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O preço da corrupção para o Estado e para a sociedade a partir E T E M B R O 2 0 0 5 | V O L 1 | N º 6 1 6 7 7 - 9 1 2 6 TextuaL x S I S S N Suborno de estudos internacionais sobre o assunto n Ócio O aproveitamento do tempo livre nem w w w. s i n p r o r s . o r g . b r / t e x t u a l sempre é encarado com criatividade. Uma reflexão sobre o tema sob os olhos da ciência apoio artigo Educação inclusiva: os dilemas e as problemáticas relacionadas à inserção de portadores de necessidades especiais nas escolas regulares EXPEDIENTE A Revista Textual é uma publicação da Fundação Cultural e Assistencial Ecarta com apoio do Sindicato dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul – SINPRO/RS. Avenida João Pessoa, 943 Porto Alegre / RS CEP 90040-000 Tel 51 3226-1319 Textual / Fundação Cultural Assistencial Ecarta. v.1, n.1 (nov./2002). – Porto Alegre: Fundação Ecarta, 2002. v.: 22x26 cm Semestral ISSN 1677-9126 11. Educação-periódicos 2. Ensino privado-periódicos I. Fundação Cultural e Assistencial Ecarta. CDU: 37(05) Bibliotecária responsável: Melissa Martins CRB10/1380 Indexada ao CIBEC/INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Redação Fones: (51) 3211-1900 Fax: (51) 3211-2628 www.sinprors.org.br/textual [email protected] Impressão: Nova Prova Tiragem: 5.000 exemplares Coordenação Geral Valéria Ochôa Fundação Cultural e Assistencial Ecarta Diretoria Executiva Presidente – Marcos Júlio Fuhr Vice-presidente – Renata Cerutti Diretora Geral – Valéria Ochôa Nei Lisboa Amarildo Pedro Cenci Walter Galvani Sani Belfer Cardon Solon Viola Clarice Bau Porto Ricardo Franzoi Presidência do Conselho Curador: Presidente – Sani Cardon Vice-presidente – Clarice Bau Porto Darci Zanfeliz Conselho Curador Celso Woyciechowski Claudio Darci Gressler Sônia Zanchetta José Fortunati Antonieta Mariante João Ignácio Lucas Conselho Fiscal Celso F. Stefanoski Edição Executiva Valéria Ochôa [email protected] César Fraga [email protected] Conselho editorial Instituída em dezembro de 2003, pelo Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS), a Fernando Becker, Jaime Zitkoski, Jorge Campos, Dagoberto Nunes de Ávila, João Paulo Pooli, Marcos Júlio Fuhr, César Fraga, Valéria Ochôa, Celso F. Stefanoski Fundação Cultural e Assistencial Ecarta é uma organização jurídica de direito privado, sem fins lucrativos e que tem como Revisão missão a formação de cidadãos competentes, críticos, criativos e solidários, por meio do efetivo exercício da cidadania. O Gabriela Koza lançamento público da entidade ocorreu em maio de 2004, em Porto Alegre. Fotografia A Fundação Ecarta tem entre suas finalidades a promoção e apoio de ações no campo da educação, cultura, recreação e desporto, assistência, ciência e tecnologia. Para a concretização dos empreendimentos culturais e assistenciais, a Fundação Ecarta conta com o apoio do Sinpro/RS, dos professores e da comunidade em geral. Informações da Fundação podem ser obtidas pelo telefone 51.3226-1319. Aos leitores René Cabrales Tânia Meinerz SUMÁRIO ensaios 10 ÓCIO tempo livre com criatividade 36 CORRUPÇÃO quanto custa para o país? IEDA RHODEN ECLEIA CONFORTO dinâmica do meio educacional 6 INCLUSÃO alunos portadores de necessidades especiais BENTO SELAU Ilustrações Eduardo Oliveira Projeto Gráfico e Edição Gráfica Rogério Nolasco Souza Editoração o professor e o mundo da escola 22 MONITORAMENTO DO TRABALHO vigilância eletrônica LUCIANE LOURDES WEBBER TOSS EML Design Sindicato dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul Os artigos assinados são de exclusiva responsabilidade de seus autores 28 CÂMERAS NAS ESCOLAS pedagogia da desconfiança FERNANDO BECKER E TANIA BEATRIZ IWASZKO MARQUES Envie suas cartas para [email protected] ou endereço vide expediente questões fundamentais Martha Soares | Estudante de Comunicação e educadora preconceito, que muitas quiser ver. Não há melhor Trabalho em EaD e gostaria vezes parte dos próprios laboratório do que a que o tema fosse abordado professores. realidade. Sexta edição mais vezes em Textual. Por Paulo Assunção Menezes Pai de aluno portador de necessidades especiais – São Leopoldo Cármen Gomez Professora – São Paulo diretoria colegiada | Sinpro/RS tratar-se de uma modalidade nova de educação, com Tenho acompanhado a todas as edições da Revista Textual e gostaria de saudar os artigos sobre a Saúde do Professor e a Sobrecarga de Trabalho da última edição. José Outeiral e Dagoberto Nunes de Ávila muito ainda a ser trilhado e regulamentado, gostaria que Acessei a Revista Textual Tenho acompanhado a o assunto fosse novamente pela internet e fiz o revista pela internet, porque abordado a partir do projeto download dos artigos. Muito obviamente aqui em Minas de Reforma Universitária. interessante o ensaio da Gerais ela não circula. Ainda há muitas dúvidas professora Darli Collares sobre o futuro do setor. Mesmo assim, gostaria de sobre construtivismo na parabenizá-los pela última edição. A visão do longevidade e pertinência Margarete Alves Monitora – Porto Alegre professor como um investigador me fez perceber foram muito felizes ao levantar, reso tema da inclusão seja fazemos, mesmo que de qüentes na profissão do educador, abordado nessa revista, forma empírica, no nosso como o desgaste emocional e a ex- principalmente quando se cotidiano. A bagagem de trata da inclusão de alunos experiência acumuladas, portadores de necessidades quando bem observadas e ver, um certo avanço no que res. Esses assuntos que a revista vem aprofundando nos alerta de que na maioria das vezes várias questões não são levadas em conta analisando profundamente a Reforma Universitária que está em curso. Há, a meu analisadas, podem ser de políticas, as escolas, mas na uma riqueza ímpar. No texto do setor privado diante da prática o que se vê é um da pesquisadora, o que mais legislação vigente. Mas, por despreparo da sociedade, me chamou a atenção foi a outro lado, me parece que das escolas, dos governos, possibilidade de o cientista houve muto retrocesso no que está proposto se dos professores para estar na sala de aula como quando se fala dos problemas as- enfrentarem esse problema ator do próprio objeto a ser sociados à profissão de educador. de frente e sem hipocrisia. pesquisado, o que Não se trata de uma questão infelizmente, aos olhos da que pode ser resolvida com academia, nem sempre é canetaços como vem sendo bem-visto. Mas afinal, o feito, mas com ações próprio Piaget partiu de sua afirmativas e concretas. São experiência com os filhos conseguiu dar um perfil mais a situação, justamente a proposta milhares de crianças e para muitos dos seus privatista para o projeto? deste meio que busca ser um espa- jovens espalhados pelo escritos, o que valida cada Deixo para vocês essa Em ambos os textos, os autores não buscam uma resposta, mas sim compartilhar preocupações sobre versões anteriores divulgadas na imprensa. Será que o lobby das instituições prevaleceu e Brasil que sofrem com essa vez mais esse raciocínio. ço para a expressão. Mais uma vez, ausência de condições para Não raro a produção ver esse debate nas páginas Textual preocupa-se em agir como o seu crescimento como acadêmica restringe-se ao de Textual, afinal ainda tem cidadãos de forma integrada cientificismo e ao labirinto o trâmite no Congresso se a poeira da crise política blemáticas fundamentais e sérias para o trabalho de quem está inserido no contexto educativo. à sociedade. Não precisa sem fim das referêncais existir tratamento igual, mas bibliográficas e citações, adequado às necessidades enquanto a realidade e seus da cada um, com respeito problemas estão vivos e às diferenças e sem pulsando lá fora para quem Mas nem só de corrupção vive essa edição de Textual. As problemáticas da educação escolar inclusiva para alunos portadores de necessidades especiais é tema de artigo em que o professor Bento Selau expõe uma análise da questão a partir de uma abordagem histórica, que mostra como a humanidade vê os portadores de necessidades especiais em diferentes épocas até os dias de hoje. Ainda no universo escolar, instituições vigiam eletronicamente seus profissionais por meio de câmeras e computadores, transformando escolas e universidades em verdadeiros big brothers. Inaugura-se uma nova modalidade de constrangimento e intimidação aos docentes. Dois artigos tratam do assunto, o primeiro é da advogada trabalhista Luciane Webber Toss, que aborda questão jurídica, e o segundo, de autoria do professor Fernando Becker e da psicóloga Tania Beatriz Iwaszko Marques, refere-se à questão pedagógica. compararmos com as provocação e meu desejo de fomentadora de debates sobre pro- De acordo com o ensaio da economista Ecléia Conforto, publicado nesta edição de Textual, a corrupção levou a China à estagnação econômica, infestou a administração do Império Romano, dificultou o desenvolvimento político da Grã-Bretanha e dos EUA, além de ter acelerado o colapso da ex-União Soviética. Porém, a economista afirma, baseada em estudos recentes, que nas últimas duas décadas é possível observar uma movimentação mundial em busca de solução ou minoração desse problema. As iniciativas para combater a corrupção são várias: tratados e convenções firmados entre países e blocos econômicos, que compreendem preocupações sobre o impacto desse fenômeno na democracia, justiça social, desenvolvimento econômico, comprometimento do Estado e estabilidade política. fosse feito um artigo se refere à regulamentação especiais. Há a Lei, as C dos assuntos abordados e a pesquisa diária que cessiva carga horária dos professo- Escândalos envolvendo corrupção de políticos tomaram proporções nunca antes vistas, expondo um cenário que torna urgente a teorização e entendimento desse fenômeno em seus vários aspectos. Prática que está presente em maior e menor grau em todos os sistemas políticos, seja autoritário ou democrático, a corrupção se apresenta ao longo da história do mundo sempre impactando a vida política, moral e econômica dos Estados. Muito debatida do ponto de vista ético, legal e moral, ela nem sempre é vista sob o olhar da economia, justamente a esfera motivadora da corrupção. deixar a sugestão de que Acho fundamental que pectivamente, questões que são fre- O custo da corrupção baixar. Carlos Gonçalves Padilha Professor universitário – Belo Horizonte O ócio construtivo é o tema do ensaio da psicóloga e doutora no tema Ieda Rhoden. Ela se baseou em vasta bibliografia para resgatar a essência do conceito “tempo livre”. Boa leitura! dinâmica do meio educacional Atualmente, debate-se sobre firmaram-se algumas considerações, listadas e debatidas na seqüência: 1. Crê-se na possibilidade de educação escolar inclusiva para todos os alunos, na Educação Infantil e Séries Iniciais do Ensino Fundamental, mas com estrutura adequada; 2. Acredita-se que educação escolar inclusiva deve pressupor fazer com que os alunos se envolvam nas mais diversas atividades em grupos; 3. Deve-se ter atenção à afetividade nos grupos; 4. Acredita-se que brincar é momento oportuno para que as crianças possam interagir em grupo. uma proposta de educação escolar inclusiva, que se define por uma educação escolar, na mesma sala de aula, para todos os alunos, independentemente das diferenças que possam apresentar A possibilidade de educação escolar inclusiva Educação escolar inclusiva: atenção aos grupos :: bento selau1 | professor 1 Mestre em Educação pela PUCRS. Professor pela Ufrgs e Colégio Sévigné. 2 Educação escolar inclusiva é opção de terminologia que se utilizou na pesquisa. REVISTA TEXTUAL setembro 2005 Escritos relacionados às pessoas que são consideradas com necessidades especiais não são recentes. Autores da Filosofia Clássica já mencionavam esta inquietação, como, por exemplo, Platão (2000), que admitiu o abandono ou a eliminação destes sujeitos, a fim de se conservar à raça humana toda a sua pureza. Através dos anos, a maneira de compreendermos deficientes, superdotados, enfim, as pessoas ditas com necessidades educativas especiais, tem se modificado, porém, fala-se mais de inclusão hoje, mas não se pode admitir que exclusão é algo que passou, conforme afirmou Sassaki (1999, p.31), como alguma situação que “ocorria” 6 na sociedade. Vê-se a enorme intenção de incluir, mesmo na escola, mas se pensa que nossa sociedade age de maneira ambígua e dupla, excluindo e incluindo ao mesmo tempo. Atualmente, debate-se sobre uma proposta de educação escolar inclusiva², que se define por uma educação escolar, na mesma sala de aula, para todos os alunos, independentemente das diferenças que possam apresentar. O texto oferecido é provocado pela pesquisa que se realizou na PUCRS (Selau, 2005), relacionada à questão dos grupos em educação escolar inclusiva, no contexto das Séries Iniciais do Ensino Fundamental. De acordo com estes estudos, Os estudos indicam que a educação escolar inclusiva em Educação Infantil e Séries Iniciais é possível, porém num ambiente racionalmente estruturado, que se considera prérequisito para uma inclusão que quer ter sucesso. A partir da pesquisa, notou-se que a presença de apenas um professor em sala que tem aluno dito com necessidade educativa especial deixava o trabalho docente exaustivo, o que fazia com que suas operações produtivas fossem decaindo com o passar das horas, perdendo em motivação, tanto professor quanto alunos. Mais de um professor seria um auxiliar importante em educação escolar inclusiva. A opinião vai ao encontro do pensamento de Hugo Bayer, professor da Ufrgs, que, concordando com a idéia, chama-a de Bidocência. Assim, um professor poderia conduzir o grande grupo, e, dependendo da necessidade especial da criança, outro poderia tutorar suas relações e aprendizagens, como se faz na Espanha. Outro aspecto é a formação adequada dos professores. E, para isto, um debate se apresenta: as instituições devem propor a formação dos seus profissionais, ou os professores devem procurar formação? Apesar de ainda não se ter resposta para o questionamento, acredita-se que não se pode crer que sem formação o professor deve dar conta da tarefa de comandar uma turma com crianças que apresentam uma diversidade muito mais ampla daquela que teve como formação. Finalmente, uma educação escolar inclusiva que quer ser positiva deve compreender a interação benéfica entre professores, pais, coordenação, colegas de aula, formando um conjunto preocupado com a educação escolar adequada para todos. Pelos grupos em educação escolar inclusiva Neste estudo, entende-se por grupo uma situação de interatividade de dois ou mais componentes, no mínimo, uma criança considerada normal e uma dita com necessidade educativa especial. O significado do grupo no seu papel de aproximação das pessoas parece estar de acordo com a premissa de Vygotski (1997), que acreditava que as aprendizagens que propiciam desenvolvimento se dão inicialmente entre as pessoas, para posteriormente acontecerem como processos internos individuais. A educação escolar inclusiva não pode ser pensada somente na colocação do aluno na sala de aula, mas se preocupar com que todos os alunos se envolvam, entre si e com o professor. Os grupos têm papel fundamental porque se efetivam em estratégias que produzem envolvimento entre os participantes de uma turma. A pesquisa mostrou que a maneira de distribuição da turma na sala pôde influenciar para que os colegas estabelecessem, ou não, relações com os demais. A natureza da tarefa (individual, competitiva ou cooperativa) esteve ligada a este fato, porém com menos intensidade do que influenciou a aproximação física das pessoas. Assim, a disposição das pessoas em grupos com quatro componentes foi fator que facilitou a interação e a troca entre os alunos. Para Vygotski (1997), a relação com o outro implica desenvolvimento, sendo possível se dizer que a diversidade em educação escolar inclusiva enriquece, mas se ocorrer ação e relação entre as pessoas. Quando as crianças estavam dispostas em grupos, aconteceram várias situações de relacionamento: os componentes auxiliavam-se para a resolução de problemas, de tarefas, motivavam-se para o desenvolvimento das mesmas, também para que as regras previamente definidas se fizessem valer, aconteciam intervenções de dúvida para com os participantes, e tudo isto estava sendo vivenciado pela criança dita com necessidade educativa especial. O fato de 7 setembro 2005 REVISTA TEXTUAL as crianças estarem em grupo auxiliava também na promoção de situações do convívio humano, em que as relações possuem um papel único e fundamental. É importante dizer que se viu que no grupo também ocorreram situações pelas quais o aluno dito com necessidade educativa especial foi muitas vezes deixado de lado, assim como aconteceram intervenções de explicações de tarefas ou retomada de combinações para com este que não tiveram sucesso, efetuadas tanto pelo professor quanto pelos colegas de grupo. Por uma educação escolar inclusiva afetiva Crê-se que não é possível se falar de grupos em educação escolar inclusiva sem que se refira à questão da afetividade. Os grupos são formados por pessoas. Pessoas precisam de afeto, precisam do outro. Foi destacado pelas professoras entrevistadas o valor da afetividade como situação que deve ser ligada com o processo educativo, com o fim de facilitar o trabalho de grupos, a aprendizagem, e, inclusive, ressaltou-se que o professor também precisa de afetividade, e que seu sentimento é determinante para o bom desempenho de sua tarefa. Vygotski (1997) argumenta que qualquer atividade pressupõe a presença de um estímulo afetivo, principalmente com crianças que tenham atrasos mentais. Afetividade pareceu uma necessidade de todos os alunos. O professor manifestava afeto, bem como os alunos, e estes se demonstravam motivados para tal a partir do momento em que o docente aprovava a situação. O auxílio em situações corriqueiras para com o aluno dito com necessidade educativa especial foi, muitas vezes, necessário, tanto do professor quanto dos colegas, e representou uma situação afetiva muito importante nos grupos. Os relatos sobre o clima de trabalho entre os professores apontaram que o ambiente de trabalho não é hostil, mas poderia ser melhor, com mais momentos para que se estabelecessem trocas informais. Apareceu, ainda, o tema do medo da demissão, sendo que este pode afetar o desem- REVISTA TEXTUAL setembro 2005 8 penho docente. Segundo Mosquera e Stobäus (2003), o clima escolar pode influenciar o professor, e este os alunos, mesmo que ele não se dê conta disto. Os alunos ditos com necessidades educativas especiais demonstraram precisar de amizade íntima. Entretanto, alguns dos colegas apresentavam uma certa aversão a ter amizade com a aluna considerada com necessidade educativa especial, pois se percebeu, em alguns momentos, um distanciamento por estar com a colega, além de se observar situações em que os colegas a menosprezavam. Afetividade também pode ser uma situação conflituosa que ajuda educativamente, não podendo ser confundida com hostilidade. Foi citado que afeto e conflito são situações humanas, e que ambas não podem ser negadas para o aluno dito com necessidade educativa especial. Com isto, afetividade parece estar ligada também à questão de limites. Além disso, ficou demonstrado que, na medida em que o aluno dito com necessidade educativa especial compreende, e tem capacidade de participar das regras das atividades, ele deve ser cobrado para que as cumpra. O brincar nos grupos O brincar é atividade principal da criança. Não pode ser considerado diferente em educação escolar inclusiva. Inicialmente se perceberam dificuldades entre as crianças no momento do brincar, como: o aluno dito com necessidade educativa especial não participava, pois os colegas, de tão agradados que estavam com o seu brincar, não tinham intenção de mudar as regras para que ele pudesse ser incluído; as crianças, em geral, procuravam mais os seus melhores amigos para brincar do que tentar inserir outros; o aluno dito com necessidade educativa especial, muitas vezes, não tinha iniciativa para brincar com ninguém. Convidar o colega para brincar pareceu um elemento motivador, fundamental para o desenvolvimento da brincadeira em grupos. Professor e colegas convidavam o aluno dito com necessidade educativa especial para brincar, e isto foi positivo. Porém, apesar da boa influência do convite, nem sempre resultou em sucesso, pois muitas vezes, a despeito do convite do professor ou dos colegas, a criança não brincava. Talvez o fato mais relevante nas observações do brincar coletivo foi a evidência de que, independentemente das diferenças que as crianças apresentavam, elas se envolviam numa mesma brincadeira. Assim, em muitas aulas, se notou que o aluno dito com necessidade educativa especial não brincou sozinho em nenhum momento. Entretanto, deve-se dizer que ficou evidente que os colegas de grupo também excluem durante o brincar. Isto foi percebido quando o aluno dito com necessidade educativa especial não fazia bem a atividade e era deixado de lado, ou quando os ditos normais desejavam praticar um jogo de rendimento com aqueles que eram considerados melhores, sendo que os que não eram tão bons ficavam de fora. Percebeu-se também que, para que se constatassem grupos no brincar, o professor apresentou papel de destaque. A tarefa docente em educação escolar inclusiva envolve também o cuidado para que se desenvolvam atividades que contemplem as diferenças. De outra maneira, viu-se que o professor também pode ser excludente, principalmente quando organizava atividades que não respeitavam as diferenças, ou quando colocava a aluna considerada com necessidade educativa especial a realizar tarefas à parte, julgando que a estivesse incluindo. Comentários finais Salienta-se que o assunto da educação escolar inclusiva merece grande atenção, pois parece que o tema ainda não é tranqüilo. Crê-se que, ao se optar pela proposta, algo que deve ser inerente ao modelo pedagógico adotado em sala de aula é fazer com que as pessoas possam se relacionar, porque o fato de que estejam juntos alunos considerados normais e alunos ditos com necessidades educativas especiais não garante que troquem experiências. Considera-se que a formação de grupos entre as crianças para o trabalho pedagógico, e promover o brincar coletivo, é fundamental, inclusive para o desenvolvimento de relações afetivas entre alunos e também professor. 9 setembro 2005 REVISTA TEXTUAL ENSAIO ENSAIO Textual: A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 10-21, setembro 2005 Resumo O presente ensaio resgata alguns conceitos como tempo livre, lazer e ócio, relacionando-os com o estilo, a qualidade de vida e o potencial para o desenvolvimento humano. Está baseado num aprofundado estudo bibliográfico e numa pesquisa de campo realizada com aproximadamente 400 adultos de 30 a 60 anos, professores e funcionários de uma instituição de ensino privado e católico. Os resultados apontam para a realidade na qual os sujeitos pesquisados gostariam de ter mais tempo livre; embora, quando o tem, não costumam diversificar muito suas práticas, prevalecendo a realização de atividades típicas da intimidade do lar na busca do descanso e do entretenimento. Do ponto de vista da subjetividade, as experiências de ócio dos professores e funcionários participantes deste estudo se caracterizam basicamente pelo desfrute e encontro interpessoal. Também confirmando a teoria, além destes atributos, contata-se a presença da percepção de liberdade e da motivação. 1. INTRODUÇÃO Parece-nos oportuno recordar um dos princípios que nos acompanharam na realização deste trabalho: “Ora et labora”, cuja autoria se atribui a São Benito (480-547 d.C.). Uma frase simples como esta representa antes de tudo o reconhecimento de que não somos feitos somente para transformar a natureza, como se pensava nos primórdios do pensamento científico, ou para 10 trabalhar, como ainda se pensa, posto que a vida nos convida também ao exercício da contemplação e da autotransformação. Se não cremos que existem outros verbos conjugáveis além de trabalhar, produzir, ensinar, controlar e possuir, será difícil compreender, valorizar e, principalmente, desfrutar esta leitura. Conhecendo algumas das concepções e significados controvertidos que o ócio costuma ter no imaginário de cada um, sabemos que podemos encontrar em nosso meio quem confunda ócio com ociosidade ou preguiça. Da mesma forma, não é difícil perceber que algumas pessoas sofrem de um mal-estar, atualmente já reconhecido como doença, a “enfermidade do tempo”, cujo sintoma tanto pode ser a sensação permanen- Textual: A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 10-21, setembro 2005 1 ieda rhoden | doutora em ócio e potencial humano A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida te de que o tempo nunca é suficiente para o que se deseja realizar, como também o desconforto ante o “vazio” do tempo livre quando ele existe. Academicamente, encontramos tanto conceitos que se contradizem como que se complementam. O entendimento sociológico aponta para o sistema de organização do trabalho e sua ideologia como o responsável pela realidade do tempo livre, do lazer e do ócio na sociedade. Enquanto isso, a Filosofia e a Psicologia sugerem múltiplas possibilidades para o devir humano além do trabalho e da família, como o são as experiências pessoais de ócio num tempo livre e pessoal. No entanto, na cultura ocidental, a formação predominante esteve, e quem sabe ainda está, centrada nos mercados de trabalho e de consumo. Não sabemos se o que aprendemos sobre como viver bem é a melhor forma possível de se viver. Mas percebemos que não fomos educados para desfrutar o tempo livre através de experiências de ócio, e algumas vezes estamos tão identificados ou envolvidos com nosso estilo de vida, que já nem o questionamos. É nesta direção que desenvolvemos este estudo, isto é, no intento de desvelar e valorizar um âmbito da vida que merece e deveria – se pensássemos em termos de saúde e qualidade de vida – ser mais e melhor vivido: o ócio como experiência subjetiva e potencialmente construtiva. 2. CONCEITUALIZAÇÃO E ESTADO DA QUESTÃO O ócio é um fenômeno de natureza humana quase tão antigo quanto sua própria natureza. Entretanto, a evolução social produziu modificações com respeito à sua valorização e formas de manifestação. Variáveis sociais, culturais e econômicas têm tido um papel importante nestas mudanças. Encontramos na literatura muitas concepções de ócio, que nem sempre se opõem, mas revelam contextos históricos e sociais diferentes, e, principalmente, distintas visões de homem. Convém remarcar que a palavra ócio é um termo adotado e aceito com mais força na Espanha que em outros países. Estudar o ócio implica, portanto, utilizar distintas denominações que podem ter ou não o mes- mo significado, dependendo de quem o aplica e em que contexto. Neste estudo consideraremos sinônimas as palavras ócio, em espanhol; leisure, em inglês; loisir, em francês; e lazer, em português, recordando que todas, exceto ócio, procedem do termo licere, que em latim significa “ser permitido”, coincidindo, portanto, com uma das acepções do ócio, quer dizer, o ócio como uma experiência permitida e que permite, seja o encontro, o desfrute ou o desenvolvimento pessoal. Em suas origens históricas, o ócio era entendido pelos gregos como um tempo desocupado, dedicado a si mesmo e vinculado à formação humana através da contemplação da sabedoria ou dos valores supremos: verdade, bondade e beleza. Desde aí vem a palavra grega skolé, que mais tarde deu origem ao termo escola. Esta contribuição histórica nos sugere uma primeira pergunta: seria o ócio uma experiência de autêntica aprendizagem? Para os romanos, o ócio ou otium era um tempo de não-trabalho com a finalidade de restabelecer forças para o trabalho ou negotium, a negação do ócio. Ainda existe uma diferença substancial entre o modelo de ócio grego e o modelo de ócio romano: o primeiro se apresenta como um fim em si mesmo, e o segundo como um meio para alcançar outro fim. As três formas atuais de entendimento do ócio mais reconhecidas no meio acadêmico e científico são: A) o ócio como uma categoria de atividade que pressupõe algumas características pertinentes à própria atividade; em outras palavras, é a prática de uma particular atividade (Horna, 1994), considerada social e culturalmente como lazer ou recreação. Por exemplo, o esporte, a arte, o turismo, as festas, etc. Nesta concepção, o ócio se confunde com a atividade realizada, e qualquer pessoa que esteja praticando futebol, pintando um quadro ou viajando, estaria teoricamente em situação de ócio. Este entendimento desconsidera o fato de que o indivíduo pode praticar estas atividades visando a recompensas financeiras, ou o fato de que a atividade pode gerar aborrecimento ou provocar danos à saúde. B) o ócio como um espaço de tempo na vida, separado e diferente do tempo de trabalho ou do tempo comprometido com outras obrigações (familiares, sociais, po11 ENSAIO A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida “Ócio se define como mais que um conjunto de atividades, se define como uma maneira de fazer e como uma maneira de estar no tempo (...) o essencial do Ócio não o encontramos no conteúdo da atividade, e sim na postura com que esta se realiza (...)” (Trilla, 1984, p.24). Entendemos, como Trilla e outros autores, que a dimensão pessoal é um fator determinante para a identificação e apreciação de um ócio humanista ou construtivo, ainda que reconheçamos que o indivíduo estabelece relações de interdependência e complementaridade com as condições sociais, culturais e econômicas em que vive. Não obstante, a concepção humanista de homem sustenta que o ser humano está potencialmente dotado de capacidades de superação e transformação de sua própria realidade em direção à realização e autorealização (Maslow, 1976), desde que sejam respeitadas as condições para uma vida digna, na qual as necessidades básicas, objetivas e subjetivas, estejam satisfeitas. A partir deste referencial, chegamos a um entendimento humanista e positivo do ócio, tal como já propunha Aristótoles em sua época, e mais recentemente retomado por Huizinga (1987), Kriekemans (1973), Csikszentmihalyi (1998) e Cuenca (2000). Se compartirmos de um “dever ser” mais humano e de uma sociedade mais íntegra, estudar e valorizar as experiências pessoais de ócio pode nos ajudar a renovar nossas visões de homem e de mundo e aportar novas formas de viver, evidentemente, com mais qualidade humana. Neste sentido, a idéia de um ócio construtivo é mais que um espaço de tempo livre ou a realização de uma atividade específica. O ócio entendido assim é uma via de resgate do equilíbrio vital já tão alterado pelo atual modus vivendi e uma possibilidade de recuperação da dimensão humana, ética, social e ecológica do cotidiano. Neulinger (1984), primeiro autor a abordar o fenômeno a partir da Psicologia, define Textual: A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 10-21, setembro 2005 12 complexidade, o estudo do ócio ainda permite que se faça uma leitura humanista do tema, como intencionalmente fazemos neste trabalho. Como disse Trilla acertadamente: Textual: A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 10-21, setembro 2005 líticas, etc.). Nesta concepção, o ócio se opõe ao trabalho e exige uma delimitação temporal e espacial destinada à recreação, entretenimento ou descanso. Para alguns autores, qualquer tempo de não-trabalho é um tempo de ócio. Para outros, é preciso descontar os tempos utilizados nos deslocamentos, nas obrigações familiares e sociais e nos cuidados pessoais (higiene, saúde, etc.). Em qualquer destas concepções, o ócio é sinônimo de tempo livre, portanto, define-se quantitativamente e caracteriza-se por ter um começo, um meio e um fim estabelecidos cronologicamente e marcados pela não-obrigatoriedade e liberdade; e finalmente C) o ócio como uma experiência humana, de caráter pessoal e subjetivo, com características psicológicas que a definem e a diferenciam como fenômeno psicossocial. Esta concepção não colide totalmente com as apresentadas anteriormente, e sim complementa e amplia consideravelmente o entendimento do que é ou pode vir a ser o ócio. O tempo disponível e as atividades realizadas são variáveis que intervêm na experiência, mas não a definem, nem a determinam. Por exemplo, uma pessoa pode praticar esporte ou alguma modalidade artística e não estar em situação de ócio se o faz por compromisso profissional ou sem experimentar determinadas sensações e sentimentos próprios de uma experiência de ócio. Do mesmo modo, é possível estar em um tempo de não-trabalho, como “estar em casa assistindo à televisão” e não estar em situação de ócio construtivo, seja por associar-se a um sentimento negativo como tédio ou irritação, seja por não ter vontade de estar fazendo exatamente isso. Além disso, uma pessoa também pode vivenciar momentos de liberdade e desfrute no trabalho ou no cuidado dos filhos, de tal maneira que estes momentos se configurem como autênticas experiências de ócio. É evidente que o ócio é um fenômeno que pode ser entendido a partir de diferentes disciplinas, como a Psicologia, a Pedagogia, a Economia, etc., porém como objeto de estudo se mostra propício a uma abordagem transdisciplinar, na medida em que cada uma das disciplinas oferece contribuições importantes para a compreensão deste fenômeno e nenhuma delas pode dar conta do fenômeno isoladamente. Apesar de sua ENSAIO A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida o ócio como um “estado mental particular” que se manifesta como um fenômeno psicossocial e de natureza subjetiva. Investigações dos últimos 20 anos (Argyle, 1987; Csikszentmihalyi, 1988; Tinsley, 1988) confirmam a realidade fenomenológica do ócio, seu caráter positivo e seus benefícios para a qualidade de vida, para a promoção da saúde e para o desenvolvimento humano. A vivência de ócio pode se dar no cotidiano ou em circunstâncias extraordinárias. Algumas vezes se traduz como “estados ótimos”, em que as capacidades humanas atingem seus picos (Csikszentmihalyi, 1997; Maslow, 1999), e, outras vezes, como estados de recuperação biopsicossocial (Argyle, 1987; Dumazedier, 1964; Mannell, 1980; Neulinger, 1984; Tinsley, 1988). Como fenômeno psicológico, o ócio pode se manifestar em distintas idades, diferentes status socioeconômicos e distintas culturas. Entretanto, pode haver diferenças individuais quanto aos atributos da experiência de ócio. Isto significa dizer que, o que distingue a experiência de ócio de outro tipo de experiência humana, ou duas ou mais experiências de ócio entre si, são: – as razões que a impulsionam (causas) e as condições psicossociais nas quais ocorrem; – a vivência pessoal, isto é, os pensamentos, sensações, sentimentos e emoções implicados na experiência; – os benefícios da experiência percebidos pelo próprio sujeito; e – a extensão e profundidade da mesma. Manell (1980) entende que a característica principal da experiência de ócio é a implicação psicológica, e Tinsley (1986) afirma que a experiência pode variar “qualitativamente” quanto ao significado e “quantitativamente” em relação ao grau de intensidade ou potência. Muitos autores estão de acordo com a idéia de que o ócio é uma experiência com características psicológicas próprias, ainda que nem todos estejam de acordo na identificação e descrição destas características. A partir destas formulações básicas da teoria do ócio, observamos que o caráter subjetivo destas experiências exigia que pensássemos nelas em termos qualitativos e que investigássemos algo mais que a quantidade de horas dedicadas ao ócio e o tipo de atividade realizada no tempo livre. Percorrendo as referências disponíveis, principalmente na Espanha e no Brasil, não se encontram instrumentos adequados para aprofundar o estudo das experiências pessoais de ócio, o que dificulta a confrontação teórica e prática deste fenômeno em contextos latinos ou em realidades específicas como a dos professores, por exemplo. Encontramos algumas ferramentas de avaliação do ócio de autoria norte-americana, não traduzidas, nem validadas em outros contextos, e que tão pouco permitem um aprofundamento qualitativo do tema, posto que são instrumentos de investigação com fundamentos metodológicos quantitativos. Por estas razões, desenvolvemos um instrumento específico e mais flexível, que nos permitisse penetrar no interior das experiências de ócio, a partir da percepção dos próprios sujeitos, e extrair delas suas características ou qualidades psicológicas essenciais. Nos referimos ao MICEO – Método de Identificação das Qualidades das Experiências Pessoais de Ócio. O instrumento em questão não somente dá prioridade à dimensão subjetiva e psicológica do ócio, como também parte de uma perspectiva positiva e humanista do fenômeno. Assim sendo, passamos a considerar como “qualidade” das experiências de ócio o que se apresenta no campo cognitivo, sensorial e emocional dos sujeitos pesquisados e espontaneamente atribuído à experiência em si. Isto inclui as condições psicossociais que a antecedem, os atributos que a caracterizam e os benefícios experimentados e relatados pelos indivíduos como próprios da experiência de ócio. As condições prévias se referem aos aspectos subjetivos ou concretos que geram ou favorecem a experiência de ócio, isto é, seus fatores causais. Os atributos aludem aos pensamentos e sentimentos que ocorrem antes, durante ou depois da experiência como conseqüência dela, isto é, a natureza da experiência de ócio a partir da percepção de seu protagonista. Os benefícios são as conseqüências ou os resultados que a experiência proporciona ao sujeito, mesmo que, ao começá-la, não estivesse buscando ou colocando atenção sobre um provável benefício, como, por exemplo, o bem-estar, a melhora da saúde, a qualidade de vida ou o desenvolvimento pessoal. Todos os atributos e benefícios se manifestam através de sen13 ENSAIO 14 zá-los, selecionamos os que pareciam ter maior aceitação, além de alguma consistência e coerência do ponto de vista da Psicologia, ainda que não estivessem devidamente conceituados. Então, com a intenção de facilitar a compreensão das experiências de ócio, agrupamos algumas de suas qualidades ou atributos segundo suas interações psicodinâmicas e seus possíveis efeitos psicológicos sobre o sujeito protagonista da experiência. O resultado foi o destaque e aprofundamento teórico de 11 constructos ou conjunto de qualidades: liberdade e percepção de liberdade; motivação, significado intrínseco e autotelismo; desfrute: estados afetivos e emocionais positivos; desenvolvimento pessoal e auto-realização; relações interpessoais; descanso e relaxamento; ruptura, evasão e distração; ativação, desafio e esforço; implicação psicológica e absorção; identidade, autoconceito e auto-expressão; e, finalmente, os estados introspectivos: o encontro consigo mesmo, com a natureza e com a beleza. Na realidade, estes são os atributos capazes de distinguir uma experiência de outra quando o assunto é o ócio como experiência pessoal e construtiva, ou, em outras palavras, quando estivermos falando do uso do tempo livre favorável a uma melhor qualidade de vida e ao desenvolvimento pessoal. 3. OBJETIVOS DO ESTUDO Os objetivos deste estudo foram essencialmente: n Provar empiricamente um instrumento desenvolvido para investigar qualitativamente os componentes subjetivos das experiências de lazer ou ócio: o Método de Identificação das Qualidades das Experiências Pessoais de Ócio, e n Diagnosticar o estado da questão do ócio nas suas três concepções: tempo livre de obrigações, atividades praticadas e qualidades das experiências pessoais de ócio junto a professores e funcionários de uma instituição de Ensino Superior. Desde já anunciamos nosso particular interesse em divulgar e discutir neste ensaio os resultados relativos a este último objetivo: o diagnóstico do lazer e do ócio de um contingente de professores e funcionários do ensino privado. A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida Figura 1: Principais características sócio-demográficas da amostra Sexo Idade (anos) Nível de estudos Origem étnica Ocupação na universidade Local de residência + De 31 a 40 48% De 41 a 50 34% Médio 16% Superior 14% Docência 39% Gestão 23% Técnica 13% Porto Alegre 39% Vale dos Sinos 53% Especialista 20% Alemã 40% Italiana 18% Portuguesa 14% Mestre 36% Mista 20% Doutor 14% Outras 8% 55% 45% De 51 a 60 18% 4. O MÉTODO A pesquisa se desenvolveu apoiada na triangulação metodológica, recebendo tratamento tanto qualitativo como quantitativo, dependendo dos objetivos de cada etapa. No estudo-piloto foi realizada uma extensa investigação teórica e uma aproximação empírica. Textual: A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 10-21, setembro 2005 sações, sentimentos, emoções ou idéias derivadas e associadas às experiências de ócio. Alguns autores se dedicaram à definição e descrição do ócio como experiência pessoal, entre os quais se destacam: Iso-Ahola (1980), Neulinger (1984), Tinsley e Tinsley (1986), Shaw (1986), Mannell (1980), etc. A maioria deles coincidem ao definir os principais atributos ou qualidades das experiências de ócio. Tinsley e Tinsley (1986) sugerem como principais qualidades do ócio a absorção ou concentração no interior da experiência; o foco fora do Self; os sentimentos de liberdade ou ausência de inibição; o enriquecimento da percepção de objetos e acontecimentos; o aumento da intensidade das emoções; o aumento da sensibilidade para com os sentimentos; e diminuição da consciência do passar do tempo. Shaw (1986) considera quatro fatores como determinantes no ócio: a percepção de liberdade, a avaliação social (ou ausência desta), o desfrute e a auto-expressão. Em um de seus estudos, Shaw (1986) encontrou fatores mais evidentes do significado conotativo do ócio: o prazer, a percepção de liberdade e a ausência de avaliação social, compreendendo que a presença da avaliação social é importante na medida em que pode ser uma barreira para a auto-expressão. Observamos também que alguns estudos demonstram que a implicação e o desfrute no ócio estão relacionados com a percepção de competência (Csikszentmihalyi, 1997; Iso-Ahola, 1980), no sentido de que as pessoas tendem a escolher atividades para as quais se sentem capazes, e que quando percebem que têm as habilidades requeridas experimentam sentimentos de controle sobre si mesmas, de força, de liberdade, de excitação, de sociabilidade e de prazer. Por outro lado, se a atividade exigir muito mais ou muito menos do que a pessoa é capaz, os efeitos serão desastrosos. Do ponto de vista psicológico, deve haver, portanto, um equilíbrio entre as exigências da experiência e as capacidades do protagonista. Esta premissa põe em relevo a necessidade das pessoas se conhecerem e/ou serem conhecidas o suficiente para que se proceda uma avaliação e adequação das atividades ou práticas enquanto opções de ócio. De um leque de mais de 50 qualidades ou atributos encontrados na literatura especializada, depois de identificá-los e organi- ENSAIO Textual: A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 10-21, setembro 2005 A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida 4.1 POPULAÇÃO E AMOSTRA A pesquisa foi realizada numa instituição de Ensino Superior, localizada na região metropolitana do Rio Grande do Sul. Contamos com um total de 413 sujeitos voluntários de 30 a 60 anos de idade. Destes, 62 sujeitos tiveram participação na etapa-piloto e 351, na etapa definitiva. A amostra final contou com 351 sujeitos válidos ou 23% de um universo de aproximadamente 1.400 pessoas adultas, vinculadas a uma universidade jesuíta na condição de professores ou funcionários. A figura 1 detalha as características sócio-demográficas da amostra definitiva. Administrativa 26% Renda mensal (R$) Até 1.830 35% 1.831 a 3.675 23% 3.676 a 7.854 35% Outras regiões 8% mais de 7.854 7% esta pesquisa a partir de modelos prévios utilizados em outras investigações; n Inventário de atividades de lazer/ócio praticadas – elaborado especificamente para este estudo a partir de instrumentos utilizados em pesquisas anteriores sobre o emprego do tempo livre e atividades de ócio ou lazer; n MICEO – relatos pessoais sobre as experiências de ócio, instrumento qualitativo desenvolvido ao longo deste estudo e testado na etapa definitiva da pesquisa; n WHOQOL 100 – Questionário sobre a Qualidade de Vida da Organização Mundial de Saúde, instrumento internacional validado no RS por uma equipe de pesquisadores da Ufrgs; n Centralidade do Trabalho – instrumento sobre a importância do trabalho e outras áreas da vida; ferramenta utilizada internacionalmente e validada para o Brasil por uma equipe de pesquisadores da UnB. Os referidos instrumentos foram aplicados no campus da universidade, em pequenos grupos, em duas sessões de aproximadamente uma hora de duração cada. 4.2 TÉCNICAS E INSTRUMENTOS Para a realização do estudo-piloto, fizemos Grupos Focais; aplicamos questionários sobre o tempo livre disponível e as atividades praticadas e solicitamos relatos sobre as experiências pessoais de lazer ou de ócio. Para a operacionalização da pesquisa de campo em sua etapa definitiva, foram utilizados os seguintes instrumentos: n Questionário de dados sócio-demográficos – elaborado especificamente para esta pesquisa; n Questionário sobre tempo livre de obrigações – elaborado especificamente para 4.3 TRATAMENTO DOS DADOS Os dados receberam distintos tratamentos conforme os objetivos a serem alcançados. A partir do estudo-piloto, foi possível analisar qualitativamente os conteúdos dos Grupos Focais e dos relatos pessoais e extrair daí elementos para definir e/ou adequar os instrumentos à realidade, bem como proceder ajustes no MICEO. Já no estudo definitivo, aplicamos técnicas de validação do instrumento desenvolvido, como, por exemplo, o julgamento paralelo, com o qual cinco juízes analisaram 15 ENSAIO paralelamente os relatos de 70 sujeitos escolhidos aleatoriamente entre os 351 da amostra. Ao final desta prova, observamos que os coeficientes Kappa alcançados representavam níveis significativos de concordância entre os juízes. Com base em Landis e Koch (1977), obtivemos índices de concordância que variaram de moderado (0,41 a 0,60) a substancial (0,61 a 0,80), confirmando um bom grau de concordância entre os juízes. Além destes procedimentos, para conhecer a realidade no seu conjunto, foram aplicadas ferramentas estatísticas descritivas, e, para verificar a existência de correlações entre variáveis, utilizamos estatísticas correlacionais. 5. RESULTADOS E DISCUSSÃO 5.1 RESULTADOS SOBRE A DISPONIBILIDADE DE TEMPO LIVRE E A PRÁTICA DE ATIVIDADES DE LAZER OU ÓCIO A realidade em termos de tempo livre de obrigações (qualquer atividade realizada por obrigação ou senso de compromisso) na percepção dos próprios sujeitos é de 3 horas e 40 minutos em média por dia. Enquanto isso, existe uma expectativa de poder contar com aproximadamente 5 horas e 30 minutos por dia livres de obrigações, além de dispor de todos os sábados e domingos disponíveis. Evidentemente, os dados relativos às expectativas chocam com a realidade atual destes professores e funcionários, embora coincidam com os dados relativos ao tempo livre disponível na população norteamericana. Quanto ao período de férias, obtivemos a informação de que o período efetivamente gozado varia entre 11 e 20 dias por ano, apesar da instituição à qual pertencem ga16 A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida 5.2 RESULTADOS SOBRE AS ATIVIDADES PRATICADAS NO TEMPO LIVRE Textual: A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 10-21, setembro 2005 Este estudo, por sua extensão – quantidade de variáveis investigadas – e profundidade – conteúdo das informações coletadas –, possibilitou-nos uma gama de reflexões e questionamentos que não caberiam neste ensaio. Aqui nos limitaremos a apresentar e discutir algo dos resultados relativos a realidades de tempo livre de obrigações, das atividades praticadas e das qualidades subjetivas das experiências de lazer ou ócio de nossa amostra. rantir os 30 dias previstos pela legislação trabalhista. As expectativas com respeito às férias é de poder desfrutar de 21 a 30 dias ou mais de férias por ano. O tempo livre disponível para o ócio está abaixo do que poderíamos esperar, considerando investigações anteriores realizadas em outros países europeus ou norte-americanos. A conclusão que podemos extrair destes dados é que ou as pessoas estão bastante ocupadas ou se percebem ocupadas. Assim mesmo, questionamos os motivos de tanta ocupação: trata-se de uma condição de vida determinada ou esta situação é conseqüência dos valores que determinam as prioridades de cada um? De qualquer modo, percebe-se que as mulheres, os doutores, os que recebem os maiores salários e aqueles que realizam outras atividades profissionais fora da instituição são os que apresentam menos tempo livre em comparação com os demais. Especialmente para estas pessoas, mas não só, o tempo para si mesmo é um bem escasso e precioso na medida em que o entendemos como um tempo vivido por decisão e vontade pessoal. Está claro que a existência concreta de um tempo livre cronológico não contempla toda a complexidade da relação das pessoas com o tempo. Como bem nos recorda Moreno (1994, p.94),“cada trabalhador produz mais coisas que não consome e consome mais coisas que não produz”. Este retrato sintético e atual do que estamos vivendo pode nos dar pistas para uma compreensão de por que as pessoas se percebem com menos tempo do que gostariam, independentemente se por trás desta percepção existem ou não elementos concretos que a justificam. A pergunta que fica é: por que aceitamos ou escolhemos fazer tantas coisas quando sabemos que nossa capacidade é limitada (está convencionado que um dia tem 24 horas, em qualquer lugar, época e para todos)? Por que aceitamos ou escolhemos fazer tantas coisas quando na realidade temos interesses específicos e prioritários que não são atendidos ou facilitados por tudo o que fazemos? Ou será que nos pensamos onipresentes e ilimitados? Ou será que não temos consciência de nossos reais interesses e prioridades e por isso nos deixamos emaranhar de tal forma que tudo o que fazemos consideramos de fato “necessário”? ENSAIO Textual: A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 10-21, setembro 2005 A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida De 35 atividades ou grupos de atividades apresentadas no Inventário de Atividades de lazer/ócio, constatamos que as atividades habituais na vida destas pessoas, professores e funcionários, são: ver televisão e vídeo; ler jornais e revistas; tomar chimarrão; navegar na internet e brincar com crianças e/ou com animais de estimação. Portanto, há um predomínio evidente de atividades que costumam ocorrer em ambientes interiores, que proporcionam entretenimento, evasão e recuperação de energias. Este tipo de atividade parece ser apropriado para preencher o tempo livre sem comprometer demasiadamente o corpo e a mente. No caso específico do chimarrão, reconhecemos que pode favorecer também a sociabilidade. O que estes dados nos sugerem é que a qualidade do lazer ou ócio destes professores está deixando a desejar em termos de diversidade e riqueza de experiências, na medida em que suas práticas mais freqüentes são aquelas que servem para um refazer mínimo das energias e disposição para a próxima jornada. Não estamos com isso negando o valor da recuperação da homeostase, apenas delatando que o equilíbrio não se associa necessariamente com a mudança e o crescimento pessoal. Atividades propícias ao descanso podem também servir para manter as pessoas iguais a como eram no início do dia, da semana ou do mês. Em termos de atividades físicas, as habitualmente praticadas costumam estar relacionadas com os cuidados para com a saúde e/ou com a imagem corporal: caminhar, musculação, exercícios aeróbicos e de alongamento. Também são praticadas algumas atividades que implicam deslocamentos, e entre estas se destacam: as visitas a familiares ou amigos, ir ao cinema e as pequenas viagens de fim de semana rumo à praia ou serra. Estas atividades servem tanto ao propósito de romper com a rotina, como também para promover as relações humanas e o desenvolvimento pessoal. O predomínio da prática de atividades de entretenimento e recuperação de forças pode significar a expressão de uma necessidade ou um imperativo de saúde para esta população, além de revelar um estilo de vida no mínimo questionável quanto ao seu conteúdo humano e social. Neste sentido, cabe destacar que de 80% a 93% dos professores e funcionários pesquisados não praticam: relaxamento; atividades de autoconhecimento; expressão da criatividade e das habilidades artísticas; participação em grupos amadores; associações; voluntariado; esportes de aventura e de equipe. Percebemos que as atividades menos praticadas são aquelas que exigem mais implicação pessoal e investimento de tempo. A rigor, as possibilidades de experimentar um ócio construtivo se vêem restringidas pela pouca diversidade e pobreza de conteúdo das atividades mais praticadas. 5.3 SOBRE OS NÍVEIS DE SATISFAÇÃO COM AS ATIVIDADES PRATICADAS Curiosamente são as atividades mais praticadas pelos sujeitos pesquisados (as de entretenimento ou recuperação de energia) as que proporcionam os índices mais baixos de satisfação na percepção dos próprios sujeitos, enquanto que as atividades menos praticadas foram as que proporcionaram a seus praticantes os maiores índices de satisfação. Algo parece empurrar estes sujeitos em direção à prática de atividades mais cômodas, que servem para descansar o corpo e a mente. Esta pode ser a manifestação de uma tendência, já identificada pela Psicologia Social, que é a tendência à repetição de atividades como se fossem rituais em busca de uma sensação de equilíbrio e numa tentativa de eliminar as ansiedades e inseguranças típicas do cotidiano na contemporaneidade. Os resultados gerais de tempo livre disponível e atividades praticadas nos remetem para o fenômeno do “paradoxo do ócio”: as pessoas dizem que não dispõem de tempo livre ou tempo para si mesmas, e quando o têm não sabem bem a melhor forma de utilizá-lo. 5.4 RESULTADOS SOBRE AS EXPERIÊNCIAS PESSOAIS DE ÓCIO Neste tópico gostaríamos de recordar que estamos trabalhando com um conceito de ócio que pressupõe uma experiência pessoal e subjetiva, mais ou menos enri17 Figura 2-Teste para a comparação dos resultados do WHOQOL de acordo com a classificação do relato Média EO Desvio padrão Média EOC Desvio padrão t. Valor de p Facetas Qualidade de Vida em geral Atividade sexual Atividades da vida cotidiana Auto-estima Energia e fadiga Participação / oportunidades de ócio Relações sociais Segurança física e proteção Sentimentos negativos Sentimentos positivos Domínios Ambiente Físico Nível de independência Psicológico Relações sociais 15,20 14,83 15,35 15,29 13,83 12,48 15,85 11,95 11,18 14,89 2,45 3,10 2,43 2,38 2,71 2,99 2,14 2,22 2,95 2,32 13,26 13,09 14,13 14,09 12,43 10,38 14,72 11,19 12,60 13,00 2,91 3,46 2,61 2,82 3,06 2,74 2,54 2,21 3,03 1,82 3,25 2,16 3,27 3,03 5,36 4,92 3,49 4,54 3,19 3,16 0,00** 0,03* 0,00** 0,00** 0,00** 0,00** 0,00** 0,00** 0,00** 0,00** 13,98 13,68 16,42 14,66 15,26 1,62 2,26 1,99 1,96 1,99 13,44 12,66 15,59 13,50 14,10 1,63 2,13 2,17 1,92 2,34 2,14 2,92 2,64 3,79 3,65 0.03* 0,00** 0,00** 0,01** 0,03* * Diferença significativa entre grupos ao nível de 5% 18 ** Diferença significativa entre grupos ao nível de 1% Textual: A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 10-21, setembro 2005 de dependência e menor qualidade em suas relações humanas). A qualidade geral do ócio ou a boa relação com este aspecto da vida aparece refletida na qualidade de vida. As pessoas que apresentaram alguma dificuldade com respeito ao ócio alcançaram menores índices de “qualidade de vida” como mostra a figura 2. Como os relatos dos sujeitos versavam sobre dois tipos de experiências de ócio distintas – as experiências memoráveis e as cotidianas –, foi possível observar que as experiências de ócio memoráveis se apresentaram mais intensas e ricas e se diferenciaram pela presença de mais desafio/exigência, desenvolvimento pessoal, liberdade, apreciação estética e fusão com o ambiente natural ou cultural. Enquanto isso, as experiências significativas de ócio no cotidiano apresentaram mais os atributos descanso e intimidade, sendo que geralmente apareceram associadas à prática de atividades de sociabilidade e entretenimento (atividades em casa). Um “novo” problema que identificamos é a possibilidade do sujeito protagonista da experiência de ócio entrar em contradição com as necessidades de evasão e descanso, já que ao repetir este tipo de ócio se corre o risco de automatizar o comportamento e desprovê-lo de singularidade, fazendo do tempo livre um tempo condicionado, ou, em outras palavras, transformando o ócio em rotina. Textual: A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 10-21, setembro 2005 quecida de atributos psicológicos e psicossociais. Para acessarmos estes atributos aplicamos o MICEO – Método de Identificação das Qualidades das Experiências Pessoais de Ócio –, através do qual solicitamos a cada um dos participantes da pesquisa dois relatos pessoais: um sobre a experiência de ócio/lazer mais memorável de sua vida adulta e outro sobre a experiência de ócio/lazer mais significativa no seu cotidiano. A primeira descoberta importante com que nos deparamos se refere ao fato de que as pessoas admitiram estabelecer relações diferenciadas com o ócio, lazer ou tempo livre. Isto nos permitiu classificar os relatos pessoais quanto à facilidade ou dificuldade com que as pessoas se relacionam com o ócio, resultando na formação de dois grupos representativos: – os sujeitos cujos relatos de experiências não aparentavam dificuldades em relação ao ócio ou lazer, o qual denominamos os EO – Experiência de Ócio –, e – os sujeitos que expressaram explicitamente ter dificuldades com o ócio, os EOC – Experiências de Ócio com Conflito – (13,4%). Exemplos de dificuldades relatadas foram: sentimentos de culpa, ansiedade ou desprezo frente a situações de lazer, tempo livre ou ócio. Estes apresentaram médias significativamente inferiores em aspectos da qualidade de vida (dimensão física, psicológica e ambiental; maior nível Qualidade de Vida ENSAIO ENSAIO A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida Em termos gerais, o MICEO permitiu identificar nos relatos sobre experiências de ócio as seguintes qualidades subjetivas: desfrute (73,5%), encontro interpessoal (52%), desenvolvimento pessoal (34%), motivação ou significado intrínseco (32%), liberdade (32%) e desafio/exigência (29,5%). A presença de desenvolvimento pessoal em um terço da amostra confirma teorias de fundo humanista e representa um potencial a ser explorado por estes sujeitos. A qualidade do desafio/exigência não está presente na maioria das experiências de ócio, porém o desfrute sim. Este dado sugere que a presença de desafio pode ser uma condição sine qua non para uma experiência ótima ou pico, como propõe a teoria, mas não necessariamente para caracterizar uma experiência de ócio do cotidiano. A presença de outras qualidades, como o relaxamento ou descanso, a apreciação estética, a ruptura e a absorção, sugere que outros tipos de experiências constituem o ócio das pessoas que não reconhecem a presença de desafio ou algum grau de exigência em sua experiência de ócio. De qualquer forma, é inegável que o ócio desta amostra está “empapado” do atributo descanso. Descansar, além de uma experiência prazerosa, serve para estas pessoas como mecanismo de restauração de um certo equilíbrio e de manutenção da saúde. O MICEO não nos permite avaliar a qualidade do descanso destes sujeitos quando o ócio se mostra caracterizado principalmente por este atributo, mas somos levados a questionar a qualidade deste “descanso” especialmente se este for impulsionado pelos intensos ritmos de trabalho. Mais uma característica da maioria das experiências de ócio relatadas é a ausência da qualidade da absorção. Este dado aponta para a tendência a um estilo de lazer/ócio que não chega a comportar mudanças pessoais importantes, ou dito de outra forma, um ócio que não se caracteriza pela implicação psicológica (atenção concentrada, esquecimento do próprio Eu, perda da noção de tempo, etc.) e que provavelmente diz respeito a uma gama de experiências mais superficiais. Outro resultado interessante foi o fato de que as qualidades identificadas pelo MICEO apresentaram uma relação direta com as médias de “qualidade de vida” em algumas das facetas e domínios analisados pelo 19 WHOQOL, conforme pode-se observar na figura 3. Estes dados evidenciam o poder do atributo “descanso/relaxamento” como forma de repor energia e restaurar o equilíbrio psicológico ou físico (Fontcuberta, 1976; Saint-Arnaud, 2002; Dumazedier, 1964). Percebemos como uma experiência de ócio pode diferenciar-se qualitativamente de outra. E isso explica por que um ócio pode exigir pouco física ou psicologicamente. Um exemplo seria o “deitar-se num sofá e ver um programa qualquer de televisão”. Trata-se de uma experiência que não causa o mesmo impacto nos níveis de “qualidade de vida” que um ócio que desafia ou exige algum esforço, seja físico, intelectual ou emocional. Os resultados confirmam que, na presença do atributo encontro interpessoal no ócio cotidiano, observa-se uma maior satisfação com as relações sociais, confirmando que o ócio é uma fonte de desenvolvimento da sociabilidade e do bemestar no campo afetivo (Tinsley, 1986; Ar- 6. CONCLUSÕES Social Físico Ambiente Nível de independência Qualidade de vida geral Atributo de ócio Descanso N Média Desvio padrão N Média 174 14,43 1,99 130 14,97 1,89 Absorção Desafio/exigência 249 15,38 1,95 55 14,75 2,09 272 13,58 2,27 32 14,58 1,93 Desenvolvimento pessoal 254 13,89 1,61 50 14,44 1,62 Desafio/exigência Plenitude Descanso Desafio/exigência 272 13,89 1,58 32 14,79 1,77 275 16,51 1,98 29 15,66 1,94 173 14,94 2,59 130 15,56 2,21 271 15,10 2,46 32 16,13 2,20 t. Valor de p 2,38 2,13 2,40 2,25 3,01 0,02* 2,20 2,21 2,26 0,03* 0,02* 0,03* 0,00** 0,03* 0,03* 0,02* Facetas: Desafio/exigência Energía vital Sono e repouso Sentimentos positivos Capacidade para aprender e concentrar-se Ruptura Descanso Oportunidades adquirir novos conhecimentos e habilidades Oportunidades participar ócio Relações sociais Ruptura 32 15,09 1,87 245 14,79 3,62 59 15,85 3,22 174 14,66 2,38 130 15,21 2,20 245 14,78 2,51 59 15,52 1,97 174 15,04 2,36 130 15,64 2,37 245 15,16 2,38 59 15,86 2,30 2,06 2,19 2,11 104 15,70 2,31 200 14,91 2,19 2,94 0,01* * 0,04* 0,04* 0,03* 0,03* 0,04* Desfrute Desafio/exigência Encontro interpessoal Descanso Absorção * Diferença significativa entre grupos ao nível de 5% 20 2,76 Ruptura Descanso Auto-estima 272 13,68 2,8 3 2,06 2,05 272 12,35 2,97 32 13,63 2,88 161 15,60 2,18 143 16,13 2,07 174 15,62 249 15,97 2,22 2,09 130 55 16,15 15,29 2,01 2,33 ** Diferença significativa entre grupos ao nível de 1% 0,00** 0,02* 2,17 2,14 2,15 0,03* 0,03* 0,03* observer agreement for categorical data.” Biometrics, 33, 159-174. ARISTÓTELES (1988). Política: la educación en la ciudad ideal. Madrid, España: Gredos. LEIF, J. (1992). Tiempo libre y tiempo para uno mismo: un reto educativo y cultural. Madrid, España: Narcea. BORGES, L. (1998). Significado do trabalho e socialização organizacional: um estudo empírico entre trabalhadores da construção habitacional e redes de supermercados. Tese de doutorado, Universidade de Brasília, Brasil. MANNELL, R. C. (1980). “A psychology for leisure research.” Society and leisure, 7(1), 13-21. COHEN, J. (1960). “A coefficient of agreement for nominal scales.” Educational and Psychological Measurement, 20, pp. 37-46. CSIKSZENTMIHALYI, M. (1997b). Fluir: una psicología de la felicidad. Barcelona, España: Kairós CSIKSZENTMIHALYI, M. (1998). Creatividad: el fluir y la psicologia del descubrimiento y la invención. Barcelona, España: Paidós. Textual: A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 10-21, setembro 2005 Domínios: Psicológico Presente Desvio padrão ARGYLE, M. (1992). La psicología de la felicidad. Madrid, España: Alianza Textual: A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 10-21, setembro 2005 MICEO sim experimentar um ócio caracterizado pela máxima riqueza de qualidades subjetivas possíveis em função da personalidade, da atividade escolhida, da duração da experiência e das circunstâncias sociais onde ela se insere. Entendemos, pois, que é imprescindível que a experiência não seja impulsiva nem condicionada por fatores psicossociais, mas que seja fruto do exercício da consciência de si e de uma visão crítica da realidade. Bibliografia Através do MICEO identificamos, entre muitas qualidades distintas de lazer ou de ócio, experiências de ócio construtivo, isto é, experiências ricas em qualidades psicossociais que promovem a pessoa, a família ou a comunidade dentro de uma ética humanista. Observamos também que determinadas qualidades quando presentes no ócio podem contribuir para melhorar a qualidade de vida; ou seja, um ócio de qualidade favorece uma vida com mais qualidade. Neste sentido, as experiências de relaxa- Ausente A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida mento ou descanso presentes no ócio cotidiano, assim como as de desafio no ócio memorável, são as que se destacam quanto à sua relação com aspectos da qualidade de vida destes sujeitos. Pensamos que o caráter humanista do ócio reside na maneira como a pessoa vive e percebe cada momento de seu ócio. O ideal de um ócio construtivo não é possuir atributos específicos, nem mais intensidade, e gyle, 1992; Dumazedier, 1964; Iso-Ahola, 1979; Cuenca, 2000). Estes dados concordam com investigações anteriores que revelaram que a oportunidade de conhecer ou aprofundar relações com pessoas, sejam amigos(as) ou familiares, é uma das principais fontes de estados de ânimo positivos e de felicidade (Handerson, Argyle e Furnham, 1984, em Argyle, 1992). Figura 3 – Teste para a comparação dos resultados do WHOQOL de acordo com a presença/ausência dos atributos do MICEO no ócio cotidiano WHOQOL ENSAIO ENSAIO A experiência de ócio construtivo e a qualidade de vida MANNELL, R. C.; ZUZANECK, J. & LARSON, R. (1988). “Leisure states an 'flow' experiences: testing perceived freedom and intrinsic motivation hypotheses.” Journal of Leisure Research, 20(4), 289-304. MARTÍN RALDÚA, E. V. (1994). Comparación internacional de los empleos del tiempo de mujeres & hombres. Madrid, España: Universidad Complutense. MASLOW, A. H. (1976). El hombre autorrealizado: hacia una psicología del ser (2ª.ed.). Barcelona, España: Kairós. MASLOW, A. H. (1999). 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Barcelona, España: Barcanoa. 21 o professor e o mundo da escola podem utilizar os avanços tecnológicos e os meios informáticos no ambiente de trabalho para monitorar e vigiar seus empregados sem ferir o direito à intimidade e à liberdade de comunicação destes. O que está em jogo aqui é a evidente antinomia – colisão de direitos – entre o poder fiscalizador do empregador garantido pelo art. 2º da CLT e os direitos fundamentais do trabalhador garantidos pelo art. 5º da C.F./88. Monitoramento e vigilância eletrônica do trabalho :: luciane lourdes webber toss1 | advogada 2. Possibilidades de controle Não alheias às novas 1. Meios de monitoramento e vigilância Uma pesquisa realizada em 1998 na New York American Management Association revelava que 35% das empresas americanas monitoravam seus trabalhadores através de chamadas telefônicas, de arquivos eletrônicos em seus computadores, de seus e-mails ou videotapes do trabalho. Destas empresas, 23% não informavam aos seus empregados a respeito da vigilância. Até 2000, este índice pulou para 73,5%. No Brasil, pesquisas realizadas em 2002, pela Symantec, apontaram para um percentual de 75% de empresas que monitoram e vigiam acessos à internet no ambiente de trabalho (Locks, 2004), sem o conhecimento de seus empregados. Aliadas ao monitoramento informático de email e internet, as câmeras de vídeo, máquinas fotográficas e gravações de conversas têm sido utilizadas para controle e vigilância não só do trabalho, mas de todas as atividades/posturas do empregado no local de trabalho. Alguns empregadores alegam má utilização dos equipamentos de informática, sobretudo emails e internet, por seus empregados; outros alegam furtos, mau comportamento e baixa produção. Percebe-se que o trabalhador pode ser monitorado em todos os momentos em que permanecer nas dependências de seu local de trabalho, independentemente do horário de sua atividade. Com o computador, as câmeras de vídeo, as máquinas REVISTA TEXTUAL setembro 2005 22 possibilidades tecnológicas, as instituições de ensino começam a adotar, agora explicitamente, meios de monitoramento e fiscalização do trabalho dos professores fotográficas e os gravadores, o empregador pode obter relatórios, não só do trabalho exercido, mas também de como se comportam os empregados no horário em que se encontravam no local de trabalho, seja no escritório, seja na sala de aula, no laboratório, na sala de professores, refeitório, produção, enfim, em todos os lugares. Não alheias às novas possibilidades tecnológicas, as instituições de ensino começam a adotar, agora explicitamente, meios de monitoramento e fiscalização do trabalho dos professores. Os meios de controle mais freqüentes são o email, os programas de computador, sobretudo no Ensino Superior, que pressupõem senhas específicas para acessos a bancos de dados que viabilizam monitorar o que o professor está acessando, 1 Advogada, especialista em Direito Privado pela Unisinos e em Direito Público, pela Universidad de Burgos – Espanha, mestranda em Ciências Sociais Aplicadas na Unisinos e assessora jurídica do Sinpro/RS. câmeras de vídeo, não só nas salas de aula, mas nas salas dos professores, cantina, corredores e demais dependências da escola, e máquinas fotográficas – incluindo aqui as acopladas às cancelas dos estacionamentos. Cabe lembrar que muitos destes aparatos já são há muito utilizados pelas instituições, sob o argumento não menos legítimo, mas genérico, da segurança interna de professores e alunos. Resta saber até que ponto os empregadores Do modelo fordista aos meios tecnoinformáticos da atualidade, o trabalho sempre foi monitorado e vigiado. Este olhar, antes visível e explícito através das portas ou paredes de vidro comuns nas instituições de ensino, tornou-se, a distância, impessoal e, portanto, passível de ser esquecido, mas é internalizado pelo empregado. A constância no monitoramento e vigilância torna qualquer ação do empregado a priori passível de ser considerada um ato ilícito (Locks, 2004). Convém observar, também, que o ônus do monitoramento acaba recaindo sobre a pessoa monitorada. Em outras palavras, diante de fatos ambíguos registrados por uma câmera ou lançados em um registro de banco de dados, cabe ao monitorado provar sua inocência e demonstrar o contrário, correndo o risco de sofrer condenações equivocadas e julgamentos de valores injustos, sem sequer ter a certeza de que poderá liquidar, definitivamente, todas as dúvidas a respeito de tais fatos (Leonardi, 2004). A legislação brasileira concede ao empregador o poder diretivo, regulamentar, fiscalizador e disciplinar. Isso garante um conjunto de prerrogativas jurídicas no exercício do poder de mando do empregador para o controle tanto da atividade laboral quanto do local de trabalho – é o chamado controle empresarial. Obviamente, tal poder, exercido na relação de trabalho, é limitado sobretudo pela Constituição Federal, que veda quaisquer atitudes e atividades que agridam a liberdade 23 setembro 2005 REVISTA TEXTUAL O empregado deve estar consciente do caráter não sigiloso de suas comunicações no local de trabalho. A instituição de ensino deve advertir seus professores de que todas as mensagens, inclusive as pessoais, estão disponíveis para o conhecimento do empregador. Mas, o monitoramento legitima-se na medida em que existem indícios de má utilização, caso contrário, ele é injustificado e condenável e a dignidade do trabalhador (Delgado, 2005). É dizer, o exercício do poder diretivo e fiscalizador do empregador não pode servir em nenhum momento para a produção de resultados inconstitucionais, lesivos dos direitos fundamentais do trabalhador, nem à sanção do exercício legítimo de tais direitos por parte daqueles. Na relação de trabalho devem ser respeitados os preceitos do art. 5º, X da C.F. – direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem. O contrato de trabalho não pode suportar, por si mesmo, a renúncia destes direitos e sua restrição por parte do empregador; deve ser objeto de justificação moral e legal (Paiva, 2004). Cabe lembrar que ao empregador é permitida a inserção, para exercício de seu poder legal de fiscalização no local de trabalho, de meios, equipamentos e aparatos que possibilitem este exercício. Mas, esta fiscalização não pode ser exaustiva e injustificada. A liberdade do empregador supõe o poder de decisão sobre a estrutura e funcionamento da empresa ou da instituição. Quer dizer, sobre a disponibilidade dos meios de produção e a direção da prestação de trabalho do pessoal REVISTA TEXTUAL setembro 2005 24 contratado de acordo com as condições pactuadas no contrato de trabalho. Mas há de considerar que os contratos de trabalho são baseados em princípios como o da boa-fé e da diligência profissional. O a priori da relação de emprego é o de que o empregado cumprirá, zelosamente, os compromissos que assumiu quando os firmou com o empregador. Não pode o empregador partir do pressuposto de que tais atividades serão negligenciadas pelo empregado (Rossal, 1996). Considerando isto, a autonomia organizativa do empresário não é, e nem pode ser, ilimitada. Consideremos dois exemplos: o caso da violação dos emails e o da instalação de câmeras de vídeo nas salas de aula. O correio eletrônico, proporcionado pela empresa/instituição de ensino, em regra, é destinado ao uso profissional, como uma espécie de ferramenta de trabalho de propriedade da empresa, não podendo o empregado, a princípio, utilizá-lo para fins particulares. Em regra e a princípio, porque o empregado deve ser comunicado formalmente a respeito da restrição na utilização do e-mail. Valendo a mesma regra para os acessos à internet pela conexão do local de trabalho. Há um princípio de publicidade que limita a ação do empregador. Este princípio é prévio ao poder fiscalizador do empregador. O empregado deve estar consciente do caráter não sigiloso de suas comunicações no local de trabalho. A empresa/instituição de ensino deve advertir seus trabalhadores/professores de que todas as mensagens, de qualquer natureza, inclusive as pessoais, estão disponíveis para o conhecimento do empregador. Bem como a utilização da internet. Isso porque é razoável que o empregador monitore os acessos para evitar a má utilização, e até abuso, do equipamento e das ferramentas de trabalho. Mas, o monitoramento legitima-se na medida em que existem indícios de má utilização, caso contrário, ele é injustificado e, portanto, condenável (Vargas, 2002). Esses indícios devem ser baseados em critérios objetivos, como, por exemplo, a freqüência no número de comunicações de caráter pessoal, ou o título próprio das mensagens, no caso do correio eletrônico. Nesses casos, se o empresário tiver um indício objetivo de que está sendo produzida uma situação de abuso, deverá ser permitido o controle, estabelecendo o mínimo de garantias exigíveis por parte do trabalhador a respeito de seus direitos, como informar ao representante de empregados, ao sindicato profissional ou a um terceiro medidor a respeito da fiscalização (Paiva, 2004). A empresa/instituição de ensino detêm a faculdade de controle, tanto em relação ao correio eletrônico quanto à conexão à internet, desde que ambos sejam efetivamente fornecidos pelo empregador, ressalvando-se assim a conta pessoal do correio eletrônico, mesmo que acessada do local de trabalho. Tal faculdade pode se legitimar, desde que se comprove que a fiscalização do correio eletrônico serviu para o fim a que se destinava – provar algumas ilicitudes ou desídia do empregado, sem maiores intervenções que pudessem revestir-se de ilegalidade e lesão a direitos do empregado. O simples fato de ser um correio eletrônico proporcionado pela empresa, uma ferramenta de trabalho, não deve ser suficiente para permitir a interceptação do mesmo de forma arbitrária pelo empregador, sob pena de ser considerada lesiva aos direitos fundamentais do trabalhador (Paiva, 2004). Quando um empregador instala um aparato de monitoramento e vigilância, ele está obrigado a captar somente informações que tenham relação direta com o trabalho. Qualquer captação de informações da vida privada das pessoas envolvidas caracteriza a invasão da privacidade e da intimidade. Isto serve tanto para câmeras de vídeo quanto para gravações em tape, máquinas fotográficas e controle de chamadas telefônicas. O caso da câmera de vídeo em sala de aula é, todavia, mais complexo e, por conseqüência, a restrição à sua utilização é ainda maior. A câmera de vídeo captará imagens das ações dos professores e dos alunos. Se ela permanecer ligada durante os intervalos, captará, inclusive, o momento de recreação dos alunos. Se ela estiver posicionada na sala dos professores, obterá imagens da relação existente entre os profissionais. Se ela estiver nos corredores, toda movimentação será apreendida em imagens. O limite entre o que é trabalho e o que é intimidade é tênue nas relações que se dão dentro de uma instituição de ensino. Não raras vezes há manifestações de carinho e afeto, por exemplo, que, se deslocadas do contexto original, podem suscitar equivocadas interpretações. A regra da justificativa legal, moral e legítima serve também para câmeras de vídeo em sala de aula. Deve o empregador dizer por que quer instalá-las, por que quer monitorar e vigiar alunos e professores e, sobretudo, como vai utilizar as imagens captadas. Estas informações devem ser difundidas tanto ao corpo docente quanto ao corpo discente. Em se tratando de crianças e adolescentes, é necessário o conhecimento dos responsáveis legais. Qualquer punição a professores e alunos obtida através 25 setembro 2005 REVISTA TEXTUAL de captação de imagens sem o conhecimento dos mesmos, equivale, para associarmos um paradigma, à quebra de sigilo telefônico. Só à guisa de exemplificação, quando o Estado ou a iniciativa privada instalam em espaços públicos ou privados câmeras de vídeo, tomam o cuidado de publicizar o ato e ainda fixar placas com a mensagem “você está sendo filmado”. No caso do contrato de trabalho, além de público, o ato deve ser justificado. Deve ser justificado caso a caso. Não basta, no momento da contratação do empregado, um aviso ou autorização genérica. O contrato de trabalho também considera a hipossuficiência do empregado, ou seja, sua impossibilidade material de negociar determinadas condições. O contrato de trabalho é um contrato de adesão. A generalidade da autorização não significa que foram cumpridos os requisitos de publicidade e de justificação para utilização de meios de controle, monitoramento e vigilância. No princípio da proporcionalidade entre os direitos do empregador – de fiscalização e vigilância – e os direitos do professor e dos alunos – à intimidade, à vida privada, à liberdade de expressão e comunicação e à imagem–, temos que estes, por serem garantias constitucionais, direitos fundamentais, devem ser preservados em sua plenitude. É dizer, quando há risco de violação, deve-se optar pela não-inserção das câmeras de vídeo. Na ausência de pressupostos legais específicos, aos direitos fundamentais é atribuída uma posição superior aos direitos celetizados. Em alguns países europeus – como a Espanha, por exemplo – a inserção de câmeras de vídeo, máquinas fotográficas e gravadores no local de trabalho depende de autorização de uma comissão composta por sindicato de empregados, empregador e um membro do Judiciário. Dessa forma, para que o empregador controle determinado empregado, deve justificar suas razões e motivos, e obter autorização formal para tanto. Caso contrário, qualquer penalidade ao empregado proveniente de vigilância não autorizada reverte-se em indenização ao trabalhador (Velasco, 2002). Portanto, pela legislação atual, para inserir meios de controle, monitoramento e vigilância no local de trabalho são recomendáveis dois requisitos preliminares: o da publicidade do ato e a justificativa para fazê-lo. REVISTA TEXTUAL setembro 2005 26 3. A negociação coletiva e seu caráter normativo As questões voltadas à inserção de meios eletrônicos de controle do trabalho estão sendo levadas à Justiça do Trabalho, sobretudo no que diz respeito ao poder punitivo do empregador. É crescente o número de demissões por justa causa que utilizam como prova de fundamentação a quebra do sigilo de correspondência eletrônica, fiscalização de acessos à internet, gravações em tape e imagens em câmeras de vídeo. No silêncio legal, em relação à especificidade, o Judiciário muitas vezes olvida-se do fato de que gravar imagens ou sons, bem como violar correspondência privada, sem autorização judicial, são meios ilícitos de obtenção de prova. A adoção de medidas de controle e vigilância pode ser estabelecida através de negociação entre empregadores e empregados. A especificidade normativa pode vir com as negociações coletivas. Para viabilizar a inserção destes aparatos, preservando tanto o direito de empregadores quanto o de empregados, é imprescindível que seja estabelecida uma clara política por parte da empresa/instituição de ensino a respeito. Tais medidas devem ser publicizadas ou normatizadas, por exemplo, por intermédio da Convenção Coletiva de Trabalho, ou através da formação de uma comissão paritária entre sindicatos profissionais e sindicatos econômicos. Somente a transparência pode garantir que seja mantido o direito do empregador – direção, vigilância, regulamentação e punição – e os direitos fundamentais dos empregados – intimidade, comunicação, liberdade de expressão, imagem. Referências bibliográficas CARRION, Valentin. Comentários à consolidação das Leis do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2003. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 10ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005. LEONARDI, Marcel. “Vigilância tecnológica, bancos de dados, internet e privacidade”. Em: www.jusnavegandi.com.br, acessado em julho de 2005. LOCKS, Eliane Conceição Santos. Tecnologias de monitoramento e vigilância eletrônica no mundo do trabalho. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004. PAIVA, Mário Antônio Lobato da. “E-mail e invasão de privacidade”. 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A decisão veio depois que os estudantes Rafael Barbato da Silva, de 18 anos, e David Vieira da Silva, de 19, foram feridos à bala durante o horário de aula, na noite da última quarta-feira. No dia seguinte, as aulas foram canceladas. As câmeras foram instaladas ontem no pátio, na secretaria e na entrada do banheiro masculino. Hoje o colégio foi aberto, mas o clima ainda era de tensão entre os alunos. [...] [O pai de uma aluna de 13 anos lembrou que] no final do ano passado, um jovem foi morto a tiros, por volta das 15 horas, em uma das esquinas do colégio, um dos 65 mantidos pelo Estado em Osasco (O Estado de S. Paulo, 16 abr. 2002). As ações humanas são como as ondas. Depois de cessada a causa que as gerou, elas continuam, durante muito tempo, a produzir efeitos. Uma pedra, jogada num lago de águas tranqüilas, em segundos chega ao fundo; as ondas que ela produz podem durar horas. Se podemos dizer isso das ações individuais, com muito mais razão poderemos afirmá-lo das ações institucionais. Elas têm efeitos poten- REVISTA TEXTUAL setembro 2005 28 cialmente mais poderosos do que as ações dos indivíduos. Efeitos benéficos ou destruidores. A escola é uma instituição criada pela sociedade para produzir ações que, praticadas pelos seus sujeitos, causem efeitos benéficos sobre os comportamentos; efeitos de longo alcance, que durem a vida inteira. Mudar o rumo de ações potencialmente prejudiciais não é tarefa fácil. Por isso, as ações institucionais devem ser pensadas à exaustão pela comunidade envolvida, para que não se corra o risco de produzir ações que, em curto prazo, possam parecer positivas mas que, em longo prazo, mostram-se ainda mais prejudiciais que os defeitos que visam a sanar. O nazismo, por um lado, e o stalinismo, por outro, produziram ações que, decorridos mais de cinqüenta anos, ainda produzem raiva, ódio, náuseas, mal-estares; sua simples lembrança provoca horror. Há quanto tempo a humanidade esforça-se, refletindo sobre tais experiências, para produzir seu oposto – já que não pode reverter os efeitos perversos dessas nefastas ações. O uso de câmeras nas escolas pode parecer novidade para alguns. Para outros já é uma realidade. Alguns podem se horrorizar e dizer que os tempos do Big Brother (não o da televisão, e sim o de 1984, de George Orwell) chegaram. Outros podem alegar que isso nos dá segurança. As argumentações a favor e contra são amplas. Cabe-nos produzir reflexões que mostrem, com clareza, a qualidade ética e pedagógica de tais ações. Pensamos do ponto de vista de quem acredita que as regras precisam ser internalizadas e não constituírem apenas instâncias externas reguladoras dos comportamentos. Além disso, precisamos aprender a lidar com a frustração sob pena de nos vermos em um mundo cada vez mais inseguro em que os efeitos das ações perversas predominarão sobre os das ações benéficas. Referimo-nos, neste texto, ao uso de câmeras filmadoras no interior das escolas. Apressamo-nos a dizer O uso de câmeras nas escolas pode parecer novidade para alguns. Para outros já é uma realidade. Alguns podem se horrorizar e dizer que os tempos do Big Brother (não o da televisão, e sim o de 1984, de George Orwell) chegaram 29 setembro 2005 REVISTA TEXTUAL que somos a favor de seu uso até o portão da escola, não no seu interior. Tentaremos justificar o porquê. Quando se pensa em vigiar, algumas questões podem ser levantadas. Vigiar para quê, por quê, a quem, quando, como? Vigilância como cuidado ou como ação ostensiva de controle de comportamento? Quando se diz que o porquê de vigiar é a segurança, pode-se perguntar: segurança de quem? Dos que vigiam ou REVISTA TEXTUAL setembro 2005 30 dos que são vigiados? Ilude-se quem pensa que controlando os comportamentos de quem está sendo vigiado fará com que cesse seus atos causadores de insegurança e mal-estar. Se alguém quer burlar a regra, podemos dificultar essa ação, mas ele encontrará formas de fazê-lo. Poderá, eventualmente, ser flagrado; mas isso não o demoverá de evitar atos ilícitos por força da própria consciência – já que a consciência ou não existe ou está amordaçada. Tudo que se faz na escola deve visar a fins educativos. A escolha das ações escolares deve mirar os objetivos da educação. Educar é, então, treinar para não ser flagrado cometendo atos ilícitos? Ou educar é, entre outros, ajudar a construir uma consciência moral que leve o indivíduo a não cometer atos ilícitos? Lembramos o filme Laranja mecânica em que o personagem principal recebe um tratamento para não cometer atos de violência. Ele não os comete porque passa mal, fisicamente, ao pensar em cometê-los; foi treinado para isso. Moralmente, continua acreditando na correção de tais atos, uma vez que não sente a mínima culpa ao cometê-los. Assim que cessarem os efeitos do condicionamento e desaparecer o malestar, voltará a praticar a violência, sem nenhuma culpa. Quando pensamos em educação, pensamos fundamentalmente nessa questão. As ações praticadas pelos alunos, por decisão da escola (professores, direção, projeto político pedagógico, sistema educacional), visam a formar estruturas de consciência, de conhecimento e de afetividade – não apenas estocar conteúdos. O manuseio de conteúdos deve ter por objetivo a formação de tais estruturas e não apenas sua estocagem. É por isso que as ações escolares não devem ser pensadas como treinamento – exercícios repetitivos visando à formação de comportamentos fixos –, mas como ações orientadas, desde sua origem, pela e para a autonomia. A chamada escola tradicional é autoritária (Becker, 2005) no seu próprio âmago. Vigora nela a heteronomia. Há pouco lugar, no seu âmbito, para a autonomia. Por isso, ao primeiro sinal de descontrole, instauram-se nela, por iniciativa de suas direções, via de re- gra legitimadas pela comunidade e até por ações judiciais, medidas como blitz policiais, cães farejadores, câmeras filmadoras. A escola que não identifica seu compromisso educativo com a busca sistemática da autonomia identifica seu compromisso educativo com o exercício sistemático da heteronomia. Realiza-se o objetivo da autonomia pela construção de relações de confiança e de respeito ativo (Becker, 2004). Realiza-se o objetivo da heteronomia pela imposição sistemática de relações de submissão: do aluno ao professor, do professor à direção, da direção à Secretaria de Educação... Autonomia constrói-se com relações democráticas. Com relações autoritárias criam-se ditadores e indivíduos subservientes. E é preciso tomar cuidado: indivíduos subservientes obedecem por temer um castigo e não por força de uma consciência moral. Logo, se puder evitar o castigo, nada o impedirá de cometer atos ilícitos. No momento em que a escola precisa adotar instrumentos de vigilância, como câmeras intramuros, ela está dando um atestado de que não está confiando na educação que pratica. Se ela própria não confia na educação que pratica, certamente não serão os alunos que nela acreditarão. Se a escola não acredita na sua autoridade, não serão os alunos que nela acreditarão. Ela está terceirizando a função da autoridade. O que há com a escola que tão rapidamente renuncia a sua responsabilidade pedagógica entregando-a a juízes, a policiais e, até, a cães farejadores? Acreditamos no direito à privacidade. Porém, é importante não confundir direito à privacidade com abandono. Há alguns anos, um garoto americano de 15 anos matou colegas e professores e, em seguida, suicidou-se. A polícia encontrou no seu quarto um verdadeiro arsenal. A mãe disse que não entrava no quarto do menino há alguns anos porque respeitava sua priva- 31 setembro 2005 REVISTA TEXTUAL cidade. Esclarecemos que isso não é privacidade. É abandono, descuido. Câmeras na sala de aula, no corredor ou no banheiro da escola, é cuidado? Comparemos a situação. Estabelecemos, com nossos alunos, uma relação. Nosso comportamento muda, é claro, se alguém, com a devida permissão, entra na sala para filmar. Sabemos que aquelas imagens serão vistas também por pessoas que desconhecemos e que nada sabem do que acontece nesse recinto. Portanto, cuidaremos para nos comportar de forma que essas pessoas não façam um recorte descontextualizado, descaracterizando o que aí acontece. Se, ao contrário, as imagens colhidas forem destinadas aos alunos daquela turma, a situação será diferente, porque eles conhecem seu contexto relacional. Quando recebemos uma visita em casa, procuramos tratá-la levando em conta suas características. Estamos sendo falsos? Não, estamos usando regras de convivência social, construídas ao longo de gerações. Até por respeito a quem chega, procuraremos recebê-lo ou recebê-la bem. Da mesma forma, quando o professor está em sala de aula, ele estabelece uma relação particular com aqueles alunos. No dia em que um determinado aluno falta ou algum novo se integra à turma, um esforço coletivo será feito para que se redesenhem as relações nessa sala. É importante que cada tempo de sala de aula constitua-se de momentos de verdadeira relação, com sujeitos reais, que se olham nos olhos e REVISTA TEXTUAL setembro 2005 32 constroem relações de respeito e tolerância. Como construir relações de respeito e tolerância se há olhos estranhos presentes, observando o que ali acontece com finalidades divergentes aos objetivos da sala de aula? Aliás, de quem são esses olhos? Relações de respeito e tolerância constroem-se na medida em que se constroem relações significativas com alguém a quem se procurará agradar para não perder o afeto. O medo de estar sendo vigiado impede que se formem relações significativas; antes, faz com que se busquem melhores estratégias para escamotear dispositivos de vigilância ou burlar a regra. Na faculdade onde trabalhamos, não há banheiros distintos para professores e alunos. Politicamente incorretos, às vezes brincamos sobre a necessidade de haver um espaço em que alunos possam falar mal de professores e professores possam falar mal de alunos. Entendemos que isso é mais do que capricho; é necessidade. Isso significa que, ao fazê-lo, alunos desrespeitam professores, ou professores desrespeitam alunos? Não necessariamente. Falar mal é reorganizar-se internamente, é envidar esforços para elaborar frustrações. Frustrações de alunos frente a cobranças de professores e frustrações de professores frente a resistências ou críticas de alunos. Há algo errado no fato de professores falarem mal de alunos (ou no fato de pais falarem mal dos filhos)? Não necessariamente. Há momentos em que os professores se sentem tocados com certas questões que provocam raiva e precisam 33 setembro 2005 REVISTA TEXTUAL elaborar tal sentimento. Igualmente, alunos e, também, pais vivem conflitos que precisam ser elaborados. Sentimentos negativos existem; não é recomendável negar sua existência. É admitindo sua existência que podemos aprender a controlá-los, a recalcá-los, realizando um processo interior, individual, que ninguém pode fazer por nós – mas que precisamos da mediação dos outros para fazê-lo. Faz algum tempo, uma mãe contava, muito contente, que na escola de Educação Infantil de sua filha podia-se acompanhar a sala de aula via internet. Somos absolutamente contra tal procedimento. Não que se tenha algo a esconder, mas por uma razão pedagógica elementar: a partir do momento em que os pais escolheram a escola, devem passar ao filho a segurança de que estão bem cuidados. Se os pais escolheram aquela escola específica, estão deixando claro que entregam seu filho ou filha porque acreditam que aquele é um lugar muito bom. Se não confiam, então, por que entregam? Se entregarem, sem confiar, passarão aos filhos a idéia de que aquele não é um lugar bom. Logo, estão passando a mensagem de que os filhos não devem adaptar-se e confiar. Isso revela, por outro lado, a incapacidade do adulto de tolerar frustrações ao não conseguir desconectar-se do filho. As crianças precisam aprender a lidar com a frustração e uma das formas para isso é aprender que os pais não estão disponíveis o tempo inteiro. Isso é quase impossível para os filhos se os pais ainda não aprenderam essa tolerância. Os pais têm de ajudar os filhos a aprender que, se eles não estão disponíveis, há alguém que estará disponível para cuidá-los caso ocorra alguma eventualidade. Ou seja, essa ausência dos pais não significa descuido. Além disso, o fato de os pais não conseguirem desconectar-se dos filhos mostra o quanto os adultos não aprenderam a tolerar frustrações; eles continuam a se comportar como bebês que precisam de satisfação imediata. Em vez de serem referência indispensável à criança, competem com ela. Exemplo. Professores de uma escola de Porto Alegre pediram, em reunião com os pais, para que as crianças não trouxessem celular para a escola; e, caso o trouxessem, por julgar tratar-se de real necessidade, que o deixassem no silencioso. Alguns pais manifestaram grande ansiedade só de imaginar que seus filhos não estariam, o tempo todo, conectados. Perguntamos pelos verdadeiros motivos da instalação de câmeras no interior da escola porque não acreditamos que eles tenham a ver com segurança. Embora tenham ocorrido casos de violência no interior da escola, e eles assustam, acreditamos que as verdadeiras razões são outras; razões ligadas à perda de identidade, de autoridade da escola. Assim como se discute, há algum tempo, a respeito da dificuldade da família em estabelecer limites, em encontrar o justo equilíbrio entre autoridade e respeito, devese pôr em discussão a crise de identidade da escola. A escola, e também a família, estão longe de produzir uma síntese que supere de vez o autoritarismo que tudo comandava e o também autoritário laissez-faire no qual caímos. Não será a ambigüidade entre autoritarismo e laissez-faire que leva a escola a apelar para recursos tecnológicos a fim de recuperar o poder perdido? Para alguns, é mais fácil viver sob um poder autoritário, pois nele tudo se resume em disciplina; é muito mais fácil que administrar conflitos, pôr as pessoas frente a frente, olhando olho no olho, confrontando-se até chegar a consensos. Será que os educadores de uma escola precisam realmente de uma câmera filmadora para saber quem é que vai cometer infração? Por isso, não nos opomos à presença de câmeras nas estradas, nas ruas, nos supermercados, nas prisões, na entrada da escola e na entrada do prédio onde moramos. Pelos motivos expostos e, talvez, por outros ainda não explorados, nos opomos, sem concessões, à presença de câmeras dentro da escola! Por motivos similares, nos opomos à presença de câmeras dentro de nossa casa! Referências bibliográficas docência no ensino superior. Porto Alegre: UFRGS/FACED/PPGEdu, 2005. Tese de doutorado. BECKER, Fernando. Educação e construção do conhecimento. Porto Alegre: Artmed, 2002. BECKER, Fernando. “Tempo de aprendizagem, tempo de desenvolvimento, tempo de gênese – a escola frente à complexidade do conhecimento”. In: MOLL, Jaqueline e Colaboradores. Ciclos na escola, tempos na vida. Porto Alegre: Artmed, 2004, p.41-64. BECKER, Fernando. Epistemologia do professor; o cotidiano da escola. 12.ed. Petrópolis: Vozes, 2005. MARQUES, Tania Beatriz Iwaszko. Do egocentrismo à descentração: a REVISTA TEXTUAL setembro 2005 34 PIAGET, Jean. [1932] O juízo moral na criança. São Paulo: Mestre Jou, 1977. PIAGET, Jean. [1969] Psicologia e pedagogia. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. PIAGET, Jean. [1971] Para onde vai a educação? Rio de Janeiro: J. Olympio, 1973. PIAGET, Jean. [1998] Sobre a pedagogia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. 35 setembro 2005 REVISTA TEXTUAL ENSAIO ENSAIO Corrupção: aspectos teóricos e seus resultados sobre a economia brasileira Corrupção: aspectos teóricos e seus resultados sobre a economia brasileira fim, na última seção, procura-se analisar os custos da corrupção sobre a economia brasileira. Textual: Corrupção: aspectos teóricos e seus resultados sobre a economia brasileira. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 36-42, setembro 2005 1 Mestre em Economia e doutoranda pela Ufrgs Resumo O presente artigo procura analisar o fenômeno da corrupção destacando aspectos teóricos e principalmente o custo desse fenômeno sobre a economia brasileira. O artigo inicia procurando definir alguns parâmetros teóricos como o conceito de corrupção, suas condicionantes, tipos e conseqüências sobre a sociedade. A última seção traz alguns números do impacto da corrupção sobre a economia brasileira, deixando claro que o desvio de recurso de uma economia tão carente como a brasileira poderia ser reinvestindo em benefícios sobre toda a sociedade. Palavras-chave: Corrupção – Economia Brasileira. Introdução A corrupção não é um fenômeno recente, bem pelo contrário. Se formos analisar alguns fatos históricos, podemos observar a sua presença. Ela levou a estagnação econômica na China, infestou a administração do Império Romano, dificultou o desenvolvimento político da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos e acelerou o colapso da Rússia. Porém, nas últimas duas décadas, é possível observar uma movimentação mundial em busca de solução ou pelo menos minoração desse problema. As iniciativas para combater a corrupção são inúmeras, traduzidas em tratados e con10 36 venções firmados entre países e blocos econômicos, que compreendem preocupações sobre o impacto desse fenômeno na democracia, justiça social, desenvolvimento econômico, comprometimento do Estado e estabilidade política. Contudo, o que é efetivamente corrupção? Quais os fatores que propiciam sua ocorrência? Há tipos? Quais são suas conseqüências? E, principalmente, quanto custa ao Brasil a corrupção? Nesse ensaio, propõe-se, de maneira muito modesta, responder. Sendo assim, o ensaio está dividido em quatro seções. Na primeira seção, faz-se uma breve retomada e revisão dos principais conceitos sobre corrupção. A segunda seção versa sobre os fatores que favorecem a corrupção. A terceira seção busca identificar os principais tipos de corrupção e suas conseqüências sobre a sociedade. Por Textual: Corrupção: aspectos teóricos e seus resultados sobre a economia brasileira. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 36-42, setembro 2005 ecléia conforto | economista 1 1. Corrupção: as dificuldades de definir um conceito A corrupção é um fenômeno que pode ser estudado cientificamente por diversas áreas, por esse motivo o termo apresenta uma série de definições dependendo da área de estudos. A corrupção tem origem na palavra ruptura, que pode significar o rompimento ou desvio de um código de conduta moral ou social. Atualmente a corrupção é vista como uma espécie de conduta através da qual o agente motivado por alguma vantagem age desvirtuando as regras de determinado objetivo, contrariando o que a sociedade considera como justo e moral. O conceito acima descrito, embora possa parecer simples em um primeiro momento, traz uma série de problemas quando procuramos defini-lo de forma mais exata. O problema de sua definição está exatamente em identificar as regras que foram desvirtuadas. Além disso, a proximidade das relações sociais entre os agentes dificulta identificar uma situação de corrupção ou apenas uma situação socialmente aceitável. Isso em parte justifica a apreciação do termo corrupção por diversos estudiosos. Segundo Andving (2000), há diferença entre a corrupção econômica e os outros tipos de corrupção. A corrupção econômica ocorre em uma determinada situação de mercado relacionada à troca de dinheiro ou mercadorias. A corrupção social, por sua vez, pode valer-se de outras formas de favorecimento como nepotismo, proteção, clientelismo, entre outros. Já Nye (1967) considera que a corrupção ocorre quando o comportamento de um determinado agente desvia-se das obrigações formais do cargo público, buscando vantagens pessoais, riqueza ou status. Com o objetivo de evitar conotações moralistas sobre o termo corrupção, Macrae (1982) emprega a idéia de arranjo. Para ele um arranjo significa uma troca privada entre duas partes que têm influência na disponibilidade e alocação dos recursos, e que envolve o uso de responsabilidades públicas ou coletivas para fins privados. De uma maneira geral, os conceitos de corrupção compreendem a interação entre o poder público e o setor privado na presença de algo ilegal. Há um consenso que a corrupção refere-se a situações nas quais o poder do cargo público é usado para ganhos pessoais de uma forma que transgride as regras do jogo. Cabe ressaltar que o conceito de corrupção antes de tudo depende da posição de cada observador ou do padrão jurídico de cada nação. O conjunto de regras moral e social do Brasil e do Paquistão é diferente entre si em alguns aspectos e alteram a avaliação da sociedade do que é ou não passível de corrupção. 2. As condicionantes da corrupção Durante algum tempo, a teoria econômica e social considerou que a corrupção apresentava aspectos benéficos. Entre esses estudos, Nye (1967) considerava que uma das vantagens da corrupção seria contornar o excesso de regulação e burocratização pública, podendo com isso acelerar os procedimentos. As empresas, por exemplo, poderiam dentro de um processo de licitação reduzir seus custos e aumentar suas eficiências subornando o agente do governo para obter informações sobre o processo. Nesse sentido, a corrupção servia também como uma forma de aumentar a produtividade dos agentes públicos. Obviamente, essa visão benéfica da corrupção não foi aceita nem pelo meio acadêmico e muito menos pela sociedade, e os argumentos para combatê-la são muitos. Segundo Rose (1975), é muito difícil limitar essas práticas de corrupção em áreas onde supostamente ela seria favorável. Além disso, uma vez aceita a cobrança de propinas para agilizar tal procedimento, nada impediria que os agentes públicos dificultassem os processo apenas para beneficiarem-se. Soma-se a isso o problema da generalização da corrupção, que desvia pessoas capazes e talentosas para atividades ilegais, deslocando toda a energia de determinados agentes para ações que não geram ganho social algum. Segundo Mauro (1995), quanto maior o nível de corrupção, menores são as taxas de investimento interno e externo. Não há nenhuma dúvida quanto aos malefícios da corrupção, porém é um problema posto. Para que a corrupção ocorra, algumas condições devem ser seguidas: (a) a existência de poderes discricionários, (b) a existência de rendas econômicas conside37 3. Corrupção: tipos e conseqüências Há diversos tipos de corrupção e formas 38 32 de combatê-las. Para Naím e Gall (2005), é possível classificar a corrupção em três tipos: a corrupção empresarial competitiva, a corrupção estimulada pelo crime organizado e a corrupção política. A corrupção empresarial competitiva inclui todas as atividades ilegais de uma empresa com o objetivo único de se manter competitiva no mercado. Essa é tipicamente uma corrupção empresarial que busca garantir a sobrevivência da empresa em um ambiente concorrencial. Essa situação é muito comum nos grandes projetos de obras públicas. Segundo Naím e Gall (2005), em alguns países, é praticamente impossível vencer um processo de licitação pública sem que se tenha subornado um agente público. Os regulamentos burocráticos dos governos acabam por estimular essas práticas. A corrupção estimulada pelo crime organizado é um pouco mais complexa de se identificar. As empresas envolvidas no crime organizado têm como foco, e são criadas única e exclusivamente para, infringir a lei. Conforme os lucros dessas atividades ENSAIO Textual: Corrupção: aspectos teóricos e seus resultados sobre a economia brasileira. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 36-42, setembro 2005 ráveis, e (c) uma percepção de impunidade relativamente baixa. Quanto maior a quantidade de poderes do agente do governo, maior poderá ser a chance deste oferecer, ao setor privado, práticas ilícitas. A separação dos poderes entre os diversos agentes permite diluir o poder de negociação. O item (b) fala por si mesmo, quanto maior o volume de recursos, maior será o estímulo para que os proprietários busquem evitar a regulação (Jain, 2001). Para a última condição, é necessário levar em consideração que o grau de corrupção irá depender da existência e abrangência das barreiras aos atos corruptos. Aqueles que optam pela corrupção devem acreditar que o risco e os rendimentos esperados por meio do ato ilegal são mais valiosos que os riscos ou inconvenientes de uma punição. O aumento da probabilidade de um determinado agente ser flagrado na prática ilícita ou de uma punição mais severa reduz o grau de corrupção. ENSAIO Textual: Corrupção: aspectos teóricos e seus resultados sobre a economia brasileira. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 36-42, setembro 2005 Corrupção: aspectos teóricos e seus resultados sobre a economia brasileira Corrupção: aspectos teóricos e seus resultados sobre a economia brasileira aumentam, principalmente aquelas relacionadas ao narcotráfico, o caminho natural passa a ser a diversificação das atividades, investindo em negócios legais de fachada. O narcotráfico boliviano é um exemplo claro dessa situação. Por fim, a corrupção política abarca os dois tipos anteriores e se manifesta por meio do roubo do Tesouro Nacional por parte das autoridades públicas ou através do financiamento ilegal de campanhas eleitorais. Segundo Naím e Gall (2005), partidos políticos do Japão, entre outro países, costumam se aproveitar de pagamentos realizados por empresas privadas e estatais para financiar suas atividades e seus estilos de vida suntuosos. A corrupção estimulada pelo crime organizado e a corrupção política são atualmente as duas formas mais correntes de corrupção. A primeira facilitada pela integração informatizada dos mercados financeiros, a segunda, fruto da disseminação da democracia que tornou as eleições mais freqüentes e os custos de campanhas mais elevados. Atualmente qualquer candidato a eleições precisa de dois recursos básicos, o dinheiro e o apoio público. A obtenção desses recursos faz com que os partidos políticos busquem contribuições de empresas, abrindo espaço para uma possível relação corrupta entre eles. Cabe lembrar que a democracia oferece oportunidades mais visíveis para a corrupção do que em regimes autoritários. Nestes últimos, por sua vez, a corrupção tende a ser institucionalizada, controlada e previsível. O grande problema da corrupção é que seu resultado final não se limita apenas a desviar recursos dos cofres públicos. Países com índices de corrupção elevados ou intermediários apresentam um menor volume de investimentos tanto interno como externo, em virtude do aumento da incerteza por parte dos agentes econômicos quanto ao custo e retorno de seus investimentos. A corrupção passou a ser um dos fa-tores relevantes na decisão do local do investimento. Segundo dados de Naím e Gall (2005), as empresas chinesas gastam entre 3% e 5% de seus custos operacionais com suborno de funcionários de outros países para obter vantagens ou garantir contratos. As menores empresas por sua vez sofrem mais, pois não têm recursos nem contatos suficientes para entrar na concorrência. Além disso, surgem graves distorções no estabelecimento de prioridades, principalmente em relação aos gastos públicos. Nesse sentido a corrupção impacta inclusive sobre o crescimento e o desenvolvimento econômico. Os estudos realizados pelo Banco Mundial demonstram claramente que os países que apresentaram maiores quedas no PIB em 2003 foram exatamente aqueles com maiores índices de corrupção. Segundo Al-Marhubi (2000), a corrupção impacta também sobre a inflação por três motivos. Primeiro, porque, em governos onde o custo de coleta dos impostos é elevado e a evasão fiscal é grande, a ampliação de receitas é realizada por meio da senhoriagem. Cabe lembrar que em nações corruptas a carga tributária é maior. Segundo, porque frente à corrupção há um aumento na informalidade dos negócios, ampliando sua dependência em relação à inflação, e, por fim, aumentando as receitas e elevando os gastos públicos. A corrupção contribui para o déficit fiscal, influenciando negativamente sobre a inflação. Além disso, reduz a produtividade do capital e o produto por trabalhador na economia, apresentando efeitos diretos sobre a taxa de juros. Contudo, a corrupção tem solução sim. Qualquer ação no sentido de combater a corrupção deve levar em consideração que a mesma pode ser vista como decorrência de um comportamento oportunista de um agente econômico relacionado ao controle e à regulamentação por parte do governo das atividades econômicas. Sendo assim, as ações direcionadas ao combate da corrupção devem, primordialmente, estabelecer regras sérias e justas, que garantam o resultado esperado pela sociedade. Os valores morais são fundamentais para que se compreenda a extensão da corrupção e a recrimine. A forma como a sociedade vê e aceita determinadas ações, como a violação das leis de trânsito ou a compra de produtos piratas/contrabandeados, é um indicador sobre a aceitação de atos corruptos. Sociedades com valores mais frágeis tendem a ser mais corruptas. Além disso, a probabilidade do indivíduo ser pego conta no momento deste tomar sua decisão. Desse modo, é necessário adotar sanções pecuniárias, pois em grande parte dos casos o objetivo do corrupto pode ser ampliar patrimônio. Logo, um prejuízo econômico 39 ENSAIO ligado a uma perda patrimonial hoje e no futuro fará o agente reavaliar suas decisões. Soma-se a isso a necessidade de simplificar os processos administrativos reduzindo os espaços para a corrupção, contando com a participação de órgãos de fiscalização e controle das políticas públicas. 4. A corrupção no Brasil Os mais honestos 40 Os menos honestos Colegas do Brasil 1 Finlândia 65 Malauí 151 Turcomenistão 2 Suécia 66 Jordânia 152 Angola 3 Islândia 67 Barein 153 Iraque 4 Cingapura 68 Croácia 154 Somália 5 Holanda 69 Sri Lanka 155 Myanmar 6 Nova Zelândia 70 BRASIL 156 Papua Nova Guiné 7 Dinamarca 71 Letônia 157 Sudão 8 Canadá 72 Peru 158 Rep. Dem. do Gongo 9 Suíça 73 Jamaica 159 Burundi 10 Inglaterra 74 Bielo-Rússia 160 Afeganistão 32 Textual: Corrupção: aspectos teóricos e seus resultados sobre a economia brasileira. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 36-42, setembro 2005 A corrupção no Brasil, ao longo da história, parece sempre ter estado presente na administração pública, em maior ou menor grau, influenciando a evolução do nosso país e a melhoria de nossa sociedade. Isso possibilitou, de certa forma, que o país estruturasse um sistema-norma capaz de reprimir os desvios de conduta administrativa, os crimes de colarinho branco, os desvios de verbas e a corrupção de modo geral. A luta contra a corrupção fica a cargo da Polícia Federal, do Ministério Público e do Poder Judiciário, auxiliados pelo Tribunal de Contas do Estado, o Ministério Público Estadual, Procuradoria Geral da República, Secretaria da Receita Federal, Câmaras Municipais e por que não dizer a imprensa, que tem a obrigação de divulgar as denúncias desde que isentas de qualquer aspecto ideológico ou interesses corporativos. Além desse instrumento, poderíamos citar as Comissões Parlamentares de Inqué- rito que têm como principal função investigar qualquer denúncia que envolva os membros do Poder Legislativo, tendo poderes de investigação assegurados pela Constituição. Cabe lembrar que não compete à Comissão julgar ou decidir, mas sim elaborar relatórios completos que serão encaminhados ao Plenário da Casa Civil. Os parlamentares devem estabelecer mecanismos transparentes de controle da atividade governamental e parlamentar que possam conter o gasto público, assegurar a utilização dos recursos em prol da sociedade e solidificar as instituições públicas. O grande problema é que as instituições brasileiras ainda são muito fracas, gerando um enorme abismo entre o que pregam, a norma/regras, e o que efetivamente é praticado. Isso reflete claramente quando observamos os resultados das pesquisas realizadas por dois economistas do Banco Mundial, Daniel Kaufmann e Art Kray, que elaboraram um banco de dados com indicadores de boa governança de 160 países e incluíram como indicador o combate à corrupção. Conforme a pesquisa, o Brasil ocupa a septuagésima posição, encontrandose ao lado de países como Sri Lanka, Malauí, Peru, Jamaica, Cuba e Bielo-Rússia (Tabela 1). O gasto com corrupção no Brasil está ENSAIO Textual: Corrupção: aspectos teóricos e seus resultados sobre a economia brasileira. Educ, Porto Alegre, v.1 n.6, p. 36-42, setembro 2005 Corrupção: aspectos teóricos e seus resultados sobre a economia brasileira Corrupção: aspectos teóricos e seus resultados sobre a economia brasileira estimado em R$ 100 bilhões, cerca de 5,5% do Produto Interno Bruto (PIB) de 2004. Isso significa um gasto anual per capita de R$ 800,00 ou de R$ 67,00 por mês. Segundo dados do Banco Mundial, caso a corrupção fosse estancada, a renda per capita brasileira poderia passar dos R$ 9.743,00 para R$ 16.394,80, o que representaria um crescimento de 68,72%. Em contrapartida, caso a corrupção chegasse a patamares como o de Angola, a renda per capita teria uma queda de 75%, passando para R$ 2.435,75. Além disso, calcula-se que o volume de investimentos de uma economia com grau de corrupção como a brasileira é cerca de 2,6% menor que uma economia com baixa corrupção, como o Chile. A corrupção pode significar, segundo o Banco Mundial, uma sobretaxa de 20% sobre os investimentos. Para que se tenha uma idéia sobre o que pode ser feito com os recursos desviados pela corrupção, podemos comparar com alguns indicadores disponibilizados pelos IBGE para o ano de 2004. Apenas para lembrar, o Custo na Corrupção no Brasil em 2004 foi estimado em R$ 100 bilhões. Nesse mesmo período, o volume de investimento estrangeiro indireto foi de R$ 52,9 bilhões, a amortização da dívida junto ao FMI² foi de R$ 2,6 bilhões, os investimentos da União ficaram na ordem de R$ 10 bilhões em Habitação, R$ 5,64 bilhões na Agricultura e R$ 23,94 bilhões na Saúde. Considerando que existe atualmente no Brasil, conforme dados do IPEA, cerca de 41,8 milhões de pessoas que ainda não têm acesso a serviços de saneamento básico e 17 milhões de pessoas que moram em residências superlotadas, onde a densidade populacional por dormitório é de três pessoas, o volume de investimento e o gasto com a corrupção são uma afronta. Isso sem considerar que um terço da população brasileira, o que equivale a dizer 53,9 milhões de pessoas, são pobres. Embora o Brasil esteja dentro do grupo de países intermediários no Ranking da Corrupção, alguns dados revelam que o problema pode ser mais sério do que se imagina. Um levantamento realizado pela Kroll Associates, multinacional de gerenciamento de risco, e pela Transparência Brasil, ONG preocupada com a promoção da hones- tidade, ajuda a dimensionar a relação do setor privado com a corrupção. Entre os seus resultados, um de cada três entrevistados disse que a corrupção é comum no ramo de negócios, 48% das empresas brasileiras que participam de licitações oficiais para obras e compras receberam pedidos de propina e 31% das empresas que dependem de licenças e alvarás oficiais receberam pedidos para pagar por fora. Dos agentes públicos com maior possibilidade de serem corruptos, segundo as empresas pesquisadas, são os policiais, fiscais tributários, funcionários ligados a licenças, parlamentares entre outros. Do total de empresas pesquisadas, 69% gastam até 3% de seu faturamento com a corrupção. Ao comparar os três níveis de poder, a esfera municipal parece com a mais corrupta. O Ministério Público estima que, entre 1993 e 2000, só a máfia de fiscais que agia na Prefeitura de São Paulo impediu que R$ 13 bilhões chegassem aos cofres públicos em forma de impostos ou taxas. É importante ressaltar que nem sempre a moeda de troca é o dinheiro. Funcionários corruptos pedem presentes e mordomias, empregos a parentes, bem como contribuições para campanhas eleitorais. Seguindo a linha da pesquisa, o imposto mais vulnerável à corrupção é o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Um exemplo disso foi a quadrilha de fiscais da Secretaria da Fazenda do Mato Grosso descoberta nos anos 90, que cobra 10% do ICMS devido para deixar a mercadoria entrar no Estado sem pagamento de impostos. Apenas um dos fiscais levava por mês cerca de R$ 90 mil. Em junho deste ano, o chefe da Delegação do Banco Mundial, Daniel Kaufmann disse: “Há países que estão em crise de corrupção. Esses estão na linha vermelha, como no caso do Zimbábue e da Guiné Equatorial. Depois, há os que estão na luz verde, que estão muito bem, como os países Bálticos e os países que acabam de ter acesso à União Européia. Há também os países que têm muitos desafios, são alaranjados, e há os que estão no meio de tudo, são os de luz amarela, como o Brasil”. A questão aqui é sabermos se vamos ² Dados para o 4º trimestre de 2004 41 Corrupção: aspectos teóricos e seus resultados sobre a economia brasileira passar o sinal amarelo ou se ficaremos presos no sinal vermelho. Essa decisão dependerá de como a sociedade, o governo e o país vão responder aos processos de corrupção. Conclusão AL-MARHUBI, Fahin A. “Corruption and inflation”. Economics Letters, vol. 66, pp.199-202, 2002. KRUEGER, Anne. “The political economy of the rent-seeking society”. The American Economic Review, [S.l.], vol. 64, n 3 (Jun., 1974), pp.291-303. MAURO, Paolo. “Corruption and growth”. The Quarterly Journal of Economics. Vol. 110, n 3 (Aug., 1995), pp.681-712. 42 SHLEIFER, Andrei; VISHNY, Robert W. Corruption. The Quarterly Journal of Economics. SINTAF-RS. “Fraudes com a corrupção custaram R$ 100 bilhões ao país”. Disponível em<http://www.sintaf-rs.org.br/>. Acesso em 12/07/2005. 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Muitas vezes, dentro das nossas próprias casas incentivamos certas atitudes que também são vistas como um ato de corrupção. Comprando produtos piratas, tendo pontos de TV a cabo não pagos ou lendo o jornal do vizinho, contribuímos para que essas atitudes sejam vistas como normais. Temos a tendência a achar que o corrupto é aquele que promove grandes golpes aos Estados, carrega malas de dinheiro e suborna políticos. Isso sem dúvida nenhuma é corrupção, principalmente dentro da visão econômica, mas faz-se necessário analisar esse conceito sob a ótica das demais áreas, como a Filosofia, a Sociologia e as Ciências Políticas. ENSAIO