Imaginística - Blog de Alliah

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Imaginística - Blog de Alliah
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reservados à Tarja Editorial; direitos
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seus autores. Nenhuma parte deste
livro poderá ser reproduzida sem
permissão formal, por escrito da
editora e do autor, exceto em citações
incorporadas à críticas ou resenhas.
EDITORES: Gianpaolo Celli
Richard Diegues
REVISÃO: Camila Fernandes
PROJETO GRÁFICO: Richard Diegues
ILUSTRAÇÃO DE CAPA: Phil Cold
ILUSTRAÇÃO DE MIOLO: Richard Diegues
DIAGRAMAÇÃO: Richard Diegues
1ª edição no inverno de 2013
Impresso no Brasil
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
Retrofuturismo, um compêndio do Comendador Romeu Martins sobre as variantes do
punk e suas associações inimagináveis / Romeu Martins (Org.), Richard Diegues, Alliah,
Renato A. Azevedo, Gianpaolo Celli, ... [et al.]. -- São Paulo :Tarja Editorial, 2013.
ISBN 978-85-61541-53-8
1. Contos brasileiros: Literatura brasileira: Coletâneas - I. Diegues, Richard. II. Silen,
Georgette. III. Azevedo, Renato A.. IV. Nikelen,Witter.V. Alliah.VI. Rodrigues, Ana
Cristina.VII. Celli, Gianpaollo.VIII. Argento, Michel. IX. Galvão, Marcelo Augusto.
X. Guedes, Dana. XI. Martins, Romeu (Org.).
CDD-869.9308
ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:
1. Contos : Antologia : Literatura brasileira : Retrofuturismo
869.9308
LITERATURA FANTÁSTICA
MUITO ALÉM DOS GÊNEROS
[2013]
Noster Anno,
Facere Aut Frangere
TARJA EDITORIAL LTDA.
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Todas as citações e nomes incidentes neste
livro são fruto do inconsciente de seus
autores, devendo ser encarados como não
intencionais. Ainda assim, caso sinta-se
ofendido com algo nestas páginas, basta fechar
a obra. Todavia, caso você resolva insistir,
compreenda que coincidências realmente
ocorrem. Todas as opiniões expressas nessa
obra pertencem a seus autores. Os animais, as
bioformas, os mecanóides, os simbiontes e
entidades indeterminadas que eventualmente
foram feridos, molestados e traumatizados
durante a produção desta obra receberam um
processo de liberação espiritual decente,
dentro; de suas crenças e/ou inexistência
delas. A cola usada na lombada pode conter
glúten. Sim, exercício provoca enfarto e TV
realmente causa retardamento mental.Vá ler!
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X-Punk,
ou a crônica
de um
sequestro
semântico
Punk. Essa palavra faz parte do vocabulário
inglês desde os tempos de William Shakespeare (15641616), portanto há mais de meio milênio, na época
em que o poeta e dramaturgo a utilizava para se referir a prostitutas. Já estava lá o sentido que o termo
viria a ganhar com o passar dos séculos, designando
os tipos marginais, aqueles que desafiam a ordem
estabelecida, a moral e o humor oficiais, o status quo,
enfim.
O termo entrou de vez para o contexto
contracultural nos anos 70 do século XX, quando
John Holmstrom e Legs McNeil lançaram um fanzine
batizado com essas mesmas quatro letras acompanhadas de um ponto de exclamação. Nele, os dois
passaram a radiografar um novo tipo de música e de
comportamento assumido por jovens de vários cantos do mundo. Tão influente foi aquela publicação
de fãs para fãs que seu título serviu mesmo para denominar o movimento Punk que ganhava as ruas de
Nova York, Inglaterra e outras partes do planeta,
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Incluindo o Brasil. Eram os tempos dos Ramones,
Sex Pistols e Restos de Nada.
Foi na década seguinte que tal expressão invadiu a praia que mais nos interessa aqui, a da literatura
fantástica – mais explicitamente, a da ficção científica.
O alcance do lema Do it yourself em diversas vertentes
artísticas, começando pela música, mas seguindo pelos quadrinhos, pelas artes plásticas, pelo cinema e afins,
foi tamanho que os escritores não poderiam deixar de
se influenciar e também dar continuidade àquela revolução em suas especialidades. Assim, surgiu, em meados dos anos 1980, o cyberpunk, uma nova abordagem
da velha FC, na qual não havia mais a crença no progresso desenfreado melhorando a vida de todos indiferentemente, nem no triunfo do american way of life,
alcançando todo o universo conhecido e além.
Nada disso. High tech, low life era o novo mantra
de uma geração de desencantados, capitaneada pelo
canadense William Gibson e pelo texano Bruce
Sterling, que oferecia a seus leitores uma ficção
especulativa muito mais crítica que a vista até então –
e bem menos ingênua, na qual avanços tecnológicos
não eram mais o suficiente para tirar a todos da pobreza e da marginalidade. Sim, de um William a outro, do bardo inglês do século XVI ao canadense do
XX, a ênfase no lado punk da vida continuava incólume com o uso daquela palavra que marcava, antes
de tudo, um posicionamento crítico dos que fizeram
parte de um novo movimento: o Cyberpunk.
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Mas então veio uma carta enviada a outra revista de fãs para fãs e começou a crônica de um sequestro semântico. Era abril de 1987 e o Cyberpunk
estava no auge, quando um escritor conhecido como
K. W. Jeter enviou sua correspondência para a revista
Locus – tão influente que empresta o nome a uma das
principais premiações do meio. Dentro daquele envelope, o autor propunha um termo em comum para
classificar obras que ele mesmo e alguns outros autores estavam criando naqueles dias. Em comum com
Morlock Nights, o livro de Jeter, Anubis Gates,de Tim
Powers, e Homunculus, de James Blaylock, havia um
foco no período chamado pelos historiadores de Era
Vitoriana: o longo reinado da Rainha Vitória da Inglaterra (1819-1901), marcado pelas chaminés dos
fornos que convertiam carvão em vapor, a fonte de
energia da Revolução Industrial.
“Pessoalmente, acho que a fantasia vitoriana
vai ser a próxima grande coisa, contanto que nós
possamos encontrar um termo coletivo para Powers,
Blaylock e eu. Algo baseado na tecnologia apropriada da época, como ‘steampunk’, talvez.” Este é um
trecho, em tradução livre, da tal carta que Jeter enviou para a revista especializada em FC. Foi naquele
momento que o termo punk começou a ter seu sentido original alterado, uma vez que aquela nova forma de literatura proposta não tinha, necessariamente, o mesmo viés crítico da anterior. O escritor estava
buscando apenas uma analogia com o que havia de
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mais impactante na literatura especulativa de seu tempo, procurando deixar claro apenas que pensava na
mudança do cyber, da tecnologia cibernética, para o
steam, do vapor vitoriano. O punk entrou ali apenas
para compor a analogia.
Sempre tive a impressão de que, caso fosse a
space opera, como a vista no seriado Jornada nas Estrelas, por exemplo, a viver seu auge literário em abril de
1987, o missivista talvez tivesse batizado o novo gênero como steam opera. Porém, não foi assim que ocorreu e, como era o cyberpunk a bola da vez, aquela
palavra multicentenária começava a ter seu sentido
modificado quando se pensava nos domínios da ficção científica.
Sim, pois o steampunk também passou a atrair
cada vez mais interessados em especular a respeito
de tecnologias fictícias surgidas no século XIX. Como
aconteceu com seus irmãos cybers mais velhos, os
steamers foram representados em novas formas de arte,
saindo da literatura para o cinema, para os quadrinhos e para as animações, ganhando o planeta inteiro pelos anos seguintes. No Brasil, nos anos recentes
da primeira década do novo milênio, chegou-se a criar um Conselho Steampunk, com unidades em diversos estados, de norte a sul do país, reunindo aficionados pelo gênero. A literatura nacional ganhou
impulso definitivo a partir de uma iniciativa pioneira
da mesma editora do livro que você tem em mãos
agora, a Tarja Editorial, que em julho de 2009 lançou
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a primeira coletânea brasileira dedicada a essa forma
de especular um tempo que não houve: Steampunk –
Histórias de um Passado Extraordinário. Livro do qual
tive o prazer de participar com um texto que leva o
nome do blog onde procuro registrar essa efervescência
cultural em uma linguagem de fã para fã, assim como
ocorreu antes em Punk! e ainda é feito na Locus.
O sucesso em escala global do gênero levou
outras pessoas a imaginar o que poderia ter acontecido caso tecnologias surgissem retroativamente em
outros períodos da História. Afinal, por que o
retrofuturismo deveria ser restrito à Era Vitoriana?
Especulações a respeito dos homens das cavernas,
dos habitantes das primeiras cidades da Era do Bronze, dos cavaleiros medievais, dos renascentistas, dos
soldados das grandes guerras mundiais manuseando
artefatos extraordinários começaram a surgir aos
poucos. Uma tentativa de dar ordem a tantas manifestações desses futuros retroativos surgiu em um
suplemento destinado não à literatura,
prioritariamente, mas sim aos chamados jogos de interpretação, os famosos RPGs.
Em Steampunk, um livro de apoio para
GURPS (Generic Universal Role Playing System),
William H. Stoddard cria o conceito de timepunk e
passa a descrever vários desses cenários possíveis para
passados alterados tecnologicamente. Em todos os
casos, aquele indefectível prefixo punk está presente, agora definitivamente não mais em seu sentido
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original, servindo apenas para indicar que aquele é
um subgênero derivado do steampunk, como este por
sua vez derivou do cyberpunk.
Uma curiosa apropriação, essa. De longe, lembra o que ocorreu em nosso país quando começaram
a aparecer por aqui sanduíches de carne e queijo, os
cheeseburgers. Talvez pensando que o prefixo cheese fosse a abreviação para sanduíche, algum brasileiro anônimo resolveu simplificar e generalizar ainda mais o
termo. Para isso, adotou em seu lugar a letra X, cuja
pronúncia em português é semelhante àquela palavra
inglesa, que na verdade significa queijo, e passou a
usá-la em uma infinidade de variações da receita, do
x-salada ao x-bacon, passando inevitavelmente pelo...
x-queijo.
Claro que, no caso de nosso sanduíche, houve
uma importação e uma apropriação, ainda que
galhofeira, de um termo estrangeiro. Não é o caso
do punk, que teve seu sentido adaptado e
ressignificado por falantes da mesma língua em que a
palavra surgiu. Daí o anunciado sequestro semântico
cometido pelos próprios anglófonos, que conscientemente alteraram de vez o significado da partícula
para sinalizar alguma forma de ficção retrofuturista.
Com isso, chegamos à proposta desta coletânea da mesma Tarja Editorial que apresentou a nosso mercado e ao mundo o jeito brasileiro de produzir
steampunk. Importante registrar o completo
ineditismo de tal proposta. Retrofuturismo é o livro no
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qual pela primeira vez se agrupam histórias de cada
uma daquelas derivações a respeito de futuros que
poderiam ter existido em algum momento de nosso
passado. Esta antologia reúne alguns dos melhores
escritores em atividade no Brasil para dar suas versões de cada uma das formas de anacronismos literários. Um livro, em múltiplos sentidos, histórico.
Romeu Martins, autor da noveleta “Cidade
Phantástica”, presente no livro “Steampunk
– Histórias de um passado extraordinário”, e
Comendador da Ordem da Caldeira pelo
Conselho Steampunk Brasileiro.
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Stonepunk
CRONOLOGICAMENTE FALANDO, a primeira possibilidade de escrever ficção com tecnologia retrofuturista remete ao tempo
dos homens das cavernas. É um desafio e tanto trabalhar com
um período em que nem mesmo havia rudimentos da comunicação escrita, e ele recaiu sobre a mais jovem autora desta compilação: Alliah, estudante de Belas Artes de apenas 20 anos,
que iniciou sua carreira acadêmica aos 17, no curso de Biologia da UFRJ, pensando em ser paleontóloga. Antes de assumir
de vez a vertente artística e o pseudônimo, inspirado em uma
atriz americana, ela assinava como Débora Vieira Ramires e
participou do livro Cyberpunk – Histórias de um futuro extraordinário, da Tarja Editorial. Pela mesma editora, prepara uma
antologia de contos a ser publicada em breve: Metanfetaedro.
“A influência principal do conto é um ensaio chamado
‘Filosofia da Caixa Preta’, do tcheco Vilém Flusser”, comenta
Alliah sobre sua contribuição para Retrofuturismo. “Tinha esse
texto bem fresco em minha cabeça quando fui convidada para
esta coletânea. Alguns dos vocábulos que aparecem no conto,
incluindo o título ‘Imaginística’, são desse ensaio e possuem
um significado próprio que eu tentei deixar entendível na história mesmo pra quem nunca leu o texto de Vilém”. No conto
a seguir, essa mistura de olhar paleontológico com elaborações estéticas complexas nos levará à primeira produção
stonepunk feita no Brasil.
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Imaginística
Alliah
I. Espanto
A grama agitava-se harmoniosa, lambida pelo
vento. Um grupo de bisões perambulava pela planície, afundando as patas robustas nas ondas
esverdeadas do solo. A pelagem curta e grossa de um
marrom escuro parecia pesar sobre seus corpos estufados e escondia minúsculos pares de olhos negros e
desinteressados sobre rodelas de tufos espetados.
Enquanto uns mordiscavam as folhas e dois menores rolavam na grama, tentando afugentar os parasitas, um grupo de caçadores perscrutava o horizonte,
agachados cuidadosamente atrás de uma profusão de
moitas a algumas dezenas de metros dali. A-Tuk-Ima
semicerrava os olhos, focando sua visão nos movimentos arrastados dos animais e mirando seus gestos de pachorra. As mãos grossas fechavam-se com
força sobre uma lança de madeira e osso lascado. O
trançado de fibra vegetal que ornava o corpo da arma
enrolava-se em seus pulsos e braços. Sentia as tramas
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da corda encharcadas de suor e tateava a sequência
de cenas planejadas que precederiam seu ataque com
a mesma sensibilidade.
Ruar-gruar de mastigação.
O gosto daquele ruído gram-grum em chumaços
pisados de grama e dentição, moendo, moendo, moendo.
O pingente-crânio rabiscado de simbologias sinuosas em tinta preta e amarela ardia de encontro a
seu peito musculoso e peludo. A pele escura
avermelhava sob o sol, liberando um fulgor quase imperceptível. Emanações de secura cálida em um cenário de cores que pareciam borbulhar e ressecar. Ao
longe, uma língua de vento mais forte contornou as
montanhas azul-acinzentadas que recortavam bruscamente o norte, passeou seguindo o curso do riacho de
águas geladas que cortava a grama e trouxe uma estranha sequência de sombras. Em alerta, os bisões levantaram suas cabeçorras e paralisaram momentaneamente.
Reticências suspensas.
Uma silhueta agigantada brotou das imediações
do mato denso que margeava a grama baixa e cresceu rapidamente diante dos olhos arregalados e
trementes dos caçadores. Suas percepções cristalinas
perseguiam aquela imagem deslocada e martelavam
incógnitas em mentes treinadas para um cenário tão
corriqueiro.
Lascas de monólitos imateriais rasgando o solo
em sombreados.
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O reconhecimento de padrões que aprenderam com as ilusões imagéticas forjadas na pedra por
seus anciões foi estilhaçado em segundos ao primeiro vislumbre daquela criatura esquelética de
incontáveis pernas longas e asas finas, que se moviam de maneira equilibrada e veloz. Seria uma divindade esquecida? Assustados, ergueram seus corpos
seminus de maneira indefesa, ignorando a debandada barulhenta dos bisões, que corriam para longe da
ameaça que se aproximava.
Desabalados de poeira, patas massificadas
páque-páque-páque e urros gorgolejados que se perdiam em silhuetas amontoadas. Mas as sombras...
A criatura não se assemelhava a nada que conhecessem. Seu corpo parecia uma teia de grossas
veias tubulares, conexões de tecidos e ossos ou cartilagens proeminentes e rudimentares que se encaixavam e se autorregulavam. Um par de membranas translúcidas serpenteava no dorso do animal, como asas compridas e dançantes, sobre um
corpo vazado que aparentava uma fragilidade imponente. Erguia-se a mais de três homens de altura e parecia ter outros tantos de comprimento. ATuk-Ima andou a passos temerosos para fora da
moita, posicionando a lança acima da cabeça de
cabelo raspado. Porém, antes que o caçador pudesse mirar, a criatura mudou repentinamente de
rumo e foi correndo na direção de onde viera.
Desengonçada em suas passadas ritmadas, perdeu-se
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no horizonte, com os raios do sol deixando lascas
de arco-íris contra suas asas leitosas.
II. Magicização
As chamas coloridas rodopiavam como bailarinos esguios e luminosos.
O céu escurecera rápido e as mãos enrugadas
dos anciões tamborilavam em amuletos de presas
de marfim enquanto guiavam o fogo que começava
a encorpar na fogueira principal. A-Tuk-Ima e seu
irmão, Paw-Qha, cobriam-se com mantos de couro
cru, protegendo-se do frio mordaz que começava a
rastejar pela aldeia. Suas expressões endurecidas denunciavam a frustração da caçada interrompida e
do confronto perdido. Pedaços de carne seca de
antílope eram retalhados por um grupo de mulheres ocupadas em preparar espetos e enterrar alguns
fêmures na terra para formar um apoio sobre as
chamas. Não muito longe dali, crianças sugavam
nacos de língua de mamute, cuspindo o que restara
do revestimento de carne áspera. A carcaça do gigantesco mamífero ainda repousava atrás de algumas cabanas. Sua gordura e seu sangue passavam
de mão em mão em cumbucas de madeira e eram
saboreados avidamente.
Contornos fugazes nasciam dos dedos carcomidos dos velhos, criando personagens e representações em meio ao fogo.
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Vuósh. Queimava. Vuósh. Marcava. Fush. Iluminava. Zush. Ilustrava.
Traçados e linhas cruzadas contavam lendas
primevas sobre deuses abandonados e povos desaparecidos. Mas, antes que os caçadores pudessem
deixar-se encantar, labaredas rubras derramavam-se,
tingindo seus olhares com um vermelho-sangue que
chegava a causar náuseas. Seus caprichos aventureiros eram desfiados com ameaças e fragmentos de
maldições. Deveriam esquecer a criatura e deixá-la
sumir atrás do véu da realidade. Desencorajados e
quase desacreditados, os irmãos afastaram-se da roda
em volta da fogueira, decididos a resolver aquele mistério por si mesmos.
Ali perto, uma velha de formas gordas e flácidas
repousava no chão, gemendo e alucinando. Familiares observavam de longe, apreensivos. Uma criança
chorava agarrada à túnica de uma mulher. Ao lado da
moribunda, uma jovem de pele caramelo e corpo nu,
coberto por pinturas azuis, amarrava ramos de
artemísia, posicionava-os ao redor da velha e queimava-os lentamente. Ritualizava a morte. A fumaça
purificaria a alma e o ar, impedindo que a doença se
espalhasse.
Lágrimas banhadas em cheiro de podridão fresca.
E os soluços muh-uh murmurados a altos brados.
Quando finalizou, levantou ajeitando os longos cabelos negros, arrumados em tranças finíssimas,
e aproximou-se dos caçadores que haviam parado para
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contemplar o espetáculo da decrepitude. Relanceara
parte dos relatos amedrontados dos anciões. Conhecia o animal-divindade. Com gestos delicados que
trançavam significações quando se entrecruzavam
com os múltiplos símbolos tatuados em sua pele,
Avhée, a curandeira, deixou claro que gostaria de ajudar os irmãos na busca pela criatura e que sabia onde
procurar mais informações. Pontuou sua mensagem
colocando pequenos fiapos de gengibre na boca dos
caçadores como sinal de amizade e afastando-se para
arrumar seus materiais.
O fogo crepitava.
Cláque-cléque de pedra.
Enquanto Paw-Qha colhia uma lasca fina e
quadrangular de rocha, arrumando-a nas costas com
uma tira de pele e reunindo pigmentos em pó em
uma bolsa de estômago de búfalo, A-Tuk-Ima aproximava-se sorrateiro da caverna isolada da aldeia, onde
o xamãnipulador trabalhava incessante em suas maquinações mirabolantes.
O ruído de pedra friccionando pedra arranhava seus ouvidos e, ao escorar-se na entrada e observar fagulhas alaranjadas sendo expelidas de uma amolação, zinc-zinc, de sílex, sua cabeça doeu em um redemoinho. Aquele brilho traiçoeiro era o mesmo que
reluzia nas presas de um tigre dentes-de-sabre responsável por encurralar uma criança-alce em um passado jovem e doloroso. A-Tuk-Ima, então apenas um
aprendiz de caçador, salvara o filhote do gigantesco
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felino, deixando Kha-Ug, seu amante, perecer sob os
dentes da fera enquanto tentava distraí-la. O corpo
estraçalhado do jovem repousava moribundo no chão,
arrancado violentamente da boca da fera pelos braços
desesperados de A-Tuk-Ima após deixar a criança-alce
a salvo em um canto e dar-se conta da fatalidade. KhaUg desmaterializara-se daquele plano existencial.
Inundação vermelha para dentro dos olhos.
Mas o desespero era branco e vazio.
Apenas a dor escorria tingida.
Perecera em um suspiro rouco, afogado em
sangue, com as vísceras esmagadas entre os dedos.
Seu cadáver fora devidamente preparado com
unguentos e ervas para um enterro em cova rasa e
seu crânio, descarnado e fervido, fora ornamentado
pelas mãos do amante, que agora o usava pendurado
no peito, como um totem vivo.
Abraçado por sombras longas e pela
luminosidade amarelo-âmbar das tochas de gordura,
o xamãnipulador descortinou seu rosto grosso detrás do amontoado de madeira. Nas mãos, um pequeno cinzel que usava para aparar as bordas de uma
roda, tecnologia nova que se ocupava de aperfeiçoar
havia mais de três solstícios de inverno. Borrando os
dedos no carvão velho que se aglomerava em um
canto, resquícios da última fogueira, A-Tuk-Ima desenhou nas paredes uma pequena sequência de cenas
nas quais que figurava a estranha criatura esquelética
que aparecera nas planícies e linhas curvas indicando
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ventos e rumos misteriosos em espiral. Ao terminar
e pousar as mãos no crânio em seu peito, em um
gesto de magicização, o xamãnipulador assentiu com
a cabeça para o pedido de ajuda e começou a arrastar
para fora da caverna a construção que terminava de
lapidar. Sobre quatro rodas de madeira, ainda irregulares e dotadas de alguns cantos mal aparados, uma
plataforma de raiz de salgueiro trançada achava-se
firmemente presa sobre uma estrutura de madeira que
provia os eixos das rodas. Na frente, projetavam-se
prolongações de corda que o homem corcunda e de
cabelos desgrenhados prontamente amarrou ao pescoço e dorso de um par de enormes antílopes domesticados que repousava ali perto.
Com armas articuladas de osso, ferramentas
de pedra, provisões de carne de mamute e um manto
de couro que forrava a plataforma, A-Tuk-Ima e PawQha subiram na construção, enquanto Avhée derramava um pouco de mel pelos lábios e pálpebras dos
caçadores para preveni-los contra espíritos atormentados antes de começarem a viagem. A curandeira
montou em um dos antílopes, arrumou uma
trouxinha que trazia amarrada à cintura por uma corda de cânhamo e, despedindo-se do xamãnipulador,
atiçou o animal para que desse a partida. Os adornos
de penugens acinzentadas e delicadas penas coloridas que lhe rodeavam os pulsos, tornozelos e pescoço transformavam sua silhueta em uma continuação
animalesca do antílope.
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Rrrrrrr.
As rodas demoraram a tomar ritmo, mas logo
os músculos poderosos dos animais acostumaramse e o grupo avançou entre trancos, noite adentro,
em direção à zona onde todos se encontravam para
trocar ganhos de caça, ornamentos, utensílios e o que
mais possuíssem.
III. Piscar
Contemplação pontilhada por estrelas.
Jorros esbranquiçados expandiam-se para além
do universo, acima das cabeças, abaixo das fantasiações.
Seus olhos agitados rodavam na cabeça, sob pálpebras
que tremiam, desordenadas, como que procurando
marcar a travessia noturna pela frequência luminosa
do piscar das estrelas, dos olhares.
Flutuavam insones e caíam adormecidos no
sacolejar turbulento das rodas.
IV. Eterno Retorno
Viravam os olhos. Transe em movimento.
A-Tuk-Ima e Paw-Qha roncavam alto, largados na plataforma. A madrugada fizera sua travessia mansa e silenciosa, começando a abrir passagem
para o primeiro espreguiçar da manhã. Avhée mantinha-se alerta e desperta no lombo do antílope, indiferente ao frio que agora amornava. Seguindo para
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o noroeste, já era possível descortinar no horizonte
uma aglomeração tímida de homens e mulheres carregando um verdadeiro desfile de mercadorias perto
de um lago.
Peles exóticas de raposa, amuletos de conchas
e gemas preciosas, enormes quantidades de mel e
seiva, gordura animal fresca, ossos dos mais variados
tamanhos, flores secas e sementes, muita fibra vegetal desfiada contrastando com túnicas ornamentadas
e calçados acolchoados com pelo. Laminadores de
sílex organizavam suas ferramentas de um lado, mulheres separavam temperos de outro. A mistura agridoce de odores e o burburinho tuc-tuc de passos apressados e cabanas provisórias sendo armadas acordaram os caçadores.
Avhée parecia conhecer grande parte dos trocadores ali presentes e, assim que parou os antílopes perto
de um grupo que limpava pele de mamute com raspadeiras, desceu do animal e andou em direção a um
entalhador solitário. Nas mãos recheadas de calos do
artesão, uma presa começava a tomar a forma de um
cavalo. Com a ajuda de um martelo de chifre de veado,
o homem magro e de cara chupada separava os melhores pedaços de pedra para trabalhar suas criações.
Avhée sentou-se a seu lado. Ele logo a reconheceu e
abaixou a cabeça em uma saudação. Uma fileira de
entalhes em osso rodeava-os como numa cornucópia
de criaturas, dentre as quais se encontravam algumas
bastante particulares, esqueléticas e vazadas.
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Os irmãos passeavam curiosos por entre os
trocadores, observando com minúcia o que lhes era
oferecido. Um cheiro ardido de alho vinha das mãos
de uma jovem de olhos amendoados que parecia ter
viajado de muito longe. A-Tuk-Ima teria se demorado em conhecer aquela estranha com seu sexo
latejante. Tempero e saliva. Teria provado da mistura de gostos se Paw-Qha não o tivesse puxado para
junto de Avhée e do entalhador, que narrava furiosamente como, no verão passado, havia enfrentado
uma daquelas criaturas esqueléticas gigantes e sobrevivido. Seus entalhes em osso eram pedaços de
cenas, meios de transporte que não eternizavam o
acontecido, mas apenas retratava o espanto das imagens que lhe mordiscavam a memória. Ele não guerreara, mas avançara e a criatura fugira com uma lufada de vento. Longas asas de membranas
translúcidas batendo velozes, parecendo querer puxar o animal para as nuvens. Mas os caçadores só
prestaram atenção àquele causo duvidoso quando o
entalhador comentou de rumores sobre fantasmas
de divindades neandertais. O povo desaparecido.
Teriam aqueles homens de ossos largos e maxilares
altos se transmutado em criaturas terríficas que agora
assombravam as planícies?
Uma discussão de expressões debochadas teve
início, até que a chegada de um imponente homemalce silenciou a todos. Mais alto que o maior dos homens e de músculos pequenos e demarcados em uma
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pele amarronzada, seu rosto meio humano, meio
animal desenhava-se em narinas largas cobertas de
um pelo fino e ralo. Em matizes de um sépia escuro,
iam crescendo em direção à testa, alargavam-se nas
sobrancelhas proeminentes e rodeava a base do par
de galhadas ramificadas, que crescia gracioso e ameaçador. O torso e os braços humanos eram fortes e
ásperos. O ventre coberto de pelos desembocava no
corpo musculoso e belo de um alce, com quatro patas grossas na coxa. A-Tuk-Ima não precisou de mais
do que uma troca de olhares para reconhecer MãRaj. Enxergava fundo naquele par de olhos amarelados, reconhecia-os como ninguém. O menino-alce
que salvara do tigre dentes-de-sabre crescera.
Uma pequena troca de saudações respeitosas
foi realizada. Mã-Raj demonstrou pesar ao reconhecer o crânio que pendia no peito de A-Tuk-Ima e
ofereceu ajuda como uma tentativa de recompensar
o passado. Paw-Qha tirou a placa de pedra das costas, preparou dois pigmentos na beira do lago e pôsse a pintar neandertais evaporando-se em divindades
terrestres. Metamorfose em teias.
Avhée pegou um punhado de pétalas secas da
trouxinha que trazia na cintura, emigalhou-as e soprou-as sobre a pintura, que se elevou da pedra, movimentando-se em direção aos céus. Mã-Raj fechou
as mãos sobre as emanações coloridas e borrou-as
no formato de um bico com um par de asas abertas
atrás.
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A pluralidade furta-cor nos veios das penas.
Uma infinitude de traços maleáveis e uma curva escura reluzindo em um bico.
Os homens-alce costumavam manter contato
com tribos distantes, em particular com o povo-ave,
que permanecia isolado dos homens comuns. Se alguém saberia desvendar o mistério daquelas criaturas, seriam eles. Mas não se podia achá-los, pois acreditava-se que eles estavam em todos os lugares ao
mesmo tempo, ou em nenhum. Eles apareceriam no
momento certo, assim que recebessem um chamado
ritual.
Avhée e Mã-Raj afastaram-se dos caçadores e
dos trocadores, contornaram a margem barrenta do
lago e estabeleceram-se embaixo de uma árvore velha de galhos ressequidos e folhas caídas. Chamariam os semideuses soprando imagens. Fogo, mais
uma vez. E pigmentos e flores. Precisavam de mais.
Gemidos e energia sexual pulsando no falo do homem-alce ao toque da curandeira. Ervas e gestos
ensaiados. União orgástica que explodia em ondas.
As mãos finas de Avhée agarrando a margem do
lago, enquanto Mã-Raj a penetrava vigorosamente.
Seus dedos esmagando a terra molhada e seus cabelos jogados desordenadamente. Lentes embaçadas
cobriam seus olhos hipnotizados por um gigantesco ídolo sensorial. Cores que esvaeciam gradualmente, sendo levadas no bico por pequenos pássaros
para longe ou perto.
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Na coreografia de suas expressões, urgência e
temor desenhados no ar, carregados por um pedido
de ajuda embargado de idolatria.
Viravam os olhos. Transe em movimento.
V. Sinestesia
Pássaro e mensagem eram um só em voo livre
de ruídos.
Esvaeciam em esfumaçados que atravessavam
pastagens sob um sol escaldante.
O pedido ritual transfigurado em cores que
gritavam e gemiam era levado como semente e seria
polinizado nos sentidos do povo semidivino.
VI. Etéreo
Nas terras quentes e úmidas do sul, homens
montados em andalgalornis, gigantescas aves carnívoras de minúsculas asas inúteis e um grosso par de
pernas dotadas de garras, besuntavam seus capacetes
de osso e contas opacas com óleo de baleia. Colares
volumosos de penas finas e duras assomavam como
jubas imperiais ao redor de seus pescoços, descendo
por seus peitorais morenos e amarelados.
Terminavam de aportar os barcos e emergiam
os mergulhadores. Zuniam pelas águas como aves que
possuíssem nadadeiras no lugar de asas. Alimentavam-se apenas de animais marinhos. Suas habilidades
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anfíbias e seus equipamentos incompreensíveis de tubos-canas respiradores eram tomados por sagrados.
Muitas estações atrás, aquela visão magnífica
dos homens-ave de jubas reluzentes e capacetes de
longas trombas vegetais segmentadas saindo das águas
assustara os povos nômades de tal maneira que, tomando os desconhecidos por criaturas malévolas, um
ataque fora feito. A batalha que se desenrolara perto
da costa, com os fortes e salgados ventos marítimos
a repuxar penas, cabelos e varas-paus amarradas a
sílex, marcou a superioridade dos homens-ave sobre
os homens comuns.
A margem pedregosa do litoral permitia que
os caçadores atacassem montados em suas carroças,
violentamente puxadas por três ou quatro
quadrúpedes domesticados, que obedeciam furiosos
à base da chicotada. As rodas oscilavam no terreno
acidentado, por vezes desequilibrando os guerreiros,
que tentavam manter-se firmes para girar as maças
acima de suas cabeças e lançá-las com precisão. Alguns arrumavam grandes teias de trançado vegetal
para imobilizar os movimentos do inimigo. O primeiro embate explodia no encontro das carroças
puxadas por antílopes e cavalos de um lado contra os
homens-ave montados em seus andalgalornis de outro, com flechas arqueadas em punho. Rodas quebravam para um lado, lascas de madeira voavam para
outro e musculosas patas escamosas pisoteavam pedra e carne ensanguentada na confusão de gritos e
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gorgolejos de traqueias dilaceradas. No corpo a corpo, a batalha equilibrava-se pelas mortes rápidas e
pelos corpos mutilados que prosseguiam lutando.
Algumas carroças derrubadas eram retomadas
tanto pelos caçadores quanto por homens-ave oportunistas e investiam contra uma massa qualquer, atropelando-a. O pandemônio de humanos e animais
contornando destroços de pedra afiada e tronco recortado era observado de longe por uma linha de
homens-ave que se escondiam em um morro ali perto. Conforme as armas dançavam lá embaixo, pouco
a pouco os homens se aproximavam do mar e muitos já sentiam os pés nus no fino trecho de areia quente
que reluzia perolada sob a quentura da tarde. Alguns
caçadores começaram a tentar recuar da água, conscientes de suas inabilidades, mas eram arrastados e
afogados. Alguns mergulhadores surgiram com seus
tubos respiradores. Traziam as teias que haviam sido
usadas contra eles mesmos e engolfavam os inimigos
nas profundezas da costa ou estouravam suas cabeças desnudas contra os corais.
Os caçadores encontravam-se em menor número, mas continuavam ensandecidos. As lanças eram
amarradas a seus pulsos, para que pudessem puxar o
inimigo assim que o sílex o perfurasse, mas, no calor
do desespero, aquele artifício apenas embaralhou-os
e deixou-os na mira certa para a saraivada de flechas
que foi cuspida do monte a alguns metros dali. Uma
fileira de homens-ave podia ser vista contra a luz do
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sol, todos em pé, com os arcos ainda levantados e os
contornos fulgurantes de seus corpos, jubas e capacetes a recortar o horizonte.
O silêncio que se seguiu aos homens abatidos
foi preenchido com os guinchos dos andalgalornis
que rondavam estressados os arredores, pisando em
músculo moído e poças de sangue, e os lamentos
dos caçadores sobreviventes.
Ao final de tamanha carnificina sobre terra,
água e ar, os perdedores se prostraram em arrependimento e prometeram devoção aos homens de capacetes de osso, sob os olhares afiados que se escondiam dentro dos sulcos daqueles crânios adornados.
Eram idolatrados desde estão, tanto quanto os
homens-alce.
O povo-ave era semidivino.
Pois ser era servir ao olhar do outro.
Um dos homens-ave saía da água, caminhando pela costa enquanto se sacudia. Um tubo de ossos
e bambu prolongava-se de seu capacete, subia até alguns palmos acima de sua cabeça e depois caía
molenga e vinha arrastando-se pela areia molhada.
Uma bolsa de estômago inflada de ar envolvia a ponta final do tubo. Sua juba de penas era mais pomposa
que as dos outros, fulgurando em uma vermelhidão
escura. Enquanto começava a desconectar o tubo
da boca do capacete, um pássaro furta-cor reluziu
nos céus e desceu até a altura de seus olhos. O homem- ave seguiu os movimentos graciosos do animal
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conforme ele desfazia-se em pó. Largou o tubo respirador na areia e foi em direção a seu andalgalornis,
enquanto incitava os outros homens a recolher seus
arcos. Partiriam ao chamado.
VII. Entropia
Além dos limites da vista, um passado gelado
marcava o solo a oeste, mimetizado nas pinturas
distorcidas que passavam de geração a geração. Sabiam bem que, para lá do oceano, seus ancestrais haviam desfrutado abundantemente de todo oferecimento
que desabrochava ao passar das estações. E quando a
água baixara e o gelo subira, um estreito pedregoso
brotara, unindo os dois pedaços de terra. Nos recônditos aconchegantes de tantas memórias lapidadas,
uma navalha de imensidão congelada desafiava o sol
que agora lhes castigava a pele.
O frio cristalizado era não apenas silencioso,
mas estupor em vapor, assentando e acumulando.
Eram tempos de escassez projetada em carcaças de
neve. E grossas camadas de couro engordurado. E
peles e pelos. Caça e caçador. Presa e prisioneiro.
Carne ardendo vermelha, sangrenta e torrada. Chamuscando na fogueira e na ponta dos dedos.
Enegrecida contra um fundo branco.
Mas a febre que fulgurava na testa dos caçadores era fervente e afugentava os espectros do passado à força, rasgando o tecido da realidade conforme
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rumavam sob chamas de luz. Algazarra perdida ao
longe, caindo atrás da trajetória percorrida e sendo
ofuscada pelo brilho do espelho d´água do lago. À
frente, imensidão e ansiedade.
Avhée e Mã-Raj pareciam conversar sem sons
e sem nem mesmo virarem a cara um para o outro.
Conduziam os antílopes com maestria e as coordenações expressavam muito mais que simples direções.
A-Tuk-Ima e Paw-Qha estavam sentados na plataforma. O trançado roçando em suas pernas nuas e
cheias de pelos tortos que ziguezagueavam por cicatrizes. Mas dessa vez iam atentos, varrendo os arredores com a ponta de suas machadinhas e lanças.
Avançavam.
No trepidar de rodas mais pesadas que seus
cílios cansados.
Em um lá e cá sobre capim descolorido.
Pedra.
Lá e cá.
Capim.
Lá e cá.
Crânio de bisão vomitando moscas.
Lá e cá.
Capim.
Lá e cá.
Puxada violenta na corda que quase estrangulou os pescoços dos animais.
Rodas brecando-cavando-revirando a terra.
Jatos de capim.
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Uma horda de criaturas aproximava-se. Monumentais em suas estr uturas monstruosas.
Intrincadas e complexas em movimentos oscilantes.
Uma lufada de vento acompanhava a invasão repentina. Pareciam partir de todos os lados, surgindo bruscamente do cenário, aproximando-se em uma velocidade ameaçadora.
Manada tuc tuc tuc de patas que soavam ocas.
As sombras compridas cruzavam-se sobre os
corpos amedrontados que se encolhiam e se protegiam instintivamente. A-Tuk-Ima agiu de imediato e
jogou a lança contra uma das criaturas, que parecia
um mamute com chifres e placas no dorso. A arma
atravessou o corpo vazado do animal-divindade e foi
fincar-se no chão a muitos metros dali. Paw-Qha tirou uma maça de pedra e corda do apoio das costas,
rodou o pedregulho cheio de vértices no ar acima de
sua cabeça e lançou-o nas pernas do que parecia uma
enorme lagarta-esqueleto. A maça enroscou-se em
uma das pernas, quebrando-a e danificando as outras. A criatura perdeu o equilíbrio aos poucos e começou a cair lentamente, ensaiando a própria morte.
Sem tempo para comemorar, os caçadores já
preparavam os próximos ataques enquanto Avhée recolhia-se de olhos fechados e joelhos no chão, com
um punhado de sementes deslizando pelos dedos,
sugando rezas. Mã-Raj colhera a machadinha de ATuk-Ima e partira a galope na direção das criaturas,
que pareciam zombar de sua agressividade. Dançavam.
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Passos tuc tuc tuc sobre brisas e bater de asas
membranosas em um rodopiar debochado. Mas as
sombras...
Incharam.
Estufaram.
Taparam o sol.
Quando olharam para cima, depararam-se com
nuvens carregadas de um cinza-tempestade. A água
desabou pesada e melada, encharcando ao mesmo
tempo em que consumia. Morna como um dia abafado. O hálito dos céus se despejava sobre seus ombros e as criaturas estremeciam de maneira histérica,
parecendo enlouquecer. Não conseguiriam dar cabo
de todas. Acabariam perecendo sob aquela enxurrada de esqueletos bailarinos. Mas o chiado estridente
de dezenas de gargantas masculinas cortou o ar e veio
estourar na arena de batalha.
Surgiram.
O povo-ave e seus andalgalornis adestrados,
demoníacos com aqueles bicos quase reptilianos e as
garras afiadas tilintando ao sabor da chuva. A pele
morena amarelada dos homens-ave era quase laranja,
tracejada por listras felinas de um marrom-escuro irregular. O capacete triangular exageradamente grande cobria a cabeça e a juba generosa enfeitava o peitoral. Animalescos. Tão selvagemente vaidosos quanto
leões. Quase se fundiam às penas curtas e rígidas dos
andalgalornis, montados em seus dorsos, com as pernas pressionando um par de insignificantes asas.
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Semidivinos em essência imagética. E arqueiros absurdamente habilidosos.
Uma saraivada de flechas concorreu com os
alfinetes da tempestade. Mas ambas acabaram sendo
arrastadas para longe por uma última língua de vento
que desfez também as nuvens escuras lá em cima,
deixando o sol violar a abóbada. Foi-se o prisma de
água. Foi-se a ponta da flecha. Foi-se a inquietude
das criaturas.
Sombras que fugiam.
E apenas um cadáver deixado em cena.
E, ao se aproximarem do curioso corpo
desestruturado, ao tocarem, temerosos, suas superfícies e apalparem suas formas quebradas, recuaram
espantados. Nem animal, nem divindade. Nem mesmo criatura natural, apesar de sua irrequieta identidade motora. Mas uma escultura. Fruto de mãos que
enxergavam mais nitidamente do que qualquer glóbulo
afiado de tilacino.
Puro vegetal transmutado em esboço orgânico. Fibras trançadas em tubos ocos. Encaixes de
madeira e corda fina de palha. Membrana animal apenas nas asas. Revestimento de tecido morto, esticado, trabalhado, preservado, costurado. Membros que
se encaixavam e se infligiam movimento. Uma escultura viva que criava sua própria existência conforme
o vento alimentava sua mecânica extraordinária. ATuk-Ima e Paw-Qha não acreditavam no que seus
olhos testemunhavam. Outra desconstrução, outra
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revitalização, outra ordem identificada no caos. Avhée
apenas sorria. O brilho em seus lábios esgarçados
sobrepondo-se aos reflexos austeros dos capacetes
dos homens-ave. Escondiam expressões fechadas ou
sorrisos igualmente abobalhados e deslumbrados?
Mã-Raj observava de longe, vez ou outra virando a
cabeça para mirar os andalgalornis, talvez perigosamente perto demais. Sua galhada resvalava no ventre
de um dos animais. A tensão era palpável.
Um dos homens-ave aproximou-se. Um
semideus indo falar diretamente com meros mortais.
Pulsão totêmica eriçando a pele dos caçadores. O crânio de Kha-Ug parecia infinitamente mais pesado
agora. Havia uma xamã entre eles, conexão sensitiva
entre mundos que colidiam. Mas, ainda assim, eram
meros mortais, totalmente nus e descobertos. Desavergonhados e fragilizados, mesmo que retesassem
os músculos e rangessem os dentes. Mas a troca era
pacífica.
Informação. Pura informação.
E Paw-Qha puxou a pedra das costas e os pigmentos para comunicar-se com suas pinturas. Representações que adquiriam nova mágica nas mãos
de um semideus.
E eles lhes indicaram o caminho.
Lá, mais a noroeste, a origem dessas esculturas, a origem de seus mistérios, a origem da morte de
um povo.
Lá, além da imagem.
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Desta imagem aqui.
Lá e cá.
VIII. Imaginística
Rur-rur de roda fatigada.
Ptoc-toc de patadas relutantes.
E nesse ritmo alcançaram a boca da caverna.
Aquela mesma descrita em rabiscos escorridos pelo
homem-ave. Apenas algumas horas antes. E já se
podiam notar pedaços de ferramenta jogados aqui,
muito tronco cortado para lá e amontoados de corda
por toda parte. Pedra e osso, marcados a dentadas e
fricção. O mato terminava, deixando o solo exposto,
recheado de pegadas misturadas e revolvidas. A secura subia da terra pedregosa e rala, escurecendo progressivamente para dentro do breu que engolia a caverna. Mas um foco de luz tremeluzia atormentado
lá no fundo, quase apagando-se como um olho sonolento. Fraco, ondulando, extinguindo-se. E os irmãos o seguiram determinados, enquanto a curandeira
e o homem-alce esperavam do lado de fora.
Mas não trombaram com uma parede ou sequer com um recorte de fim. Deram em uma infinitude
enclausurada. Um salão de teto abobadado a se perder
de vista em formações rochosas gotejantes. A iluminação farta e quente era acolhedora e exibicionista.
Fogo amarelo-útero. Três ou quatro crianças andavam
apressadas para lá e para cá, carregando raspadeiras e
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facas de sílex. Meninos-ave, com seus capacetes de
bambu na cabeça desproporcional ao corpinho
molenga e pequeno. Ajudavam como sacerdotes de
um funeral programado.
Os caçadores detiveram-se, aturdidos, diante
daquele homem de costelas largas e grandes, sentado
em um canto, amarrando cordas em estruturas delicadas de tubo vegetal. Não tinha pernas e o começo
de suas coxas terminava abruptamente em um emaranhado gosmento de cicatrizes arroxeadas, restinhos
de carne apodrecida e nesgas de pele dependuradas
como carcaças. O queixo pesado se quedava sob uma
boca aberta. Filetes de baba escorriam pelo canto.
Seu olhar torto denunciava a condição deplorável em
que se encontrava sua consciência. As crianças haviam parado em suas formações e pareciam encarar ATuk-Ima e Paw-Qha por detrás daqueles bicos finos
e curvados, recheados de penugens púberes. O homem baixo e robusto, de braços curtos e fortes, balbuciava ruídos.
Um resquício de linearidade tentando fortalecer-se em seus lábios ressequidos, facilmente esmagados pelo eterno retorno de uma explosão imagética.
O fogo agora parecia crescer e aquele útero-caverna
quase dilatava. Renascimento e reconstrução.
Do caos vieste e ao caos voltarás.
Ignorava os caçadores a observá-lo tão ferozmente. E por que haveria de se importar? Era o último
de sua espécie e nada mais de seu corpo ou imagem
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orgânica perduraria. Mas as criaturas-divindade
esqueléticas lá fora, sim. E para isso amarrava-se a
pedaços de suas criações-filhos-gritos-mudos-de-socorro. Eram aqueles movimentos errantes que deslizavam ao sabor do vento os responsáveis por manter pulsando sua memória. Sua significação materializada em besta mecânica. Automatizada pelos totens
etéreos de sua divinização natural. As esculturas vivas eram mais vivas que qualquer animal. E evoluíam. E interagiam. E pereceriam.
Mas não seu impacto. Não sua imagem. Não
seu imaginístico.
Articulações para substituir fantasmas em pernas que se foram. Formações animalescas para projetar sua dor. O último neandertal. Pelo menos, o
último com feições humanas e angústia entalada na
garganta. O último a representar. Logo, apenas uma
casca seca e oca de informação fragmentada, refletida na organização de uma horda semidivina de perpetuação mágica.
Pois sobreviver era espantar-se e reinventar-se
ao olhar do outro.
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Cyberpunk
PARA ENCERRAR ESTE LIVRO, não poderíamos deixar de registrar um exemplar do gênero que está na base de todos os
demais apresentados por aqui. Mesmo não sendo propriamente uma forma de retrofuturismo, o cyberpunk foi o modelo de inspiração para o batismo do steampunk e dele para
todos os demais passados alternativos, como foi dito na
apresentação. Sendo assim, “Baby beef, baby!” é nosso autêntico representante dos punks cibernéticos, de autoria de
Richard Diegues, escritor e programador, que vem explorando o cenário em diversas oportunidades, seja em seus
contos na coleção Paradigmas (uma versão anterior desta história apareceu no terceiro volume da série), na coletânea
Cyberpunk ou no romance Cyber Brasiliana.
“O mote foi manter as principais características do
cyberpunk, como o nível social decadente e o alto nível
tecnológico, o jogo de mudanças na ordem social, personagens marginalizados e à beira do circuito tecnológico”, comenta o autor, deixando claro que usa o sentido original do
prefixo punk. “A linguagem foi propositalmente dura,
rememorando algo de noir justamente para enfatizar que o
conto se passa justamente na era de transição entre o
cyberpunk e o pós-cyberpunk, demonstrando que o protagonista é uma peça que deveria se soltar em breve das demais
engrenagens e ficar para trás, engolido pelo futuro galopante.” Então, os leitores ficarão agora com um futuro ainda
mais distópico.
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Baby beef, baby!
Richard Diegues
Areia nos olhos. Alfinetes nos pulsos. Torniquete
na lombar. Dor dos infernos! Não estivesse havia mais
de 20 horas consecutivas debugando um programa de
testes para montar a apresentação aos Desenvolvedores
– sem erros, pelamordedeus! –, acreditaria que havia uma
negra velha, lambedora do Papa Legba, fodendo um
boneco com sua cara lá na Africanísia.
Espreguiçou-se como um gato. Rangeu como
um tamborim. Gemeu longamente.
– Ou descolo esse teste hoje ou me acabo –
resmungou, arrancando o vídeo-óculos com a mão
direita, arremessando-o sobre o tampo da mesa à sua
frente. Sentia-se um lixo ao esfregar os olhos. Cheirava como se o fosse também.
No Hipermundo, ao ser desconectado bruscamente, seu avatar entrou em pausa. Os braços
pixelados desabaram ao lado do corpo. Seria apenas
uma representação, um boneco, até a reconexão. Assim, parado, queixo colado ao peito, parecia-se com
seu possuidor: imagem do desânimo.
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Caminhando com passos arrastados até a geladeira, G.ZuZ abriu a porta e apanhou uma
Laurentina, ignorando o aviso no monitor do
eletrodoméstico alertando que estaria morna. Tocou
o foda-se e tomou meia garrafa de uma vez. Quente.
Deu um chute no aparelho, fechando a porta. Entornou o resto da cerveja, bochechando.
Precisava de ajuda. Finalmente admitia. Não
aceitava. Levara três meses desenvolvendo Shesh
Nag/CLC 1.0 e agora não conseguia fazer nenhum
teste que comprovasse seu funcionamento. Não adianta apenas fazer algo perfeito, você tem que ser capaz de provar que a perfeição escoou de sua cabeça
até se tornar real. O programa era um plugin para o
Vishnu e, se fosse aprovado pelo Comitê de Inteligências Programadas, os Desenvolvedores, seria incorporado ao kernel do Hipermundo. E isso lhe, renderia além de muitas moedas, sua bunda na macia
cadeira virtual que havia vagado no CIP.
Os hindus sempre foram os melhores em
software de ponta e os primeiros a fugir para a
Euronova quando abriram as vagas para engenharia do novo programa que substituiria a antiga rede
mundial. O algoritmo do Vishnu era o pilar central
do 3Murti. Eles o criaram. Brahma era responsável
por gerir e recriar toda a codificação autossustentável
do mundo virtual. Shiva era quem limpava o sistema, eliminando e destruindo as instruções obsoletas ou proibidas. Para conservar os códigos em
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funcionamento, Vishnu havia sido desenvolvido. Os
três programas trabalhavam juntos e eram responsáveis pelas engrenagens do Hipermundo funcionarem
de forma azeitada. Com o tempo, foram desenvolvidos novos métodos e programas auxiliares. Remendos para cuidar das novas situações. E elas surgiam
diariamente, no princípio de um mundo em franca
pixel-formação.
Shesh Nag/CLC 1.0 era – ou seria em breve, se
funcionasse! – um derivativo do Vishnu. Deveria servir especificamente para proteção de um tipo de avatar
em particular que havia sido desenvolvido para a República. Mas, para provar sua eficácia, era necessário
um teste. Melhor dizendo: o teste!
Olhou para o arcaico desktop na mesa de canto. Praguejou. Então, praguejou novamente. Teria que
jogar sujo. Ter sangue nas mãos. Novamente. Não
desejava começar dessa forma, mas já o haviam avisado que o poder corrompia. Ao conectar-se à subrede – o submundo –, abandonou a esperança de
escapar do paradigma. Teclou, dando de ombros.
pr hp sf-tstdrv nv hr2 NI-5 min /rm –tdr3 agrcct
Suspirou e releu a mensagem antes de dar o
Enter: “Preciso de ajuda para teste de estresse de
software, novo, no Hiper mundo. Necessito
entregador de nível 5. Ótima remuneração. O test
drive é de risco 3. Aceito agenciamento ou contato
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direto”. Depois de reler, pensou melhor, trocando o
risco para 5, antes de enviar o chamado na banda
clandestina. Não queria se precipitar, fazer uma cagada. Outra. Se mentisse quanto ao risco da missão,
poderia perder mais do que sua reputação. A coisa se
espalharia. Todos que não deveriam saber saberiam.
Já contratara serviço no submundo antes. Terceirizara
um entregador. Só se enganara quanto a seu contratante. O submundo não gostava de saber que estava
ajudando as agências do Conclave AméricaOldEuropean. In God we describe! God curr the Queen!
Sabia que, se mentisse deliberadamente, poderia perder mais do que uma orelha. Talvez alguns dedos. E
só lhe restavam oito agora.
O ar estalou com a guinada brusca feita pelo
entregador ao desviar de uma tartaruga de 30 toneladas. Com destreza, costurou entre ela e um batedor
de flipper que colidia com uma esfera de aço de 3
metros – e que era repelida a mais de 800 quilômetros por hora. Uma baita porrada! E passou a meio
metro dele. Seu coração disparou para 90 batimentos
por minuto, informou uma tela à sua esquerda, em
sua visão periférica. Repuxou o canto da boca, comandando a tela a ir para o quinto dos infernos. Tentava imaginar o que seria aquela esfera no mundo real.
Sabia que não era outro entregador. Entregadores não
colidiam a 800 quilômetros por hora. A não ser os
muito jovens. Cabaços! Esses até faziam merda, mas
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no mínimo com o dobro dessa velocidade. Morriam
dignamente.
Uma seta em tom magenta, quase fluorescente, piscou alguns quilômetros à frente, no canto da
rodovia virtual. Franzindo o cenho, reduziu uma
marcha em sua Speedy R1900 e tocou o freio até baixar a velocidade da motocicleta para perto dos 600
quilômetros por hora. Remexeu a dentadura solta para
um lado e depois para o outro canto da boca. Nervosismo puro. Não solicitara alteração de rota. Alguém
mandara o sinal para ele. Poderia ser coisa de gangue
atrás de motocicletas – a esfera poderia ter sido um míssil? – ou poderia ser grana pintando. Foder-se ou faturar? Dilemas são uma merda!, pensou. Estava quase na
divisa com o antigo Chile. O país fora anexado havia
duas semanas pela República Brasiliana. Muita coisa
estava em mudança ali. Muitas moedas – e cabeças –
estavam rolando.
Atirou-se na curva indicada, derrapando de leve,
seguindo a seta. Seu pescoço estalou as juntas, já quase
desprovidas de cartilagem. Lembrava uma placa de
circuitos rompendo-se, com trilhas voando para todos os lados. Se não fosse pelo trampo, ao menos
seria pela emoção. As rodas trepidaram antes dos
amortecedores se ajustarem ao terreno. Praguejou
com sua própria próstata, que não se dignou a responder. Enxergava a renderização de uma estrada de
tijolos amarelos, o que indicava que cruzara seu programa de pilotagem com o de alguém. Sabia que no
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mundo real estava trafegando em uma via secundária
da estrada. Perpendicular. Terra batida e cascalho.
Outra seta piscou. Ao lado dela, o Espantalho sorria
um rabisco torto. Um dedo de palha indicava para
que ele virasse à direita. Um quilômetro seguindo na
direção indicada e o Homem-de-Lata estava lá. Este
gesticulou para que diminuísse a velocidade e rangeu,
apontando uma ponte na transversal. Ela parecia tão
estável quanto os dentes do entregador. Mas não caiu
quando a cruzou.
Desplugou-se do simulador. Seu visor do capacete ficou incolor e viu que estava em uma fazenda de soja pelas placas de biohazard espalhadas a seu
redor. Encostou a motocicleta sob a sombra de uma
grande placa. Havia mais de 40 anos que não comia
nada que tivesse soja. Qualquer tipo de grão. Apenas a boa e velha carne era confiável. Não planejava
chegar aos 100 anos. Não gostaria de coisas estranhas crescendo dentro dele antes de bater os
coturnos. Deixou a máquina inicializada para o caso
de precisar sair rápido dali. O som do motor zunindo era aconchegante e tranquilizador como o colo
de uma avó. Pelo mesmo motivo, deixou as duas
pistolas destravadas nos coldres. As mãos eram rápidas, mesmo com a artrite, mas não custava uma
ajudazinha. Foi rangendo até o sujeito com o
exoesqueleto caro, sentado na espreguiçadeira em
frente ao casarão. Tão velho quanto ele. Talvez mais.
A idade, a posição em que estava deitado e o
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caramanchão florido ao fundo fizeram com que o
entregador relaxasse um pouco. Pouco.
– Leônidas, certo? – o velho perguntou, acenando com o dedo e tocando a ponta do chapéu
panamá. O entregador aquiesceu sem dizer nada. –
Como anda?
– Correndo – o entregador respondeu, retirando o capacete enquanto sentava em uma cadeira de
vime na frente do outro. – E doendo.
– Muitos trabalhos?
– Escassos. É a idade, preferem os mais jovens. São mais lentos, mas bem mais baratos.
– Muitas moedas? – Ele ergueu a vasta sobrancelha branca.
– É uma pergunta ou estamos negociando? –
O entregador também fez menção de erguer a sobrancelha, mas havia anos ele as perdera.
– Sempre negociando. – O sorriso do velho
era sincero. Ele apanhou um armtop de dentro do
alforje de fibra em sua perna e o arremessou para o
entregador. – Última linha. Não havia computador
melhor até ontem.
Com perícia, Leônidas o girou nas mãos, arregaçou a manga da jaqueta e acoplou o equipamento
ao braço esquerdo, sobre a pele enrugada. Menos de
um segundo até o aparelho rastrear seu Cartão de
Identificação, baixar os dados do antigo palmtop em
sua cintura, rastrear as preferências de seu capacete e
identificar mais de 30 eletrodomésticos e aparelhos
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greentooth na região com banda livre para se conectar
ao Hipermundo. A porra do visorzinho de plasma
parecia sorrir para ele, convencido que só. Tinha
certeza de que um pixel piscou propositalmente
para ele.
Coisa boa. Não deveria vir boa coisa, então!
Deixou a frescura de lado, aos pés da civilidade.
– Qual é a pegada? – perguntou, cobrindo seu
novo equipamento com a manga da jaqueta. Sim, era
seu. Ninguém o tiraria dali. Que tentassem.
– Um cliente precisando de um entregador NI5 para um teste de programa no Hipermundo. Estou
intermediando. Tem nível para isso, velho?
– NI-6, velho – a resposta foi cuspida. – Sabe
disso pela minha retroficha. Sei que a leu.
– Apenas entabulo uma conversa amigável – o
intermediador retrucou, apanhando uma pequena
barrica. Encheu dois copos com um líquido amarelado. Ofereceu um deles ao entregador.
Ele não se fez de rogado. Levou uns segundos
para se mexer, não por medo do conteúdo do copo,
mas por conta das juntas mesmo.
– Que tipo de software? – Virou o copo em
uma talagada.
– Do pior. Apaga o avatar, limpa o cartão, transforma a mente em estrume de cabra. Ou não. Quem
saberá além do pulha que o desenvolveu? Não é sempre assim? – Subiu uma oitava na voz. – O risco é
nível 5. Barra pesada. Coisa para macho, não para
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florzinha. Conexão até o fim do serviço, sem saída
no meio. Arregou, dançou!
– Seis mil moedas – foi a resposta do
entregador, sem nenhuma inflexão distinta na voz. –
E mais uma dose desta cachaça.
O intermediador sorriu. Seu exoesqueleto deu
um rangido e um suspiro hidráulico quando arremessou a barrica de bebida para o outro. O velho
entregador a apanhou facilmente com uma das mãos,
enquanto com a outra espalhava o suor que escorria
pela calva.
Contente, ele coçou o testículo por debaixo do
exoesqueleto. A margem de lucro seria ótima, mesmo sem descontar o armtop.
G.ZuZ já havia criado mais de 30 programas
para simulação de testes em Shesh Nag. Usou o que
havia de melhor em algorimetria cerebral, cruzando
com bases de dados bélicas e simuladores de ação.
Seu programa havia eliminado tudo com esforço 7.
A escala ia do 1 ao 50. Soltando todos ao mesmo
tempo, atingiu um 11 no máximo. Se fosse um
iniciante, acharia aquilo ótimo. Não era! E achava
uma merda. Conseguira criar um ótimo programa,
mas não sabia se era à prova de falhas, pois não
havia nada capacitado o suficiente para testá-lo. Isso
o consumia.
O dilema era exatamente igual ao dos diamantes. Como se cortavam diamantes no século passado?
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Com outro diamante ainda mais duro. Essa era a resposta. A única aplicável na equação. Precisava encontrar esse durão rápido. Se aparecesse na reunião dos
Desenvolvedores sem apresentar um teste de verdade, eles o colocariam na geladeira. Não teria outra
chance de provar a capacidade de seu código. Sabia
que deveria haver centenas desenvolvendo sistemas
com a mesma finalidade que o dele, visando a vaga
no CIP.
Quando a Africanísia – naquela época, ainda
um continente repleto de países, não a superpotência que era agora como um país unificado – conseguira aplicar o Golpe do Ouro nos países do eixo
norte, afundando a economia americana e a europeia,
o Brasil resolvera que também tinha seus próprios
pauzinhos para esfregar. O Embargo da Carne fora
chamado de the nail in the economic coffin, o famoso
último prego do caixão. O Brasil possuía cerca de
200 milhões de cabeças de gado. Ao anexar a Argentina e a Bolívia a seu território, após os dois países quase se destruírem em guerra – guerra essa
com o patrocínio especial de seu novo proprietário
–, criara a República da União Brasiliana. Com a
compra do México e do Uruguai, adquirira os maiores rebanhos do eixo sul, restando apenas o australiano, que aderiu ao embargo, e o indiano, que
não era mercantil. Toda a carne vermelha parou de
ser comercializada para os países do eixo norte, o
que obrigou os Estados Unidos da América e a
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Rússia – que, apesar de serem os maiores produtores, também eram os maiores importadores de carne
do globo – a selarem pactos com a China para adquirir seus rebanhos. Isso desencadeou a invasão da Índia pela China para tomada de seu gado. E depois da
Coreia do Norte, Coreia do Sul, Japão...
Ao constituir toda a sua força econômica sobre seu rebanho, a República da União Brasiliana se
viu obrigada a tomar medidas para proteger sua maior riqueza. Foram criados vários edifícios com todo
tipo de proteção biológica e física possível. Com o
domínio das armas nucleares pela República, os ataques em grande escala estavam descartados, mas uma
guerra franca ainda era plausível. Os animais passaram a ser confinados dentro deles, protegidos de qualquer tipo de ataque externo. O que se sucedeu em
poucos meses foi o óbvio: o rebanho passou a morrer por causa do confinamento. Uma doença muito
semelhante ao banzo, a mesma que afligia os navios
negreiros. Em tempos modernos, foi encontrada uma
solução moderna: o método Boi Feliz.
Foram desenvolvidos chips de ID que passaram a ser implantados no cérebro dos animais assim
que eles eram paridos. Os animais imediatamente se
plugavam ao Hipermundo, com avatares bovinos,
passando a viver em fazendas com grandes pastos
verdes e grama alta, sem predadores nem insetos, com
tudo o que um boi poderia desejar para ser feliz. Baby
beef, baby! Um bilhão e meio de cabeças. E contando.
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Um problema resolvido. Outro criado. Como
o cérebro dos bois estava ligado a seu avatar no
Hipermundo de forma irreversível, não poderia ser
desplugado. Um corpo sem mente era tão factível
quanto baratas jogando pôquer. Se um boi morresse
no Hipermundo, seu corpo morreria no mundo real.
Um processo normal. Um boi tombava, um ponto
se acendia em um monitor e, em poucos minutos, a
carcaça já fora arrastada para uma câmara frigorífica.
Em poucas horas, teríamos mais uma jaqueta e churrasco de primeira. Um, cinco, 100 bois morrendo não
são um problema realmente. Mas, se meio bilhão de
avatares fossem abatidos no Hipermundo de uma vez,
seria um verdadeiro holocausto. Milhares de simulações foram rodadas pelos servidores da República e
a conclusão sempre era catastrófica. Recentemente, a
ABIN soubera que o Conclave AméricaOldEuropean também rodara essas mesmas simulações. Uma bandeira vermelha fora agitada. E tinha
mais ou menos o tamanho de um estádio de futebol.
Para isso, G.ZuZ e vários outros engenheiros
de software desembestaram na corrida independente
para criar um sistema de defesa contra essa possibilidade. Shesh Nag/CLC 1.0 era a ideia dele. Tentara
ser o mais refinado possível. Pensara até mesmo no
que os primeiros Desenvolvedores fizeram, baseando seu plugin na mitologia hindu, na qual o deus
Vishnu é comumente representado flutuando sobre
ondas. Ou nas costas de um deus menor, chamado
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Shesh Nag. Não queria apenas provar que era capaz
de desenvolver a melhor linha de defesa para as fazendas da República da União Brasiliana, mas também comprovar que tinha a capacidade de se integrar
ao corpo de decisão do CIP. Queria se tornar um dos
Desenvolvedores. Conhecia a fundo a mentalidade
dos Desenvolvedores iniciais e curtia sua identificação com a mitologia. Programação era simbolismo
puro, um nada que movia elétrons, coisa na qual
muitos acreditavam de uma forma tão empírica como
nos próprios deuses. Você poderia ver trechos de
códigos, mas não o que eles realmente faziam depois
de serem soltos no mundo.
O bipe soando ao fundo fez com que largasse
seus devaneios. Com os dedos, arrastou o cascalho
para fora dos olhos. O velho desktop cintilava uma
mensagem no cristal líquido: 20m M$. Foi um orgasmo para o programador. Estava disposto a pagar
muito mais que 20 mil moedas. Venderia tudo que
tinha, se precisasse. Até sua alma, se já não estivesse
comprometida há anos.
O entregador escolheu a BR-153 para o início da missão. Era curta, com menos de 5 mil quilômetros de extensão, mas serviria. Depois, cairia para
outra, e outra, e outra, até o mar, cruzando o país
inteiro. Mas já havia pensado em tudo e calculou
que o espaço seria mais que suficiente. O itinerário
estava carregado em seu novo armtop. Ajeitou as
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luvas, colocou o capacete e sentou-se na Speedy
R1900. Suas velhas juntas pulsavam e doíam de antecipação. Sentiu até mesmo um leve arrepio na virilha, coisa havia tempos deixada de lado. Era difícil
conseguir emoção ultimamente. Consultou os
batimentos no visor do capacete. Oitentinha ainda.
Um porre! Pensou no que vinha pela frente. Um
risco 5. Muito bom! Pegava menos de duas entregas
por semana. Todas com risco 2 ou 3, no máximo.
Óbvio que, fosse ele um cabaço de um NI-3, estaria
se borrando. Não, já fora a época. O sorriso lhe
rasgava o rosto.
O capacete estalou ao acessar o Hipermundo.
Não tinha o hábito de acessar aquela babaquice. Era
coisa pra geeks. Mas agora estava lá. Seu Cartão o havia carregado em um ponto ermo do mundo virtual.
Cortesia do empregador, que devia ser da – ou A –
República, para liberar seu acesso dessa maneira.
Então vamos brincar com um software governamental,
pensou no momento em que o acesso se concluía. Já
trabalhara muito com o governo. De ambos os lados. Pagando bem, que mal tem?
Usava apenas o simulador para andar na estrada. Era uma espécie de versão reduzida do render de
polígonos tridimensionais da grande rede. Mas os
princípios eram os mesmos. Podia operar ali com facilidade. Pediu a checagem da área virtual à sua frente. No mundo real, andaria em linhas quase retas, atravessando o país, mas ali teria seis quarteirões por oito.
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Seriam 48 quadras para brincar de ziguezague em uma
desvairada rota aleatória. O mesmo programa
anticolisão que sua motocicleta usaria no mundo real,
ele utilizaria no virtual. Checou o programa e o percurso que traçara uma hora antes. Definira previamente as curvas e desvios que faria utilizando lances
de uma rolha de vinho sobre um travesseiro. Queria
ver se teriam um programa capaz de entender um
padrão desses. No mundo real, solicitou a varredura
de cada um dos parafusos de sua motocicleta. Sem
falhas, pelamordedeus! Cerrou a dentadura superior contra a meia dúzia de dentes inferiores. Torceu o cabo
do acelerador apenas para fazer barulho. Gostava dele.
No Hipermundo seu avatar estava de pernas abertas,
braços esticados, mas aparentemente flutuava sem
nada debaixo. Não havia veículos no Hipermundo.
Uma das regras primordiais por lá. Nada de atropelamentos, acidentes ou avatares movendo-se demais.
Fiquem perto do centro, das publicidades. Era isso
que o afastava daquele lugar. Sabia que, para sua moto
ser aceita no Hipermundo, precisaria de uma permissão especial. Uma brecha no sistema. Ou algo assim.
Aguardava.
A renderização do terreno era uma cópia de
terra ocre com seixos ocasionais. Bem-feita até. Para
todos os lados havia milhares de metros de cercas,
rodeando fazendas onde bois pareciam pastar despreocupadamente. Se os avatares dos animais tivessem sido programados para isso, estariam sorrindo
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enquanto mascavam o chiclete de grama. Pareciam
tão felizes quanto drogados chapados de Versax.
Rotten happiness! Ele acabaria com isso. Missão: matar mil bois sem ser interceptado. Pelo quê? Não lhe
disseram.
Apanhou as pistolas em sua cintura. Réplicas
virtuais de sua arma real. Disparou 14 tiros no chão.
A versão real teria parado no décimo terceiro. Bom!
Tomou um susto quando o ronco da Speedy
R1900 surgiu de maneira ensurdecedora atrás de si.
Entre as pernas, pixels espocaram em tons de cinza,
depois no vermelho e no amarelo intensos de sua
motocicleta. Sua espinha gelou quando a última conexão foi realizada. Agora, não tinha mais volta. Só
poderia se desplugar se terminasse a missão. Ou se
morresse. Tudo ou nada.
Pensou em Freud. O filho da puta dizia que o
objetivo de toda vida é a morte. Ele já estava no lucro
fazia tempo. Pretendia continuar assim por mais meia
dúzia de anos.
Por dentro, G.ZuZ tremia de emoção. Seu
avatar, entretanto, permanecia frio como gelo. Ele
até mesmo havia retirado um pouco do vermelho de
sua renderização para deixá-lo mais azulado. A única
coisa que entregava sua ansiedade era um ou outro
ponto da malha de pixels que falhava, respondendo a
seu controle consciente para não fazer os naturais
movimentos involuntários.
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– Podemos disparar a execução do teste? – Era
D-Bst quem indagava diretamente ao programador.
Ele era, dentre os Desenvolvedores, o que possuía o
nível mais alto na hierarquia. Todos os demais o achavam um saco! – Instanciar sistemas – disse, com um
indisfarçável prazer mórbido, antes que G.ZuZ tivesse tempo de responder.
Se o programador queria pleitear realmente a
cadeira no comitê dos Desenvolvedores, teria que se
acostumar a ter as respostas prontas antes que as
perguntas fossem feitas.
Cinco? Dez? Quinze anos? O entregador não
sabia quanto tempo fazia que não sentia taquicardia.
Seus batimentos não chegaram acima de 100 nem
mesmo quando colidira com um pequeno bimotor
em pouso de emergência na Colômbia. Agora, registrava 130 batimentos por minuto quando acelerou
sua motocicleta, fazendo pedriscos renderizados pipocarem para todos os lados.
Deixou que a máquina guinasse para a direita,
seguindo até a quarta quadra. Depois, virou para a
esquerda, deixando que o programa fizesse a manobra sem sua intervenção. Estava se ajustando à posição e ao peso da direção, avaliando a performance.
Ótima! Sacou uma Glock 21 com a mão esquerda e
disparou. O primeiro boi tombou com um terceiro
olho entre os originais.
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Por mais atento que fosse, o entregador não
pôde perceber que, em meio à alta grama configurada, um par de olhos surgia – e o observava. Shesh
Nag/CLC 1.0 estava instanciado. A diretriz-base do
software zelador era para que monitorasse a primeira
ameaça de interrupção de uma rês e, na segunda, ativasse o ataque. Isso permitiria que avaliasse os padrões sequenciais e se aprimorasse cada vez mais, a
fim de que não houvesse uma terceira agressão no
futuro.
Ao realizar o segundo disparo, o entregador
freou bruscamente a motocicleta. Cerca de 2 metros
à sua frente, uma sombra negra passou em uma velocidade assombrosa, bem na altura de seu pescoço.
Não a identificou, mas subiu dos 200 para os 400
quilômetros por hora. E começou a disparar o mais
rápido que podia.
– Merda! – gritou quando o segundo bote passou 1 metro às suas costas.
Aquele era o programa que estava sendo testado. Isso era claro. E ele o perseguiria até conseguir
pegá-lo. Ou até ele derrubar os mil bois. A Glock
rugia para a esquerda e para a direita, sem parar. A
Speedy R1900, para a frente. Estava programada para
realizar a sequência de manobras entre as quadras
automaticamente, mas a velocidade era controlada
pelo velho entregador. Inicialmente, o risco negro
passava a 2 ou 3 metros dele. Agora, dificilmente passava a mais de 1.
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Trezentas cabeças. O entregador olhava para o
marcador periférico que contabilizava os abates. Para
ele, pareciam ter sido mais de 500. Desligou o
marcador cardíaco. Não queria saber se teria um
enfarte naquele momento. Apesar de o programa estar
chegando cada vez mais perto, os velhos ossos do
entregador também estavam se aquecendo.
O avatar de um dos Desenvolvedores chegou
a se erguer da cadeira giratória quando o capacete do
entregador foi resvalado por Shesh Nag. Para G.ZuZ,
aquilo foi um ótimo sinal.
– Não se empolgue – D-Bst avisou sem
desgrudar os olhos de outro monitor, onde lia a ficha
do entregador, tentando ocultar sua admiração. O
sujeito que o programador havia escolhido era dos
bons. Velha guarda da MAI-NI Expressas. Ele conseguira um bom teste para seu software. – Até agora,
foram 400 bois mortos. E creio que ele chegará aos
mil. – Ficaram olhando a perseguição durante um
bom tempo. O entregador era muito bom. Muito
bom, mesmo! – Sabe que poderia ter pegado um NI-5
para esse teste, não?
– Sim – respondeu G.ZuZ no mesmo tom
neutro –, mas sou bom no que faço. Espere até que
chegue às 500 cabeças.
No canto do enorme monitor, o número 499
acabava de piscar.
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Em um relance, com o canto dos olhos, o
entregador viu a sombra de Shesh Nag saltando cerca de 10 metros à sua frente. Pinçou o freio no mesmo instante em que disparava e abatia o avatar de
número 500. Por pouco, não conseguiu se abaixar a
tempo. Devido à redução de velocidade, a sombra
passava 3 metros à sua frente, mas em um átimo se
dividiu em duas, desferindo um ataque perpendicular
que arrancou o retrovisor da motocicleta.
– Putaquepariu! – o entregador berrou, sentindo o programa deslocando pixels em sua jaqueta. –
Essa merda é uma maldita cobra. – Acelerou a motocicleta, dando-se conta finalmente contra de contra
que estava lutando. – Duas agora.
Shesh Nag propositalmente o atacava com
botes laterais, de forma que suas escamas negras absorvessem a simulação de luz, permitindo que o
entregador visse apenas um borrão negro passando.
De frente, ele conseguiu identificar perfeitamente o
par de olhos ofídicos, amarelados como pus. A língua bifurcada chegou a tocar nele de passagem. Marcava o alvo.
O entregador solicitou conexão com a central
da MAI-NI. Pediu o download de um programa experimental de detecção de obstáculos. Havia visto a
chamada para testes no comunicado do dia anterior.
Deveria servir para ajudar os novatos a não baterem
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em coisas que não deviam. Os mais velhos acharam
aquilo uma tremenda bobagem, pois registrava, além
do que estava à sua frente, tudo o que vinha dos lados e de trás. Em seu trabalho, o que estava dos lados era considerado passado e o que vinha de trás
nunca o alcançaria. Mas agora o programa parecia
ser útil.
Depois de mais dez disparos, percebeu um
problema. Havia mais de 20 cobras no visor do programa.
– Quem será o bostinha que escreveu um sistema multiinstância para foder o velho aqui? – berrou em meio a uma crise de riso histérica, compreendendo que, a cada boi que abatia, o programa gerava
uma cópia de si mesmo.
Queria um charuto. E um uísque. Fumava como
um incêndio e bebia como se quisesse apagá-lo. Sentiu o suor escorrer por suas costas no mundo real.
– Suor? – gritou, entre um disparo e outro de
sua Glock. – Isso não é coisa de macho. Você ainda
não me fez suar, sua cobrinha de merda! Quando sair
daqui, eu vou ter um papinho bem de perto com
minhas glândulas sebáceas. Vou colocá-las novamente
no lugar delas.
Então, calou-se. Já havia mais cobras do que
bois a seu redor. Por instinto, atirou direto contra
uma das réplicas de Shesh Nag que avançava de frente para ele. Uma explosão de pixels o rodeou quando
cruzou pelos restos de código-fonte espargidos a seu
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redor. Por um instante, ficou surpreso ao descobrir
que era possível destruir as cobras também. Sorriu.
De verdade. Dez anos atrás, teria tido uma ereção
moderada.
Em frente à grande tela, G.ZuZ estava de pé,
observando o desempenho de seu sistema. Assim
como o entregador, não havia previsto que Shesh Nag
seria um alvo válido. Um detalhe estúpido, mas que
deixara passar direto. Shesh Nag/CLC 2.0 preveria
isso. Ao todo, tinha dez notas mentais para aprimorar a versão atual.
À sua volta, os Desenvolvedores também estavam compenetrados com a ação. Vários pareciam
orgulhosos do programa, como se eles mesmos tivessem colocado seus dedos no código-fonte. Um
deles comia pipocas com os pés sobre uma mesa.
Novecentas cabeças. Estava cada vez mais difícil achar os bois restantes. E Shesh Nag já não
atacava mais o entregador pela frente. Havia entendido que, mesmo sem dentes, ele ainda mordia. Parecia mais preocupado em acertar as réplicas do programa do que os avatares dos bois. Guiava como
um louco. Parecia achar que estava em casa. Começava a se sentir mais à vontade ali do que a própria
divindade-cobra.
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Novecentas e sessenta cabeças. Restavam apenas quatro dezenas de bois por ali. Em um momento
de distração, Shesh Nag abocanhou sua perna esquerda. Não a mordeu apenas. Arrancou-a na passagem.
Era um avatar perneta agora. Nada de trocas de marcha. A Glock parecia uma metralhadora, de tanto que
seu gatilho era puxado. O entregador vocalizou o
comando para que a Speedy R1900 travasse a aceleração para o máximo – o 1900 em seu modelo não
era à toa – um milésimo antes de seu avatar ter o
braço direito decepado.
Será que essa porra está comendo meus pedaços?,
o velho pensou, lutando para se manter sobre a máquina, sem uma perna e um dos braços, a quase 1.900
quilômetros por hora.
Em seu visor, dois alertas piscavam. Os números 990 e 100 piscavam em vermelho. O primeiro
indicando o gado abatido; o segundo, o que lhe restava de rodovia antes do grande e eterno nada.
– Faltam dez projetos de hambúrguer – gritou,
sabendo que alguém se divertiria assistindo àquilo mais
tarde. – Esses pedaços meus que ficaram por aí...
peguem e enfiem no rabo. É a única forma que vão
ter de me manipular agora, até a hora que jogarem
meu cadáver em um daqueles malditos fornos de cremação. A ideia me agrada. Nada de falsas cerimônias.
Só um arremesso à fornalha. Sem fumaça por causa
das merdas de filtros nas chaminés. Mas o cheiro vocês
vão sentir, desgraçados!
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Novecentos e noventa e seis e 54. Ele atropelou uma das cópias de Shesh Nag. Gostou do efeito.
Novecentos e noventa e oito e 42. Conseguiu
dar um chute em outra cobra. Ela não pareceu se
importar, mas ele adorou a sensação. Tinha certeza
de que chutara o cu da cobra.
Novecentos e noventa e nove e 25. Faltava
um boi apenas. Mas o entregador sabia que Shesh
Nag/CLC 1.0 estava apenas brincando com ele. O
programa era esperto. Quem estava por detrás dele
era esperto. Havia montado uma bela demonstração de seu programa ali. Ah, sim. Muito boa, mesmo. Leônidas tinha certeza de que havia alguém,
além dele próprio, divertindo-se naquele instante.
Como consolo, pensou que pelo menos ele estava
curtindo de verdade a ação. Coisa rara naqueles
tempos.
Novecentos e noventa e nove e 1.
Um dos Desenvolvedores chegou a dar um
gritinho afeminado quando as mais de 30 replicações
de Shesh Nag saltaram em círculo sobre o
entregador. A última bala que ele havia disparado
estava em perfeita rota de colisão com o centro da
cabeça do último dos mil bois. Uma das cópias a
interceptou no ar, poucos centímetros antes de encerrar a missão do velho. Aquele boi continuaria
pastando feliz.
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Nenhum deles soube o que aconteceu com o
corpo do entregador em seu último quilômetro de
estrada física. Sua rota terminava em um píer.
O quadro de Desenvolvedores voltou a se completar. E a soberania da República Brasiliana – depois de alguns ajustes em Shesh Nag para uma versão 2.0 –, ao menos no que dizia respeito a seu gado,
estaria garantida.
Esse era o bom e velho baby beef, baby!
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Romeu Martins
(ORGANIZADOR) - [email protected]
Recebeu do Conselho Steampunk brasileiro a Comenda da Ordem da
Caldeira, "por serviços de inestimável importância ao movimento
Retrofuturista no Brasil", em 30 de abril de 2011. No dia seguinte, era
lançada em Nova Iorque a Steampunk Bible, de Jeff VanderMeer e S. J.
Chambers, obra de referência do gênero já publicada. Aquela obra trouxe
em suas páginas uma tradução para o inglês de trechos de seu conto "Cidade Phantástica", que integrou anos antes no Brasil a pioneira e consagrada coletânea "Steampunk - Histórias de um Passado Extraordinário",
da Tarja Editorial.
Alliah
(STONEPUNK) - [email protected]
Artista visual com um crânio de veado no lugar da cabeça. Inquieta, absorve e devora todo tipo de referência plástica, musical, interuniverso e
translienígena que cruzar seu caminho. É autora do “Metanfetaedro” e de
outras alucinações hiperdimensionais.
Nikelen Witter
(BRONZEPUNK) - [email protected]
Autora do romance "Territórios Invisíveis" e de vários contos em Antologias como "Steampink", "História Fantástica do Brasil - Guerra dos Farrapos", "Quando o Saci encontra os Mestres do Terror", "Autores Fantásticos" e outros títulos ainda no prelo. Escreve no blog Sapatinhos Vermelhos do Portal de Notícias Sul21 e contribui com a Revista Fantástica. É
professora e historiadora, atualmente pesquisando a história da leitura e as
questões de gênero. Mora em Santa Maria, Rio Grande do Sul.
Georgette Silen
(MIDDLEPUNK) - [email protected]
Natural de Caçapava - SP. Arte educadora e professora de teatro, diretora
teatral e figurinista. Como escritora, iniciou profissionalmente em 2009,
participando de coletâneas sempre no gênero que mais a inspira: a Literatura Fantástica. Flerta com o terror, com a FC e seus subgêneros. É autora
da série "Lázarus", uma saga sobrenatural com 4 volumes sobre vampiros.
Também é autora dos livros "As Crônicas de Kira" e "Fábulas ao Anoitecer" (2012), além de ter participado de mais de 30 coletâneas como coautora
e organizadora.
Ana Cristina Rodrigues
(CLOCKPUNK) - [email protected]
Nasceu em 1978 e é quase retrofuturista de nascimento. Historiadora, acha que o passado é um país estrangeiro, mas sempre leva um
casaco na mala para eventuais frentes frias. Vive em Niterói com o
marido artista e o filho arteiro, escreve fantasia, tenta retomar o
doutorado, trabalha na Biblioteca Nacional e edita bons autores pela
Llyr Editorial.
Gianpaolo Celli
(STEAMPUNK) - [email protected]
Administrador de empresas e pós-graduado em gastronomia, atualmente é, além de escritor, editor, parecerista free-lancer e consultor
editorial. Autor do livro "Conspiração Steampunk" (2013); organizador
e co-autor dos livros "Cyberpunk - Histórias de Um Futuro Extraordinário" (2010), "Steampunk - Histórias de Um Passado Extraordinário" (2009), "Necrópole - Histórias de Bruxaria" (2007), "Histórias do
Tarô" (2007), "Necrópole - Histórias de Fantasmas" (2006), "Necrópole - Histórias de Vampiros" (2005) e co-autor dos livros "Paradigmas
Definitivos" (2012), "Extraneus 1 Medieval Sci-Fi" (2010), "Paradigmas
3" (2009) e "Visões de São Paulo" (2006).
Renato A. Azevedo
(DIESELPUNK) - [email protected]
Escreve o blog Escritor com R. Autor de "De Roswell a Varginha"
(2008) e de "Filhas das Estrelas" (2011). Consultor da revista UFO,
editor convidado para a edição UFO Especial 36: Alienígenas na
Ficção Científica. Co-editor do site Aumanack. Autor convidado
nas antologias "Ufo: Contos Não Identificados", e "Extraneus Vol.
1 - Medieval Sci-Fi". Participante das antologias "Histórias Fantásticas Vol. 1", "Imaginários 4" e "A Fantástica Literatura Queer".
Michel Argento
(NAZIPUNK) - [email protected]
Bacharel em Ciências Jurídicas com Especialidade em Direito Tributário. Bonsaísta, arqueiro e historiador nas horas vagas. Entre suas
leituras preferidas encontram-se Frank Miller, Alan Moore, Érico
Veríssimo, Philip K. Dick. Michael Chabon, John Ronald Reuel
Tolkien, Joe Sacco, Bernard Cornwell e Art Spiegelman.
Marcelo Augusto Galvão
(ATOMICPUNK) - [email protected]
Apreciador de vários gêneros literários. Teve contos publicados em
sites, na revista Scarium e nas antologias "Imaginários - volume 3"
(2010), "Histórias Fantásticas - volume 1" (2010), "Os Anos de Ouro
da Pulp Fiction Portuguesa" (2011), "Sherlock Holmes - Aventuras
Secretas" (2012), "Space Opera - volume 2" (2012), "Caminhos do
Fantástico - volume 1" (2012), "Sagas - volume 4" (2013) e "Dark
Policial - Divisão de Casos Sobrenaturais" (2013).
Dana Guedes
(TRANSISTORPUNK) - [email protected]
É meio escritora, meio designer, meio maluca e inteiramente apaixonada pelo universo fantástico de todos os tipos. Formou-se em
Programação Visual, com especialização em diagramação de editoriais. É autora dos contos "Homérica Pirataria", "Um causo dos que
não se contam na floresta de concreto" e "Flor de Ameixeira", todos disponíveis em sua versão digital. Além disso, é aficionada pela
cultura japonesa e roteiriza games.
Richard Diegues
(CYBERPUNK) - [email protected]
Escritor, editor e consultor tecnológico. Atualmente mora na cidade de São Paulo. Autor dos livros Resvalamentos – a Chave dos
Reinos (romance, 2012), Catrina e o Reino de Todos os Olhos
(romance, 2011), Tempos de AlgóriA (romance, 2011), Cyber
Brasiliana (romance, 2010), Sob A Luz do Abajur (contos, 2007) e
Magia – Tomo I (romance, 1997), além de organizador e co-autor
dos livros de contos Paradigmas Definitivos (2012), Paradigmas
(2009/2010 – 4 volumes), Histórias do Tarô (2008), Necrópole –
Histórias de Bruxaria (2008), Necrópole – Histórias de Fantasmas
(2006), Visões de São Paulo – Ensaios Urbanos (2006) e Necrópole – Histórias de Vampiros (2005); também é co-autor dos livros
de contos Todos os Portais: realidades expandidas (2012), VII
Demônios – Inveja (2012), Cyberpunk – Histórias de Um Futuro
Extraordinário (2010), Portal Fundação (2009), Livro Vermelho
dos Vampiros (2009) e Imaginários 1 (2009). Trabalha com eventos e palestras na área literária.

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