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Perguntaram pra mim, se você tava demorando. Respondi: — Ela fez uma parição, depois saiu sem asas voando. Avizô se volta? Volta, à volta. Mofia — Por Gaspar Tereza Marfim, quero ocê de Bronze, mofia Vestida D’ouro Rainha Africana fugiste com um Mouro, quase morro mofia Dizi que foi pras ilha virgen! Tereza, sublime criação da natureza Rainha, ô ki-lombu! Teresão simboliza o tesão Tereza de sandalha comendo o pão de Jesus O vinho Cristo junto com o tambor seduz A voz do pai! Num vai ficá buxuda, mofia! O que acontece cum mofia, mofia fala. Pai tem gosto com sum sê mofia Ao caí do dia a noite vem Aí mofia Pega Ijemije pra fazê foguera Pra mó di que mofia, recebê assé Comê Efó Se o sacrifício fô fazê ebó Pai faz, pra mofia ficá mió Mofia é real, milenar Atemporal Mano véio diz pro cê mofia Procria! Zinfim, mofia macumbô Mofia dançô Quadrilha, Samba da Roda com Kambinda Maracatucô com o rei tutu És tu vestida de nu Tereza, Rainha da beleza Amo Mofia! Mofia Presente da mãe Quando eu tinha oito anos eu gostava muito de fazer bolo de terra no quintal da minha casa. Eu brincava de ser escultora e fazia uns bolos bem redondos, de vários tamanhos e cheios de velas, daquelas velas bem fininhas que parecem palitos. Só que eu não acendia as velinhas porque o vento apagava o fogo e minha mãe vivia espiando lá da janela da cozinha. Minha mãe é muito legal, um dia eu perguntei se ela faria um bolo vermelho, vermelho da cor da terra do quintal pra gente comer. Ela disse que sim, quando chegou o comecinho da noite ela me chamou dizendo que tinha uma surpresa! Eba!!! Pensei que era o bolo vermelho. Não era. Ela tinha feito um bolo branco e sem recheio... Tinha só um morango em cima... E não era muito gostoso. Mas a surpresa era outra coisa! Minha mãe tinha trazido um presente! Era um embrulho bem grande e esquisito. Fui pro meu quartinho abrir o presente, acendi a luz, desembrulhei o pacote e o quarto ficou todo fascinante e brilhante: um caderno bem grosso recheado com folhas de papel de seda vermelhas! 15 Ir ver Ir ver o outro lado de si Cantar até o canto ser encanto Rolar escadas e ladeiras do próprio pranto Atravessar mundos, harmonizar sistemas A outra face dura tua também tua muda Pedir ajuda à ciência e ao santo Recuar, deixar vir as crias, ouvir espumas do mar Construir alicerce bem formado No poço profundo do mundo não cabe todo mundo E lá quem sabe não é um bom lugar Guerrear só quando. 16 Oxumarê movimentar Serpente quer se mudar Esticada no chão minha casa Leio orikis com demora O quarto limpei com água, sabão e fumaça Recolhi trecos, peças de vidro Pelo fresco da hora agradeço Oxalá Hoje não estou de passagem A luz se mostrou plenamente O altar requer presentes No início da lágrima sorrio Arco-íris pintando o infinito Ser mulher de cabeça menino. 17 Pão Hoje foi o dia do pão Foi o recheio de tudo que comi. Pão com queijo Pão com azeite Pão com sal e goiabada Pão com esperança e pão com ansiedade Por sorte São oito da noite, Tô agradecendo Por ter sido pão o recheio dos problemas do mundo. Hoje. Pão é tudo Em pleno XXI, desejo Agora, pão com paz. 23 antes do medo se aparecesse uma lesma tão grande quanto uma cobra e tão preta quanto a graúna e que ao invés de olhos de cobra tivesse olhos de gente e te olhasse bem sem nenhuma expressão, e fosse brilhante, macia e asquerosa e se arrastasse na sua direção e a gosma soltasse cheiros confusos e você não identificando e se perguntando e paralisado ali de olho no olho se arrepiasse e ao mesmo tempo se conformando e soubesse que querendo a opção é tua desde que você na hora dali inventasse uma outra imagem e junto disso ela vai chegando e ficando peluda? talvez nem mesmo pra um pesadelo isso você quisesse mas oh, que pena agora já está aí. 24 Carolina Maria de Jesus Comprei um sapato lindo número trinta e nove sendo que calço número quarenta e dois. Andei muito a pé, adoentei-me. Pra acalmar os pés e não repetir esse ato insano fiz uma salmoura de água quente e ensinei crianças e adolescentes que não se vende o próprio sonho. 25 Semba * canção Se o samba me aceitar, um semba eu vou cantar Em homenagem a Angola em verso de bem brincar Se o ritmo pegar eu danço, como água na corrente Se o samba me aceitar, os passos são pra frente Eu não vou me acabar, vou sim só renascer, sorrindo felizmente Como um gato vai miando vou cantando pra você e deságuo no oceano Como beijo de amor que nunca é dado por engano. Se o samba me aceitar, um semba eu vou cantar Em homenagem a Angola em verso de bem brincar 37 Aquilombados É dos olhos que sai o mar efervescente dos aquilombados É do mar que sai os olhos efervescentes dos aquilombados Nossas vozes, nossos tons são peles aparceiradas É necessário profundidade pra imantar da terra verdades Somos língua viva botando fogo no sereno Na feira, no ônibus, na roda tem Na fila, no trânsito, elevador também Com suavidade, com feminilidade, com tudo que houver necessidade Observo enquanto errando acerto Na São Paulo camaleão feminina, da norte mesmo ao sul extremo Salves! A quem deve ser saudado Minha terra tem fagulhas que me fazem enxergar que amor é inteligência É preciso exercitar. 39 Os sonhos do meu acordar, memórias do coração de terras batidas, alegria de nuvens olhadas com olhos infantes na leve respiração, lembrando como era o sol do desenho da minha infância, o cheiro do lápis de cor ou do giz de cera? Eu tinha tudo isso, canetinha, ou era um toco de carvão que eu pegava nos antigamente “queimar o lixo”... Talvez nem folhas de papel, só a parede do muro sendo meu quadro enquanto a mãe lavava roupa. O céu? Sim! Azul lindo azulado. E a noite preta, destelhada e estrelada. 47 Leite de coco, arruda, azeite de oliva, arroz de todos os tipos, caldos de feijões e lentilhas, farofas inesquecíveis, assados inigualáveis, até receitas de soja com soja, tapioca e cuzcuz, mexidinhos providenciais, bolinhos de roupa velha, aquela saudade tesada, água de coco, suco de carambola fresquinho, açaí, fruta-pão, vatapá, mandioca com açúcar, milhões de beijos espalhados pelo corpo inteiro, desejo imenso de realização total, toque de bate-folha, banho de ervas, de espuma, de rosas! Água, muita água. Café da manhã pra todo mundo, juntos se puderem. Preocupação sem dor, coçar-se ao sol, olhar pro passado e viver bem o presente, amar e comer o próximo, poesia da boa pra alimentar, fé na vida, aquele bolo de banana, aquele abraço que você vai dar ou ganhar e aquele beijo que nunca se repete. Vagens e viagens e vivência, a grande luz da negra infância, o território do respiro, a conta do tempo, o mugido da vaca, o rato que mora na sua casa e você nunca viu, as bênçãos e os imprevistos, a chuva repentina num dia ensolarissíssimo que você só saiu pra caminhar, as lágrimas de Dasdô, os gritos infantis e os berros dos bebês, o objetivo, a potencialidade, a dificuldade, a superação e a carne que é fraca? Firma o espírito! Pão quente de graça, manteiga em promoção e a camisinha que não apareceu na festa? Pu! Maçã, pêra banana, ameixa, suco de laranja e garapa em pleno meio dia… Pastéis assados de palmito, de berinjela, de espinafre, de tudo de bom que houver… nham! Risotos imemoriais, a prova, as provas, ui, ui, ui, um dia após o outro, alá o pessoal 56 da capoeira sempre delícia de tudo, todo ogan é zoiúdo e sonso. Salve! O trem das onze já passou, o dinheiro não dá pro pê-efe já a fome dura o mês inteiro. Tá chegando o dia ou alguém, esforço pra se livrar da doença, pra conseguir um trabalho, pra terminar aquele poema que veio no ar e quase partiu ao mar, dizer amor opa, aterrar é difícil mas não impossível. Tem sexta-feira que é o começo de tudo. Ah, do mel não podemos esquecer e também da farinha de mandioca nem da cachaça e da pimenta vermelha, comunicação viu? Olha, tenha consigo uma muda de roupa branca. Axé! 57 Faz muito tempo As mulheres As meninas As moças As mães e tias da periferia Querem homens profundamente Mais educados educadores Mais pensantes pensadores Mais elegantes não só reprodutores Mais generosos não geniosos Mais humanos cidadãos Porque a história tem seu ciclos sim E tudo se renova de olhos atentos E principalmente as avós Querem homens que enterrem seus mortos. 63 eugenia A boneca preta de Clarice não se podia tocar, era proibido com ela brincar porque parecia realmente com um bebê negro, de pele macia luzente e cabelo cheio de texturas. Eugenia fora um presente que a mãe de Clarice detestara. E ainda por puro deleite erudito batizara-a assim em letras minúsculas, sem acento, eugenia. 85 Corpa Negra Corpa Negra tivera a vida como presente Na labuta, suava de tanto nascer todo dia Chorou todas as lágrimas do mundo, cansara de rios de sangue Cantara de tanto sofrer várias línguas Multiplicara milhões de vezes os peixes e as bocas Assimilara ervas, árvores, credos, pedras e céus azuis Inspira sempre o ar renovando sapiência Horroriza-se ante a qualquer tipo de açoites que ainda são Parira amores e dores Mesmo que grandes e pequenas nações desumanizadas Demoradamente a cada demora três centenas de anos Morreria mais que mil vezes e ainda agora resistia Trocou aquilo por isso e quilombolizara até hoje Banhou-se por horas a fio, perdoou-se de ranços, renomeou-se Chegou aqui. 87 Maria Tereza, filha de Apparecida Moreira de Jesus e Manoel Adolfo de Jesus, brasileiros evangélicos que a fizeram estudar piano pra tocar na igreja. Reside na Vila Nova Cachoeirinha, zona norte paulistana, onde foi criada com muito amor. Nascida lá pelos inícios da década de 70, sempre gostou de ler e começou a interessar-se pelas artes. Seu primeiro trabalho foi uma leitura dramática de Mistérios Gozosos, de Oswald de Andrade, com Zé Celso. A partir daí, coçou-se muito, e fez oficinas, cursos de danças, de teatro, de dramaturgia, de roteiros, e também de palhaça. Já atuou com textos próprios e com várias gentes. Foi também vendedora, garçonete, recepcionista e até segurança! Agora já madurinha trabalha como arte educadora, se aprimorando pro sustento e pras descobertas junto, nas energias sinceras da criação. Nessa caminhada fez peça infantil, adulta e trabalha com performances poéticas corporais. Participa do Teatro Popular Solano Trindade e do grupo Literatura Percussiva, e ainda da Cia. Causos Negros. Musicou, cantou e encenou poemas de Solano Trindade, Stela do Patrocínio, Hilda Hilst, entre outros. Tem uma canção, Mar Interior, gravada por Celso Sim e por Rubi. Publicou Ruídos, em 2004, pela Editora ComArte.