Instruções aos autores do Sibragec 2009
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Instruções aos autores do Sibragec 2009
SUMÁRIO INTERVENÇÕES EM RUÍNAS: A EXPRESSÃO TECTÔNICA NA RELAÇÃO PASSADO-PRESENTE ZONNO, Fabiola do Valle (1); (1) PROARQ/FAU-UFRJ, [email protected] RESUMO O artigo analisa intervenções em ruínas, cuja especificidade está no valor de antiguidade presente nas marcas do tempo que afetam sua materialidade e sua forma. A questão central é como o valor poético da própria ruína pode ser (re)interpretado pelos arquitetos em suas proposições, valorizando a sua exploração fenomenológica no sentido tectônico - expressão construtiva que se revela no modo como é a relação entre materiais novos e antigos, como as junções e os detalhes são concebidos. A partir da metodologia de descrição fenomenológica e análise crítica são abordadas intervenções de manutenção e adição que demonstram diferentes visões de diálogo antigo-novo, entre o contraste e a analogia (Solà-Morales), a dissonância e a consonância (Kühl), reciprocidade e conflito (Tschumi). Frente ao debate sobre intervenções contemporâneas, entendemos que nos exemplos estudados a expressão construtiva ou tectônica, reconhecida como fundamento da arte da arquitetura nos monumentos do passado, constitui partido poético para constituir uma visão dialética em que diferentes tempos se valorizam reciprocamente. Palavras-chave: intervenção; ruína; tectônica; expressão construtiva. ABSTRACT The article looks at interventions in ruins whose specificity is not only the evidence of its constructive aspect, but also the values of antiquity, visible in the traces of time in materiality and form. The main question is how the poetic value of ruins can be reinterpreted by architect´s propositions in order to valorize its tectonic sense – the way new and old materials are related, how joints and details are designed. Using as method the phenomenological description and the critical analysis, we approach interventions that demonstrate visions between contrast and analogy (Solà-Morales), dissonance and consonance (Kühl), reciprocity and conflict (Tschumi). Considering the debate on the old-new, we understand that, in the studied examples, construction expression can be recognized as a poetic way of producing a productive connection between past and present, reinforcing tectonics as a foundation of the art of architecture. Keywords: intervention; ruin; tectonics; constructive expression. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO Ao tratar do tema das intervenções tendo como foco o objeto ruínas temos o objetivo de examinar e discutir possíveis relações dialógicas entre o passado e o presente. A questão central é como a especificidade da ruína pode ser (re)interpretada pelos arquitetos em suas proposições. Temos como hipótese que a tectônica, a escolha dos materiais e o exercício do detalhe possam ser reconhecidos como uma forma de abordagem poética para construir uma dialética em que passado e presente se valorizem reciprocamente. Primeiro, situaremos o debate antigo-novo e discutiremos o valor poético da ruína dos românticos aos contemporâneos, situando sua fruição estética entre o pitoresco e o sublime, em função de suas características em relação à forma e ao espaço e, especialmente, quanto à materialidade – enfatizando o sentido de tectônica e abordagem fenomenológica que desejamos explorar. Posteriormente, a partir de casos de intervenções de adição, selecionados em função do recurso a diferentes materiais, aplicaremos a metodologia da descrição fenomenológica e análise crítica, apoiados na documentação dos projetos, fotografias e, em alguns exemplares, visitas ao local. 2 INTERVENÇÕES EM RUÍNAS E SUA VALORIZAÇÃO POÉTICA Entendemos o conceito de intervenção no sentido restrito de um tipo de atuação que comporta sempre uma crítica ou interpretação de idéias anteriores, conforme aponta Ignasi Solà-Morales (1979): Todo problema de intervenção é sempre um problema de interpretação de uma obra de arquitetura existente, porque as possíveis formas de intervenção que se colocam sempre são formas de interpretar o novo discurso que o edifício pode produzir. Uma intervenção é tanto pretender que o edifício volte a dizer algo e o diga em determinada direção. (SOLÀ-MORALES, 2006 b:15) De modo geral, a noção de interpretação se apresenta nos discursos contemporâneos sobre a contextualização, sob o entendimento de que toda intervenção comporta o reconhecimento dos valores da mesma e o ajuizamento (crítico e seletivo) como base para a proposição de novas criações que resignifiquem o existente. Pensando o contexto como um “lugar de memória”, vemos a possibilidade da constituição de uma visão dialógica entre o passado e presente – reconhecendo-se a diferença entre ambos, mas também uma construção de sentido. Desdobremos esta hipótese partindo do conceito de “valor artístico relativo” de Alöis Riegl (1903) para quem, em função da coincidência entre algo da “vontade de arte” do presente e a do passado, muitos monumentos adquiriram um valor artístico especial e relativo à determinada época. Pensando a relação antigo-novo, Riegl admite a convivência de elementos de vários tempos históricos e mesmo a validade de obras atuais criticáveis pelo juízo do presente. Se admitirmos que, após os anos 1960, a ideia de “vontade de arte” torna-se uma noção multiplicada, liberta de um único paradigma e SUMÁRIO aberta à pluralidade dos tempos, podemos colocar a questão sob nova luz. O arquiteto pode reconhecer como valor contemporâneo algo que o monumento do passado possui e buscar interpretá-lo no presente. A vontade de arte hoje se centra na postura individual do arquiteto e em seu desejo de interpretar o existente. O arquiteto, frente ao desafio de dialogar com uma obra do passado, pode buscar, através de sua intervenção, a exposição/ valorização de determinado(s) aspecto(s) para os quais reconhece caráter na obra. A pré-existência constitui a possibilidade de interpretação contemporânea, sempre multiplicada, enquanto poética singular. Importante destacar que partimos do pressuposto de legitimidade do contemporâneo como diferença, ou melhor, de estrato histórico para o qual se deve reconhecer o direito de expressão na construção do lugar e da memória no presente. Se a intervenção nasce enquanto interpretação do próprio existente, como ação contextual, ela pode atingir, assim como as obras site specific, o potencial da arte, reinventando a paisagem e instaurando novas relações poéticas (ZONNO, 2014). Assim, o conjunto in situ, passado-presente, entendido como um fenômeno único e entrelaçado é capaz de evocar novas leituras e instituir ou reafirmar valores. Beatriz Kühl (2008) se coloca em relação ao tema da inserção contemporânea, admitindo como legítima a pretensão de obra de arte para o novo, mas enfatizando o respeito ao antigo. Sobre as possibilidades de intervenção, a autora usa os termos “diferenciação em dissonância” e “diferenciação em consonância”, estabelecendo comparação com a música: na consonância pretende-se conjugar notas diversas num acorde harmônico sem, porém, trabalhar por imitação (assonância); na dissonância cabe ao arquiteto interpretar como pode contribuir para valorizar o conjunto, explorando a polifonia, mas evitando a cacofonia – a ostentação de sua presença. Ao abordar o tema no texto “Contraste e Analogia – novos desdobramentos do conceito de intervenção arquitetônica” (1985), Solà-Morales reconhece na abordagem da analogia um modo de interpretação do passado em que diferença e similaridade convivem: Como operação estética, a intervenção é proposta livre, arbitrária e imaginativa pela qual se procura não só reconhecer as estruturas significativas do material histórico existente, como também usá-las como marcos analógicos para a nova construção. Da mesma forma que a diferença e a similaridade, a comparação no interior do único sistema possível, o sistema específico que o objeto existente define é a base de toda analogia (SOLÀ-MORALES, 2006: 262). Bernard Tschumi, no texto “Concept, Content, Context”, pensando a relação entre conceito e contexto, vislumbra três possibilidades de relação: indiferença, reciprocidade e conflito. A indiferença é uma coexistência sem interação; a reciprocidade implica na interação complementar formando uma entidade contínua; e o conflito em uma deliberada batalha de opostos (2004:11). Analisando as idéias destes autores, entendemos que a visão de analogia em Solà-Morales se aproxima da de “diferenciação em SUMÁRIO consonância” em Kühl, quando se propõe uma renovada sintaxe, assegurada a preservação, a inovação e o uso da criatividade, que por sua vez identifica-se à ideia de reciprocidade em Tschumi. Oscilam entre uma maior ou menor releitura do antigo. Usando os termos de Tschumi, a diferenciação em dissonância dá continuidade à postura moderna de contraste, porém sem demonstrar indiferença em relação à pré-existência, possivelmente escolhendo estratégias de conflito. Buscaremos analisar como, no caso específico de intervenções em ruínas, encontramos estas abordagens como resposta à nossa questão central: como a especificidade poética da ruína pode ser interpretada pelos arquitetos em suas proposições. Tendo como hipótese a ênfase na questão tectônica e fenomenológica, podemos mesmo reconhecer estas estratégias como abordagens de interpretação. Segundo Brandi (1963), será ruína “tudo aquilo que é testemunho da história humana, mas com um aspecto bastante diverso e quase irreconhecível em relação àquele de que se revestia antes” (2004:65). Neste sentido, em seu clássico texto, Georg Simmel afirma que o equilíbrio entre a matéria e o espírito que lhe dá forma, característico da arquitetura como obra de arte, é rompido na ruína, quando “as forças da natureza começam a predominar sobre a obra humana”. Mas a ruína não se reduz a um monte de pedras, nela resistem arranjos precários, “a forma presente da vida passada”: No momento em que o desabamento do edifício destrói a coerência da forma, os partidos separam-se novamente e explicitam sua inimizade original, que perpassa o mundo: como se a formação artística houvesse sido apenas um ato de violência do espírito, ao qual a pedra se submeteu a contragosto, como se ela (...) retomasse as leis autônomas de suas forças. No fenômeno da ruína, forma e matéria possuem expressão singular, o que pode ser reconhecido como uma outra condição estética, artística. Podemos entender que a força da ruína está na condição explícita de seu caráter construtivo e material – capaz de suscitar um apelo tátil à percepção, um redimensionamento da experiência; também em sua própria condição de limite entre arquitetura e natureza, próxima de obras artísticas no campo ampliado da escultura. Já o Romantismo reconheceu as ruínas em sua própria condição estética através das idéias de pitoresco e sublime, respectivamente relacionando a ruína à integração do homem com a natureza ou à intuição do ciclo da vida e da morte. Simmel vê o sublime na sedução das ruínas por seu aspecto trágico, fruto das forças que por meio da decomposição, da enxurrada, do desmoronamento e do crescimento da vegetação levam a crer no retorno ao pó ou na destruição da forma espiritual (obra de arte) pela atuação das forças naturais como inversão da ordem. “O valor estético da ruína unifica o desequilíbrio, o eterno devir da alma que luta consigo mesma”. Também o pitoresco pode ser reconhecido quando o autor descreve a paz de união da ruína à paisagem circundante, quando a ruína e o chão ao seu redor ganham igualdade de coloração, quando o tempo leva à sedução do SUMÁRIO tecido velho, da unicidade do tom. Ruskin (1849), entrelaçando os dois conceitos, fala do “pitoresco”, próprio às ruínas, como “sublimidade subordinada ou parasitária”, sublimidade que depende de acidentes e provoca linhas angulares e quebradas, oposições vigorosas de luz e sombra, e cores profundas ou fortemente contrastadas (2008:72). Mas se os românticos falavam da ruína como fruto da ação do tempo, a História nos legou muitas ruínas como fruto de eventos nos pós-guerra. Nos debates da arte contemporânea, a ruína tem sido valorizada como espelho da frustração das expectativas de futuro projetadas pela Modernidade, apontando a impossibilidade de controlar a entropia dos processos de transformação da paisagem, além de identificar-se a um tipo de experiência da obra que se renova no momento da percepção. O artista norte-americano Robert Morris, refletindo sobre a relação entre arquitetura e escultura, reconhece nas ruínas “espaços excepcionais, de uma complexidade incomum, que oferecem relações únicas entre o acesso e a barreira, entre o aberto e o fechado, o diagonal e o horizontal, o plano de chão e o da parede” (MORRIS, 2006:410-411). A ruína possui características especiais que podem levar às diversas formas de interpretação pelos arquitetos. Quanto à forma, é expressão do fragmento ou de um “não-acabado” ao inverso; quanto ao espaço, possui uma relação ambígua entre interior e exterior, o que numa visão do pitoresco pode sugerir a contemplação através do passeio, mas numa visão do sublime, pode levar à experiência de deslocalização; quanto à materialidade, a ruína conquista unicidade de tom ou fortes contrastes de sombras, sua matéria e técnica de construção tornam-se evidentes; dada a sua fragmentação, pode se tornar difícil o reconhecimento de seu valor tectônico para o conjunto formal original. Se a condição de ruína pode ser reconhecida como um fenômeno que possui valor de antiguidade, mas também valor estético, como pensar intervenções que a valorizem enquanto tal? Cumpre-nos lembrar as recomendações da Carta de Veneza (1964) no sentido de assegurar a manutenção das ruínas, sua conservação e proteção, buscando facilitar a compreensão do monumento sem jamais deturpar seu significado. Brandi, em sua Teoria da Restauração (1963), reconhece ser uma ilusão tentar fazer a ruína retomar a forma original, a ruína “deve ser tratada como ruína e a ação a conduzir deve permanecer conservativa e não integrativa” (2004: 83). Kühl esclarece que, ao tratar do tema de inserções em locais de elementos perdidos (por desabamentos ou bombardeios), Brandi assevera que “novas formas podem ser inseridas para elaborar de modo original uma nova imagem, mas que este seria um problema de criação e não de restauro” (Kühl, 2008: 159). É no sentido especialmente de criação que vemos as intervenções em ruínas, constituindo um novo fenômeno em que passado e presente se entrelaçam dialogicamente; adições de novas formas e materiais SUMÁRIO segundo a interpretação e visão crítica dos arquitetos podem suscitar a valorização da ruína em seus aspectos artísticos e de rememoração. Sustentamos a hipótese de que a tectônica ou expressão construtiva possa ser reconhecida como valor nos monumentos do passado, especialmente no caso das ruínas. A discussão da tectônica é apresentada como parte do interesse fenomenológico de “retorno às coisas mesmas” em sua capacidade de congregar (condensar significados no ambiente). Neste contexto, Kenneth Frampton (1990) defende que os arquitetos possam voltar “à unidade estrutural como essência da forma arquitetônica”, afirmando a junção como elemento tectônico primordial, nexo em torno do qual o edifício articula-se como presença. E que o sentido do termo tectônico deve ser pensado em “sua amplificação formal relativamente ao conjunto de que faz parte”, indicando uma poética do construir: “não estamos aludindo à mecânica da construção, mas à manifestação de uma estrutura potencialmente poética, no sentido original da palavra grega poiésis, como ato de criar e revelar” (FRAMPTON, 2006: 559). Nos debates recentes da fenomenologia, a tectônica é reconhecida como potência para uma arquitetura tátil e de realismo sensorial, como defende Juhani Palasmaa: A autenticidade da experiência da arquitetura se fundamenta na linguagem tectônica de se edificar e na abrangência do ato de construir para os sentidos. Contemplamos, tocamos, ouvimos e medimos o mundo com toda nossa existência corporal, e o mundo que experimentamos se torna organizado e articulado em torno do centro de nosso corpo. (PALASMAA, 2011: 61) Esta abordagem pode ser ampliada ao tema das intervenções, pensando o fenômeno novo em sua póiesis na relação com o antigo em sua poiésis (mesmo que fragilizada), constituindo o fenômeno ruínaintervenção ou passado-presente em que a tectônica como valor atemporal da arquitetura é emancipada. 3 A EXPRESSÃO TECTÔNICA NO FENÔMENO PASSADO-PRESENTE Abordaremos intervenções de conservação e adição de novos materiais que, como diferença, afirmam a condição contemporânea do projeto. As obras foram selecionadas com o objetivo de explorar a relação entre diferentes materiais e a pedra, principal material encontrado nas ruínas, e as singulares interpretações dos arquitetos. 3.1 O fenômeno PEDRA - TIJOLO Em Colônia, na Alemanha, uma intervenção foi realizada em 2008, nas ruínas de um edifício gótico tardio, a Igreja de Kolumba, e de uma área arqueológica que inclui uma insula romana e uma igreja românica, além de uma parede de vitrais, limite da capela construída por Gottfried Böhm em 1956. Desejava-se que a construção de um novo museu no local sensibilizasse a percepção e correspondesse à dignidade do existente, evocando intimidade e proximidade. SUMÁRIO O arquiteto Peter Zumthor reinterpreta o valor poético das ruínas, através de sua materialidade, enfatizando o aspecto construtivo, sem temer a relação direta com as ruínas (preservadas em seu estado original). A intervenção toca os seus limites fragmentados, numa sugestão de complementaridade entre o passado e o presente, criando uma grande área de proteção e observação do sítio cujo valor histórico torna-se evidente como palimpsesto do tempo da cidade. A abordagem sugere analogia ou diferenciação em consonância em relação às pedras e tijolos originais. Desenvolve tijolos cinza feitos à mão e inflamados com carvão para adquirir uma tonalidade específica que se harmonizasse à pré-existente. Os tijolos são previstos cuidadosamente em suas dimensões para que o detalhe dos encontros entre os materiais novos e antigos preservasse a continuidade. O modo como são assentados revela não só esta preocupação, mas também a de reciprocidade com o sentido de forma “arruinada”, ao deixar espaços entre os tijolos sem fechamento. Esta ação tem conseqüências para a experiência do interior, permitindo a entrada da luz que penetra fenomenologicamente de modo difuso se altera ao longo do dia, promovendo ainda o efeito de manchas de sombra sobre as ruínas – o que, ao mesmo tempo, cria entre os diferentes tempos, materialmente presentes, um “entrelaçamento” e remete ao caráter sublime, entre luz e sombra, claro e escuro das ruínas, reinterpretando-as poeticamente. O efeito da luz no interior produz uma espécie de “trama”, reduzindo a percepção de peso das pareces contemporâneas em relação às medievais, que se harmonizam. Do exterior, o volume do edifício novo é marcante por sua diferença em relação às poucas superfícies da ruína visíveis, embora se contextualize muito bem ao entorno imediato. Vivenciando o espaço interior percebe-se a intenção de promover uma experiência diferenciada e poética “de dentro” do sítio; o arquiteto desenha um percurso pitoresco através de uma passarela angulosa que se justifica pela proposição de visuais de interesse para a observação também dos detalhes da construção e de elementos simbólicos que resistiram ao tempo. Observamos o uso do tijolo também no projeto do Castelo Astley, em Warwickshire na Inglaterra - conjunto em ruínas (fruto de incêndio em 1978) de traços medievais e adições posteriores que deveria ser reabilitado como casa. A proposta do arquiteto Witherford Mann (2012) foi estabilizar as ruínas e manter, na medida do possível para o uso proposto, a poética da ruína enquanto espaço de limites abertos, deixando em evidência seu aspecto construtivo exposto pelo tempo. As adições foram executadas utilizando materiais que dialogassem com aqueles da ruína, preservando analogicamente a uniformidade dos tons. Dada a diferença do caráter tátil do tijolo frente à pedra, nas superfícies das paredes, ainda é possível perceber a ruína como fragmento. Novo e antigo fundem-se em uma síntese, constituindo uma nova unidade, em que a sintaxe é criativamente reelaborada, sem SUMÁRIO deixar de considerar o valor da ruína em seus aspectos materiais espaciais e formais – diferenciação em consonância. Sua espacialidade ambígua foi reinterpretada. Paredes externas tornam-se internas e internas externas, o que provoca uma sensação pitoresca de contínua descoberta do espaço. Alguns tetos sem fechamento configuram pátios abertos, preservando a tensão entre aberto e fechado própria à ruína. Uma estrutura de vigas de concreto pré-moldado finas suporta o madeiramento para o telhado sobre o novo espaço e, nos volumes abertos, uma faixa estreita em torno de sua borda oferece às paredes proteção. Embora francamente distintos, tijolo, concreto pré-moldado e madeira laminada harmonizam-se à pedra original em delicados encontros promovidos pelos detalhes cuidadosamente pensados. 3.2 O fenômeno PEDRA - CONCRETO Na Capela de Nossa Senhora da Conceição, no Recife, em 2006, Paulo Mendes da Rocha propõe a recuperação da ideia de abrigo diante das ruínas de um casarão do século XIX do artista Francisco Brennand. As alvenarias externas foram restauradas, mas as grandes paredes de pedra com arcadas tiveram camadas de massa e revestimentos removidos para que o aspecto do material e da técnica construtiva utilizada se tornasse expressivo. Um novo teto, todo em concreto protendido, parece flutuar sobre as paredes de pedra, mantendo uma distancia física (80 cm) notadamente perceptível. A cobertura não se apóia na ruína, mas sim em dois grandes pilares. Os limites da intervenção são consonantes ao perímetro da ruína, configurando um teto que remete ao que se perdeu, porém assumindo a diferença ao negar a forma de apoio tradicional do teto sobre as paredes e explicitar o modo construtivo moderno e sua tectônica. Os painéis em ângulo no teto são implantados não só para uma configuração autoportante, mas para criar maior entrada de luz no interior. A cerâmica de Brennand é escolhida para o piso com tom de cor para harmonizar-se analogicamente com o concreto e contrastar com a pedra. O aspecto exterior do edifício revela-se dissonante em relação à ruína, assumindo na forma um campanário vertical que marca a alteração do uso, já a materialidade da alvenaria branca cria uma dialética contrastante com a ruína, polarizando novo e antigo com tensão. Destaca-se na intervenção um caráter de verdade do material e expressão tectônica, despertando a atenção para este mesmo aspecto nas ruínas, mesmo como diferença e maior dissonância. No projeto de Lina Bo Bardi em parceria com Marcelo Carvalho Ferraz e Marcelo Suzuki, além de Lelé, para a Ladeira da Misericórdia, no centro histórico de Salvador, destaca-se a mesma a abordagem de, ao inserir um material contrastante, expresso em sua verdade, despertar o valor tectônico da obra e da própria ruína como um todo. SUMÁRIO A intervenção se deu em um conjunto de sobrados na encosta, dentre os quais alguns, dada sua condição, foram restaurados e dois, segundo a interpretação de Lina, foram mantidos em sua condição de ruína. A adição busca uma transição entre o gabarito das edificações conservadas e a altura das ruínas, como uma forma de continuidade que, ao mesmo tempo, assume um desenho descontínuo e sugere o “arruinado”. No limite do conjunto, a intervenção assume uma forma plástico-orgânica pousada sobre o muro de pedra, que dialoga com o aspecto natural da encosta, mas contrasta com os sobrados restaurados, retomando a tensão natureza-cultura própria da ruína – o que pode ser entendido como uma reinterpretação de sua poética. Embora seja possível distinguir o material novo, ferro-cimento prémoldado – em função contraste com a alvenaria branca do casario restaurado – quando da relação com a pedra, há uma síntese na uniformidade do tom. A diferença se dá pelas caneluras que impõem um novo sentido tátil, mas que sutilmente aludem à marcação vertical da implantação de todo o casario em relação à encosta. Dada a situação de dois materiais diferentes, Lina não se furta a inserir um terceiro elemento e ampliar a polifonia, assumindo a diferenciação, mas buscando a consonância seja em relação ao natural seja à ruína em que passado e presente dialogam reconduzindo um ao outro à valorização dos aspectos materiais, tectônicos e formais. 3.3 O fenômeno PEDRA - VIDRO No projeto de um museu do antigo Moinho Washburn de 1880, destruído por um incêncio em 1991, em Minneapolis nos E.U.A, os arquitetos Meyer, Scherer e Rockcastle interpretaram a relação com o espaço livre como um aspecto pitoresco de valorização da própria ruína. Ao atravessar a fachada original em fragmentos, tem-se a impressão de entrar em um sítio que preserva seu aspecto arruinado, mas nos defrontamos com a imposição de uma nova fachada transparente que marca sua distancia temporal. Embora outros materiais tenham sido usados – buscando analogia com o aspecto industrial como tijolo, concreto e ferro - o vidro assume o protagonismo no diálogo com a ruína. A partir da nova fachada em vidro tem-se a contemplação ao mesmo tempo da ruína e suas escavações e da paisagem do rio Mississipi, oportunidade de ver, em tensão, natureza e arquitetura. Estruturas originais do moinho foram mantidas como parte do museu; o sublime ecoa do grande vazio e do contraste entre as superfícies: as paredes maciças de pedra e os grandes panos de vidro em conflito. A estrutura metálica nova e os fechamentos em vidro se destacam por seu caráter não óbvio, sugerindo relevos e marcações diferenciadas, que ora recobrem, ora não, parte da edificação arruinada. Como em uma colagem, em alguns momentos, a parede original parece estar em primeiro plano, ora o vidro, criando um efeito perceptivo de ambigüidade entre figura e fundo, de traspassamento. Para aludir à SUMÁRIO memória, contornos do maquinário original são estampados nos vidros, o que enfatiza o efeito de superposição de camadas. O caráter de palimpsesto, entre o real e a imagem, é evidente em todo o conjunto. Outro projeto em que se observa a ênfase no uso do vidro é a Escola de Música Maurice Durufle (2012) da equipe Opus 5. A preexistência caracterizava-se por um conjunto que sofreu sucessivas alterações: um mosteiro com claustro do século XVII, com uma igreja e duas alas de convento tem seus espaços transformados em tribunal e prisão; no final do século XIX, a igreja foi demolida e em 1934, a prisão fechada, quando a ala sul entra em arruinamento. O novo projeto deveria propor uma nova imagem para a escola fundada ali em 1990, projetando a cidade de Louviers na França como um espaço de cultura contemporâneo. Um programa extenso para abrigar um salão de orquestra e a exiguidade de espaço fez com que os arquitetos criassem uma imposição volumétrica diretamente sobre o existente. As ruínas do claustro já configuravam uma imagem pitoresca, unindo-se à vegetação e à visão do rio – ponto de valorização. Buscando a reinterpretação desta situação, voltando-se para o claustro, o edifício marca-se como um diferencial com uma fachada em vidro laminado. Superpondo-se ao antigo e avançando sobre ele, porém respeitando os limites dos pavimentos, sugere consonância e leveza. O fechamento em vidro torna-se expressivo, completamente liso e uniforme, refletindo não só o céu, mas também a própria edificação antiga, criando uma espécie de duplo que sugere a continuidade do volume. Há de fato um contraste entre o antigo e as técnicas e materiais novos utilizados, mas, no caso do vidro, com o objetivo de reduzir ao máximo o efeito das tensões construtivas, produz-se um efeito de quase desmaterialização; o caráter de unidade das superfícies laminadas se deve a um sistema de fixação não visível do exterior. Já nas fachadas que não se voltam ao claustro a dissonância do volume e o peso do novo sobre o antigo se fazem sentir em função dos fechamentos com painéis em concreto pré-fabricado que se conectam à estrutura metálica – seu caráter liso contrasta com o tátil da pedra. O perfil da ruína é marcado explicitamente através do detalhe da transição entre os materiais: o limite formal acompanha e retifica o contorno da ruína salientando a sobreposição do novo com o antigo. Também nesta visada parte da ruína fica intacta, valorizando, a partir da rua e do claustro, seu perfil fragmentado e descontínuo original. 3.4 O fenômeno PEDRA - METAL O projeto de intervenção nas ruínas do Palácio Szathmáry, em Pecs, na Hungria (2007-2011), por Márton Dévényi e Pál Gyürki-Kiss (MARP), buscou enfatizá-las como elemento pitoresco na paisagem e “aceitar sua existência”, com camadas de edificação construídas em diferentes períodos: pouco das características de sua origem renascentista, uma edificação com pátio interno feito de pedra local, uma torre, da época SUMÁRIO da ocupação otomana no século XVI e, no século XX, alguns arcos construídos para representar signos do passado. Os arquitetos decidiram remeter analogicamente aos espaços e à configuração da forma original, mas sem buscar a reconstrução ou o fechamento da edificação, valorizando a ambiguidade interior-exterior própria da ruína. Assim, marcam a presença contemporânea através de uma estrutura em forma de L, que possui uma torre-mirante que oferece tanto a vista para a cidade como para todo o sítio, valorizado enquanto conjunto visto de cima. Por outro lado, o visitante é convidado a um deambular peripatético e pitoresco, quando a todo tempo surgem novas relações com a ruína. Todo o conjunto torna-se um espaço vivenciável, inclusive com palco para fins teatrais. A ruína foi mantida em seu estado original, deixando à mostra as marcas em seu substrato material. O aço córten escolhido como material da intervenção diferencia-se claramente do antigo, mas enfatiza, a condição material tanto para si e como para a ruína, pois que assumem a pátina do tempo. Tal aparência fica explícita reunindo a ambos sob um aspecto de desgaste e ação entrópica da natureza sobre a materialidade, explorando a caráter tátil da percepção. Uma vez que as chapas são perfuradas, produz-se um feito de alteração constante não só através da luz, mas também de fragmentação ao tentar se observar o conjunto através das pequenas aberturas. A intervenção no restaurante contemporâneo La Centrale, produzida por Bernard Khoury, transformou uma edificação residencial dos anos 1920. As paredes existentes guardam as marcas da guerra civil libanesa de 1975 a 1990, que levou o edifício ao estado de ruína. A proposta era manter o próprio caráter do desgaste das paredes que, tendo o revestimento exterior quase que completamente removido, deixava ver a técnica construtiva com paredes de pedra autoportantes. Destaca-se a estabilização da fachada, realizada com uma estrutura em aço, formando painéis como uma malha, francamente exposta, sobrepondo-se à ruína – um visível contraste com a edificação. A malha envolve a ruína como uma gaiola. Trata-se de uma diferenciação em dissonância, conflito até, em que passado e presente disputam em uma dialética sem síntese que engendra uma tensão sobre a resistência. Tanto do exterior como do interior, a presença da ruína torna-se frágil. Uma contenção em concreto moldado in loco sustenta internamente as paredes, que são revestidas por tramados em madeira que deixam ver os cheios e vazios da edificação original apenas como efeitos poéticos fantasmagóricos de luz e sombra. Ao estriar a ruína com a estrutura metálica, a intervenção mantém viva a lembrança da violência, engendrando a evocação da memória da dor presente no edifício – uma experiência próxima ao terror do sublime. SUMÁRIO 4 CONCLUSÃO Reconhecemos em nossas análises que analogia e contraste, consonância e dissonância, reciprocidade e conflito, sob diferentes aspectos, podem ser encontrados inclusive numa mesma obra. Independente da materialidade escolhida é a interpretação do encontro com a ruína, nas junções e detalhes, e sua percepção enquanto fenômeno que nos levará à crítica sobre sua valorização. O caráter de diferença do presente deve sempre buscar uma relação em que o fenômeno passado-presente, promovendo uma resignificação valorize a ruína como lugar de memória e lugar da fruição estética – capaz de emocionar e desnaturalizar nosso modo de ver o mundo. Dada a riqueza das ruínas em sua ambiguidade entre arquitetura e natureza, as intervenções, enquanto poética, devem preservar a tensão entre opostos como forma de reinterpretá-la em suas características de pitoresco e sublime, fragmentação, limites espaciais imprecisos, unicidade de tom, contrastes de luz e sombra e especialmente, expressão material. Neste trabalho afirmamos a exploração da tectônica no diálogo antigo-novo como possível abordagem de projeto, reconhecendo-a como um valor no passado e no presente, poiésis constitutiva da arte da arquitetura através dos tempos. REFERÊNCIAS BRANDI, C. Teoria da Restauração. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. FRAMPTON, K. Rappel à l´ordre, argumentos a favor da tectônica (1990). In: NESBITT, K. Uma nova agenda para a arquitetura. São Paulo: Cosac&Naify, 2006, p.556-569. KÜHL, B. M. Preservação do Patrimônio Arquitetônico da Industrialização problemas teóricos de restauro. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2008. MORRIS, R. O tempo presente do espaço (1978). In: FERREIRA, G; COTRIM, C. Escritos de Artistas – anos 1960/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 403-420. PALASMAA, J. Os olhos da pele. Porto alegre: Bookman, 2011. RIEGL, A. O culto moderno dos monumentos e outros ensaios estéticos. Lisboa: Edições 70, 2013. RUSKIN, J. A lâmpada da memória. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2008. SIMMEL, G. 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