam
sacrosanta Romana ecclesia praedicat
et observat, et generaliter, quoscumque
eadem Romana ecclesia vel singuli
episcopi per dioceses suas cum consilio
clericorum, vel clerici ipsi sede vacante
cum consilio, si oportuerit, vicinorum
episcoporum haereticos iudicaverint,
pari vinculo perpetui anathematis innodamus.
[5] E ligamos com o vínculo do anátema perpétuo todos que não temem
sentir ou ensinar algo diferente do que
a sacrossanta Igreja Romana prega e
observa quanto aos sacramentos do
Corpo e do Sangue de nosso Senhor
Jesus Cristo, do batismo, da confissão
dos pecados, do matrimônio ou dos
demais sacramentos eclesiásticos. E em
geral [ligamos com o mesmo vínculo]
quem quer que tenha sido julgado herege
pela mesma Igreja Romana ou por cada
bispo em sua diocese, aconselhado pelos
clérigos, ou pelos próprios clérigos, caso
a sé episcopal esteja vacante, e, se for
oportuno, aconselhado pelos bispos das
dioceses vizinhas.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
[6] Receptores et defensores eorum,
cunctosque pariter, qui praedictis haereticis ad fovendam in eis haeresis pravitatem patrocinium praestiterint aliquod
vel favorem, sive consolati, sive credentes, sive perfecti, seu quibuscunque
superstitiosis nominibus nuncupentur,
simili decernimus sententiae subiacere.
[7] Quia vero peccatis exigentibus quandoque contigit, ut severitatis ecclesiasticae disciplinae ab his, qui virtutem eius
non intelligunt, contemnatur, praesenti,
nihilominus ordinatione sancimus, ut,
quicunque manifeste fuerint in haeresi
deprehensi, si clericus est vel cuiuslibet religionis obumbratione fucatus,
totius ecclesiastici ordinis praerogativa
nudetur, et sic omni pariter officio et
beneficio spoliatus ecclesiastico, saecularis reliquatur arbitrio potestatis,
animadversione debita puniendus, nisi
continuo post deprehensionem erroris
ad fidei catholicae unitatem sponte recurrere, et errorem suum ad arbitrium
episcopi regionis publice consenserit
abiurare, et safistationem congruam
exhibere. Laicus autem, quem aliqua
praedictarum pestium notoria vel privata
culpa resperserit, nisi, prout dicutum
est, abiurata haeresi et satisfactione
exhibita confestim ad fidem confugerit
orthodoxam, saecularis iudicis arbitrio
reliquantur, debitam recepturus pro
qualitate facinoris ultionem.
152
[6] Também ordenamos que se enquadrem
na mesma sentença todos os seus acolhedores e protetores, e todos que, de alguma forma, oferecerem algum apoio ou ajuda aos
mencionados hereges, com o propósito de
fomentar sobre eles a depravação herética,
[e igualmente] os consolados, ou crentes,
ou perfeitos ou quaisquer outros nomes
supersticiosos pelos quais são chamados.
[7] Posto que, às vezes, na verdade, acontece que a severidade da disciplina eclesiástica contribui em estímulos para o
pecado quando é promovida pelos que não
compreendem sua virtude, determinamos
pela presente ordenação, quanto àqueles
que manifestamente foram surpreendidos
em heresia, se for clérigo ou se estiver sob
a proteção de qualquer ordem religiosa,
que seja despojado da prerrogativa de
toda ordem eclesiástica, destituído de todo
ofício e benefício eclesiástico e entregue
ao julgamento do poder secular para ser
punido com a pena adequada, exceto se,
imediatamente após o erro ter sido descoberto, ele retornar espontaneamente
à unidade da fé católica, consentir em
abjurar publicamente de seus erros perante
o julgamento do bispo local e cumprir
com a satisfação correspondente. Por sua
vez, o leigo que tiver sido maculado com
alguns dos delitos, notórios ou privados,
das mencionadas pestes, deve ser conduzido ao julgamento do juiz secular para
receber a punição devida à qualidade das
más ações, exceto se, conforme foi dito
antes, tiver abjurado da heresia e cumprido
com a satisfação correspondente, logo que
regressou à fé ortodoxa.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
[8] Qui vero inventi sola ecclesiae
suspicione notabiles, nisi ad arbitrium
episcopi iuxta considerationem suspicionis qualitatemque personae propriam
innocentiam congrua purgatione monstraverint, simili sententiae subiacebunt.
Illos quosque, qui post abiurationem
erroris, vel, postquam se, ut diximus,
proprii antistitis examinatione purgaverint, deprehensi fuerint in abiuratam
haeresim recidisse, saeculari iudicio sine
ulla penitus audentia decernimus relinquendos, bonis damnatorum clericum
ecclesiis, quibus deserviebant, secundum sanctiones legitimas applicandis.
[8] Aqueles descobertos só pela Igreja
em evidente suspeita serão submetidos
à mesma sentença, exceto se apresentarem ao julgamento do bispo, segundo a
consideração da suspeita e a qualidade da
pessoa, a própria inocência, por intermédio da reparação adequada. Também aos
que, após a abjuração do erro ou, como
dissemos, após terem se purificado [dele]
mediante o exame do próprio antístite
bispo, forem surpreendidos reincidindo
na heresia abjurada, determinamos que
sejam entregues ao julgamento secular,
sem nenhuma outra [possibilidade] de
apelação, e que os bens dos condenados
sejam entregues ao clérigo das igrejas
aos quais serviam, segundo as sanções
legítimas a serem aplicadas.
[9] Sane praedictam excommunicationis
sententiam, cui omnes haereticos praecipimus subiacere, ab omnibus patriarchis,
archiepiscopis et episcopis in praecipuis
festivitatibus, et quoties solennitates
habuerint vel quamlibet occasionem,
ad gloriam Dei et reprehensionem haereticae pravitatis decernimus innovari,
auctoritate apostolica statuentes, ut, si
quis de ordine episcoporum in his negligens fuerit vel desidiosus inventus, per
triennale spatium ab episcopali habeatur
dignitate et administratione suspensus.
[9] Determinamos que a referida sentença de excomunhão, à qual devem estar
submetidos todos os hereges, seja reiterada por todos os patriarcas, arcebispos
e bispos nas principais festividades e
mantidas em todas as solenidades ou
demais ocasiões, para a glória de Deus
e a repressão da depravação herética. Se
alguém da ordem dos bispos for considerado negligente ou ocioso quanto ao
cumprimento desta constituição, por
força da autoridade apostólica, ordenamos sua suspensão da dignidade e da
administração episcopal pelo espaço
de três anos.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
[10] Ad haec de episcopali consilio
et suggestione culminis imperialis et
principum eius adiecimus, ut quilibet
archiepiscopus vel episcopus per se,
vel archidiaconum, suum [sic], aut per
alias honestas idoneasque personas, bis
vel semel in anno propriam parochiam,
in qua fama fuerit haereticos habitare,
circumeat, et ibi tres vel plures boni
testimonii viros, vel etiam, si expedire
videbitur, totam viciniam iurare compellat, quod, si quis ibidem haereticos
scierit vel aliquos occulta conventicula
celebrantes, seu a communi conversatione fidelium vita et moribus dissidentes,
eos episcopo vel archidiacono studeat
indicare. Episcopus autem vel archidiaconus ad praesentiam suam convocet
accusatos, qui, nisi se ad eorum arbitrium iuxta patriae consuetudinem ab
obiecto reatu purgaverint, vel, si post
purgationem exhibitam in pristinam
relapsi fuerint perfidiam, episcoporum
iudicio puniantur. Si qui vero ex eis,
iurationem superstitione damnabili
respuentes, iurare forte noluerint, ex
hoc ipso haeretici iudicentur, et poenis,
quae praenominatae sunt, percellantur.
154
[10] A isto, por conselho dos bispos e recomendação do cume imperial e de seus
príncipes, acrescentamos que qualquer
arcebispo ou bispo, por si mesmo, ou por
seu arquidiácono ou por outras pessoas
honestas e idôneas, uma ou duas vezes
ao ano, percorra a própria paróquia na
qual tenha a notícia de que aí vivem hereges, e aí obrigue a três ou mais homens
de bem, ou ainda, se parecer proveitoso, a toda a vizinhança, a jurar que se
esforçarão para indicar ao bispo ou ao
arquidiácono os que se sabe são hereges
ou os que celebram reuniões secretas ou
os que se afastam do convívio habitual,
da vida e dos costumes dos fiéis. Que o
bispo ou o arquidiácono convoque os
acusados à sua presença, os quais devem
ser punidos segundo o julgamento dos
bispos, exceto se tiverem se purificado
da acusação imputada mediante o julgamento deles e segundo o costume do
lugar ou, se após terem se purificado,
forem relapsos reincidindo na perfídia
anterior. Se alguns deles, movidos por
superstição condenável, recusando o
juramento, talvez, se negarem a prestá-lo,
que sejam considerados por isto como
hereges e submetidos às penas que foram
relacionadas acima.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
[11] Statuimus insuper, ut comites, barones, rectores et consules civitatum et
aliorum locorum, iuxta commonitionem
archiepiscoporum et episcoporum, praestito corporaliter iuramento promittant,
quod in omnibus praedictis fideliter et
efficaciter, ab eis exinde fuerint requisiti,
ecclesiam contra haereticos et eorum
complices adiuvabunt et studebunt bona
fide iuxta officium et posse suum ecclesiastica simul et imperiali statuta circa
ea, quae diximus, exsecutioni mandare.
Si vero id observare noluerint, honore,
quem obtinent, spolientur et ad alios
nullatenus assumantur, eis nihilominus
excommunicatione ligandis, et terris
ipsorum interdicto ecclesiae supponendis. Civitas autem, quae his decretalibus institutis duxerit resistendum, vel
contra commonitionem episcopi punire
neglexerit resistentes, aliarum careat
commercio vicitatum et episcopali se
noverit dignitate privandam. Omnes
etiam fautores haereticorum tanquam
perpetua infamia condemnatos, ab advocatione et testimonio et aliis publicis
officiis decernimus repellandos. Si
qui vero fuerint, qui a lege diocesanae
iurisdiciones exempti, soli subiaceant
sedis apostolicae potestati, nihilominus
in his, quae superius sunt contra haereticos instituta, archiepiscoporum vel
episcoporum subeant iudicium, et eis
in hac parte, tanquam a sede apostolica
delegatis, non obstantibus libertatis suae
privilegiis, obsequantur.
[11] Além disso, determinamos que os
condes, barões, rectores e cônsules das
cidades e de outros lugares, conforme
a admoestação dos arcebispos e bispos,
mediante juramento prestado pessoalmente, prometam auxiliar fiel e eficazmente a Igreja contra os hereges e seus
cúmplices, em tudo que foi [aqui] mencionado, quando forem requisitados; e de
boa fé se empenharão em executar todos
os estatutos eclesiásticos e imperiais que
ditamos, conforme o seu ofício e poder.
Mas, se não quiserem observar isto, que
sejam destituídos da honra que gozam e
de modo algum não obtenham outra e
que sejam ligados pela excomunhão e
que as terras deles estejam sob o interdito
imposto pela Igreja. A cidade que resistir
a cumprir estas decretais estabelecidas
ou, contrariando a exortação do bispo, negligenciar a punir os que se lhes opõem,
estará impedida de comercializar com
os vizinhos, saiba que será privada da
dignidade episcopal. Também determinamos que todos os partidários dos hereges
sejam condenados em infâmia perpétua
bem como sejam excluídos da assistência
judiciária, de prestar testemunho e de
outros ofícios públicos. Entretanto, com
base na lei, se houver alguém que esteja
isento da jurisdição diocesana, submeta-se
apenas ao poder da Sé Apostólica, naquilo
que acima foi decretado contra os hereges,
todavia, esteja submisso e acate o julgamento dos arcebispos e dos bispos e nesse
aspecto, como se fossem delegados da Sé
Apostólica, não obstante os privilégios
de sua isenção.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
1199, martii 25. Romae
Innocentii III Litterae Decretales
Bula Vergentis in Senium
Die Register Innocenz’ III. 2. Pontifikatsjahr.
2. Pontifiktsjahr 1199-1200. Ed.: O. Hageneder, W. Maleczek and A. Strnad.
Roma, 1979, n. 1, p. 3-5
25 de março de 1199. Roma.
Cartas Decretais de Inocêncio III.
Bula Vergentis in Senium
[1] Vergentis in senium saeculi corruptelam non solum sapiunt elementa corrupta, sed etiam dignissima creaturarum
ad imaginem et similitudinem condita
Creatoris, praelata privilegio dignitatis
volucribus coeli et bestiis universae
terrae testatur, nec tantum eo quasi
deficiente iam deficit, sed et inficit et inficitur scabra rubigine vetustatis. Peccat
enim ad extremum homo miserrimus, et,
qui non potuit in sui et mundi creatione
in paradiso persistere, circa sui et orbis
dissolutionem degenerat, et pretii suae
redemptionis circa fines saeculorum
oblitus, dum variis ac vanis quaestionum
se nexibus ingerit, se ipsum laqueis suae
fraudis innectit, et incidit in foveam,
quam paravit. Ecce etenim, inimico
homine messi dominicae superseminante semen iniquum, segetes in zizania
pullulant, vel potius polluuntur, triticum
arescit, et evanescit in paleas, in flore
tinea et vulpes in fructu demoliri vineam
Domini moliuntur.
[1] A corrupção do mundo que avança
para a velhice não faz apenas elementos
corrompidos exalarem, mas igualmente
extingue em um vazio a digníssima reunião dos que foram criados à imagem e
à semelhança do Criador, privilégio cuja
dignidade superior é testemunhada pelas
aves do céu e pelos animais de toda terra,
mas que deteriora e é deteriorada pela
áspera inação da velhice. De fato, o muito miserável homem peca ao extremo,
e quem não pôde, em si e na criação do
mundo, permanecer no paraíso, dissemina a dissolução à sua volta e no mundo:
esquece o preço de sua redenção levado
por razões mundanas, enquanto se deixa
envolver com os laços de questões variadas e vãs, ata a si mesmo com os nós
de suas fraudes e precipita-se num fosso
que ele próprio cava. Eis, com efeito, o
rebento iníquo semeando para o inimigo
do homem sobre a colheita do Senhor,
eis que as searas germinam, ou melhor,
são poluídas com cizânia, o trigo seca e
evanesce em palhas, a traça e a raposa
se põem em ação para destruir a flor e o
fruto da vinha do Senhor.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
[2] Nova siquidem sub novo testamento Achor progenies de spoliis Iericho
lingulam auream palliolumque furatur,
[et] Abyron, Dathan et Chore soboles
detestanda novis thuribulis fermentatum
thymiama novis volunt altaribus adolere, dum nox nocti scientiam indicat,
dum caecus praebet caeco ducatum,
dum haereses pullulant, et quem divinae
reddit hereditatis expertem, suae constituit haereticus haeresis et damnationis
heredem. Hi sunt caupones, qui aquam
vino commiscent, et virus draconis in
aureo calice Babylonis propinant, habentes, secundum Apostolum, speciem
pietatis, virtutem autem eius penitus
abnegantes. Licet autem contra vulpes
huiusmodi parvulas, species quidem habentes diversas, sed caudas ad invicem
colligatas, quia de vanitate conveniunt
in id ipsum, diversa praedecessorum
nostrorum temporibus emanaverint
instituta: nondum tamen usque adeo
pestis potuit mortificari mortifera, quin,
sicut cancer, amplius serperet in occulto,
et iam in aperto suae virus iniquitatis
effundat, dum palliata specie religionis
et multos decipit simplices, et quosdam
seducit astutos, factus magister erroris,
qui non fuerat discipulus veritatis.
[2] Portanto, sob o Novo Testamento,
a nova prole de Acor rouba a cunha de
ouro e o manto, espólios de Jericó; Abirão, Datã e os detestáveis descendentes
de Coré desejam adorar novos altares
com novos incensos de novos turíbulos,
enquanto a noite indica a sabedoria à
outra noite, enquanto o cego oferece-se
para guiar o cego, enquanto as heresias
pululam e quem oferece a herança divina, desprovido dela, se torna herege,
herdeiro de sua heresia e condenação.
Estes são os taberneiros que misturam
água com o vinho e misturam o veneno
do dragão no cálice de ouro da Babilônia, conservando, segundo o Apóstolo,
aparentando uma espécie de piedade,
mas negando por completo a sua virtude.
No entanto, contra tais raposinhas que,
de fato, possuem diversas aparências,
embora todas estejam mutuamente
unidas pelas caudas, já que se reúnem
levadas pela vaidade deste mesmo propósito, em diferentes ocasiões, inúmeros
predecessores nossos tomaram medidas,
mas não ao ponto de ter podido aniquilar
a peste mortífera, sobretudo contra este
câncer que se espalhou amplamente de
modo oculto e que, agora, abertamente
derrama a iniquidade de seu veneno,
enquanto, sob a forma farsesca de religião engana muitos homens simples
e seduz alguns astutos, transformando
num mestre do erro quem não tinha sido
um discípulo da verdade.
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Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
[3] Ne autem nos, qui, licet circa horam
undecimam inter operarios, immo verius
super operarios vineae Domini Sabaoth
sumus a patrefamilias evangelico deputati, et quibus ex officio pastorali sunt
oves Christi commissae, nec capere
vulpes demolientes vineam Domini, nec
arcere lupos ab ovibus videamur, et ob
hoc merito vocari possimus canes muti
non valentes latrare, ac perdamur cum
malis agricolis et mercenario comparemur: contra defensores, receptatores,
fautores et credentes haereticorum aliquid severius duximus statuendum, ut,
qui per se ad viam rectitudinis revocari
non possunt, in suis tamen defensoribus,
receptatoribus et fautoribus, ac etiam
credentibus confundantur, et, quum se
viderint ab omnibus evitari, reconciliari
desiderent omnium unitati.
158
[3] De fato, nós, que, por assim dizer,
por volta da undécima hora, como o
pai de família do evangelho, fomos
designados para estar entre os lavradores ou, melhor, na verdade, acima dos
lavradores das vinhas do Senhor Deus,
e a quem, por ofício pastoral, as ovelhas
de Cristo foram confiadas, a fim de que
não sejamos vistos como incapazes de
capturar as raposas que estão destruindo
a vinha do Senhor, nem afastar os lobos
das ovelhas – e por essa razão poderíamos ser merecidamente chamados de
cachorros mudos, incapazes de latir e
sermos comparados a maus lavradores
e a um mercenário – nós autorizamos
medidas um tanto severas contra os
defensores, acolhedores, colaboradores
e adeptos dos hereges; para que, dessa
forma, aqueles que por si não podem
ser reconduzidos ao caminho da retidão,
sejam, entretanto, confundidos pela condição de seus defensores, acolhedores,
colaboradores e adeptos, e quando eles
se virem, repelidos por todos, que desejem se reconciliar na unidade de todos.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 129-161, jan./jun. 2012
Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
[4] De communi ergo fratrum nostrorum
consilio, assensu quoque archiepiscoporum et episcoporum apud sedem
apostolicam exsistentium, districtius
inhibemus, ne quis haereticos receptare quomodolibet vel defensare, aut
ipsis favere vel credere quoquo modo
praesumat, praesenti decreto firmiter
statuentes, ut, si quis aliquid horum
facere praesumpserit, nisi primo secundove commonitus a sua super hoc
curaverit praesumptione cessare, ipso
iure sit factus infamis, nec ad publica
officia vel consilia civitatum, nec ad
eligendos aliquos ad huiusmodi, nec ad
testimonium admittatur. Sit etiam intestabilis, nec ad hereditatis successionem
accedat. Nullus praeterea ipsi cogatur
super quocunque negotio respondere. Quodsi forte iudex exstiterit, eius
sententia nullam obtineat firmitatem,
nec causae aliquae ad eius audientiam
perferantur. Si fuerit advocatus, eius
patrocinium nullatenus admittatur. Si
tabellio, instrumenta confecta per ipsum
nullius sint penitus momenti, sed cum
auctore damnato damnentur. In similibus etiam idem praecipimus observari.
Si vero clericus fuerit, ab omni officio
et beneficio deponatur, ut, in quo maior
est culpa, gravior exerceatur vindicta.
[4] Portanto, de acordo com a sugestão
consensual de nossos irmãos, [os cardeais], e igualmente, com o assentimento
dos arcebispos e bispos presentes nesta
Sé Apostólica, proibimos com todo rigor
que, de maneira nenhuma, ninguém se
atreva, de algum modo, a acolher os
hereges, defendê-los, favorecê-los ou
apoiá-los; se alguém se atrever a fazer
algumas dessas coisas, a não ser que se
empenhe em ratificar sua ousadia, após
ser avisado pela primeira e segunda vez,
mediante este decreto, por força do próprio direito, estabelecemos firmemente
que seja considerado infame e não seja
aceito para exercer cargos públicos ou
tomar parte nos conselhos citadinos ou
participar das eleições para tais cargos e
tampouco seja admitido como testemunha. Que igualmente seja incompetente
para testemunhar nem tenha direito
à sucessão hereditária. Ademais, que
ninguém seja obrigado a atender-lhe nas
obrigações de quaisquer negócios. Caso
se trate de um juiz, que sua sentença não
tenha valor algum, nem causa alguma
seja apresentada ao seu tribunal. Se
for advogado, que de modo algum seja
aceito para defender. Se for tabelião, que
os documentos redigidos por ele careçam de todo efeito e sejam condenados
juntamente com seu autor já condenado.
Em casos semelhantes, também ordenamos a observância do mesmo [modo
de proceder]. Se for clérigo, que seja
deposto de todo cargo e benefício, a
fim de que naquele em que há maior
culpa, sofra uma punição mais severa.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 129-161, jan./jun. 2012
159
Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
[5] Si quis autem tales, postquam ab
ecclesia fuerint denotati, contempserit
evitare, anathematis se noverit sententiam incurrisse. In terris vero, temporali
nostrae iurisdictioni subiectis, bona
haereticorum statuimus publicari, et in
aliis idem praecipimus fieri per potestates et principes saeculares, quos ad
id exsequendum, si forte negligentes
exstiterint, per censuram ecclesiasticam
appellatione remota compelli volumus
et mandamus. Nec ad eos bona eorum
ulterius revertantur, nisi eis, ad cor
revertentibus et abnegantibus haereticorum consortium, misereri aliquis voluerit, ut temporalis saltem poena corripiat
quem spiritualis non corrigit disciplina.
160
[5] Se alguém desprezar o dever de
evitar o contato com tais pessoas, após
terem sido declaradas culpadas pela
Igreja, saiba que incorre em sentença de
anátema. Nas terras submetidas a nossa
jurisdição temporal, ordenamos que os
bens dos hereges sejam confiscados e
nos demais territórios estabelecemos
que se faça o mesmo, por intermédio
dos poderes e dos príncipes seculares, os
quais, acaso se mostrem negligentes em
executar essa ordem, queremos e ordenamos que sejam compelidos a cumpri-la, mediante castigos eclesiásticos, sem
haver possibilidade de apelação. Que
não sejam, posteriormente, devolvidos
a tais hereges os seus bens, a não ser
que alguém queira usar de misericórdia
para com os que tiverem se convertido
de coração e renegado a companhia dos
hereges, para que, ao menos, o castigo
temporal puna o que não se corrige por
força das punições espirituais.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 129-161, jan./jun. 2012
Leandro Duarte RUST. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199).
[6] Quum enim secundum legitimas
sanctiones, reis laesae maiestates punitis
capite, bona confiscentur eorum, filiis
suis vita solummodo ex misericordia
conservata: quanto magis, qui aberrantes in fide Domini Dei filium Iesum
Christum offendunt, a capite nostro,
quod est Christus, ecclesiastica debeat
districtione praecidi, et bonis temporalibus spoliari, quum longe sit gravius
aeternam quam temporalem laedere
maiestatem? Nec huiusmodi severitatis
censuram orthodoxorum etiam exheredati filiorum quasi cuiusdam miserationis praetextu debet ullatenus impedire,
quum in multis casibus etiam secundum
divinum iudicium filii pro patribus temporaliter puniantur, et iuxta canonicas
sanctiones quandoque feratur ultio non
solum in auctores scelerum, sed etiam
in progeniem damnatorum.
[6] Quanto aos culpados pelo delito de
lesa-majestade, que sejam punidos, em
conformidade com os castigos legais,
isto é, seus bens sejam confiscados, e
que a vida de seus filhos seja poupada
somente por misericórdia: ora, quanto
mais os que se distanciam da fé no Senhor, ofendendo a Jesus Cristo, Filho de
Deus, sejam separados de nossa cabeça,
Cristo, por sentença eclesiástica, e despojados de bens temporais, pois não é
mais grave ofender a majestade eterna
do que a temporal? Nem de modo algum
seja impedida [a aplicação] do rigor deste castigo dos ortodoxos, sob o pretexto
de certa aparência de misericórdia no
tocante aos filhos daquele que perdeu
seus bens, pois, segundo o julgamento
divino, em muitas circunstâncias, também estes sofrem temporalmente por
causa de seus pais e, conforme as penas
canônicas, algumas vezes, o castigo
recai não apenas sobre os criminosos,
mas também sobre a descendência dos
que foram condenados.
Recebido: 18/05/2011 – Aprovado: 09/03/2012
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 129-161, jan./jun. 2012
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JOSÉ PINTO DE AZEREDO E AS ENFERMIDADES DE ANGOLA:
SABER MÉDICO E EXPERIÊNCIAS COLONIAIS NAS
ÚLTIMAS DÉCADAS DO SÉCULO XVIII*
Jean Luiz Neves Abreu
Universidade Federal de Uberlândia
Resumo
O artigo procura analisar a obra do médico luso-brasileiro José Pinto de Azeredo Ensaio
sobre algumas enfermidades d’Angola (1799). A partir dessa obra e de outras fontes,
busca-se compreender as ideias e concepções do médico sobre as doenças de Angola
e de que maneira elas se relacionam com a medicina das últimas décadas do século
XVIII, bem como os aspectos singulares que marcaram sua prática.
Palavras-chave
José Pinto de Azeredo • medicina • século XVIII
Contato
Universidade Federal de Uberlândia – Campus Santa Mônica
Av. João Naves de Ávila, 2121
Bloco H – Sala 1H49
38.400-902 – Uberlândia – MG
E-mail: [email protected]
* Este texto é produto de dois projetos em andamento: “Divulgação de saberes e práticas científicas
na América Portuguesa – século XVIII”, (financiado pela PROPP - Pró-reitoria de Pesquisa e
Pós-graduação - UFU) e “Religião, Natureza e Costumes: gestos, saberes e discursos na América
Portuguesa (século XVIII)”, na qual atuo como colaborador (financiado pelo CNPq).
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
163
JOSÉ PINTO DE AZEREDO AND THE DISEASES OF ANGOLA:
MEDICAL KNOWLEDGE AND COLONIAL EXPERIENCES IN
THE LAST DECADES OF THE XVIII CENTURY
Jean Luiz Neves Abreu
Universidade Federal de Uberlândia
Abstract
The article analyzes the work of the luso-brazilian medicine doctor José Pinto de Azeredo Essay on some diseases of Angola (1799). From the perspective of this work and
other sources, we seek to understand the ideas and conceptions of the medicine doctor
about the diseases in Angola and how they are relate to medicine in the last decades
of the eighteenth century, as well as the unique aspects that have marked his practice.
Keywords
José Pinto de Azeredo • medicine • eighteenth century.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
A trajetória de José Pinto de Azeredo e as experiências coloniais
A expansão portuguesa entre os séculos XVI e XVIII foi marcada, dentre outros
aspectos, pela incorporação e difusão de conhecimentos sobre drogas e técnicas médicas nos domínios ultramarinos. O saber médico oriundo das experiências coloniais
circulou em compêndios de medicina e outros impressos no Império Português.1
No decorrer do século XVIII, vários médicos e cirurgiões tiveram contato com
culturas e populações diversas nos domínios portugueses. As obras produzidas
a partir desses encontros permitem observar, além da incorporação de saberes
locais, o conhecimento acerca das enfermidades que acometiam as populações nos
territórios coloniais, bem como a apropriação de várias concepções de medicina
pelos médicos luso-brasileiros.
Um dos frutos dessas experiências foi o Ensaio sobre algumas enfermidades
d’Angola (1799), de autoria do médico José Pinto de Azeredo. Este artigo busca
compreender as formas pelas quais o médico luso-brasileiro fez uso de conhecimentos científicos de sua época e os articulou às suas experiências. Procura-se
identificar as principais concepções do saber médico a que ele recorreu, bem
como os sentidos adquiridos por esse conhecimento.
Um dos primeiros estudos relativos à sua obra é do também médico Emílio
Joaquim da Silva Maia, que em artigo publicado na Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro em 1840, traz breves referências sobre a formação de
Azeredo e suas contribuições à medicina brasileira. Silva Maia destaca que o
médico foi “Cavaleiro da Ordem de Cristo, Doutor em medicina pela Escola de
Edimburgo, membro da sociedade Harveiana da mesma cidade, sócio da Academia das ciências de Lisboa, e médico da Câmara da Sra. D. Maria Primeira”.2
Sua trajetória e obra, no entanto, carecem de ser mais bem investigadas, na
medida em que as referências a elas são muitas vezes imprecisas.3 Embora não
1
2
3
WISSENBACH, Maria Cristina. Ares e azares da aventura ultramarina: matéria médica, saberes
endógenos e transmissão nos circuitos luso-afro-americano. In: MEGIANI, Ana Paula; ALGRANTI, Leila Mezan (Orgs.). O império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada
no mundo ibérico. São Paulo: Alameda, 2010, p. 375-393; WALKER, Timothy. Acquisition
and circulation of medical knowledge within the early modern portuguese colonial empire. In:
SHEEHAN, Kevin et al. Science in the Spanish and Portuguese empires 1500-1800. Stanford:
Stanford University Press, 2009, p. 247-270.
MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Elogio histórico do Dr. José Pinto de Azeredo. Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, 1840, Tomo II. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, p. 629-635.
Sobre a crítica a essas imprecisões ver: PINTO, Manuel Serrano et al. O médico brasileiro José
Pinto de Azeredo (1766?-1810) e o exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro. História,
ciências, saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 617-673, Dez, 2005, p. 620.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
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Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
seja o objetivo aqui realizar uma biografia do autor, alguns episódios de sua vida
tiveram influência sobre o tratado médico acerca das enfermidades em Angola.
Nascido no Brasil, José Pinto de Azeredo estudou medicina em Edimburgo
entre 1786 e 1788, com passagem em Leiden (1788). Na época, Edimburgo
era um dos renomados centros de formação médica para onde se direcionavam
estudantes nascidos no Brasil e em Portugal, com o apoio do Governo Português.4 A apropriação de diversas teorias médicas no Reino se deu no âmbito
da Universidade de Coimbra e no contato com centros de formação europeus.
Apesar de certo ecletismo presente na formação dos profissionais ligados à arte
de curar, buscava-se um maior diálogo com o saber médico praticado na Europa
e a introdução do experimentalismo na medicina.5
Além de proporcionar o contato dos estudantes com as teorias estrangeiras,
essas modificações no ensino e o envio de estudantes para outros centros europeus
visavam também contornar os problemas da assistência médica nos domínios
ultramarinos. O médico português José Manoel Leitão, em seu “Suplemento à
História da Cirurgia no qual trata do estado da cirurgia em Portugal”, de 1788,
comenta a esse respeito que antes de Pombal não havia cirurgiões “para as expedições das frotas comerciais e para o socorro das províncias, onde não havia
senão barbeiros que sangravam e meros curandeiros”. Em vista disso, o consulado
pombalino procurou prover os territórios sob domínio português de médicos e
cirurgiões, “não só com obrigações de curar nos hospitais caritativos e militares,
mas também de ensinarem anatomia”.6
A trajetória de José Pinto de Azeredo se insere, portanto, na da geração de
médicos que tiveram uma formação ligada à Ilustração e que estabeleceram intercâmbio com as universidades europeias. Além de sua passagem por Edimburgo
4
5
6
FURTADO, Júnia Ferreira. A medicina na época moderna. In: MARQUES, Rita de Cássia;
GERMANO, Beatriz; STARLING, Heloisa M. Murgel (orgs.). Medicina: História em exame.
Belo Horizonte: UFMG, 2011, p. 61.
Diversos são os trabalhos na historiografia que abordam tais questões, dentre os quais se pode
mencionar os seguintes: PITA, João Rui. Medicina, cirurgia e arte farmacêutica na reforma pombalina da Universidade de Coimbra. In: ARAÚJO, Ana Cristina (Coord.). O marquês de Pombal
e a universidade de Coimbra. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000, p. 129-162; GUERRA,
João Pedro Miller. A reforma pombalina dos estudos médicos. In: CARVALHO DOS SANTOS,
Maria Helena. Pombal revisitado. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, Vol.1, p. 189-207; ABREU,
Jean Luiz Neves. Ilustração, experimentalismo e mecanicismo: aspectos das transformações do
saber médico em Portugal no século XVIII. Topoi, Rio de Janeiro, v. 8, 2007, p. 80-104.
LEITÃO, Manoel José. Tratado completo de anatomia e cirurgia com um resumo da historia
da anatomia e Cirurgia seus progressos e estado dela em Portugal offerecido à Real Junta do
Proto-Medicato. Lisboa: Antonio Gomes, 1788, p. 362-365.
166
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
e Leiden, onde defendeu trabalhos importantes – a exemplo da elaboração de
ensaio sobre as substâncias capazes de agir sobre cálculos urinários e do ensaio
sobre a gota, ambos em 1788 –, o exercício da medicina na América Portuguesa
e Angola é outro ponto a ser destacado.
Em 1789 ele foi autorizado a exercer medicina em Portugal e nos domínios
ultramarinos e nomeado por D. Maria I como físico-mor de Luanda (Angola),
com as obrigações de “curar, além do Corpo Militar daquele Reino, os doentes
de Hospital da dita Cidade”.7 Em meados de 1789, Azeredo regressou ao Brasil
onde iniciou a prática de medicina e atividades clínicas no Rio de Janeiro, Pernambuco e na Bahia. Do Brasil retornou para Angola, com chegada provável
a Luanda em Setembro de 1790. Aí exerceu prática clínica no Hospital Real,
lecionando “aula de medicina” a partir do ano seguinte. Azeredo voltaria para
Lisboa em 1797, onde viveu até sua morte, em 1810.8
Nessa trajetória por Luanda e pela América Portuguesa, José Pinto de
Azeredo pôde extrair várias experiências. Em 1790 publicou um artigo no
Jornal Enciclopédico, intitulado Exame químico da atmosfera do Rio de
Janeiro, no qual analisava as condições do ar daquela cidade e colocava
em prática vários conhecimentos de química. Em Lisboa, escreveu vários
manuscritos que não foram impressos, a exemplo de Isagoge Pathologica
do Corpo Humano (1802), Curtas Reflexões sobre Algumas Enfermidades Endêmicas do Rio de Janeiro no Fim do Século Passado (manuscrito
posterior a 1800); Coleção de Observações Clínicas (posterior a 1803). 9
Em seus manuscritos fica evidente o desejo de ser reconhecido como médico
e como vassalo real. As homenagens prestadas à Rainha D. Maria I e ao Príncipe
D. João confirmam o fato de que o conhecimento era importante moeda de troca
naquele contexto. Conforme observa Ronald Raminelli, no império luso a produção do conhecimento científico dependia do Estado, que investia na formação dos
quadros profissionais e depois os inseria nos quadros da administração colonial
7 Patente de S. Mag. de em que faz Mr.ce ao Doutor José Pinto de Azeredo de Físico Mor deste
Reino de Angola – Reproduzida em: Arquivos de Angola, v. IV, n. 41 a 48, p. 149-50, Luanda,
1938. A ortografia foi atualizada na citação.
8 As informações biográficas e a trajetória de José Pinto de Azeredo encontram-se detalhadas no artigo
O médico brasileiro José Pinto de Azeredo (1766?-1810) e o exame químico da atmosfera do Rio de
Janeiro, sem que aqui seja necessários repeti-las. Cf. PINTO, Manuel Serrano, op. cit., p. 617-638.
9 A referência completa desses manuscritos se encontra no site da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Disponível em: http://purl.pt/index/geral/aut/PT/152878.html, acessado em 19/04/2011.
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Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
e metropolitana. Atuando a serviço do Estado, os homens de letras buscavam
como contrapartida benefícios e reconhecimento.10
Na Oração de sapiência, Azeredo rendia homenagens à Rainha, afirmando
ocupar o “lugar de um vassalo agradecido, sendo ao menos por esta causa digno de
benévola atenção”.11 Foi igualmente como fiel vassalo que, anos depois, publicou
Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola dedicados ao sereníssimo senhor
D. João Príncipe do Brasil, em cuja dedicatória afirma ser a obra animada pela
proteção de D. João, enaltecido como mecenas e protetor das ciências.
O médico recorreu ao mecenato régio em outras ocasiões. Na tentativa de
fazer imprimir seu manuscrito Coleção de observações clínicas, expunha as
razões pelas quais sua obra era merecedora de reconhecimento apresentando o
seu conhecimento como tributo à Coroa portuguesa:
pelo alto patrocino que mereceram de Vossa Alteza Real os meus Ensaios sobre algumas
enfermidades de Angola, me animo a procurar segunda vez a Vossa Alteza Real para
proteger a estes meus Escritos. Eles não serão menos felizes do que foram os primeiros
se tiverem a fortuna de alcançar um igual acolhimento. Porém, eu não posso duvidar dele
quando vejo que Vossa Alteza Real que só respira os desejos de felicitar os seus Povos,
me tem elegido entre tantos médicos beneméritos para ser o que cuide na saúde da Tropa.
Este meu trabalho, Senhor, é todo feito a beneficio da mesma Tropa: digne-se, pois, Vossa
Alteza Real de aceitar a oferta dele como um verdadeiro tributo do meu agradecimento.12
A despeito de não ter obtido sucesso com a impressão desse e outros manuscritos, em consideração aos serviços prestados em Angola, José Pinto de
Azeredo foi nomeado médico da Real Câmera13 obtendo o prestígio almejado
e tornando-se um profissional renomado em Portugal. Além disso, como já foi
mencionado, tornou-se Cavaleiro da Ordem de Cristo e fez parte do círculo de
letrados da Academia das Ciências de Lisboa.
Nesse sentido, a publicação do compêndio sobre as doenças em Angola
assumiu um papel estratégico de valorização de suas atividades. A narrativa do
médico assume um tom que não disfarça seu narcisismo.14 Embora não atribuísse
10
11
12
13
14
RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governos a distância. São
Paulo: Alameda, 2008, p. 137.
AZEREDO, José Pinto de. Oração de sapiencia feita, e recitada no dia 11 de Setembro de 1791.
Manuscrito, Biblioteca Nacional de Lisboa, fl. 03.
AZEREDO, José Pinto de. Collecção de observaçoens clinicas. Manuscrito, depois de 1803,
Biblioteca Nacional de Lisboa, fl. 01.
MAIA, Emílio Joaquim da Silva, op. cit., p. 629-635.
MARQUES, Manuel Silvério. A febre, a fibra e o espasmo. In: COUTO, Jorge. et al. Arte médi-
168
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
vantagem à sua ciência, nem aos seus talentos e sim “aos progressos da medicina”, Azeredo enaltecia o fato de que, graças à sua autoridade de físico-mor em
Angola, conseguiu combater os métodos de cura que existiam há anos no país e
traziam inúmeros prejuízos à vida humana, bem como instruir os novos estudantes
a seguir seus procedimentos, evitando a mortalidade dos enfermos. 15 A partir
dessas posições, defendia a contribuição de sua obra para o Estado Português e,
ao mesmo tempo, situava seu desempenho como superior ao de seus antecessores.
Se por um lado, a lógica das mercês influi na produção do tratado, devendo-se
relativizar a eficácia dos procedimentos proclamados pelo médico; por outro,
não se pode deixar de enfatizar os significados que assumem esse testemunho,
ao permitir reconstituir aspectos da produção do saber médico a partir de uma
trajetória individual no Império Português.
As enfermidades de Angola: entre teorias e experiências
Com exceção do artigo publicado no Jornal Enciclopédico, dos escritos de
José Pinto de Azeredo, o tratado sobre as enfermidades de Angola foi a única
obra impressa de que se tem conhecimento. O médico pretendia que seu tratado
pudesse trazer informações que viessem a ser úteis para o Governo português,
não se prestando somente a reconstituir as condições físicas e mórbidas daquela
região. A produção de conhecimentos sobre o império português, nas últimas
décadas do setecentos, por funcionários régios e viajantes era essencial para
atender às diretrizes da expansão colonial. Estabelecendo redes de conhecimento,
os homens de ciência apropriavam-se e manipulavam conceitos do Iluminismo
incorporando-os à realidade vivenciada em territórios coloniais.16
José Pinto de Azeredo pode ser visto como um típico letrado luso-brasileiro da
época, ao realizar uma leitura específica do conhecimento científico indissociável
da realidade colonial. As experiências em Angola e na América Portuguesa se
incorporam ao repertório de conhecimentos do autor. No prefácio do compên-
15
16
ca e imagem do corpo: de Hipócrates ao final do século XVIII. Lisboa: Biblioteca Nacional de
Portugal, 2010, p. 7. Disponível em: http://www.centrodefilosofia.com/uploads/pdfs/membros/
desideromurcho/Febre.pdf, acessado em 26/10/2011.
AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola dedicados ao Serenissimo Senhor D. João Principe do Brazil. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1799, p. VII-X.
Para essas questões ver: KURY, Lorelai. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informação (1780-1810). História, Ciências, Saúde – Manguinhos. v. 11, suplemento 1,
2004, p. 109-129; DOMINGUES, Ângela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais:
a constituição de redes de informação no Império Português em finais do Setecentos. História,
Ciências, Saúde – Manguinhos, v. VIII, suplemento, 2001, p. 823-838.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
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Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
dio, notava que as “febres de Angola são da mesma natureza daquelas que se
observam nos outros países situados na zona tórrida”, à semelhança do que havia
constatado no Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco.
Nos dois primeiros capítulos do livro, “Ensaios sobre as febres d’Angola” e
“Ensaios sobre as febres intermitentes”, José Pinto de Azeredo descreve a história,
os principais sintomas das febres, as alterações nos órgãos do corpo humano, as
teorias sobre as causas da enfermidade e as terapêuticas mais propícias para os
casos existentes. Procedimento semelhante é adotado nos dois capítulos seguintes
sobre as disenterias e os tétanos, nos quais se descrevem as causas, os sintomas,
a história das doenças e os principais métodos de cura utilizados.
Ao discorrer acerca das doenças de Angola, o autor faz uma distinção entre
causas “próximas” – relativas às mudanças no organismo – e “remotas” – ligadas
aos fatores externos, como o clima, as condições de higiene, dentre outras. Suas
referências demonstram que estava atualizado das teorias existentes, fazendo
referência a descobertas em diversas áreas.17
Dentre o conjunto de conceitos dos quais lança mão para expor a etiologia
das febres, Azeredo destaca os princípios de Cullen, que havia sido seu professor
e a quem considerava “pai da medicina moderna”.18 Incorporando os princípios
da escola de “economia animal” – voltada para o estudo do papel do sistema
nervoso na constituição das doenças, à qual se vinculava o nome de Cullen19 –,
o médico afirmava que em todas as febres, fossem nervosas ou inflamatórias,
era possível observar espasmo na superfície do corpo provocado pela alteração
das fibras, levando à sua debilidade “por uma lei geral da economia animal”.20
Do mesmo modo, Azeredo concede importância aos estudos anatômicos como
parte imprescindível de sua formação. Ao investigar as causas das disenterias, afirma que nada “há que mais possa dar uma luz mais clara, e uma ideia mais perfeita
da causa próxima da disenteria do que são as dissecações de cadáveres”.21 Não
sem razão o médico dedicou vários manuscritos à anatomia, a exemplo de Estudos
anatômicos22, onde fazia uma descrição minuciosa das principais partes do corpo
humano e suas funções, e outro sobre anatomia dos ossos e vasos linfáticos, no
17
18
19
20
21
22
MARQUES, Manuel Silvério, op. cit., p. 3.
AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola... op. cit., p. 32.
PORTER, Roy. Das tripas coração: uma breve história da medicina. Rio de Janeiro: Record,
2004, p. 90.
AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola... op. cit., p. 34.
Idem, Ibidem, p. 106.
AZEREDO, José Pinto de. Estudos Anatômicos. Manuscrito, Biblioteca Nacional de Portugal,
s.d. (antes de 1807).
170
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
qual trata da osteologia, definida como a ciência que “ensina o estado natural dos
ossos”.23 Na Oração da sapiência, recitada em 1791, reafirmava o papel da anatomia como ciência que abria “a porta para a verdadeira indagação da natureza”.24
Tais aspectos colocam a obra de Azeredo em sintonia com o conhecimento
médico praticado na Europa no século das Luzes. A despeito das resistências
culturais existentes na Europa em relação à anatomia, as dissecações ganhavam
cada vez mais relevância para o estabelecimento das causas das enfermidades. O
saber anatômico se torna uma via privilegiada para o conhecimento da natureza
do corpo humano e dos progressos da arte de curar.25
As referências às diversas teorias sobre as causas das enfermidades são indicativas de como os avanços na medicina exerceram influência em sua obra. Entretanto, Azeredo não se restringiu simplesmente a compilar as teorias e reproduzi-las
em seus estudos. Posicionando-se de maneira crítica em relação ao saber médico
vigente, defendia que “observação laboriosa, e constante é a única que nos ensina
a buscar os meios mais adequados, e prontos para atacar as enfermidades”.26
Ao tratar dos ciclos das febres, contrapunha-se, por exemplo, às teorias dos
médicos que esperavam pelos dias críticos para aplicar medicamentos aos doentes. Neste sentido, afirmava que o próprio Cullen havia caído no erro dos dias
críticos: “A invenção dos dias críticos fez com que o professor, esperando pela
crise, deixe de continuar com os remédios necessários naquela mesma ocasião”.27
Referindo-se às causas do tétano, enfatizava o fato de que a maioria dos escritores
deixava “em silêncio sua causa próxima” e o método que utilizavam, longe de
ser estabelecido no plano científico, era todo empírico. Daí a importância das
experiências, exames e hipóteses para se chegar ao conhecimento e apartar os
obstáculos aos progressos da medicina.28
Em um de seus manuscritos, José Pinto de Azeredo ressaltava ter sido a prática
prolongada em diversos hospitais militares que o capacitou para expor a público
suas observações. No contato com os doentes pôde descobrir fenômenos que não
encontrou em “escrito algum”, pondo em prática certos preceitos antigos que eram
23
24
25
26
27
28
AZEREDO, José Pinto de. Anatomia dos ossos, e vasos lymphaticos do corpo humano. Manuscrito, Lisboa, 1791, fl. 01.
AZEREDO, José Pinto. Oração de sapiencia feita, e recitada no dia 11 de Setembro de 1791.
Manuscrito, Biblioteca Nacional de Portugal, 1791, fl. 05.
BRETON, David Le. La chair à vif: usages médicaux et mondains du corps humain. Paris:
Métailié, 1993, p. 99.
AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola... op. cit., p. 4.
Idem, Ibidem, p. 27.
Idem, Ibidem, p. 135-136.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
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Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
desprezados e abandonando “outros modernos que não fazem as vantagens que
prometem os últimos descobrimentos fisiológicos e químicos”.29 Deve-se observar
que a própria obra sobre as enfermidades em Angola é resultado das observações
que fez enquanto físico-mor no hospital. Foi exercendo suas atividades, enquanto
médico e professor de “aula de medicina”, que ele pode acompanhar de perto o
desenvolvimento das enfermidades e seus sintomas.
O hospital representou significativas mudanças no exercício da medicina.
A partir do século XVIII esse espaço proporcionou, nas palavras de Michel
Foucault, “um olhar da sensibilidade concreta, um olhar que vai de corpo em
corpo” permitindo que a teoria se desvanecesse no leito dos doentes, cedendo
lugar à experiência.30 Além disso, conforme observou Roberto Passos Nogueira,
essa instituição contribuiu para transformações da própria organização social da
medicina. Se desde a Idade Média a arte médica esteve vinculada ao sistema de
corporações, que opunha a formação do médico (físico) e do cirurgião – cabendo
ao primeiro a supremacia do conhecimento obtido pelo intelecto e ao segundo as
operações manuais e externas –, o hospital representou o ponto de convergência
entre o saber teórico dos físicos e o saber técnico dos cirurgiões, ao equiparar as
competências desses saberes em um espaço que exigia trabalho colaborativo.31
A partir daí, o próprio médico passou a incorporar conhecimentos que antes
eram restritos aos cirurgiões e a reconhecer a importância das técnicas cirúrgicas
para o diagnóstico das doenças. A medicina e a cirurgia passaram a figurar como
especialidades médicas na medida em que a formação dessas categorias técnicas-profissionais pressupunha uma prévia formação comum, incluindo a anatomia,
a fisiologia, a patologia, dentre outras disciplinas.32
Enquanto a homogeneização da medicina e da cirurgia se estabeleceu em
universidades europeias desde meados do século XVIII, em Portugal foi somente
após a aprovação dos Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772 que a formação dos médicos passou a incorporar esses preceitos. No texto dos Estatutos
29
30
31
32
AZEREDO, José Pinto de. Collecção de observaçoens clinicas. Manuscrito, op. cit., fl. 01.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 137.
NOGUEIRA, Roberto Passos. Do físico ao médico moderno: a formação social da prática médica.
São Paulo: UNESP, 2007, p. 71-79. A divisão entre medicina e cirurgia presente até meados do século
XVIII na Europa equivalia à divisão entre a ciência e a técnica; atividades intelectuais e atividades
práticas. A aproximação entre médicos e cirurgiões foi importante para avanços da técnica médica
e para o conhecimento do corpo e das doenças a partir dos estudos anatômicos. Para essa discussão
ver também: FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. A arte de curar: cirurgiões, médicos, boticários
e curandeiros no século XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2002, p. 64-72.
NOGUEIRA, Roberto Passos, op. cit., p. 87.
172
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
considerava-se ter sido o divórcio entre a medicina e cirurgia “prejudicial aos
progressos da arte de curar e funesto à vida dos homens não sendo possível que
seja bom médico, quem não for ao mesmo tempo cirurgião”, e determinava-se
que “sejam todos os médicos ao mesmo tempo cirurgiões”.33
A despeito da existência de diferenças entre cirurgiões e médicos ainda presentes nos Estatutos, almejava-se para os médicos uma formação mais abrangente, que
iria ser completada pelos hospitais. A esse respeito, Jorge Crespo comenta que no
contexto português o hospital se constituiu como o “lugar privilegiado da aquisição
da experiência médica científica, o espaço onde surgia a oportunidade mais fecunda
da aproximação com a diversidade das doenças e das misérias da comunidade”.34
A formação de José Pinto de Azeredo e sua atuação em Angola convergem para
esses aspectos que definiriam o exercício da medicina a partir do século XVIII, fundados no estreitamento entre teoria e empiria, atributos exercitados no contato cotidiano com os enfermos nos leitos dos hospitais. Mas para estabelecer as possíveis
causas das moléstias, o médico deveria também observar a natureza e os costumes.
Natureza e costumes
No Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola há várias passagens
relativas ao clima, à geografia e às condições de vida. O compêndio fornece
informações que permitem reconstituir as condições de vida dos habitantes em
Angola, os alimentos mais comuns, as práticas de cura utilizadas pelos empíricos.
Analisando as “causas remotas” das febres, Azeredo afirmava que não podia
deixar de se ocupar de uma descrição do país:
O seu terreno, as suas águas, as suas plantas, a sua atmosfera, os seus ventos, os seus costumes, os seus alimentos oferecerão talvez a um espírito indagador interessantes notícias,
pelas quais ele descubra os meios mais eficazes de prevenir, e de remediar tantos males.35
O médico atenta principalmente para as condições físicas e ambientais encontradas em Angola. A respeito da hidrografia, destaca as características dos mananciais de água do país, informando que o rio Bengo fornecia água com qualidade
péssima aos habitantes, por ser um “veículo de carne humana corrupta”, já que os
habitantes tinham o hábito de lançar nele vários despojos. Devido às condições
33
34
35
Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772. Livro III, Cursos das Sciencias nauturaes e
filosóficas. Coimbra, 1972, Edição Fac-Símile, p. 20.
CRESPO, Jorge. A história do corpo. Lisboa: DIFEL, 1990, p. 99.
AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola..., op. cit., p. 36.
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Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
climáticas pouco favoráveis, como a raridade das chuvas, salientava a utilidade das
poucas árvores e dos vegetais existentes, pois forneciam “ar puro para o homem
respirar e viver”. Daí a importância da conservação das florestas capazes de oferecer “quantidade de resinas e bálsamos odoríferos” corretivos da corrupção do ar.
Sublinhava igualmente a importância de algumas espécies vegetais para o sustento
e conservação da saúde, fornecendo remédio para o escorbuto, o “mal de Luanda”.36
Para Azeredo o sol era um dos principais motivos responsáveis por tornar o
clima “pestífero”. Sob ele caía o homem mais forte e robusto, como os oficiais militares, que antes de chegar a Angola tinham perfeita saúde. Nesse sentido, salientava a dificuldade de aclimatação dos europeus. Embora a doença pudesse atingir
qualquer pessoa, atingia com mais frequência e intensidade os que chegavam à
costa da África e não se acostumavam ao sol, os quais, “pelo costume que trazem
dos outros climas benignos, são atacados com maior força, e com maior perigo”.37
As exalações das águas do rio Bengo no tempo das chuvas possuíam
semelhante efeito nocivo à saúde, consideradas como um “veneno para o
corpo”, por tornar o “ar crasso, pestilento e incapaz de respirar”.38 Ao lado
das intempéries climáticas, o médico discorria sobre outros motivos que
concorriam para a impureza da atmosfera, como imensa quantidade de escravos que se acumulavam nas casas dos comerciantes até serem transportados para o Brasil, as casas de palha que com as chuvas apodreciam e os
cadáveres que ficavam enterrados nas igrejas, “indubitáveis motivos de mil
doenças”. Tais condições deveriam ser objeto de estudos e “desvelos daqueles
que vigiavam o bem público” para a conservação da saúde nas povoações.39
A associação entre a qualidade do ar e as enfermidades já havia sido objeto
da reflexão de José Pinto de Azeredo no artigo, publicado no Jornal Enciclopédico, sobre a qualidade do ar no Rio de Janeiro. Ao longo de sua análise,
postulava que em decorrência das descobertas da ciência moderna e da química
tornava-se possível examinar mais profundamente a atmosfera, distinguindo a qualidade de três tipos de ar e seus efeitos diversos no organismo: o ar
puro, o ar fixo e o ar mophete, de natureza praticamente desconhecida. Após
medir a quantidade de cada um desses “ares” no Rio de Janeiro, constatou
que a atmosfera da cidade continha menos ar puro e fixo e mais ar mophete
que na Europa. Argumentava ser talvez aquele ar, “atraindo os vapores maus
36
37
38
39
Idem, Ibidem, p. 37-44.
Idem, Ibidem, p. 5.
Idem, Ibidem, p. 46-49.
Idem, Ibidem, p. 51.
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Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
das lagoas, e águas encharcadas ainda servindo de alimentos a certos insetos
que atacam o nosso corpo (...), a causa condutora das enfermidades”.40 As
conclusões a que chega, apesar do emprego de métodos modernos, rendem-se
aos pontos de vista mais tradicionais sobre a insalubridade do clima tropical.41
Tendo por base tais pressupostos, Azeredo estabelecia um diálogo com vários
textos de medicina publicados em Portugal nas últimas décadas do século XVIII.
O médico português Francisco José de Almeida, por exemplo, sustentava opinião
semelhante sobre a influência da atmosfera na boa saúde do corpo: “na atmosfera
bebemos a saúde e a doença; as epidemias aqui se fomentam, e se propagam”.
Não era preciso mais do que “ela estar encerrada por algum tempo para perder a
sua elasticidade, ensopando-se talvez em vapores estranhos”. Desaconselhava,
nesse sentido, a circulação das pessoas em locais fechados, já que neles todos os
animais se “abafam, entristecem e adoecem em um lugar fechado”.42
Se em Portugal a qualidade da atmosfera trazia danos à saúde, as condições
naturais das regiões tropicais tornavam ainda mais suscetíveis as doenças de
colonos e escravos. No Tratado da conservação da saúde dos povos (1756),
o médico português Antônio Ribeiro Sanches não apenas enfatizava o calor
contínuo de regiões como o Brasil e a Costa da Mina, como observava que em
Portugal e em Angola, onde inundam tantos rios, e em toda a América, “depois
das inundações, logo que as matérias das enxurradas começam a apodrecer, o
ar infecta-se e produz semelhante podridão nos corpos: manifesta-se por toda a
sorte de febres podres, e, sobretudo, por disenterias”.43
40
41
42
43
Exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro, feito por José Pinto de Azeredo, doutor em
medicina pela Universidade de Leyde, físico-mor, e professor de medicina do Reino de Angola.
Jornal enciclopédico. Artigo I: História Natural fysica e química. Lisboa, Março, 1790, p. 259285. Para um exame detalhado das teorias sobre o ar atmosférico consultar: PINTO, Manuel
Serrano et. al., op. cit.
O texto sobre a qualidade do ar do Rio de Janeiro foi analisado por Lorelai Kury, que também
faz menção ao fato de o autor se vincular ao determinismo climático acerca dos trópicos, típico
da literatura do século XVIII. Entretanto, a autora observa que na passagem para o século XIX é
possível notar um confronto entre esses pontos de vista, pelo menos no tocante ao Rio de Janeiro.
KURY, Lorelai. Rio de Janeiro: a cidade e os médicos no período joanino. In: FLECK, Eliane
Cristina Deckmann; SCOTT, Ana Silva Volpi. A corte no Brasil: População e sociedade no Brasil
e em Portugal no início do século XIX. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2008, p. 119-134.
ALMEIDA, Francisco José de. Tratado de educação fysica dos meninos para uso da nação
Portuguesa. Lisboa: Officina da Academia Real de Ciências, 1791, p. 19-21.
SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Tratado da conservação da saúde dos povos obra útil, e
igualmente necessária aos magistrados, capitães generais, capitães do mar, e guerra, prelados,
abadessas, médicos e pais de família com um apêndice, considerações sobre os terremotos, com
a notícia dos mais consideráveis de que faz menção a história, e dos últimos que se sentiram na
Europa desde I de Novembro de 1755. Lisboa: Officina Joseph Filipe, 1757, p. 46.
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Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
Dessa maneira, as percepções desses doutores se rendem ao pessimismo
climático vigente no pensamento naturalista e médico desse período acerca dos
trópicos. Conforme observa David Arnold, a “invenção dos trópicos” a partir
da expansão ultramarina trouxe, ao lado da visão paradisíaca, representações
negativas que se convertem em lugares comuns na literatura de viagem do século
XVIII. A literatura sobre a África Ocidental e o Caribe reforçou as imagens do
clima inclemente e das enfermidades que acometiam os colonos de forma violenta.
Exemplo disso é o Treatise on tropical diseases and on the climate of the West
Indies (1787), de autoria de Benjamin Moseley, no qual se considerava que a transição dos climas temperados para os quentes era doentia para natureza humana.44
A concepção de que o clima agia sobre o organismo humano ganhou força
pelas doutrinas médicas em voga. Tendo por base a concepção hipocrática da
influência dos ares e lugares sobre a saúde e os temperamentos, forjou-se o conceito de “constituição epidêmica”, em que o estudo da doença não se centraria
no indivíduo, mas na investigação de um conjunto de dados. O médico inglês Sydenham foi um dos precursores do pensamento classificatório das enfermidades,
definindo uma abordagem histórica e geográfica da doença a partir do estudo das
condições naturais, como a qualidade dos solos, climas e as estações de chuva.
Base do neo-hipocratismo, as análises das doenças envolviam as topografias (a
situação dos lugares, o terreno, a água, o ar, a sociedade, os temperamentos dos
habitantes), observações meteorológicas, análise das epidemias, doenças reinantes
e descrição dos casos extraordinários.45
Atrelada às influências climáticas sobre a constituição das enfermidades
estava a dos “miasmas”, termo que designava a infecção do ar por gases ou
vapores pútridos. Partia-se do princípio de que o ar entrava “na própria tessitura
dos organismos vivos” e agia de múltiplas maneiras sobre esses, “por simples
contato com a pele ou com a membrana pulmonar, por substituições através dos
poros, por ingestão direta ou indireta”.46
Como é possível observar, José Pinto de Azeredo se mostrava tributário
dessas concepções e as incorporou em seu livro. O conhecimento dessas teorias
se efetivou não apenas pela sua formação em Edimburgo ou a experiência na
América Portuguesa e Angola. O contato com a literatura produzida sobre os
44
45
46
ARNOLD, David. La natureza como problema histórico. El médio, La cultura y La expansión
de Europa. México: Fundo de Cultura Económica, 2000, p. 138-139.
FOUCAULT, Michel, op. cit., p. 23-26.
CORBIN, Alain. Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos dezoito e dezenove.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 19.
176
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Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
trópicos exerceu igual importância em suas formulações, dentre as quais citava
a obra de John Hunter, Observations on the Diseases of the Army in Jamaica,
de 1788. Tais elementos demonstram os caminhos por que a literatura científica
do período chegava às mãos dos médicos em Portugal, indicando os processos
pelos quais o saber médico europeu se difundiu nos domínios portugueses.
Além das condições atmosféricas e climáticas, Azeredo se detém na descrição
dos costumes dos habitantes de Angola. Para o médico, o comportamento da população e suas crenças contribuíam para a intensidade das febres. Dentre esses,
reprovava os hábitos de cura dos africanos, afirmando que: nas “suas moléstias
[eles] não querem professores, nem tomam remédio de botica, porque só têm fé
nos seus medicamentos”, administrados por “feiticeiros” ou “curadores”. Lamentava ainda o fato de alguns brancos e europeus acreditarem na virtude dos remédios vendidos por “empíricos negros”. Recorrer a tais artifícios era fruto da ignorância, e razão de muitas desgraças que tornavam moléstias benignas mortais.47
As posições de repúdio aos curandeiros e feiticeiros por parte de Azeredo
exprimem uma atitude comum aos médicos ilustrados em Portugal. Tema recorrente na medicina europeia, a rivalidade entre os representantes da arte oficial de
curar e as práticas informais ganha uma nova dimensão no século XVIII. Como
analisa Márcia Moisés Ribeiro, nesse contexto, assiste-se a um movimento de
racionalização contra as práticas mágicas e seus praticantes, desdobramento da
mentalidade ilustrada e das reformas da medicina em Portugal.48
Para além de recorrerem às práticas informais de cura, Azeredo descreve
outros hábitos de igual modo reprováveis. É o caso da tradição de carpir os
mortos, “origem de excessos, de irreligião, e de enfermidades” para a qual, nem
a pregação da Igreja, nem o braço secular eram suficientes para colocar término.
O médico repreendia o fato de que o costume entre os angolanos de conservar
o corpo do cadáver a fim de prestar-lhe homenagem era sempre acompanhado
de muito vinho, alo (bebida fermentada feita de milho), e aguardente do Brasil,
levando ao uso imoderado dos “licores espirituosos” e propiciando as “moléstias
endêmicas do clima”.
O autor correlacionava as febres também ao comportamento sexual, observando: “um só ato venéreo em África produz tanta debilidade, quanto pode induzir
uma larga sangria”. Para justificar tal posição recorria a argumentos científicos
47
48
AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola..., op. cit.,p. 53.
RIBEIRO, Márcia Moisés. Exorcistas e demônios: demonologia e exorcismo no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 172-178.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
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Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
de que o excesso das atividades sexuais enfraquecia os nervos e a relaxação dos
órgãos não sustentavam o “peso da máquina” do corpo humano. Descrevia ainda
os hábitos alimentares e de higiene, mencionando como o “abuso das pesadas
ceias”, a “falta de limpeza do corpo e pouco asseio nos vestidos” influíam em
muito para as moléstias. Dentre os alimentos mais comuns menciona a quicoanga,
que era a mandioca apodrecida debaixo d’água chamada no Brasil de Pubá49, e
os matetes, papas ralas feitas de fubá ou farinha de milho. Considerava deficitário o regime dietético dos negros, pois estes se sustentavam com muito pouco
alimento e no tempo das secas comiam insetos, gafanhotos e outros animais.50
Ao lado do exame dos sintomas, dos exames anatômicos, os hábitos de vida
forneciam um importante caminho para os médicos chegarem às causas das enfermidades. Na conjuntura em que José Pinto de Azeredo publicou seu tratado,
compêndios de medicina que circularam na Europa e no mundo ibérico se voltavam para a normatização dos hábitos cotidianos e para a higiene, destinados a
instruir as famílias sobre como conservar a saúde, o que enfatiza a associação entre
as enfermidades e os comportamentos alimentares e higiênicos das populações.51
Outro aspecto a ser sublinhado diz respeito ao fato de José Pinto de Azeredo
se ater principalmente à descrição dos costumes e hábitos dos negros, dando
ênfase às precárias condições em que viviam. As informações sobre as doenças
provenientes da África constituíram um tema relevante da medicina em Portugal, presente em compêndios de matéria médica no decorrer do setecentos que
contribuíram para demarcar a etiologia das moléstias, suas causas, bem como as
terapêuticas úteis aos senhores de escravos para males como o escorbuto.52 Nas
49
50
51
52
O militar Elias Alexandre da Silva Corrêa, que viveu em Angola no século XVIII, em sua História
de Angola, também menciona a quicoanga, afirmando que os negros a preferiam à farinha. Cf.
PEREIRA, Magnus. Rede de mercês e carreira: o “desterro d’Angola” de um militar luso-brasileiro
(1782-1789). História. Questões e Debates, v. 45, 2007, p. 97-128, p. 121.
AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola..., op. cit., p. 54-60.
Para essa questão na medicina europeia ver: PORTER, Roy. The popularization of medicine,
1650-1850. Londres: Routledge, 1992. No caso do mundo ibérico e do contexto luso-brasileiro
ver, entre outros: PERUGA, Mónica Bolufer. “Ciência de la salud” y “Ciencia de las costumbres”:
higienismo y educación en el siglo XVIII. Revista de Ciencias Sociales, n. 20, 2000, p. 25-50;
ABREU, Jean Luiz Neves. Higiene e conservação da saúde no pensamento médico luso-brasileiro
do século XVIII. Asclepio, Madrid, v. 62, 2010, p. 225-250; MARQUES, Vera Regina Beltrão.
Instruir para fazer a ciência chegar ao povo no Setecentos. Varia história, n. 32, 2004, p. 37-47.
Para as informações sobre as doenças africanas nos tratados de medicina luso-brasileiros e seus
significados ver: FURTADO, Júnia Ferreira. A medicina no império marítimo português. op. cit.,
p. 104-105; WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Cirurgiões do Atlântico Sul - conhecimento
médico e terapêutica nos circuito do tráfico e da escravidão (séculos XVII-XIX). Anais do XVII
Encontro Regional de História – O lugar da História. Campinas: ANPUH/SP-UNICAMP, 6 a
10 de setembro de 2004. Cd-rom, p. 1-10.
178
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
últimas décadas do século XVIII, como bem lembra Rafael de Bivar Marquese,
o saber médico passou a ser “visto como um instrumento fundamental ao desenvolvimento colonial, dada a percepção dos impactos que as doenças tropicais
causavam na população branca e escrava”.53 No contexto luso-brasileiro, as
doenças dos escravos passaram a merecer mais atenção e a figurar como objeto
de diversos textos produzidos por letrados luso-brasileiros, além da tradução de
tratados estrangeiros que versavam sobre o assunto.54 O Ensaios sobre algumas
enfermidades d’Angola se insere, portanto, nesse movimento de inovação da
medicina em Portugal, como também está atrelado às questões específicas associadas à produção do conhecimento, caso das enfermidades dos negros.
O universo da cura
Após proceder ao exame das causas das moléstias, Azeredo propõe diversas
terapias para as febres, disenterias e tétanos. Neste ponto, o autor transita entre as
práticas reconhecidas pela tradição e as conclusões obtidas a partir da observação.
Ao se referir à cura das febres, afirmava que sempre respeitara a autoridade de
alguns autores, mas nunca havia se fiado nela: “O curativo das febres que apresento, as observações sobre a aplicação dos remédios, as experiências sobre o
bom êxito deles, são resultados da minha diligência, e do meu estudo”.55
A posição de Azeredo acerca das práticas de cura reafirma o princípio de
que na medicina exercida nos domínios ultramarinos portugueses a observação
empírica foi componente importante para o conhecimento de enfermidades
pouco conhecidas na Europa e cujas causas e tratamentos eram desconhecidos.
No movimento denominado por Luiz Felipe de Alencastro de “união microbiana
do mundo”, enquanto os europeus disseminaram a varíola, a rubéola e doenças
venéreas, os africanos transmitiram aos portos europeus moléstias como a dracunculose (filariose do aparelho circulatório, conjuntivo e das cavidades serosas),
causando a elefantíase, dentre outras enfermidades.56 Em contato com condições
geográficas e climáticas diferentes e doenças pouco conhecidas em Portugal,
53
54
55
56
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o
controle dos escravos nas Américas, 1660-1680. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 96.
Essa questão foi desenvolvida em ABREU, Jean Luiz Neves. A Colônia enferma e a saúde dos
povos: a medicina das ‘luzes’ e as informações sobre as enfermidades da América portuguesa.
História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, jul.-set. 2007, p. 761-778,
AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola..., op. cit., p. 61.
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 128.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
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Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
os oficiais de medicina tiveram que buscar formas de combater as doenças que
acometiam colonos e escravos, as quais não eram redutíveis às teorias existentes,
incapazes de darem conta da diversidade de fatores relacionados às enfermidades
em locais como a África e a América Portuguesa.57
Em contato com as práticas de cura utilizadas na época em que esteve em
Angola, Azeredo expunha as controvérsias existentes em torno da aplicação de
alguns medicamentos e sua eficácia. No caso da disenteria, conforme apontava,
não havia consenso sobre o uso do ópio, afirmando que enquanto Sydenham
confiava toda a cura na sua utilização, outros o condenavam totalmente. Para
ele, os efeitos benéficos do ópio eram enganosos, pois passado seus primeiros
efeitos, as dores logo retornavam.58
Azeredo censurava de semelhante maneira a utilização dos remédios caseiros
prescritos pelos empíricos e curandeiros, tidos como responsáveis pelas muitas
causas de morte no caso das febres. Em várias passagens enfatizava a necessidade
de bastante cautela no uso de sangrias, uma das práticas mais comuns para a cura
de muitas doenças, tanto no universo da medicina popular quanto da erudita.59 A
respeito da sangria afirmava: a “lanceta tem sido de bem funestas consequências,
sendo governada por aqueles que só têm lido as obras de Sydenham. Eu tenho
aprendido que a perda de uma pequena quantidade de sangue senão faz logo um
evidente mal também nunca faz benefício algum”.60 No tratamento da disenteria,
confessou ter “feito sangrar algumas vezes”, embora nunca considerasse que essa
trouxesse algum benefício. Avaliava que esse procedimento não convinha em
muitas moléstias, sendo a disenteria uma delas.61 Mesma opinião exprimia em
57
58
59
60
61
Sobre esse aspecto consultar, entre outros: FURTADO, Júnia Ferreira. A medicina no império
marítimo português. In: MARQUES, Rita de Cássia; GERMANO, Beatriz; STARLING, Heloisa
M. Murgel (Orgs.). Medicina: História em exame. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p. 92-93. RIBEIRO, Márcia M. Nem nobre, nem mecâncico... a trajetória social de um cirurgião na América
portuguesa do século XVIII. Almanack Braziliense, v. 2, 2005, p. 64-75. Disponível em: www.
almanack.usp.br; WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Gomes Ferreira e os símplices da
terra: experiências sociais dos cirurgiões no Brasil-Colônia In: FERREIRA, Luís Gomes. Erário
Mineral. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos
e Culturais; Fundação Oswaldo Cruz, 2002, p. 107-149.
Idem, Ibidem, p. 118.
Sobre a prática da sangria no universo da medicina europeia e em particular na portuguesa ver:
SANTOS, Georgina Silva dos. A arte de sangrar na Lisboa do Antigo Regime. Tempo, Rio de
Janeiro, n. 19, jul. 2005, p. 43-60; CARNEIRO, Henrique. Filtros, mezinhas e triacas: as drogas
no mundo moderno. São Paulo: Xamã, 1994, p. 83-84.
AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola..., op. cit., p. 79.
Idem, Ibidem, p. 125.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
relação ao tétano. Neste caso, as sangrias eram sempre nocivas, embora algumas
vezes a constituição do enfermo parecesse indicar a necessidade delas.62
Desse modo, o médico não se limitava à aplicação às cegas de determinadas
terapias; mesmo procedimento adotado em relação às teorias. Se a utilização das
flebotomias decerto continuou a fazer parte do repertório da medicina praticada
nos domínios ultramarinos portugueses, vários cirurgiões e médicos procuravam
utilizá-la em casos específicos de modo a não extenuar mais o corpo dos enfermos. Opinião similar à de José Pinto de Azeredo era a do cirurgião José Antônio
Mendes. No seu Governo dos mineiros (1770), escrito a partir das experiências
médicas na Capitania das Minas, condenava os excessos das sangrias, observando
que essas deviam ser reguladas “conforme as forças, e a fereza do mal o pedem,
e também a idade e temperamento”.63
Recriminando os remédios caseiros e aconselhando o uso moderado das sangrias, Azeredo lançava mão de vários componentes da farmacopeia portuguesa. É
o caso da Água de Inglaterra, que ele utilizava em razão de ser feita com uma quina
melhor do que a de Angola.64 Com o intuito de evitar falsificações, por decreto real
de 1799, o controle sobre a fabricação desse remédio destinado às armadas e domínios ultramarinos passou a ser efetuado pela Junta do Protomedicato, sendo produzido nos dispensários farmacêuticos escolhidos para essa finalidade.65 O preparado
feito à base da quina teve amplo emprego no combate às febres, tanto em Portugal
quanto em suas colônias. Timothy Walker chama atenção para o fato de que a
utilização da quina foi imprescindível à expansão ultramarina portuguesa, combatendo enfermidades e impedindo a morte de militares e funcionários coloniais
na África. Da Amazônia, no Brasil, foram transplantadas árvores para São Tomé,
onde se produzia toneladas de quina enviadas através dos domínios coloniais.66
62
63
64
65
66
Idem, Ibidem, p. 144.
MENDES, José Antônio. Governo dos mineiros, mui necessários aos que vivem distantes de
professores seis, oito, dez e mais léguas, padecendo por esta causa os seus domésticos e escravos
queixas, que pela dilaçam dos remédios se fazem incuráveis, e as mais das vezes mortais. Lisboa:
Officina de Antônio Rodrigues Galhardo, 1770, p. 65. Sobre a trajetória de José Antônio Mendes
consultar: RIBEIRO, Márcia Moisés. Nem nobre, nem mecânico..., op. cit.
AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola..., op. cit.,65.
MARQUES, Vera Regina Beltrão. Natureza em boiões: medicinas e boticários no Brasil Setecentista. Campinas/São Paulo: Editora da Unicamp; Centro de Memória-Unicamp, 1999, p. 238-239.
WALKER, Timothy, op. cit., p. 267. Sobre a ampla utilização da quina na farmácia nos domínios
portugueses ver também: PITA, João Rui. Mar, farmácia e medicamentos: algumas notas de
interesse histórico farmacêutico. In: IX Curso de Verão do ICEA, 2007, p. 1-8. Disponível em:
http://www.icea.pt/Actas/ActasiX/Jo%C3%A3o_Rui_Pita.pdf. Acesso em 02/06/2001.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
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Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
Apesar de reconhecer a eficácia dessa droga medicinal, Azeredo sublinhava
que algumas febres intermitentes resistiam a ela. Além disso, as dificuldades
em obter a quina levaram o médico a buscar alternativas capazes de substituir a
matéria prima do medicamento para combater os sintomas da doença. A partir
de suas experiências, encontrou na “noz vômica” uma “virtude igual, ou talvez
superior à da quina”. A descoberta era motivo de orgulho. Nesse sentido, observava que depois de ter comprovado seus efeitos benéficos no hospital “todos os
mais professores começaram a receitá-la por necessidade”.67
Além da “noz vômica”, Azeredo recorria ao arsênico branco, substância que,
se aplicada com prudência, se mostrava como uma das mais eficazes. Entretanto,
pela resistência que a doença oferecia a esses remédios, ele se viu obrigado a
colocar em prática “infinitos remédios”, vindo depois de frustradas tentativas a
encontrar um com reconhecido efeito, a “casca externa do coco” encontrado em
Angola e preparada em cozimento.68
Nas outras enfermidades de Angola Azeredo agia de maneira semelhante em
relação às febres, alternando a aplicação de remédios tradicionais com os descobertos por ele. No caso das disenterias, ministrava a ipecacuanha ou o ruibarbo
misturado à quina, bem como a “tintura das cantáridas” , substância responsável
por não só remover as dores como diminuir a inflamação do intestino.69
Da utilização desse amplo receituário se depreende que o médico não apenas
salientava o valor de suas descobertas, como incorporava as formulações comuns
na medicina portuguesa, compostas por ervas, raízes e substâncias de origem animal – como é o caso da mencionada “tintura de cantárida”, obtida de um besouro
e utilizada em regiões como a Capitania das Minas.70 A atitude de Azeredo o aproxima de outros cirurgiões e físicos que se viam obrigados a recorrerem à “botica
da natureza” para suprir a ausência de medicamentos disponíveis nas regiões
distantes de Portugal e se adequarem às necessidades das doenças endêmicas.71
Ao longo do século XVIII se intensificou a utilização de drogas e medicamentos de várias regiões do Império Português. Esse processo de trocas comerciais e
incorporação das drogas, obtidas do mundo natural, no receituário lusitano não
67
68
69
70
71
AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola..., op. cit., p. 90.
Idem, Ibidem, p. 92.
Idem, Ibidem, p. 121.
Sobre a utilização dos remédios obtidos da fauna em Minas Gerais ver: SOUZA, Rafael de
Freitas e. Medicina e fauna silvestre em Minas Gerais no século XVIII. Varia História, v. 24, n.
39, 2008, p. 273-291.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 3ª
ed., 1994. Tais questões são abordadas no capítulo “Botica da natureza”, p. 74-89.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
Jean Luiz Neves ABREU. José Pinto de Azeredo e as Enfermidades de Angola.
estava dissociado do culto racionalizado da exploração da natureza, possibilitado
pelos avanços científicos na metrópole portuguesa.72
**
A leitura do Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola permite abordar
algumas características do saber médico em fins do século XVIII, fruto tanto do
contato com a ciência das Luzes quanto das experiências em regiões do império
Português. Com base nesse tratado e outras fontes foi possível identificar algumas das concepções teóricas que exerceram influência na obra de José Pinto
de Azeredo e como ele as articulava às suas observações tecidas a partir de sua
estadia na América Portuguesa e em Angola. Além disso, cabe perceber como
algumas dessas concepções encontravam respaldo na medicina luso-brasileira
da época. Não deixa de ser significativo observar também a forma como o médico lida com o conhecimento à sua disposição, ao indicar como esse em muitas
ocasiões se mostrou limitado para os casos com os quais se deparou. A despeito
do recurso às teorias existentes na medicina, essa atitude é um traço revelador da
originalidade de sua obra, levando mais uma vez a rever a ideia da constituição
do saber científico luso-brasileiro como mera repetição do praticado nos centros
considerados mais avançados da Europa.
Embora pelas fontes consultadas não seja possível saber o impacto da obra
de José Pinto de Azeredo na medicina portuguesa, ela permite identificar certos
elementos do saber médico praticado no Império Português, produto não só dos
contatos com a medicina europeia, mas também de um saber moldado pelas experiências coloniais. O exame das trajetórias individuais, como a que se pretendeu
realizar no âmbito desse artigo, pode fornecer subsídios para a compreensão
de como os letrados se apropriavam do conhecimento das Luzes e, ao mesmo
tempo, procuravam produzir um saber que fosse capaz de lidar com a realidade
colonial. As obras de José Pinto de Azeredo ainda estão por merecer outros estudos e podem desvelar diversas questões que não foram analisadas neste artigo.
Recebido: 08/07/2011 – Aprovado: 02/12/2011
72
Ver a respeito o estudo de MARQUES, Vera Regina Beltrão, op. cit.; principalmente o capítulo
“A natureza decifrada”, p. 97-154.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 163-183, jan./jun. 2012
183
AS “GEOMETRIAS” DO TRÁFICO:
O COMÉRCIO METROPOLITANO E O
TRÁFICO DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1796-1807)
Maximiliano M. Menz
Universidade Federal de São Paulo, jovem pesquisador da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
Resumo
O artigo apresenta uma análise comparada dos registros alfandegários de Portugal e
Angola entre 1796 e 1807 e demonstra que a metrópole portuguesa era responsável
por mais da metade do financiamento do tráfico em Angola neste período. Além disso,
discute aspectos relacionados ao financiamento do resgate e do transporte de escravos,
reavaliando a participação dos mercadores coloniais no negócio.
Palavras-chave
tráfico triangular • financiamento • transporte • escravos.
Contato:
Universidade Federal de São Paulo
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Estrada do Caminho Velho, 333 – Bairro dos Pimentas
07252-312 – Guarulhos – SP
E-mail: [email protected]
* Pesquisa realizada com apoio da Fapesp. O autor agradece a Gustavo Acioli Lopes e Natalia
Tamone pela indicação de alguns importantes documentos para a elaboração do artigo, a Guilherme Conigiero pela elaboração dos mapas e a Diego Cambraia Martins por ter auxiliado na
organização das planilhas.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
185
THE “GEOMETRIES” OF TRADE:
METROPOLITAN COMMERCE AND
SLAVE TRADE IN ANGOLA (1796-1807)*
Maximiliano M. Menz
Universidade Federal de São Paulo, scholar-holder of
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
Abstract
The article presents a comparative analysis of customs records of Portugal
and Angola between 1796 and 1807 and shows that the metropolis was
responsible for more than half of the financing of slave trade in Angola
during this period. In addition, it discusses issues related to the financing of
ranson and transportation of slaves, reviewing the participation of colonial
merchants in the business.
Keywords
Triangular trade • financing • transport • slaves.
Contact:
Universidade Federal de São Paulo
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Estrada do Caminho Velho, 333 – Bairro dos Pimentas
07252-312 – Guarulhos – SP
E-mail: [email protected]
* Research with support of Fapesp. The autor thanks Gustavo Acioli Lopes and Natalia Tamone
for the indication of some importante documents for the preparation of the article, Guilherme
Conigiero for the preparation os maps and Diego Cambraia Martins for helping in the organization
of spreadsheets.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
Nos últimos vinte anos, consolidou-se um verdadeiro consenso historiográfico
em torno da ideia de que o tráfico de escravos era controlado pelos mercadores
residentes no Brasil, ao menos desde o século XVIII. O consenso foi gerado a
partir da publicação dos trabalhos de Manolo Florentino e Luiz Felipe Alencastro
e vem sendo reproduzido por autores como Antonio Jucá Sampaio, Roquinaldo
Ferreira e Alexandre Ribeiro.
Existem, é claro, nuances nestas interpretações e diferenças no que diz respeito ao recorte geográfico e temporal que a tese abrangeria: Manolo Florentino
afirma que os mercadores “cariocas” dominariam o tráfico de escravos desde o
início do século XVIII, tese baseada na extrapolação de seus dados pós 1808 e
em alguns testemunhos qualitativos.1
Já para Luiz Felipe Alencastro, a presença “brasílica” teria sido estabelecida
desde a segunda metade do século XVII, depois das guerras luso-holandesas, com
o estabelecimento de governadores brasílicos em Angola. A preeminência do Rio
de Janeiro só teria se estabelecido a partir do século XVIII, graças à utilização da
jeribita no tráfico de escravos. Esta última afirmação assenta-se sobre um cálculo
de José Curto, segundo o qual as exportações de jeribita pagariam 25% dos escravos adquiridos pela América Portuguesa no mesmo século. Acrescenta a isto
o estudo quantitativo de Corcino Santos, onde consta que apenas 15% dos navios
negreiros aportados em Luanda no século XVIII haviam partido de Lisboa.2
Jucá de Sampaio, por sua vez, manifestou dúvidas em relação ao predomínio
“carioca” no início do século, mas não concedeu aos arcaicos mercadores metropolitanos uma participação no tráfico, preferindo sugerir a ação de contrabandistas
estrangeiros em Angola para criticar a “miragem do exclusivo metropolitano”.
Roquinaldo Ferreira considerou que a cachaça e os têxteis asiáticos teriam sido
a chave para o controle colonial do resgate em Benguela e Angola, demarcando
apenas uma mudança no centro de gravidade americano, da Bahia para o Rio
de Janeiro, durante o século XVIII. Finalmente, Alexandre Ribeiro reproduziu a
tese de Manolo Florentino para a Bahia, sem aprofundar este debate específico,
tendo em vista que o escopo de sua pesquisa era principalmente quantificar as
importações de escravos.3
1
2
3
FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras. São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 177-184.
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 248-251, 28-29, 323-324.
Cf. SAMPAIO, Antonio C. Na Encruzilhada do Império. Hierarquias sociais e conjunturas
econômicas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001, p. 148-184. FERREIRA,
Roquinaldo. Transforming Atlantic Slaving: Trade, warfare and territorial control in Angola,
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
Apesar dos méritos desta historiografia, é curioso notar que o consenso
constituiu-se sobre frágeis evidências quantitativas. Os números de Alencastro
e as extrapolações de Florentino são pouco consistentes, enquanto que Ferreira
e Sampaio não apresentam nenhuma evidência serial, mas apenas testemunhos
indiretos, passíveis de diferentes interpretações, e algumas negociações isoladas,
baseadas em micro biografias de traficantes.4
O consenso também choca-se com a interpretação dos historiadores norteamericanos Herbert Klein e Joseph Miller. Klein, ainda nos anos 70, notava a
participação dos mercadores residentes no Brasil no transporte de escravos,
mas realçava o papel dos capitalistas de Lisboa no financiamento. Já Miller, a
maior autoridade sobre o tráfico em Angola, propõe uma visão bastante diferente
das conjunturas do tráfico: de acordo com ele, durante o século XVII, o tráfico
era controlado pelos governadores de Angola, demarcando a simbiose entre os
conflitos militares no sertão e a captura dos cativos. A repressão da monarquia à
participação dos governadores no comércio e a relativa desaceleração nos conflitos entre os colonizadores e os reinos africanos do interior deram lugar a um
resgate de escravos regulado mais pelo comércio, operado pelos mercadores de
Luanda, do que pela captura direta. A partir dos anos de 1720-1730, portanto,
o financiamento do comércio de escravos passou a ser dominado pelos homens
de negócio de Lisboa que se sucediam no contrato do estanco do marfim e da
cobrança de impostos sobre a exportação de escravos.
Ainda segundo J. Miller, esta situação teria mudado na década de 1780
quando os mercadores do Brasil, que até então se dedicavam ao comércio de
cachaça e ao transporte de escravos, abocanharam uma maior parte do negócio
graças à retração dos capitais lisboetas, que sucedeu à crise do ouro, e ao acesso
de mercadorias europeias de resgate fornecidas por contrabandistas ingleses. No
entanto, é notável que o professor norte-americano, apesar conhecer de modo
bastante profundo as fontes originais e os registros da alfândega de Luanda, tenha
apresentado poucos dados quantitativos em sua obra máxima, Way of Death;
apenas em artigos anteriores foi publicada parte destes números.5
4
5
1650-1800. PhD Dissertation, University of California, 2003. RIBEIRO, Alexandre Vieira. O tráfico atlântico de escravos e a praça mercantil de Salvador. Dissertação de Mestrado, UFRJ, 2005.
Cf. ainda LOPES, Gustavo Acioli; MENZ, Maximiliano M. Resgate e Mercadorias: Uma análise
comparada do tráfico luso-brasileiro em Angola e na Costa da Mina (século XVIII). Afro-Ásia,
nº 37, 2008.
Cf. KLEIN, Herbert. The portuguese slave trade from Angola in 18th century. In: Idem, The
Middle Passage. Princeton: Princeton University Press, 1978, p. 23-50. MILLER, Joseph. Way of
Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830. Winscosin: Universisty of
188
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
Além dos livros pioneiros de Herbert Klein e Joseph Miller, alguns poucos
trabalhos mais recentes têm contribuído para problematizar o consenso. Daniel
Domingues da Silva demonstrou que o tráfico para o Maranhão na segunda metade
do século XVIII era controlado pelos grandes capitalistas da praça de Lisboa,
ligados às Companhias Pombalinas. O estudo não questiona as teses dominantes;
pelo contrário, procura argumentar que depois de 1788 os negociantes coloniais
dominariam o tráfico para aquela região. Mesmo assim, é um trabalho importante,
pois sugere outras vias de interpretação a respeito do comércio de escravos.6
Neste sentido, é de fundamental importância a tese de Gustavo Acioli Lopes
Negócio da Costa da Mina, pois questiona a interpretação tradicional sobre o
tráfico na Costa da Mina, mostrando que, para além do tabaco, os mercadores
da Bahia e de Pernambuco carregavam também ouro, trocado por têxteis nas
feitorias europeias da Costa da África. Ademais, demonstra com fontes portuguesas que embarcações metropolitanas também resgatavam escravos na África
Ocidental durante a primeira metade do século XVIII. Vale mencionar ainda o
artigo que escrevi com Gustavo Acioli Lopes no qual apresentamos elementos
de prova que permitem relativizar a interpretação canônica sobre o tráfico na
Costa da Mina e Angola7.
Dadas as frágeis evidências seriais apresentadas originalmente por Florentino e Alencastro, é preciso perguntar os fundamentos do consenso. Arrisco-me
a sugerir alguns: em primeiro lugar, a obra de Joseph Miller nunca foi traduzida
ao grande público brasileiro e a ausência de dados quantitativos em seu livro
6
7
Winscosin Press, 1988. MILLER, Joseph. Imports at Luanda, Angola 1785-1823. In: PASCH, G.;
JONES, A. Figuring African Trade. Berlin: Reimer, 1986. MILLER, Joseph. Slave Prices in the
Portuguese Southern Atlantic, 1600-1830. In: LOVEJOY, Paul (Ed.). Africans in Bondage. Studies
in slavery and slave trade. Winscosin: African Studies Program, University of Winscosin, 1986.
SILVA, Daniel Domingues da. The Atlantic Slave Trade to Maranhão, 1680-1846. Volume, Routes
and Organization. Slavery & Abolition, v. 29, n. 4, 2008, p. 477-501. O argumento sobre o domínio dos mercadores das praças brasileiras após 1788 é negativo: mesmo notando um domínio
avassalador das rotas triangulares, ainda depois de 1788, o autor ressalta que apenas três dos
proprietários de embarcações podem ser encontrados na lista dos grandes capitalistas de Lisboa
organizada por Jorge Pedreira; conclui então que “provavelmente mercadores residentes em São
Luís ou outros portos brasileiros aumentaram o controle sobre o carregamento de escravos para o
Maranhão”. (p. 489, trad. minha). No entanto, a ausência destes proprietários na lista de Pedreira
pode significar simplesmente uma mudança no grupo mercantil lisboeta, com a saída dos grandes
capitalistas e a entrada de pequenos comerciantes. Vale dizer, aliás, que estas deduções sobre os
proprietários de embarcações são sujeitas a dúvidas (ver nota 22).
LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina e comércio atlântico - tabaco, açúcar, ouro e
tráfico de escravos: Pernambuco (1654-1760). Tese de Doutorado, USP, 2008; LOPES, Gustavo
Acioli; MENZ, Maximiliano M. Resgate e Mercadorias:..., op. cit.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
que, de modo explícito, afrontassem a tese dominante pode ter estimulado o seu
esquecimento.
Além disso, as tradições historiográficas do final da década de 80 podem ter
facilitado a aceitação do consenso. A interpretação do domínio do tráfico por parte
dos mercadores coloniais encontra raízes nas obras de Affonso de Taunay, Pierre
Verger e Mauricio Goulart, que apontavam para a existência de um comércio
direto entre o Brasil e a África, destacando o comércio luso-brasileiro em relação
às demais carreiras negreiras supostamente triangulares. A ideia combinava-se
de modo harmônico com a tese de um mercado interno colonial ou então com a
inversão de polos entre metrópole e colônia que configuraria a crise do Antigo
Sistema Colonial. Finalmente, o domínio brasileiro sobre o tráfico iluminaria a
importância deste negócio durante o Primeiro Reinado e explicaria, em grande
parte, os debates políticos em torno do tema no século XIX.
Por último, apesar de o consenso não ser baseado em dados seriais, foi a partir
desta tese que foram produzidos diversos estudos quantitativos que, aparentemente, confirmaram a ideia do domínio do “capital mercantil residente” sobre o
tráfico. Destaco o material do Transatlantic Slave Trade Database, constituído
a partir do registro massivo de viagens negreiras para o qual contribuíram os
estudiosos brasileiros. Esta base de dados demonstra que 91% dos escravos
embarcados em Luanda entre 1701 e 1807 teriam sido transportados por navios
originados em portos brasileiros.8
O presente artigo, porém, questiona o consenso historiográfico: através da
análise comparada dos registros alfandegários de Portugal e Angola entre 1796
e 1807, procura-se demonstrar que a metrópole portuguesa era responsável por
mais da metade do financiamento do tráfico em Angola, fornecendo a maior parte
das mercadorias utilizadas no resgate neste período.
A preocupação em quantificar a participação metropolitana no tráfico e a
crítica à corrente historiográfica dominante pode parecer ociosa e até mesmo
anacrônica atualmente. Afinal, como mostram os trabalhos mais atuais a respeito
das comunidades mercantis no Império português, o estágio no Brasil costumava
8
Variáveis utilizadas para a pesquisa na base de dados: principal local de desembarque (Brasil), local
onde a viagem começou (Brasil e/ou Portugal); bandeira da embarcação (portuguesa); principal
ponto de compra dos escravos (Luanda). O total de viagens iniciadas em Portugal foi de 129. O
total de viagens iniciadas no Brasil foi de 1.722. (http://www.slavevoyages.org/; consultado em
07/01/2010). Note-se que os dados do database não são completos: em meu levantamento nos
arquivos de Lisboa levantei 205 passaportes de embarcações reinóis com destino a Angola entre
1757 e 1807, ver as fontes da tabela 9, no apêndice.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
ser passageiro para os mercadores das praças brasileiras, fortemente articulados
com os homens de negócio de Lisboa; trocando em miúdos, o capital mercantil
colonial não era residente e nem autônomo num sentido estrito.9 Pretendo argumentar que o problema da participação metropolitana no tráfico deve ser colocado
de modo diferente, portanto. Ao invés de buscarmos hierarquias pessoais nas
trajetórias de homens de negócio, é preciso reconstituir as funções econômicas
de cada região do Império articuladas pelo comércio de escravos, de modo a
revelar as hierarquias espaciais, definidas pelos tipos de mercadorias utilizadas
para o resgate e pelos fluxos financeiros do negócio.
Para tanto, apresentarei cálculos a respeito da participação relativa das
mercadorias metropolitanas no comércio angolano. Em seguida, analisarei as
principais mercadorias utilizadas pelos traficantes lisboetas. Na terceira parte do
artigo reconstituirei algumas das rotas dos navios metropolitanos, retomando a
tese do tráfico triangular; tal análise, no entanto, deve ser cotejada com os dados
das balanças comerciais e dos mapas de exportação e importação que permitem
certas aproximações a uma contabilidade do comércio do Atlântico Português.
A última parte será uma discussão, ainda que não exaustiva, a respeito do papel
das embarcações “brasílicas” no tráfico. Na conclusão, pretendo sugerir quais
as consequências historiográficas que podem ser retiradas a partir deste estudo
e novas hipóteses para trabalhos futuros.
As fontes deste artigo são, em primeiro lugar, as balanças de comércio portuguesas, no intervalo entre 1796 e 1807. Como já é bem sabido, estas balanças
de comércio não apenas demonstravam os valores das exportações e importações
portuguesas, como também discriminavam as quantidades e os tipos de mercadorias exportadas e importadas por Portugal, tornando-se, portanto, uma fonte
obrigatória para o estudo da economia portuguesa nessa passagem de século.
Apesar de as fontes terem sido aproveitadas numa grande quantidade de textos
a respeito do comércio de Portugal com o Brasil ou com a Europa, praticamente
foram ignoradas nos trabalhos a respeito do tráfico de escravos.
As razões para o subaproveitamento destas fontes são muitas: em primeiro
lugar, e por motivos óbvios, o tráfico de escravos propriamente dito não era registrado pelas balanças portuguesas. Além disso, como demonstrarei ao longo do
9
Cf. PEDREIRA, Jorge. Brasil, fronteira de Portugal. Negócio, emigração e mobilidade
social (séculos XVII e XVIII). In: CUNHA, Mafalda (Coord.). Do Brasil à Metrópole, efeitos sociais (séculos XVII-XVIII). Anais da Universidade de Évora, n. 8 e 9,
1998/1999, p. 47-72; e PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia
do Rio de Janeiro na segunda metade do setecentos. Tese de Doutorado, UFF, 2009.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
texto, o próprio comércio português na África no final do século XVIII e início
do XIX era insignificante frente ao comércio com o Brasil. Finalmente, foi só nos
últimos 20 anos que os temas relacionados com o comércio de escravos no Brasil
ganharam relevância na historiografia e pelas já referidas teses que procuraram
realçar os vínculos diretos entre o Brasil e as possessões portuguesas na África.
Supôs-se implicitamente, portanto, que as balanças teriam pouco o que dizer a
respeito do tráfico de escravos.
Além das balanças de comércio existem registros alfandegários do porto de
Luanda em séries relativamente completas ao menos desde 1785. Estas séries são
o resultado do esforço de reorganização Imperial empreendido pelos secretários
de Marinha e Ultramar ao menos desde Martinho de Mello e Castro; o centro
lisboeta procurou estimular a produção de dados demográficos, econômicos e
naturais que permitissem conhecer as condições dos domínios portugueses do
Ultramar. Ao contrário das balanças, estes números foram bem explorados pelos
estudos de J. Miller e J. Curto sobre o tráfico e, sendo assim, aproveitarei os
dados publicados por estes autores para comparar com os dados copilados nos
arquivos portugueses.10
Completam as fontes quantitativas os mapas de exportação e importação dos
portos da Bahia e do Rio de Janeiro. A série baiana é completa (1797-1807) e
fiável, enquanto que os mapas do Rio fornecem alguns dados úteis, mas, como será
discutido no momento apropriado, não permitem calcular déficits e superávits.
Para redigir o artigo consultei ainda alguns documentos qualitativos que pude
acessar em arquivos brasileiros e portugueses: destaco as correspondências dos
governadores de Angola, D. Francisco Inocencio Coutinho e D. Miguel Antonio
de Mello, que revelam as particularidades do negócio.
1. Estimativa da participação metropolitana no tráfico (1796-1807)
Qual era a participação metropolitana no tráfico? Para responder a esta pergunta é preciso superar as limitações das fontes, pois os registros de Luanda não
apresentam o porto de origem das cargas, mas sim os lugares de produção das
diferentes mercadorias. Assim, estas estão divididas por quatro classes de origem:
10
MILLER, Joseph. Imports at Luanda…, op. cit.; MILLER, Joseph, Way of Death:…, op. cit.;
CURTO, José C. Álcool e Escravos. O comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e
Benguela durante o tráfico atlântico de escravos (c. 1480-1830) e o seu impacto nas sociedades
da África Central e Ocidental. Trad. Márcia Lameirinhas, Lisboa: Vulgata, 2002.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
Fazendas e gêneros da Cultura e Indústria de Portugal que tiveram despacho na alfândega
desta cidade, Fazendas e gêneros da Cultura e Indústria da América Portuguesa, Fazendas
e gêneros da cultura e indústria da Ásia, Fazendas e gêneros da cultura e indústria das
Nações da Europa que Sua Majestade Permite entrada nos seus domínios.11
Portanto, para estimar a participação relativa dos capitais lisboetas é necessário cruzar os registros da alfândega de Luanda com as balanças comerciais
portuguesas. Existem dois métodos de cruzar estes registros: o primeiro é calcular a parte que as exportações desde Portugal ocuparam nas importações gerais
registradas em Luanda, ao menos quando estes registros existem. O segundo
método é calcular o “poder de compra” das exportações portuguesas frente ao
valor dos escravos exportados a partir de Luanda.
Os dois métodos possuem inconveniências; no primeiro caso, as balanças
portuguesas apresentam preços evidentemente inferiores aos praticados no mercado angolano, pois ao preço no momento da exportação seria necessário incluir
os custos de transação. Mas as diferenças entre pesos, medidas, qualidades e
classificações nos dois registros não permitem um cálculo seguro a respeito desta
variação. Apenas no caso das pipas de vinho foi possível fazer uma comparação segura e os preços de Angola são entre 26% e 81% mais caros do que em
Portugal.12 Ademais, a contabilidade da Companhia de Pernambuco, referente
às décadas de 1760 e 1770 estimava uma lucratividade entre 40% e 25% sobre
as vendas de mercadorias enviadas de Lisboa para Angola.13
É verdade, porém, que alguns produtos registraram preços mais baixos em
Angola do que em Lisboa. Estas exceções aconselham a não exagerar as diferenças de preços, pois era próprio do negócio com escravos trocar um conjunto
de mercadorias pela compra de um grupo de escravos, a perda com um produto
poderia ser compensada pela alta margem de outro. Em todo o caso, parece óbvio
que Lisboa vendia barato e Luanda comprava caro. Mesmo assim, abstenho-me
de qualquer correção, já que a variação de preços entre os dois mercados é uma
margem de segurança para o meu argumento.
11
12
13
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ), Divisão de Manuscritos, 15,3,33. Manolo Florentino
utilizou parte destes dados, mas parece que ele não se deu conta desta particularidade da fonte. Cf.
FLORENTINO, Manolo. Tráfico Atlântico, mercado colonial e famílias escravas no Rio de Janeiro,
Brasil, c. 1790-ca. 1830. História Questões & Debates, Curitiba, n. 51, 2009, p. 69-119, aqui, p. 87-88.
Ver fontes da tabela 1.
Arquivos Nacionais Torre do Tombo (ANTT), Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba
(CGPP), Junta de Lisboa, Livros de Demonstrações, Livros 394 e 395.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
Outra incongruência é a distância entre a intenção de venda na metrópole e
o gesto na capital de Angola: algumas embarcações podem ter vendido parte da
carga em diversos portos africanos, apesar de terem declarado apenas Luanda
como destino, superestimando as exportações metropolitanas. Esta distorção se
manifesta de modo mais claro quando são desagregadas as categorias de produto:
assim, em 1799 e 1804 os valores dos têxteis asiáticos exportados por Portugal
superam as importações registradas em Luanda; o mesmo ocorre com o volume
de pipas de vinho em 1805.14 Tudo indica que este problema é causado pela
conjuntura: no período analisado os mercadores portugueses passaram a enviar
algumas embarcações para os portos ao norte de Luanda, as balanças registraram
estas cargas como exportações para “Angola”, mas estas, naturalmente, não eram
detectadas pela alfândega de Luanda. Para superar as dúvidas suscitadas por esta
distorção, forneço ainda um terceiro método de calcular a participação lisboeta
que utiliza fontes diferentes e que estabelece cargas médias para as embarcações
originadas no Brasil e em Portugal (ver apêndice).
O mesmo problema com relação ao preço das mercadorias portuguesas existe
quando comparo o valor das exportações de Portugal para Angola com o montante de escravos exportados. Deste ponto de vista, o cálculo subestima o “poder
de compra” das exportações portuguesas. Não obstante, Angola não exportava
apenas pessoas: marfim e cera eram as mercadorias preferidas pelas embarcações
que retornavam diretamente à metrópole e compunham 12% das exportações de
Luanda entre 1785 e 1794; deste lado, portanto, o cálculo superestima o poder
de compra das exportações portuguesas.15
Além disso, há um defeito na definição dos preços dos escravos utilizados,
pois eles não são correntes, mas médias decenais estimadas por J. Miller. Comparando as médias de Miller com alguns valores registrados na alfândega de
Luanda constata-se que podem existir diferenças positivas e negativas, ainda que
para o período entre 1796-1807 os preços da alfândega geralmente superam as
médias de Miller; mesmo assim, optei pela série do professor norte-americano
porque permite um cálculo completo para o período.
14
15
É preciso ainda considerar a assincronia entre as partidas do Tejo e as chegadas em Luanda. Em
geral, as embarcações portuguesas que faziam comércio na África eram em pequeno número, mas
eram de grande tonelagem e carregavam cargas expressivas, assim um veleiro que porventura
partisse de Lisboa no final de um ano e chegasse em Angola no início do outro ano provocaria
fortes distorções entre os registros portugueses e angolanos. Por isto, acredito que a análise deve
ser sempre no agregado, pois o estudo sobre anos isolados não autoriza nenhum tipo de conclusão.
SANTOS, Cocino. O Rio de Janeiro e a Conjuntura Atlântica. Rio de Janeiro: Expressão e
Cultura, 1993, p. 156.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
Tudo isto considerado, acredito que os dois cálculos resultam numa aproximação, no agregado, da participação metropolitana no financiamento do resgate
de cativos em Luanda. O “valor real” talvez esteja em algum lugar entre as duas
estimativas que apresento aqui; ideia que é reforçada pelo cálculo de segurança
que apresento em apêndice.
Tabela 1: participação metropolitana no financiamento do tráfico de escravos (em réis)
Ano
A
B
C
exportações
portuguesas
importações
angolanas totais
exportações de
escravos
A/B
621.834.000
A/C
1796
147.576.210
24%
1797
126.063.218
1798
202.270.993
355.565.753
643.184.000
57%
31%
1799
427.829.486
581.280.590
512.034.000
74%
84%
1800
444.749.540
494.710.000
90%
1801
665.781.400
618.540.000
108%
1802
531.446.477
998.801.831
730.658.000
53%
73%
1803
480.789.012
995.372.678
874.862.000
48%
55%
1804
586.978.155
988.522.000
823.378.000
59%
71%
1805
548.620.485
1.063.412.000
949.953.000
52%
58%
1806
597.642.320
931.165.000
64%
1807
486.255.200
741.272.000
66%
549.427.000
23%
Fontes: A) Exportações portuguesas: 1798: AHMOP, Superintendência Geral dos Contrabandos 5-1, 5-2, 3. Balanças do Comércio do Reino de Portugal com os seus Domínios. 1796-1797,
1799-1807. INEL, Balanças Gerais do Comércio do Reino de Portugal com os seus Domínios e
Nações estrangeiras. B) Importações angolanas: 1798 e 1799 AHU, Angola, Avulsos, cx. 89,
doc. 79, cx. 93A, doc. 48. 1802-1803, cx. 106, doc. 5, cx. 109, doc. 54. 1804-1805: MILLER,
Joseph. Imports at Luanda, Angola 1785-1823. In: PASCH, G.; JONES, A. Figuring African Trade.
Berlin: Reimer, 1986, p. 228. C) Exportações de escravos: O número de escravos exportados
foi retirado de CURTO, José C. Álcool e Escravos...., op. cit., quadros IV e VIII e multiplicado
pelos preços médios de J. Miller. Para o período entre 1796 e 1807 utilizei o preço médio da
década de 1800, pois era mais próximo aos dados da alfândega de Luanda. MILLER, Joseph.
Slave Prices in..., op. cit., p. 67.
A série sugere que entre 1796 e 1807, e mais particularmente entre 1798 e
1807 a metrópole dominava amplamente o financiamento do tráfico. No agregado, entre 1796 e 1807 as exportações portuguesas equivaleram a perto de 60%
das exportações de escravos e, para os anos em que foi possível comparar, as
primeiras foram 56% das importações totais de Angola. O cálculo de segurança
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
no apêndice apresenta uma participação de 54% da metrópole nas importações
totais de Luanda.
2. As mercadorias do tráfico
As balanças de comércio lisboetas permitem ainda discutir as classes de
mercadorias exportadas para Angola. Há, neste sentido, um total domínio de
produtos manufaturados: 86% das exportações entre 1796 e 1807 eram produtos
manufaturados, com especial relevância nos têxteis. Destes, os mais importantes
tinham origem asiática (56%), em segundo lugar vinham os lanifícios (15%),
muito provavelmente de procedência inglesa em razão do tratado de Methuen. Já
os produtos classificados como de fábricas nacionais eram apenas 6%; ou seja,
apesar da tendência positiva na produção manufatureira lusitana no período,
Portugal não foi capaz de substituir exportações no tráfico de escravos. Trata-se
de um vivo contraste com o tráfico inglês, onde as manufaturas de produção
nacional gradualmente substituíram os panos de algodão asiáticos.16
As exportações de mantimentos portugueses, por causa do vinho, ainda superavam ligeiramente os produtos das fábricas. Bem entendido que não devemos
tomar estes dados pelo seu valor de face, pois, como já argumentou Valentim
Alexandre, nem todos os mantimentos registrados nas balanças eram de produção nacional portuguesa, enquanto que as categorias “linifícios”, “lanifícios” e
“metais” não se resumiam a reexportações. Aqui a classificação dos registros de
Luanda é mais útil, no intervalo de 1795-1797 os têxteis eram 51% dos produtos
portugueses importados, os manufaturados vários eram 10% e os produtos ligados
à agricultura eram 39%.
Mas, a verdade é que o mercado angolano era realmente irrelevante para
as manufaturas portuguesas. Basta comparar os valores das exportações metropolitanas de fazendas produzidas nas fábricas nacionais para Angola (em torno
de 340 contos) e para o Brasil (37.480 contos) no período entre 1796 e 1807.17
Tampouco tinha importância para a atividade agrícola, pois entre 1796 e 1800
16
17
Sobre o surto manufatureiro português do final do século XVIII, ver: ARRUDA, José Jobson de.
O Brasil no Comércio Colonial. São Paulo: Ática, 1980; ALEXANDRE, Valentim. Os Sentidos
do Império: Questão nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português. Porto:
Edições Afrontamento, 1993; ALEXANDRE, Valentim. Um momento crucial do subdesenvolvimento português: efeitos económicos da perda do Império Brasileiro, Ler História, n. 7, 1986,
p. 3-45; PEDREIRA, Jorge. Estrutura Industrial e Mercado Colonial Portugal e Brasil (17801830). Lisboa: Difel, 1994.
Para os valores das exportações das fábricas para o Brasil, ver NOVAIS, Fernando. Portugal e
Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial. São Paulo: Hucitec, 1995, 6ª ed., tabela 29.
196
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
as exportações de vinho para a colônia africana equivaliam a aproximadamente
0,34% das exportações do produto para a Europa.18 No apêndice, apresento
ainda uma descrição geral dos valores e das classes de produtos exportados de
Portugal para Angola.
A classificação do produto sobre a superfície do mercado não permite chegar
a grandes conclusões sobre a relação entre o comércio de escravos e os setores
da economia portuguesa, pois pouco diz a respeito do seu modo de produção: os
manufaturados nacionais exportados por Portugal poderiam ser produzidos de
modo artesanal, ou em manufaturas tecnicamente avançadas. Mesmo assim, o caso
angolano demonstra que as vantagens comparativas de Portugal, no interior do seu
sistema Atlântico, eram as atividades de transformação e não os produtos agrícolas.
A importância dos têxteis asiáticos joga luz sobre outra característica do
tráfico metropolitano. Como se observa pela tabela abaixo, grande parte deste
tipo de manufatura – 76% pelo cálculo defeituoso que proponho – utilizada no
resgate em Angola vinha em navios originados em Portugal; assim, a tese que
afirma o domínio dos mercadores brasílicos sobre o comércio de têxteis em Angola
é completamente incorreta no que diz respeito ao período estudado.
Tabela 2
Têxteis asiáticos. exportações de Portugal para Luanda e
importações totais de Luanda (em réis)
ano
exp. Portugal
imp. Luanda
col.2/ col.3
(1)
(2)
(3)
(4)
1798
114.081.500
134.953.123
85%
1799
298.220.000
256.018.715
116%
1802
205.701.980
368.555.845
56%
1803
240.878.320
323.574.100
74%
1804
260.541.020
237.245.280
110%
1805
293.632.460
522.135.292
56%
1.298.973.780
1.707.529.232
76%
total
Fontes: Ver tabela1. A importação total de produtos asiáticos nos anos de 1804
e 1805 foi calculada a partir das porcentagens publicadas por MILLER, Joseph.
Imports at Luanda..., op. cit., p. 229.
18
Fonte: MACEDO, Jorge. Problemas de História da Indústria Portuguesa no século XVIII. Lisboa:
Querco, 1982, 2ª ed., p. 196; CURTO, José C. Álcool e escravos..., op. cit., Quadro XIII e INEL,
Balanças de Comércio.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
O comércio de reexportações que era operado a partir de Lisboa só era possível graças ao regime de exclusivo e às restrições do tráfego direto entre as possessões coloniais; mais do que miragem, o exclusivo era o principal mecanismo
pelo qual os mercadores metropolitanos podiam ainda controlar o financiamento
do resgate em Luanda, pois lhes permitia fornecer, com concorrência limitada,
produtos asiáticos e da Europa do norte. Portanto, a vantagem econômica de
Lisboa refletia a vantagem política de ser o centro do Império.19
3. As geometrias do tráfico
Mas, afinal, qual era o traçado das rotas das embarcações que conectavam
Portugal a Angola? Apesar do banco de dados Slave Trade Database registrar, na
maior parte das vezes, apenas o destino brasileiro das embarcações luso-brasileiras,
o estudo serial dos historiadores portugueses Eduardo Frutuoso, Paulo Guinote e
Antonio Lopes – sobre a entrada de navios oriundos do Brasil no porto de Lisboa
– permite flagrar parte das embarcações em seu retorno ao Tejo.
É presumível que as embarcações que faziam rotas triangulares eram de
propriedade de transportadores reinóis. Algumas delas até poderiam pertencer a
mercadores de Luanda ou então a sociedades mistas entre diferentes portos; isto,
porém, não quer dizer nada, pois não apenas a propriedade de uma embarcação
poderia ser extremamente pulverizada, como também os proprietários do casco
e das mercadorias dificilmente se confundiam.20
19
20
O que contrasta com o negócio na Costa da Mina onde o resgate era livre, de modo que os comerciantes portugueses só podiam oferecer o tabaco (ou ouro) para competir com os mercadores da
Europa, traduzindo-se numa vantagem aos homens de negócio residentes na colônia. Cf. LOPES,
Gustavo Acioli; MENZ, Maximiliano M. Resgate e Mercadorias..., op. cit.; LOPES, Gustavo
Acioli. Negócio da Costa da Mina..., op. cit.
Em 1811 Manuel Pinto Coelho relatava que dos proprietários das embarcações que faziam
tráfico em Angola, seis pertenciam à praça de Luanda, seis à praça do Rio de Janeiro, um era de
Pernambuco e dois da Bahia. (IHGB, DL 1132.5, Manuel Pinto Coelho, 10/04/1811). Trata-se,
porém, do período pós 1808. Sobre a característica do negócio de transporte de mercadorias Cf.
DAVIS, Ralph. The Rise of the English Shipping Industry. London: MacMillan, 1962; COSTA,
Leonor. O Transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio do Brasil, 1580-1663.
Lisboa: CNCDP, 2002. Note que os dois autores afirmam que no tráfico a propriedade da carga
e da embarcação se confundiam, mas isto não ocorria no comércio luso-brasileiro de escravos
do final do século XVIII.
198
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?
?
Diana de Lisboa
Águia Lusitana
Diana de Lisboa
NS Piedade Prudente
Amigo
Diana
NS da Vitória
Águia Lusitana
Carolina
S. J. Diligente Vulcano
Águia Lusitana
Paquete do Pará
Comércio do Rio
S Antônio Sertório
Paquete da Bahia
Minerva
Águia Lusitana
40024
48515
40057
40084
40107
40132
40137
40155
40164
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8112
19215
40192
47523
40199
40207
1806
1806
1806
1806
1805
1805
1804
1804
1804
1803
1803
1802
1801
1800
1799
1799
1798
1797
col. 4
col. 5
12/04/1807
30/07/1807
25/03/1807
10/05/1807
13/10/1806
16/01/1806
07/07/1805
23/06/1805
05/12/1804
16/03/1804
29/09/1803
09/04/1803
14/05/1802
20/04/1801
14/09/1800
15/07/1799
31/03/1800
29/12/1797
555
316
337
321
666
652
673
746
417
623
841
626
467
679
663
624
714
363
col. 6
192
272
171
0
355
296
132
202
187
193
470
224
112
205
168
259
300
207
col.7
col. 8
Pará
Bahia
Bahia
Pará
Rio de Janeiro
Pará
Pernambuco
Maranhão
Maranhão
Pernambuco
Pernambuco
Pernambuco
Maranhão
Pernambuco
Pará
Bahia
Pernambuco
Pernambuco
Abreviaturas: col. 1: número da viagem; col. 2: nome da embarcação; col. 3: data do início; col. 4: data do desembarque dos escravos; col. 5: data do retorno; col.
6: escravos carregados; col. 7: carga, em toneladas; col. 8: porto americano.
Fontes: FRUTUOSO, E.; GUINOTE, P.; LOPES, A. O Movimento do Porto de Lisboa e o Comércio Luso-Brasileiro (1769-1836). Lisboa: CNCDP, 2001; e http://
www.slavevoyages.org/ (consultado em 07/01/2010).
28/01/1806
?
?
?
27/02/1804
?
24/07/1804
?
09/11/1803
09/05/1803
27/04/1802
?
22/10/1798
04/02/1798
14/07/1797
Ana de Lisboa
48511
col. 3
19/10/1796
8110
col. 2
Águia Lusitana
47300
col. 1
Tabela 3 - Viagens triangulares na rota Portugal - Luanda - Brasil - Lisboa
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
199
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
A tabela 3 é o resultado do cruzamento destas duas bases de dados; as colunas
1, 2, 3, 4 e 6 têm origem no Database, já as colunas 5, 7 e 8 foram retiradas do
estudo dos pesquisadores portugueses. Não se trata de um levantamento exaustivo,
pois registra apenas as embarcações em que constavam os mesmos mestres nas
duas bases de dados. Ademais a tabela inclui apenas as naves que mantiveram
uma rota estrita, passando por Luanda e necessariamente terminando a viagem
na capital portuguesa. Perdem-se, por este recorte, as embarcações que podem
ter preferido um porto português diferente como ponto de retorno; outro problema é que esta descrição uniformiza viagens que podem ter sido mais erráticas,
incluindo partidas em um porto americano ou africano.
Desse modo, entre as 40 viagens registradas no Database que seguiram
a rota Portugal-Luanda-Brasil no período de 1796-1807, encontramos 18 que
terminaram o percurso em Lisboa com o mesmo mestre. Os destinos das 22
viagens restantes podem ter sido os mais diversos: a troca do mestre, o retorno
a outro porto português, a demora demasiada no Brasil, o estabelecimento de
uma rota diferente (Brasil-Portugal-Luanda-Brasil ou então Portugal-LuandaBrasil-Luanda), a venda da embarcação no Atlântico-sul, a perda do navio por
acidente, etc.
A primeira conclusão é que apesar da frequência ser baixa, as rotas triangulares ocorreram, incluindo o retorno com cargas de produtos coloniais para
Portugal. A tabela demonstra ainda que o tráfico triangular estava conectado
principalmente às regiões de Pernambuco, Grão Pará e Maranhão. Esta parece
ser uma tendência geral do tráfico metropolitano durante o período, pois as 40
viagens triangulares registradas no Database carregaram escravos principalmente
para a região da Amazônia e para Pernambuco (tabela 4).
Tabela 4: escravos embarcados em Angola por destino
Região
navios portugueses
total
%
Amazônia
6.811
12.163
56%
Bahia
2.019
26.106
8%
Pernambuco
8.334
31.346
27%
Sudeste Brasil
5.333
74.118
7%
Fonte: ver nota 10.
200
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
A distribuição das rotas pode ser interpretada pela exclusão: as comunidades
mercantis das praças de Bahia e do Rio, bem estabelecidas no tráfico, dominariam o transporte de escravos em suas regiões, mas é importante considerar uma
continuidade dos capitais lisboetas ligados às antigas companhias pombalinas.
Esta distribuição também pode sugerir que os traficantes metropolitanos atuavam
nos mercados mais dinâmicos que, entre 1796 e 1807, atravessavam uma forte
expansão nas exportações, principalmente por causa do algodão.21
No total, a participação metropolitana no carregamento de escravos para a
colônia entre 1796 e 1807 foi insignificante. Segundo o Transatlantic Slave Trade
Database as embarcações que haviam partido do Brasil continuavam a dominar
de modo amplo o mercado de fretes dos escravos: 84% dos cativos embarcados em Luanda navegaram em embarcações que tinham origem em portos do
Brasil.22 Número que contrasta explicitamente com os dados da tabela 1, pois a
alta participação metropolitana no mercado angolano de importações deveria ter
alguma correspondência no mercado de exportações de escravos.
Mas não era o que ocorria: dividindo o valor das exportações portuguesas
que constam nas Balanças de Comércio pelo número de barcos originados em
Portugal que deram entrada em Luanda, sabemos que o valor médio das cargas
dos navios metropolitanos era de 73 contos de réis, o que permitiria comprar
aproximadamente 1.211 escravos em Luanda; contudo, estes navios carregavam
para o Brasil, em média, apenas 562 escravos de acordo com o Database.23
A Balança de Comércio entre Portugal e Angola aparentemente aprofunda o
paradoxo, pois enquanto Portugal exportou mercadorias no valor de 5.246.002.496
réis, importou apenas 77.091.026 réis, basicamente cera e marfim. Portugal, portanto, acumulou um saldo positivo absurdo (e, por conseguinte, Angola um saldo
negativo) de 5.168.911.470 réis. A análise desagregada mostra que a tendência
de saldos positivos para a metrópole manteve-se de modo uniforme entre todo o
período estudado. Ou seja, não era com exportações ou remessa direta de moeda
que Angola equilibrava seu saldo com Portugal.
21
22
23
Sobre a expansão exportadora nestas regiões e o papel do algodão ver ARRUDA, José Jobson de. O
Brasil no comércio colonial. op. cit.; PALACIOS, Guillermo. Cultivadores Libres, Estado y Crisis
de la Esclavitud en Brasil en la Época de la Revolución Industrial. Ciudad de Mexico: FCE, 1998.
Não é possível concluir nada desta variação de 91% no século XVIII para 84% no período de
1796-1807, pois as fontes do Database são demasiadamente aleatórias.
Fontes: exportações portuguesas, números e preços de escravos ver fontes da tabela 1. Números
de escravos carregados pelas embarcações originadas em Portugal, ver nota 10.
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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
Tabela 5: balança comercial entre Portugal e Angola (em réis)
ano
exportação
1796
147.576.210
1797
1798
importação
saldos
16.408.250
131.167.960
126.063.218
0
126.063.218
202.270.993
20.481.250
181.789.743
1799
427.829.486
7.155.000
420.674.486
1800
444.749.540
4.728.600
440.020.940
1801
665.781.400
0
665.781.400
1802
531.446.477
10.942.125
520.504.352
1803
480.789.012
2.336.000
478.453.012
1804
586.978.155
7.307.800
579.670.355
1805
548.620.485
3.241.000
545.379.485
1806
597.642.320
2.149.001
595.493.319
1807
486.255.200
2.342.000
483.913.200
total
5246002496
77.091.026
5.168.911.470
Fontes: INEL, Balanças Gerais do Comércio do Reino de Portugal com os seus
Domínios e Nações estrangeiras (1796-1807); e AHMOP, Superintendência
Geral dos Contrabandos 5-1, 5-2, 3.
Ora, desde David Ricardo sabe-se que as balanças de pagamentos em economias baseadas em moeda metálica tendem a se equilibrar no médio prazo.
Portanto, supõe-se que Angola deveria necessariamente obter saldos positivos
sobre o seu outro parceiro comercial tradicional, o Brasil. E, de fato, se observarmos a balança geral de Angola, baseada nos registros alfandegários de
Luanda, constata-se que a tendência geral do comércio angolano era positiva;
ou seja, dada a tendência negativa do comércio angolano com a metrópole, tais
superávits só poderiam ser sustentados com saldos altíssimos sobre o Brasil (ver
ainda a tabela 7).
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
Tabela 6: exportações e importações (totais) de Angola de acordo com os registros de Luanda (réis)
ano
exportação
importação
saldos
1785-1794
6.225.789.268
4.868.872.930
1.356.916.338
1795-1797
2.088.558.375
1.773.005.010
315.553.365
1798
674.669.580
355.565.753
319.103.827
1799
828.057.880
581.280.590
246.777.290
1802
833.815.280
998.801.831
(164.986.551)
1803
987.685.500
995.372.678
(7.687.178)
1804
985.587.000
988.522.000
(2.935.000)
1805
1.076.159.000
1.063.412.000
12.747.000
1808
831.244.660
825.226.958
6.017.702
1809
791.645.780
588.991.753
202.654.027
Total
15.323.212.323
13.039.051.503
2.284.160.820
Fontes: 1785-1794, dados totais copilados por Corcino Santos. O Rio de Janeiro e a
Conjuntura Atlântica. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1993, p. 156. 1795-1797,
BNRJ, 15,3,33. 1798 e 1799, AHU, Angola, Avulsos, cx. 89, doc. 79, cx. 93A, doc. 48.
1802-1803, cx. 106, doc. 5, cx. 109, doc. 54. 1804-1805: MILLER, Joseph. Imports at
Luanda…, op. cit., p. 228. 1808-1809, Arquivo Nacional (AN), Real Junta de Comércio
(RJC), cx. 448, pct. 1.
Mesmo assim, a demonstração dos superávits sobre o Brasil não basta para
resolver a questão, pois como já sabemos as embarcações originadas na metrópole carregavam uma parte pequena dos escravos exportados. Era necessário,
portanto, existir algum mecanismo financeiro que permitisse transferir o saldo
positivo angolano com o Brasil para Portugal, de maneira a equilibrar a balança
comercial de Angola com a Metrópole.
Como pioneiramente destacou Joseph Miller, as importações angolanas desde
Lisboa eram saldadas por letras, pois os homens de negócio de Lisboa preferiam
evitar o risco das perdas na middle passage.24 Assim, os mercadores de Luanda
lançavam em seu nome letras para serem sacadas sobre os homens de negócio
residentes no Brasil, sobre o produto da venda de seus escravos. As letras poderiam ser trocadas no Brasil por ouro ou mercadorias; através deste negócio,
o valor das mercadorias para o resgate na Costa da África transformava-se em
24
MILLER, Joseph. Way of Death..., op. cit., p. 299-301, 537. Diversos documentos coevos comprovam esta prática para o pagamento dos contratadores: ver, por exemplo, BNRJ, I-32,34,032
nº 001; AHU, Avulsos, Pernambuco, doc. 8074, cx. 104, 18/03/1764.
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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
remessas líquidas de ouro para Portugal ou então em outros produtos coloniais
como açúcar, algodão e tabaco.
Pelos números reunidos até aqui é possível estimar que apenas 28% das
exportações portuguesas para Angola, entre 1796 e 1807, foram pagas imediatamente com mercadorias (escravos enviados para o Brasil em embarcações
portuguesas, mais a cera e o marfim exportados para Portugal), o restante foi
pago com letras.25 Por conseguinte, grande número dos escravos carregados por
embarcações originárias dos portos do Brasil foi adquirido no sertão africano
graças às mercadorias fornecidas pelos mercadores metropolitanos. Vale dizer que,
mesmo nas rotas triangulares completas, as letras podem ter sido utilizadas para
pagamento dos escravos, pois não é improvável que os escravos e as cargas de retorno para Portugal estivessem sendo carregados em frete pelos navios negreiros.26
O triângulo financeiro do tráfico angolano manifesta-se também na balança
comercial entre Portugal e o Brasil, especialmente se desagregada por região.
Enquanto que no Rio de Janeiro as remessas de ouro e prata para o Reino
superavam os saldos (negativos) desta praça, nas regiões norte os superávits
comerciais obtidos sobre a metrópole eram muito superiores à quantidade de
moeda que efetivamente vinha de Portugal. Na capital do Brasil, a exportação
do ouro-mercadoria para Portugal saldava de uma só vez os déficits do Rio com
Angola e de Angola com o Reino. Nas regiões ao norte eram os produtos como
açúcar e algodão que geravam um superávit sobre Portugal que, no entanto, não
era saldado apenas com moedas, mas também com escravos (ver mapas).27
25
26
27
Valor dos escravos exportados em embarcações portuguesas (22.497 segundo o Database)
estimado em 1.372.317.000 réis, utilizando os mesmos critérios de cálculo da tabela 1. Para
os demais valores e fontes ver tabela 5. É verdade, porém, que os números do Database estão
incompletos, por isto a porcentagem do pagamento com mercadorias deve ter sido ligeiramente
maior.
O mesmo costumava ocorrer com o tráfico de escravos inglês. Cf. MINCHINTON, Walter E.
The Triangular Trade Revisited. In: GEMERY, Henry A.; HOGENDORN, Jan S. (Eds.). The
Uncommon Market. Essays in the Economic History of Atlantic Slave Trade. Nova York: Academic Press, 1979, p. 343.
Para os dados da balança entre Portugal e o Brasil ver ARRUDA, José Jobson de. O Brasil no
comércio colonial. op. cit. No entanto, utilizo o método de Valentim Alexandre para calcular
déficits e superávits. ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império..., op. cit.
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Todavia, é importante esclarecer alguns pontos sobre a organização financeira do negócio de escravos no final do século XVIII, de modo a destacar esta
conjuntura das demais.
Na década de 1760 as operações de crédito eram controladas pelos arrematadores lisboetas do contrato da cobrança de impostos sobre as exportações de
escravos desde Luanda e do monopólio do marfim. Os contratadores também
controlavam o meio circulante da capital angolana, fornecendo créditos, as
livranças, que eram utilizadas como papel moeda pela população da capital e
pelos mercadores de escravos que trocavam letras seguras sobre o Brasil por
este papel moeda.
As referências documentais a respeito do controle exercido por estes financistas sobre o comércio de escravos são muitas: em 1758 o Alvará de 11 de janeiro
atacava os monopólios de “certas e determinadas pessoas” sobre o comércio
angolano.28 Em 1769 seria a vez da Mesa de Inspeção da Bahia se referir “(...)
à iniquidade do monopólio dos contratadores e administradores das Rendas
Reais de Angola”.29
Por sua vez, o governador de Angola D. Francisco de Souza Coutinho afirmava que
(...) a íntima e estreita união que a Administração deste contrato formou desde o princípio
com os povos, faz com que ela influa bastante na causa pública, porque nem os povos
podem comerciar sem o contrato, nem este lucrar sem o trabalho e os suores do povo (...).30
Neste sentido, acusava particularmente o contratador Domingos Dias por fornecer crédito aos mercadores angolanos, exigindo o pagamento em ouro no Brasil.
Também uma longa memória anônima afirmava que os contratadores monopolizavam o resgate, fornecendo crédito a apenas duas casas de negócio, de Tomé
da Silva Coutinho e Manoel da Silva, ligadas aos administradores do contrato:
Foi tão grande este monopólio que desde o ano de 1763 até o 1768 só aquelas duas casas
vendiam fazendas para os sertões e deles recebiam remessas de cera, marfim e escravos,
28
29
30
Alvará de 11 de janeiro de 1758 em Ius Lusitaniae - Fontes Históricas do Direito Português.
Disponível em: http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt ; consultado em 16/04/2010.
AHU, Avulsos, Coleção Castro de Almeida (CA)-Bahia, doc. 8123, cx. 44, 20/12/1769.
Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), Correspondência de D. Francisco de Souza Coutinho,
Coleção Lamego, Códice 82, doc. 426, 20/08/1768.
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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
de tal sorte que tinham este comércio como fechado em todo o tempo do governador D.
Antonio de Vasconcelos.31
Também a Companhia de Pernambuco era uma forte operadora no comércio
de escravos em Angola, sendo responsável pela exportação de 26% dos cativos
enquanto durou seu monopólio.32
Mas o fim do contrato no ano de 1770 interrompeu este tipo de articulação
financeira. Ao receber a notícia do fim do contrato, D. Francisco de Souza Coutinho manifestava o receio de que o comércio fosse afetado pela falta de financiamento. Por isto, esperava que a Junta de Comércio de Lisboa e as Companhias
de Comércio “(...) devem dar uma regular navegação das fazendas próprias ao
resgate de escravos, ou a certa e segura escala das Naus da Índia, porque de
outra maneira perecerá o comércio”.33
Enviava ainda um cálculo da Junta de Fazenda de Angola sobre a quantidade
de mercadorias necessárias para fazer o resgate que permite demostrar o domínio
avassalador dos capitais lisboetas. Segundo os membros da Junta, o produto
anual das embarcações com origem nos portos brasileiros era de 160 contos
(28%), restando aí 404 contos que deveriam ser completados por embarcações
vindas de Lisboa.34
No entanto, apenas dois anos depois as naus das Índias foram proibidas de
desembarcar mercadorias no porto de Luanda sob a justificativa de que este negócio “(...) estabelecido por meio do interposto de Angola, um comércio geral
e navegação entre a Ásia, África e América, com total exclusão destes Reinos
(...)”.35 Ademais, cinco anos depois, as Companhias de Comércio perderam os seus
privilégios, o que pode ter provocado, junto com o fim do contrato, uma retração
dos capitais lisboetas. Como já foi dito, a opinião de Joseph Miller é que a partir
de 1780 ocorreu uma forte penetração dos mercadores do Brasil no comércio
angolano, facilitada pela retirada dos homens de negócio metropolitanos.36
31
32
33
34
35
36
BNRJ, Divisão de Manuscritos, I-32,34,032, nº 001.
Cf. MENZ, Maximiliano M. A Companhia de Pernambuco e o funcionamento do tráfico de
escravos em Angola. (artigo inédito), 2011.
IEB, Coleção Lamego, Códice 82, doc., Francisco Inocencio Coutinho, 03/02/1770.
AHU, cx. 54, doc. 28, Avulsos, Angola, 03/06/1770. Anexada à correspondência de D. Francisco
de Souza Coutinho.
Alvará de 19 de junho de 1772, em Ius Lusitaniae - Fontes Históricas do Direito Português,
disponível em: http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt ; consultado em 08/04/2009.
“The Brazilians found the field in Africa wide open, in part because Lisbon merchants effectively
withdrew from the Angola trade after the death of the king Dom José I and dismissal of his chief
minister, the Marquis of Pombal (…)”. MILLER, Joseph. Way of Death..., op. cit., p. 491-492.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
De fato, os testemunhos de Martinho de Mello e Castro e mais tarde do
governador de Angola, o Barão de Mossâmedes, apontam nesta direção. Martinho de Mello relacionava a “decadência” do comércio reinol ao crescimento do
contrabando francês, à vantagem dos produtos brasileiros e ao comércio direto da
Ásia com Brasil e Angola. Os números de passaportes retirados em Lisboa para
viagens a Angola confirmam a retração metropolitana na década de 1770.37
Por outro lado, existem indícios, ainda que pouco claros, de uma transformação na composição das cargas com o decorrente crescimento da participação
brasílica no fornecimento de mercadorias; como dizia o Barão de Mossâmedes,
“as embarcações da carreira da América que têm aqui a predileção dos naturais
e que trazem com o primeiro gênero de negócio de resgate a jeribita sortida com
toda a casta de fazendas”.38
No entanto, dois anos mais tarde, o mesmo Môssamedes escrevia:
Se acha esta praça muito desanimada, pelas péssimas vendas de todo o Brasil e empate
de cabeças no Rio de Janeiro, aonde sempre tiveram o maior consumo e se remetiam as
letras ou efeitos, terminando o giro com os dinheiros de risco, com a realizar-se tudo na
Metrópole.39
Afinal, não se tratou de uma retração definitiva; na década de 1780 e início
da de 1790 as saídas de embarcações metropolitanas oscilam bastante, até que,
no final do século XVIII, estas voltaram a frequentar o porto de Luanda de modo
mais amiúde. O domínio metropolitano sobre o crédito neste período é confirmado pelo governador de Angola D. Miguel Antonio de Mello, que fez o seguinte
comentário a respeito da comunidade mercantil de Luanda:
À exceção de três ou quatro negociantes, todos os mais desta praça possuem tão pequeno
cabedal próprio, que para sustentarem o comércio que fazem e entretem recorrem ao
meio de mandarem tomar na de Lisboa dinheiro a risco e com bom prêmio, com os quais
compram fazendas que para aqui conduzem, ou mandam vir obrigando-se a pagar dentro
de certo tempo a seus credores o principal e juros.40
37
38
39
40
AHU, Avulsos, Angola, cx. 62, doc. 57, minuta de Martinho de Mello e Castro, 22/06/1779 e
AHU, CU, Códices (passaportes), 774, 775, 776, 777, 778, 779, 780, 781, 782, 783, 784, 785,
786, 787.
AHU, Avulsos, Angola, cx. 71, doc. 52, Barão de Mossâmedes, 15/10/1786.
AHU, Avulsos, Angola, cx. 73, doc. 16, Barão de Mossâmedes, 15/03/1788.
BNRJ-22,2,50, Ofícios do Governador de Angola, Miguel Antonio de Mello, 30/01/1801.
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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
Creio que a explicação para esta nova conjuntura está na retirada dos navios
franceses que faziam uma forte concorrência na África Centro-Ocidental, nas
oportunidades de comércio com os espanhóis e na recuperação dos preços dos
escravos no Brasil. Assim, em minha opinião, e ao contrário do que afirma Miller,
a retração lisboeta foi apenas passageira.
Seja como for, o crédito continuava tendo uma origem principal: a capital do
Império. Mas esta dependência financeira do tráfico quanto ao crédito lisboeta
estava articulada institucionalmente de um modo diferente ao da década de 1760,
dado o fim do contrato sobre o imposto de exportação de escravos. Problema a
ser discutido em outro lugar: a correspondência do governador de Angola, nos
últimos anos do século XVIII, indica que a Junta de Fazenda da colônia africana
ocupou o lugar dos contratadores, fornecendo letras a serem descontadas sobre
as Mesas de Inspeção das praças brasileiras.41
4. O Brasil e o tráfico
Em 1758 o governador da capitania de Pernambuco, Luis Diogo Lobo da
Silva, escreveu para a Corte relatando a fiscalização feita aos navios negreiros
quanto da sua lotação. Comentando o hábito dos capitães de navio de superlotar
as embarcações, acrescentou a importante reflexão:
(...) atendendo a pouca utilidade que fazem nos gêneros que remetem para Angola, pela
excessiva quantidade jeribitas que nela introduzem, lhes fica sendo o frete de seis mil réis
limitado a poderem conservar as embarcações pelas despesas que fazem, o que parece justo
que S. Maj. atenda aumentando-lhes o que o mesmo Snr. julgar conforme nas presentes
circunstâncias, ou regulando em Angola os preços dos ditos escravos (...).42
O comércio de jeribitas e o frete eram as principais fontes de renda dos
mercadores daquela praça que atuavam no tráfico de escravos. Sobre as cachaças
muito já se escreveu; sabe-se que era o principal produto de origem brasileira
utilizado no tráfico em Angola e, portanto, a mercadoria mais importante no
ramo “brasílico” do tráfico; acrescentarei ainda mais algumas considerações a
este respeito logo em seguida.43 No entanto, poucos têm abordado o fretamento
41
42
43
BNRJ-22,2,50, Seção de Manuscritos, Ofícios do Governador de Angola, Miguel Antonio de
Mello, 24/07/1800.
AHU, Avulsos, Pernambuco, doc. 7129, cx. 89, Luis Diogo Lobo da Silva, 12/11/1758.
Ver CURTO, José C. Álcool e escravos..., op. cit.; ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos
viventes..., op. cit. Para uma crítica a respeito da sobrevalorização da jeribita nas importações totais
angolanas, ver LOPES, Gustavo Acioli; MENZ, Maximiliano M. Resgate e Mercadorias..., op. cit.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
209
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
dos escravos por parte das embarcações com origem nos portos do Brasil. Para o
consenso trata-se de um falso problema, pois cargas e embarcações são tratadas
indiscriminadamente como propriedade da mesma pessoa, em geral dos mercadores das praças brasileiras.44
Mas é justamente o fretamento que permite compreender a discrepância entre
o domínio metropolitano sobre as importações angolanas e a baixa frequência
das embarcações reinóis no carregamento de escravos. De fato, segundo J.
Miller a maior parte dos escravos carregados ao Brasil pertencia a mercadores
de Luanda que pagavam o frete aos capitães das embarcações brasileiras – e as
importações de mercadorias do Reino – com o produto da venda destes cativos
no litoral americano.45
Os números dos mapas de exportação e importação das praças da Bahia confirmam o fretamento. É importante, porém, fazer algumas ressalvas: os referidos
mapas são bem menos completos que os registros portugueses ou seus similares
angolanos; trata-se apenas de uma descrição bem geral dos produtos exportados.
As mercadorias da terra, cachaça e açúcar, estão relativamente bem discriminadas;
geralmente também consta uma coluna de “mercadorias europeias”, ou então
“mercadorias de Portugal” ou apenas “mercadorias”.
Um último problema em relação aos dados da alfândega da Bahia, apesar de
algumas vezes constar apenas Angola em mapas isolados (por exemplo, os de
1797, 1798 e 1799), as entradas e saídas de embarcação e os “Mapas Gerais”,
que sumariam exportações e importações da Bahia entre 1798 e 1807, indicam
a inclusão de Benguela neste registro.46
Por último, remeto o leitor às ressalvas feitas em relação aos dados de Lisboa,
pois os problemas dos preços e da incerteza quanto ao destino final das mercadorias também se verificam nos mapas de exportação do Brasil.
44
45
46
Inclusive Manolo Florentino conclui pelo domínio dos mercadores “cariocas” sobre o tráfico a
partir da declaração dos consignatários das cargas no porto do Rio de Janeiro, que constam nos
jornais após 1808.
MILLER, Joseph. Way of Death…, op. cit., passim.
Mas no ano de 1797 seguramente só foi registrado comércio com Angola.
210
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
Tabela 7: comércio da Bahia com Angola e Benguela (réis)
ano
exportações
importações
1797
19.488.760
67.400.000
-35.911.240
1798
47.000.000
216.880.000
-169.880.000
1799
62.674.640
132.480.000
-69.805.360
1800
32.400.000
198.800.000
-166.400.000
1801
30.716.000
146.960.000
-116.244.000
1802
41.100.520
315.080.000
-273.979.480
1803
46.073.980
287.040.000
-240.966.020
1804
73.600.500
209.440.000
-135.839.500
1805
57.892.800
195.600.000
-137.707.200
1806
36.093.900
33.704.000
2.389.900
1807
67.021.200
175.920.000
-108.898.800
total
526062300
1979304000
-1.453.241.700
Fontes: 1797, Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Registro da
Correspondência Expedida para o Rei; 1794-1797, Vol. 138. 28/02/1798.
1798-1807, BNRJ, Seção de Manuscritos, I-17,12,4, nº 2.
A primeira e mais óbvia conclusão é que a Bahia acumula déficits com as
praças luso-africanas; 1806 é o único ano “fora da curva”, possivelmente pelo
fim da paz de Amiens. Nas contas agregadas do tráfico, a balança de comércio
negativa da Bahia conecta-se perfeitamente com a balança de comércio positiva
de Portugal sobre Angola e o comércio angolano superavitário em geral (ver
tabelas 5 e 6).
Pode-se argumentar, entretanto, que os déficits baianos são falsos, pois não
estão contabilizadas as diferenças de preços e os custos de operação. No ano
de 1797 constam ainda 12 contos de réis de “promptificação do transporte e
benefício”.47 Ou seja, o autor do mapa calculava que os custos, os lucros e, muito
provavelmente, os fretes de retorno gerariam um valor 62% superior ao exportado. Já na nota ao mapa de 1798 afirmava o escrivão que “Estes gêneros devem
produzir pelas suas vendas ao menos 40% para salvar seguros de mar, corsários,
fretes avultados e algum benefício (...)”.48 Mesmo assim, se somados qualquer
um destes valores às exportações, os déficits permanecem expressivos.
47
48
APEB, Registro da Correspondência Expedida para o Rei, 1794-1797, Vol. 138. Descontei estes
12 contos das exportações para uniformizar os valores.
AHU, Avulsos, CA, Bahia, docs. 18375-18379, 25/08/1798.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
211
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
Portanto, estes déficits comprovam o desenho financeiro do tráfico de Angola
proposto aqui e, dada a baixa frequência das rotas triangulares que tinham a Bahia
como escala (ver tabela 4), apontam para a importância da prática de fretamento
dos escravos. Fortalecem ainda a minha hipótese que os mercadores de Lisboa
dominavam o financiamento do resgate de escravos em Luanda, afinal, estes
déficits, sem a decorrente remessa de moeda49, só podem ser explicados se considerarmos que a Bahia pagava parte da importação de escravos não com a remessa
de produtos para a África, mas enviando moeda ou mercadorias para o Reino.50
É notável também o padrão das exportações baianas para Angola e para
Benguela: dos seis anos em que foi possível consultar os mapas individualizados,
apenas em 1798 constatam-se exportações vigorosas de produtos da terra, especialmente a cachaça. Nos outros anos há um total domínio das mercadorias de
origem europeia. No final do século XVIII, portanto, as exportações da Bahia para
a África Centro-Ocidental era principalmente um negócio de reexportações.
Vale aqui uma comparação com o Rio de Janeiro: os mapas da capital do Brasil
são visivelmente incompletos, pois geralmente constam apenas as exportações de
produtos da terra.51 Ademais, apenas os volumes foram discriminados por portos,
enquanto que os valores foram agregados em cada classe de mercadoria. Foi necessário, portanto, calcular o valor de cada conjunto de mercadorias exportadas
para Angola para então somar o total.52 Assoma-se a isto mais uma incongruência,
como já havia notado J. Miller, muitos dos alimentos registrados como exportação no Rio de Janeiro eram, na verdade, utilizados para alimentar a escravaria
no retorno e por isto não constavam sua entrada na Alfândega de Luanda.53
49
50
51
52
53
E nos mapas da Bahia estão registradas remessas de moeda para o Rio Grande que permitiram
saldar com folga os déficits em transações com mercadorias.
Mais curiosa ainda é a balança de comércio com Costa da Mina na qual, apesar do decantado papel
do tabaco, os défictis são ainda mais absurdos. Na soma dos anos entre 1798 e 1807, o déficit foi
de mais de 3.030 contos de réis. Na falta de outra explicação, tudo indica que os mercadores da
Bahia remetiam muita moeda para a Costa da Mina. Os mapas, portanto, comprovam a tese de
Gustavo Acioli de que uma parte expressiva dos escravos era comprada com ouro naquela zona
(cf. Negócio da Costa da Mina..., op. cit.). Assim as pequenas importações de ouro registradas
nos mapas devem ser apenas o resto dessas negociações.
A única exceção foi o ano de 1798, quando foi incluída a exportação de vinho e vinagre, presume-se
de origem portuguesa.
Por exemplo, em 1804 consta o volume do açúcar exportado para Angola (1.052 arrobas), o
volume total exportado para todas as praças (442.863 arrobas) e o seu valor total (1.160.813.040
réis). Tive então de deduzir o preço médio da cada produto, no caso do açúcar (2.621 réis), para
então calcular o valor exportado para Angola (2.757.456 réis em açúcar).
MILLER, Joseph. Imports at Luanda…, op. cit.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
Tabela 8: exportações de produtos da terra do Rio de Janeiro para Angola (réis)
a
b
c
d
prod. da terra
jeribitas
navios
carga por navio
a/c
1796
82.250.753
63.380.338
14
5.875.054
1798
65.339.641
35.086.063
7
9.334.234
1803
86.680.144
67.298.453
13
6.667.703
1804
161.312.128
132.643.174
18
8.961.785
Ano
Fontes: 1796, AHU, RJ, cx. 160, doc. 12025; 1798, AHU, RJ, cx. 171, doc. 12689;
1803, AHU, RJ, cx. 225, doc. 15540; 1804, BNRJ, I-32, 14, 5, nº 13.
A tabela 8 revela a importância em termos absolutos dos gêneros da terra para
o tráfico operado a partir do Rio de Janeiro. É possível, porém, fazer uma estimativa bastante grosseira do peso relativo dos produtos da terra nas carregações
da capital do Brasil: cruzando as exportações baianas para Angola e Benguela
com o número de navios negreiros que partiram do porto nordestino, chega-se
a uma carga média de 12.554.181 réis. Supondo que no Rio de Janeiro a carga
média das embarcações era igual a da Bahia, é possível estimar que os produtos
da terra (coluna d) eram em torno de 47 e 71% das exportações da capital do
Brasil para o porto africano. Esta maior participação de produtos americanos
no comércio entre o Rio de Janeiro e Angola reflete o papel desempenhado pela
cachaça, representando sempre mais da metade das mercadorias da terra e em
torno de 36 e 59% do total das exportações do Rio para Luanda.
Sobre o papel dos fretes no carregamento de escravos para o Rio de Janeiro
não é possível concluir nada com os dados bastante defeituosos que possuo. Não
obstante, existem indícios já apontados que também o Rio de Janeiro acumulava
déficits com Angola (tabela 5); estes déficits representam os escravos importados
pelo Rio, cobertos pelas exportações portuguesas e pagos, portanto, com letras
ou moeda na capital do Brasil. Como também para o Rio de Janeiro as rotas
triangulares eram incomuns, é provável que uma parte dos escravos tenha sido
carregada em frete para este porto.
As vantagens comparativas dos mercadores do Brasil estavam, portanto, no
fornecimento de aguardente, principalmente do Rio de Janeiro, e na posse de uma
marinha mercante competitiva. No que diz respeito ao fornecimento de manufaturados, competiam apenas na margem, aproveitando-se das oscilações da navegação metropolitana. Acredito que isto explica particularmente porque no ano de
1796 as exportações de produtos da terra do Rio de Janeiro foram relativamente
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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
baixas, pois neste mesmo ano Lisboa remeteu cargas insignificantes para Angola
(ver tabelas 1 e 8).
Conclusão
As estimativas e os cálculos apresentados aqui não deixam margem a dúvidas:
entre 1796 e 1807 Portugal forneceu a maior parte das mercadorias utilizadas
para o resgate de cativos em Angola. O financiamento do tráfico de escravos,
apesar de ter um pequeno peso relativo no conjunto do comércio português no
Atlântico, garantia saldos expressivos que compensavam o negócio com o Brasil,
especialmente no norte-nordeste, onde as exportações de produtos tropicais ordinariamente superavam as importações de mercadorias europeias. Deste modo, os
portos metropolitanos restringiam a remessa de moeda para a América, problema
que não era menor na era do mercantilismo, não por causa de uma obsessão irracional por ouro e prata, mas porque os metais preciosos serviam como capital de
giro e eram utilizados no comércio asiático.54 Circuito fechado, o fluxo de moedas
era parcialmente controlado pelos agentes metropolitanos graças ao tráfico em
Angola; a moeda garantia o acesso à rota do Cabo e aos têxteis da Índia; estes,
por sua vez, eram fundamentais para o tráfico em Angola.
Configura-se assim um tipo de hierarquia espacial baseada no crédito,
em mercadorias e rotas mercantis e organizada politicamente pelo exclusivo
metropolitano. É notável que em Portugal o tráfico não tenha, a primeira vista,
influenciado as atividades de transformação na economia metropolitana, apesar
do surto industrial que se verificou no período. Angola era irrelevante enquanto
mercado para as manufaturas portuguesas, não produzindo o tipo de externalidades positivas que o tráfico de escravos provocou na economia inglesa do século
XVIII.55 Há um ponto, porém, que merece ser ainda mais investigado: a relação
entre o tráfico triangular no sentido estrito e o comércio e transporte de algodão
nas capitanias do Maranhão, Grão-Pará e Pernambuco, principais destinos das
embarcações que faziam esta rota. É possível, portanto, que exista um polo de
54
55
Cf. WILSON, Charles. ‘Mercantilism’: some vicissitudes of an Idea. The Economic History
Review, New Series, v. 10, n. 2, 1957.
Cf. INIKORI, Joseph. African and the Industrial Revolution in England: A study in international
trade and economic development. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. Ver ainda:
DARITY Jr., Wiliam. British Industries and the West Indies Plantations. In: INIKORI, Joseph;
ENGERMAN, Stanley (Eds.). The Atlantic Slave Trade: Effects on Economies, Societies, and Peoples in Africa, the Americas, and Europe. Durham/London: Duke University Press, 1992, p. 247279. BLACKBURN, Robin. The Making of New World Slavery. London/New York: Verso, 1997.
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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
contato entre escravidão e industrialização no sistema Atlântico português a ser
desvendado.
Neste sentido, concordo com Fernando Novais que o exclusivo metropolitano
era uma das “peças fundamentais” do sistema, mas ao invés de enfocar o problema
dos sobre-lucros, considero que era pelo exclusivo que Portugal conseguia certo
controle sobre os fluxos mercantis do Atlântico português durante o século XVIII.56
Ademais, este estudo confirma que a conjuntura do Atlântico Português durante o final do século XVIII e os primeiros anos do século XIX foi positiva. Até
aí nenhuma novidade, pois desde o final dos anos 70 autores das mais variadas
matizes historiográficas vêm reiterando esta ideia. Mas, em minha opinião, os
números aqui apresentados obrigam a repensar a proposição de que esta expansão gerou uma inversão de polos entre metrópole e colônia, pois a participação
metropolitana no tráfico é visivelmente positiva durante o período. Além disso,
como foi sugerido, todo o debate sobre déficits e superávits precisa ser revisto à
luz da balança de comércio entre Portugal, Brasil e Angola.57
O controle dos mercadores “brasílicos” sobre o tráfico de escravos em Angola
só pôde ocorrer de modo duradouro depois de 1808. Com o fim do exclusivo
metropolitano os homens de negócio das praças do Brasil acessaram livremente, e
a preços competitivos, as cargas de manufaturados europeus e asiáticos. Também
a vinda da família Real ao Brasil foi decisiva, pois provocou um curto no circuito
típico dos homens de negócio; com a corte no Rio de Janeiro era possível acessar
localmente os privilégios e os aparelhos do Estado que favoreciam aos grandes
negociantes.58 No que diz respeito ao tráfico, portanto, o ano de1808 deve ser
visto pela descontinuidade.
Finalmente, é possível reconhecer algum fundamento na tese do domínio do
“capital mercantil residente” sobre o tráfico. No entanto, o conceito é claramente
inapropriado pelas razões já apontadas; é necessário, portanto, descolar a residência provisória das pessoas do fluxo muito mais sinuoso do capital mercantil.
No final do século XVIII, na Bahia e em Pernambuco os homens de negócio
que residiam na colônia controlavam de modo esmagador o tráfico na Costa da
Mina, e é possível que os mercadores do Rio de Janeiro fizessem a maior parte
do tráfico de Benguela com capitais próprios. Os comerciantes coloniais também
eram responsáveis pela revenda dos cativos nos mercados americanos do interior,
56
57
58
Cf. NOVAIS, Fernando. Portugal e o Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial. op. cit., p. 72.
Estou pensando aqui no célebre debate entre Fernando Novais, Valentim Alexandre, Jobson
Arruda e Jorge Pedreira.
Devo esta ideia a um comentário feito pelo Prof. Jorge Pedreira em sala de aula.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
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Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
como Minas Gerais, ou então no Rio da Prata; negócios que seguramente movimentavam grandes capitais.59
Em todo o caso, deve-se ainda quantificar de modo mais preciso o comércio
direto entre Brasil e África para chegarmos a alguma grandeza de valor a respeito
da participação relativa dos mercadores “brasílicos” no tráfico. A tese também
deve ser testada no tempo e no espaço, posto que a organização financeira do
resgate parece ter variado nas diferentes conjunturas e feitorias africanas. Ou
seja, mais do que repetir o consenso, temos de problematizá-lo.
APÊNDICE
a) O terceiro método de calcular a participação relativa da metrópole no fornecimento de mercadorias para o resgate é pelo número de embarcações que
deram entrada no porto de Luanda. O primeiro passo foi calcular a carga média
das embarcações que saíram da Bahia para Angola e Benguela durante os
nove anos para os quais encontrei os registros de exportação e de embarcações
(12.554.181 réis); em seguida, extrapolei estes números para todas as naves
que deram entrada em Luanda com origem nos portos do Brasil. Seguindo
o mesmo procedimento para Portugal, calculei a carga média das embarcações metropolitanas dividindo as exportações portuguesas pelo total de
embarcações que tiraram passaporte (72) para os diferentes portos de Angola
(72.861.145 réis). Em seguida, multipliquei o número de embarcações que
efetivamente entraram no porto de Luanda, segundo os dados do Database
(53), pela carga média. Este cálculo, portanto, evita o problema relativo à
indefinição dos portos onde as mercadorias eram vendidas realmente.
Vale dizer, porém, que o resultado superestima as cargas de origem brasileira,
tendo em vista que as exportações para Benguela estão separadas nas Balanças
de Comércio portuguesas, enquanto que nos dados da Bahia estas exportações
foram somadas às exportações que tinham Luanda como destino.
59
VERGER, Pierre F. Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia
de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX. Salvador: Corrupio, 1987, original de 1968, passim. LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina..., op. cit., passim. Sobre Benguela,
ver MILLER, Joseph. Way of Death..., op. cit., p. 468-504. Sobre a revenda de escravos, além
do próprio Miller, ver RIBEIRO, Alexandre Vieira. O tráfico atlântico de escravos e a praça
mercantil de Salvador. op. cit.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
4
2
4
3
3
6
5
5
7
7
5
53
1797
1798
1799
1800
1801
1802
1803
1804
1805
1806
1807
total
3.861.640.731
364.305.729
510.028.021
510.028.021
364.305.729
364.305.729
437.166.875
218.583.438
218.583.438
291.444.583
145.722.292
291.444.583
145.722.292
b
Portugal
54%
54%
60%
63%
48%
62%
62%
47%
51%
61%
47%
45%
32%
c
174
15
16
14
20
10
12
15
12
14
09
18
19
a
2.184.427.546
188.312.719
200.866.901
175.758.538
251.083.626
125.541.813
150.650.176
188.312.719
150.650.176
175.758.538
112.987.632
225.975.263
238.529.445
b
Rio de Janeiro
30%
28%
24%
22%
33%
21%
21%
40%
35%
37%
37%
35%
52%
c
57
7
6
5
8
6
5
3
4
1
2
6
4
a
715.588.334
87.879.269
75.325.088
62.770.906
100.433.450
75.325.088
62.770.906
37.662.544
50.216.725
12.554.181
25.108.363
75.325.088
50.216.725
b
Bahia
10%
13%
9%
8%
13%
13%
9%
8%
12%
3%
8%
12%
11%
c
33
3
5
5
3
2
4
2
1
0
2
4
2
a
414.287.983
37.662.544
62.770.906
62.770.906
37.662.544
25.108.363
50.216.725
25.108.363
12.554.181
25.108.363
50.216.725
25.108.363
b
Pernambuco
6%
6%
7%
8%
5%
4%
7%
5%
3%
0%
8%
8%
5%
c
7.175.944.593
678.160.262
848.990.916
811.328.372
753.485.349
590.280.993
700.804.682
469.667.064
432.004.520
479.757.303
308.926.649
642.961.660
459.576.824
total
Algumas palavras devem ser agregadas a esta tabela: em primeiro lugar, é notável que em alguns anos as exportações de Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Portugal
superam as importações totais de Luanda (ver tabela 1), isto que não estão considerados os custos operacionais (fretes, seguros, etc.), que seguramente inflacionariam
ainda mais os valores apresentados na tabela 9. Já sugeri diversas explicações para isto no texto. O que mais chama atenção, entretanto, é como este cálculo fornece
um número agregado muito similar aos cálculos da tabela 1.
b)Aqui eu incluo o valor desagregado de todas as exportações portuguesas para Angola. Sigo apenas a classificação das balanças de comércio, sem agregar outros
comentários aos que já foram apresentados no artigo.
a: navios que deram entrada em Luanda, b: exportações calculadas pela carga dos navios, c: % frente ao total.
Fontes: Entrada de navios em Luanda: Transatlantic Slave Trade Database, http://www.slavevoyages.org/, consultado em 30/08/2011. Para o número de navios
que retiraram passaportes em Lisboa, AHU, CU, Códices 780, 781, 782, 783, 784, 785, 786, 787. Para o número de embarcações que saíram da Bahia para a África
Centro-Ocidental: APEB, Registro da Correspondência Expedida para o Rei, 1794-1797, Vol. 138, AHU, Avulsos, CA, Bahia, docs. 18375-18379, 25/08/1798. AHU,
Avulsos, CA, Bahia, docs. 20521, 25771, 27992, 29771, BNRJ, I-17,12,4,nº 4, BNRJ, Seção de Manuscritos, I-29,19,23, BNRJ-29,19,30.
2
a
1796
Ano
Tabela 9: estimativa das exportações para Luanda, de acordo com o número de embarcações.
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
217
218
%
lanifícios
6.883.586
9.139.178
10.570.713 13.345.338
10.797.455 28.363.720
32.136.636 45.868.600
18.912.160 44.901.410
24.110.265 39.693.190
53.542.340 116.916.730
36.882.655 87.174.602
45.691.565 107.960.000
17.133.995 86.101.350
43.847.720 128.363.800
31.728.050 87.606.120
fábricas
14.055.504
9.484.842
22.368.833
16.824.140
16.768.000
27.533.060
41.549.762
24.474.860
14.340.160
7.436.960
6.360.840
11.388.500
linifícios
56,1%
6,3%
15,2%
4,1%
2.941.570.783 332.237.140 795.434.038 212.585.461
88.885.006
76.447.187
114.081.500
298.220.000
329.258.500
496.963.100
205.701.980
240.878.320
260.541.020
293.632.460
274.110.560
262.851.150
1796
1797
1798
1799
1800
1801
1802
1803
1804
1805
1806
1807
total
asiáticos
Ano
0,3%
13.142.017
1.022.194
979.648
121.700
294.400
1.108.830
424.140
1.372.095
1.835.890
947.200
2.458.440
1.478.200
1.099.280
sedas
4,1%
212.572.453
4.628.444
4.055.004
7.977.760
5.800.630
6.671.620
18.901.135
36.306.930
23.655.115
41.347.880
27.559.650
18.557.560
17.110.725
metais
Tabela 10: Exportações portuguesas para Angola (réis).
85,5%
4.486.417.222
total bens
manufaturados
124.613.912
114.882.732
183.710.968
399.144.406
417.620.520
607.624.890
434.265.167
414.901.442
470.827.825
434.322.855
472.718.680
411.783.825
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
335.081.667 381.755.370
total
7,3%
0,2%
8.111.400
550.600
0
2.400.000
350.000
1.000.000
850.000
823.200
0
0
722.000
311.600
1.104.000
ouro e
prata
total outros
74.471.375
486.255.200
147.576.216
126.063.218
202.270.993
427.829.486
444.749.540
665.781.400
531.446.487
480.789.012
586.978.145
548.620.485
597.642.320
total
0,3%
14,1%
13.512.173 738.460.610 5.246.002.502
354.820
0 22.962.304
373.473 11.180.486
774.480 18.560.025
675.700 28.685.080
653.020 27.129.020
1.437.480 58.156.510
2.296.000 76.056.650
1.572.120 65.887.570
1.953.860 116.150.320
1.404.640 114.297.630
2.016.580 124.923.640
drogas
Fontes: INEL, Balanças Gerais do Comércio do Reino de Portugal com os seus Domínios e Nações
estrangeiras (1796-1807); e AHMOP, Superintendência Geral dos Contrabandos 5-1, 5-2, 3.
6,4%
37.504.245
1807
%
14.118.188
5.688.692
4.577.240
9.055.280
13.450.160
30.064.470
37.891.370
45.425.690
62.548.120
53.872.810
69.001.640
8.844.116
2.718.321
12.858.305
17.954.100
12.175.840
25.831.360
35.869.280
18.889.760
50.926.340
58.708.580
52.801.420
1796
1797
1798
1799
1800
1801
1802
1803
1804
1805
1806
36.061.710
vários
gêneros
Ano mantimentos
continuação da tabela 10.
Maximiliano Mac MENZ. As "geometrias" do tráfico.
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Recebido: 09/08/2010 – Aprovado: 14/10/2011
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 185-222, jan./jun. 2012
AUTOGOVERNO E ECONOMIA MORAL DOS ÍNDIOS:
LIBERDADE, TERRITORIALIDADE E TRABALHO
(ESPÍRITO SANTO, 1798-1845)*
Vânia Maria Losada Moreira
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar a aplicação da Carta Régia de 12 de maio de 1798
nas vilas e lugares indígenas do Espírito Santo e, por conseguinte, o autogoverno dos
índios que, do ponto de vista legal, esteve em vigor no Brasil entre 1798 e 1845. O
sistema do autogoverno aplicado às povoações de índios visava, em primeiro lugar,
garantir os interesses do Estado, mas também viabilizou o desenvolvimento de relações
assimétricas de reciprocidade entre eles e os governantes da província.
Palavras-chave
índios • autogoverno • trabalho.
Contato
Rua Vinícius de Moraes, n. 281 – apto. 101
22411-010 – Rio de Janeiro – RJ
E-mail: [email protected]
* O artigo é baseado em pesquisa que contou com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012
223
INDIAN’S SELF-GOVERNMENT AND MORAL ECONOMY:
LIBERTY, TERRITORIALITY AND LABOR
(ESPÍRITO SANTO, 1798-1845)*
Vânia Maria Losada Moreira
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Abstract
The purpose of this paper is to analyze the enforcement of the Royal Edict of March 12th
1798 in the Indian villages and territories of Espírito Santo, and therefore the Indian’s
self-government which, according to a legal standpoint, took place in Brazil between
1798 and 1845. The self-governing system enforced to Indian population aimed firstly to
warrant the State interests, but it has also made possible the development of asymmetric
relations of reciprocity between them and the province governments.
Keywords
indians • self-government • labor
Contact:
Rua Vinícius de Moraes, n. 281, ap. 101
22411-010 – Rio de Janeiro – RJ
E-mail: [email protected]
* This article is found in a research that counted with financial support of the Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012
Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
Ao assumir a governança da capitania do Espírito Santo em 1800, Antônio
Peres da Silva Pontes tinha ordens expressas para abrir o rio Doce à navegação
e ao povoamento. Para orientá-lo nesse assunto, foi-lhe enviado o Aviso de 29
de agosto de 1798 – expedido por D. Rodrigo de Souza Coutinho, ministro e
secretário de Estado e dos Negócios da Marinha e dos Domínios Ultramarinos –
orientando-o para que fosse observada na capitania a Carta Régia de 12 de maio
de 1798, que abolia o Diretório dos Índios e ditava outras providências.1 Seguindo
as orientações desse texto legal, que mandava, dentre outras coisas, alistar os
índios em “corpos efetivos de índios”, uma das primeiras medidas de Silva Pontes
foi a criação, em 4 de abril de 1800, de um “corpo de pedestres” composto fundamentalmente de “índios civilizados” residentes nas vilas e povoados locais.2
Além disso, localizou e distribuiu seu efetivo nos quartéis e destacamentos dos
sertões que faziam a proteção contra as incursões do “gentio inimigo”, isto é, dos
índios botocudos que viviam em guerra contra os luso-brasileiros da capitania.
Pouco depois, em 1806, o então governador da capitania Manoel Vieira de
Albuquerque Tovar desrespeitava abertamente a Carta Régia de 1798 nomeando
para Diretor dos Índios do Espírito Santo Bonifácio José Ribeiro, gerando, por
isso mesmo, descontentamento. Houve “representações contra o ato”3 e, embora não esteja claro quem são os autores dessas representações, sabe-se que as
reclamações eram contra a nomeação de um Diretor de Índios. Isso, pois, contrariava o espírito da lei de 1798, que preconizava textualmente o fim da tutela
dos diretores de índios, segundo o argumento de que os índios eram iguais em
direitos e obrigações aos outros vassalos da Coroa.
O sistema de Diretório reintroduzido na capitania não se deu ao acaso, pois
se relacionava com o processo de conquista das terras do vale do rio Doce aos
índios que hostilizavam a expansão luso-brasileira. Dois anos depois, aliás, foi
1
2
3
Cópia da Carta Régia de 12 de maio de 1798 sobre a civilização dos índios, enviada a Antônio
Peres da Silva Pontes, em 29 de agosto de 1798. In: OLIVEIRA, José Joaquim Machado de.
Notas e apontamentos e notícias para a história da província do Espírito Santo. Revista do IHGB.
Rio de Janeiro, tomo XIX, n. 22, 1856, p. 161-335, p. 313-325.
RUBIM, Francisco Alberto. Memoria para servir à história até o anno de 1817, e breve notícia
estatística da Capitania do Espírito Santo, porção integrante do Reino do Brasil, escripta em
1818, e publicada em 1840 por um capixaba. Lisboa: Imprensa Nevesiana, 1840, p. 12. Sobre
o alistamento dos índios nas milícias e em corpos efetivos de índios, tal como orientava a Carta
Régia de 12 de maio de 1798, ver SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos: etnia,
legislação e desigualdade na colônia. Sertões do Grão-Pará, c.1755-c.1823. Tese de Doutorado,
História, Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, 2001, p. 225.
DAEMON, Bazílio Carvalho. História e estatística do Espírito Santo. Vitória: Typographia
Espírito Santense, 1879, p. 207.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012
225
Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
decretada a guerra ofensiva contra os botocudos de Minas Gerais e do Espírito
Santo, por meio da Carta Régia de 13 de maio de 1808, assinada pelo prínciperegente D. João, recém-desembarcado no Rio de Janeiro.4 A conexão entre o
retorno ao sistema do Diretório e a existência de população indígena independente e refratária à presença luso-brasileira é particularmente forte no Espírito
Santo, pois, logo após a Independência, em 1824, uma portaria regulamentando
o aldeamento dos índios botocudos no Espírito Santo recriou a figura do Diretor de Índio no texto legal, mostrando efetivamente que o Diretório dos Índios
permanecia como uma referência importante, principalmente para governar
populações autóctones recém-conquistadas.5
Quanto aos índios que viviam nas vilas e povoações do Espírito Santo,
classificados pelas autoridades locais como “índios civilizados”, “súditos” ou
“vassalos”, as evidências mostram que eles foram governados de modo bem
diverso do que foi aplicado aos índios botocudos do rio Doce. Após a Carta
Régia de 12 de maio de 1798, eles continuaram submetidos ao governo de suas
respectivas vilas, onde poderiam exercer os cargos civis e militares, tornando-se
livres da tutela dos diretores.
O objetivo deste artigo é analisar a aplicação da Carta Régia de 1798 nas
vilas e lugares indígenas do Espírito Santo e, por conseguinte, o ainda pouco
conhecido autogoverno dos índios que, juridicamente, esteve em vigor entre 1798
e 1845. Para subsidiar a análise desse problema, foi compulsada a correspondência oficial entre os presidentes da província do Espírito Santo e as autoridades
civis e militares das vilas indígenas do Espírito Santo no período entre 1828 e
1853. Foram também consultadas outras fontes de naturezas diversas, como leis,
memórias, estimativas estatísticas e relatos de época.
Tradição tutelar e autogoverno dos índios
Nova Almeida era, no início da década de 1820, uma vila de maioria indígena; se estimava existir 516 pessoas entre brancos, pardos livres, pardos cativos,
4
5
Cópia da Carta Régia de 13 de maio de 1808, enviada a Manoel Vieira da Silva e Tovar de Albuquerque, em 21 de maio de 1808. In: OLIVEIRA, José Joaquim Machado de. op. cit., p. 325-331.
Sobre a guerra contra os botocudos no território do Espírito Santo, ver MOREIRA, Vânia Maria
Losada. 1808: a guerra contra os botocudos e a recomposição do império português nos trópicos.
In: CARDOSO, José Luís; MONTEIRO, Nuno Gonçalo; SERRÃO, José Vicente (Orgs.). Portugal, Brasil e a Europa napoleônica. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2010, p. 391-414.
Regulamento para a civilização dos índios Botocudos nas margens do rio Doce. In: OLIVEIRA,
José Joaquim Machado de. op. cit., p. 161-335, p. 221-223.
226
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012
Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
pretos livres e pretos cativos para 3011 índios.6 No entanto, na correspondência
entre os presidentes da província e as autoridades civis e militares da vila, no
período entre 1828 e 1853, em 85 ofícios onde os índios são textualmente citados,
inexiste correspondência endereçada a supostos “diretores de índios”, e tampouco
qualquer menção a eles, por pontual que seja.7 Isto sugere que, neste período, os
índios da vila não possuíam diretores e nem estavam sob a jurisdição dos diretores de índios que atuavam entre os botocudos do rio Doce espírito-santense,
pelo menos enquanto estivessem residindo na vila ou nos seus povoados anexos.
Outras fontes coevas fortalecem, aliás, esta interpretação, pois em 1854 os índios
de Santa Cruz, antigo povoado de Aldeia Velha, anexo à vila de Nova Almeida,
registraram pessoalmente suas terras junto ao vigário, segundo o entendimento,
tanto do vigário como do presidente da província, de que eles não tinham e tampouco precisavam de diretores ou tutores para registrar suas terras.8
Na longa duração da história brasileira, contudo, a relação entre índios e
colonizadores foi frequentemente mediada por ideias e práticas tutelares. Nos
aldeamentos coloniais, por exemplo, foi comum a tutela exercida pelos padres
,tanto no âmbito religioso como no temporal. A administração particular dos
índios, que tanto caracterizou a vida colonial de São Paulo, é outro exemplo de
tutela exercida, contudo, pelos moradores.9 Assim, apesar das variações históricas, a tutela foi uma prática muito presente na experiência social da população
indígena e justificada segundo o argumento de que eles não eram plenamente
“civilizados” e, por isso, ainda incapazes de governarem a si próprios. Também
foi um dos instrumentos legais mais utilizados para controlar e explorar o trabalho dos índios.
6
7
8
9
VASCONCELLOS, Ignacio Accioli de. Memoria statistica da província do Espirito Santo escrita
no anno de 1828. Vitória: Arquivo Público Estadual, 1978, p. 35.
As 85 correspondências foram encontradas nos seguintes livros: Arquivo Público do Estado do
Espírito Santo (doravante APEES), Série 751, Livro 171 – “Este livro há de servir para o registro
da correspondência deste governo com as autoridades civis e militares da vila de Nova Almeida”;
APEES, Série 751, Livro 172 – “Este livro há de servir para o registro da correspondência deste
governo com as autoridades civis e militares da vila de Nova Almeida”; APEES, Série 751, Livro
181 – “Há de servir este livro para o registro da correspondência com as câmaras municipais das
vilas da Serra, Nova Almeida, Linhares, Barra de São Matheus, e São Matheus”; APEES, Série
751, Livro 182 – “Servirá este livro para o registro da correspondência com todas as câmaras
municipais do Norte da Província”.
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Nem selvagens nem cidadãos: os índios da vila de Nova
Almeida e a usurpação de suas terras durante o século XIX. Dimensões. Vitória, v. 14, 2002, p.
151-167, p. 162.
MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo.
São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 129.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012
227
Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
As reformas pombalinas, realizadas durante o governo de D. José I, colocaram em xeque a tradição tutelar. A Lei das Liberdades, de 6 de junho de 1755,
declarou a plena liberdade dos índios com relação às suas pessoas, aos seus bens
e ao seu comércio e, por meio do Alvará de 7 de junho de 1755, foi instituído o
autogoverno nas vilas e povoados indígenas, estimulando e dando preferência
a eles, ademais, na ocupação dos cargos de vereadores e oficiais da justiça.10
Mas a nova orientação durou pouco e sequer foi plenamente implementada,
pois, em outra lei, de 3 de maio de 1757, lastimava-se a inaptidão dos índios
para exercerem plenamente o governo de si mesmos em suas vilas e povoados e
criou-se a figura dos “diretores de índios”, que deveriam controlá-los enquanto
não fossem considerados capazes.11 Na opinião de alguns autores, apesar de
os índios permanecerem tendo a preferência na ocupação dos cargos da República, a figura dos diretores de índios comprometeu, na prática, o princípio do
autogoverno.12 Esta interpretação, contudo, é controversa, pois, como estudos
mais recentes têm demonstrado, à luz da documentação primária fica claro que
várias lideranças indígenas e pajés tiveram ação e influência duradoura em suas
comunidades e, mais ainda, não raras vezes desfrutaram até mesmo de maior
poder que os diretores.13
Apesar da controvérsia, o fato é que a Carta Régia de 12 de maio de 1798
suspendeu o sistema de Diretório e inaugurou um período bastante atípico na
história dos índios e do indigenismo no Brasil, pois os índios das vilas e povoados
ficaram legalmente livres de qualquer tutela sobre suas pessoas. Manuela Carneiro da Cunha, uma das mais balizadas especialistas sobre índios e legislação
indigenista do século XIX, tem duas opiniões sobre o período entre a suspensão
do Diretório dos Índios, pela Carta Régia de 1798, e a promulgação, em 1845,
pelo governo de D. Pedro II, do Regulamento acerca das Missões de Catequese
e Civilização dos Índios, quando novamente foi instituída a figura tutelar do
diretor de índios.
10
11
12
13
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. op. cit., p. 133.
Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão enquanto sua
majestade não mandar o contrário (Apêndice). In: ALMEIDA, Rita Heloisa de. O diretório dos
índios: um projeto de “civilização” no Brasil do século XVIII. Brasília: Ed. Universidade de
Brasília, 1997.
Sobre este debate, entre outros, vale consultar SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. op. cit., p. 250.
SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande. Campinas: Pontes, 2005, p.
17. SOMMER, Barbara Ann. Negotiated Settlements: Native Amazonians and Portuguese Policy
in Pará, Brazil, 1758-1798. New Mexico: University of New Mexico, 2000, p. 314-315.
SOMMER, Barbara Ann. op. cit., p. 230.
228
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012
Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
De um lado, ela sustenta que o interregno caracterizou-se por um “vazio
legal”, quando na ausência de uma legislação mais geral sobre como governar os
índios, leis e regulamentos pontuais foram lançados para resolver uma miríade
de casos e situações específicas. Mais ainda, pelo mesmo motivo, o Diretório dos
Índios, apesar de ter sido suspenso, terminou ficando oficiosamente em vigor em
algumas províncias.14 De outro, define o período entre 1798 e 1845 como uma
temporalidade caracterizada, em princípio, pelo “autogoverno” dos índios.15 Mas,
como esclarece a autora, o sistema do autogoverno não se aplicava aos índios dos
sertões, que viviam em suas tribos e de acordo com seus próprios costumes. Para
essa categoria de índio, ainda tida como incapaz de governar a si própria pela
legislação de 1798, foi reservado o privilégio de órfãos. Por isso, quando descidos
dos sertões, eles poderiam ser contratados por particulares que, em contrapartida,
deveriam pagar-lhes salários e cuidar de sua educação, catequese e “civilização”.16
No âmbito do Espírito Santo, cujos sertões limítrofes eram povoados por
muitos índios considerados “gentios”, “selvagens”, “inimigos” ou simplesmente
“botocudos”, vários indígenas ingressaram na província tutelados por moradores
de acordo com o princípio orfanológico. De um lado, porque, como se viu, a
legislação de 1798 estendia aos índios recém-egressos dos sertões o privilégio
de órfão. De outro, porque, em 1831, a Lei de 27 de outubro, que aboliu oficialmente a guerra joanina contra os botocudos do rio Doce, concedeu a liberdade
a todos os índios que se mantinham no cativeiro, estendendo-lhes, além disso,
a condição de órfãos, segundo regras semelhantes ao disposto na legislação de
1798.17 Os índios tutelados de acordo com a legislação orfanológica eram um
seguimento relativamente importante da sociedade local e sua presença foi, aliás,
bem registrada pela crônica do artista plástico François Biard, que morou por
alguns meses no Espírito Santo, durante o ano de 1858. De acordo com ele, era
costume da terra denominar os índios que estavam sob a tutela de algum morador, de acordo com a legislação orfanológica, como índios que tinham “dono”,
“amo” ou “patrão”.18
14
15
16
17
18
CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras; Secretaria Municipal de Cultura; Fapesp, 1992, p. 133-154, p. 138.
Idem, Ibidem, p. 152.
Idem, Ibidem, p. 147.
Idem, Ibidem, p. 148.
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A serviço do Império e da nação: trabalho indígena e fronteiras
étnicas no Espírito Santo, (1822-1860). Anos 90, Porto Alegre, v. 17, 2010, p. 13-54, p. 30.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012
229
Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
Índios que tinham “dono” conviviam lado a lado, no Espírito Santo, com
outros que eram considerados livres e que viviam com suas famílias e grupos nos
povoados e vilas da província, de forma muito mais autônoma e de acordo com
os princípios do autogoverno. Entenda-se por autogoverno dos índios a extinção
da tutela dos diretores, pela Carta Régia de 12 de maio de 1798, e a subordinação
deles ao governo da Câmara e às demais instituições das vilas e lugares, como, por
exemplo, as ordenanças. O sistema de autogoverno dos índios visava, em primeiro
lugar, garantir os interesses do Estado, presentes, de forma bem resumida, na ideia
de transformar os índios em “súditos úteis”, por meio do trabalho prestado ao
Estado, aos particulares, a si mesmos e às suas famílias. Trata-se também, como
se verá mais adiante, de um sistema político que, no Espírito Santo, abriu espaços
para o exercício da política indígena, expressa na defesa de sua liberdade e territorialidade contra os outros moradores da província que, na primeira metade do
século XIX, cobiçavam suas terras e muito frequentemente também seu trabalho.
Autogoverno do ponto de vista do Estado: o trabalho dos índios
Editada em um período de importantes mudanças, quando Portugal transitava
do Antigo Regime para a ordem liberal, a Carta Régia de 12 de maio de 1798
apresenta elementos tanto do pensamento político e social corporativista como
individualista, e pode ser interpretada, por isso mesmo, segundo pontos de vista
diversos.19 Para Patrícia Sampaio, por exemplo, o principal traço dessa legislação
é “a acentuação de um processo de individuação dos índios aldeados”20, que
deixaram de ser percebidos como grupos e passaram a ser diluídos no ambiente
das vilas e lugares, onde ficariam sujeitos ao governo das Câmaras, tal como
acontecia com os demais vassalos.
Outro modo de interpretar a carta régia é vê-la como uma medida de justiça
e reparação que, ao extinguir o Diretório, devolvia aos índios o “governo econômico de suas povoações”21, retomando os princípios estabelecidos nas leis de 6
e 7 de junho de 1755. Deste ângulo, a lei terminava não apenas por salientar que
19
20
21
Sobre os paradigmas corporativista e individualista na tradição portuguesa, ver HESPANHA,
António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder. In:
MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal. O Antigo regime (1620-1807). Lisboa: Editorial
Estampa, s/d, p. 121-156.
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. op. cit., p. 236.
Cópia da Carta Régia de 12 de maio de 1798 sobre a civilização dos índios, enviada a Antônio
Peres da Silva Pontes, em 29 de agosto de 1798. In: OLIVEIRA, José Joaquim Machado de. op.
cit., p. 313-325.
230
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012
Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
os índios eram uma parte da monarquia, mas também permitia, potencialmente,
a diferenciação deles e de suas povoações e vilas com relação às demais partes
do corpo social, segundo o entendimento de que se deveria respeitar as formas
locais de organizar a vida cotidiana, econômica e social.22
Parece-me claro que – dependendo da mentalidade do intérprete (governadores, vereadores, índios e padres, entre outros), de seus interesses e do contexto
social – a lei podia ser usada tanto para assegurar a tradição, garantindo a continuidade do Antigo Regime nos trópicos23, como para moldar novas práticas
e novos direitos vinculados aos princípios liberais e individualistas. Isto em
um momento histórico-social no qual também o Brasil passava por profundas
transformações, sendo a mais visível o processo de Independência e o paulatino
avanço do liberalismo, principalmente depois do fim do tráfico de escravos e da
promulgação da Lei de Terras de 1850.
Seguindo a linha de que a Carta Régia de 12 de maio de 1798 foi uma medida de reparação e de retorno aos princípios mais importantes das leis de 6 e
7 de junho de 1755, pode-se interpretar a instituição do autogoverno nas vilas
e lugares indígenas mais como uma decisão política ainda pautada no modelo
corporativo de organização e gestão social, que prevalecia no Antigo Regime
português, do que no ideário liberal e individualista, que crescia nos dois lados
do Atlântico, pouco a pouco. De acordo com António Manuel Hespanha e Ângela
Barreto Xavier, no modelo corporativo
cada corpo social, como cada órgão corporal, tem a sua função (officium), de modo que
a cada corpo deve ser conferida a autonomia necessária para que possa a desempenhar
(...). A esta ideia de autonomia funcional dos corpos anda ligada, como se vê, a ideia de
autogoverno (...).24
22
23
24
Sobre o sentido e a abrangência da autonomia das comunidades no pensamento político português,
ver MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os conselhos e as comunidades. In: MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal. O antigo regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, s/d, p. 303-331, p. 316.
Sobre a produção e reprodução social, no âmbito colonial, segundo as regras econômicas, políticas
e simbólicas de Antigo Regime, ver FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA,
Maria de Fátima (Orgs.). O antigo regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001, p. 21.
HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. op.cit, p. 123-4.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012
231
Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
A principal função (officium) dos índios era trabalhar para o Estado, para
particulares e para si próprios e suas famílias. A autonomia que receberam e que
lhes permitia o exercício do “governo econômico de suas povoações” – como
afirmava a Carta Régia de 1798, podendo gerir, sem a tutela de diretores, a vida
cotidiana e social de suas povoações – pressupunha, como contrapartida necessária, o correto exercício de suas funções. No Espírito Santo, as evidências apontam
para a existência de um rígido sistema de captação da mão de obra indígena nas
vilas e lugares baseado nos princípios políticos e organizacionais da Carta Régia
de 12 de maio de 1798, controlado no topo pelos governantes da província. Em
relação aos índios de Nova Almeida, por exemplo, escreveu Saint-Hilaire:
A mão de ferro dos Governadores da Província do Espírito Santo agravou seus infortúnios.
Todos os meses se tiravam dentre eles (1818) certo número de índios, casados ou não, para
pô-los a trabalhar na estrada de Minas, no Hospital de Vila da Vitória, na nova Vila de Viana
ou Santo Agostinho, etc.; eram mal alimentados; durante muito tempo não lhes foi dado
salário algum e, na época de minha viagem, somente depois de dois meses é que se começava a juntar à sua alimentação uma retribuição de dois vinténs, ou cinco soldos por dia.25
Ainda segundo Saint-Hilaire, em Nova Almeida, para se garantir o uso do
trabalho dos índios, alguns dos escolhidos eram presos na cadeia da vila até o dia
da partida.26 Depois da Independência, esse sistema de trabalho também aparece
com muita nitidez na correspondência oficial, mantida no período entre 1828 e
1853, entre os presidentes da província do Espírito Santo e as autoridades civis
e militares da vila de Nova Almeida. Em dezembro de 1829, por exemplo, o Visconde da Praia Grande, presidente da província, escreveu ao Sr. José Ribeiro, uma
autoridade da vila cuja função não foi indicada na correspondência, reclamando
que ainda não havia sido “remetido os quatro Índios para o serviço Nacional,
e Imperial como lhe foi ordenado no mês passado”.27 Na verdade, na série de
85 correspondências, onde os índios são mencionados textualmente, o assunto
mais abordado foi sobre o trabalho dos índios, perfazendo 58,8% do total dos
temas tratados na série. Mais ainda, dentro do assunto trabalho, a solicitação de
índios para prestar o “serviço nacional e imperial” ou para render outros índios
25
26
27
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Espírito Santo. São Paulo: Itatiaia, 1974, p. 69.
Idem, Ibidem, p. 105.
APEES, Série 751, Livro 171, 02/12/1829, p. 30. Nesta e nas próximas citações, a ortografia foi
atualizada, sendo mantido o estilo no uso das letras em maiúscula e a pontuação.
232
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012
Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
que estavam trabalhando foi, de longe, a ocorrência mais frequente, perfazendo
71% do total.28
A comunicação oficial entre as autoridades da vila e a presidência da província ainda demonstra dois pontos importantes: primeiro, que a autoridade da
vila mais acionada pelos presidentes de província, em relação ao tema trabalho,
era o capitão-mor das ordenanças, pois era ele quem controlava a mão de obra
indígena, selecionando e enviando aos governos da província os trabalhadores
requisitados. Vale citar, a título de exemplo, a correspondência expedida pelo
presidente provincial Ignácio Acciolli de Vasconcelos, em agosto de 1829, ao
capitão das ordenanças da vila de Nova Almeida, na qual fica bastante claro que
os índios estavam organizados em “batalhões”, que eram destacados para prestar
serviços em diferentes localidades da província, incluindo a capital:
Ao Capitão das ordenanças Ilmo. Francisco Ramos para continuar a mandar os Índios
que forem requisitados pelo diretor dos Aldeamentos do Rio Doce. A vista do que vossa
mercê [ilegível] no seu ofício, que a falta de tropa que há tem [sido] ocasionada por serem
chamados para o serviço imperial na povoação de Linhares alguns Índios, o mesmo motivo
[ilegível] ainda, porém em breve [esse problema de falta de tropa] desaparecerá com a
chegada do batalhão número 12 que se espera todos os dias de Nova Almeida, e Aldeia
Velha, por que estes [índios do batalhão 12 se] destacam para esta cidade [de Vitória] para
diferentes serviços. É mister portanto que vossa mercê com aquele zelo, que lhe deve ser
próprio faça marchar para aquela povoação ao menos doze Índios.29
O segundo ponto importante a ser frisado é que a extinção das ordenanças, em
1831 pelo novo regime imperial, desorganizou o sistema de captação de trabalho
indígena que até então estava em funcionamento. Não apenas desapareceram os
ofícios dirigidos ao capitão-mor das ordenanças solicitando índios para o trabalho
“nacional e imperial”, como também decresceram vertiginosamente os pedidos
de trabalhadores indígenas por meio da organização política da vila.30 Isto não
significa que os índios, enquanto “indivíduos”, “brasileiros”, “cidadãos”, “trabalhadores”, “caboclos”, “lavradores” ou “vadios” deixaram de prestar serviço
ao Estado. Mas, não é demais frisar que a extinção das ordenanças serve como
um marco, sinalizando o fim de um logo período histórico caracterizado pelas
formas coloniais de governança, de classificação social e de gestão da força de
28
29
30
Para uma abordagem mais detalhada dessa documentação, ver MOREIRA, Vânia Maria Losada.
A serviço do Império e da nação ..., op. cit., p. 49.
APEES, Série 751, Livro 171, 18/08/1829, p. 27.
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A serviço do Império e da nação ... op. cit., p. 31.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012
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Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
trabalho de homens e mulheres livres classificados, até então, primordialmente
como “índios” no cenário regional.
Requisitados principalmente para servir à Coroa, o trabalho obrigatório dos
índios ficou conhecido localmente como “serviço do rei” e, depois da Independência, como “serviço nacional e imperial”. Implicava um enorme sacrifício
individual e coletivo, pois um número significativo de índios era retirado de seus
povoados, por muitos meses, às vezes anos, em detrimento do bem-estar de suas
famílias e comunidades. Saint-Hilaire admirou-se, aliás, com a aquiescência dos
índios das vilas do Espírito Santo à exploração de sua força de trabalho, julgando
que isso ocorria em razão da tirania dos governantes e da passividade dos índios,
que não tinham outra alternativa viável de vida, segundo ele supunha:
Falando dos árduos trabalhos a que os condenara o governador da Província, os índios de
Vila Nova [de Almeida] não deixam escapar um murmúrio; o serviço do Rei exige – essas
palavras, pronunciavam-nas do mesmo modo que um fatalista teria podido dizer: tal é a
sentença do destino.31
Escapou à Saint-Hilaire, contudo, a estreita conexão entre o árduo trabalho
que os índios prestavam sob a rubrica “serviço do rei” e a possibilidade de eles
viverem, em suas vilas, de acordo com os princípios do autogoverno, isto é, sem a
interferência direta de “diretores”, “donos” ou “patrões”, podendo gerir com mais
autonomia a organização social, política e econômica de suas comunidades. Vistos
isoladamente, o trabalho (ou a função social dos índios) e o autogoverno (a autonomia para exercer esta função) acabam sendo pouco compreendidos no contexto
da época. Henry Koster, viajando pelo Ceará, em fins de 1810, considerou risível a
participação dos índios na governança local, supondo, além disso, que o exercício
de funções políticas pelos índios não passava de um artifício para trapaceá-los:
Cada aldeia possui dois Juízes Ordinários com função anual. Um juiz é branco e o outro
indígena, e é lógico supor que o primeiro tem, realmente, o comando. (...) Os indígenas
têm também seus Capitães-Mores, cujo título é vitalício e dá algum poder sobre seus
companheiros, mas como não há salário, o Capitão-Mor indígena é muito ridicularizado
pelos brancos e, com efeito, um oficial meio nu, com sua bengala de castão de ouro na
mão é um personagem que desperta o riso aos nervos mais rijos.32
31
32
SAINT-HILAIRE, Auguste de, op. cit., p. 71.
KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Ed. Massangana, 2002, v. 2, p. 224-225.
234
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Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
Nas povoações de maioria indígena do Espírito Santo, como Benevente
(antiga missão de Reritiba) e Nova Almeida (antiga missão dos Reis Magos), o
funcionamento do autogoverno e do sistema de trabalho a ele associado não pode
ser satisfatoriamente explicado pelos artifícios da violência, do engodo ou de uma
suposta passividade dos índios, apesar desses argumentos terem sido apontados
por alguns dos contemporâneos para explicar a participação dos índios em uma
ordem social bastante opressora. Afinal, a subalternidade social dos índios não é
condição suficiente para negar a eles a condição de atores de sua própria história,
por mais que essa história seja a história do oprimido. Também não é condição suficiente para caracterizar o autogoverno nas vilas e lugares indígenas apenas como
um simulacro, supondo que eles, no exercício dos poderes municipais (vereadores
e juízes) e de outros cargos da República (capitães-mores de ordenança, etc), eram
apenas iludidos pelas pompas dos cargos civis e militares do mundo colonial e póscolonial. Ao contrário, pesquisas recentes têm demonstrado que, desde a vigência
do Diretório, criou-se ou fortaleceu-se uma elite indígena no interior da lógica da
governança colonial que não apenas respondia aos interesses da política indigenista luso-brasileira, mas também às expectativas dos índios e da política indígena.33
Autogoverno do ponto de vista dos índios: autonomia e territorialidade
Informações deixadas por viajantes que passaram pelo Espírito Santo na segunda década do século XIX, como Auguste de Saint-Hilaire e o bispo visitador
do Rio de Janeiro, D. José Caetano da Silva Coutinho, são bastante explícitas
em atestar que os índios ocupavam, no início do Oitocentos, senão todos, pelo
menos uma parte dos postos civis e militares nas vilas indígenas de Nova Almeida e Benevente.34 Em 1812, o bispo D. José Caetano definiu Benevente e Nova
Almeida como “distritos indígenas” e, ao se referir a Benevente, comentou:
33
34
Entre outros, ver ROCHA, Rafael. Os oficiais índios na Amazônia pombalina. Sociedade, hierarquia e resistência (1751-1798). Dissertação de Mestrado, História, Departamento de História
da Universidade Federal Fluminense, 2009. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo, op. cit, p. 250.
COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar. Um estudo sobre a experiência portuguesa na
América a partir da colônia: o caso do Diretório dos Índios (1750-1798). Tese de Doutorado,
História Social, Departamento de História da Universidade de São Paulo, 2005, p. 208-221.
SAINT-HILAIRE, Auguste de, op. cit., p. 65; COUTINHO, D. José Caetano da Silva. Apontamentos secretos sobre a visita de 1811 e 1812. Vista de 1819-1820. In: NEVES, Luiz Guilherme
Santos (Org.). O Espírito Santo em princípio do século XIX. Apontamentos feitos pelo bispo do
Rio de Janeiro à capitania do Espírito Santo nos anos de 1812 e 1819. Vitória: Estação Capixaba
e Cultural–ES, 2002, p. 43-155, p. 87.
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Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
Esta terra tem muita semelhança com Mangaratiba, até por ser uma freguesia mista de
muitos brancos em um distrito de índios; mas pareceu-me ter mais casas e mais gente, e
ser mais bonita que Mangaratiba; se bem que a proibição da exportação de madeiras tem
atrasado muito o comércio, que só versa em algodões e mantimentos; e só há dois senhores
de engenho, e pouco ricos.35
Enquanto Benevente foi considerada como uma vila “mista” de índios e
brancos, D. Caetano calculou, na mesma visitação de 1812, a existência de pouco
mais de 3.000 índios na vila de Nova Almeida, sem contar os brancos e pretos.36
Nova Almeida possuía, contudo, uma câmara de “índios puros”, isto é, todos os
vereadores e juízes eram índios:
Cheguei às onze horas na Vila Nova [de Almeida], onde me esperavam os bons índios com
foguetes, arcos triunfais, e arquiteturas de ramagens, e outras demonstrações de alegria
e devoção. Cuidei que me não deixassem entrar para casa ao apear, e que me comessem
as mãos com beijos. Reservei a minha entrada para as ave-marias, à qual me assistiu a
Câmara toda composta de índios puros com suas varas, ajoelhando e fazendo tudo o mais
com profunda humildade até o fim, e até me virem acompanhar ao meu aposento dentro
do mesmo convento dos jesuítas.37
Na segunda visitação de 1819, contudo, D. Caetano da Silva Coutinho
comentou uma mudança significativa na governança da vila de Nova Almeida:
“Nota Bene: esta vila já não é de índios puros, como em 1812, porque os dois
juízes e alguns vereadores são portugueses”.38 Não se deve estranhar, contudo,
essa mudança, pois a Carta Régia de 12 de maio de 1798 flexibilizou a diretriz
segundo a qual se deveria dar preferência aos índios nos postos da República,
deixando claro, contudo, que eles continuavam aptos ao exercício destes cargos,
além de continuar apoiando a mistura de índios e não índios nas antigas missões
transformadas em vilas pela política pombalina.
A participação dos índios na governança local, longe de ter sido apenas
um simulacro, tal como supunha Henry Koster, em relação ao Ceará, foi um
expediente político de relativa eficácia para os índios. Permitiu, por exemplo,
a tramitação de suas reivindicações e de seus interesses nos canais políticos da
província. Na série de 85 correspondências entre os presidentes da província
35
36
37
38
COUTINHO, D. José Caetano da Silva , op. cit., p. 47.
Idem, Ibidem, p. 87-88.
Idem, Ibidem, p. 87.
Idem, Ibidem, p. 92.
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Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
do Espírito Santo e as autoridades civis e militares da vila de Nova Almeida
mantidas no período entre 1828 e 1853, onde os índios são textualmente citados,
foram encontradas 19 ocorrências de queixas de índios, principalmente contra
três situações: as tentativas de esbulho de suas terras, as violências físicas perpetradas por moradores e os sequestros de seus filhos pelas autoridades locais,
que os distribuíam a terceiros.39
Em dezembro de 1829, por exemplo, o Visconde de Praia Grande questionou
o juiz de paz porque ele ainda não havia se pronunciado sobre a “queixa da Índia
Sebastiana de Jesus”.40 A reclamação de Sebastiana devia-se ao fato de o juiz
de paz estar tirando do poder das índias seus “filhos menores”. O Visconde de
Praia Grande, em outro ofício, perguntava ao juiz que “destino” ele estava dando
às crianças.41 Por falta de fontes, não foi possível apurar o resultado final desta
contenda entre Sebastiana e o juiz de paz. Mas, alguns anos depois, em 1838,
foi o “índio José Bernardino” quem fez requerimento semelhante ao presidente
provincial.42 Desta vez, contudo, foi possível apurar a decisão do presidente, que
expressamente advertiu o juiz de paz “que não [se] pode nem [se] deve tirar os
indígenas do poder dos pais, ou daquele que os tenham criado para dá-los a terceira pessoa não havendo melhoramento de condição, como no caso presente”.43
No âmbito do Espírito Santo, o sequestro das crianças indígenas está relacionado com as tentativas de captar-se mão de obra nas vilas por meio da legislação
orfanológica. A tutela orfanológica, presente nas legislações de 1798 e de 1831,
direcionava-se, como vimos, aos índios recém-egressos dos sertões e, teoricamente, não se aplicava aos índios moradores das vilas e povoados. Apesar disso,
as tentativas de captar a mão de obra nas vilas indígenas do Espírito Santo por
meio da tutela orfanológica, subtraindo as crianças de seus pais e entregando-as a
terceiros, parece ter sido frequente. Também parece ter sido frequente a resistência
dos índios a esta prática, como atesta, aliás, suas representações aos presidentes
da província pedindo de volta os seus filhos.
Os sequestros de crianças índias são episódios esclarecedores sobre a condição
indígena no Espírito Santo da primeira metade do Oitocentos, pois demonstram
que as fronteiras entre “índios livres” e “índios tutelados” eram móveis, tênues
e mantidas muitas vezes devido à luta e ao interesse dos próprios índios. Afinal,
39
40
41
42
43
MOREIRA, Vânia Maria Losada, A serviço do Império e da nação ..., p. 32-35.
APEES, Série 751, Livro 171, 23/12/1829, p. 32.
APEES, Série 751, Livro 171, 15/12/1829, p. 31.
APEES, Série 751, Livro 172, 23/08/1838, p. 144.
Idem, Ibidem.
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Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
muitos índios dos sertões poderiam ingressar nas vilas de índios e alcançar, por
esse meio, a condição de índios livres, enquanto outros, ao contrário, poderiam
cair na rede da tutela orfanológica e tornar-se índios que tinham “amo”, “dono”
ou “patrão”. Além disso, as reclamações dos índios contra os sequestros das
crianças, o esbulho de suas terras e os atos de violência física praticados contra
eles são episódios que apontam para a relativa eficácia política do sistema do
autogoverno para os índios, pois os presidentes da província tenderam a apoiar
os índios em suas representações e queixas.44
Alguns exemplos envolvendo os conflitos de terra podem esclarecer esse
ponto. Em maio de 1839, um ofício encaminhado pelo Palácio do Governo
ordenou ao juiz de paz da vila que tomasse providências para que Francisco
Moraes assinasse “termo de não perturbar os Índios na posse de seus sítios e
lavouras como tem violentamente praticado”, devido ao requerimento impetrado
por Manoel Joaquim e outros índios da vila.45 Do mesmo modo, em 1840, outro
ofício expedido pelo Palácio do Governo informava ao juiz de órfão do termo
de Nova Almeida sobre uma “representação dos Índios” e sobre a decisão do
presidente da província que ordenava ao mesmo juiz que, na qualidade de “conservador dos mesmos Índios deve dar as providencias necessárias para que eles
sejam sustentados em seus direitos e na posse de seus bens, não permitindo que
sejam incomodados”.46
Em 1842, novamente os índios eram contemplados pela decisão presidencial.
Desta vez, a representação foi realizada pelos índios Miguel da Silva e Antônio das
Neves, “que se queixam das violências, [e] arbitrariedades contra eles praticados
por Victorino Jose Pinto o qual confiado na proteção de algumas autoridades”
estava esbulhando suas terras.47 Em resposta, foi ordenado não só que “o dito
Victorino Jose Pinto” assinasse “termo de não incomodar mais os Índios no gozo
de suas terras cominando-lhe uma pena de prisão, e de multa”, como também
o juiz de paz foi alertado de que seria responsabilizado “por qualquer omissão
no cumprimento dessas ordens, e qualquer acontecimento que de alguma forma
afaste a tranquilidade Pública”.48
Importante esclarecer, contudo, as razões que levavam os governantes da
província a apoiarem os índios de Nova Almeida contra os “brancos” que, pouco
44
45
46
47
48
MOREIRA, Vânia Maria Losada, A serviço do Império e da nação ..., op.cit., p. 34.
APEES, Série 751, Livro 172, 07/05/1839, p. 23.
APEES, Série 751, Livro 172, 13/04/1840, p. 44.
APEES, Série 751, Livro 172, 19/08/1842, p. 82.
APEES, Série 751, Livro 172, 19/08/1842, p. 82.
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Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
a pouco, avolumavam-se na região. Pelo menos até meados da década de 1840, as
evidências históricas sugerem que os índios de Nova Almeida eram importantes
prestadores de serviço civil e militar ao Estado, especialmente ao governo da
província, e, em contrapartida, obtinham de seus presidentes certa garantia em
relação à liberdade e à territorialidade conquistadas historicamente. Sobre isso,
não é demais lembrar que a antiga missão dos Reis Magos, depois transformadaem vila de Nova Almeida, foi um lugar estratégico a partir do qual se fazia
a defesa da costa contra incursões estrangeiras e da capitania contra os ataques
dos índios inimigos dos sertões, durante boa parte de sua história. O interesse
dos governos do Espírito Santo em manter os índios vivendo em Nova Almeida
não se esgotava, portanto, no fato de usarem frequentemente aquela mão de
obra para tarefas civis, pois os índios também desempenhavam um importante
papel na estratégia de segurança da população regional, que continuou sofrendo
com os ataques dos índios botocudos dos sertões, por boa parte do século XIX.49
Resumindo, no Espírito Santo, o sistema de exploração do trabalho indígena
esteve ancorado, depois da Carta Régia de 1798, nos princípios do autogoverno. Funcionava bastante bem porque supunha, em contrapartida, relações de
reciprocidade entre os índios, ou parte deles, e os governantes da província.
Importante frisar, contudo, que relações de reciprocidade não excluem hierarquia, desigualdade e exploração. Assim, governadores e depois presidentes da
província se mostraram atentos ao que se pode qualificar de “economia moral”
dos índios – na acepção que E. P. Thompson emprestou a esse conceito, entendido
como um sistema de normas costumeiras e reciprocidades, que incluem direitos
e obrigações sociais de ambos os lados da relação política, e que servem para
legitimar a ação de grupos ou de indivíduos que se compreendem agindo em
favor de costumes tradicionais.50 Em outras palavras, se a função precípua dos
índios era trabalhar para si, para os moradores e para o Estado, há que se lembrar
que entre os seus principais direitos e expectativas estava a própria liberdade e
a dos filhos e a posse pacífica das terras que ocupavam. As rebeliões de índios
no Espírito Santo, raras, diga-se de passagem, ilustram, por isso mesmo, o argumento aqui formulado.
49
50
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Entre vilas e sertões: trânsitos indígenas e transculturações nas
fronteiras do Espírito Santo (1798-1840). Nuevo Mundo Mundos Nuevos [Em Linea], Debates 2011.
Puesto em línea el 31 de enero 2011. Disponível em http://nuevomundo.revues.org/60746, p. 8.
THOMPSON, Edward Palmer. A economia moral da multidão inglesa no século XVIII. In: Idem.
Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia da
Letras, 1998, p. 150-202, p. 152.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012
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Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
Em 1831, José Francisco Andrade e Almeida Monjardim, em exercício no
cargo de presidente da província, mandou o capitão-mor das ordenanças da vila
de Nova Almeida tomar providências contra os índios que “espalham boatos
ameaçadores e aterradores de lançarem fora os brancos (...) fazendo conhecer a
esta gente ignorante que serão castigados (...) no rigor das leis”.51 Além disso, o
presidente ainda recomendou ao capitão-mor que empenhasse todo o seu “zelo
para dissuadi-los e informá-los a respeito das leis e das autoridades constituídas”.52
Em outro documento enviado ao capitão-mor, solicita que se mande o juiz proceder a uma “inquisição” sobre o caso e, mais ainda, que fossem processados os
cabeças da rebelião dos índios.53
Pelas poucas indicações presentes na documentação, a ameaça de rebelião dos
índios de Nova Almeida provavelmente se relacionava com o progressivo avanço
dos “brancos” sobre suas terras. Importante notar, contudo, que embora não se
possa afirmar, com segurança, os motivos da revolta, está absolutamente evidente
que, no limite, a rebelião armada era uma alternativa de ação pensada e ventilada
pelos próprios índios e levada sempre bem a sério pelas autoridades provinciais,
que não se descuidavam em apurar e reprimir esse tipo de ameaça à ordem estabelecida. O que a documentação nos permite ver, portanto, não é um índio ou
uma comunidade indígena passiva e sem alternativas de vida, tal como SaintHilaire descreveu os índios de Nova Almeida, pois eles reclamavam, negociavam
e até mesmo ameaçavam uma ação armada contra os “brancos” da província.
O perigo de rebelião dos índios não estava, de fato, descartado, pois dois anos
depois estourou uma revolta, não em Nova Almeida, mas em Piúma, um povoado indígena próximo a Benevente, a antiga missão jesuítica de Nossa Senhora
de Reritiba. Nesta, em 1833, o capitão-mor Francisco Xavier Pinto Saraiva foi
assassinado “(...) por um grupo de mais de 100 homens, quase todos índios, que
atacaram reunidos e arrombaram a casa, matando-o barbaramente, saqueando o
que encontraram e depois retirando-se para Piúma, onde se conservam armados”.54
Pouco tempo depois, em 1834, muitos índios se reuniram novamente na povoação
de Piúma e ameaçaram atacar a vila de Benevente.
A documentação coligida sobre esse episódio não esclarece a razão do “ajuntamento tumultuoso”, mas sabe-se “que muitos Índios [ilegível] estão [se] reunindo
na povoação de Piúma, com o intento de acometerem a Vila [de Benevente],
51
52
53
54
APEES. Série 751, Livro 171, 11/11/1831, p. 52.
Idem, Ibidem.
Idem, Ibidem, p. 52v.
DAEMON, Bazilio Carvalho, op. cit., p. 294.
240
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012
Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
publicando ademais que querem o antigo estado de coisas (...)”.55 Reivindicar
o “antigo estado de coisas” é presumir direitos com base no costume e, no caso
dos índios, a lei e o costume garantiam dois direitos fundamentais no começo
do Oitocentos: o usufruto das terras que ocupavam e a liberdade. Há de se frisar,
no entanto, que a liberdade dos índios nunca foi a de não trabalhar ou do ócio.
Por isso, o mais provável é que a revolta de Piúma tenha sido provocada pelo
avanço dos “brancos” sobre as terras dos índios ou pela tentativa de modificar
as regras costumeiras, ou que se acreditava ser costumeiras, e que organizavam
o trabalho que recaia sobre os índios do povoado.
Em outras palavras, o serviço prestado pelos índios ao “Império e à nação”
representava, sempre, um enorme sacrifício para eles, suas famílias e seus
povoados. Mas, apesar disso, não há menções na documentação que atestem,
com segurança, movimentos coletivos contra o trabalho prestado para o Estado.
Tampouco as queixas e reclamações dos índios que aparecem na documentação
são contra o trabalho prestado ao Estado, pois, como foi visto, os temas das reclamações eram especialmente três: invasão de terra pelos “brancos”, sequestro
dos filhos e violência física.56 Isso não significa que, depois de recrutados e de
estarem efetivamente prestando o serviço nacional, todos os índios permanecessem fiéis ao seu posto, pois são numerosas as notícias de fugas de índios da
Diretoria do Rio Doce, por exemplo, onde muitos prestavam o serviço nacional
e imperial, bem como os requerimentos formais de índios solicitando o retorno
para suas famílias e moradias, geralmente segundo a justificativa de que já haviam
cumprido o seu tempo de serviço.57
Mais ainda, as fontes atestam que para escapar do “serviço nacional e imperial”, os índios residentes nas vilas ainda usavam de outro artifício. Por exemplo,
sobre a rebelião de Piúma, sabe-se também que o presidente da província ficou
intrigado com as informações cedidas pelo juiz de paz sobre aquele “ajuntamento
tumultuoso” de índios “malvados”. Afinal, escreveu o presidente, “como será
possível haverem mais de quinhentos Índios armados, onde as relações estatísticas
apenas apresentaram cento e setenta e três varões de 10 a 60 anos”.58
55
56
57
58
APEES. Série 751, Livro 163 A, 1/4/1834, p. 57.
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A serviço do Império e da nação ..., op.cit., p. 32.
MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os Botocudos, os militares e a colonização
do rio Doce (Espírito Santo, 1824-1845). Dissertação de Mestrado, Departamento de História
da Universidade Federal do Espírito Santo, 2007.
APEES. Série 751, Livro 163 A, 11/04/1834, p. 30.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012
241
Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
Do estranhamento do presidente só se pode tirar duas conclusões: ou o juiz
de paz exagerou o número de índios que se encontravam armados em Piúma;
ou, o que é bem mais provável, os índios fugiam do controle dos alistamentos
oficias para, dentre outros motivos, também escaparem do serviço nacional e
imperial, pois existiam mais índios rebelados em Piúma do que varões alistados
nas estatísticas oficiais. Em outras palavras, as fugas do posto de serviço eram o
último recurso para certos índios, já que parte deles escapava do serviço obrigatório antes mesmo de ser recrutado, tornando-se invisível nas estatísticas oficiais.
No atual desenvolvimento da pesquisa sobre a vila indígena de Nova Almeida e dos povoados e lugares indígenas que lhe ficavam anexos, ainda não
estão claras as regras costumeiras que estabeleciam quem entrava nas listas dos
recrutamentos e quem não entrava, nem as relações de poder que mediavam
a seleção de alguns índios e a exclusão de outros. Mas, que isso era objeto de
disputas e de tensões entre os próprios índios, não resta dívida, tal como o atesta
a preocupação do vice-presidente José Francisco de Andrade e Almeida Monjardin com esse assunto. Assim, em 19/8/1830, ele mandou ao capitão-mor da vila
a ordem expressa de que, sendo ele “capitão-mor dos mesmos índios”, deveria
zelar para que “quando lhe exigir gente, seja sempre recolhido de todos aqueles
lugares [i.e., Nova Almeida e Aldeia Velha], porquanto, todos devem concorrer
para o serviço público”, acrescentando ainda não ser justo que só o distrito das
Águas desse seus índios.59
Considerações finais
A aplicação da Carta Régia de 12 de maio de 1798, no Espírito Santo, é
um testemunho de que, nessa região, a lei foi usada principalmente para que o
Estado pudesse obter o trabalho indígena, civil e militar, mesmo depois da Independência, segundo os costumes do Antigo Regime nos trópicos. O autogoverno
dos índios era, porém, uma instituição que estava caindo em desuso durante o
regime imperial. Por um lado, porque os visitantes que passaram pelo Espírito
Santo testemunharam que os índios foram perdendo, pouco a pouco, os postos
de vereadores e de juízes ordinários nas Câmaras para os “brancos”. Por outro,
porque, com a extinção das ordenanças em 1831, esvaziava-se de conteúdo
formal e legal um dos últimos bastiões do poder institucional dos índios, isto é,
o cargo de capitão-mor. Varria-se do cenário institucional das vilas de maioria
59
APEES. Série 751, Livro 171, 19/08/1830, p. 40.
242
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 223-243, jan./jun. 2012
Vânia Maria Losada MOREIRA. Autogoverno e economia moral dos índios.
indígena, portanto, os últimos vestígios da antiga forma colonial de gestão dos
índios e de seu trabalho.
Neste quadro de profundas mudanças sociais e políticas, a economia moral
dos índios, baseada na relativa autonomia econômica e social das famílias e dos
grupos que viviam em terras próprias dentro da província, ficou bastante afetada.
A ameaça de rebelião em Nova Almeida, em 1831, e a efetiva rebelião dos índios
de Piúma, 1833-1834, são testemunhos eloquentes desse processo. Afinal, seja
qual for a hipótese que se mobilize para se explicar a rebelião dos índios de Piúma, o fato é que eles mataram o antigo capitão-mor, ameaçaram invadir a vila
de Benevente e reivindicaram o retorno ao “antigo estado de coisas”.
Recebido: 17/03/2011– Aprovado: 09/03/2012
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243
CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO CATIVA
EM UMA ECONOMIA AGROEXPORTADORA:
JUIZ DE FORA (MINAS GERAIS), SÉCULO XIX*
Jonis Freire
Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas e
Professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade Salgado de Oliveira
Resumo
Este artigo aborda as possibilidades de manutenção e/ou ampliação da posse de cativos, seja por meio do tráfico ou da reprodução natural, em posses pertencentes a três
grandes famílias proprietárias de cativos da Zona da Mata Mineira – Dias Tostes, Paula
Lima e Barbosa Lage. Por meio do intercruzamento de fontes variadas concernentes
àquelas famílias, conclui-se que as duas opções para o aumento do número de cativos
– reprodução natural e tráfico de escravos – parecem não ter sido excludentes, mas
sim complementares. A opção por uma ou outra dependeu, sobremaneira, do período
de formação das posses, da maior ou menor proximidade com o tráfico transatlântico
e também do raciocínio econômico empreendido pelos senhores na busca pelo melhor
“modelo” para a manutenção e/ou ampliação de suas posses em escravos.
Palavras-chave
tráfico de escravos • reprodução natural • Minas Gerais – século XIX
Contato:
R. Cabuçu, 76, ap. 402.
20710-300 – Rio de Janeiro – RJ
E-mail: [email protected]
* Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
245
CAPTIVE POPULATION GROWTH IN
AGRO-EXPORTING ECONOMY:
MINAS GERAIS, IN THE NINETEENTH CENTURY
Jonis Freire
PhD in History for the Universidade Estadual de Campinas
Abstract
This article discusses the possibilities of maintenance and/or expansion of possession
of captives, whether by means of trade or of natural reproduction in properties belonging to three families of captive owners of Zona da Mata Mineira – Dias Tostes, Paula
Lima and Barbosa Lage. Through intercrossing of a variety of sources concerning
those families, it is concluded that the two options for increasing the number of captives – natural reproduction and the slave trade – seem to have been not exclusive, but
complementary. The choice of one or another has depended, above all, upon training
period of the captives, the greater or lesser proximity to the transatlantic trade and also
upon the economic reasoning undertaken by there in search for the best pattern for the
maintenance and/or expansion of their slaves possessions.
Keywords
slave trade • natural reproduction • Minas Gerais - nineteenth century
Contato:
R. Cabuçu, 76, ap. 402.
20710-300 – Rio de Janeiro - RJ
E-mail: [email protected]
246
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
Hipóteses sobre o crescimento da população cativa no Brasil
Questão importante com relação ao escravismo brasileiro é a relativa ao crescimento da sua população. Qual ou quais as formas encontradas pelos senhores
de escravos para a manutenção e/ou a ampliação de suas posses? Nesse sentido,
procuraremos compreender, neste artigo, como se deu o aumento da população
cativa em três propriedades de Juiz de Fora no século XIX. Tal análise nos
possibilita uma visão das estratégias utilizadas pelos proprietários no tocante à
aquisição de suas escravarias.
Os debates historiográficos acerca do aumento da população cativa estão
centrados basicamente em duas abordagens distintas. Uma das perspectivas
analíticas sobre a manutenção/ampliação dos escravos é a que busca no tráfico
(externo ou interno) a resposta para o aumento da mão de obra.1 Outra vertente
sobre o crescimento da população é a da reprodução natural.
Segundo alguns estudiosos, o aumento do contingente escravo, por meio
do nascimento, permitiria uma possível manutenção e/ou ampliação da mão de
obra nas propriedades senhoriais.2 Este é um tema bastante discutido na historio-
1
2
Cf., entre outros, MOTTA, José Flávio; MARCONDES, Renato Leite. O comércio de escravos
no vale do Paraíba paulista: Guaratinguetá e Silveiras na década de 1870. Estudos Econômicos.
São Paulo, v. 30, n.2, 2000, p. 267-299; SLENES, Robert W. The Brazilian Internal Slave Trade, 1850-1888: Regional economies, slave experience and the politics of a peculiar market. In:
JOHNSON, Walter (Org.). Domestic Passages: Internal Slave Trades in the Americas, 1808-1888.
New Haven: Yale University Press, 2005; Idem. The demography and economics of brazilian
slavery: 1850-1888. Tese de Doutoramento. Stanford University, 1976; KLEIN, Herbert S. A
demografia do tráfico atlântico de escravos para o Brasil. Estudos Econômicos. São Paulo, v. 17,
n. 2, maio/ago 1987, p. 129-149; FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do
tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, século XVIII e XIX. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997; RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final
do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da Unicamp/CECULT,
2000. MOTTA, José Flavio. Escravos daqui, dali e de mais além, o tráfico interno de cativos
na expansão cafeeira paulista (Areias, Guaratinguetá, Constituição/Piracicaba e Casa Branca,
1861-1887). Tese de Livre Docência. Universidade de São Paulo, 2010.
PAIVA, Clotilde A.; LIBBY, Douglas C. Caminhos alternativos: escravidão e reprodução em
Minas Gerais no século XIX. Estudos Econômicos. São Paulo, v. 25, n. 2, maio/ago 1995, p.
203-233; GUTIÉRREZ, Horacio. Demografia escrava numa economia não-exportadora: Paraná,
1800-1830. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 17, n. 2, maio/ago 1987, p. 297-314; SANTOS,
Jonas Rafael dos. Senhores e escravos: a estrutura da posse de escravos em Mogi das Cruzes
no início do século XIX. Estudos de História, Franca, v. 9, n. 2, 2002, p. 235-253; BOTELHO,
Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias: demografia e família escrava no norte de Minas
Gerais no século XIX. Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP, 1994; BOTELHO, Tarcísio
Rodrigues. Famílias e escravarias: demografia e família escrava no norte de Minas Gerais no
século XIX. População e família, São Paulo, v. 1, n. 1, jan./jun. 1988, p. 211-234; BERGAD,
Laird W. Escravidão e história econômica: demografia de Minas Gerais, 1720-1888. Bauru:
EDUSC, 2004. Algumas críticas sobre o trabalho de Bergad, feitas por Libby, podem ser vistas
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
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Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
grafia e sua análise torna-se fundamental. Se houve, por parte dos senhores, um
incentivo aos nascimentos, isso talvez indique não uma minimização do peso da
escravidão, mas sim a existência de possibilidades encontradas pelos cativos para
satisfazerem seus anseios dentro das limitações impostas pelo sistema escravista.
O Brasil é notadamente reconhecido como tendo sido o locus para onde foi
levado o maior contingente dos escravos transportados do continente africano. A
historiografia sobre esse tema, desde muito tempo, se debruça, dentre outros aspectos, sobre as possibilidades encontradas pelos proprietários brasileiros no que
diz respeito à aquisição de sua mão de obra escrava, as rotas e o volume do tráfico.3
Parece-nos inquestionável a afirmação de que os proprietários brasileiros
se utilizaram, durante vários anos, do tráfico intercontinental, com o intuito de
adquirir mão de obra farta e relativamente barata. As estimativas sobre a quantidade de africanos trazidos para o Brasil são muitas. Eduardo França Paiva, por
exemplo, baseando-se em diversos autores, aponta a percentagem de 38% deles
em direção ao Brasil, entre os séculos XVI e XIX. O tráfico intercontinental foi,
sem dúvida, um dos pilares do sistema escravista brasileiro. Tendo perdurado até
o ano de 1850, foi por meio dele que se garantiu o abastecimento da Colônia e,
depois, do Império, até pelo menos esse ano, constituindo-se o tráfico atlântico
“em variável fundamental para a reprodução física da mão de obra cativa”.4
David Eltis, em estudo sobre o tráfico transatlântico de escravos para as
Américas, percebeu, primeiramente, que os portugueses foram os principais comerciantes a partir da África. Entre aqueles com nacionalidades conhecidas e que
se aventuraram nesse tipo de comércio, foram eles os responsáveis pela aquisição
dos maiores volumes de mão de obra escrava. De acordo com os seus cálculos,
entre os anos de 1519 e 1867, 5.074.900 africanos fizeram parte do comércio
transatlântico, tendo os portugueses à frente dos negócios. Isso correspondeu a
45,9% do total de indivíduos comercializados entre aqueles anos. Em segundo
lugar, vinham os Ingleses, com 28,1%, e os Franceses, com 13,2%. Segundo
3
4
em uma resenha no American Historical Review, v. 107, n. 1, 2002, p. 258-9. E também em
LIBBY, Douglas Cole. Minas na mira dos Brasilianistas: reflexões sobre os trabalhos de Higgins
e Bergad. In: BOTELHO, Tarcísio Rodrigues (Org.). História Quantitativa e Serial: um balanço.
Belo Horizonte: ANPUH-MG, 2001; NOGUERÓL, Luiz Paulo Ferreira de. Economia escravista e preços de escravos em Minas Gerais: o caso de Sabará entre 1850 e 1887. Dissertação
de Mestrado, UFMG/CEDEPLAR, 1997; TEIXEIRA, Heloisa Maria. Reprodução e famílias
escravas de Mariana (1850-1888). Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2001.
MATTOS DE CASTRO, Hebe Maria. Ao sul da história. São Paulo: Brasiliense, 1987.
SLENES, Robert W. The demography and economics…, op. cit. 1976; KLEIN, Herbert S., op.
cit.; FLORENTINO, Manolo, op. cit.; RODRIGUES, Jaime, op. cit.
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Apud FLORENTINO, Manolo, op. cit., p. 27.
248
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
Eltis, durante esse mesmo período, a maior parte dos cativos despachados para as
Américas era da região da África Centro-ocidental – portos de Malembo, Loango,
Cabinda, Ambriz e Benguela – 44,2% (4.887,500 escravos) –, seguidos pelos da
Baía do Benin e da Baía de Biafra com, respectivamente, 18,4% (2.034,600) e
13,7% (1.517, 900).5
Com relação ao volume de cativos chegados às diversas regiões das Américas, por meio do tráfico transatlântico, o Brasil se sobressaiu como o local para
onde foram enviadas as maiores levas de africanos. Nesse aspecto, a região
Sudeste se destacou. Conforme os dados de Eltis, o Nordeste brasileiro, juntamente com a Bahia e o Sudeste foram responsáveis por 40,6% dos 9.599.000
africanos traficados para as Américas, entre os séculos XVI e XIX. O Sudeste do
Brasil foi a região que recebeu a maior quantidade de cativos, tanto em números
absolutos quanto relativos: foram 2.017.900, o que equivalia a 21,0% do total.
Sobretudo, entre os anos de 1801-1850, ocorreram os maiores desembarques no
Sudeste brasileiro, ou seja, 1.145.100 – 56,7% dos desembarcados nesta região.
Em anos precedentes (1519-1800), as cifras chegaram a 869.300 (43,1%) e, em
anos posteriores, o número caiu vertiginosamente, chegando, entre 1851-1867,
a 0,2%, o que correspondia a 3.600 africanos.6
Minas Gerais é, segundo os pesquisadores, a maior possuidora de escravos no
século XIX. Conforme estimativas de Eduardo França Paiva, desde o século XVIII,
a Capitania contava com um alto número de cativos. Segundo sua análise em testamentos e inventários, para as Comarcas do Rio das Mortes e do Rio das Velhas,
eram cerca de 2/3 de africanos e 1/3 de crioulos, sendo que estes últimos possuíam
uma composição sexual mais equilibrada àquela época, com uma supremacia masculina. Com relação às procedências dos que foram trazidos para Minas Gerais,
o autor indicou que a maioria deles era oriunda da Costa da Mina e de Angola.7
Vários são os debates travados com a intenção de lançar luzes acerca dessa
questão, tentando responder à seguinte pergunta: Como foi que a Província mineira conseguiu obter esse grande percentual? O diálogo gerado entre Roberto
Martins e Robert Slenes sobre essa questão, bem como os trabalhos de Francisco
5
6
7
ELTIS, David. The volume and structure of the transatlantic slave trade: a reassessment. William
and Mary Quaterly, 3d Series, Volume 58, Number I, January 2001, Tabelas I e II.
Idem, Ibidem, Tabela III.
PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789.
Belo Horizonte: UFMG, 2001, p. 118.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
249
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
Vidal Luna e Wilson Cano, são interessantes e ainda norteiam as discussões
sobre o crescimento da população cativa mineira.8
Até o final da década de 1970, havia um consenso, entre os historiadores, de
que a economia de Minas no Oitocentos foi caracterizada por uma estagnação
secular, que teve início no terceiro quartel do século XVIII, quando a produção
aurífera declinou vertiginosamente. Segundo essa visão “convencional”, o fator
econômico primordial da Capitania deixou de existir, e a região passou por uma
prolongada fase de involução, que resultou em regressão para a economia, baseada
numa agropecuária de subsistência.9
Na sequência desse raciocínio, também se pensava que o enorme contingente de escravos, que o ciclo do ouro havia legado às gerações seguintes, teria,
gradualmente, diminuído, em função do desgaste natural. Esses cativos teriam
servido, ainda, como uma importante fonte de mão de obra para a expansão da
cafeicultura pelo Vale do Paraíba, por São Paulo e por uma reduzida área da
própria Província de Minas.10
Mais recentemente, os trabalhos sobre a economia mineira do século XIX
destacaram a importância da Zona da Mata, porque esta concentrava, até 1888,
a maior parte do trabalho escravo e também a maior densidade demográfica da
Província. Em alguns desses estudos, já começavam a surgir problemas para os
que assinalavam a estrutura econômica homogênea da região.
Roberto Martins demonstrou que a maioria das propriedades com escravos,
em Minas, se fundamentava numa agricultura de subsistência de baixo grau de
mercantilização.11 A economia provincial, para ele, era formada, basicamente, por
8
9
10
11
CANO, Wilson; LUNA, Francisco Vidal. A reprodução natural de escravos em Minas Gerais
(século XIX): uma hipótese. Cadernos IFCH-UNICAMP, v. 10, out 1983, p. 1-14; MARTINS,
Roberto Borges. Minas Gerais, século XIX: tráfico e apego à escravidão numa economia não-exportadora. Estudos Econômicos, v. 13, n. 1, jan/abr 1983, p. 181-209; SLENES, Robert. Os
múltiplos de porcos e diamantes: a economia escrava de Minas Gerais no século XIX. Estudos
Econômicos, v. 18, n. 3, 1988.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Nacional, 1969, 7ª ed., p. 91-3.
COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à Colônia. São Paulo: DIFEL, 1966, p. 42-6.
MARTINS, Roberto Borges. Growing in silence: the slave economic of nineteenth century Minas
Gerais (Brazil). Tese de Doutorado, University Vanderbilt, 1980; Idem. Minas Gerais, século
XIX: tráfico e apego à escravidão numa economia não-exportadora. Estudos Econômicos, v. 13,
n. 1, jan/abr 1983, p. 181-209; conferir também MARTINS FILHO, Amílcar; MARTINS, Roberto
Borges. Slavery in a non-export economy: nineteenth century Minas Gerais revisited. Hispanic
American Historical Review, v. 63, n. 3, 1983, p. 537-68. MARTINS, R. B.; MARTINS, Maria
do Carmo Salazar. RBEP, v. 58, jan 1984, p. 105-20. Para uma discussão bibliográfica sobre a
relação entre atividades exportadoras e de subsistência, conferir LENHARO, Alcir. As tropas
da moderação. São Paulo: Símbolo, 1979, p. 33-37; MARTINS, R. B. A economia escravista
de Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte, 1980, p. 4-5. O “fator Wakefield” é tratado por
250
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Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
unidades agrícolas diversificadas internamente – fazendas, sítios e roças – cuja
produção se destinava ao autoconsumo e à venda em mercados locais. Martins
negou que a cafeicultura pudesse ter funcionado como polo de atração de trabalhadores escravos. De fato, do fim ou, pelo menos, da decadência da atividade
mineradora ao surgimento do café, na Província, como produto importante, tinham transcorrido algumas décadas. Por outro lado, Minas Gerais não fora uma
grande exportadora de escravos, ao contrário, teria participado grandemente do
tráfico internacional e, depois, sido um expressivo lugar de destino dos africanos
do comércio interprovincial. Ainda segundo o autor, Minas “teria sido um considerável importador líquido de escravos, mesmo com uma população estável
ou naturalmente crescente”.12
Em síntese, Roberto Martins destacou que a maioria dos escravos se radicava
numa agricultura de subsistência, que as unidades agrícolas eram diversificadas
internamente e que o café não foi polo de atração para cativos. A abundância de
terras apropriáveis significou que continuariam sendo eles os únicos recursos
disponíveis para os agricultores da região, e para outros, que não quiseram ganhar a vida pelo próprio suor. Esses argumentos foram novamente ressaltados
por Martins, em artigo, no qual concluiu que, entre os anos de 1800 e 1852, a
Província mineira teria absorvido 19% do total de escravos oriundos do tráfico
atlântico para o Brasil, importando cerca de 320 mil pessoas.13
Contrariamente, Robert Slenes, dialogando com os estudos de Martins feitos
na década de oitenta, notou que o desligamento da economia escravista mineira de
agroexportação não era tão completo como afirmava o autor. Isto porque, direta
ou indiretamente, determinados setores dessa economia, considerados dinâmicos,
12
13
WINCH, Donald. Classical political economy and the colonies. Cambridge: Harvard University
Press, 1965, p. 90-104; NEIBOER, H. J. Slavery as an industrial system. Nova York: Burt Franklin,
1971, p. 417-22.
Para Roberto Martins, Minas apresentava taxas negativas de crescimento natural, desta forma,
as importações seriam as únicas responsáveis pelo aumento da população escrava. O autor só
detectou duas regiões que fugiam a esse aspecto, o Sul dos Estados Unidos e Barbados. Martins
explica o apego de Minas à escravidão pela reformulação parcial do “fator Wakefield”, segundo o
qual a escravidão era implantada em regiões caracterizadas por abundância de terras cultiváveis e
facilmente apropriáveis por qualquer homem livre, desde que fosse possível produzir mercadorias
de valor relativamente alto no mercado internacional. Para o autor, Minas Gerais representou
um caso em que o componente de produção para exportação não foi necessário à permanência
de um regime escravista; o essencial foi a existência de recursos abundantes e a constante disponibilidade de terras. MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, século XIX..., op. cit., p. 187.
MARTINS, Roberto Borges. Minas e o tráfico de escravos no século XIX, outra vez. In:
SZMRECSÁNYI, Tamás; LAPA, José Roberto do Amaral. História econômica da independência
ao império. São Paulo: HUCITEC, 1996, p. 103.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
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Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
participavam do complexo, gerando, desse modo, divisas para a Província. Além
disso, segundo Slenes, há um problema na exposição de Martins: determinar a
origem da disponibilidade de capitais para custear as grandes importações de escravos por uma economia tão pouco mercantilizada. Como explicar que essa economia de subsistência gerou recursos para maciças importações de escravos, e que,
a partir de 1850, passaram a ter uma tendência sempre crescente nos seus preços?14
Nesse debate, a própria diversidade econômica da Província de Minas obsta a generalizações. Se havia grandes extensões territoriais, onde predominava a pecuária
de corte com baixa utilização de mão de obra escrava, havia também uma pequena
porção do território mineiro em que se praticava a cafeicultura nos padrões clássicos.
A incômoda combinação de um baixo grau de mercantilização e pesadas
importações de cativos também preocupou Francisco Vidal Luna e Wilson Cano,
para quem, no baixo grau de mercantilização, reside a explicação do imenso
número de escravos. De acordo com os autores a violenta diminuição da taxa de
exploração e o relaxamento dos costumes (mestiçagem e casamentos) permitiram
o crescimento demográfico.15
Sobre esses problemas, Douglas Libby ofereceu outras explicações. Em primeiro
lugar, defendeu que as atividades de transformação nos “setores dinâmicos” liberaram a Província de certas importações custosas, permitindo um ganho adicional.
Concordando com Luna e Cano, quanto às causas das taxas positivas de crescimento
da população mancípia, Libby acrescentou que o apego à escravidão se deveu a um
complexo histórico, que foi a transformação de um determinado regime escravista
regional. A diversificação da economia mineira e a importância do setor da agricultura de subsistência, mercantilizada ou não, bem como o desenvolvimento de uma
protoindústria constituíram não uma mera resposta à independência econômica do
campesinato, como quer Martins, e sim uma reação secular, específica da organização
econômica e social escravista de Minas, à crise que lhe tirou a razão de ser original.
A esse processo Libby chama “economia de acomodação”.16
14
15
16
SLENES, Robert. Os múltiplos de porcos e diamantes..., op. cit.
LUNA, Francisco Vidal; CANO, Wilson. Economia escravista em Minas Gerais. Cadernos IFCH/
UNICAMP, v. 10, out 1983, p. 1-14.
LIBBY assinala a anterioridade desta posição em Celso Furtado. LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1988. O autor tem também em conta a crítica do censo de 1872, feita por PAIVA,
Clotilde Andrade; MARTINS, Maria do Carmo Salazar. Revisão crítica do recenseamento de
1872. Anais do Segundo Seminário sobre Economia Mineira. Belo Horizonte: CEDEPLAR/
FACE/UFMG, 1983, p. 149-63.
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Ainda a esse respeito, Clotilde Paiva e Douglas Libby questionam a noção,
para eles convencional, da dependência do tráfico negreiro internacional para
manter ou aumentar as populações escravas. Segundo esses pesquisadores, o
tráfico de escravos e a sua reprodução natural não são mutuamente excludentes.
Analisando Minas Gerais, tanto antes como após o término do tráfico negreiro
internacional, os autores argumentam que a orientação da economia mineira para
o mercado interno favorecia o crescimento reprodutivo natural. Essa reprodução
acontecia, mesmo levando-se em conta os efeitos adversos do comércio atlântico.
Paiva e Libby utilizam-se de Listas Nominativas e constatam que, na década
de 1830, a população escrava de Minas Gerais se sustentava, em parte, por meio
da reprodução natural, e, mais, que uma geração após o término do tráfico se
encontrava plenamente reprodutiva.
O fluxo de escravos para Minas deve ter ficado bastante reduzido durante as últimas décadas do século XVIII e a primeira década do XIX. Se esta hipótese é correta, significaria
que a população escrava experimentou um hiato de quase duas gerações durante o qual
as influências ‘negativas’ do tráfico negreiro internacional ficaram bastante diminuídas.
Neste caso, avanços em direção à reprodução natural deveriam ter ocorrido e teriam
consequências importantes quando do novo aumento do volume de entradas de africanos.
Uma grande e relativamente estável população crioula estaria se reproduzindo e, até um
certo tempo, poderia ter absorvido uma parcela do novo contingente africano nos padrões
de reprodução ou, ao menos, ter resistido à ‘investida’ dos recém-chegados.17
Luiz Paulo Nogueról, em estudo sobre a localidade mineira de Sabará, de 1850
a 1887, identificou que em uma região, com um mercado menos dinâmico, houve
a possibilidade de obtenção de taxas de crescimento natural positivas, agregadas
à importação de africanos. Embora se atenha ao caso de Sabará, aventou a possibilidade de que esse podia ser um fenômeno mineiro e não apenas sabarense.
Em sua argumentação, para comprovar as estratégias de reprodução natural em
Sabará, utiliza-se, sobretudo, de duas conclusões para reforçar tal hipótese, que
residiam nos preços das escravas e dos recém-nascidos de ambos os sexos. Na
primeira delas, alegou que, naquela localidade, após a Lei do Ventre Livre, houve
uma queda nos preços das cativas, “o que atribuímos à eliminação dos ganhos
com a procriação de escravos”.18 A segunda se baseou nos preços dos recém-
17
18
PAIVA, Clotilde A.; LIBBY, Douglas C., Caminhos alternativos..., op. cit., p. 213.
NOGUERÓL, Luiz Paulo Ferreira de. Economia escravista..., op. cit., p. 101. O pesquisador se
baseou na metodologia empregada por Fogel e Engerman em seus estudos sobre os preços de
cativos no Sul dos Estados Unidos. “(...) optamos por verificar a hipótese de que os escravos recém-
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Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
-nascidos, que se mostraram positivos entre os anos de 1850 e 1872, deixando de
sê-lo a partir de 1873. “Isto porque a libertação aos 21 anos de idade dos filhos
das escravas, a partir de 1872, impediria a amortização completa dos investimentos realizados em crianças”.19 Em suma, o pesquisador defendeu a ideia de que
(...) predominavam em Minas Gerais regiões que, nos termos de Barros de Castro, eram
residuais ou membros efetivos da cadeia, o que permite a coexistência de um mercado
interno menos dinâmico com uma dependência demográfica menor com relação à reprodução local da força-de-trabalho.20
Horácio Gutiérrez, estudando a demografia escrava no Paraná, entre 1800
e 1830, sugeriu que o estudo de regiões não ligadas à economia de exportação
permite vislumbrar dois movimentos demográficos na população escrava: o primeiro, típico das regiões de grande lavoura, o segundo mais próximo das regiões
econômicas não exportadoras. Neste último a reprodução demográfica se daria
sem que o recurso ao tráfico fosse decisivo, hipótese compartilhada por Jonas
Rafael dos Santos, que, em seu estudo sobre Mogi das Cruzes (SP) no princípio
do XIX, afirma existir uma associação entre reprodução natural e economia voltada para o mercado interno.21 Carlos Bacellar e Ana Silvia Scott concluíram que
A relação entre fatores econômicos e a escravidão fica patente ao surpreendermos a presença
da criança no interior dos plantéis. Nas vilas de subsistência e abastecimento interno, as
crianças, até 7 anos de idade, representavam de 18 a 20% do total dos cativos, isto é, por volta
de 1/5 do grupo. Para a região canavieira, esta proporção cai para uma faixa entre 9 e 12%.22
Tarcísio Botelho encontrou evidências do processo de reprodução natural
entre os escravos, em Montes Claros, norte de Minas Gerais, ao longo do século
XIX. Em uma economia baseada na pecuária e voltada para o mercado interno,
19
20
21
22
-nascidos em Minas Gerais obtinham preços relativos maiores do que zero, o que seria condição
necessária, porém não suficiente, para que houvesse estímulos, ou se encontrasse desimpedida
a procriação dos cativos. Se os preços desta classe de escravos não fossem significativamente
diferentes de zero, então haveria razões econômicas para que os escravistas dificultassem ao
máximo as gestações e uniões entre os escravos” (p. 1).
Idem, Ibidem.
Idem, Ibidem, p. 49.
GUTIÈRREZ, Horácio. Demografia escrava..., op. cit.; SANTOS, Jonas Rafael dos. Senhores e
escravos:..., op. cit.
BACELLAR, Carlos de Almeida; SCOTT, Ana Silvia Volpi. Sobreviver na senzala: estudo da
composição e continuidade das grandes escravarias paulistas, 1798-1818. In: NADALIN, Sérgio
Odilon; et. alii (Coords.). História e população: estudos sobre a América Latina. São Paulo:
Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados, 1990, p. 214.
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desenvolveram-se, segundo ele, as possibilidades para a ocorrência de processos
de reprodução natural. Em suma, o autor constatou que a localidade conseguiu
preservar e mesmo expandir seu contingente cativo ao longo do Oitocentos.23
Botelho cita o seguinte:
A nosso ver, fica claro que, do ponto de vista senhorial, a reprodução natural é uma componente que entra positivamente em seus cálculos econômicos. Muitos a adotam como estratégia única de manutenção e ampliação do plantel. Outros, mesmo lançando mão do mercado,
não desprezam sua importância. (...) parece significar também a manutenção da família
escrava. Constantemente preservada, vemos casos de gerações que se sucedem dentro de um
mesmo plantel, trazendo à vida dos cativos nela integrados um grande fator de estabilidade.24
Na Província de São Paulo, Herbert Klein e Francisco Vidal Luna, em trabalho sobre a sociedade e a economia escravista daquela região entre os anos de
1750 e 1850, atentaram para a importância do café como “mola” impulsionadora
do crescimento da população escrava. Para atender à demanda cada vez maior
por mão de obra, a solução foi o tráfico de escravos, vindos da África, e que se
tornaram maioria. De acordo com os pesquisadores,
Em razão da idade e sexo desses imigrantes, a população cativa local não apresentava condições de se sustentar por crescimento natural. O crescimento da população escrava ocorria
essencialmente por um grande afluxo de africanos. Estes constituíam entre 60% e 70% da
força de trabalho cativa ocupada na cafeicultura. Mesmo nas atividades não-agrícolas, em
fins da década de 1820, os africanos compunham metade da força de trabalho.25
Juliana Garavazo também apontou para a reprodução natural como possibilidade de aumento da população cativa de Batatais (SP), na segunda metade
do Oitocentos. Verificou-se, naquela localidade, uma significativa participação
de cativos menores de quinze anos, e, ainda, um menor desequilíbrio sexual na
população escrava.
(...) notou-se uma tendência no sentido da maior proporção de escravos brasileiros à
medida que se distanciava da data de proibição da entrada de escravos trazidos da África
em território brasileiro (...), apesar dos africanos estarem presentes em pequeno número
mesmo nas primeiras décadas subsequentes a tal medida (anos 1850 e 1860), atingindo,
respectivamente, 24,2% e 31,0% do total. Neste caso, pode-se sugerir que os proprietá-
23
24
25
BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias:..., op. cit.
Idem, Ibidem, p. 232.
LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert S. Evolução da Sociedade e Economia Escravistas de
São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: EDUSP, 2005, p. 93.
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rios batataenses não recorreram sistematicamente ao mercado de escravos africanos para
formação de seus plantéis enquanto este tipo de transação ainda era legal.26
Esse parece ter sido o panorama do tráfico até a primeira metade do século
XIX. Na segunda metade, ele ganhou outras “feições”. Houve a necessidade de
obter mão de obra para as regiões onde havia um maior dinamismo econômico,
principalmente as vinculadas a produtos que pudessem reverter lucros, utilizando-se do trabalho cativo, como por exemplo, o café. Dessa forma, os senhores de
escravos e os traficantes passaram a utilizar, com mais vigor, os tráficos interprovinciais, intraprovinciais e/ou locais para a aquisição do produto, como foi o
caso das Províncias do Rio de Janeiro, de São Paulo e Minas Gerais.27
Vale salientar que muito dessa proeminência se deveu a crises enfrentadas
por outras Províncias do Império, o que possibilitou a transferência de cativos
em direção às áreas deles necessitadas.28 A partir de então, os senhores tiveram
de utilizar outros mecanismos, visando novas aquisições. Sem se desconsiderar
o contrabando, ganhou mais dinamismo, sobretudo a partir da segunda metade
do XIX, a opção pelo tráfico, fosse ele interprovincial, intraprovincial ou local.
Sobre o período após 1850, Hebe Mattos esclareceu que, “(...) desde 1850,
com a extinção do tráfico africano, a propriedade escrava – antes amplamente
disseminada entre a população livre – passa a concentrar-se, por causa da alta
do preço do cativo, nas mãos de grandes senhores das províncias cafeeiras”.29
26
27
28
29
GARAVAZO, Juliana. Riqueza e escravidão no Nordeste Paulista: Batatais, 1851-1887. Dissertação de Mestrado, História Econômica, FFLCH, USP, 2006, p. 155.
Cf., entre outros, SLENES, Robert W. The demography and economics…, op. cit.; COSTA,
Emilia Viotti da. Da senzala à Colônia, op. cit. O tráfico interno já existia em período anterior,
contudo, era reduzido, e contou primeiro com a mão de obra da população nativa. “Quando o
tráfico africano terminou, uma sociedade complacente ajustou-se à nova realidade com um vasto
e espontâneo aumento no movimento interno dos escravos, consequência da procura constante
de mais escravos na região do café e de atitudes imutáveis no que se refere à própria instituição
da escravatura”. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil 1850-1888. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 64.
CONRAD, Robert. Os últimos anos..., op. cit.
MATTOS, Hebe Maria. Laços de família e direitos no final da escravidão. In: ALENCASTRO,
Luiz Felipe de. História da Vida Privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia da Letras, 7ª
reimpressão, 2004, p. 343. De acordo com Herbert Klein, Kátia Mattoso e Stanley Engermann:
“O aumento brusco dos preços de escravos no Brasil não deve ser atribuído apenas ao fim do
tráfico, mas também, e ainda mais importante, àquelas forças que aceleraram a demanda por
mercadorias produzidas por escravos e com isso aceleraram a demanda por escravos. A expansão
econômica europeia dos anos 50 em geral afetou os preços de escravos em todas as Américas”.
MATTOSO, Kátia Queiroz; KLEIN, Herbert; ENGERMAN, Stanley L. Notas sobre as tendências
e padrões dos preços de alforria na Bahia, 1819-1888. In: REIS, João José (Org.). Escravidão e
invenção da liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 68.
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Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
Com relação à Província mineira, é interessante notar o alerta de Tarcísio
Botelho: “(...) é necessário perceber melhor as possíveis diferenças entre as várias
regiões mineiras, de modo a relativizar o peso seja do tráfico seja da reprodução
natural na recomposição e/ou expansão das escravarias”.30
No caso da Província do Rio de Janeiro, Ricardo Salles, baseando-se principalmente no Relatório do Presidente dessa Província, de 1851, chegou à hipótese
de que houve
(...) dois processos distintos, ainda que interligados, na dinâmica demográfica da população escrava, uma africana e outra crioula. A primeira, predominante e determinante, a
segunda, subordinada. Uma encobrindo a outra. A africana, masculina, adulta, com maior
proporção de homens, dependente da alimentação do tráfico para sua reprodução. A crioula,
mais equilibrada do ponto de vista sexual e etário, a longo prazo apresentando condições
potenciais de reprodução natural positiva.31
O município de Juiz de Fora, objeto de estudo neste artigo, foi detentor do
maior contingente de cativos no correr do século XIX na Província de Minas
Gerais, e essa característica ajuda a tecer novas considerações em relação a esse
debate.32 A análise das escravarias das três famílias senhoriais, encabeçadas por
Antonio Dias Tostes, Comendador Francisco de Paula Lima e Capitão Manoel
Ignácio de Barbosa Lage, que consideramos representativas no tocante aos
grandes proprietários da Mata Mineira, nos possibilita detectar quais as estratégias adotadas por eles para a composição de suas escravarias. Permite também
demonstrar quais as opções (tráfico e/ou reprodução natural) de que se valeram
as ditas famílias para a manutenção e/ou a ampliação de suas posses.
Segundo Ângelo Alves Carrara, a Zona da Mata Mineira era, àquela época,
uma área contígua ao Vale do Paraíba Fluminense,33 próxima ao porto do Rio
de Janeiro, de onde eram escoadas as levas de escravos chegados do continente
30
31
32
33
BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias:..., op. cit., p. 232.
SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração
do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 171.
A esse respeito, entre outros, ver ANDRADE, Rômulo Garcia de. Limites impostos pela escravidão à comunidade escrava e seus vínculos de parentesco: Zona da Mata de Minas Gerais,
século XIX. Tese de Doutorado, USP, 1995; GUIMARÃES, Elione Silva. Múltiplos viveres de
afrodescendentes na escravidão e no pós-emancipação: família, trabalho, terra e conflito (Juiz de
Fora – MG, 1828-1928). São Paulo; Juiz de Fora: Annablume; Funalfa Edições, 2006; LACERDA,
Antonio Henrique Duarte. Os padrões de alforrias em um município cafeeiro em expansão: Juiz
de Fora, Zona da Mata de Minas Gerais, 1844-1888. São Paulo: Fapeb; Annablume, 2006.
CARRARA, Angelo Alves. A Zona da Mata de Minas Gerais: diversidade econômica e continuísmo (1839-1909). Dissertação de Mestrado. História, Universidade Federal Fluminense, 1993.
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Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
africano. A análise dessa região – não só por sua importância econômica e demográfica, mas também pela geográfica, que, sem dúvida, contribuiu para suprir
as posses de escravos encontradas naquela área – permite perceber de que forma
o tráfico influiu na composição das propriedades da localidade e – por que não
dizer – da província mineira como um todo.
O tráfico de escravos está entre os motivos que explicam o grande contingente deles na província mineira durante o século XIX, oriundos, num primeiro
momento, do continente africano e, depois, do tráfico nacional interno. Segundo
França Paiva,
O tráfico africano abastecia todas as categorias, mas nas maiores, além dos cativos importados, houve uma grande quantidade de nascimentos. Isto aponta para uma prática comum
de formação de famílias dentro das posses de cada senhor e para a reprodução natural da
mão de obra como importante estratégia de renovação e ampliação dos contingentes de
indivíduos mancípios.34
Claro está que as duas possibilidades, reprodução natural e tráfico, podem
não ter sido excludentes, mas complementares, e é isto também que o artigo
pretende averiguar.
Reprodução natural e/ou tráfico de escravos?
De acordo com os Livros de Registro de Batismo, que se encontram na Catedral e na Cúria Metropolitana de Juiz de Fora, o Capitão Antonio Dias Tostes35
34
35
PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural..., op. cit., p. 147.
Antonio Dias Tostes, então com 55 anos de idade, era de longe o maior possuidor de cativos
daquela localidade, de acordo com o recenseamento de 1831. A maioria esmagadora destes foi
descrita como africano/africana e representava o maior número dos cativos existentes naquele
fogo – 126. Em seguida vinham os descritos como crioulos, num total de 19, o recenseador incluiu
nesse grupo dois escravos descritos como pardos. Esses números absolutos demonstram a grande
supremacia de homens e mulheres africanos em relação aos crioulos e pardos. Nessa propriedade
havia uma maioria de cativos do sexo masculino, tanto entre africanos quanto entre crioulos, 73,0%
e 57,9%, respectivamente. No entanto, é preciso ressaltar que os africanos eram quase três vezes
mais do que suas parceiras de mesma origem. As cativas africanas (27,0%), embora possuíssem
um percentual menor do que as crioulas (42,1%) eram em números absolutos mais representativas
do que estas últimas. Esse fogo contava ainda com duas cativas designadas como pardas, que
representavam a totalidade dos descritos como pardos. Na faixa de 1-14 anos, encontram-se 35
cativos, vinte e três escravos africanos, 65,7%; oito crioulos, 28,6% e as duas pardas, 5,7%. Na
segunda faixa etária (15 – 40 anos), e a que abrigava o maior número dos cativos de Antonio Dias
Tostes àquela época (105), estão inclusos 99 africanos, 94,3%, e seis crioulos 5,7%. Finalmente a
última (41 + anos), e a que contempla o menor número de cativos (07), possuía quatro africanos,
57,1% e três crioulos, 42,9%. É nesta faixa etária onde se encontravam os libertos Antonia crioula
e Ambrosio africano. Cf. FREIRE, Jonis. Escravidão e família escrava na Zona da Mata Mineira
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Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
levou ao batismo, entre os anos de 1818 e 1832, 10 cativos nascidos em suas
posses, sendo 6 meninos e 4 meninas. Não encontramos sua primeira esposa,
Dona Anna Maria do Sacramento, fazendo o mesmo. Porém, sua segunda esposa, Dona Guilhermina Celestina da Natividade, levou 1 escravo e 5 escravas ao
batismo, na década de 1850.
O Capitão Tostes parece não se ter valido da reprodução natural de escravos
para ampliar sua posse, já que, nas Listas de 1831, a maioria dos componentes
do plantel era proveniente da África e estava na faixa acima dos quinze anos.
Havia um número não desprezível de crianças (1 – 14 anos) que era, no ano do
recenseamento, de 35. O conhecimento de 10 nascimentos deixa antever que tal
propriedade contou com muitas crianças cativas, naquela faixa etária (20 ao todo),
oriundas do continente africano, quem sabe, trazidas para cá até com algum de
seus pais. Essa hipótese reforça a percepção de que Antonio Dias Tostes procurava
ampliar e manter sua posse por meio da compra de indivíduos provenientes do
tráfico internacional, na primeira metade do século XIX.
Entre a Lista de 1831 e a partilha dos bens de D. Anna Maria do Sacramento,
em 183736, houve um acréscimo no número de crianças, o que fica perceptível com
os 14 recém-nascidos (menores de 1 ano) de que pudemos ver o registro, embora
não a tenhamos encontrado levando nenhum ao batismo. Entretanto, parece que
ela continuou contando com a compra de escravos, provenientes do tráfico, já
que sua força de trabalho entre os jovens/adultos aumentou. Mesmo se considerarmos que a faixa das crianças – que, em 1831, era de 35 cativos e, em 1837,
de 30 – tenha contribuído para esse aumento, ainda assim houve crescimento,
36
oitocentista. Tese de Doutorado, História, Universidade Estadual de Campinas, 2009, p. 68.
No ano de 1837 ocorreu a partilha dos bens da primeira esposa de Antonio Dias Tostes, Dona
Anna Maria do Sacramento. Quanto à origem dos cativos, esta fonte demonstra que a grande
maioria da escravaria dessa família continuava a ser composta por africanos, 108, os crioulos
eram 33. Mesmo entre aqueles dos quais não foi possível conhecer a origem, os homens suplantam as mulheres, sendo 28 homens, 63,6% e 16 mulheres, 36,4%. Os africanos que eram quase
três vezes mais do que as africanas em 1831, já em 1837 eles haviam alcançado esta cifra. Os
crioulos e crioulas que se equilibravam no ano do recenseamento, tinham agora uma supremacia
dos homens, respectivamente, 66,7% e 33,3%. Com relação a faixa etária, entre 1831 e 1837,
um aumento entre os cativos por nós considerados como jovens/adultos e uma diminuição nos
denominados como crianças. Sem deixar de lado outras possíveis variáveis, para uma explicação
a essas oscilações como a fuga, morte, venda de escravos, talvez isso possa ter acontecido pelo
fato de essas crianças terem atingido os quinze anos de idade, levando-os a compor a faixa dos
jovens. Os idosos permaneceram em mesmo número. Entretanto, se agregarmos às crianças os
recém-nascidos, verificamos que aquela escravaria possivelmente contou no intervalo de tempo
entre as duas fontes com um aumento de sua posse por meio do nascimento de cativos. Todavia,
seria necessário o conhecimento das taxas de natalidade e mortalidade geral, para saber qual a
taxa de aumento dessa população por meio da reprodução natural. Idem, Ibidem, p. 69.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
259
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
em virtude da compra de africanos. Do ponto de vista da lógica senhorial dessa
família, parece claro que a mão de obra cativa se tornou maior por importação.
De acordo com os passaportes e os despachos emitidos na primeira metade do
Oitocentos, pela Intendência de Polícia da Corte, Tostes levou para Minas Gerais
96 escravos.37 Em 24 de janeiro de 1829, comprou 22; no ano de 1830, foram
outras três remessas, duas em janeiro e uma em abril, respectivamente, de 20, 20
e 34, todos escravos novos, conforme consta das fontes.38 Sem dúvida, a família
Tostes utilizou como estratégia de manutenção e/ou ampliação de suas posses o recurso do tráfico atlântico, por meio da compra na Corte, constituindo-se, conforme
demonstrou Fabio W. Pinheiro, como uma das famílias da Mata Mineira que mais
se utilizou desse tipo de reposição da mão de obra cativa. De acordo com Pinheiro:
Minas Gerais entre 1809 e 1830 foi o principal destino dos escravos, onde 40% das almas
despachadas do Rio de Janeiro se dirigiram para este território, enquanto na província
fluminense este índice foi de 36%. Mais do que isso, verificamos também que dos escravos
remetidos 97,8% eram africanos novos, se mostrando, assim, como um precioso indício
da forte vinculação entre o tráfico Atlântico e a economia mineira.39
Outro daqueles grandes proprietários, o Comendador Francisco de Paula
Lima40, levou ao sacramento do batismo, entre os anos de 1841 e 1862, 7 cativos.
Nove anos se passaram e só mais tarde, precisamente em 1871, sua viúva levou
1 escravo para ser batizado. Os dados disponíveis mostram certo incremento da
comunidade cativa, sobretudo enquanto o Comendador estava vivo. No entanto,
entre a sua morte, em 1865, e a de sua viúva, em 1877, esse aumento, se ocorreu,
37
38
39
40
Para um conhecimento a respeito dessa documentação, bem como das possibilidades e das “armadilhas” oriundas dessas fontes, conferir: FRAGOSO, João Luis; FERREIRA, Roberto Guedes.
Alegrias e Artimanhas de uma fonte seriada, despacho de escravos e passaportes da Intendência de
Polícia da Corte, 1819-1833. Seminário de História Quantitativa e Serial no Brasil: um balanço.
Ouro Preto: ANPUH-MG, 2001.
Respectivamente, Códice 421, v. 21, p. 255v; Códice 424, v. 04, p. 27; Códice 424, v. 04, p. 28; Códice 424, v. 04, p. 114. Arquivo Nacional (disponível no bando de dados do IPEA, em CD-ROM).
PINHEIRO, Fabio Wilson Amaral. O tráfico atlântico de escravos na formação dos plantéis
mineiros, Zona da Mata (c.1809 – c.1830). Dissertação de Mestrado, História, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2007, p. 148-149.
O Comendador Francisco de Paula Lima, patriarca da família Paula Lima, falecido no dia 26 de
novembro de 1865, possuiu uma propriedade majoritariamente masculina, onde os homens somavam 68,1% da posse e as mulheres 31,4%. Para um indivíduo, 0,5%, não foi possível conhecer
o sexo. Nesta posse também houve uma maior concentração de cativos entre os jovens/adultos
(15-40 anos), com 136 escravos. Logo depois, vinham os 35 idosos, seguidos por 29 crianças e
apenas 01 recém-nascido. Os escravos descritos como crioulos eram 19, dois deles procedentes
da Bahia. FREIRE, Jonis. Escravidão e família..., op. cit., p. 76.
260
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
foi por meio de outras estratégias de manutenção e/ou ampliação de suas posses
de cativos, já que, D. Francisca Benedicta de Miranda Lima levou apenas 1
escravo ao batismo.41 Talvez a explicação para tal hiato tenha ocorrido por dois
motivos que, diga-se de passagem, podem não ser excludentes. Primeiro, pode
ter havido nascimento de crianças no interior daquela propriedade, não tendo
havido tempo de tais batismos serem lavrados nos Livros de Registro, devido à
morte precoce daqueles infantes. Pode também ter acontecido outro evento, qual
seja, o batismo de crianças cativas pertencentes aos herdeiros, depois da partilha
dos bens do Comendador, e, a partir de então, o pároco anotava como sendo
eles os proprietários de tais inocentes. Outra hipótese diz respeito aos ingênuos
nascidos pós-1871, que, segundo a Lei do Ventre Livre, eram livres e, portanto,
não teriam sido batizados como pertencentes àqueles indivíduos.
41
No ano de 1877, aos 27 dias do mês de outubro, faleceu a viúva do Comendador Francisco de
Paula Lima, Dona Francisca Benedicta de Miranda Lima. De acordo com o inventário da mesma,
esta senhora possuía à época 130 cativos, o documento listou ainda, nove ingênuos. Passados onze
anos, desde o inventário do Comendador, percebemos um decréscimo no número de escravos, o
que não é de se espantar se consideramos que neste intervalo de tempo houve a partilha dos bens
daquele senhor, inclusive os escravos, no ano de 1866. Logicamente podem ter existido outros
fatores que levaram a essa baixa no número de cativos, como vendas, óbitos e dívidas. Ainda podemos encontrar mais homens do que mulheres escravas, todavia, apesar da diferença, os números
tendem mais a se equilibrar. Houve uma diminuição no número total de homens com relação às
mulheres. Enquanto estes diminuíram, mais ou menos em torno de 10%, estas aumentaram na
mesma proporção. As alterações das percentagens nas três faixas etárias se deveram, dentre outros
motivos, pela própria variação de tempo, ou seja, houve ali uma mudança dos cativos em suas
faixas de idade. Muitos dos cativos que conseguiram sobreviver e estavam, por exemplo, na faixa
dos recém-nascidos em 1866, com o passar dos anos passaram a integrar a faixa das crianças,
enquanto que os desta faixa eram em 1877 jovens/adultos, e assim sucessivamente. Tanto no inventário do Comendador Francisco de Paula Lima, quanto no de sua esposa, D. Francisca Benedicta
de Miranda Lima, um pequeno percentual de africanos com procedência conhecida. Parece que a
posse de escravos envelheceu, entretanto, este envelhecimento deve ser matizado, pois as crianças
nascidas após a Lei do Ventre Livre de 1871, nove ingênuos, que a partir de então eram livres,
não foram computadas. A análise das duas Tabelas parece corroborar essa “passagem” entre as
faixas. Em 1866 eram 32 crianças e um recém-nascido, 16,1% do total de escravos, já em 1877
esse número caiu para nove, 7%. Isso fica ainda mais perceptível nas faixas dos jovens/adultos
e na dos idosos. Enquanto a primeira possuía 136 cativos, 66,6%, passou a contar em 1877, com
57 escravos, 43,9%; a segunda teve sua percentagem aumentada, de 35 idosos 17,7%, abarcou
em 1877, 59 cativos, 45,4%, passando a contar com a maior percentagem do total de cativos neste
ano. No período em que a mão de obra escrava sofreu um aumento no preço dos cativos, sobretudo
pelo fim do tráfico internacional, seria inviável, pelo menos do ponto de vista econômico, que
depois da morte do Comendador, sua esposa ou herdeiros tivessem investido seus capitais em
cativos com idades acima dos quarenta anos. Esta mudança pode demonstrar uma manutenção
da comunidade escrava. Muitos dos cativos que habitaram a posse do Comendador durante seu
ciclo de vida, inclusive suas famílias, devem ter continuado nesta propriedade até o momento da
morte de D. Francisca Benedicta de Miranda Lima, ou quem sabe até mais. Idem, Ibidem, p. 77-78.
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261
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
Situação completamente diferente ocorreu com a propriedade do Capitão
Manoel Ignácio Barbosa Lage.42 Entretanto, antes de entrarmos na análise de suas
estratégias, é necessário que façamos algumas ressalvas a respeito desse senhor.
Quando analisávamos os Livros de Registros Paroquiais de Batismo da Freguesia
de Simão Pereira, deparamo-nos com o registro de vários cativos, cujo proprietário
era Manoel Ignácio Barbosa ou, às vezes, Manoel Ignácio de Barbosa. Inicialmente, acreditamos que poderia ser um filho do Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage
ou outro indivíduo qualquer, parente ou não dele. Entretanto, no decorrer do levantamento dos dados, mais e mais nos convencíamos de que era a mesma pessoa.
Isso ocorreu por vários motivos, primeiro, porque todas as grafias diziam respeito a um indivíduo residente na Freguesia de Simão Pereira, local de moradia do
Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage, o que pode ser comprovado nos autos de
seu inventário. Posteriormente, conseguimos encontrar Manoel Ignácio Barbosa,
levando filhos à pia batismal com sua esposa, D. Florisbella Francisca de Assis
Barbosa, foi esse o caso de seu filho Manoel Ignácio Barbosa Junior, batizado na
Matriz de Nossa Senhora de Simão Pereira, filho legítimo do casal. A esposa tinha
o mesmo nome da cônjuge do Capitão Manoel Ignácio de Barbosa Lage, inventariante de seu marido, chamada Dona Florisbella Francisca de Assis Barbosa Lage.
Ao que parece, o Capitão e sua esposa, em algum momento de sua história
de vida, devem ter somado a seus nomes o sobrenome Lage, ou, quem sabe, esse
sempre existiu e foi “esquecido” pelos responsáveis pela feitura dos assentos
42
Outra das posses de escravos pesquisadas, qual seja a do Capitão Manoel Ignácio de Barbosa
Lage, era composta, segundo seu inventário, em sua maioria por homens, 64,4%, as mulheres
constituíam 35,6% de sua propriedade. Sobre a origem dos escravos pertencentes ao Capitão
Manoel Ignácio Barbosa Lage, para um grande número não foi possível determinar esta variável.
Para aqueles onde conseguimos averiguar esta informação observamos que os homens foram,
em sua maioria, classificados como crioulos, num total de 31 indivíduos, que corresponde a
26,3%. Os designados como africanos totalizavam 30 indivíduos, 25,4% do total da posse. As
mulheres da mesma forma, em sua maior parte foram designadas como crioulas, 20 ou 16,9%,
as africanas eram 03, e representavam 2,5% do total de 118 cativos. Os cativos para os quais esta
informação não consta perfaziam 34 escravos 28,8%. Dezoito anos após o fim efetivo do tráfico
de escravos para o Brasil, a grande maioria dos cativos dessa posse, onde foi possível se saber
a origem, era composta por escravos nascidos no Brasil (43,2%). Quando averiguamos o sexo
e a faixa etária onde se encontravam os cativos verificamos uma distribuição sempre maior dos
homens em todas as faixas etárias, com exceção dos recém-nascidos que eram 03 meninos e 03
meninas. Na faixa das crianças havia 15 homens e 12 mulheres; na dos jovens/adultos, 37 homens
e 21 mulheres; entre os adultos, respectivamente, 20 e 06. Havia ainda 01 homem sem idade
conhecida. Os africanos foram designados apenas como de nação, portanto, não pudemos traçar
qual a procedência destes indivíduos. O conhecimento deste aspecto foi possível para apenas três
cativos do sexo masculino dois deles designados como carioca e o outro como pernambucano,
provavelmente oriundos do tráfico interprovincial. Idem, Ibidem, p. 80-81.
262
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
paroquiais. Essa última hipótese parece-nos mais plausível, pois, voltando ao
inventário desse senhor, temos a oportunidade de saber que era filho legítimo do
Furriel Domingos Antonio Barbosa Lage e de Dona Rosa Maria de Jesus. Aliás,
no ano de 1830, Manoel Ignácio Barbosa, juntamente com sua esposa Florisbella
Barbosa, levou sua filha legítima, de nome Maria, ao batismo, e o padrinho foi
registrado como Domingos Antonio Lage, provavelmente, o furriel, pai do Capitão Manoel, que também teve parte de seu nome “esquecido”. Outra hipótese
que pode ser levantada é a de que, na verdade, a ausência do sobrenome “Lage”
nunca foi esquecida. Manoel Ignácio Barbosa, ou Barbosa Lage, era um senhor
importante naquela localidade, que, futuramente, viria a obter a patente de capitão.
Talvez pelo fato de ser tão conhecido e importante pudesse “prescindir” de seu
sobrenome. Seu poderio econômico, político e financeiro deveria dispensá-lo,
pelo menos naquela região, de seu nome e sobrenome.
Outra questão importante diz respeito ao desaparecimento do Capitão Manoel Ignácio de Barbosa Lage e das outras variações onomásticas descritas após
o mês de março de 1868. Lembremo-nos de que o Capitão faleceu no dia 3 do
dito mês e ano. A partir de então, encontramos escravos sendo batizados pelos
herdeiros do Capitão e por sua viúva, D. Florisbella. Esses aspectos podem-se
caracterizar como indícios fortes de que tais variações diziam respeito à mesma
pessoa. Consideramos, então, que o Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage foi
nomeado de três formas diferentes. Portanto, reputamos todas as variações como
sendo representativas de um mesmo indivíduo.
Pois bem, se nosso raciocínio, baseado em tais evidências, está correto, o
Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage levou ao sacramento do batismo um impressionante número de crianças escravas. De acordo com os registros paroquiais
foram 62 inocentes, o que corresponderia a 52,5% do total de 118, descritos em
seu inventário, caso todos ainda se encontrassem vivos e naquela posse. Existiu,
ainda, 1 escravo adulto que foi levado à pia batismal.
Embora houvesse um alto percentual de cativos com origem não descrita,
acreditamos que deviam ser escravos nascidos no Brasil. O impacto da reprodução
natural pode ser reforçado na análise da propriedade que possuía, entre os recém-nascidos e as crianças, um total de 33 escravos, todos eles crioulos, ou seja, mais
da metade do número levado ao batismo. Havia 01 cativo do sexo masculino sem
idade conhecida. Tratava-se de Andalixto crioulo, filho de Prudência e Antonio
Pedreiro, ou seja, mais um nascido naquela propriedade. Não seria impossível
pensar que o restante dessas crianças estivesse, agora, entre jovens/adultos
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
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Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
daquela posse. Vale destacar que as três variações do nome do Capitão Manoel
iam levando escravos ao sacramento do batismo entre os anos de 1818 e 1868.
A partir dessa última data, encontramos 3 inocentes recebendo aquele sacramento católico, entre 1868 e 1870, constando como pertencentes aos herdeiros do
Capitão Manoel Ignácio de Barbosa Lage. Entre 1869 e 1878, foram 8 descritos
como pertencentes à viúva, Dona Florisbella Francisca de Assis Barbosa Lage.
Quatro desses nasceram depois da Lei do Ventre Livre.
Como já dissemos, é impressionante o número de cativos levados ao sacramento do batismo por essa família. Somando-se todos, temos 73 crianças sendo
batizadas. Parece que os Barbosa Lage utilizaram, em suas posses, processos de
reprodução natural, o que causou um enorme impacto na manutenção e/ou na
ampliação delas.
Conseguimos conhecer os pais e/ou as mães de 37 daquelas crianças. Muitos
deles possuíam filhos crioulos, que devem ter nascido dentro da propriedade.
Dessa maneira, podemos encontrar Antonio pedreiro e Prudência com seus 6
filhos; Nicolao crioulo e Theodora, com 5 crianças; Matheos de Nação e Clemência, com 4; Racheo de Nação e Minelvina parda: cada uma com 3 filhos. Com 2
crianças descritas como seus filhos, encontramos ainda Catharina e Bartholomeo,
Fidelis de Nação e Margarida [ininteligível?] de Nação e Roza, Silvério de Nação
e Juliana, e Joaquina de Nação. Os outros cativos aparecem registrados juntos,
cada um com apenas um rebento mencionado. Eram eles: Adão de Nação e Flora,
Jerônimo crioulo e Lusia, Bernardino de Nação e Maximiana, Felippe carioca e
Custódia, Heliodoro e Delphina, Lino de Nação e Constança. Se nossas hipóteses
realmente estão corretas, parece que aquela posse contou com uma comunidade
escrava bem enraizada e, quem sabe, baseada em relações de afetividade, amizade
e solidariedade bastante fortes, com famílias preservadas, possibilitando àqueles
indivíduos certa estabilidade.
A análise dos Livros de Notas e Escrituras Públicas permitiu averiguar como
se deu a manutenção e/ou a ampliação dos cativos daquelas famílias, bem como
qual ou quais os sentidos do tráfico, os setores da economia que demandavam
aquela mão de obra, além de dados, como sexo, origem, idade, preço dos cativos,
etc. Esse corpus documental foi de vital importância para o estudo do potencial
escravista de uma determinada região e época.
Nesse aspecto, é interessante salientar que os Paula Lima foram os que mais se
desfizeram de seus ativos em escravos. Os filhos do Comendador, ao que parece,
não foram bons administradores de seus bens. Os encontramos levando muitos
cativos à venda, inclusive, sob força de hipoteca e dívida. Nem o Comendador
264
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
nem sua esposa venderam escravos, ao contrário, utilizaram o recurso da compra ou da cobrança de dívidas para o incremento de suas posses. Adquiriram,
respectivamente, 17 e 13 cativos, em sua maioria homens.
O Capitão Manoel Ignácio obteve 5 escravos e não se desfez de nenhum.
Talvez esse pequeno número, comprado por ele se justifique pelo fato de ter
podido contar, em sua propriedade, com o crescimento natural de escravos.
Surpreendente é a aquisição de grande número deles por parte de seu filho, Dr.
Antero José Lage Barboza, que obteve um total de 97, sendo 60 homens, 35
mulheres e 2, cujo registro do sexo não encontramos.
Nos Livros de Notas e Escrituras Públicas43 que pesquisamos, entre os anos
de 1857 e 1886, foram encontrados 627 cativos comercializados por aquelas três
famílias senhoriais, por meio de compras e vendas, hipotecas, penhor, dívidas,
doação e procuração44 (Tabela 1).
Tabela 1 – Sexo e faixa etária dos escravos que foram parte de algum tipo de transação comercial
feita pelos Dias Tostes, pelos Paula Lima e pelos Barbosa Lage, em Juiz de Fora, 1857-1886
Faixa
etária
Sexo
Masculino
%
Feminino
%
Não Consta
%
Total
%
Não Consta
01
56
237
61
41
0,2
14,1
59,9
15,4
10,4
01
32
139
17
41
0,4
14,0
60,4
7,4
17,8
01
-
100
-
02
88
377
78
82
0,3
14,0
60,1
12,5
13,1
Total
396
100
230
100
01
100
627
100
Recém-nascido
1-14 anos
15-40 anos
41+ anos
Fonte: Livros de Escritura Públicas, Compra e Venda de Escravos do Primeiro Ofício de Notas do
AHCJF; Segundo Tabelionato de Notas de Juiz de Fora.
Esses cativos eram, em sua maioria, do sexo masculino (396). Existiram
ainda 230 escravas. De 1 cativo não foi possível saber o sexo. Mais uma vez,
nota-se a preferência pelos escravos do sexo masculino nas transações comerciais, ocorridas em Juiz de Fora. A soma dos cativos transacionados por aquelas
43
44
Foram pesquisados os Livros de Escrituras do Primeiro Ofício de Notas (1852-1889), inclusive
os dos distritos pertencentes àquele município e também os do Segundo Tabelionato de Notas
de Juiz de Fora (1856-1888). Cabe ressaltar que esses livros só trazem informações a partir da
segunda metade do século XIX. Todos se encontram sob a guarda do AHCJF.
Essas são as transações comerciais mais comuns; cabe ressaltar que, na maioria das vezes, elas
vêm descritas de maneiras diversas, como, por exemplo, Escritura de dívida obrigação e hipoteca
especial, ou Escritura de doação como adiantamento de legítima, etc.
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Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
famílias permite perceber que, de maneira geral, se continuava a dar preferência
aos escravos entre 15-40 anos, fossem eles homens ou mulheres. Encontra-se
também nessa faixa o cativo cujo sexo não foi possível conhecer. Seus valores
percentuais foram, respectivamente, 59,9% e 60,4%. Apesar de haver maior
percentagem em relação aos homens, as mulheres negociadas naquele período
foram 139, enquanto os escravos somavam 237. É interessante verificar que as
mulheres com idades conhecidas tiveram, na faixa entre 1-14 anos, a segunda
maior percentagem, 14,0%.45 Pode ser que, no momento dessas transações, os
compradores tenham preferido adquirir essas “meninas” com potencial reprodutivo maior do que as que tinham acima de 41 anos. Da mesma forma, esse
potencial reprodutivo, que elevava o preço da escrava, pode ter levado aqueles
que delas se desfizeram, por venda, dívida, etc., a negociá-las mais do que as da
faixa das idosas. Outra explicação residiria no fato de que essas mulheres, assim
como os homens, trabalhavam no eito, o que pode ser comprovado por meio do
conhecimento das ocupações desempenhadas por elas (Tabela 2).
45
O decreto 1.695 de 15/09/1869, em seu artigo 2º determinava: “em todas as vendas de escravos,
ou sejam particulares ou judiciais, é proibido, sob pena de nulidade, separar o marido da mulher,
o filho do pai ou mãe, salvo sendo os filhos maiores de 15 anos” (Coleção das Leis do Império
do Brasil). Algumas dessas “meninas” foram negociadas após essa data, o que talvez demonstre
certa ineficácia da lei. Nos registros de compra e venda das mesmas não há menção a quaisquer
tipos de relações familiares. Sobre essas questões: MOTTA, José Flavio. Jovens & Coisas: transações envolvendo escravos de 9 a 17 anos de idade (Província de São Paulo, 1861-1887). In:
SOARES, Marcio de Souza; FERREIRA, Roberto G.; FARIA, Sheila. S. C. I Colóquio Nacional
Ordem e Ruptura em Debate: escravidão e alforria. UFF, 2011.
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Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
Tabela 2 – Ocupação dos escravos negociados pelos Dias Tostes, pelos Paula Lima e pelos
Barbosa Lage, em Juiz de Fora, 1857-1886
Ocupações
Homens
%
Mulheres
%
Total
%
Roceiro
Ferreiro
16
17
11
03
02
02
01
30,8
32,7
21,1
5,8
3,8
3,8
2,0
11
06
03
09
03
02
02
02
-
29,0
15,7
7,9
23,6
7,9
5,3
5,3
5,3
-
27
23
14
09
03
03
02
02
02
02
02
01
30,0
25,6
15,5
10,0
3,4
3,4
2,2
2,2
2,2
2,2
2,2
1,1
Total
52
100
38
100
90
100
Serviço da lavoura
Serviço da roça
Serviço doméstico
Alfaiate
Cozinheira
Copeiro
Costureira
Fiandeira
Lavadeira
Pedreiro
Fonte: Livros de Escritura Públicas, Compra e Venda de Escravos do Primeiro Ofício de Notas do
AHCJF; Segundo Tabelionato de Notas de Juiz de Fora.
No que diz respeito às ocupações dos escravos negociados, para a maioria não
havia essa informação. Seriam escravos sem “habilidade”? Talvez sim. Todavia,
deviam, na verdade, ser cativos do “trabalho da roça/lavoura”, que cultivavam o
café e, portanto, não era necessário ter seu ofício descrito. Entretanto, para aqueles
de que foi possível conhecer essa variável, a maioria foi descrita como “roceiro” e
a “serviço da lavoura”, seguida por aqueles designados como do “serviço da roça”.
Embora a amostragem seja restrita, por essas designações podemos perceber
que a localidade ainda estava vinculada às atividades agrícolas. Com certeza,
ligadas ao seu produto principal de exportação – café – e, para tanto, visava à
aquisição de mão de obra em idade produtiva e que pudesse ser utilizada na lavoura cafeeira. Essas três categorias de ocupação incluíam 64 indivíduos, 71,1%
de todos os escravos com ofício mencionado. A diferença entre roceiro e serviço
de lavoura estava ligada à atividade produtiva desempenhada, que parecia estar
associada a algum produto de exportação; melhor dizendo, a alguma atividade
ligada à terra, que permitia altos lucros, como, por exemplo, o café. Já o ofício
de roceiro vinculava-se às atividades mais relacionadas à lavoura de alimentos,
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já que se trata daquele “que faz e planta roçados, comumente de mandioca, e
legumes; e difere do lavrador de canas, tabaco, algodão anil”.46
De acordo com Rômulo Andrade, na segunda metade do século XIX houve,
naquela localidade, que, segundo ele, se expandia tanto na área urbana quanto
na rural, maior utilização de cativos, oriundos do tráfico interno, nos serviços
do campo. Nessas transações,
Os cativos negociados eram, em sua maioria, jovens: 83 por cento tinha idade inferior a
35 anos. Portanto, o que se queria deles, era principalmente a plena capacidade produtiva.
As ocupações que exerciam nem sempre eram determinantes na hora da efetivação dos
negócios, pois 40 por cento dos registros sequer mencionam essa informação, talvez porque
o direcionamento maior dessa mão de obra fosse a lavoura de café. De qualquer forma,
o leque de atividades exercidas pelos cativos era múltiplo: lavradores/roceiros eram os
mais frequentes, seguidos pelos empregados em serviços domésticos e cozinheiros. Os
restantes se dividiam entre ofícios mais especializados, havendo, mesmo aqueles destinados a ‘qualquer trabalho’.47
Outra ocupação genérica muito citada foi o “serviço doméstico”, com 9
cativas. Se considerarmos que alfaiate, cozinheira, copeiro, costureira, fiandeira
e lavadeira eram atividades ligadas ao serviço doméstico, esse tipo de trabalho
aumenta bastante, atingindo um percentual de 25,6%. Outros trabalhadores especializados, como pedreiro e ferreiro (3,3%), também foram encontrados entre os
cativos. É interessante notar a divisão entre as ocupações exercidas por homens e
mulheres escravos. Com exceção das ligadas à roça ou à lavoura, que abrigavam
ambos, as demais eram desempenhadas por um ou outro sexo, havendo destaque
para as mulheres. Dezoito delas exerceram algum tipo de ocupação que não foi
descrita para os homens. O inverso ocorreu com 8 homens.
Apenas 87 escravos, que foram alvo de trocas, vendas, dívidas, penhor, tiveram seu valor descrito. Os preços variaram entre os vinte e cinco mil réis (25$000),
como foi avaliado Pedro, crioulo de 2 meses de idade, vendido ao genro de Antonio Dias Tostes, o senhor Manoel Vidal Lage Barbosa. Dois contos e quinhentos
mil réis (2:500$000) foram pagos por Marcelino Dias Tostes a Francisco Araújo
Lopes, morador no Pará, na Província de Minas Gerais, por cada um dos seguin-
46
47
SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da Língua Portuguesa. 6. ed. Lisboa: Typ. de Antonio
Jose da Rocha, 1858, p. 264 e 745.
ANDRADE, Rômulo Garcia de. Limites impostos..., op. cit., p. 90. O autor ressaltou ainda a
importância do aluguel de escravos, sobretudo pelas mulheres que exerciam tarefas relacionadas aos serviços domésticos (mucamas, cozinheiras, etc.), embora os cativos do serviço do eito
também fossem alugados principalmente na época da colheita.
268
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
tes cativos: Joaquim Nunes, preto, solteiro, de 40 anos, com ofício de pedreiro;
Joaquim Bernardo, preto, também solteiro, de 32 anos de idade, descrito como
roceiro, e por Manoel, preto, solteiro de 32 anos. Embora o número de cativos,
com o valor descrito, seja pequeno, cabe tentar uma aproximação mesmo que
superficial acerca dos preços praticados pelos envolvidos nessas transações, que
tiveram, como objeto de variados intercursos, a mão de obra escrava (Tabela 3).
Tabela 3 – Preços médios dos escravos em geral e segundo o sexo, dos Dias Tostes, dos Paula
Lima e dos Barbosa Lage, Juiz de Fora, 1857-1886
Sexo
Número de escravos
Preço médio (em réis)
Homens
51
1:376$000
Mulheres
36
1:043$000
Homens e Mulheres
87
1:239$000
Fonte: Livros de Escritura Públicas, Compra e Venda de Escravos do Primeiro Ofício
de Notas do AHCJF; Segundo Tabelionato de Notas de Juiz de Fora.
A média dos preços dos cativos, homens e mulheres, era de um conto duzentos
e trinta e nove mil réis (1:239$000). Os homens tiveram preços médios superiores
ao das mulheres, respectivamente, um conto trezentos e setenta e seis mil réis
(1:376$000) e um conto quarenta e três mil réis (1:043$000), cifras abaixo das
encontradas por José Flavio Motta, em Constituição (Piracicaba-SP), nas décadas
de 1860 e 1870. Segundo o pesquisador: “Houve, pois, um comportamento distinto dos preços médios reais de homens e mulheres ao longo do tempo. De fato,
as escravas sofreram contínua desvalorização”.48 Infelizmente, não foi possível
proceder como Motta, e tentar acompanhar a variação na média dos preços dos
escravos jovens/adultos, entre quinze e quarenta anos. A fonte, muitas vezes, não
especifica o preço dos cativos e/ou suas idades, o que nos impediu de perceber
variações nesses preços, ao longo da segunda metade do século XIX. Se tivéssemos tido esta oportunidade, talvez pudéssemos comprovar a tese de Slenes,
já que os livros que investigamos, como expusemos anteriormente, abrangem o
período por ele pesquisado, tal como escreveu:
48
MOTTA, José Flavio. Escravos daqui, dali e de mais além: o tráfico interno de cativos em Constituição (Piracicaba), 1861-1880. Revista Brasileira de História, v. 26, n. 52, 2006, p. 41.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
269
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
(...) se os cativos, via de regra, eram já mais caros no Sudeste cafeeiro nos anos de 1858 e
1859, eles passaram a ser, na maior parte dos casos, significativamente ainda mais caros
em fins do decênio de 1870 e em inícios da década de 1880. Para tanto contribuíram a
dinâmica diferenciada das atividades de exportação nas distintas províncias e as secas
sofridas pelo Nordeste entre 1877 e 1880.49
A informação sobre os escravos permitiu-nos perceber que a maioria era
composta por mão de obra do sexo masculino, independente da origem que lhes
era atribuída. Sobressaíram-se os crioulos, num total de 137 (77,4%), logo em
seguida vieram os descritos como africanos, com 40 cativos (22,6%). A distribuição das origens de acordo com o sexo demonstra que havia: 90 crioulos e
47 crioulas, (respectivamente, 74,4% e 83,9%). Trinta e um homens (25,6%) e
9 mulheres (16,1%) eram africanos. Essa estrutura não causa estranheza, por
se tratar de um período no qual o tráfico de cativos, provenientes da África, se
havia fechado, consequentemente, alterando as feições do escravismo, no que
diz respeito à origem dos indivíduos comercializados (Tabela 4).
Tabela 4 – Sexo e origem dos escravos que fizeram parte de algum tipo de transação comercial,
Juiz de Fora, 1857-1886
Sexo
Origem
Crioulo
Masculino
%
Feminino
%
Total
%
90
74,4
47
83,9
137
77,4
Africano
31
25,6
09
16,1
40
22,6
Total
121
100
56
100
177
100
Fonte: Livros de Escritura Públicas, Compra e Venda de Escravos do Primeiro Ofício
de Notas do AHCJF; Segundo Tabelionato de Notas de Juiz de Fora.
Como foi exposto na Tabela 1, e reforçado nas Tabelas seguintes, os homens
foram a maioria dos cativos comercializados naquele período. Por meio do
conhecimento das províncias, onde foram matriculados, pudemos estabelecer
quais suas procedências. Isso nos possibilitou também averiguar qual a nova
“modalidade” de tráfico de que se valeram os Dias Tostes, os Paula Lima e os
Barbosa Lage na manutenção de suas posses. Embora os escravos tenham sido
alvo de vários tipos de comércio, seja por compra e venda, troca, penhor, etc., foi
49
SLENES, Robert W. The demography and economics…, op. cit., 1976, p. 183.
270
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
por meio do tráfico que passaram a fazer parte da propriedade de seus senhores.
Só posteriormente foram alvo das ditas transações.
Ao analisarmos a Tabela 5, podemos averiguar que aqueles senhores envolvidos em algum tipo de comércio utilizaram principalmente o tráfico intraprovincial
para a aquisição de sua mão de obra.
Foram 274 escravos oriundos da própria província mineira, uma maioria
esmagadora, que perfaz a percentagem de 83,2%, maior que a soma de todas as
outras procedências conhecidas, cifras que se repetiram com relação ao sexo.
Todos os homens e mulheres com procedência conhecida (respectivamente, 79,9%
e 89,1%) eram oriundos de Minas Gerais. Os cativos provenientes do tráfico
interprovincial perfizeram um total de 49 (15,0%). Dentre eles, com exceção
dos provenientes de Pernambuco e Goiás, as outras províncias mantiveram a
tendência de contribuir com mais homens do que mulheres. Havia ainda os de
procedência africana. Eram 6, 5 homens e 1 mulher, que, a priori, provieram do
tráfico intercontinental e, mais uma vez, foram alvo de algum tipo de transação
comercial (1,8%). Essa supremacia masculina, uma vez mais, parece demonstrar
que a localidade ainda vivenciava um período de desenvolvimento baseado na
plantation do café, que demandava trabalhadores escravos, sobretudo do sexo
masculino. Como bem lembrou Motta, esses escravos “constituir-se-iam nas
‘peças’ preferidas no comércio de cativos, sejam os importados da África, sejam
os oriundos do tráfico interno”.50
50
MOTTA, José Flavio, op. cit., 1999, p. 299.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
271
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
Tabela 5 – Sexo dos cativos comprados e vendidos pelos Dias Tostes, pelos Paula Lima e pelos
Barbosa Lage, de acordo com a procedência e a província onde foram matriculados, Juiz de
Fora, 1857-1886
Sexo
Província
/procedência
Sudeste
Nordeste
Minas Gerais
Rio de Janeiro
Espírito Santo
Ceará
Bahia
Alagoas
Pernambuco
Piauí
Paraíba do Norte
Paraíba
Maranhão
CentroOeste
Goiás
África
Cabinda
Congo
Rebolo
Benguela
Total
Masculino
%
Feminino
%
Total
%
167
07
03
10
10
03
01
01
01
01
79,9
3,3
1,5
4,8
4,8
1,5
0,5
0,5
0,5
0,5
107
01
02
02
01
03
01
-
89,1
0,9
1,6
1,6
0,9
2,5
0,9
-
274
08
03
12
12
04
04
01
01
01
01
83,2
2,4
1,0
3,6
3,6
1,3
1,3
0,3
0,3
0,3
0,3
-
-
02
1,6
02
0,6
02
02
01
-
0,9
0,9
0,5
-
01
0,9
02
02
01
01
0,6
0,6
0,3
0,3
209
100
120
100
329
100
Fonte: Livros de Escritura Públicas, Compra e Venda de Escravos do Primeiro Ofício de Notas do
AHCJF; Segundo Tabelionato de Notas de Juiz de Fora.
Os cativos, vindos de outras partes do Império, variaram entre no mínimo 1
e no máximo 12. Pois bem, se os agruparmos por regiões, excetuando-se a Província de Minas Gerais, percebemos que a maioria era proveniente do Nordeste
brasileiro, 12 do Ceará, o mesmo número da Bahia, de Alagoas e Pernambuco,
cada um com 4, enquanto as Províncias do Piauí, da Paraíba do Norte, da Paraíba e do Maranhão participaram com 1 escravo cada, totalizando, então, 36.
O segundo maior contingente foi proveniente da região Sudeste: do Rio de
Janeiro e do Espírito Santo, respectivamente, 8 e 3. Por fim, temos 2 indivíduos
provenientes de Goiás, que se localiza no Centro-Oeste. No que diz respeito à
aquisição de cativos, os oriundos da região Nordeste representaram 11%. Muito
provavelmente, houve uma conjunção de fatores, como sugere Slenes. O primeiro
teria sido a própria dinâmica das regiões exportadoras de café do Centro-Sul, que
continuavam a demandar mão de obra em suas lavouras, e que, agora, só poderia
ser adquirida por meio do tráfico nacional. O segundo teria sido a crise enfrentada
272
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
pelos proprietários de cativos do Nordeste brasileiro, principalmente com a seca
que assolou aquela região na segunda metade do século XIX.51
Cláudio Heleno Machado, em seu estudo sobre a mesma localidade, valendo-se da análise de farta documentação, afirma que
O tráfico interprovincial (...) teve tanta significação que em Juiz de Fora encontravam-se
escravos procedentes, praticamente, de todo o território nacional, pelo menos onde havia
mão de obra cativa que pudesse ser transferida. (...) Destacam-se nas transferências para
Juiz de Fora, nesta modalidade do tráfico interno, as regiões do Nordeste e o próprio Centro-Sul: 61,57 e 33,21%, respectivamente. Embora com parcelas ínfimas, as regiões Oeste e
Sul do país também contribuíram com transferências de escravos para Juiz de Fora: 3,36
e 1,86% do total apurado por este estudo, também respectivamente.52
A análise mais detida da província/procedência permite observar quais as
localidades (cidade, vila, distrito, etc.) em que foram matriculados os cativos.
Conseguimos conhecer esse aspecto para 321 deles (51,2%), que fizeram parte
das transações comerciais envolvendo os Dias Tostes, os Paula Lima e os Barbosa
Lage, entre 1857 e 1886.
Dos 49 escravos provenientes do tráfico interprovincial, foi possível saber
o local de matrícula de 46. Do Nordeste vieram 32, a maioria proveniente do
Ceará. Foram 12 os negociados dessa província, 3 matriculados em Maranguape
e outros 2 em Ipui; para outros 4 não foi possível saber o local da matrícula.53
Existiu ainda 1 cativo descrito apenas como matriculado no Ceará. Os 2 restantes
se distribuíram igualmente entre Lavras e Sobral. O segundo maior contingente
negociado por aquelas famílias era proveniente da Bahia, totalizando 9 indivíduos:
Santo Antonio da Barra forneceu 3, Campo Largo 2, e Maragogipe, Remanso,
51
52
53
Sobre os problemas enfrentados pelo Nordeste e o aumento do fluxo de cativos daquela região
com destino às de produção cafeeira, conferir, entre outros, CONRAD, Robert. Os últimos
anos..., op. cit. Segundo Peter Eisenberg, “O tráfico interprovincial chegou ao auge na década
de 1870 em virtude das severas secas nordestinas que forçaram a liquidação dos ativos fixos,
como os escravos. O total de escravos embarcados para o sul, após 1876, foi tão elevado que
as províncias compradoras – Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais – impuseram elevados
tributos à importação de escravos, em 1880 e 1881. (...) Os tributos acabaram com o tráfico
interprovincial de escravos”. EISENBERG, Peter. Modernização sem mudança: a indústria
açucareira em Pernambuco, 1840-1910. Rio de Janeiro; Campinas: Paz e Terra; Universidade
Estadual de Campinas, 1977, p. 175-177.
MACHADO, Cláudio Heleno. Tráfico interno de escravos estabelecidos na direção de um município da região cafeeira de Minas Gerais: Juiz de Fora, na Zona da Mata (segunda metade
do século XIX). Monografia do Curso de especialização em História do Brasil. Universidade
Federal de Juiz de Fora, 1998, p. 66.
Para 2 desses 4 cativos só conseguimos saber parte do nome do local (Joa?).
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
273
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
Carinhanha e Feira de Santana 1 escravo cada; para os outros 3 não conseguimos
obter essa informação. A Província de Pernambuco forneceu 2 escravos, matriculados no Recife, 1 em Limoeiro e outro em Oiricury. Quatro outras províncias
nordestinas negociaram escravos em Juiz de Fora. Alagoas forneceu 4 cativos,
divididos entre Afonso, Maceió, Paulo Affonso e Santo Antonio. O Maranhão
contou com 1 indivíduo matriculado na alfândega dessa província. O Piauí contou com o mesmo número de escravos, matriculados em Valença, assim como o
matriculado em Souza, na Parahyba do Norte.
O Sudeste – ou o Centro-Sul – participou com 11 escravos, distribuídos entre
a Corte e as Províncias do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. A primeira teve
7 matriculados. A segunda negociou 1 escravo oriundo de Campos e a terceira
outros 3, vindos de Serra. Por fim, encontramos 2 matriculados em Catalão, Goiás. Existiu ainda mais 1, cuja província ou local de matrícula esta ininteligível.
Robert Slenes, em estudo sobre o tráfico interno de escravos, detectou que o
número de traficados para o centro-sul do Brasil, entre meados dos anos de 1850
e 1881, em transferências inter-regionais, esteve por volta de 222.500 indivíduos,
uma média de 7.200 por ano, para todo aquele período.54
Como já pudemos observar anteriormente, a grande maioria dos cativos
que foi alvo de algum tipo de transação comercial, segundo as fontes, estava
matriculada na província mineira e, nesse aspecto, algumas considerações são
interessantes (Tabela 6).
54
SLENES, Robert. The Brazilian Internal Slave Trade…, op. cit. p. 331. Richard Graham percebeu
que o tráfico interno de escravos e os escravos tiveram importante papel no fim da escravidão.
GRAHAM, Richard. Another Middle Passage? The Internal Slave Trade in Brazil. In: JOHNSON,
Walter (Org.). Domestic Passages..., op. cit.
274
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
Tabela 6 – Localidade da matrícula dos cativos dos Dias Tostes, dos Paula Lima e dos Barbosa
Lage, oriundos do tráfico intraprovincial e local, Juiz de Fora, 1857-1886
Tipo de tráfico
Número de cativos negociados
%
Intraprovincial/Local*
Regiões/Municípios
Zona da Mata
Mar de Hespanha
Ponte Nova
Juiz de Fora
06
04
213
2,2
1,5
77,8
223
81,5
Grão Mogol
Diamantina
Arrasuahy
Minas Novas
06
05
04
02
2,2
1,9
1,5
0,7
Subtotal
17
6,3
03
03
01
02
03
02
01
1.1
1,1
0,3
0,8
1,1
0,8
0,3
15
5,5
10
01
3,6
0,3
11
3,9
05
05
1,9
1,9
01
01
02
0,3
0,3
0,6
Pouso Alegre
Subtotal
01
01
0,3
0,3
Total de escravos negociados
274
100%
Subtotal
Jequitinhonha Mucuri-Doce
Metalúrgica Mantiqueira
Abaeté
Queluz
Arassandy
Barbacena
Sete Lagoas
Sabará
Santa Luzia
Subtotal
Oeste
Pará
Tamanduá
Subtotal
Alto Paranaíba
Araxá
Subtotal
São Francisco Montes-Claros
Januária
Montes Claros da Formiga
Subtotal
Sul
Fonte: Livros de Escritura Públicas, Compra e Venda de Escravos do Primeiro Ofício de Notas do
AHCJF; Segundo Tabelionato de Notas de Juiz de Fora.
*O tráfico local é aquele que ocorre dentro dos limites do município de Juiz de Fora. Optamos por deixá-lo junto à região, Zona da Mata.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
275
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
Por meio da Tabela acima, podemos perceber que, dos 274 cativos provenientes da própria província mineira, cuja procedência foi possível conhecer,
61 (22,3%) eram oriundos do tráfico intraprovincial (entre Juiz de Fora e outros
municípios mineiros), os outros 213 (77,7%), do tráfico local interno, dentro dos
limites do município de Juiz de Fora. O tráfico intraprovincial, sobretudo aquele
oriundo do comércio local de escravos provenientes da própria Zona da Mata e
em específico de Juiz de Fora, foi o responsável pela esmagadora maioria dos
escravos negociados.55
Fica patente a preferência dos envolvidos naquelas transações, em primeiro
lugar, por escravos oriundos do próprio município e, em seguida, por aqueles
vindos das demais regiões mineiras. Essa mesma constatação foi feita por Cláudio Heleno Machado. O pesquisador concluiu que os escravos negociados pelos
senhores, na mesma localidade, eram oriundos do tráfico local, intraprovincial
e, por último, do interprovincial.56
Ainda de acordo com a Tabela 6 e tomando por base os modelos expostos
por Roberto Martins e Douglas Libby – em que eles estabeleceram uma divisão
dos distritos mineiros de acordo com a distribuição da propriedade de escravos
–, é possível perceber que localidades vinham perdendo cativos para a Zona da
Mata Mineira e, em específico, para o município de Juiz de Fora.57 Essa mesma
tendência foi percebida por Garavazo, em seu já citado estudo sobre Batatais.
Naquela região, verificou-se o caráter local do comércio de escravos, sobretudo
pelo conhecimento do lugar de moradia de compradores, vendedores e também
dos procuradores, bem como por meio do conhecimento da naturalidade dos
cativos e dos ingênuos transacionados.
Verificou-se que 88,4% das pessoas que compraram cativos e ingênuos e 80,9% daquelas
que venderam residiam em Batatais (na cidade ou no termo). Em apenas quarenta transações
(12,5% do total) o vendedor foi representado por um procurador, número que se igualou
55
56
57
Sobre a importância dos tráficos local e intraprovincial de escravos conferir os importantes
trabalhos de: MOTTA, José Flavio. Escravos daqui, dali e de mais além,..., op.cit. MARTINS,
Ismênia de Lima. Problemas da extinção do tráfico africano na província do Rio de Janeiro. Uma
tentativa de análise das dificuldades de reposição de mão de obra na grande lavoura fluminense.
Tese de Doutorado. FFLCH, USP, 1973.
MACHADO, Cláudio Heleno. Tráfico interno de escravos..., op. cit.
LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho..., op. cit., p. 33; MARTINS, Roberto Borges.
Minas Gerais, século XIX:..., op. cit.
276
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
a tão somente trinta e dois (10,0%) no caso dos compradores. E, ainda mais, verificou-se
que sessenta e um, destes setenta e dois procuradores, moravam em Batatais.58
Os escravos negociados dentro dos limites mineiros eram de quase todas
as regiões, com exceção do Triângulo e de Paracatu. Muitos deles vinham
de áreas onde não havia concentração de algum produto que pudesse ser
responsável pela manutenção ou, até mesmo, pela ampliação de suas posses
de escravos, regiões que, em sua maioria, se caracterizavam pela pequena
propriedade, mais sujeita às oscilações do mercado. Essa parece ser a explicação para o número de cativos das regiões de Jequitinhona e Mucuri-Doce (6,3%). O mesmo raciocínio vale para São Francisco – Montes Claros
contribuiu com 0,6%.59 As regiões Metalúrgica Mantiqueira (5,5%), Oeste
(3,9%), Alto Paranaíba (1,9%) e Sul (0,3%) devem ter contribuído para o incremento da mão de obra escrava, também pelos mesmos motivos (Mapa 1).
Num primeiro momento, o número de cativos negociado com a Zona da Mata
causa estranheza, já que essa seria a região possuidora do maior contingente deles,
devido à alta concentração das posses e também porque, àquela época, tinha um
produto importante que demandava força de trabalho, portanto, estaria sendo
recebedora e não distribuidora de escravos. A Tabela 6 nos permite conhecer as
duas localidades da Mata Mineira que negociaram cativos com aquelas famílias
que lá habitavam. Cabe, neste momento, ressaltar que Mar de Hespanha e Ponte
Nova eram muito diferentes, do ponto de vista econômico e demográfico.
Mar de Hespanha, localizada na Zona da Mata Sul, foi um importante centro
cafeicultor, durante todo o período, e seria de se esperar que estivesse ganhando
e não perdendo cativos. Em uma análise mais detida a respeito dos tipos de
negócios que geraram aquela transferência, podemos averiguar que, dos 6 indivíduos negociados, apenas 1 o foi por meio de compra e venda, os outros 5 eram
oriundos de uma escritura pública de dívida, obrigação e hipoteca, ou seja, quase
a totalidade deles só foi comercializada porque deve ter havido, por parte de seu
proprietário, quem sabe, um mau gerenciamento dos negócios. Dessa forma, a
transferência se deu por motivos outros que não a incapacidade da região para
manter seus cativos.60 Já Ponte Nova se enquadraria no que chamamos de Zona
58
59
60
GARAVAZO, Juliana. Riqueza e escravidão..., op. cit., p. 238.
Sobre algumas características do norte mineiro àquela época, conferir a dissertação de BOTELHO,
Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias:..., op. cit.
Segundo Cláudio Heleno Machado, os municípios da Mata foram muito menos afetados por
transferências de cativos para Juiz de Fora, pois a região concentrava os principais municípios
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
277
Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
da Mata Norte, compunha a parte mais pobre daquela região, com características
completamente diferentes das outras duas. Pensamos que esses contrastes, dentro
da Zona da Mata, explicam esse perfil dos escravos negociados por tal área.
O que pudemos vislumbrar, até aqui, é que as famílias dos Dias Tostes, dos
Paula Lima e dos Barbosa Lage se valeram de processos diferenciados em relação
à manutenção e/ou ampliação de suas posses de escravos, mesmo porque atravessaram diferentes conjunturas, com peculiaridades distintas, o que, certamente,
contribuiu para a diversidade de suas estratégias. As duas primeiras fizeram uso de
processos de compra de cativos no comércio interno, embora os Dias Tostes tenham
participado muito mais do tráfico internacional. Entretanto, tudo indica que essa
não foi a atitude tomada pelo Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage, que parece
ter-se utilizado da reprodução natural para incrementar seu contingente cativo.
Talvez tenha contribuído para as especificidades de cada dono de terras o
instante de formação das suas propriedades, ou seja, o momento anterior ou posterior ao fim do tráfico, que levou a um rearranjo no que diz respeito à aquisição
e à relação com a mão de obra cativa. De acordo com Isabel Reis, em estudo
sobre a família negra na Bahia, entre os anos de 1850 e 1888,
Não há divergências sobre o fato de que depois da supressão do comércio transatlântico
de escravizados, os proprietários brasileiros ficaram mais atentos no sentido de preservar
os cativos e seus descendentes. Há uma propensão a se acreditar que principalmente a
partir da lei de 1850, se verificou até mesmo um maior incentivo aos casamentos e à
procriação entre eles.61
Cabe ressaltar que o aumento do contingente cativo desses senhores, por
meio das várias modalidades de tráfico, bem como da reprodução natural, se fez
presente em suas propriedades. O que acima concluímos diz respeito à principal
prática utilizada por eles e, de maneira alguma, ignoram-se as possibilidades da
ocorrência daqueles dois processos (reprodução natural e tráfico), que poderiam
possibilitar a manutenção e/ou a ampliação do número de escravos.
Conclui-se que as duas opções para o aumento do número de cativos parecem
não ter sido excludentes na referida localidade, mas sim complementares. A opção
por uma ou outra dependeu, sobremaneira, do período de formação das posses,
da maior ou menor proximidade do tráfico transatlântico e também do raciocínio
61
cafeeiros da província, sendo responsáveis também por importantes concentrações de mão de
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Jonis FREIRE. Crescimento da população cativa em uma economia agroexportadora.
econômico empreendido pelos senhores na busca pelo melhor “modelo” para a
manutenção e/ou a ampliação de suas propriedades.
De qualquer maneira, predominou muito a importação de escravos como
modo de reprodução/ampliação da mão de obra. O Capitão Lage foi um exemplo
entre os grandes possuidores de escravos, que parece ter utilizado a reprodução
natural, e, mesmo entre eles, é caso único. Entre pequenos e médios proprietários
– em que parecia haver menos estabilidade da comunidade escrava – deveria ser
maior ainda a importância da importação de cativos.
Mapa 1 – Porcentagem dos cativos pertencentes aos Dias Tostes, aos Paula Lima e
aos Barbosa Lage, oriundos do tráfico intraprovincial e local, segundo a região, Juiz de Fora,
1857-1886
Fonte: Elaborado pelo Prof. Dr. Luiz Fernando Saraiva (UFRB) a partir de LIBBY, 1988. I Sul; II Mata;
III Triângulo; IV Alto Parnaíba; V Oeste; VI Metalúrgica-Mantiqueira; VII Jequitinhonha-Mucuri-Doce;
VIII Paracatu; IX São Francisco-Montes Claros.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 245-283, jan./jun. 2012
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O MAGONISMO E A REVOLUÇÃO MEXICANA:
UM BALANÇO POLÍTICO E IDEOLÓGICO*
Fabio Luis Barbosa dos Santos
Doutor em História pela Universidade de São Paulo
Resumo
Este artigo analisa a trajetória política do magonismo – facção que encarnava a crítica
radical ao porfiriato no período pré-revolucionário – a partir da eclosão da Revolução
Mexicana em 1910. Ao relacionarmos sua evolução ideológica com a derrota progressiva dos revolucionários nos campos de batalha, analisamos o destino magonista sob o
ângulo dos constrangimentos sofridos pela revolução-democrática nacional no México.
Palavras-chave
liberalismo mexicano • magonismo • Revolução Mexicana
Contato:
Praça Guido Cagnacci, 23
05444-060 – São Paulo – SP
E-mail: [email protected]
* Apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012
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MAGONISM AND THE MEXICAN REVOLUTION:
A POLITICAL AND IDEOLOGICAL EVALUATION*
Fabio Luis Barbosa dos Santos
PhD in History – Universidade de São Paulo
Abstract
This article focuses the political development of magonismo – the most radical opposition to the Porfirio Díaz regime – from the onset of the Mexican Revolution in 1910.
As we relate its ideological evolution to the defeats suffered by the revolutionaries
in battlefield, its outcome is analysed under the light of the constraints faced by the
national democratic revolution in Mexico.
Keywords
mexican liberalism • magonism • Mexican Revolution
Contact:
Praça Guido Cagnacci, 23
05444-060 – São Paulo – SP
E-mail: [email protected]
* Scholarship-holder of Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012
Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
Introdução
Este artigo realiza um balanço político e ideológico do magonismo, facção
mais radical dos liberais mexicanos que se organizaram nos primeiros anos
do século XX para combater a ditadura de Porfirio Díaz no México, no poder
desde 1876. A questão subjacente é compreender por que a organização política
que encarnava a oposição radical à ditadura foi incapaz de assumir a direção do
processo quando a revolução que fomentou durante anos finalmente eclodiu.
A reivindicação posterior de Ricardo Flores Magón (1874-1922) pelo movimento anarquista convidou a leituras simplistas da sua trajetória,1 ignorando sua
fidelidade absoluta ao programa do Partido Liberal, de 1906 até sofrer derrotas
decisivas nos campos da batalha revolucionária.2 Este programa propõe um projeto de democratização radical da sociedade mexicana nos marcos do capitalismo
e será apontado por muitos autores como um dos antecedentes emblemáticos da
constituição mexicana de 1917.3 A despeito da radicalização ideológica de muitos
1
2
3
A reivindicação seminal é: SANTILLAN, Diego Abad de. Ricardo Flores Magón. El Apóstol
de la Revolución Social Mexicana. Cidade do México: CEHSMO, 1978. Também: TURNER,
Ethel Duffy. Ricardo Flores Magón y el Partido Liberal Mexicano. Cidade do México: Comisión Editorial Nacional, 1984. Esta abordagem redutora predomina nos trabalhos que abordam
Flores Magón e também nas análises da revolução mexicana que o mencionam. Por exemplo:
BLANQUEL, Eduardo. Ricardo Flores Magón. Cidade do México: Editorial Terra Nova, 1985.
CÓRDOVA, Arnaldo. La ideología de la Revolución Mexicana. La formación del nuevo regimen. 23ª reimpressão. Cidade do México: Era, 1973. Exceções recentes são: no primeiro caso,
TORRES PARÉS, Javier. La Revolución sin frontera. Cidade do México: UNAM, 1990. No
segundo: KATZ, Friederich. The life and times of Pancho Villa. Palo Alto: Stanford University
Press, 1998. Como o nosso objetivo é explicitar a insuficiência do rótulo anarquista para explicar
a trajetória de Flores Magón, nosso foco não será as influências libertárias que sofreu, tratadas
pela bibibliografia mencionada.
Outro equívoco dominante é interpretar Flores Magón e o PLM como precursores da revolução
mexicana, abordagem que desconsidera a derrota militar e política sofrida na revolução. O
trabalho fundamental nesta linha é o livro precursor de COCKROFT, James D. Precursores
intelectuales de la Revolución Mexicana (1900-1913). Traducción de María Eunice Barrales.
Cidade do México: Siglo XXI, 1985. A tese de Blanquel, republicada recentemente em livro,
revela esta leitura em seu título: El pensamiento político de Ricardo Flores Magón, precursor
de la Revolución Mexicana. Em: BLANQUEL, Eduardo. Ricardo Flores Magón y la Revolución
Mexicana y otros ensayos históricos. Prólogo, selección y edición Josefina Mac Gregor. Cidade
do México: Colegio de México, 2008. Os ensaios de Armando Bartra contestam esta visão: BARTRA, Armando. La revolución mexicana en la perspectiva del magonismo. In: GILLY, Adolfo
(Org.). Interpretaciones de la Revolución Mexicana. Cidade do México: UNAM, Editorial Nueva
Imagen, 1980. Também sua introdução a: Regeneración (1900-1918). La corriente más radical
de la revolución mexicana a través de su periódico de combate. Cidade do México: Era, 1977.
DÍAZ, Lilia (selección y traducción). Planes políticos y otros documentos. Fuentes para la
historia de la Revolución Mexicana. Prólogo de Manuel González Ramirez. Cidade do México:
FCE, 1954. Sobre a relação com a constituição de 1917: SILVA HERZOG, Jesus. Breve Historia
de la Revolución Mexicana. 2 tomos. 15ª reimpressión. Cidade do México: FCE, 1995.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012
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Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
membros da Junta Liberal no exílio, a percepção que tinham do modesto acúmulo
político da classe trabalhadora mexicana determinou a subordinação das suas
convicções pessoais ao cálculo das potencialidades políticas franqueadas pela
conjuntura, proporcionando o cultivo de possibilidades várias, desde a aliança
com os setores anti-porfiristas das classes dominantes até a ruptura irreversível
nos campos de batalha.4
Este percurso é evidenciado por meio do cotejo do movimento ideológico do
partido com os acontecimentos chaves que determinaram a sua derrota no início
da revolução. Tal cotejo foi viabilizado pela recente publicação dos primeiros
tomos das obras completas de Ricardo Flores Magón e pela disponibilização da
coleção completa dos exemplares do periódico Regeneración, em CD-ROM,
principal veículo da articulação política liberal.5 Esse exercício comparativo
revela que o fracasso magonista não deve ser debitado ao anarquismo, mas está
referido à intransigência dos setores anti-porfiristas das classes dominantes, que
se negavam a incorporar as demandas sociais da revolução e atuavam com determinação inflexível para conter as pressões democratizadoras do processo. Em
suma, este trabalho propõe um reenquadramento da análise do magonismo sob
o ângulo dos constrangimentos que a revolução democrática-nacional encontrou
para afirmar-se como via histórica para o capitalismo mexicano.
É somente no contexto da derrota das forças liberais no campo de batalha,
coetânea ao avanço da rebelião camponesa, que Ricardo Flores Magón reorienta
as consignas liberais em um sentido anticapitalista. Em outras palavras, é diante
da incapacidade da classe dominante dividida de integrar as demandas sociais
como caminho para a paz nacional que os liberais radicalizam suas bandeiras. Na
medida em que é desencadeada pela derrota militar, a radicalização ideológica
corresponde a uma progressiva impotência política dos magonistas. Em contradição com a racionalidade política prevalente no período pré-revolucionário,
4
5
O refinamento da visão política de Ricardo Flores Magón escapa aos trabalhos recentes de mexicanistas a que tivemos acesso. WARD, Albro S. Always a rebel. Ricardo Flores Magón and
the Mexican Revolution. Fort Worth: Texas Christian University Press, 1992. MACLACHLAN,
Colin. Anarchism and the Mexican Revolution – the political trials of Ricardo Flores Magón in
the United States. Berkeley: University of California Press, 1991. RAAT, Dirk W. Los revoltosos.
Rebeldes mexicanos en los Estados Unidos (1903-1923). México: FCE, 1993. BLAISDELL,
Lowell L. La revolución del desierto. Baja California, 1911. México: SEP, 1993.
FLORES MAGÓN, Ricardo. Obras Completas – Vol. I – Correspondencia (1898-1918). Vol.
II – Correspondencia 2 (1919-1922). Vol. III – Regeneración (1900-1901) primera parte. Vol.
IV – Regeneración (1900-1901) segunda parte. Vol. V – Artículos Políticos Seudónimos. Introducción, compilación y notas, Jacinto Barrera Bassols. Cidade do México: Conaculta, 2001.
Também: Regeneración. Edição completa em CD-Rom. BASRRERA BASSOLS, Jacinto (org.).
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012
Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
Flores Magón aposta no instinto das massas, enaltece a iniciativa popular espontânea e, ao mesmo tempo, enfatiza os vínculos entre o processo mexicano e
a inexorabilidade da revolução mundial, apelando a um sentido teleológico da
história ausente até então. Em síntese, o líder mexicano opera uma aproximação entre natureza e história que resulta em um esvaziamento da política, o que
termina por reforçar as debilidades do campo popular da revolução com o qual
se identifica e é derrotado.
Inicialmente, o artigo situa a formação e atuação da Junta Liberal no exílio no
período da ditadura encabeçada por Porfirio Díaz. Em seguida, acompanhamos
a fortuna política dos magonistas ao longo da revolução, concedendo especial
importância ao processo que conduz à ruptura com os maderistas, fator decisivo
para a radicalização das consignas liberais explicitada no manifesto de setembro
de 1911. Por fim, esboçamos um balanço político e ideológico do conjunto da
trajetória magonista.
Magonismo e Porfiriato
A conjunção entre a expansão da demanda mundial por produtos primários
e o imperativo da estabilidade institucional como premissa para o investimento
capitalista está na raiz da longa supremacia política de Porfirio Díaz (1876-1911),
a qual projetou o México em um período de acelerado crescimento econômico,
que se estenderia até a revolução. A consolidação do Estado mexicano esteve
associada ao papel que assumiu como mediador entre os negócios do capital
internacional e os requisitos sociais e políticos necessários para a sua penetração,
estabelecendo uma realidade na qual o investimento internacional e a Pax Porfiriana se retroalimentavam.6
Embora no plano econômico verifique-se uma continuidade entre o desígnio
da reforma e a modernização realizada pelo Porfiriato, a chamada “pacificação”
que lhe serviu de alicerce assentou-se na mutilação da dimensão social e política
do programa liberal. Em um regime onde a modernização do país foi afirmada
6
Nos baseamos em: KATZ, Friederich. The liberal republic and the Porfiriato. 1876-1910. In:
BETHELL, Leslie (Ed.). Mexico since independence. Cambridge: Cambridge University Press,
1991. KATZ, Friederich (compilador). Revuelta, rebelión y revolución. La lucha rural en México
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Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
como razão de Estado, o imperativo da ordem justificou a determinação em
silenciar qualquer foco de distúrbio social, seja de caráter caudilhesco, étnico
ou de classe. Assim, o desenvolvimento econômico superficial dissimulava o
acirramento das contradições sociais que a sua rigidez política encetava e que
terminaria explodindo de forma espetacular.
A crônica convencional do desabamento do Porfiriato se inicia nos primeiros
anos do século XX, tendo como ponto de partida a reunião convocada pelo Círculo
Liberal Ponciano Arriaga na cidade de San Luis Potosí, em 1901, quando se
aglutinaram entidades politicamente afins de diversas partes do país. Este encontro
serviu de impulso original para a articulação do Partido Liberal Mexicano, que
em pouco tempo seria liderado por Ricardo Flores Magón, na época coeditor do
recém-fundado periódico Regeneración (1900-1918).
Inicialmente inspirado pelas divisas anticlericais e legalistas herdadas da
Reforma liberal de meados do século XIX, os liberais mexicanos radicalizaram
progressivamente suas posições diante da perseguição implacável da ditadura.
Depois de sofrer seguidas vezes com a prisão e o fechamento do jornal, Flores
Magón teve proibida pelo governo a publicação de qualquer escrito seu. Nesta
circunstância refugiou-se nos Estados Unidos (1904), de onde assumiu a liderança
da Junta Liberal no exílio. Convencido de que estavam fechadas as vias para
a mudança social dentro da ordem, o Partido conspirou incansavelmente para
derrubar a ditadura pela via revolucionária, envolvendo-se com as principais
agitações operárias da época e iniciando, por duas vezes, um levante armado
no norte do país, de modo a consolidar uma reputação de oposição radical ao
Porfiriato no período pré-revolucionário.
Neste contexto, com o objetivo de prover a conspiração anti-porfirista de
um horizonte ideológico, perfilou-se nos escritos de Ricardo Flores Magón o
que podemos qualificar como um pensamento distintivamente magonista7. Ao
distanciar-se do legalismo que marca a reivindicação do liberalismo mexicano
do século XIX, Flores Magón produzirá, à frente da Junta Liberal, um discurso
caracterizado pela progressiva incorporação da temática social e pelo seu correspondente direcionamento aos trabalhadores. Não obstante a sua progressiva radicalização, nossa hipótese é que Magón preservará uma coerência fundamental,
lastreada na herança ideológica do liberalismo mexicano e conjugada a uma
7
Embora Ricardo Flores Magón e seus partidários se identifiquem como liberais, portanto, genuínos
seguidores da tradição juarista, e não como “magonistas,” o termo delimita com maior precisão
a especificidade das ideias veiculadas pelo partido e seu líder a partir de então.
290
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012
Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
visão de mundo de inspiração positivista. Essa coerência centra-se no tema da
liberdade, que articulará uma convergência fundamental entre natureza humana
e história, cujas decorrências políticas se explicitarão no processo revolucionário.
O eixo principal da sua radicalização será a evolução da própria noção de
liberdade: entendida como mera liberdade política nos anos iniciais do periódico
Regeneración, a incorporação da temática social dilata progressivamente o seu
conteúdo, desaguando na noção de liberdade econômica. Inicialmente vinculada
aos objetivos políticos liberais de maneira associada e subalterna, as consignas
relacionadas às relações de produção gradualmente se diferenciam até se afirmarem como o foco do projeto magonista na sua última fase. Os documentos que
balizam esta evolução são o célebre programa promulgado pela Junta Organizadora do Partido Liberal no exílio em 1906 e o manifesto difundido em setembro
de 1911, quase um ano após a eclosão da revolução, quando o foco da denúncia
magonista se deslocará para a superação da propriedade privada.
O programa promulgado pela Junta Liberal em 1º de julho de 1906 é um
documento célebre na análise posterior da Revolução Mexicana, considerado
por muitos autores como o antecedente ideológico por excelência da constituição de 1917. Embora provavelmente não tenha sido redigido apenas por Flores
Magón, servirá como referência precípua de toda ação subsequente do partido
até a revolução.
Uma costura dos temas clássicos do liberalismo mexicano, como liberdades
civis e anticlericalismo, com uma detalhada agenda de reformas sociais que
objetiva integrar os trabalhadores urbanos e rurais, é apresentada no programa.
Com este objetivo, avança uma série de propostas destinadas a melhorar as
condições de trabalho na indústria e um projeto de reforma agrária centrado na
desapropriação do latifúndio improdutivo. Contempla ainda propostas de cunho
nacionalista (como limitações à propriedade e ao emprego de estrangeiros), uma
reforma tributária, a proteção da raza indígena e o estabelecimento de lazos de
unión con los países latinoamericanos. Em suma, é um projeto nacional orientado
ao estabelecimento do capitalismo autodeterminado por meio da integração da
população através do trabalho.8
8
Na sua exposição, lê-se: “Cuando los millones de parias que hoy vegetan en el hambre y la desnudez coman menos mal, usen ropa y calzado y dejen de tener petate todo por ajuar, la demanda
de mil géneros y objetos que hoy es insignificante aumentará en proporciones colosales, y la
industria, la agricultura, el comercio, todo será materialmente empujado a desarrollarse en una
escala que jamás alcanzaría mientras subsistieran las actuales condiciones de miseria general”.
Plan del Partido Liberal. In: DÍAZ. Lilia (selección y traducción).Planes políticos y otros do-
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012
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Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
Embora a convicção de membros da junta no exílio evolua para posições
anticapitalistas, a fidelidade política ao programa liberal está assentada em um
diagnóstico onde o ceticismo em relação ao espaço para a reforma no regime
porfirista é contrabalançado por uma percepção modesta das possibilidades de
ação política dos trabalhadores mexicanos. A exitosa combinação de cooptação
e repressão, realizada pelo porfiriato em um contexto de acelerado crescimento
econômico, convergiu para minimizar os nexos de continuidade entre as lutas
trabalhistas desencadeadas no contexto da Reforma, ainda fortemente marcadas
pela tradição mutualista, e o desabrochar das lutas operárias segundo um padrão
moderno no século XX, condenando os trabalhadores mexicanos a um incipiente acúmulo político e ideológico.9 Nessa circunstância, o objetivo de classe
assumido pela Junta Liberal é superar o paternalismo como padrão dominante
nas relações de trabalho mexicanas, seja no campo, de onde provem a maior
parte do contingente operário, seja na cidade, onde persiste o legado mutualista.
Objetivo, cujo fim é elevar o potencial de reivindicação da classe trabalhadora
aos patamares mínimos de organicidade e combatividade necessários para a
conquista de direitos elementares. Nessa perspectiva, o horizonte imediato da
luta de classes no México configura-se como a superação do legado porfirista,
tendo como referência política o capitalismo autodeterminado:
Es preciso que dejen de creer que su situación miserable se debe a la fatalidad y que si
sufren se debe a que no les tocó en suerte nacer en telas de seda. El que trabaja tiene
derecho a que le pague bien, a que no se le robe en las tiendas de raya, a ocupar un lugar
decente en la sociedad. Nuestros obreros deben tomar ejemplo de los obreros yanquis que
han sabido hacerse respetar, por lo que gozan un bienestar con que aquí no se sueña.10
Ao propor uma atualização do pensamento radical mexicano através da
dilatação da agenda liberal, avançando a centralidade da questão do trabalho
como via de superação do atraso mexicano, Flores Magón pretende sintonizar
9
10
cumentos. Fuentes para la historia de la Revolución Mexicana. Prólogo de Manuel González
Ramirez. Cidade do México: FCE, 1954.
Ver: CARR, Barry. El movimiento obrero y la política en México, 1910-1929. Cidade do México:
Era, 1981. CANTÚ, Gastón García. El socialismo en México – siglo XIX. Cidade do México:
Era, 1986. HART, Jonh. Anarchism and the Mexican working class (1860-1931). Austin: University of Texas press, 1971. Este autor usa critérios problemáticos para reconstruir uma tradição
anarquista mexicana, reivindicando para isso autores que na obra percursora de Gastón Garcia
Cantú aparecem referidos ao socialismo e que por vezes se identificam como tal.
Artigo em: El Colmillo Público, 11/03/1906. In: FLORES MAGÓN, Ricardo. Obras completas Volumen V. Artículos Políticos Seudónimos. BARRERA BASSOLS, Jacinto (Introducción,
compilación y notas). Cidade do México: Conaculta, 2001, p. 254.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012
Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
os problemas nacionais com o sentido da história universal contemporânea, que
aponta para a concretização do preceito intelectualmente aceito da igualdade
entre os homens. Nessa perspectiva, o diagnóstico revolucionário e o programa
da Junta Liberal situam-se na interligação entre as possibilidades e os limites da
conjuntura mexicana e as grandes questões do tempo: considerando a ausência
de espaço para a reforma dentro da ordem, é necessário realizar uma revolução
mexicana que promova a integração da classe trabalhadora, a fim de gerar as
condições para o seu progressivo protagonismo em sintonia com o movimento
geral da história universal.
Consciente das limitações da classe trabalhadora mexicana, a Junta liderada
por Flores Magón persistirá fiel ao programa democrático nacional do partido,
subordinando convicções pessoais e rótulos ideológicos aos desígnios da luta
política até a frustração da aliança com setores anti-porfiristas das elites nos
campos da batalha revolucionária.11 É somente quando a marcha da revolução
evidencia a intransigência social dos maderistas, ao mesmo tempo que revela a
irresistível radicalização da luta popular no campo, que os liberais serão constrangidos a reavaliar as possibilidades políticas do momento histórico, a elas
ajustando o seu programa.
Magonismo e a revolução mexicana
Como se sabe, em um primeiro momento, a convocação ao levante armado
realizada por Madero, a partir dos Estados Unidos, provocou uma resposta
irregular e pouco promissora em território mexicano. Do lado dos magonistas,
decididos a aproveitar a agitação e somar forças ao levante sem abrir mão da sua
autonomia, a Junta reconhece que os núcleos ainda não estavam prontos para
tomar as armas, embora incentive os preparativos para esta finalidade.12
A explosão do confronto em Chihuahua no fim de 1910, que rapidamente
transbordou o controle da junta maderista, estimulou outros levantes que logo
11
12
Mesmo posteriormente quando a revolução se radicaliza e a Junta reorienta suas consignas na direção da expropriação da propriedade privada, a definição ideológica aparece subordinada ao conteúdo da luta: “Es por el llamado pueblo bajo por el que lucho. Que esto sea socialismo, que esto sea
anarquismo, no me importan las denominaciones”. FLORES MAGÓN, Ricardo. Carta a Luis Rivas
Iruz (3/6/1911). In: Obras Completas – Vol. I. Correspondencia (1898-1918). BARRERA BASSOLS, Jacinto (Introducción, compilación y notas). Cidade do México: Conaculta, 2001, p. 592.
Nas vésperas do ano novo, Regeneración publica: “La Junta trabaja con toda actividad por
completar la organización de los grupos que han de rebelarse en México en un momento dado”.
Regeneración, número 17, 24/12/1910. Edição digital completa.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012
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Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
incendiariam o país.13 Diversos grupos liberais se alçaram em armas nesta região,
mas sofreram uma perda importante quando seu principal dirigente, Práxedis
Guerrero, perdeu a vida, na tomada do povoado de Janos em 30 de dezembro.
Impelida pelas circunstâncias, a Junta publicou na semana seguinte suas Instrucciones Generales a los Revolucionarios, exortando os grupos liberais ainda não
sublevados a aderir imediatamente à luta.
Nesse cenário, Madero relutou em atravessar a fronteira mexicana, e encarar
o confronto em uma região que não era reduto seu, para liderar politicamente
uma guerra que não comandava: Pascual Orozco e Pancho Villa emergiam como
lideranças indiscutíveis, mas de subordinação duvidosa. Empurrado por uma
ordem de prisão emitida nos Estados Unidos, Madero retornou ao México em
fevereiro de 1911 e precisou usar de toda habilidade para costurar sua liderança
sobre os grupos rebelados. Esta manobra teve como premissa a cooptação ou
o desbaratamento dos grupos levantados sob a bandeira liberal. O primeiro a
ser preso foi Prisciliano Silva, líder de um núcleo rebelde no povoado tomado
de Guadalupe, para onde já se dirigira Madero. Silva recusou-se a reconhecer
o mando maderista, ainda que antes tivesse atendido a um apelo de cooperação
militar. Como resposta, em 25 de fevereiro de 1911, o Regeneración denuncia
Madero como traidor, fechando as possibilidades de colaboração na luta.14
Para prosseguir na delicada tarefa de neutralização dos liberais, Madero se
viu impossibilitado de recorrer a Orozco, principal liderança militar então, mas
que tinha vínculos pregressos com os magonistas e já se recusara a desarmá-los.
O cumprimento dessa missão selaria a fidelidade de Villa, que até então não tinha
atuação política, com Madero. Em contrapartida, despertou-se o ódio dos liberais
pelo caudilho de Durango, o que teve consequências dramáticas para o alinhamento
13
14
Na bibliografia da crônica dos eventos, o enorme livro de Alan Knight faz um esforço de amealhar a
miríade de episódios e motivações regionais, étnicas e de classe que compuseram o processo revolucionário em um país escassamente integrado e dá uma boa ideia da sua complexidade, embora de
outro lado careça de um referencial interpretativo capaz de conferir sentido ao conjunto impressionante de informações que reúne. KNIGHT, Alan. The Mexican Revolution. 2 tomos. Lincoln: University of Nebraska Press, 1990. Para uma síntese dos debates sobre o caráter da revolução, ver do
mesmo autor: Interpretaciones recientes de la Revolución Mexicana. Revista Secuencia, Cidade do
México: Instituto de Investigaciones Dr. José María Luis Mora, núm. 13, ene.-abr., 1989, p. 23-43.
Como decorrência, o texto das instrucciones generales a los revolucionarios é alterado. No ponto
11, onde se lia: “La causa del Partido Liberal es distinta de la causa maderista, por ser la liberal la
causa de los pobres; pero en caso dado, ya sea para la resistencia como para el ataque, pueden combinarse ambas fuerzas y permanecer combinadas por todo el tiempo que dure tal necesidad”. Agora
se escreve: “En ningún caso deberán combinarse las fuerzas liberales con las fuerzas maderistas”.
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Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
de forças no futuro do processo: somente em 1916, passado o ápice do impulso
revolucionário, os magonistas deixariam de tratar Villa como um bandido.15
A ruptura da possibilidade de aliança supra-classista com o setor anti-porfirista
das elites representado pelo maderismo, aliada à generalização do enfrentamento
no campo protagonizado pela miríade de forças populares, resultou em uma guinada ideológica nas páginas de Regeneración: a denúncia social é dirigida cada
vez mais diretamente contra a propriedade privada e o capitalismo16, respondendo,
de um lado, a uma aceleração do processo revolucionário e, de outro, ao desígnio
de diferenciação em relação ao maderismo, cujo prestígio cresce a despeito dos
seus propósitos sociais acanhados. Constrangido a se posicionar em relação às
negociações de Madero com Díaz, Flores Magón expressa pela primeira vez
com clareza o desígnio de expropriação imediata das forças produtivas – e não
só da terra: “La Junta contestó que no ha tomado parte en ésas negociaciones ni
está por la paz, á menos que se acepten todas las demandas del Partido Liberal
Mexicano comenzando por la expropiación de la tierra y de los útiles de trabajo
para que tome posesión de todo ello el pueblo (...)”.17
A trajetória de Madero chega a seu ápice em maio de 1911, quando as forças
combinadas de Villa e Orozco tomam Ciudad Juárez a despeito de ordens contrárias do seu líder político, precipitando a queda de Porfirio Díaz e a assinatura
do tratado de paz nesta cidade. O ditador deixa o país rumo ao exílio francês, e
no começo de junho Madero entra triunfante na Cidade do México. O partido
Antireeleccionista convoca eleições para outubro, entende que a revolução está
encerrada e assume a tarefa de concluir a pacificação do país: “Madero had
considered Porfirio Díaz as his primary enemy, and once Díaz was gone, he felt
he could now turn his energies toward combating the radical revolutionaries”.18
15
16
17
18
Sobre as relações entre Madero, Villa e os liberais ver: KATZ, Friederich. The life and times of
Pancho Villa. Palo Alto: Stanford University Press, California, 1998.
Uma busca por palavras na versão digitalizada de Regeneración confirma esta afirmação: a
consigna Tierra y Libertad se generaliza a partir de março de 1911, número 26; o termo expropiación, a partir do número 29; propriedad individual observa-se a partir do número 33, de abril;
proletário, embora ocorra anteriormente, se afirma como tratamento vocativo; propiedad privada
se generaliza a partir do número 50, agosto 1911, conjuntamente com comunismo; capitalismo
recorre a partir do número 20. Regeneración. Edição digital completa em CD Rom.
Artigo: NO QUEREMOS UNA PAZ INFAME. “La Prensa Unida preguntó – hoy (31 de Marzo)
a la Junta Organizadora del Partido Liberal Mexicano si habia tomado parte en las conferencias
de paz celebradas entre representantes de Porfirio Díaz y de Francisco I. Madero”. E segue a
citação acima. Regeneración (1/4/1911). Em: edição digital completa em CD Rom.
KATZ, Friederich. The life and times of Pancho Villa. Palo Alto: Stanford University Press,
1998, p. 130.
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Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
Embora as forças identificadas com os liberais não fossem o contingente
radical mais beligerante em uma circunstância onde os zapatistas, por exemplo, já estavam rebelados em Morelos, o novo presidente não poupou esforços
para submetê-los, recorrendo à cooptação ou ao esmagamento. Menos de uma
semana depois da entrada triunfal de Madero na capital, a Junta Liberal recebeu
na Califórnia a visita de Juan Sarabia, mártir liberal recém-egresso do infame
presídio de San Juan de Ulúa, e Jesus Flores Magón, irmão mais velho do líder
liberal. Sua missão, que não teve sucesso, era conseguir a adesão dos magonistas
ao novo regime. A intransigência da Junta foi premiada com a prisão de seus
líderes, Flores Magón inclusive, pela polícia dos Estados Unidos no dia seguinte,
sob a acusação de infringir as leis de neutralidade.
Um mês depois, o conjunto de liberais que romperam com a Junta no
exílio e optaram pelo apoio crítico a Madero organizaram a dissidência
através da Junta Iniciadora de la Reorganización del Partido Liberal na Cidade do México, dando início à publicação de um periódico de vida curta,
também chamado Regeneración.19 Esse movimento corresponde à ruptura
dos socialistas dos Estados Unidos com os magonistas pelo mesmo motivo, inaugurando uma polêmica acerca do caráter da Revolução Mexicana.
Onde a cooptação foi insuficiente para submeter os focos de rebeldia, Madero
não vacilou em empregar o exército federal na sua repressão. Do lado magonista,
embora em muitos casos seja difícil precisar a filiação partidária dos bandos
levantados, é plausível que durante 1911 houvesse grupos identificados com o
liberalismo em armas em todo o país.
No entanto, a ação mais espetacular impulsionada pela Junta acontecia no
remoto território de Baja California, na fronteira com os Estados Unidos na costa
oeste. Ali, uma força estimada em 220 homens, liderada por mexicanos e integrada
por radicais e simpatizantes de múltiplas nacionalidades, muitos deles filiados
à IWW (Industrial Workers of the World), lançou um assalto no final de janeiro
de 1911 e tomou a cidade de Mexicali. Em fevereiro seria tomada Algodones,
19
Muitos quadros liberais dissidentes desenvolverão uma intensa atividade política nos anos
seguintes, principalmente no interior do movimento operário mexicano, que transcenderá o período revolucionário. Alguns se juntarão ao zapatismo enquanto outros seguirão carreira política,
participando da Assembleia Constituinte em 1917 e/ou assumindo cargos públicos nos governos
sucessivos. Um grupo de dissidentes se aproximou do pequeno recém-formado Partido Socialista,
desenvolvendo atividades significativas no movimento operário mexicano e participando da
fundação da Casa del Obrero Mundial. Parte do PS desaguaria na fundação do Partido Comunista Mexicano em 1919. Ver: TORRES PARÉS, Javier. La revolución sin fronteras. Cidade do
México: UNAM, 1990, p. 139-142.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012
Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
em março Tecate e em maio, nos mesmos dias do assalto a Ciudad Juarez em
Chihuahua, Tijuana. Ao que tudo indica, a intenção dos liberais era estabelecer
uma espécie de território livre que pudesse servir de base e retaguarda para a
expansão do movimento armado.
Mas o projeto não vai adiante: abalado por dissidências internas, deserções
para o maderismo e uma campanha difamatória bi-nacional que acusa propósitos
filibusteiros à iniciativa, a região é gradualmente recuperada a partir de 22 de
junho quando as forças federais, respondendo agora a Francisco Madero, retomam
Tijuana com o apoio explícito do governo dos Estados Unidos, que permite o
deslocamento de tropas através do seu território.20
Simultaneamente à derrota militar, a esperança dos magonistas se deslocou
para o movimento operário, que, dando vazão às represadas reivindicações dos
trabalhadores urbanos, estava em vigoroso ascenso em todo o país desde a queda
da ditadura.21 Os magonistas estimulam entusiasticamente as greves, insistindo
na necessidade de transcender a sua modalidade pacífica, limitada a frear a produção, e partir para a expropriação dos meios de produção com o objetivo de
consolidar a liberdade econômica. O caráter econômico da revolução em curso
é defendido na manchete da edição de 8 de julho:“La Revolución economica en
México – la huelga general en casi todo el país”.22
Ao apontar para a dimensão econômica da revolução, os magonistas enfatizam a tendência ao enfrentamento direto e imediato do capitalismo. Com isso, o
alcance do processo mexicano transcenderia as fronteiras nacionais, assumindo
a vanguarda mundial no enfrentamento deste sistema. A causa mexicana pertence então à classe trabalhadora mundial. Nessa circunstância, Flores Magón
intensifica a mobilização da solidariedade internacional de classe e é levado a
20
21
22
Neste mesmo período, os maderistas acordam uma trégua com os zapatistas em Morelos, rompida
em agosto quando o general Huerta ataca e aniquila as forças desarmadas de Zapata. Como se
sabe, esse exército federal não foi desmontado por Madero e dará o golpe liderado pelo próprio
Huerta, que culminará no assassinato de Madero em fevereiro de 1913. A rede de espionagem
internacional montada por Creel também foi utilizada por Madero. Ver: RAAT, Dirk. Los revoltosos. Rebeldes mexicanos en los Estados Unidos (1903-1923). Cidade do México: FCE, 1993.
“Al propagarse por la República la noticia de la rebelión maderista, se formó de modo inmediato
una gran variedad de sindicatos y agrupaciones obreras cuya ideología iba desde el mutualismo
tradicional hasta el anarcosindicalismo”. CARR, Barry. El movimiento obrero y la política en
México. 1910/1929. Cidade do México: Era, 1981, p. 45. “En junio de 1911 se inició una ola
de huelgas que barrió todo el país, exigiéndose grandes aumentos de salarios, la reducción de
la jornada de trabajo y la abolición de algunas prácticas administrativas hostiles a los obreros”.
Idem, Ibidem.
Regeneración, n. 45 (8/7/1911). Edição digital completa.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012
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Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
desafiar teoricamente a leitura dos socialistas dos Estados Unidos, os quais, em
sintonia com os liberais dissidentes que apoiam o maderismo, entendem que a
Revolução Mexicana está encerrada. Nessa tarefa, Flores Magón precisa enfrentar o etnocentrismo do movimento operário internacional e provar que o povo
mexicano rebelado, apesar do atraso civilizatório a que a ditadura o confinou,
está em condições de proceder à luta anticapitalista. Em outras palavras, precisa
enfrentar o desafio teórico de fundamentar a revolução em um país agrário,
tornando positiva a especificidade mexicana.
Esta tarefa é realizada através de um duplo movimento. De um lado, Magón
reafirma a natureza anti-autoritária dos homens em geral e dos mexicanos em
particular, dadas as circunstâncias repressoras em que vivem. Consequência
desta aproximação entre rebeldia e natureza humana é a afirmação da primazia
da ação sobre a liderança e a ilustração:
Para la toma de posesión de la tierra y de los instrumentos de trabajo en México no se ha
necesitado de “leaders”, de “amigos” de la clase trabajadora, ni han hecho falta – “decretos
paternales”,”leyes sabias” ni nada de eso. La acción lo ha hecho y lo está haciendo todo.23
Este movimento contradiz a visão liberal prevalente nos anos pré-revolucionários, segundo a qual o partido deveria cumprir um papel fundamental para
canalizar as energias rebeldes latentes.24
De outro lado, Magón procede a uma valorização do legado indígena para a
formação mexicana: ao identificar uma prática comunista nas formas pré-colombianas de organização da produção no campo mexicano, ele recusa a associação
de índios e camponeses com o atraso, apontando um potencial progressista nos
modos de vida ancestrais. Por trás desta reivindicação política está um movimento ideológico de aproximação entre a natureza humana e o comunismo. Diante
destes argumentos, a conclusão se impõe: “Se ve, pues, que el pueblo mexicano
23
24
El pueblo mexicano es apto para el comunismo. Regeneración, n. 53 (2/9/1911). Edição digital
completa em CD Rom.
“Pero si este movimiento espontáneo, producido por el instinto de la propia conservación, es
inconsciente para la masa obrera mexicana, en general no lo es para una minoría selecta de la
clase trabajadora de nuestro país, verdadero núcleo del gran organismo que resolverá el problema social en un porvenir cercano”. En pos de la libertad. Regeneración, novembro de 1910. In:
BARTRA, Armando (Prólogo, seleción y notas). Regeneración, 1900-1918. La corriente más
radical de la revolución mexicana de 1910 a 1918 através de su periódico de combate. Cidade
do México: Era, 1977, p. 246.
298
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012
Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
es apto para llegar al comunismo, porque lo ha practicado, al menos em parte,
desde hace siglos”.25
Esta posição se cristaliza no manifesto publicado pela Junta Liberal em 23
de setembro de 1911, o qual procura superar o programa de 1906, propondo o
enfrentamento imediato da propriedade privada.
La Junta Organizadora del Partido Liberal mexicano ve con simpatia vuestros esfuerzos
para poner em práctica los altos ideales de emancipcaión política, econômica y social,
cuyo império sobre la tierra ponderá fin a esa ua bastante larga contienda del hombre
contra el hombre, que tiene su origen en la desigualdad de fortunas que nace del principio
de la propiedad privada.26
A radicalização programática da Junta corresponde à progressiva frustração da
liderança militar liberal. Diante da impotência para conduzir o movimento no seu
primeiro ano, confrontada com a ascensão de Madero, a generalização da guerra
camponesa e as hesitações e contradições do movimento urbano, a Junta não revigora esforços no sentido de constituir uma direção política nacional alternativa
ao maderismo e seus congêneres. Em vez disso, centra progressivamente suas
esperanças na realização instintiva das aspirações anticapitalistas dos trabalhadores: “El pueblo mexicano odia, por instinto a la Autoridad y a la burguesía”.27
Nessa perspectiva, o êxito da luta depende não de uma direção eficaz, mas da
emancipação de individualidades oprimidas. É o indivíduo consciente, e não o
partido, que se opõe à massa passiva, dependente da ação de um chefe: “No hay
que ser masa: hay que ser conjunto de individualidades pensantes”.28
Assim como a rebeldia é individualizada, a implementação da sociedade
sem autoridade é fragmentada, delegada à miríade de focos de insubordinação
espalhados pelo país, que procedem de forma imediata à sua realização. Como
consequência, estão ausentes os problemas da centralização do poder revolucionário, do Estado e da transição à sociedade sem classes.
É nesta perspectiva que se entende a relutância de Flores Magón em transladar-se para território revolucionário. Vista do ângulo da inexorabilidade da
revolução, certamente favorecido pela sequência dos eventos onde sucessivos
25
26
27
28
El pueblo mexicano es apto para el comunismo. Regeneración, n. 53 (2/9/1911). Edição digital
completa em CD Rom.
Manifiesto del 23 de septiembre de 1911. Regeneración. Edição digital completa em CD Rom.
FLORES MAGÓN, Ricardo. Obras Completas – Vol. I. Correspondencia (1898-1918). BARRERA BASSOLS, Jacinto (Introducción, compilación y notas). Cidade do México: Conaculta,
2001, p. 636.
Los Jefes. Regeneración (15/6/1912). Edição digital completa em CD Rom.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012
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Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
governos tombaram, Flores Magón enxerga no processo mexicano um capítulo
extraordinário do enfrentamento mundial entre o trabalho e o capital, atribuindo
papel fundamental à solidariedade internacional das classes trabalhadoras, a qual
tem como papel precípuo frear o intervencionismo dos Estados Unidos, principal
ameaça ao fluxo espontâneo da insurreição. Avalia que o melhor serviço que pode
prestar à causa não é a sua condução, que de todo modo não é factível postular,
mas auxiliar na proteção necessária para que os acontecimentos sigam seu curso.
Daí a recusa da Junta em transladar as oficinas de Regeneración para Morelos,
a convite de Zapata.29
No entanto, esta opção deve ser vista à luz da derrota militar inicial dos
liberais, uma vez que fazia parte dos planos originais da Junta transferir-se para
território mexicano. Além disso, Flores Magón não alimentava ilusões acerca das
possibilidades de mobilização do povo dos Estados Unidos, e logo se defrontou
com a incompreensão de correligionários no próprio movimento anarquista internacional. Nesse contexto, a inflexão do seu pensamento aparece como uma resposta ideológica coerente diante dos constrangimentos apresentados pela conjuntura.
Do ponto de vista político, a mobilização da solidariedade internacional contra
o intervencionismo estadunidense ganha uma importância central. A abordagem
da questão por Magón é feita sob o ângulo a partir do qual ele sempre denunciou
a ascendente participação econômica dos Estados Unidos no México: embora
refira-se à ação dos monopólios, à cooperação entre os estados na repressão à
oposição, à exploração dos trabalhadores mexicanos nos Estados Unidos e à
relação deste país com a situação dos trabalhadores nacionais, Mágon nunca
articulou tais problemas em uma visão estrutural dos nexos entre imperialismo e
dependência. Sua denúncia da penetração do capital estadunidense esteve sempre
relacionada ao risco concreto da invasão militar: “Muchos creían inofensiva la
invasión del capital americano, sin sospechar que cada dólar invertido en nuestro
29
A ruptura de Zapata com Madero favoreceu uma intensificação da relação com os liberais a partir
de 1912: um enviado magonista de nome José Guerra sugeriu mudar o lema Justicia, Libertad y Ley
para Tierra y Libertad, adotado pelo exército suriano. Regeneración publicou manifestos zapatistas
e os defendeu em polêmicas internacionais. Flores Magón menciona o convite a transladar-se em
um artigo em 1915: “La gran fábrica de papel de San Rafael, de la que eran accionistas principales
Porfirio Díaz, José Sánchez Ramos y otros “científicos”, se encuentra em poder de los zapatistas, y
Emiliano Zapata ofreció a Antonio de P. Araujo poner a disposición de Regeneración todo el papel
que se necesitara, em caso de que el periódico se publicase en território controlado por las fuerzas
surianas”. Contra el Zapatismo. Regeneración, n 209 (23/10/1915). In: BARTRA, Armando.
(Prólogo, seleción y notas). Regeneración, 1900-1918. La corriente más radical de la revolución
mexicana de 1910 a 1918 através de su peródico de combate. Cidade do México: Era, 1977, p. 360.
300
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Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
país está apoyado por una bayoneta sajona pronta a derramar sangre mexicana
al primer síntoma de peligro”.30
A internacionalização do enfoque revolucionário, que corresponde à radicalização anticapitalista do discurso magonista, provoca o recrudescimento da
perseguição política das autoridades dos Estados Unidos. Além do crescente
envolvimento deste país com o conflito mexicano, a convergência da propaganda
liberal com o radicalismo dos trabalhadores nacionais leva o governo dos Estados
Unidos a assumir a perseguição liberal por conta própria. Como resultado, Flores Magón é preso duas vezes em 1911 por períodos curtos, e no ano seguinte é
condenado por violação das leis de neutralidade em função do episódio da Baja
California, ficando encarcerado até janeiro de 1914.
Neste meio tempo o comandante liberal Jesús Maria Rangel, preso pelas
tropas maderistas em 1911, obteve a liberdade com a derrubada de Madero em
fevereiro de 1913. Logo depois de entrevistar-se com Zapata, com o objetivo
de coordenar esforços militares, rumou ao Texas onde organizou uma pequena
milícia que foi surpreendida por forças dos Estados Unidos antes de atravessar
a fronteira. Os liberais capturados foram sentenciados a altíssimas penas, o que
gerou uma vigorosa, embora infrutífera, campanha em favor da libertação dos
“mártires do Texas”. Foi a última tentativa de uma iniciativa militar explicitamente sob a bandeira liberal. Embora em junho de 1914, novamente em liberdade,
Flores Magón tenha enumerado um conjunto de forças liberais em batalha, é
difícil saber a quem elas realmente obedeciam, sendo improvável que fossem
fiéis a qualquer comando unificado.31
Ainda que o poder de mobilização magonista decline definitivamente a partir
de 1914, o acirramento da perseguição aos movimentos de esquerda nos Estados
30
31
FLORES MAGÓN, Ricardo. Obras Completas – Vol. I. Correspondencia (1898-1918). BARRERA BASSOLS, Jacinto. (Introducción, compilación y notas). Cidade do México: Conaculta,
2001, p. 339.
Torres Parés descreve os esforços conduzidos por Jesús Rangel. Em seguida pondera: “El balance
de la situación de las fuerzas liberales realizado por Ricardo Flores Magón en junio de 1914 no
necesariamente representa um recuento exacto de su capacidad militar. Es en realidad uma valoración de carácter político (...)” TORRES PARÉS. La Revolución sin frontera. Cidade do México:
UNAM, 1990, p. 185. Em outro lugar, este autor sugere: “(...) pertinente abordar la crítica del
pensamiento magonista desde la perspectiva de su función política, es decir, entendida como un
“fermento”, como una “incitación a la acción”, y no solo desde el punto de vista de la precisión
de sus datos”. Embora seja evidente que o pensamento magonista obedeça ao imperativo da ação
política, a sua evolução segue uma coerência interna lastreada em uma visão de mundo própria e
na avaliação da conjuntura, que deve ser explicitada para que se proceda à crítica, sem necessidade
de recorrer a uma explicação apoiada em Georges Sorel (1847-1922), como sugere Torres Parés.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012
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Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
Unidos diante da Grande Guerra e da revolução bolchevique atingiu os líderes
liberais.32 Magón é preso novamente em fevereiro de 1916 por seis meses, junto
com seu irmão Enrique. Em 1918, é condenado por violação às leis de espionagem em função de um manifesto que assinara, o que lhe impõe uma sentença de
20 anos de prisão e multa de U$ 5000. Com 45 anos, a saúde comprometida por
múltiplas complicações que certamente se agravariam no cárcere, quase cego, o
líder liberal interpretou corretamente esta sentença como uma prisão perpétua.
Morreu em novembro de 1921, provavelmente assassinado na prisão. Seu
corpo foi imediatamente solicitado pelo congresso mexicano, ineficaz até então
para pressionar pela sua libertação em vida,33 e trazido para o país por intermédio
dos trabalhadores ferroviários. Sua figura começava a ser reivindicada ideologicamente pelo Estado, em uma operação de incorporação e neutralização ideológica
dos adeptos irredutíveis da causa popular na Revolução Mexicana derrotada.34
Balanço político e ideológico
A implacável perseguição engendrada pela ditadura contra os liberais mexicanos, no país e no exílio, limitou o êxito de suas tentativas de liderar a revolta
anti-porfirista. Quando a luta armada afinal desencadeou-se, logo ficou evidente
a incompatibilidade entre o conteúdo democrático da revolução defendida pelos
liberais e a luta política empreendida pelo maderismo. Uma vez derrubada a ditadura, as forças triunfantes voltaram-se para a contenção dos setores populares,
segundo um padrão que prevaleceria ao longo do processo. As sucessivas derrotas
das tentativas de conter a pressão popular revolucionária são testemunho da formidável energia política mobilizada, ao mesmo tempo que explicitam a rigidez
dos constrangimentos sob os quais operava a classe dominante, dividida e incapaz
de integrar as demandas sociais como caminho para a paz nacional. Diante desta
disjuntiva, o magonismo radicalizou suas consignas, explicitando uma permeabi-
32
33
34
O refluxo do ímpeto popular da revolução não arrefeceu o otimismo dos artigos em Regeneración,
compensado por uma crescente esperança na radicalização da conjuntura mundial. Neste período,
Magón reforça a orientação pedagógica dos seus escritos: publica curtas parábolas destinadas
aos trabalhadores e elabora duas peças de teatro.
Enquanto esteve preso, declinou oferta do governo dos Estados Unidos para ser libertado mediante
uma confissão de arrependimento, ao mesmo tempo em que viu a justiça negar sistematicamente
qualquer atenuante à sua condição carcerária, apesar da piora dramática do seu estado de saúde. Recusou também uma pensão vitalícia oferecida pelo governo mexicano recém-egresso da revolução.
Magón foi sepultado no Panteon Francés (cemitério no sul da capital). Em 1937 o governo
Cárdenas, principal responsável pela reivindicação de Pancho Villa, iniciou gestão para trasladar
seus restos mortais para a Rotonda de los Hombres Ilustres, no Panteón de Dolores.
302
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lidade ideológica que permitiu novas respostas teóricas ao movimento da conjuntura, de modo a revelar-se, ao mesmo tempo, como virtude e debilidade política.
A resposta magonista à prova revolucionária revelou uma fina sensibilidade
para a dinâmica da luta de classes no México. Na medida em que se evidenciou
a intransigência social das classes dominantes e o potencial subversivo da luta
no campo, Flores Magón assumiu o desafio de fundamentar a revolução anticapitalista em um país agrário. Sua argumentação segue um duplo movimento:
por um lado, valoriza a tendência anti-autoritária, que interpreta como instintiva
aos homens; por outro lado, reivindica o legado das instituições indígenas para
a formação mexicana, identificando-as com um passado comunista de potencial
progressista.
A consequência deste movimento teórico é um rebaixamento do imperativo
da direção política em nome de uma valorização da iniciativa instintiva das
massas, em oposição à racionalidade política anteriormente afirmada por Flores
Magón. Nessa perspectiva, a função da minoria consciente se dilui diante do
espetáculo irresistível do fluxo da ação humana liberado. Uma vez removidos
os impedimentos históricos de caráter autoritário, a natureza humana, boa e
solidária, se imporá.35
Na raiz do esvaziamento das mediações entre natureza e história está uma
correspondência entre instinto e liberdade, plena de consequências políticas: a
noção de que a remoção dos entraves históricos conduz ao fluxo da natureza
humana implica na prescindência de qualquer modalidade de centralização do
poder, interpretada como contraditória ao caráter natural, instintivo e solidário da
liberdade. Daí a ausência de uma teoria da transição, do Estado, e de um trabalho
de direção revolucionária.36
35
36
Esta convergência entre natureza e história que se explicita no curso da revolução e conduz à
subordinação do movimento à ação, aponta para uma influência positivista na visão de mundo
magonista, no sentido de uma tendência a naturalizar as dinâmicas sociais e os processos da
história em oposição a uma abordagem dialética destes fenômenos. A marca do positivismo em
sua formação é enfatizada por Blanquel: “Flores Magón se formó pues en el positivismo, es
decir, en el cuerpo de ideas que adaptadas a la realidad mexicana, fuero en soporte de la cultura
y también, en buena parte, del quehacer social y político del México porfiriano”. BLANQUEL,
Eduardo. Ricardo Flores Magón. Cidade do México: Editorial Terra Nova, 1985, p. 23. Evidentemente, Flores Magón não comunga do sentido político do pensamento positivo, situando-se
nas antípodas de qualquer apologia da ordem. Sobre a oposição entre positivismo e dialética ver:
MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução. Rio de Janeio: Paz e Terra, 2ª edição, 1978, p. 302.
“Sin embargo, la problemática del pensamiento anarquista se hace patente cuando se analiza la
conceptualización del tránsito desde la realidad sojuzgada del presente al futuro de libertad. Como
este futuro es un futuro de relaciones sociales sin ninguna institucionalización y sin autoridad,
el anarquista no puede pensar el tránsito al futuro en términos mediatizados; entre el presente
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Como resultado, à medida que o Partido Liberal é derrotado militarmente,
ao tempo em que a revolução camponesa experimenta um ascenso fulminante,
em lugar de requalificar os desafios da vanguarda revolucionária, Flores Magón
interpreta positivamente as possibilidades da ação espontânea. Paradoxalmente,
no momento em que a revolução ascende, o partido tem debilitadas suas possibilidades organizativas. Isso se deve primordialmente à derrota militar, mas é
reforçado pela avaliação de que a revolução deve prescindir de chefes, o que,
em nome da superestimação dos impulsos revolucionários, encolhe o terreno da
ação política dirigida. Em uma palavra, a política cede terreno para a natureza.
Do ponto de vista do pensamento histórico, este encolhimento da política tem
por consequência um acento na inexorabilidade da revolução mundial. Ao enfatizar os vínculos do processo mexicano com o movimento da história universal,
que estaria destinado a superar o capitalismo, seu enfoque da revolução passa a
ter uma angulação mundial, assentado em uma teleologia antes ausente, quando
seus artigos estavam rigorosamente enquadrados pelo dinamismo da conjuntura
mexicana imediata. Ao estreitamento do pensamento político corresponde um
alargamento da teleologia histórica.
Em suma, quando a revolução é detonada, observa-se um encolhimento do
espaço e da necessidade de atuação política em nome de uma prevalência das
determinações da natureza: o instinto e a teleologia entram no lugar da vanguarda
e do partido. A consequência programática é a ausência de um projeto nacional
mediado pelo Estado e a aposta no enfrentamento direto e localizado da propriedade privada: o horizonte magonista é o de uma federação supranacional de
produtores solidários. Seu projeto conjuga diretamente o local, que remete ao
passado das tradições comunais indígenas, com as tendências anticapitalistas do
proletariado mundial: “Flores Magón, sin abandonar el siglo XIX, se incorporo
de lleno en el siglo XX”.37
Ao abandonar o projeto nacional em nome de uma naturalização do curso
da história – ancorado em uma valorização dos instintos populares desencadeados pela revolução, minimizando a importância das tarefas organizativas e de
37
y el futuro hay un abismo sin ningún puente institucional”. HINKELAMMERT, Franz. Crítica
de la razón utópica. Edição virtual disponível no sítio: www.pensamientocritico.info.libros. De
outro lado, o maderismo e os exércitos sucessivos que combateram reivindicando o seu legado
não sofreram essa limitação, balizando a sua ação pelo mínimo denominador comum entre a
reforma política e a contenção da rebeldia popular, o que lhes permitiu concessões demagógicas
e alianças espúrias funcionais em nome de um projeto de poder. A liderança de tipo caudilhesco
se mostrou eficaz para gerar coesão política e motivar a adesão popular.
TORRES PARÉS, Javier. La Revolución sin frontera. Cidade do México: UNAM, 1990, p. 173.
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direção –, os magonistas inadvertidamente reforçaram a principal debilidade do
campo popular na revolução: sua incapacidade de superar o regionalismo em
nome de um projeto de nação, em meio a uma guerra camponesa prolongada.38
Esta carência se evidenciou de forma dramática em dezembro de 1914 quando
o chamado Exército Constitucionalista, liderado por Venustiano Carranza, estava
acuado em Veracruz e o movimento popular atingiu seu ápice, emblematicamente
registrado na fotografia de Pancho Villa sentado ao lado de Emiliano Zapata
na cadeira presidencial. O triunfo momentâneo em armas, no entanto, não se
traduziu na consumação da reivindicação dos de baixo. Na raiz desse fracasso
encontram-se a impossibilidade dos zapatistas de avançarem para além das comunas agrárias de Morelos, bem como a incapacidade de Villa de superar uma
visão regionalista, marcada pelo ódio às oligarquias, a resistência à centralização
e o desprezo pela democracia. Apesar das limitações militares que derrotariam a
División Del Norte no ano seguinte, do ponto de vista político, as forças villistas
e zapatistas se revelaram incapazes de articular uma alternativa sólida de poder
nacional, e o governo estabelecido a partir da convenção de Aguascalientes
rapidamente naufragou. A ausência no plano ideológico de um projeto nacional
definido correspondeu, em termos políticos, à incapacidade de constituir uma
alternativa de poder autônoma e viável de alcance nacional.39
O magonismo foi incapaz política e ideologicamente de contribuir para
superar esta lacuna. Por outro lado, a falta de rigidez teórica de um pensamento
que advogava a primazia da ação favoreceu uma sensibilidade avessa a todo
dogmatismo e atenta aos movimentos da conjuntura. Isto possibilitou a Flores
Magón manter à frente de Regeneración uma crítica vigorosa e lúcida tanto antes
quanto durante o processo revolucionário, denunciando as manobras contra-revolucionárias até a extinção final do periódico em 1918. Esta sensibilidade
38
39
Na visão de Bartra, neste contexto o desafio enfrentado pelo PLM a partir de 1911 seria “organizar
y dirigir el campesinato, no como um partido distinto sino como la fuerza mayoritaria del propio
partido proletário... Ante una revolución que no podía resolverse más que como una guerra popular
y prolongada en el campo, la única alternativa viable era del tipo de la que implantó, muchos años
después, el Partido Comunista Chino”. BARTRA, Armando. La revolución mexicana de 1910
en la perspectiva del magonismo. In: GILLY, Adolfo (Org.). Interpretaciones de la Revolución
Mexicana. Cidade do México: UNAM, Editorial Nueva Imagen, 1980, p. 107.
O “Programa de reformas político-sociales de la revolución aprobado por la soberana convención
revolucionaria” divulgado pelos zapatistas desde Morelos em 18 de abril de 1916 é um notável
esforço para responder a este desafio em um momento em que o campo popular já perdera a
iniciativa revolucionária. In: DÍAZ, Lilia (selección y traducción). Planes políticos y otros documentos. Fuentes para la historia de la Revolución Mexicana. Prólogo de Manuel González
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012
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Fabio Luis Barbosa dos SANTOS. O magonismo e a Revolução Mexicana.
permitiu ao líder liberal reconhecer o protagonismo camponês no processo,
apoiá-lo entusiasticamente e ser com ele derrotado.
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Recebido: 05/04/2010 – Aprovado: 02/09/2011
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 285-309, jan./jun. 2012
309
RESENHAS
Resenha: VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém Colonial: judeus portugueses no
Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
Alberto Luiz Schneider1
Pós-doutorando no Departamento de História, Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Ventura e desventura dos judeus portugueses no Nordeste do Brasil
O mais recente livro do historiador Ronaldo Vainfas – autor de obras como
Heresias dos Índios e Trópico dos Pecados – é um instigante exercício intelectual
de História. Afinal, história não se confunde com o passado em si. Trata-se, como
nos lembra Reinhat Koselleck, de uma narrativa impregnada pelo presente, um
tempo marcado pela tensão entre o “espaço de experiência” (passado) e o “horizonte de expectativas” (futuro) – uma tensão que é inerente ao conhecimento
historiográfico.2
A presença holandesa em Pernambuco – e junto dela a formação de uma
comunidade de judeus sefarditas – é um antigo topos da historiografia brasileira,
presente já na História Geral do Brasil (1854-57) e na História das Lutas contra os Holandeses no Brasil desde 1624 a 1654 (1871), de Francisco Adolfo de
Varnhagen. Ronaldo Vainfas, portanto, revisita um velho tema à luz do moderno
ferramental historiográfico.
Perseguidos pela Inquisição na Espanha e Portugal – onde acabaram expulsos
ou convertidos à força – muitos dos judeus ibéricos, já na condição de cristãos-
1
2
Doutor em História pela Unicamp, com pós-doutorado no Departamento de Português e Estudos
Brasileiros do King’s College London. É autor de Silvio Romero: Hermeneuta do Brasil (Annablume, 2005). Foi professor convidado do Departamento de Português da Tokyo University of
Foreign Studies.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio
de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 313-321, jan./jun. 2012
313
Alberto Luiz SCHNEIDER. Resenha.
-novos, convergiram à Holanda, notadamente Amsterdã, desde o final do século
XVI, mas principalmente a partir das primeiras décadas do século XVII – quando
“retornaram” ao judaísmo, gozando da relativa liberdade religiosa dos Países
Baixos. No ano 1609 – ainda no período da União Ibérica (1580-1640) – após
longa guerra entre a Espanha dos Habsburgos e as nascentes Províncias Unidas
dos Países Baixos (então pertencentes à Coroa espanhola), chegou-se à paz provisória. No entanto, as hostilidades ibérico-holandesas haveriam de continuar.
Os holandeses desafiavam o poderio português no Oriente havia décadas. A
fundação da Companhia das Índias Ocidentais, em 1621, foi um passo a mais na
luta holandesa pelo açúcar produzido na América portuguesa. Depois de tentar
tomar Salvador da Bahia, em 1624, Pernambuco cai em mãos batavas, em 1630.
Junto aos holandeses, vieram os judeus sefarditas, com o apoio da Companhia
das Índias Ocidentais, que sabia bem da funcionalidade desses homens e da
utilidade de seus capitais.
É no interior dessa quadratura histórica que transcorrerá a leitura de Ronaldo
Vainfas, interessado em narrar a vida e a morte do que chamou de Jerusalém
Colonial.
Fronteiras culturais, religiosas e linguísticas
Nos Países Baixos, embora predominasse a liberdade religiosa, o “calvinismo
era a religião oficial e fundamento da identidade política”.3 Os calvinistas não raramente admoestavam os judeus e principalmente os católicos, mas não havia nada
semelhante à Inquisição. Os interesses comerciais e a tolerância religiosa criaram
as condições para que ali se estruturasse uma comunidade de judeus sefarditas.
Tratava-se de uma comunidade nova, singular, cujo rabinato era rigorosíssimo, não apenas quanto ao rito judaico. Os sefarditas que acorriam a Amsterdã
eram quase sempre cristãos-novos, que viviam publicamente como católicos,
praticando o judaísmo no ambiente doméstico. Muitas das famílias viviam havia
duas ou três gerações como católicas, portanto, não praticavam a circuncisão,
não dominavam o hebraico e não conheciam os livros sagrados, pois não tinham
uma vida comunitária disciplinada pela sinagoga. Logo, não se pode falar, a rigor,
de uma volta ao judaísmo, mas sim de uma conversão à religião que seus pais e
avós foram obrigados a abandonar. A comunidade era particularmente ortodoxa
quanto às práticas religiosas, talvez em decorrência da insegurança quanto à
3
VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém Colonial: judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010, p. 23.
314
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 313-321, jan./jun. 2012
Alberto Luiz SCHNEIDER. Resenha.
consistência do judaísmo que praticavam. Vainfas se apropria do conceito de
“judeu-novo”, cunhado pelo historiador Yosef Kaplan, para exprimir as ambivalências, dualidades e inseguranças – e até mesmo os excessos de radicalismo
– da comunidade sefardita de Amsterdã:
Mas é claro que os protagonistas dessa metamorfose identitária não se viam como ‘judeus
novos’, senão como judeus que, à custa de muito esforço, tentavam resgatar uma identidade
sufocada pelo catolicismo inquisitorial (...). O pressuposto de um judaísmo inquebrantável
na alma e na progênie de cada cristão-novo era o núcleo ideológico da comunidade.4
Os sefarditas, ou “judeus-novos” de Amsterdã, se sentiam profundamente
diferentes dos ashkenazim – judeus das regiões centrais da Europa, cujo idioma
era o iídiche – ao ponto de recusarem casamentos com os “tudescos” ou “polacos”. O modelo de matrimônio era uma questão importante para o grupo, pois
dele dependia a reprodução e o projeto de perpetuação da comunidade. O típico
homem da nação era necessariamente português ou espanhol e desse grupo cultural deveriam sair os cônjuges ideais. Não havia qualquer problema se fossem
cristãos-novos, desde que ibéricos e dispostos a “voltar” ao judaísmo. Vainfas
lembra que “o afluxo cada vez maior de ashkenazim de origem alemã e polonesa
(...), a maioria deles muito pobres, se tornou motivo de preocupação central das
autoridades sefarditas. (...) Os sefardins portugueses se esforçaram ao máximo
para se distinguir dos recém-chegados do centro-leste da Europa”.5
Em Amsterdã, o português era a língua de casa, mas não da sinagoga. Os
serviços religiosos eram ou em castelhano ou em hebraico, uma língua que poucos
judeus conheciam bem, a exceção de alguns “judeus-velhos”, antigos sefarditas que haviam migrado para a Itália ou o Marrocos. O castelhano era a língua
mais empregada nos rituais religiosos, ao menos na primeira metade do XVII,
pois, explica Vainfas, “a primeira Bíblia judaica, restrita ao Antigo Testamento,
havia sido publicada em espanhol ou ladino (versão sefardi do castelhano) e
dela foram extraídos os trechos para compor diversas orações cotidianas”.6 Os
judeus de Amsterdã, portanto, viviam entre quatro línguas: português em casa e
holandês na rua; hebraico e castelhano na Sinagoga. Viviam também entre vários
mundos. O da cultura ibérica e o da religião judaica. Mas viviam na Holanda,
entre a maioria calvinista.
4
5
6
Idem, Ibidem, p. 58.
Idem, Ibidem, p. 53.
Idem, Ibidem, p. 65.
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Alberto Luiz SCHNEIDER. Resenha.
A Nova Holanda
Entre os 18 navios que partiram de Amsterdã, em 1634, rumo ao Recife, um
deles, chamado As três torres, era chefiado por Moisés Cohen – cujo nome cristão
era Diogo Peixoto. Essa é apenas umas das evidências levantadas por Ronaldo
Vainfas para sustentar a tese de que os judeus portugueses, de fato, “auxiliaram
os holandeses na conquista do nordeste açucareiro”.7 A maioria dos judeus no
Brasil holandês se dedicava ao comércio, embora houvesse senhores de engenhos
e lavradores. Uns poucos mercadores de grosso trato ganharam verdadeiras fortunas e, muitos outros, ganharam a vida mercadejando no território conquistado
pela Companhia das Índias Ocidentais. Os primeiros comerciavam principalmente
escravos e açúcar, participando ativamente do nascente capitalismo comercial.
Os outros se entregavam ao pequeno comércio.
O sucesso comercial de uns e outros – mais dos grandes do que dos pequenos
– decorria menos da “ganância” e da “usura” sempre atribuída aos judeus, como
queriam os pequenos comerciantes flamengos, calvinistas, ou os cristãos-velhos
luso-brasileiros. A experiência histórica dos sefarditas tornou-os, pelo menos,
bilíngues. Os pequenos comerciantes neerlandeses não falavam português, o que
era evidentemente uma desvantagem, como atesta um documento do Presbitério
do Recife – abordado por Gonsalves de Mello em Tempo dos Flamengos e citado
por Vainfas: “grande razão da preferência que os judeus têm sobre os nossos, nesse
particular, é que eles usam a mesma língua dos naturais da terra”.8 Os cristãos-velhos, reinóis ou naturais da terra, em geral plantadores de cana-de-açúcar,
não falavam holandês, o que também dificultava os negócios. O bilinguismo e
a rede comercial dos sefarditas foi-lhes um ativo comercial valiosíssimo, sugere
Vainfas. Embora o autor, talvez, exagere na importância comercial do biliguismo
dos sefarditas e minimize o alcance das complexas redes comerciais, redes que,
no mundo ibérico, estavam profundamente vinculadas ao comércio transatlântico
de escravos negros, como bem demonstrou Luiz Felipe de Alencastro no Trato
dos viventes9 – autor não contemplado na bibliografia do livro em questão.
O livro de Vainfas amarra várias pontas da história da Europa moderna (os
conflitos religiosos, a expansão comercial, as disputas geopolíticas) e da América
7
8
9
Idem, Ibidem, p. 93.
VAINFAS, Ronaldo, p. 201. Apud MELLO, J. A. Gonsalves de. Tempo dos flamengos: influência
da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil. Recife: Massangana, 1987, 3ª
ed. aum., p. 268-9; (original de 1947).
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos viventes: a formação do Brasil no Atlântico Sul.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
316
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 313-321, jan./jun. 2012
Alberto Luiz SCHNEIDER. Resenha.
portuguesa (o açúcar e a escravidão, as disputas luso-holandesas, a Inquisição)
dos primeiros dois séculos da experiência colonial. Contudo, Jerusalém Colonial
fortaleceria sua intervenção historiográfica se conferisse mais ênfase à centralidade da escravidão na interpretação da condição colonial. Diz Laura de Mello e
Souza: “Leis, relações de produção, hierarquia social, conflitualidade, exercício
do poder, tudo teve, no Brasil, que se medir com o escravismo”.10 Judeus ibéricos,
embora violentamente perseguidos pela Inquisição, partilharam da experiência
colonial e alguns mercadores de grosso trato estavam profundamente enredados
no comércio de escravos. Não que Vainfas não tangencie ou mesmo aborde o
problema, mas os leitores sairiam enriquecidos se o autor valorizasse a especificidade escravista da América açucareira que, segundo Laura
não residiu na assimilação pura e simples do mundo do Antigo Regime, mas na sua recriação
perversa, alimentada pelo tráfico, pelo trabalho escravo de negros africanos, pela introdução, na velha sociedade, de um novo elemento, estrutural e não institucional: o escravismo.11
A leitura dos meandros identitários da comunidade sefardita é a melhor parte
do livro. No Recife, a congregação Zur Israel, embora não tão ortodoxa como a
Maghen Abraham, era restrita do ponto de vista cultural, chegando a não admitir
a presença de cristãos-novos, a menos que estivessem em trânsito ao judaísmo.
Vainfas salienta que os sefarditas, além de barrar os ashkenazim (alguns poucos
deles viviam no Brasil holandês), também proibiam a circuncisão de mulatos e
não admitiam casamentos com mulheres de cor, mesmo que convertidas. Lembremos que os sefarditas, a despeito de serem judeus, eram ibéricos.
Com a Insurreição Pernambucana – sobretudo a partir de 1649, quando
os holandeses foram derrotados em Guararapes – muitos judeus portugueses
começaram a retornar a Amsterdã. Durante a longa guerra de restauração, que
terminará apenas em 1654, muitos judeus caíram em mãos das tropas lideradas
por João Fernandes Vieira, o líder da guerra contra os batavos (e os judeus). O
destino foi-lhes particularmente duro. Ou foram executados sumariamente ou
encaminhados à Inquisição. Muitos cristãos-novos pernambucanos, que haviam
10
11
SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa
do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 57.
SOUZA, Laura de Mello, op. cit., p. 68. A autora, nas passagens citadas, está a criticar determinados paradigmas assumidos por António Manuel Hespanha que, aplicados acriticamente à América
portuguesa, acabam por minimizar o papel da escravidão. A historiadora, no entanto, reconhece
as contribuições do historiador português. A obra de Ronaldo Vainfas não parte das premissas de
Hespanha, nem se filia ao campo conceitual por ele proposto. Porém, a centralidade da escravidão
na América portuguesa, que Laura remarca, é importante ao historiográfico contemporâneo.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 313-321, jan./jun. 2012
317
Alberto Luiz SCHNEIDER. Resenha.
se convertido ao judaísmo nos tempos de Nassau, começaram rapidamente a
retornar ao catolicismo. Afinal, a iminente vitória luso-brasileira só deixava-lhes
duas saídas, ou voltavam ao catolicismo, ou deixavam a terra onde viviam, alguns
deles havia várias gerações.
É neste momento que a Inquisição atua poderosamente, como ressalta Vainfas,
ao realizar um minucioso estudo de caso contemplando uma série de personagens
que haviam vivido entre o judaísmo e o cristianismo. O autor narra, entre outras,
a experiência de três cativos judeus, capturados pelos insurgentes pernambucanos
quando da queda do Forte Maurício, em Penedo. Todos eles haviam nascido
cristãos e adotado a lei de Moisés, religião de seus antepassados:
Gabriel Mendes viveu até os 10 anos como menino cristão, João Nunes foi católico até os
16 ou 17 anos e mesmo Diogo Henriques, criado no judaísmo de La Bastide, recebeu instrução católica na infância. Todos transformaram-se em judeus convictos. Judeus-novos.12
Eram homens de formação religiosa dupla, católica e judaica, originários de
famílias criptojudias, que haviam passado ao judaísmo quando as circunstâncias
concretas o permitiram. “Nossos cativos do Forte Maurício, agora reduzidos a
três réus, uma vez provado seu batismo católico,13 viram-se na inglória tarefa de
reconhecer que o judaísmo era uma heresia da qual queriam afastar-se”.14
Pesava contra os judeus portugueses um enorme ressentimento por parte
dos cristãos-velhos da terra, pois eles haviam sido identificados como aliados
dos holandeses e frequentemente acusados de espiões. Se em 1645 havia aproximadamente 5 mil judeus no Brasil holandês, em 1654 – quando da rendição
final dos batavos – havia apenas 600, uma vez que a maioria já tinha voltado
para a Europa ou buscado outro destino nas Américas, em especial nas ilhas do
Caribe, onde foram, junto com os holandeses, dando sequência à aliança dos
sefarditas com a Companhia das Índias Ocidentais. Corre no Brasil a lenda de
que os judeus de Pernambuco foram para Nova York ou mesmo “fundaram” (sic)
a cidade. Deixemos Vainfas falar:
Um grupo de 23 judeus portugueses, entre homens, mulheres e crianças, foi para a América
do Norte, havendo registro, datado de setembro de 1654, da presença deles em Nova Amsterdã. Existe um senso comum, no Brasil, de que os judeus expulsos do Recife fundaram a
12
13
14
VAINFAS, Ronaldo, op.cit., p. 242.
Se tivessem nascido judeus estariam fora da jurisdição da Inquisição. Mas, como nasceram católicos e adotaram o judaísmo (de seus ancestrais), haviam caído em apostasia e, portanto, eram
considerados hereges.
VAINFAS, Ronaldo, op.cit., p. 243.
318
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 313-321, jan./jun. 2012
Alberto Luiz SCHNEIDER. Resenha.
futura Nova York. É inexato. Nova York só recebeu esse nome em 1664, quando os ingleses
escorraçaram os holandeses da ilha de Manhattan. (...) Na realidade, os judeus do Recife
fundaram, isso sim, a primeira comunidade judaica na América do Norte, que mais tarde
integrou-se às redes sefarditas antilhanas, sobretudo no século XVIII.15
Concepção e composição
Em termos teóricos e metodológicos, Jerusalém Colonial é o que poderíamos chamar, talvez com certo exagero, de “história total”, pois a composição
do argumento explora questões econômicas, como as redes comerciais do capitalismo mercantil do século XVII, e questões políticas, como as vicissitudes
das monarquias ibéricas relativas à política de limpeza de sangue, ou ainda a
relativa tolerância das Províncias Unidas. Explora, porém, com particular ênfase
questões culturais, ou antropológicas, como as metamorfoses identitárias dos sefarditas, circulando entre o judaísmo e o cristianismo, segundo as possibilidades
e circunstâncias.
No debate com a historiografia brasileira, o historiador pernambucano Gonsalves de Mello16 – autor dos clássicos Tempo dos Flamengos (1947), a grande
obra sobre o período holandês no Brasil, e Gente da nação (1989), sobre judeus
e cristãos-novos em Pernambuco – é uma das referências centrais. Outra interlocutora das mais importantes é Anita Novinsky17 – autora do estudo seminal
Cristãos-novos na Bahia. Aliás, Jerusalém colonial é dedicado “à memória do
historiador José Antônio Gonsalves de Mello” e “para minha mestra, Anita Novinsky”. No entanto, na construção dos argumentos e no diálogo historiográfico,
a influência de Gonsalves de Mello é infinitamente maior.
Vale destacar, também, a obra erudita do romeno Elias Lipiner, que havia
morado no Brasil, antes de se transferir para Israel, em 1968. Lipiner18 foi um
dos maiores conhecedores da documentação sefardita, embora Vainfas discorde
de algumas de suas interpretações, sobretudo na análise de Isaac de Castro,
15
16
17
18
Idem, Ibidem, p. 357-8.
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos. Influência da ocupação holandesa
na vida e na cultura do norte do Brasil. Recife: Massangana, 1987, 3ª ed. aum., original de 1947;
Gente da nação. Cristãos-novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654. Recife: Massangana,
1996, 2ª ed.; João Fernandes Vieira: Mestre de campo do Terço de Infantaria de Pernambuco.
Lisboa: Centro de Estudos do Atlântico, 2000, original de 1956.
NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva, 1972.
LIPINER, Elias. Izaque de Castro: o mancebo que veio preso do Brasil. Recife: Massangana,
1992, original de 1957; Baptizados em pé. Lisboa: Vega, 1998.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 313-321, jan./jun. 2012
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Alberto Luiz SCHNEIDER. Resenha.
mártir judeu queimado vivo pela Inquisição, em Lisboa, em 1647. O historiador
e erudito português João Lúcio de Azevedo19 também serve como interlocutor
de primeira grandeza.
Entre os historiadores mais recentes, Vainfas debate tanto com a historiografia
especializada nos sefarditas quanto naquela dedicada ao período holandês no Nordeste do Brasil. Evaldo Cabral de Mello,20 herdeiro e continuador de Gonsalves
de Mello, é uma das presenças mais constantes, sobretudo nos últimos capítulos,
onde Vainfas trata da derrota holandesa para as forças luso-brasileiras. O britânico
Jonathan Israel21 – considerado o principal historiador acerca do papel dos judeus
na era moderna – é constantemente referenciado, tendo sido fundamental para
traçar o papel dos judeus sefarditas nos Países Baixos. Israel, porém, contempla
apenas lateralmente o caso dos judeus portugueses no Brasil holandês. O historiador Bruno Feitler22 foi uma das referências no debate em torno da Inquisição
portuguesa e a questão judaica. A historiadora norte-americana Miriam Bodian23
foi importante para mapear as circunstâncias dos judeus portugueses a caminho
da “Jerusalém do Norte”, ou seja, Amsterdã. Yosef Kaplan,24 argentino radicado
em Israel, é um dos autores mais importantes para a obra de Ronaldo Vainfas,
na medida em que explora a identidade dos judeus sefarditas, muitos dos quais
acabaram por imigrar para o Recife. Kaplan é criador do conceito de “judeus-novos”, percepção capital na construção de Jerusalém Colonial. Chama a aten-
19
20
21
22
23
24
AZEVEDO, João Lúcio. História dos cristãos-novos portugueses. Lisboa: Clássica, 1989; original
de 1922; História de António Vieira. São Paulo: Alameda, 2008, original de 1918-1921.
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio. O imaginário da restauração pernambucana. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1997, 2ª ed. rev. e aum.; Olinda Restaurada. Guerra e açúcar no nordeste,
1630-1654. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, 2ª ed. rev. e aum.; O negócio do Brasil. Portugal,
os Países Baixos e o Nordeste. São Paulo: Editora 34, 2002; Nassau. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
ISRAEL, Jonathan. The Dutch Republic. Its Rise, Greatness and Fall, 1477-1806. Oxford: Oxford
University Press, 1995; Diaspora within Diaspora. Jews, Cripto-Jews, and the Word Maritime
Empire, 1540-1740. Leiden: Brill, 2002; European Jewry in the Age of Mercantilism, 1550-1750.
Oxford: Oxford University Press, 2003.
FEITLER, Bruno. Inquisition, juifs et nouveaux-chrétiens au Brésil. Leuven: Leuven University
Press, 2003.
BODIAN, Miriam. Hebrews of the Portuguese Nation. Conversos and Community in Early
Modern Amsterdam. Indianapolis: Indiana University Press, 1999.
KAPLAN, Yosef. Judíos Nuevos en Amsterdam. Estudio sobre la historia social y intelectual
del judaísmo sefardí en el siglo XVII. Barcelona: Gedisa Editorial, 1996. Obs.: No livro, falha na
revisão: o en (esp.) passou por em (port.), na nota 16 da p. 83. From Forced Conversion to a Return
to Judaism. Studia Rosenthalaliana. Amsterdam University Library, v. XV, 1, 1981, p. 37-51.
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 313-321, jan./jun. 2012
Alberto Luiz SCHNEIDER. Resenha.
ção a ausência de contribuições mais recentes, como os importantes aportes do
historiador italiano, especialista na Inquisição portuguesa, Giuseppe Marcocci.25
Além dos contornos historiográficos, o autor levantou a documentação inquisitorial portuguesa com as atas das duas congregações judaicas do Recife: a
Zur Israel e a Magen Abraham. As fontes normativas das comunidades religiosas
(inclusive dos calvinistas do Recife) são exploradas, com destaque para as atas
e os regulamentos tanto do Sínodo da Igreja Reformada, como das referidas
congregações judaicas de Pernambuco. Não menos importantes são os cronistas
portugueses e neerlandeses, ou a correspondência de personagens daquele tempo,
como o padre António Vieira, que o autor conhece em profundidade.26
Ronaldo Vainfas – historiador experiente nas questões relativas ao Brasil
colonial e à Europa moderna – soube combinar a historiografia acerca dos sefarditas com a dos holandeses no Brasil, ao que juntou sua própria erudição sobre
a Inquisição portuguesa, gerando um livro de história cultural, porém atento aos
influxos políticos e econômicos, no qual a singularidade dos personagens não
impede uma perspectiva de síntese. É sempre possível estabelecer reparos e questionar opções, mas não se pode negar ao livro profundidade e fluidez do texto, ao
mesmo tempo complexo e simples, permitindo várias camadas de apropriação.
Recebido: 31/03/2011 – Aprovado: 04/11/2011
25
26
MARCOCCI, Giuseppe. La coscienza di un impero. Politica, teologia e diritto nel Portogallo
del Cinquecento. Pisa: Scuola Normale Superiore, 2008;“Catequização pelo medo”? Inquisitori,
vescovi e confessori di fronte ai nuovi cristiani nel Portogallo del Cinquecento. In: Le inquisizioni
cristiane e gli Ebrei. Roma: Atti dei Convegni Lincei, 2003; Custodi dell’ortodossia. Inquisizione
e Chiesa nel Portogallo del Cinquecento. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2004; Inquisição,
jesuítas e cristãos-novos em Portugal no século XVI. Revista de História das Ideias, n. 25, 2004.
Ronaldo Vainfas acaba de lançar uma biografia de padre António Vieira para a coleção Perfis
Brasileiros, pela Companhia das Letras.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 313-321, jan./jun. 2012
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FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.
Luciano Aronne de Abreu
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
“João Goulart: uma biografia”: reflexões sobre a obra de Jorge Ferreira
O que restou da imagem de João Belchior Marques Goulart, de 1964 até os
dias atuais, não passou de “memória, esquecimento e silêncio”, dada a dificuldade
de se lidar com as ambiguidades humanas, como a de se admitir, por exemplo,
“que um empresário rural pode, sim, ser também o político que prega, com sinceridade, a reforma agrária”.1 Com esta afirmação, que se refere ao título de um
clássico estudo de Michel Pollack, Jorge Ferreira conclui sua excelente biografia
de João Goulart, que restituiu a esse personagem o que, até então, as memórias
a seu respeito lhe haviam sonegado: sua história.
De um modo geral, como já havia sido demonstrado por Marieta de Moraes
Ferreira, em estudo justamente intitulado “João Goulart: entre a memória e a
história”, as visões elaboradas a seu respeito foram predominantemente negativas,
seja entre as chamadas forças conservadoras ou entre os diferentes segmentos
de ‘esquerda’, conforme definidos pela autora. Para os primeiros, de forma contraditória, Jango era apresentado ora como um líder comunista, que pretendia
implantar no país uma república sindicalista, ora como um político demagogo
que, por ser estancieiro, não estaria de fato comprometido com as reformas do
país; em outras ocasiões, de forma não menos contraditória, Jango era definido
como um caudilho autoritário, ou, então, como um presidente fraco, incompetente
e despreparado para o exercício de suas funções. Entre os segundos, ainda que
1
FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 690.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 323-330, jan./jun. 2012
323
Luciano Aronne de ABREU. Resenha.
alguns representantes dos chamados segmentos de ‘esquerda’ reconheçam suas
qualidades de negociador e conciliador, predomina a ideia de que Jango teria sido
o maior responsável pela derrota diante dos militares, dada sua incapacidade de
agregar e neutralizar os grupos mais radicais e de bem avaliar a conjuntura política
do país. A esse respeito, em sua avaliação, Marieta de Moraes Ferreira diz que
o silêncio sobre a trajetória de Jango ao lado de Getúlio e sobre seu aprendizado junto às
principais lideranças políticas do país, quer como presidente do PTB quer como Ministro,
nos acordos políticos sindicais e partidários, nas campanhas eleitorais e no exercício da
vice-presidência, desconsidera uma experiência política de mais de 10 anos, como testemunha e ator dos principais eventos da história do país.2
Em outras palavras, pode-se dizer que, embora a memória faça parte da
história, esta não pode ficar restrita àquela e, portanto, faltava ainda aos historiadores avançarem mais decididamente do plano da memória para a história de
João Goulart, de suas relações e atuação política em um dos mais importantes e
conturbados períodos históricos do Brasil contemporâneo. E esta foi, sem dúvida, a grande contribuição da extensa e muito bem fundamentada obra de Jorge
Ferreira sobre Jango, cujo avanço em direção à história pode ser claramente
percebido, por exemplo, pela constante preocupação do autor em fundamentar
suas afirmações em variadas fontes documentais, desde arquivos pessoais e
jornais de diferentes regiões do país, passando por fotografias e incluindo ainda
depoimentos de pessoas que estiveram, direta ou indiretamente, envolvidas com
os acontecimentos narrados. Ao contrário, portanto, de negar a memória existente
sobre Jango, seja ela positiva ou negativa, Ferreira a incorporou à sua história
desse personagem, como complemento ou contraponto às visões expressas por
suas outras fontes. Outro passo decisivo em direção à história se deu por sua
rigorosa crítica das fontes, em conformidade com os atuais debates teóricos e
metodológicos do campo historiográfico. São exemplares, nesse sentido, suas
discussões a respeito do próprio gênero biográfico, da narrativa histórica, das
relações entre indivíduo e sociedade e da própria historiografia existente sobre
Goulart e sua época. Em síntese, ainda que a neutralidade seja inacessível ao
historiador, pode-se dizer que a variedade de fontes e o rigor do método permitiram a Jorge Ferreira manter um maior distanciamento em relação ao seu objeto
e, ao contrário das obras até então existentes sobre João Goulart, construir este
2
FERREIRA, Marieta de Moraes. João Goulart: entre a memória e a história. Rio de Janeiro:
FGV, 2006, p. 24.
324
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 323-330, jan./jun. 2012
Luciano Aronne de ABREU. Resenha.
personagem em sua própria historicidade e complexidade, desde sua infância no
Rio Grande do Sul até a morte no exílio.
Nesse sentido, como já referido, deve-se ressaltar que não se trata de uma
biografia tradicional, destinada a exaltar ou a denegrir a imagem de um indivíduo
descolado de seu contexto, mas de um estudo que dialoga constantemente com
as mais recentes concepções teóricas e metodológicas do campo historiográfico.
Dessa forma, a trajetória política de João Goulart é analisada como parte do
que o autor identificou como “geração da década de 50”, que partilhou ideias,
crenças e representações, e “acreditou no nacionalismo, na defesa da soberania
nacional, nas reformas das estruturas econômicas, na ampliação dos direitos sociais dos trabalhadores do campo e da cidade, entre outras demandas materiais e
simbólicas (...)”.3 Assim, lembrando que a oposição entre indivíduo e sociedade
é uma falsa questão, Jorge Ferreira diz que “a trajetória política de João Goulart
exemplifica, para o historiador, a possibilidade de caminhar entre o individual e o
coletivo com o objetivo de compreender as crenças, os anseios e as perspectivas
das sociedades no passado”.4
Nesses termos, Jorge Ferreira se propôs a compreender não apenas a experiência política de mais de 10 anos de Jango, conforme sugerido por Marieta de
Moraes Ferreira, mas um período de tempo que vai além da própria vida do seu
personagem, iniciando seu primeiro capítulo com referências ao quadro político
gaúcho da Primeira República e concluindo sua história com reflexões e especulações sobre a morte e a memória recente de Jango.
Tal obra, com mais de 700 páginas, foi dividida em 13 capítulos, antecedidos
de uma introdução e sucedidos pelas Palavras Finais do autor, por uma extensa
lista de fontes e referências bibliográficas e por um índice onomástico. Na introdução, além da sua clara definição teórico-metodológica e da indicação das
diferentes tipologias de fontes utilizadas na pesquisa, destaca-se também a ampla
revisão e crítica da historiografia já produzida sobre Jango, com a qual, como já
referido, Jorge Ferreira irá sempre dialogar daí por diante. Os capítulos 1 e 2 se
referem ainda à etapa de vida de Jango no Rio Grande do Sul. O primeiro, no
contexto da Primeira República, destaca aspectos da sua formação pessoal, sua
amizade com Manoel Antônio Vargas, o Maneco, seu gosto pela vida do campo
e sua habilidade para os negócios, além das relações políticas de seu pai, Vicente
Goulart. Já o segundo, durante o período de “exílio” de Getúlio Vargas em São
3
4
FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 15.
Idem, Ibidem, p. 16.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 323-330, jan./jun. 2012
325
Luciano Aronne de ABREU. Resenha.
Borja, destaca o que seria o início da formação política de Jango, como “aprendiz de feiticeiro” e principal articulador da candidatura de Vargas à Presidência
da República. Os capítulos 3 e 4, relativos ao segundo período presidencial de
Getúlio Vargas, destacam a atuação de Jango como Ministro do Trabalho, sua
aproximação com o movimento sindical e sua projeção como principal líder
da nova geração trabalhista, bem como apresentam uma ótima síntese da crise
que levou ao suicídio de Vargas, das resistências à candidatura de Juscelino
Kubitschek e da aproximação de setores militares ao trabalhismo, tendo Goulart à frente. Nos capítulos seguintes, 5 e 6, Jorge Ferreira narra com precisão a
atuação de Jango como vice-presidente de Kubitschek e de Jânio Quadros, sua
atuação como mediador entre o governo e os sindicatos, as divisões internas e
disputas pela liderança do PTB, a renúncia de Jânio Quadros e a Campanha da
Legalidade, que garantiria sua posse como Presidente da República. A seguir,
os capítulos de 7 a 10 se referem ao período governamental de João Goulart
como Presidente da República, desde sua posse num regime parlamentar até
sua queda por um golpe militar. Além de uma ampla descrição do panorama
social e cultural da época, destacam-se também nestes capítulos uma minuciosa
análise do debate político e de sua crescente radicalização, os diferentes projetos
de reformas então existentes, a posição mediadora de Jango e a posterior radicalização do seu discurso, culminando com sua deposição pelas forças civis e
militares conservadoras. Por fim, os capítulos de 11 a 13 se referem ao exílio de
João Goulart, primeiro no Uruguai e depois na Argentina. Nestes, destacam-se
suas referências ao drama pessoal e familiar de Jango, seus lucrativos negócios
e muitos contatos políticos, sempre com a esperança de retornar ao Brasil, até
sua morte, em dezembro de 1976.
Dessa história, ainda que o autor se preocupe sempre em apontar não exatamente as incoerências, mas as ambiguidades do seu biografado, que diz serem
inerentes a qualquer ser humano, pode-se perceber na obra de Jorge Ferreira a
emergência de uma visão mais positiva que negativa de João Goulart, ao contrário
das memórias já referidas a seu respeito. Em alguns momentos, já que “ao historiador foi negada a neutralidade”5, pode-se até mesmo perceber certo encantamento
do autor por seu personagem, sem, no entanto, comprometer a objetividade de
sua análise e a grande relevância de seu estudo para a historiografia. De forma
literária, por exemplo, o autor inicialmente descreve a beleza da paisagem da
região de São Borja e diz que seus moradores, “como é de praxe no Rio Grande
5
Idem, Ibidem, p. 18.
326
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Luciano Aronne de ABREU. Resenha.
do Sul, são simpáticos e acolhedores, mas também observadores e argutos em
seus julgamentos, sabendo impor distância quando a julgam necessária”.6 Ora,
ainda que isso não seja dito explicitamente pelo autor, pode-se supor, pelo conjunto de sua obra, que essas mesmas características idealizadas do gaúcho seriam
também extensíveis a João Goulart.
Em outros momentos, pode-se perceber algumas pequenas imprecisões
factuais na extensa narrativa de Jorge Ferreira, o que mais uma vez em nada
compromete a clareza e a relevância de sua análise histórica, de longa duração,
da trajetória política de Goulart. Ao se referir, por exemplo, à origem do PTB
do Rio Grande do Sul, o autor diz que este foi fundado “exclusivamente por
ativistas sindicais, na maioria presidentes de sindicatos, institucionalizando
partidariamente o trabalhismo”7; algumas páginas adiante, entretanto, cita o
clássico estudo de Miguel Bodea sobre essa temática, para quem esse partido
teria se constituído no Estado a partir de três vertentes principais: a sindicalista, a
doutrinário-pasqualinista e a pragmático-getulista.8 Nesse mesmo sentido, outro
exemplo seria sua afirmação de que o então governador do Rio Grande do Sul,
Ildo Meneghetti, logo após o golpe militar de 1964, teria se refugiado na cidade
de Santa Maria para se proteger de uma possível reação trabalhista que então se
articulava em Porto Alegre.9 Na verdade, tendo sido Santa Maria uma importante
base de apoio militar à causa da Legalidade, em 1961, a cidade escolhida para o
refúgio do governador foi Passo Fundo.
Dito isso, pode-se afirmar que Jorge Ferreira nos apresenta em sua história
um João Goulart essencialmente nacionalista e democrático, com grande capacidade de articulação e negociação políticas, se constituindo então no principal
herdeiro e renovador do trabalhismo varguista. Mas, como já referimos, João
Goulart nos é apresentado a partir das ambiguidades próprias de sua personalidade e de sua época, e não de supostas coerências ou contradições observadas
ao longo de sua vida.
Em seu nacionalismo, Jango defendeu não apenas a adoção de amplas reformas sociais no Brasil, como a ampliação dos direitos trabalhistas e a reforma
agrária, mas também o controle do capital estrangeiro, a ampliação dos mercados
externos do país e sua maior aproximação com as demais nações da América
Latina, dando seguimento à política externa independente de Jânio Quadros. A
6
7
8
9
Idem, Ibidem, p. 25.
Idem, Ibidem, p. 54.
Idem, Ibidem, p. 57.
Idem, Ibidem, p. 505.
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327
Luciano Aronne de ABREU. Resenha.
partir de fins dos anos 50, na ótica de Jango e do PTB, pode-se dizer que as mudanças sociais acima citadas (e outras) só ocorreriam quando o Brasil alcançasse
sua verdadeira autonomia e liberdade econômica. De um lado, tais concepções
e práticas políticas a elas relacionadas permitiram a Jango se aproximar de diferentes movimentos sociais e sindicais, da ala nacionalista das Forças Armadas e
se impor como a principal liderança do trabalhismo pós-Vargas. De outro lado,
contudo, estas mesmas questões acirraram as oposições liberais (nacionais e
internacionais) ao seu governo, taxado de comunista por sua proximidade com
os sindicatos e por seu não alinhamento automático, em tempos de Guerra Fria,
com os Estados Unidos. De igual forma, portanto, essas mesmas questões se
constituíram na “força” e na “fraqueza” do governo de Jango, tanto garantindo
sua posse na Presidência e se constituindo em sua principal base de apoio político,
quanto o levando à queda e ao exílio, em 1964.
Já o seu caráter democrático se manifestaria não apenas pelas reiteradas
recusas de Jango às tentações golpistas, mas também por suas habilidades de
articulador e negociador político. Segundo Jorge Ferreira, em pelo menos duas
ocasiões Jango teria claramente se recusado a implantar no país um regime autoritário: a primeira, contrariando sugestão do general Amauri Kruel, que, logo
após a Campanha da Legalidade, desejava fechar o Congresso Nacional, restituir
os poderes presidenciais de Goulart e decretar as reformas de base10; a segunda,
desarticulando trama liderada por Brizola e pelos generais Jair Dantas Ribeiro e
Osvino Ferreira Alves, meses antes do plebiscito sobre o parlamentarismo que
seria marcado para o dia 6 de janeiro de 1963.11
Por sua vez, também as habilidades de articulação e negociação política de
Jango podem ser apontadas, ao mesmo tempo, como uma espécie de “força” e
“fraqueza” de seu governo, fatores importantes para se compreender sua ascensão e queda política no Brasil de meados do século passado. De um lado, Jorge
Ferreira destaca o papel central desempenhado por Goulart na articulação da
candidatura de Vargas à Presidência da República, em 1951, na liderança do PTB
ao longo daquela década, nas negociações com os sindicatos como Ministro do
Trabalho, como vice-presidente de JK e mesmo durante seu próprio mandato
presidencial, nas tentativas de seu governo de conciliar os interesses de PTB,
PSD e UDN e evitar a crescente radicalização política do país e, durante seu
exílio, nos contatos que manteve com líderes políticos de diferentes tendências,
10
11
Idem, Ibidem, p. 268-269.
Idem, Ibidem, p. 308-309.
328
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Luciano Aronne de ABREU. Resenha.
admitindo até mesmo aproximar-se de JK e de seu maior opositor, Carlos Lacerda, para formar a chamada Frente Ampla (1967), em defesa da democracia
no Brasil. De outro lado, porém, suas práticas de conciliação e negociação com
outros partidos e de aproximação com os sindicatos deram origem a disputas
entre os próprios trabalhistas, culminando na dissidência de Fernando Ferrari e
na divisão interna do PTB entre os grupos de João Goulart e de Leonel Brizola,
sendo este último adepto não de uma política de conciliação, mas de confronto
com as oposições.
Tais disputas talvez nos ofereçam o exemplo mais nítido das ambiguidades a
que se refere Jorge Ferreira, próprias de Jango e de sua época: a ala brizolista do
trabalhismo, ao radicalizar seus discursos e ações, deu à política de conciliação
do governo um sentido negativo, sinônimo de fraqueza e indecisão do Presidente,
imagem que mais tarde se perpetuaria nas memórias a respeito de Goulart; ao
mesmo tempo, forneceu também às oposições argumentos para acusar este mesmo governo por seu suposto radicalismo comunista e golpista. De igual forma, a
insistência de Jango em preservar sua política de conciliação e manter-se fiel aos
seus aliados de esquerda levou seu governo a perder apoio de ambos os lados,
restando-lhe como alternativa final justamente a radicalização que levaria à sua
queda e, ao mesmo tempo, reforçaria sua paradoxal imagem de homem fraco,
indeciso e comunista.
Ao contrário das simplificações da memória, portanto, Jorge Ferreira nos apresenta em sua obra um João Goulart histórico, inserido em seu contexto pessoal,
social, cultural, político e econômico, analisado em todas as suas complexidades
e ambiguidades. Não exatamente fraco ou forte, indeciso ou conciliador, populista
ou comunista. Talvez um pouco disso tudo, mas, sobretudo, um homem do seu
tempo, cuja compreensão nos ajuda também a compreender um longo e importante período de nossa história recente. Enfim, mais do que desvendar fontes ou
fatos nunca antes imaginados pelos historiadores, talvez a principal contribuição
desta importante obra de Ferreira seja exatamente sua análise crítica e rigorosa
de um conjunto amplo e variado de fontes, que nos permitiram conhecer o personagem João Goulart a partir das ambiguidades e complexidades próprias de
sua personalidade e de sua época.
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Luciano Aronne de ABREU. Resenha.
Referências bibliográficas
BODEA, Miguel. Trabalhismo e Populismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
UFRGS, 1992.
FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
FERREIRA, Jorge. O Imaginário Trabalhista: getulismo, PTB e cultura popular
(1945-64). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
FERREIRA, Marieta de Moraes. João Goulart: entre a memória e a história. Rio
de Janeiro: FGV, 2006.
TENDLER, Sílvio. Jango: como, quando e porque se depõe um presidente. Porto
Alegre: L&PM, 1984.
VILLA, Marco Antônio. Jango: um perfil. São Paulo: Globo, 2003.
Recebido: 03/10/2011 – Aprovado: 02/12/2011
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UMA HISTORIADORA ENTRE A FAMÍLIA, AS MULHERES
E AS CRIANÇAS NO SÉCULO XIX:
ENI DE MESQUITA SAMARA
Esmeralda Blanco B. de Moura
Universidade de São Paulo
Ao encerrar a introdução de As mulheres, o poder e a família. São Paulo,
século XIX, Eni de Mesquita Samara deixou registrado à própria família, ao esposo
Eduardo e aos filhos Dudu e Lívia, o agradecimento pela “relação intensa, misto
de gratidão e de culpa”. Define, então, a família, como seu “reduto primeiro”,
de quem entende haver roubado “muitos momentos de convivência” em virtude
do trabalho, no caso, sua tese de doutorado1.
A palavra culpa muitas vezes compareceu às conversas informais – senão às
discussões – que compartilhávamos no Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina-CEDHAL, nas demais instâncias de nossa Faculdade, em
outros espaços próprios ao debate acadêmico, seminários, simpósios, congressos.
Afinal, éramos ambas mulheres às voltas com a história das mulheres, portanto
com nossa própria história, sempre prontas a trazer para o primeiro plano de
nossas preocupações a condição feminina no tempo pretérito e em nosso próprio
tempo, sempre prontas a refletir sobre nós mesmas, sobre nosso envolvimento
com o trabalho e o sentimento de culpa que, fruto de uma dentre tantas outras
construções culturais quanto às mulheres, por vezes nos divertia, não sem insistir
em nos acompanhar. Sentimento, alimentado pela percepção de que fazíamos
parte de uma geração de mulheres que, definitivamente, para se sentirem inteiras,
1
SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família. São Paulo, Século XIX. São Paulo:
Marco Zero; Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1989, p. 14.
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Esmeralda Blanco B. de MOURA. Uma historiadora entre a família, as mulheres e as crianças no séc. XIX.
completas, precisavam administrar o fato de que, contraditoriamente, deveriam
ser mulheres divididas entre a casa e o trabalho.
Aos poucos, à medida que a pesquisa avançava, que nos tornávamos “íntimas”
das mulheres que nos haviam precedido na história, devido, talvez à maturidade,
talvez à percepção de que afinal tudo havia se encaminhado bem para nossas
famílias e nosso trabalho, o sentimento de culpa passou a ser substituído pela
sensação de que valera a pena dar a conhecer a história de nossas mulheres nos
mais distintos momentos e espaços em que haviam transitado.
Creio que são necessárias algumas palavras sobre o quanto a história das
mulheres e, com ela, a história da família, das crianças, os estudos de gênero,
tornaram-se centrais nas tendências historiográficas inauguradas nos últimos
vinte e cinco anos do século XX, justamente na confluência com a proclamação
do ano de 1975 pela ONU como Ano Internacional da Mulher e da constância
das comemorações, a partir desse momento, do Dia Internacional da Mulher. No
ano seguinte, a afirmação de June Hahner soaria como estímulo e desafio: “A
história da mulher no Brasil, tal como a das mulheres em vários outros países,
ainda está por ser escrita”.2
Nesse momento, dedicava-me à pesquisa sobre as mulheres e as crianças
operárias nos primórdios da República3 e Eni Samara voltava-se para as Casas
Grandes e para o “papel fundamental” da família na sociedade colonial.4 Sua
escolha recaíra, assim como minha própria escolha, sobre a cidade de São Paulo,
pois esse cenário lhe pareceu, no transcorrer do século XIX, “um campo fecundo
de investigação, com uma sociedade complexa e em transformação”.5
As conclusões a que chega são bem sistematizadas por Maria Stela Bresciani
na contracapa de As mulheres, o poder e a família:
2
3
4
5
HAHNER, June E. A mulher no Brasil: textos coligidos e anotados por June E.Hahner. Tradução
de Eduardo F. Alves. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 9.
Vide MOURA, Esmeralda Blanco B. de. Mulheres e menores no trabalho industrial em São
Paulo: os fatores sexo e idade na dinâmica do capital. Petrópolis: Vozes, 1982.
SAMARA, Eni de Mesquita, op.cit.
Idem, Ibidem, p. 16 e 10.
334
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 333-338, jan./jun. 2012
Esmeralda Blanco B. de MOURA. Uma historiadora entre a família, as mulheres e as crianças no séc. XIX.
Famílias patriarcais e sua extensa rede de dependentes confirmam uma tendência herdada
dos tempos coloniais, mas surpreendentemente não constituem a forma predominante de
organização familiar.6
Na base dessa assertiva, a desconstrução, como aponta Bresciani, de “modelos
rígidos consagrados pela literatura sobre a sociedade brasileira”7 e a preocupação de Samara com a possível variedade de estruturas familiares no tempo e no
espaço, sem invalidar modelos como o de Gilberto Freyre8, mas trazendo à tona
outra percepção: a de que não seria possível falar em um padrão único quanto
à família paulista. Se o modelo patriarcal de família aplicava-se, por exemplo,
aos detentores da riqueza e do poder, percebia-se, em São Paulo, nas várias
freguesias – Penha, Nossa Senhora do Ó, Santa Efigênia, ao Sul e ao Norte da
Sé – um universo de contrastes na estrutura familiar alinhado aos vários setores
de atividade econômica; percebia-se, ainda, uma miríade de categorias de domicílio – singulares, desconexos, nucleares, extensos, aumentados, fraternos –,
unidades familiares em que Samara foi buscar informações valiosas: quem as
chefiava, se constituíam famílias legalizadas ou não, quais os fundamentos das
relações que abrigavam, o parentesco, os vínculos estabelecidos pelo trabalho.
Desse modo, confere visibilidade, também, às uniões ilícitas – para os padrões
da religião e da legislação da época – formadas entre moradores locais à sombra
do concubinato e à revelia da ideia de casamento.
No interior desse estudo sobressaem as mulheres, a função específica do
casamento numa sociedade em que eram poucas as opções que lhes restavam,
em que sua imagem estava associada aos papéis de esposa e mãe, mas em que
Samara pôde perceber, como ressalta, “certo exagero dos estudiosos e romancistas
ao estabelecerem o estereótipo do marido dominador e da mulher submissa”.
Paulatinamente, a análise a faz aportar no que denomina “área de influência feminina”, pois se vê diante de uma documentação que lhe sugere “novas imagens
da mulher na família e na sociedade, com uma participação mais ativa, embora
o seu papel fosse limitado, face à manutenção dos privilégios masculinos”.9
Sua análise confere, portanto, outra dinâmica a esse contexto, pois, ao lado
das mulheres que ficavam em casa e que, no interior das quatro paredes do lar,
6
7
8
9
BRESCIANI, Maria Stela. Contracapa. In: SAMARA, Eni de Mesquita, op.cit.
Idem, Ibidem.
A referência de Samara à clássica obra de Gilberto Freyre Casa Grande e Senzala: formação da
família brasileira sob o regime da economia patriarcal corresponde, no caso, à 9ª edição em 2
volumes publicada no Rio de Janeiro, em 1977 , pela editora José Olympio.
SAMARA, Eni de Mesquita, op.cit., p. 105, 110 e 106.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 333-338, jan./jun. 2012
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Esmeralda Blanco B. de MOURA. Uma historiadora entre a família, as mulheres e as crianças no séc. XIX.
talvez fossem submissas – revela mulheres empenhadas na defesa dos próprios
direitos no âmbito da sociedade conjugal, assim como revela, sobretudo nas
camadas mais empobrecidas da população, mulheres absorvidas pelo trabalho,
na chefia dos próprios domicílios, a gerir o orçamento doméstico, a cuidar dos
filhos ilegítimos.
Impossível dar conta da densidade dessa análise que a coloca em contato
com homens e mulheres, casados, solteiros, vivendo em concubinato, unidos
em casamento legítimo, dispostos a desfazer os laços conjugais, às voltas com a
partilha de bens; que a coloca em contato com brancos, negros, mestiços, com a
população livre e também cativa, que a coloca em contato com as crianças. Em
relação aos pequenos, mostra-se sensibilizada quanto à alta mortalidade infantil,
recorrente ao longo da história brasileira, não só na sociedade paulista, a abranger
crianças de todas as condições econômicas, legítimas e ilegítimas, escravas ou
não, crianças de todas as idades, nem sempre na primeira infância:
Os números são realmente surpreendentes e a morte tão frequente parece ter sido encarada
como um acontecimento quase natural. (...) Sob esse aspecto, a religião era o consolo
dos pais, ajudando na compreensão dessa fatalidade que atingia os filhos de ricos e de
pobres. 10
Muito poderia ser dito, ainda, no que tange a essa análise, mas nada melhor
para introduzir a menção à colaboração de Eni Samara aos estudos de gênero,
do que a frase com que encerra As mulheres, o poder e a família:
Os processos de divórcio revelam uma nova dimensão das relações do casal. As queixas
das esposas quanto às sevícias e ao adultério e as próprias aspirações face ao casamento
e à vida conjugal divergiam do estereótipo de submissão e reclusão.11
A historiadora ampliara consideravelmente a visibilidade social da mulher
e, no passo seguinte, aportaria nos estudos de gênero, dimensão latente na obra
a que fiz referência até o momento, insinuada no âmbito da historicidade das
relações entre homens e mulheres.
O relacional de gênero tornar-se-ia “tema preferencial de expressiva produção historiográfica”, palavras da historiadora Ismênia de Lima Martins na
apresentação da obra Gênero em debate: trajetória e perspectivas na historiografia contemporânea, que Samara escreve em parceria com Raquel Soihet e
10
11
Idem, Ibidem, p. 50.
Idem, Ibidem, p. 174.
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Esmeralda Blanco B. de MOURA. Uma historiadora entre a família, as mulheres e as crianças no séc. XIX.
Maria Izilda S. de Matos.12 Parte considerável da obra de Samara insere-se nessa
produção historiográfica, cujo fundamento ultrapassa as diferenças biológicas
entre homens e mulheres, para apreender a subjetividade inerente às construções
culturais quanto ao feminino e ao masculino.
Nos estudos de gênero, a historiadora não se manteve restrita à situação
das mulheres brasileiras, mas ampliou esse escopo, com fins comparativos, à
trajetória das mulheres latino-americanas, atenta à pluralidade, do que resultou a
organização da obra As idéias e os números do gênero: Argentina, Brasil e Chile
no século XIX.13 Contudo, melhor do que resumir sua perspectiva de análise é
remeter às suas próprias palavras na Apresentação de O discurso e a construção
da identidade de gênero na América Latina, título do capítulo que integra a obra
anteriormente citada, Gênero em debate:
Pensar em Gênero e Identidade conjuntamente significa discutir um tema [complexo,
bem como, elaborar] as relações entre os sexos, na sua perspectiva cultural, e os seus
significados específicos para a América Latina, o que, em síntese, pressupõe uma reflexão
sobre a “diferença”, nas práticas cotidianas, na elaboração do discurso, no processo de
socialização e na construção da identidade social de gênero.14
Reflexão que, no entendimento da autora, deve articular gênero a variáveis,
tais como etnia e classe social, e ser capaz, também, de demonstrar sensibilidade
para apreender e compreender as semelhanças.
Ao incorporar os estudos de gênero a sua investigação, a historiadora desenvolve uma análise com fundamento na discussão teórica da relação gênero
e trabalho, dimensão que, com base nos dados demográficos sobre a população
brasileira, explora comparativamente quanto a São Paulo, Minas Gerais, Bahia
e Ceará, regiões distintas entre si em termos econômicos, alicerçadas, respectivamente, na exportação do café, na lavoura de subsistência destinada a abastecer
as cidades, na produção de gêneros tropicais – algodão, cacau, tabaco – para o
mercado externo. Preocupada em desvendar questões atinentes à mão-de-obra
feminina, oportunidades e mercado de trabalho no Brasil do século XIX, volta-se
para sua presença no quadro de transição para o assalariamento, convicta de que
12
13
14
MARTINS, Ismênia de Lima Martins. Apresentação. In: MATOS, Maria Izilda S. de; SOLER,
Maria Angélica (Orgs.). Gênero em debate: trajetória e perspectivas na historiografia contemporânea. São Paulo: EDUC, 1997, p. 7.
SAMARA, Eni de Mesquita (Org.). As idéias e os números do gênero: Argentina, Brasil e Chile
no século XIX. São Paulo: Hucitec; CEDHAL; FFLCH-USP; Fundação VITAE, 1997.
SAMARA, Eni de Mesquita. O discurso e a construção da identidade de gênero na América
Latina. In: MATOS, Maria Izilda S. de; SOLER, Maria Angélica (Orgs.), op.cit., p. 13.
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Esmeralda Blanco B. de MOURA. Uma historiadora entre a família, as mulheres e as crianças no séc. XIX.
“o destino de muitas mulheres no Brasil, contrariando um modelo de ociosidade
descrito pela historiografia” se cumprira às voltas com a necessidade de “prover
o próprio sustento e o de sua família”.15
Resta pontuar o quanto o conjunto de sua obra está fundamentado em inegável
diversidade de fontes, manuscritas ou não, na leitura atenta da historiografia e em
discussão teórica sempre criteriosa e atualizada que, em seus estudos, cumpre seu
verdadeiro papel, o de unificar a análise, o de lhe imprimir coerência.
Eni de Mesquita Samara e eu fomos colegas de Graduação, de Pós-Graduação
e como docentes no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Compartilhamos encontros
acadêmicos no Brasil e no exterior, bancas de Mestrado e de Doutorado, cursos
no Museu Paulista da mesma Universidade durante sua gestão, a organização de
eventos acadêmicos e cursos no CEDHAL, assim como a direção deste centro de
estudos, a edição da Revista População e Família, coletâneas de artigos. Além
disso, compartilhamos a pesquisa em História da Família, das Mulheres, das
Crianças e em História de São Paulo. A proximidade profissional, mas acima de
tudo a afinidade temática, o olhar constantemente voltado para a mulher entre a
casa e o trabalho, entre os cuidados com as crianças e o desempenho nas atividades produtivas, transformou-se em amizade.
Para finalizar, devo pontuar que compartilhávamos, também, o entusiasmo
quando nos víamos diante de novas possibilidades e perspectivas de análise e
muitas convicções. Dentre elas, a de que fazer História da Família, das Mulheres,
das Crianças, voltar-se para os estudos de gênero, não é fazer uma história de
menor significado. Essa foi uma das lutas que empreendemos juntas, sentido em
que o CEDHAL foi nossa trincheira, convictas de que toda essa história não é
uma história vã, mas uma história que foi gestada em meio às tensões de nosso
próprio tempo, indicativas, no último quartel do século XX, de que era hora de
trazer, para o primeiro plano, temas e sujeitos históricos até então praticamente
ausentes do debate historiográfico.16 Pode-se dizer portanto, que toda essa história
nasceu de um compromisso e como tal se mantém.
:
15
16
SAMARA, Eni de Mesquita (Org.). As idéias e os números do gênero: Argentina, Brasil e Chile
no século XIX, op.cit., 1997, p. 26.
Vide MOURA, Esmeralda Blanco B. de. Por que as crianças?. In: MOURA, Esmeralda Blanco
B. de; CARVALHO, Carlos Henrique de; ARAÚJO, José Carlos Souza (Org.). A infância na
modernidade: entre a educação e o trabalho. Uberlândia: EDUFU, 2007.
338
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 333-338, jan./jun. 2012
ENI DE MESQUITA SAMARA E A PESQUISA HISTÓRICA1
Horacio Gutiérrez
Universidade de São Paulo
Eni de Mesquita Samara foi uma historiadora de corpo e alma. Meu conhecimento de seu trabalho remonta à década de 1980, quando eu realizava minha
dissertação de mestrado e participava no Seminário de História da Família, uma
instância de debates com apresentação de textos que ela dirigia com Iraci Costa,
professora da Faculdade de Economia da USP. Posteriormente, na década de 1990,
tive o privilégio de ser seu aluno de doutorado, além de seu colaborador no Centro
de Estudos de Demografia Histórica da América Latina (CEDHAL) e, finalmente,
nos anos 2000, pude compartilhar de seu convívio como colega no Departamento
de História da USP. Interessava-se por temas que a mim também cativaram, e
chegamos inclusive a escrever textos em coautoria. Contudo, mais do que as
lembranças do convívio universitário, ou o depoimento sobre a influência que ela
exercera em mim, gostaria de fazer uma brevíssima reflexão a respeito da importância de seu trabalho de pesquisadora, particularmente em duas áreas da História
com as quais sempre se identificou: a história demográfica e a história econômica.
A dimensão da atividade acadêmica de Eni foi plural e abrangeu a pesquisa
histórica com fontes manuscritas desde os inícios, mas também, de modo continuado, incluiu a docência, orientação de alunos, extensão e atuações marcantes em
sociedades científicas e no âmbito da gestão universitária. Centramo-nos aqui apenas
em sua contribuição como historiadora e, em particular, em um aspecto notório,
1
Texto lido em evento realizado no Departamento de História da Universidade de São Paulo em
abril de 2012, em homenagem à professora Eni de Mesquita Samara.
Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 339-341, jan./jun. 2012
339
Horacio GUTIÉRREZ. Eni de Mesquita Samara e a Pesquisa Histórica
conforme julgamos: sua relação com a história demográfica, a história econômica
e as metodologias escolhidas para aproximar ambas as áreas e delas se aproximar.
Olhando sua produção acadêmica numa visão de conjunto, veem-se alguns
eixos temáticos ou áreas de interesse que emergem de modo recorrente: os
excluídos, as minorias, as populações subalternas, como mulheres, escravos,
agregados, e sua relação com os grupos de poder. A intenção dessas pesquisas
foi dar visibilidade a segmentos pouco valorizados pela historiografia anterior,
mas também entender seu papel nos processos econômicos e sociais, resgatando
historiograficamente, quando pertinente, o seu protagonismo nesses processos.
O foco ao estudar as populações esquecidas tencionou revelar suas práticas
familiares, relações de parentesco formais e informais, inserção nos espaços
econômicos locais e regionais; descobrir as estratégias de sobrevivência criadas
por esses segmentos, confrontando os resultados com as explicações derivadas
de modelos analíticos usualmente empregados pela historiografia tradicional,
para então desconstruir generalizações feitas indevidamente, a seu ver, por essa
historiografia. Os períodos preferidos em suas pesquisas foram os séculos XVII,
XVIII e XIX, analisando diversas regiões do Brasil, particularmente a capitania
e província de São Paulo, recortes presentes em sua dissertação de mestrado
(defendida em 1975) e em sua tese de doutorado (1980). Mas conforme avançava
em suas pesquisas, o espaço de análise abriu-se para a América Latina como um
todo, de cuja historiografia incorporou hipóteses, temas e fontes, estabelecendo
um diálogo que manteria até o final.
A história econômica deve a Eni o exame minucioso de temas como a
produção e circulação da riqueza colonial entre as diversas camadas sociais e,
através dela, o desvendamento de estruturas de poder e de sujeição; a participação feminina nos mercados de trabalho e a conquista gradual do espaço público
pelas mulheres, pontuando, entretanto, as diferenças de classe social existentes no
mundo das mulheres, fazendo com que seus ideários variassem e até pudessem se
chocar entre si. Atenção particular mereceu também de Eni o estudo das heranças
e partilhas de bens e seu papel econômico na chefia de domicílios e na autonomia
que ela permitira, em muitos casos, às proprietárias viúvas ao longo da história.
Com relação à história demográfica, outra de suas áreas favoritas de pesquisa,
seu papel foi pioneiro, fazendo parte de um potente grupo de pesquisadores que na
década de 1980 consolidou a história da população no Brasil. A intenção dessas
pesquisas foi buscar padrões de comportamento, regularidades que permitissem
compreender a formação, evolução e significado das estruturas demográficas e
econômicas de sociedades do passado. Cabe aqui, sob essa perspectiva, lembrar
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Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 339-341, jan./jun. 2012
Horacio GUTIÉRREZ. Eni de Mesquita Samara e a Pesquisa Histórica
seus trabalhos baseados em inventários e testamentos, com a finalidade central de
identificar estratificações sociais e sua mudança no tempo, mas igualmente para
reconstituir perfis biográficos exemplares. O foco demográfico guiou-a também
em direção a estudos sobre migrações nacionais e internacionais, e por essa via
a busca de padrões e rotas de assentamento das populações selecionadas. Mas
seguramente o ponto alto de seus trabalhos demográficos refere-se à análise de
estruturas familiares e domiciliares, levantando nesse campo novas evidências
e construindo novas interpretações, como por exemplo, o predomínio da família
nuclear no universo colonial paulista. A perspectiva demográfica foi, no entanto,
muito além: permitiu a Eni adentrar em cheio no mundo das famílias e das mulheres, desvendando as estratégias presentes no casamento e no celibato, examinando
os divórcios e as separações, os mecanismos de sustento familiar assim como o
de preservação dos patrimônios, os preconceitos contra a mulher trabalhadora e a
sua luta pela cidadania; enfim, permitindo conhecer as mentalidades e os valores
dominantes em sociedades arraigadamente patriarcais e machistas, e com ampla
influência, na esfera privada e pública, da Igreja Católica.
Como Eni conciliou suas pesquisas econômicas e demográficas, como as
enlaçou? Além de buscar enfrentá-las com preocupações teóricas compatíveis, a
nosso ver há um nexo não menos relevante, e diz respeito ao uso de metodologias
quantitativas. Seu gosto para lidar com fontes primárias passíveis de quantificação,
assim como sua desenvoltura para adotar, na interpretação dos dados, indicadores
e métodos retirados da economia e da estatística descritiva, permitiram a Eni
transitar com bastante desembaraço tanto pela história demográfica como pela
econômica. Isto, ressalte-se, numa conjuntura como a das décadas de 1970 e
1980, quando tais metodologias apenas emergiam e eram, por isso mesmo, muito
debatidas ou, mais ainda, questionadas em sua legitimidade para ser aplicadas
à pesquisa histórica. Essa forma de fazer história, no entanto, consolidou-se,
naturalizando-se e se tornando rotina bem sucedida. Historiadores das gerações
seguintes, entre os quais me incluo, usam agora a quantificação livremente, sem
ter que pedir desculpas. Muito disso deve ser creditado às pesquisas pioneiras,
como as de Eni e sua geração. Assim, seu pioneirismo e suas contribuições não se
restringem apenas aos estudos de gênero – importantíssimos – ou à história da família – valiosíssima –, mas também, em nossa opinião, às metodologias utilizadas.
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