Flávia Alessandra Lopes Adolfo

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Flávia Alessandra Lopes Adolfo
Flávia Alessandra Lopes Adolfo
PROFT em Revista
O TRADUTOR-LEITOR E A TRADUÇÃO “FIEL”:
ISBN 978-85-65097-00-0
A RELAÇÃO ENTRE TEXTO, SENTIDO E FIDELIDADE NA
Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2013
Vol. 1, Nº 3 março de 2014
TRADUÇÃO DE TEXTOS DE HUMOR
RESUMO
Flávia Alessandra Lopes Adolfo
Graduada em Tradução pela Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE).
Especialista em Metodologia da Tradução pela
Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE).
Professora de Inglês como Língua Estrangeira
e Tradutora.
O objetivo deste trabalho é levantar algumas questões teóricas
relacionadas à tradução de textos de humor, refletir sobre os
procedimentos técnicos empregados pelo tradutor durante o processo
de tradução e suas escolhas diante de um texto humorístico, tanto do
ponto de vista interno das línguas (estrutura, sintaxe, vocabulário)
quanto do extralinguístico (aspectos culturais). Para isso, exploramos
o sentido de “texto” e o papel do tradutor enquanto leitor; além disso,
identificamos as características de um texto de humor, a fim de
restringir o gênero aqui abordado, utilizando alguns exemplos da
peça “Death Knocks”, de Woody Allen, traduzida por Ruy Castro,
para ilustrar as teorias acerca do processo tradutório e demonstrar
como o tradutor pode vir a fazer uso de certos recursos distintos da
tradução literal para manter o estilo e a intenção do texto original,
ainda que sua tradução seja, inevitavelmente, um texto diferente do
primeiro.
Palavras-Chave: humor, texto, tradução, tradução criativa, Woody
Allen.
ABSTRACT: The purpose of this work is to raise theoretical issues
related to the translation of humorous texts and to reflect about
technical procedures used by translators during the translation
process and also their choices when working on a humorous text,
regarding not only the internal aspects of the languages
(structure, syntax, vocabulary) but also the extralinguistic ones
(cultural aspects). In order to do so, we explore the meaning of
“text” and the role of the translator as a reader; we also identify
the characteristics of a humorous text to restrict the genre that is
being discussed, besides using examples from the play “Death
Knocks” by Woody Allen translated by Ruy Castro, to illustrate
the theories about the translation process and to demonstrate
how translators manage to avoid literal translation and still
maintain the style and intent of the original author, although
their translation is inevitably a different text from the first.
Flávia Alessandra Lopes Adolfo
Keywords: humor, text, translation, creative translation, Woody
Allen.
Contato:
[email protected]
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INTRODUÇÃO
1) Tradução e fidelidade
Muito se tem discutido, no meio acadêmico da tradução, acerca da “fidelidade” de um
texto traduzido em relação ao seu original. Apesar de as teorias da tradução se tornarem, por
vezes, repetitivas, nunca se chega a uma conclusão final ou a uma verdade absoluta, visto que
traduzir é uma atividade inegavelmente ligada à visão de mundo daqueles que a realizam. Isto
é, para se traduzir é necessária uma leitura atenta cujo resultado dependerá da interpretação do
tradutor, antes de tudo um leitor.
É interessante analisar de que forma o tradutor pode vir a ler um texto e, a partir de sua
visão e de seu conhecimento, decidir de que forma proceder ao traduzi-lo, principalmente
quando se trata de uma produção literária, pois não é somente o conteúdo que importa, é
também – e talvez principalmente – a maneira como ele é passado, sua forma. Além disso,
deve-se levar em consideração também o gênero a que o texto pertence.
O objetivo deste trabalho é, mediante análise da tradução da peça “Death Knocks”, de
Woody Allen, escritor e cineasta americano, pelo escritor e tradutor brasileiro Ruy Castro,
observar os procedimentos técnicos empregados pelo tradutor durante o processo de tradução e
levantar questões relacionadas às suas escolhas diante de um texto humorístico, tanto do ponto
de vista interno das línguas envolvidas (estrutura, sintaxe, vocabulário) quanto do
extralinguístico (aspectos culturais). Para isso, exploramos o sentido de texto e o papel do leitor;
além disso, identificamos as características de um texto de humor e utilizamos exemplos da
peça analisada para ilustrar as teorias acerca do processo tradutório e demonstrar como o
tradutor fez uso de certos recursos distintos da tradução literal para manter o estilo e a intenção
do texto original, ainda que sua tradução seja, inevitavelmente, um texto diferente do primeiro.
2) O Tradutor leitor
Quando se fala em “traduzir”, geralmente se pensa em línguas diferentes e “passagem”
de um texto de uma língua para outra. No entanto, se ampliamos esse conceito e, em vez de
língua, falamos em linguagem, traduzir pode ser, também, adaptar. Adaptar um texto de um
gênero para outro, de um nível de dificuldade para outro, de um tipo de linguagem (um
romance, por exemplo) para outro (um filme).
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Como definir, então, em que consiste o trabalho do tradutor? Na década de sessenta,
uma das principais tentativas de sistematização de postulados teóricos sobre a tradução partiu
de J.C. Catford, em seu livro Teoria linguística da tradução (1980). Logo no início, a definição
apresentada por ele parece simples: “tradução é uma operação que se realiza nas línguas: um
processo de substituição de um texto numa língua por um texto em outra” (1980:1). Apesar da
objetividade da definição, ela em si não é completa (ao menos não na concepção que estudos
posteriores buscariam apontar), pois não discute profundamente o que seria essa
“substituição”, além de a própria questão de “o que é texto” não ser prioridade de Catford, que
tem seu estudo guiado por uma concepção mais estrutural (nesse caso, o texto é visto como o
“todo” formado por sons, palavras, frases, períodos de uma língua organizados
sistematicamente). Portanto, para entender as várias concepções de tradução posteriormente
desenvolvidas, é importante entender o que é língua e o que é texto.
Segundo Marcuschi (2008, p. 240), a língua é “um fenômeno cultural, histórico, social e
cognitivo que varia ao longo do tempo e de acordo com os falantes: ela se manifesta no seu
funcionamento e é sensível ao contexto”. Assim sendo, a definição de língua abrange não só as
partes que a compõem morfologicamente (fonemas, morfemas, palavras, frases etc.), mas
também o fato de que ela é viva, mutável e está inserida dentro de um contexto que tanto a
modifica quanto é modificado por ela.
Quanto ao texto, a definição dada por Bakhtin (1997) vai além do sentido geral de
“conjunto coerente de signos”, apesar de deixar claro que
cada texto pressupõe um sistema compreensível para todos
(convencional, dentro de uma dada coletividade) – uma língua (ainda
que seja a língua da arte). Se por trás do texto não há uma língua, já não
se trata de um texto, mas de um fenômeno natural (não pertencente à
esfera do signo). (1997, p. 331).
Ele também ressalta o fato de que o texto vai além da língua no sentido de que, seja ele
oral ou escrito, é dado primário “de qualquer pensamento filosófico-humanista”, representando
uma realidade imediata capaz de gerar disciplinas e pensamento (1997, p. 329). Além disso,
Bakhtin define dois fatores que determinam um texto e o tornam um enunciado: seu projeto (a
intenção) e a execução desse projeto (p. 330), embora o todo do enunciado já não seja uma
“unidade da língua” e sim “uma unidade verbal que não possui uma significação, mas um
sentido” (p. 354-355) cuja compreensão parte não só do autor, mas do leitor, que também tem
papel ativo na construção desse(s) sentido(s), na “relação dialógica” entre eles. Afinal, “as
relações de sentido, dentro de um enunciado [...] são de ordem factual-lógica (no sentido lato
do termo), ao passo que as relações do sentido entre enunciados distintos são de ordem
dialógica” (p. 342). Pode-se ver, desde então, uma espécie de crítica à visão estruturalista dos
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estudos linguísticos, quando Bakhtin afirma que “o linguista está acostumado a perceber tudo
num contexto fechado (dentro do sistema da língua ou do texto compreendido
linguisticamente, sem levar em conta a relação dialógica que se estabelece com o outro texto, o
texto que responde)” (1997, p. 348-349).
Vê-se que a visão de “texto” de Bakhtin já antecipava conceitos que os linguistas mais
tarde relacionariam, numa abordagem menos focada no sistema linguístico em si, às
concepções de língua e de sujeito. De acordo com Koch (2006), as três principais concepções de
texto são:
a. Texto como produto do pensamento, isto é, representação mental do autor: neste caso, a língua é
vista como representação do pensamento e o sujeito (autor/locutor) como detentor de todos os
significados de sua enunciação, cabendo ao leitor/ouvinte apenas “captar” esse pensamento.
b. Texto como produto da codificação de um emissor: aqui, a língua é código e basta ao
leitor/ouvinte ter conhecimento do código usado pelo emissor para captar o sentido de sua
mensagem.
c. Texto como lugar de interação: concepção interacional (dialógica) de língua, cujos sujeitos são
considerados construtores sociais que constroem e são construídos pelo texto.
Uma abordagem menos estruturalista e mais sociointeracional dirá que o texto é “o
resultado de uma ação linguística cujas fronteiras são em geral definidas por seus vínculos com
o mundo no qual ele surge e funciona” e que, portanto, “exige explicações que exorbitam as
conhecidas análises do nível morfossintático” (MARCUSCHI, 2008, p. 71-72). Assim, talvez
uma análise focada apenas na estrutura de um texto, em seus elementos formais,
principalmente morfológicos e lexicais, não seja suficiente para aprofundar qualquer visão
sobre ele. Da mesma maneira, se a partir dessa concepção estruturalista de texto definirmos
“tradução” apenas como “substituição de material textual”, limitando-se esse “material textual”
a palavras e frases, limitaremos também a noção do que o ato de traduzir representa para as
relações linguísticas e, consequentemente, sociais.
Pode-se dizer que, para se traduzir bem, basta ter conhecimento de cada língua
envolvida? As palavras de Coulthard parecem conceituar, de forma geral, o tradutor, quando
ele diz que este é “qualquer pessoa que tente tornar acessível, a um certo grupo de leitores
interessados, um texto até então inacessível” (1991, p.03). Sendo assim, o público-alvo de algo
traduzido são leitores que não possuem conhecimento suficiente de determinada língua para
ler uma obra escrita no original. Muito já se discutiu, inclusive, sobre o papel da tradução como
fator de união entre línguas e culturas, pois “a tradução é aquele ‘terceiro termo’ que a
Antiguidade tanto amava: o Espírito é Uno, as línguas são Muitas, e a ponte entre ambas é a
Tradução” (PAZ, 1991, p. 18). Desde o momento em que povos de línguas diferentes passaram
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a ter necessidade de se comunicar, surgiu também a necessidade de algo (no caso, alguém) que
fizesse esse elo de forma a tornar possível a interação entre ambas as partes. A verdadeira
missão do tradutor seria, então,
atestar a afinidade entre as línguas; uma afinidade não necessariamente
histórica ou etimológica, mas que se projeta no campo de
intencionalidade (intentio) oculta em cada uma delas e que as faz tender
para a convergência reconciliada na plenitude da “língua pura”.
(CAMPOS, 1991, p. 20).
Um ponto para o qual Campos chama a atenção é, como se pode ver, a intencionalidade
“oculta” em cada língua e não somente em cada autor. Pode-se dizer que ele demonstra aqui o
poder que as línguas têm de carregar intencionalidades na sua própria estrutura, em seu
próprio vocabulário. Um exemplo clássico disso é a palavra “saudade”, tantas vezes já
apontada como existente somente na língua portuguesa e, portanto, “intraduzível”: diz-se, em
outras línguas, que se está “sentindo falta” de algo ou alguém, mas não exatamente “saudade”.
Apesar de a palavra não poder ser traduzida por outra de exata correspondência na língua
estrangeira, o sentimento evocado existe em qualquer lugar, e em “qualquer língua”, pois todo
ser humano, em algum momento de sua vida, saberá o que é sentir falta de algo ou de alguém,
pois experimentará tal sentimento.
Do ponto de vista lexical, inevitavelmente haverá perdas ao longo do processo
tradutório, embora essa “perda” deva ser compensada pelo tradutor no texto de chegada, com a
possibilidade de, inclusive, criar algo tão significativo quanto, pois o texto traduzido “não
denota, mas conota seu original; este, por seu turno, não denota, mas conota suas possíveis
traduções”, ocorrendo, dessa forma, “uma dialética perspectivista de ausência/presença”
(CAMPOS, 1991, p. 30).
Uma das primeiras concepções teóricas acerca da tradução foi a tríade de princípios
desenvolvidos por Alexander Fraser Tyler (ARROJO, 1986, p.13) que dizia que:
a. a tradução deve reproduzir em sua totalidade a ideia do texto original;
b. o estilo da tradução deve ser o mesmo do original;
c. a tradução deve ter toda a fluência e a naturalidade do texto original.
Vemos, desde essa época, a preocupação com a fidelidade ao texto original, seja em
relação ao conteúdo ou ao estilo do autor. Atualmente, pode-se dizer que esses conceitos
permanecem válidos, embora a maneira como eles são obedecidos possa ter mudado. Afinal,
quem pode dizer qual a verdadeira “ideia” do texto original quando este se trata de uma obra
literária? Em um texto científico, por exemplo, sem dúvida o objetivo é discutir uma teoria ou
demonstrar os resultados de um estudo, de uma pesquisa. Para isso, o uso da linguagem
geralmente se restringe a aspectos acadêmicos, a um maior grau de formalidade, a um
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determinado padrão de escrita no qual textos científicos se enquadram. Um manual de
instruções de um aparelho eletrônico segue, igualmente, um formato próprio em que o que
importa é a clareza das informações. Já se o texto for literário, como um conto, um romance, um
poema, os significados não se limitam ao que está “aparente”, pois são justamente as várias
possibilidades de significados que podem ser extraídos desse tipo de texto que o caracterizam
como tal.
Portanto, provavelmente a primeira pergunta que o tradutor deve se fazer é: qual o
objetivo do texto a ser traduzido? Segundo Caldas-Coulthard (1991, p. 79), um texto narrativo
factual se diferencia de um ficcional porque aquele tem o objetivo de informar e, este, de
entreter. Dessa maneira,
enquanto a informação documentária e também a semântica admitem
diversas codificações, podem ser transmitidas de várias maneiras […], a
informação estética não pode ser codificada senão pela forma em que foi
transmitida pelo artista”. (CAMPOS, 1970, p. 22).
Isto é, a forma pode ser tão relevante quanto o conteúdo quando se trata de um texto
estético. Podemos afirmar, assim, que “a principal tarefa da tradução é identificar as diferentes
significações no texto e reproduzi-las, em cada caso, com efeito igual na língua-alvo”
(VASCONCELOS, 1991, p. 103). Neste caso, já não se fala puramente em “reproduzir a
totalidade da ideia do texto original”, mas em reproduzir o efeito dessas ideias (como no caso da
“saudade”). No entanto, sabemos que a “significação” de um texto literário não é única, nem
parte apenas do autor. O leitor é parte fundamental na realização de um texto, e o caráter deste
será estabelecido pela inter-relação entre os dois fatores.
A palavra envolve não apenas o sistema em que está inserida (a língua), mas também – e
principalmente – fatores extralinguísticos. Naturalmente, sempre há, por trás de todo texto, o
sistema da língua, sistema que é “repetitivo e reproduzível”; entretanto, “cada texto (em sua
qualidade de enunciado) é individual, único e irreproduzível, sendo nisso que reside seu
sentido” (BAKHTIN, 1997, p. 331). Essa bipolaridade, uma das principais questões abordadas
por Bakhtin, significa que o texto (enquanto enunciado) só funciona dentro de determinada
situação, e, uma vez emitido, jamais será reproduzido da mesma forma novamente, porque
apesar de os signos que o compõem poderem ser repetidos (fonemas, palavras, orações), o
momento em que são emitidos não se repete. Há, portanto, uma interdependência entre o texto
e o contexto no qual se insere. Por exemplo: um livro pode ser reproduzido, reimpresso, em
várias cópias, mas cada leitura dele será diferente das outras, pois “é possível a reprodução
mecânica da impressão digital [...], mas a reprodução do texto pelo sujeito [...] é um
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acontecimento novo, irreproduzível” (BAKHTIN, 1997, p. 332). Então esse mesmo livro,
quando lido por pessoas diferentes, será visto de formas diferentes, devido ao fato de que
nenhuma oração, ainda que constituída de uma única palavra, jamais
pode ser repetida, reiterada, duplicada: sempre teremos um novo
enunciado [...] sua posição e sua função mudaram no todo do
enunciado. (pp. 334-335).
Dessa forma, essas leituras não são se repetem. Mesmo uma pessoa que relê
determinado livro irá fazer uma leitura diferente da que fez antes, pois as experiências pelas
quais essa pessoa passou se somam e a “resposta” ao texto se modifica, já que a visão de mundo
de quem o lê também se modificou de alguma forma. Essa visão de mundo, por sua vez, é
construída mediante o conjunto de memórias e experiências que o individuo vai armazenando
ao longo da vida. Sobre processo cognitivo, memória e processamento textual, Koch (2006)
explica que durante o processo de representação, a memória opera estocando, retendo e
reativando informações, seja por um curto ou longo tempo, com o auxílio de uma memória
intermediária para tratar a informação “entrante” de forma a melhor aproveitá-la; assim, vai-se
formando um banco de dados constantemente reativado para lidar com os textos que se lhe
apresentam. Dessa maneira, a memória deixa de ser apenas vista como auxiliar do
conhecimento para ser parte integrante dele. Os conhecimentos são, então, armazenados sob
categorias, enquanto os modelos remetem a experiências vividas, ambos auxiliando a formação
de esquemas cognitivos. O processamento textual é, portanto, estratégico: a criação da
representação textual e de um modelo episódico é o que levará à compreensão (ou não) de um
texto.
São
acionados
conhecimentos
linguísticos,
enciclopédicos,
sociointeracionais,
ilocucionais, comunicacionais, metacomunicativos e superestruturais durante o processo. Além
disso, são as estruturas cognitivas e interacionais que facilitam o processamento textual.
Vê-se que, para que um leitor “compreenda bem” um texto e interaja com ele, é
necessário considerar seus conhecimentos, sendo esta a “condição fundamental para o
estabelecimento da interação, com maior ou menos intensidade, durabilidade, qualidade”
(KOCH e ELIAS, 2006, p. 19). Nas palavras de Marcuschi, “o sentido não está no leitor, nem no
texto, nem no autor, mas se dá como um efeito das relações entre eles e das atividades
desenvolvidas”, o que confere ao texto “um alto grau de instabilidade e indeterminação” (2008,
p. 242), tornando impossível afirmar que o texto carrega em si todo sentido possível e que o
leitor deve apenas identificá-lo.
Todo tradutor é, antes de tudo, um leitor, e sua visão vai além de apenas o sistema da
língua à sua frente, pois “o todo do enunciado já não é uma unidade da língua”, mas sim uma
unidade da comunicação verbal que não possui uma significação, mas um sentido (BAKHTIN,
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1997). Os signos, por um lado, podem ser traduzidos para outra língua, mas o texto (enquanto
realização) não o será. Por isso a dificuldade da tradução: não basta transpor os signos de uma
língua para os de outra (até porque nem sempre eles se correspondem), pois há a questão
cultural envolvida. A maneira como se enuncia um texto em uma língua pode não soar
adequada em outra por causa das diferenças culturais entre os falantes dessas línguas. Por isso
o trabalho do tradutor é desafiador e por vezes frustrante, se ele não encontrar uma solução
para amenizar essas diferenças. Num primeiro momento, “o tradutor constrói paralelamente
(paramorficamente) ao original o texto de sua 'transcrição', depois de 'desconstruir' esse original
num primeiro momento metalinguístico” (CAMPOS, 1991, p. 18). Tendo isso em mente, podese dizer que “a tradução, como a leitura, deixa de ser, portanto, uma atividade que protege os
significados 'originais' de um autor, e assume sua condição de produtora de significados”
(ARROJO, 1986, p. 24, grifo da autora).
No momento em que escreve um texto, o autor “não produz para um leitor real, mas
constrói um ideal em sua mente” (COULTHARD, 1991, p. 1), o que significa que ele espera,
daqueles que possam vir a lê-lo, um mínimo de identificação com o assunto ou o tipo de texto
que se escreve. Da mesma forma, o tradutor deve ter esse possível leitor ideal em mente, pois é
a ele que se direciona o produto da tradução. Muitas vezes, o que ocorre é não apenas a
tradução, mas a retextualização, dentro da própria tradução, de acordo com a realidade do
leitor.
No caso de um texto de um autor americano, por exemplo, esse é um fator importante.
Se for de um texto de humor, com piadas que podem ser facilmente identificadas com o meio
de vida americano, às vezes a simples “colocação” dessa piada na língua portuguesa não
provoque o mesmo efeito humorístico que uma piada “adaptada” aos padrões brasileiros.
Sendo assim, indo de encontro à tradição da tradução literal, observemos que
admitida a tese da impossibilidade em princípio da tradução de textos
criativos, parece-nos que esta engendra o corolário da possibilidade,
também em princípio, da recriação desses textos.
[...]
Quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação. (CAMPOS, 1970, p.
24).
Em relação a esse tipo de texto “criativo”, apesar de essa ser uma categoria que engloba
principalmente poemas, podemos também encaixar aí os textos humorísticos, dada a
dificuldade em se reproduzir o efeito que eles causam.
3) Linguística e Humor
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Ao traçar um panorama histórico dos estudos sobre humor, pode-se dizer que “sendo
um fenômeno de extrema complexidade, [...] a linguagem do humor constitui um campo de
estudo que implica necessariamente a multidisciplinaridade” (ROSAS, 2002, p. 16). Essa
multidisciplinaridade, a princípio, foi considerada como um dos fatores pelos quais tais estudos
teriam sido deixados de lado, até meados da segunda metade do século XX, dada a sua
“complexidade”.
Recentemente, no entanto, já se pode dizer que as várias questões linguísticas envolvidas nos textos humorísticos, como as textuais, pragmáticas, discursivas, cognitivas e históricas
tem chamado a atenção dos estudiosos para os diversos gêneros do campo (POSSENTI, 2010, p.
27). Esse interesse, por sua vez, só foi despertado a partir do momento em que essas áreas dos
estudos linguísticos também começaram a se desenvolver com mais autonomia e propriedade,
principalmente a partir da década de 1980, visto que, até o final da década de 1970, as questões
semânticas ainda estavam adormecidas diante da força da linguística descritiva (estruturalista e
gerativista), que “promoveu a exclusão do estudo das questões semânticas de seu domínio de
conhecimento”, uma vez que “através da mera descrição da materialidade dos arranjos discursivos, coloca-se em suspenso a interpretação do seu conteúdo”. (ROSAS, 2002, p. 17). Apesar
dos avanços, ainda não se poderia afirmar a existência, de fato, de uma “linguística do humor”,
pois “no máximo, existem linguistas que trabalham eventualmente sobre ou a partir de dados
colhidos em textos humorísticos” (POSSENTI, 1998, p. 21).
Sabe-se que a comédia, no entanto, não é um gênero “novo”. Uma das primeiras abordagens sobre o gênero está registrada no texto Poética (1994) de Aristóteles, escrito no século IV
a.C., apesar de seu conteúdo ser quase que totalmente voltado para o drama, tanto é que muito
se especula, ainda hoje, se não haveria uma outra parte da Poética dedicada somente à comédia.
Mesmo sendo abordada rapidamente, pode-se ver que Aristóteles a classifica como um gênero
“menor” em relação à tragédia. Uma das primeiras distinções feitas entre tragédia e comédia é
que esta trataria de homens inferiores em relação aos homens comuns e de suas falhas, mostradas sob o aspecto do ridículo, e aquela imitaria homens superiores, de caráter elevado. Séculos
depois, o filósofo Henri Bergson iria tratar do “cômico” de forma mais completa, sistematizada
e inovadora, para a época, em seu livro O riso (1987), composto por três textos seus sobre o assunto, compilados em 1890. Segundo Marta Rosas e o panorama histórico de estudos sobre
humor traçado por ela, “o riso não encontrou, senão na virada do século XX, com Bergson
(1983), a sua primeira teoria mais ambiciosa” (2002, p. 18). Vejamos alguns dos princípios observados por Bergson.
Primeiramente, o filósofo destaca o fato de que “não há comicidade fora do que é propriamente humano” (BERGSON, 1987, p. 12, grifo do autor). Ou seja, uma paisagem, por exemPROFT em Revista
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plo, pode ser considerada bonita ou feia, interessante ou não, mas ela, por si só, não provocaria
o riso. Um animal, por sua vez, pode vir a nos fazer rir, mas normalmente isso acontece devido
a uma expressão ou a uma atitude sua que remeta àquela de um ser humano. Outro exemplo é
que, se rimos de uma roupa, estamos rindo por causa da forma ou da condição dada a este objeto por um ser humano.
Segundo o filósofo francês, a emoção é o maior inimigo do riso. Dessa forma, o riso vem
sempre acompanhado por uma “insensibilidade”, pois se a pessoa se sensibilizasse ou demonstrasse empatia pelo “defeito” ou pela “falha” do outro, ela não riria disso: seria uma situação
dramática e tensa, não cômica. No entanto, sabemos que não há praticamente assunto algum
sobre o qual não se faça piada. Faz-se piada sobre a morte, sobre doenças, sobre deficiências
físicas e mentais, diferenças culturais, sobre política, enfim, sobre qualquer aspecto da vida e da
condição humana. No que diz respeito ao tema de uma piada, não importa se ele é delicado:
algumas pessoas acharão engraçado, outras não. Claro, há assuntos controversos e, de cultura
para cultura, mais polêmicos, dependendo da forma como são abordados. Mas o que faz rir,
afinal? Para Bergson (1987), há vários fatores que podem provocar o riso, tanto é que ele explicita a comicidade das formas, das situações, das palavras e do caráter, embora sua análise se limite a ações e comportamentos.
Quanto às formas, atitudes e movimentos, ele defende que “é uma espécie de automatismo o que nos faz rir” (1987, p. 17). Esse automatismo, por exemplo, nos movimentos ou nas
atitudes diárias, quando observado por outra pessoa e imitado por ela, pode ser engraçado,
pois “imitar alguém é destacar a parte do automatismo que ele deixou introduzir-se em sua
pessoa. É, pois, por definição mesmo, torná-lo cômico. Não surpreende, portanto, que a imitação cause riso” (1987, p. 25). Um dos tipos de comediante que mais faz sucesso, em todo o
mundo, é o imitador, pois os bons conseguem captar detalhes dos movimentos, da fala, da maneira de uma pessoa e destacar isso na sua performance.
Por outro lado, no que diz respeito à comicidade das palavras, já se vê, inclusive, uma
ponta de problematização em relação à tradução nesses casos, numa época em que a linguística
ainda não tinha como foco nem mesmo a estrutura da língua.
Bergson antecipadamente discute a diferença entre “o cômico que a linguagem exprime
e o que ela cria”, sobre o que ele diz:
O primeiro poderia, a rigor, traduzir-se de uma língua para outra, sob
pena, entretanto, de perder grande parte do seu vigor ao transpor-se para uma sociedade nova, diferente dos seus costumes, literatura e sobretudo por suas associações de ideias. Mas o segundo é em geral intraduzível. Deve o que é à estrutura da frase e à escolha das palavras. Não
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consigna, graças à linguagem, certos desvios particulares das pessoas ou
dos fatos. Sublinha os desvios da própria linguagem. No caso, é a própria linguagem que se torna cômica (1987, p. 57).
Explorar a tradução de textos de humor significa, justamente, questionar a “traduzibilidade” de
tais textos. Ora, se o tradutor antes de tudo é um leitor, ele “precisa dispor de informações linguísticas e culturais suficientes para saber por que um determinado enunciado poderia ser considerado engraçado” (ROSAS, 2002, p. 24). Assim, ter conhecimento suficiente da língua para e
da qual ele está traduzindo não basta. É necessário conhecimento cultural sobre o público alvo
de sua tradução para, ao longo do processo tradutório, julgar o que é interessante manter do
original e o que deve ser adaptado à outra realidade. Durante a análise da peça “Death knocks”
veremos na prática como Ruy Castro lidou com tais impasses ao traduzir o texto de Woody Allen.
Embora nossa análise não seja especificamente sobre piadas, entender como elas funcionam é também entender como um autor as utiliza para desenvolver um estilo próprio, pois a
maneira como ele faz uso de ironias, ambiguidades, trocadilhos etc., demonstra níveis diferentes de informação e conhecimento, às vezes até determinando se determinado tipo de humor
seria mais “sofisticado” ou mais “popular”, por exemplo.
De acordo com Rosas (2002, p. 17-18), para compreender e usar de maneira adequada
uma palavra, os tipos de informação que o falante deve ter sobre ela são: pronúncia (fonologia,
morfologia); categorização sintática; significado (definição e contextos) e restrições pragmáticas
(situação e contexto de uso). Já os mecanismos envolvidos na compreensão de uma piada envolvem fonologia, morfologia, léxico, dêixis, sintaxe, pressuposição, inferência, conhecimento
prévio e variação linguística (POSSENTI, 2002, p. 29-36); linguisticamente, as piadas exigem um
domínio complexo da língua, pois vai além do nível da palavra apenas. No caso da literatura, a
forma como o diálogo é representado também vai variar e isso também deverá ser levado em
consideração pelo tradutor:
os diálogos refletirão as regras pragmáticas da cultura e da língua da
qual provém o escritor. Diferentes culturas apresentam regras interacionais diversas [...]. Um(a) tradutor(a) confronta-se não só com o problema
da equivalência linguística ao traduzir interações, mas também com toda a gama de sutilezas pragmáticas que diferenciam interações de diferentes nacionalidades. (CALDAS-COULTHARD, 1991, p. 82)
Diz-se que uma pessoa realmente “domina” uma língua estrangeira quando ela já é capaz de identificar características de humor nessa língua (o que demonstra conhecimento da cultura envolvida) e, inclusive, produzi-lo também.
4) Woody Allen, Ruy Castro e “Death Knocks”
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Woody Allen, escritor e cineasta nascido nos Estados Unidos em 1935, é mais conhecido
por seus filmes. Entretanto, escreve para jornais americanos e tem alguns de seus contos,
crônicas e peças publicados em livros. Um destes livros é Getting Even, editado em 1972, com
escritos de Allen de 1966 a 1971 publicados na conceituada revista New Yorker. É nesse livro
que, entre contos hilários, encontra-se a peça em um ato “Death knocks”. No Brasil, esta
coletânea de contos foi publicada com o título Cuca Fundida (e a peça, “A morte bate à porta”)
em 1978, com tradução do também escritor Ruy Castro.
O cineasta é conhecido por suas piadas de humor refinado e repleto de intertextualidade
e referências a literatura, artes, música, teatro, política, religião, enfim, vários assuntos
relacionados não somente aos Estados Unidos, mas inevitavelmente ligados ao modo de vida
americano. Toda essa gama de referências às vezes acaba afastando alguns leitores ou
espectadores, já que pode ser difícil entender suas piadas ou perceber o quanto elas são
engraçadas se a pessoa não compartilha determinado conhecimento de mundo, pois
identificar a presença de outro(s) texto(s) em uma produção escrita
depende e muito do conhecimento do leitor, do seu repertório de leitura.
Para o processo de compreensão e produção de sentido, esse
conhecimento é de fundamental importância (KOCH e ELIAS, 2006, p.
78).
Allen provavelmente tem esse tipo de leitor ou espectador em mente quando escreve;
Ruy Castro certamente não o deixou de ter em vista ao traduzir, já que, apesar de não ter
traduzido cada linha de Allen, o sentido do que este escreveu foi, sem dúvida, preservado.
Em “Death knocks”, um homem por volta dos cinquenta anos tem seu quarto invadido
por alguém que se apresenta como a Morte e diz que ele está prestes a ser levado por ela.
Inconformado, o homem propõe à Morte um jogo de cartas do qual, se sair vencedor, terá
direito a mais um dia de vida. Quem conhece o trabalho de Woody Allen sabe da forte
influência do cineasta sueco Ingmar Bergman em sua obra. Um dos mais conhecidos filmes de
Bergman, “O sétimo selo” (1956), baseado em uma peça sua, traz a famosíssima cena em que
um cavaleiro medieval joga xadrez com a Morte. O texto de Bergman, entretanto, é
extremamente sério e pesado, enquanto o de Allen é leve e bem mais informal.
Ruy Castro (nascido no Rio de Janeiro em 1948) é jornalista e escritor, além de tradutor.
Ele e Allen são de uma mesma época, sendo pouca a diferença de idade entre os dois. Na
introdução que ele escreve em Cuca Fundida (2006), ele compara Woody Allen a Nathanael
West, escritor americano que “tinha um espinho no dedo” que “só doía quando ele escrevia”.
Castro diz que Allen também tem um espinho no dedo, “provavelmente debaixo da unha e já
bem inflamado e deve doer muito”, para depois complementar: “mas não em mim. E foi por
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isso que eu mesmo ri muito enquanto traduzia esses contos”. Castro os traduziu ainda na
década de setenta, alguns anos após o lançamento de Getting Even. Ou seja, não houve
distanciamento de gerações em seu trabalho, o que de certa forma aproxima sua linguagem da
de Allen. A citação abaixo irá nortear nossa análise, e resume bastante a ideia central deste
trabalho.
Línguas são diferentes e é provável que nenhum treinamento de tradutor poderá jamais reduzir essa diferença. O treinamento do tradutor poderá, no entanto, alertar tradutores tanto para a relatividade da poética
da tradução quanto para as estratégias que podem ser usadas não para
‘superar’ as diferenças entre as línguas, que é um dado inegável, mas
para projetar a imagem que ‘eles’ tem do original, que poderá ser influenciada por considerações diversas, não somente sobre ideologia e/ou
poética, mas também sobre o público-alvo da tradução (LEFEVERE,
2007, p. 162-163).
Veremos alguns trechos traduzidos. As palavras foram sublinhadas para análise, não
estando este grifo originalmente presente nos textos. A coluna da esquerda é o texto original
(ALLEN, 1978) e o da direta, a tradução (ALLEN, 2006):
NAT Ackerman, a bald, paunchy fifty-seven- Nat Ackerman (51 anos, calvo, ligeiramente
year-old dress manufacturer is lying on the gordo, proprietário de uma confecção) está
bed finishing off tomorrow’s Daily News.
deitado na cama, acabando de ler o jornal do
dia seguinte.
NAT: What the hell is that?
Nat: Que diabo está havendo aí?
The intruder wears a black hood and skintight O intruso usa um capuz negro e uma roupa justa,
black clothes.
também negra.
NAT: How can it be the moment? I just Nat: Mas não pode ser! Acabo de fechar um
merged with Modiste Originals.
negócio com 500 butiques! (p. 36)
DEATH: Then I’m DEATH. Now can I get a Morte: Então eu só posso ser a Morte. Posso
glass of water—or a Fresca?
tomar um copo d’água? Mineral com gás, de
preferência.
Nesses exemplos, podemos ver, primeiramente, o uso de parênteses para descrever Nat
Ackerman e a ordem dos adjetivos, diferentes em inglês e português. Ao longo da tradução há
outros exemplos de mudança na pontuação. Além disso, Ruy Castro optou por não usar alguns
nomes próprios, trocando-os por uma generalização. Então, “Daily News”, jornal americano,
foi traduzido apenas como “jornal”; “Modiste Originals”, se deixado no original, causaria
estranhamento ao leitor brasileiro, pois essa rede de confecção não existe no Brasil, de forma
que “500 butiques” passa a idéia da importância do negócio que Nat estava para fechar e por
isso ainda não podia morrer. No terceiro exemplo, “Fresca”, da companhia Coca-Cola, é um
tipo de água com gás de vários sabores que foi introduzida nos Estados Unidos no ano de 1966;
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no Brasil, provavelmente não existia ou não era tão popular, por isso faz sentido não deixar o
nome da bebida original.
No trecho a seguir, a Morte conta como planejou entrar no quarto de Nat e como de fato
aconteceu. Em inglês, a narrativa começa no passado simples, equivalente ao nosso pretérito
perfeito (“I climbed up...”, “I was trying”) e, a partir do momento em que ele conta o que queria
fazer e o que acabou acontecendo, usa o presente simples, nosso presente do indicativo (“I
figure it's worth...”, “I get”). Em português, a tradução traz o relato completamente no passado,
o que poderia soar mais natural, mas que também faria sentido se mantidos os tempos verbais
tal qual o original.
DEATH: I climbed up the drainpipe. I was Morte: Subi pela calha. Estava tentando fazer
trying to make a dramatic entrance. I see the uma entrada sensacional. Vi as janelas abertas,
big windows and you’re awake reading. I você lendo o jornal e achei que valia a pena
figure it’s worth a shot. I’ll climb up and enter tentar. Era só subir pela calha e entrar com um
with a little—you know... (Snaps fingers)
certo - você sabe... (Estala os dedos.)
Meanwhile, I get my heel caught on some Só que, bem no meio do caminho, prendi o pé
vines, the drainpipe breaks, and I’m hanging numa trepadeira, a calha quebrou, fiquei
by a thread. Then my cape begins to tear. pendurado por um fio e minha capa começou
Look, let’s just go. It’s been a rough night.
a rasgar. Agora chega de conversa. Vamos
embora. Esta noite está terrível.
O exemplo seguinte demonstra como o tradutor utilizou expressões coloquiais: ele
optou por “quase fui pro beleléu” no lugar de “quase quebrei o pescoço”, que também se
adequaria, mas em compensação não traduziu “I’m shaking like a leaf” (ao pé da letra “estou
tremendo como uma folha”) pela expressão que seria equivalente em português, “estou
tremendo feito vara verde”. De fato, ir para o “beleléu” soa mais engraçado do que “tremer
feito vara verde”, até porque o piada aqui está concentrada no assunto morte, apesar de que
dificilmente alguém que “quebra o pescoço” sobrevive a esse acidente. Outro ponto importante
são as gírias (“pô”), que o original não apresenta, para enfatizar, respectivamente, o nível de
informalidade entre os personagens – na verdade, mais da Morte em direção a Nat do que o
contrário, visto que ele é quem está numa situação tensa de, literalmente, vida ou morte! O uso
do “pô” também se justifica para expressar a irritação da Morte com a constante repetição da
pergunta “quem é você?”, pois Nat não quer acreditar que o indivíduo que invadiu seu quarto
é quem ele diz ser. Na terceira vez em que Nat faz a pergunta, no original, a Morte responde
apenas “Morte”, sem aparente reação de irritação. Em português, no entanto, Ruy Castro optou
por demonstrar mais impaciência por parte da Morte e, para enfatizar a terceira vez da
pergunta, colocou-a toda em letras maiúsculas, o que indica que Nat praticamente gritou desta
vez, dado espaço para que a reação da Morte também fosse mais agressiva, com “A Morte, que
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diabo!”. Pode-se dizer que ele antecipou para este trecho a reação da Morte no original quando,
num trecho seguinte, Nat pergunta “Go where?” (“vamos para onde?”) e recebe como resposta,
“DEATH”, em caixa alta, “gritando”.
NAT (watching with bewilderment): Who are Nat (de olhos arregalados): Quem é você?
you?
Death: Death.
Morte: A Morte.
NAT: Who?
Nat: Quem?
Death: Death. Listen—can I sit down? I nearly Morte: A Morte, pô! Escute - posso me sentar?
broke my neck. I’m shaking like a leaf.
Quase fui para o beleléu. Olhe só como estou
tremendo.
NAT: Who are you?
Nat: QUEM É VOCÊ?
Death: Death. You got a glass of water?
Morte: A Morte, que diabo! Pode me arranjar
um copo d’água?
No trecho seguinte, novamente há uso de expressões informais, como “onde Judas
perdeu as botas”, no lugar de “Happy Hunting Grounds”, que é a maneira como algumas
tribos indígenas americanas chamam o “paraíso”, o lugar para onde se vai quando se morre.
Um americano conhecedor da história dos habitantes nativos de seu país provavelmente faria a
relação imediata ao ler tal referência, mas um brasileiro, normalmente, não. Já “onde Judas
perdeu as botas” é muitíssimo comum na nossa fala e no nosso dia-a-dia, quando queremos
dizer que algo é muito longe.
NAT: Go where?
Nat: Vamos pra onde?
DEATH: DEATH. It. The Thing. The Happy Morte: Pra Morte. Aquele lugar, sabe, né? As
Hunting Grounds. (Looking at his own knee) Profundas. Lá onde o Judas perdeu as botas.
Y’know, that’s a pretty bad cut. My first job, (Olhando para o próprio joelho.) Puxa, me
I’m liable to get gangrene yet.
cortei feio. Era só o que faltava: pegar uma
gangrena logo no primeiro dia de trabalho.
Observemos o trecho a seguir:
NAT: You play gin rummy?
Nat: Você joga biriba?
DEATH: Do I play gin rummy? Is Paris a city?
Morte: Se eu jogo biriba? Sou o rei da biriba!
NAT: You’re good, huh?
DEATH: Very good.
A técnica que vinha sendo usada foi deixada de lado para enfatizar outro aspecto do
diálogo, quando cortou as duas últimas frases, já que tinha usado “sou eu rei da biriba” para
mostrar que a Morte é boa no jogo; porém, essas frases poderiam ter sido mantidas e “Is Paris a
city?” (“Paris é uma cidade?”), frase cujo efeito seria melhor atingido com “por acaso Paris é
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uma cidade?”, o que quer dizer “isso é óbvio!”, poderia se traduzir em português por “macaco
gosta de banana?”, por exemplo, tendo a mesma equivalência semântica do original.
Vemos também, no exemplo anterior, que o jogo de cartas no original, “gin rummy”, foi
mudado para “biriba” em português. Isso porque este último é muito mais comum aos
brasileiros do que o primeiro. Como ao longo da peça várias cartas são mencionadas durante o
jogo, isso também teve que ser modificado na tradução, pois apesar de gin rummy e biriba
serem jogos parecidos, em que combinações de cartas devem ser feitas valendo pontos, há
diferenças significativas, já que o gin rummy é jogado com 52 cartas e biriba com o dobro. Outro
ponto interessante é que na biriba, há um grupo de cartas chamada “morto”. Ruy Castro
aproveitou esse fato para incluir piadas durante o diálogo, reforçando o tom da escrita de
Allen.
DEATH: How’s four points?
Morte: Ah, finalmente uma canastra!
NAT: You’re knocking?
Nat: Você bateu?
DEATH: Four points is good?
Morte: Não, só fiz uma canastra.
NAT: No, I got two.
Nat: Então, quem bate sou eu.
DEATH: You’re kidding.
Morte: Você está brincando.
NAT: No, you lose.
Nat: Não. Você perdeu. Vou pegar o morto.
Sem trocadilho.
DEATH: Holy Christ, and I thought you were Morte: Merda. E eu achando que você estava
saving sixes.
guardando os valetes!
NAT: No. Your deal. Twenty points and two Nat: Vamos lá, jogue, enquanto eu examino o
boxes. Shoot.
morto.
No original “four points” (quatro pontos) virou uma “canastra”, nome dado à
combinação de oito cartas, de mesmo naipe, em sequência. Mas isso casa perfeitamente com a
fala seguinte, “você bateu?”, visto que na biriba (ou na canastra, como o jogo também é
conhecido), o jogador só pode “bater” e ganhar a partida se tiver uma canastra completa na
mesa. “And I thought you were saving sixes”, isto é, “pensei que você estava segurando os
seis”, acabou se transformando em “valetes”, sem motivo aparente.
Vejamos o trecho a seguir, em que “don’t give me a sales talk” (em português, “não me
venha com conversa de vendedor” seria um bom equivalente), Ruy Castro optou por “cale a
boca, já estou convencido”. Apesar de passar a ideia entre conversa de vendedor e
convencimento, persuasão, talvez fosse interessante manter a tradução mais próxima do
original neste caso.
DEATH: Don’t give me a sales talk. Get the Morte: Cale a boca, já estou convencido. Agora
cards and give me a Fresca and put out dê as cartas e me traga a mineral que eu pedi.
something. For God’s sake, a stranger drops Que diabo, um estranho entra em sua casa e
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in, you don’t have potato chips or pretzels.
você não lhe oferece nada para beliscar!
NAT: There’s M&M’s downstairs in a dish.
Nat: Tenho umas batatinhas fritas lá embaixo.
DEATH: M&M’s. What if the President came? Morte:
He’d get M&M’s too?
Batatinhas
fritas!
E
se
fosse
o
Presidente? Também lhe oferecia batatinhas
fritas?
NAT: You’re not the President.
Nat: Mas você não é o Presidente.
DEATH: Deal.
Morte: Dê.
Outro bom exemplo retirado do trecho acima é, novamente, a substituição de “Fresca”
por “água mineral” e, além disso, “you don’t have potato chips or pretzels” (“você não tem batatas – ou batatinhas – fritas nem pretzels”) por “você não lhe oferece nada para beliscar!”, que
funcionou perfeitamente para evitar especificar “pretzels”, por exemplo, que não é o tipo de
lanche que os brasileiros têm em casa para oferecer às visitas quando elas chegam. Assim como
também não devia ser comum, na época (fim dos anos setenta, quando a tradução foi feita), ter
M&M’s em casa (se é que a marca havia chegado ao país) como um americano poderia ter, no
caso de Nat, ainda que não fosse de bom tom servir isso a um convidado. Trocar “M&M’s” por
“batatinhas fritas” também resolve a questão da falta de equivalência entre os produtos.
Os trechos acima nos dão são riquíssimos em exemplos de técnicas do tradutor para
manter o sentido pretendido (pelo autor e por ele, seguindo sua percepção de leitor, ainda que
seja um leitor crítico que está produzindo, tal qual um autor, outro texto) e o efeito que ele gera
no leitor.
5) Considerações Finais
Os exemplos aqui mostrados ilustram o que defendemos neste trabalho: não basta apenas traduzir literalmente cada sentença de um texto e, principalmente, um texto de humor, para
se dizer que a tradução foi “fiel”. Diferentes culturas pedem textos diferentes não só porque
suas línguas são distintas, mas porque seus costumes também o são.
A decisão de Ruy Castro de mudar o jogo do original para “biriba” é um exemplo simples e direto disso. E sua competência deve ser reconhecida, pois ele se manteve coerente, neste
ponto, do começo ao fim do texto. Naturalmente, há aspectos discutíveis, mas nenhuma tradução será, jamais, perfeita. Sempre se pode argumentar que uma outra palavra poderia ter sido
mais bem empregada do que foi. Porém, o que tentamos fazer foi mostrar que o conceito de
“tradução bem realizada” não está preso somente ao significado de cada palavra. Está, na verdade, relacionado aos múltiplos significados do texto em si, dos sentidos que podem ser produzidos a partir dele e do leitor, peça importantíssima na construção desse sentido, e sem o qual
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não haveria razão para escrever e, claro, para traduzir. Às vezes a própria piada “cortada” do
original pode ter um efeito positivo, pois “a intenção da mensagem humorística original tem
importância secundária diante do efeito dessa mensagem” (ROSAS, 2002:24). Ou seja, desde
que o tradutor consiga o efeito de fazer rir, dentro daquele contexto e do estilo em que o original também faz rir, eliminar uma frase ou outra não faz do novo texto uma má tradução, muito
pelo contrário. Afinal,
O ato de traduzir a fala, portanto, implica não somente no conhecimento
linguístico de dois códigos, mas também no conhecimento de regras
pragmáticas. Se o tradutor tentar recriar na língua alvo o estilo ou
gênero discursivo sugerido na língua fonte, mesmo que para isso tenha
que perder a equivalência linguística, terá feito um bom trabalho
(CALDAS-COULTHARD, 1991, p. 86-87).
Vimos, então, a importância de se levar em consideração os costumes, hábitos, manias e
até gírias brasileiras neste caso, pois isso aproxima o leitor da mesma sensação que os leitores
americanos de Woody Allen provavelmente tem ao lê-lo. Afinal, “a percepção e a expressão do
humor são determinadas pela lógica coletiva de uma dada comunidade e pela lógica particular,
dela derivada, que possui cada membro dessa comunidade” (NIEDZIELSKI apoud ROSAS p.
23).
Evidentemente, há várias possibilidades de análise propícias a estudo dentro do campo
“tradução de humor”, pois vemos que é um campo riquíssimo, tanto do ponto de vista cultural
e social, mas principalmente linguístico.
Finalmente, não podemos deixar de admitir que a tradução de Ruy Castro é
perfeitamente adequada aos leitores brasileiros e, principalmente, aos leitores de Woody Allen,
visto que o estilo do autor foi preservado mediante a tradução criativa, a adaptação e a
retextualização, em certos casos, visto que “é impossível resgatar integralmente as intenções e o
universo de um autor, exatamente porque essas intenções e esse universo serão sempre,
inevitavelmente, nossa visão daquilo que possam ter sido” (ARROJO, 1986:40). Afinal, como
diz Arrojo (1986, p.12), “o fundamental no processo de tradução é que todos os componentes
significativos do original alcancem a língua-alvo, de tal forma que possam ser usados pelos
receptores”. Nós, receptores da tradução de Ruy Castro, podemos nos considerar satisfeitos.
REFERÊNCIAS
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O Tradutor-leitor e a Tradução “Fiel”: a Relação entre Texto, Sentido e Fidelidade na Tradução de Textos de Humor
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