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Cicero Galeno Lopes Literatura Brasileira Comentada 3 volumes Edição eletrônica: Marcelo Spalding Peres 2 Volume 1 Sumário Barroco-Maneirismo, Arcadismo, Romantismo INTRODUÇÃO / 4 LITERATURA: reflexões conceituais / 5 Capítulo 1 BARROCO-MANEIRISMO / 10 Bento Teixeira / 12 Prosopopeia (excertos) / 13 Gregório de Matos / 16 A cidade da Bahia / 16 À cidade da Bahia / 17 Sergipe d'el-rei / 17 Aos caramurus da Bahia / 17 A Maria dos Povos, sua futura esposa / 18 A Dona Ângela / 18 A Jesus Cristo Nosso Senhor / 19 Sobre uma estátua encontrada / 19 A um passarinho / 19 A vaidade / 20 À inconstância das cousas do mundo / 20 Capítulo 2 ARCADISMO / 23 Tomás Antônio Gonzaga / 24 Marília de Dirceu (liras 1 e 14 da 1a parte; liras 15 e 32 da 2a parte) / 25 Cartas chilenas (excerto da Carta 1a) / 33 Basílio da Gama / 34 O Uraguai (excertos) / 36 Capítulo 3 ROMANTISMO / 46 Gonçalves Dias / 48 3 Canção do exílio / 48 O canto do piaga / 51 Ainda uma vez – Adeus / 54 Joaquim Manuel de Macedo / 58 A moreninha (excerto) / 58 Caldre e Fião / 60 O corsário (excerto do sexto quadro) / 61 Álvares de Azevedo / 63 Se eu morresse amanhã / 63 Lembrança de morrer / 64 Casimiro de Abreu / 66 A valsa / 66 Minh’alma é triste / 70 Meus oito anos / 73 Fagundes Varela / 75 Cântico do Calvário / 75 Junqueira Freire / 81 Desejo (Hora do delírio) / 81 Rita Barém de Melo / 82 O soldado no Paraguai / 83 José de Alencar / 85 O guarani (cap. 4) / 85 Iracema (cap. 1 e 33) / 91 A pata da gazela (cap. 18) / 94 Alfredo de Taunay / 99 Inocência (excerto) / 99 Bernardo Guimarães / 103 O seminarista (excerto) / 104 Castro Alves / 108 Adormecida / 108 O navio negreiro (Tragédia no mar) / 110 Prometeu / 118 Mocidade e morte / 119 Manuel Antônio de Almeida / 121 Memórias de um sargento de milícias (cap. 2 e 48) / 122 Bibliografia crítico-teórica / 131 Córpus antológico / 132 4 Introdução Literatura brasileira comentada foi escrito originalmente como apostila, em atenção aos estudantes do curso de Letras, que sugeriram a transposição das aulas de Literatura Brasileira a texto escrito. Destina-se, portanto, ao estudo da Literatura Brasileira em nível superior. É compatível igualmente ao ensino médio. Pode ser tratado como obra de consulta e leitura também a outros interessados em nossa literatura-arte. A sequência histórica foi elaborada a partir de escolas literárias, período e estilos de época. Depois de introduções teórico-históricas, os autores são apresentados. Para cada autor foram selecionados um ou mais textos. Os textos selecionados mereceram comentários específicos e muitas vezes interrelacionados. A seleção dos textos procurou desenhar panorama representativo e caraterizador da sequência histórica da literatura-arte produzida no Brasil. Em razão do objetivo de aplicabilidade docente-discente, Literatura brasileira comentada é composto de três volumes. No v. 1, são estudados textos que se enquadram no Barroco-Maneirismo (1601-1768), no Arcadismo (17681836) e no Romantismo (1836-1881). No v. 2, aparecem textos que constituem o Realismo-Naturalismo-Parnasianismo (1881-1893), o Simbolismo (1893-1902) e o Pré-modernismo (1902-1922). No terceiro volume, os textos selecionados integram o Modernismo (1922-1945) e o Pós-Modernismo (1945/1950-). 5 Literatura: reflexões conceituais Estas reflexões têm o objetivo de tangenciar aspetos conceituais que envolvam a concepção de literatura. Em resumo, objetivam examinar em que consiste e para que serve a literatura, enquanto disciplina escolar. Em consequência, procuram auscultar os motivos que nos levam a estudá-la. O núcleo original da preocupação se localiza nas exposições, discussões, análises, crítica e teorização da literatura nas aulas de graduação e pós-graduação de Letras, pesquisa e discussões nos encontros docente-discentes e profissionais. Agora servem também de introdução aos estudos deste Literatura brasileira comentada. Pelo que se pode observar, pelo menos duas preocupações básicas costumam assaltar o estudioso iniciante, quando o assunto é Literatura. A primeira constitui a pergunta do ser da literatura: que vem a ser literatura. A segunda é a questão da finalidade: para que serve a literatura e ou por que estudá-la. Muitos rumos se abrem à tentativa teórica da explicitação da questão do ser da literatura, i. é, das concepções de literatura. A opção deste trabalho é pela forma como se pode ver coerentemente hoje a literatura, sem, contudo, descurar de sua existência e permanente presença histórica. Vale dizer: olhar para a literatura sincronicamente, mas sem lhe desconsiderar o desenvolvimento. É esse, portanto, nosso caminho inicial. A palavra literatura provém de littĕra (letra, em latim). Assim, a palavra literatura aponta ao texto escrito. Antes da escrita e mesmo paralelamente a ela, a expressão foi (e é, ainda nalguns casos) oral. Nesse caso, tem-se oralitura. Literatura pode ser concebida como reflexão sobre o mundo, segundo ensina Schüler (A poesia no Rio Grande do Sul, 1987). A literatura é forma de reflexão que tem caraterísticas particulares próprias, que precisam ser analisadas, à medida que as reflexões e justificativas vão sendo examinadas. As caraterísticas particulares próprias à literatura é que a distinguem das demais formas de expressão e de comunicação. Sobre elas, portanto, igualmente, deve recair a atenção dos que se dedicam a estudá-la. Para a construção do texto literário como para a leitura dele, a reflexão sobre o mundo, que a literatura propicia, dá-se a partir da observação do mundo. Essa observação caminha de aspetos simples do mundo aos mais complexos. A densidade do texto e a habilidade leitora são capazes de transitar da superfície à profundidade e a surpreendentes descobertas. São essas descobertas que fazem o primeiro fascínio do texto literário. Por meio delas, abre-se o mundo mais iluminado. A segunda marca fundamental é a forma, i. é, o discurso que o texto é capaz de tecer. O discurso literário se constrói a partir de sempre novas reelaborações sobre recortes das línguas, ou seja, as linguagens caraterísticas 6 das diversas culturas. Daí a dificuldade de se falar em criação, pelo menos em sentido absoluto. Uma evidência dessa limitação é a preexistência da língua e das linguagens possíveis, dentre as quais (e a partir delas) o discurso é elaborado. Outra é a primordialidade do mundo frente às línguas. O mundo, quer como universo concreto-sensorial, quer como universo imaginário legado e recebido, antecede os esforços da expressão e da comunicação. Esse mundo é, também ele, reconstituído pela percepção e pelas reflexões do autor e do leitor do texto, sobre ele e a partir dele. A literatura é uma forma de conhecimento do mundo que deve ser examinada principalmente a partir de caraterísticas particulares. Compõem essas caraterísticas, entre outras, a imaginação pessoal e o imaginário social. A imaginação funciona como órgão perscrutador. A imaginação se desenvolve no produtor do texto e no leitor. O texto irrompe do mundo sob a luz do discurso composto em cada texto, cuja leitura aguça a reflexão do leitor. O texto propõe imaginativamente as questões. O leitor, seletivamente, aceita, refuta, completa, registra e reelabora as propostas. De fato, reescreve texto. O texto se mantém como espécie de matriz reflexiva e artística, i. é, ilumina caminhos, que o leitor escolhe, segue ou não. O imaginário se constitui de toda a tradição cultural, que é constantemente refeita e reorganizada pela palavra, a partir da experiência e da cogitação. O mais importante de cada um de nós, além do corpo, que é central, é feito de imaginário. Há quem sacrifique o corpo em favor de valores culturais, ou seja, imaginários, não corpóreos. Os valores sagrados, p. ex., se radicam no imaginário. A alegoria e a simbologia impregnam os mitos, as histórias primordiais. Esses valores vão sendo internalizados e cultuados às vezes até com a dedicação devota e da entrega. Todas as culturas se identificam entre si no imaginário, mesmo quando haja deslocamentos e distanciamentos geográficos e até temporais. Entidades religiosas e vultos históricos, p. ex., são frequentemente modificados no estereótipo, nas caraterísticas intrínsecas e nos poderes, processo que tem sido nomeado sincretismo. É amostragem da força dos imaginários das diversas culturas. Esse fenômeno ocorre analogamente com as obras de arte, por conseguinte, com a literatura. O texto literário procede de observação do mundo concreto-sensorial. O texto desperta e reelabora sentidos para o mundo. O mundo, em última instância, é o referente principal do texto. Os sentidos do texto se definem e esclarecem no mundo. O procedimento dialético da leitura, entre texto e mundo, vai-se transformando em dialógico, i. é, na conversa em mesmo nível, entre leitor e texto. O mundo, representado também pelo leitor, passa a falar sobre o objeto do texto (ideário e estilo). De fato, em se tratando de arte, o objeto do texto é também o próprio texto, para além do ideário e da proposta ideológica. É como se entende a correlação entre texto e contexto que, como explica Jobim, no capítulo História da literatura (Palavras da crítica, 1992), interagem de tal forma, que “contexto se transforma em texto” e vice-versa. O mundo do produtor do 7 texto fala ao mundo do leitor. Ambas as leituras do mundo dialogam, centradas no objeto texto, na acima exposta dual constituição do texto literário. O resultado são novos sentidos e ou sentidos renovados, modificados, reelaborados, reatualizados constantemente. Vale dizer: são sentidos constantemente ressemantizados. Se fosse possível supor ausência de relações implícitas e explícitas com o mundo, o texto perderia as referências e se esvaziaria de sentido. Não teríamos, sob essa suposição, conexões de sentido entre texto e mundo. O texto perderia, nesse caso, o que chamamos de sentido. A fratura levaria à desconsideração de valor do texto, ou o leitor passa a considerar-se inferior ao texto, o que, em literatura, nunca deve acontecer. O texto literário é tecido pela palavra. A palavra é a matéria-prima do texto, seja ele escrito, seja ele oral. Como há várias concepções de texto, cabe esclarecer a concepção aqui considerada. Texto, como aqui está concebido, é a intermediação entre o observador (leitor, ouvinte) e o mundo. O mundo tecido de palavras do texto remete necessariamente ao mundo concreto-sensorial e sobre ele estabelece suas observações. Autor e leitor terão pontos de identificação, i. é, de comunicação, e pontos divergentes, i. é, de ressemantização e reelaboração do leitor. As palavras, ademais, dão sentido ao mundo e às coisas do mundo. Identificam, relacionam e organizam as coisas do mundo. As coisas do mundo adquirem relações compreensíveis quando são nomeadas. Novas relações adquirirão as coisas, sempre, ao serem renomeadas, se ressemantizadas. A nominação é a expressão da existência, na linguagem, e o é, pois, na forma de conhecimento humano. Todo conhecimento humano é, antes de ser assimilado, linguagem: no princípio era o verbo. As coisas preexistentes no mundo passam a relacionar-se entre si, com sentido, diante da nossa compreensão, a partir da nomeação. Donaldo Schüler (aulas de pósgraduação, UFRGS, 1991) se pergunta: “O que não foi dito existe?” O bloco textual é uma unidade bifronte. A bifrontalidade nem sempre é fácil de ser observada. As duas faces do bloco são o ideário e o estilo, como já foi comentado anteriormente. No ideário vai-se encontrar a ideologia predominante no texto. O ideário, portanto, tampouco aparece unificado. O ideário está espalhado em concepções postas em discussão, que podem ser, às vezes, núcleos temáticos. Do ideário (e das concepções) emergem ideias predominantemente defendidas ao longo do texto. Essas ideias, em conjunto, podem ser tomadas como a proposta ideológica textual. Para cada intenção, liminar ou subliminarmente posta, só há uma forma possível de dizê-la. Noutras palavras: o discurso se especifica de tal maneira, que se torna impossível alterálo, sob pena de modificar e deformar a proposta ideológica. Do mesmo modo, torna-se impossível tratar de determinada cultura usando a língua e linguagens de outra, porque a forma é, em arte, a própria mensagem, integra-a indelevelmente. Em arte, a forma é intrínseca à mensagem. Bem notória disso é a condição melódica na música: qualquer alteração do arranjo das notas provoca outra peça musical. É possível identificar a bifrontalidade do texto literário, mas 8 não é possível arbitrariamente separar as duas faces do bloco, porque deixaria de existir a condição literária (literaride) do texto. Neste ponto da discussão, emerge a velha questão da divisão forma-fundo. O texto literário constitui, enquanto literário, em razão do estilo em que está vazado, unidade expressivo-comunicativa necessária e total. Seus elementos constitutivos estruturais são como os dois lados da folha de papel. É impossível separá-los. Se mexermos no estilo, necessariamente alteraremos o ideário. Dessa maneira, ideário e estilo constituem a bifrontalidade do texto literário. Se, forçadamente, os separarmos, estaremos tomando atitude irreparável para a integralidade e para a compreensão do texto, que o descarateriza; de fato, o desfigura como texto literário. Em moldes míticos, isso pode ser concebido na alegoria no mito hindu do deus hermafrodita primitivo. Tem as duas potências: o princípio feminino e o princípio masculino. Inicialmente na forma primitiva de monobloco, ambas potências se mantinham. Foram, porém, as duas potências depois separadas. Eis que ficamos todos, para sempre, separados da outra parte (transformados em caras-metades). Esse rompimento provocou a permanente e perene tendência à situação anterior, i. é, à união permanente e perene entre as potências masculina e feminina. Trata-se, noutras palavras, da questão da completude, da plenitude. A questão da plenitude leva também à reflexão acerca da irredutibilidade do texto literário. O texto literário não pode ser reduzido. Se o for, seja em que dimensão for, deixa de ser o texto; passa a ser outro. Essa é a base temática de Jorge Luís Borges na reflexão a respeito da escritura literária, em Pierre Menar, autor do Quixote. O texto literário é também insuperável. Vale dizer: um texto novo não supera outro(s) anterior(es), porque a diferença e não a superação é apanágio da literatura e da vida. Podemos ler Homero, Camões, Machado de Assis, Lopes Neto, Donaldo Schüler, num mesmo tempo. Isso não implica conflito de superposição ou superação. A diferença é marca preponderante no mundo e nas artes. Estas reflexões vêm definindo a literatura como forma de arte. Arte é o quê? Imaginemos a circunstância de alguém que instrui uma criança a não fazer arte. A criança desobedece e faz arte. Arte, então, está marcada pela desobediência, pela diferença relativamente à ordem. Noutras palavras, como também pensa Schüler (aulas), a arte é subversiva, i. é, a literatura é subversiva. Subverter é verter de baixo, de dentro, fazer brotar do interior; revolver de baixo para cima; também significa modificar profundamente, transformar, desestabilizar, revolucionar. A literatura é, pois, também subversiva no sentido político, i. é, não se comporta de acordo com os estados políticos (sociais, culturais). O próprio fato de que há cânones literários e literatura de ótima qualidade fora deles estabelece com evidência a questão de que a palavra literária não é unificada nem quanto ao sentido nem quanto à forma. Por isso falamos em literatura 9 marginal, dissidente, fora-de-escola, emergente e outras formas de expressar as diferenças. Daí decorre a possibilidade de se falar em literatura brasileira, peruana, gaúcha, rio-platense etc. Outro ângulo sob o qual podemos olhar a questão é pelo conjunto da diversidade que comporta a história da literatura. O Maneirismo é um pouco diferente do Barroquismo. O Romantismo é um pouco diferente do Arcadismo e assim em diante. Há afastamentos e aproximações aos alinhamentos escolares. Alguma predominância estilístico-temática estabelece precariamente a classificação. Um texto predominantemente romântico será um texto enquadrado no Romantismo. Apesar disso, não significa que não possa ter marcas de outras concepções ideológico-estilísticas. Nada é puro nem perfeito nem completo. Daí podermos propor o critério da predominância na classificação dos textos. Esse critério carrega, já intrinsecamente também, a concepção de que o estilo é preponderante no texto literário, porque vários textos podem discutir mesmos temas, como o amor, a liberdade, p. ex. O que faz deles literatura é a força caraterizadora da forma da composição. A forma estilística é o que alguns denominam estética. Outras marcas definidoras do texto literário são a irrepetibilidade, a ilimitabilidade, a liberdade, a plurissignificação, a transgressão, a opacidade, a incompletude. A literatura pode ainda ser entendida (e explicada) como metáfora e como metonímia do mundo. O texto literário, pela liberdade de opção temática e de construção estilística, procura sempre novos caminhos, construídos pela reelaboração ideológico-estilística. A irrepetibilidade está também relacionada à condição inovadora, inventiva da arte. Ao texto literário não há limites de buscas, de experiências, de realizações, nem do ponto de vista temático nem do ponto de vista estilístico. O texto considerado literário está marcado pela plurissignificação e pela opacidade. Por isso se fala, em literatura (e nas artes em geral) em interpretação. Interpretar é pôr-se o observador (leitor) entre o texto e o mundo e fazer opções. A interpretação, no entanto, não vai tão longe, a ponto, p. ex., de desdizer, contradizer ou alterar profundamente o sentido do que está dito. O sentido transgressor de que o texto literário está impregnado constrói seu caráter renovador e subversivo, que também a peculiariza. Porto Alegre, outono de 2015. Prof Cicero G Lopes 10 Capítulo 1 Fonte da Missão jesuíta-guarani de São Miguel Arcanjo, no atual município de São Miguel das Missões, RS. BARROCO-MANEIRISMO (1601-1768) A tradição crítica da literatura brasileira definiu o Barroco-Maneirismo como a primeira manifestação literária escolar no Brasil. A composição nominal barroco-maneirismo aqui empregada quer dizer da simultaneidade do barroquismo e do maneirismo como procedimentos ideológico-estilísticos no período cronológico, em que esses estilos são considerados predominantes na produção poética brasileira. Considera-se aqui brasileira a produção conhecida e veiculada na Colônia, ainda que precariamente, como é possível entender, dadas as condições para isso nos séculos 17 e 18. Nem territorial, nem conceitual, nem socialmente a colônia lusitana pode ser imaginada como entendemos o país em que atualmente vivemos. O Barroquismo (substantivo originário da forma espanhola barrueco, com o sentido de trabalhos ornamentais feitos de barro) define-se, na literatura, como trabalho elaborativo textual esmerado. Contempla formas figuradas na significação, na sintaxe e no pensamento. Entre as figuras de sintaxe, a antítese e suas subclassificações se evidenciam com bastante frequência. Isso se deve, pelo menos em grande parte, aos conflitos existenciais da época. Começava-se a sair do domínio asfixiante do poder religioso decorrente dos teocentrismos sucessivos. Também era objetivo construir formas facilmente diferenciáveis relativamente ao que se denominavam textos do Classicismo, sisudos e geralmente conservadores de recursos artísticos imperativos, em vigor desde a Antiguidade. O Barroquismo se manteve vivo especialmente em virtude da ação intelectual do jesuitismo, como recurso contrarreformista. 11 O Maneirismo é substantivo derivado da forma italiana maniera, i. é, jeito, forma. O Maneirismo, portanto, como o Barroquismo, é estilo de grande trabalho formal, jeitoso. Por mais motivos que o Barroquismo, o Maneirismo precisava enlear a frase para dissipar prováveis motivos de perseguições por parte dos tribunais da Inquisição. Como o texto literário é forma de arte, o estilo é fundamental na identificação dele, no estudo e na classificação teórico-técnica sobre ele. A ideologia é a segunda face do texto artístico-literário. No caso do BarrocoManeirismo, as formas estilísticas básicas foram consideradas acima. A ideologia de suporte da escola foi o Humanismo. O ideário, como se vai poder constatar na leitura dos textos, é variado. Nem sempre é possível diferenciar com clareza marcas estilísticas do Maneirismo num texto, relativamente ao Barroquismo. Trata-se de estilos semelhantes. O Maneirismo, contudo, foi a forma diferencial, no período cronológico em questão, com que a Reforma protestante agiu ideologicamente frente à reação barroca, i. é, frente à atuação dos jesuítas, cuja ação tentava recuperar os prejuízos católicos infligidos pela atitude reformista de Lutero. O Maneirismo propiciou o aparecimento de obras capitais durante o período histórico do Renascimento europeu. Esse estilo possibilitou que autores misturassem formas clássicas decadentes (como figuras mitológicas e seus significados) a novas formas de origem cristã. Por isso é possível lerem-se poemas, p. ex., em que aparecem forças mitológicas e entidades religiosas em convivência. Como colônia, o Brasil foi caudatário dos procedimentos literários das metrópoles, em função dessa mesma condição colonial. Os dois autores cujos textos utilizamos nesta antologia têm relação tanto com a vida na colônia quanto com a da metrópole. Bento Teixeira, pelo que se pôde apurar, é nascido português. Gregório de Matos tem ascendência portuguesa e estudou e viveu boa parte da vida em Portugal. Apesar disso, os textos considerados barrocomaneiristas que vamos ler referem-se às pessoas, à terra e às coisas do Brasil. No caso de Gregório de Matos, há exercícios bem mais apurados de construção de formas próprias diferenciadas das praticadas em Portugal e na Espanha, onde o Barroquismo foi, por questões de origem e outros, muito forte. O Barroco-Maneirismo produziu, pelos autores aqui estudados, apenas versos. O elogio à coragem, à importância das navegações portuguesas e à propriedade da Nova Lusitânia para desenvolvê-las, além de reflexões sobre virtudes e defeitos humanos, são elementos ideológicos apensos ao Humanismo, fundamento ideológico da escola barroco-maneirista, presentes no poema narrativo Prosopopeia. Os poemas (na maioria sonetos) de Gregório de Matos desenvolvem várias linhas temático-estilísticas: o lirismo amoroso marcado pela sensualidade e pela efemeridade; a sátira social e individual ao poder, à hipocrisia, às arbitrariedades etc; o misticismo que vige entre a piedade 12 e a cobrança; a reflexão poético-filosófica que desenvolve questões como a efemeridade da vida e das coisas do mundo, preservação da natureza, valores humanos. Além de Bento Teixeira e Gregório de Matos têm merecido estudos, na escola barroco-maneirista brasileira, Ambrósio Fernandes Brandão (Diálogo das grandezas do Brasil), Antônio Vieira (sermões e cartas), Manuel Botelho de Oliveira (Música do Parnaso). BENTO TEIXEIRA Pinto Bento Teixeira nasceu no Porto em 1545 (?) e faleceu em Lisboa em 1601 (?). Emigrou com a família para a Bahia, em cujo seminário se matriculou. Tendo-se revelado israelita, o que consistia problema sério na perspetiva da Inquisição, moveu-se para Pernambuco. Novamente acusado pela Inquisição, compôs e dedicou ao governador de Pernambuco, Jorge de Albuquerque Coelho, o poema Prosopopeia, que apareceu em Lisboa em 1601. Viveu como professor de gramática, latim e aritmética. O poema Prosopopeia tem sido considerado pela crítica a primeira expressão da literatura brasileira. O excerto transcrito a seguir procura demonstrar formas estilísticas e ideário do poema e desse momento histórico-literário. Marca-se o poema pela caraterística fusão, que ocorreu na literatura do Brasil da época, entre barroquismo e maneirismo, como estilos. Gravura obtida da edição Melhoramentos-INL de 1977. 13 Prosopopeia I Cantem poetas o poder romano, Submetendo nações ao jugo duro; O mantuano pinte o rei troiano, Descendo à confusão do reino escuro; Que eu canto um Albuquerque soberano, Da fé, da cara pátria firme muro, Cujo valor e ser, que o céu lhe inspira, Pode estancar a lácia e grega lira. II As délficas irmãs chamar não quero, Que tal invocação é vão estudo; Aquele chamo só, de quem espero A vida que se espera em fim de tudo. Ele fará meu verso tão sincero, Quanto fora sem ele tosco e rudo, Que per rezão negar não deve o menos Quem deu o mais a míseros terrenos. XIX Em o meio desta obra alpestre e dura, Uma boca rompeu o mar inchado, Que, na língua dos bárbaros escura, Paranambuco de todos é chamado: De Paraná, que é mar; puca, rotura, Feita com fúria desse mar salgado, Que, sem no derivar cometer míngua, Cova do mar se chama em nossa língua. XLI Uma cousa me faz dificuldade E o espírito profético me cansa, A qual é ter no vulgo autoridade Só aquilo a que sua força alcança. Mas, se é um caso raro, ou novidade Das que, de tempo em tempo, o tempo lança, Tal crédito lhe dão, que me lastima Ver a verdade o pouco que se estima. LXIV De que servem proezas e façanhas, E tentar o rigor da sorte dura? 14 Que aproveita correr terras estranhas, Pois faz um torpe fim a fama escura? Que mais torpe que ver umas entranhas Humanas dar a humanos sepultura, Cousa que a natureza e lei impede, E escassamente às feras só concede. XCIV Aqui deu [fim] a tudo, e brevemente Entra no carro [de] cristal lustroso; Após dele a demais cerúlea gente Cortando a veia vai do reino aquoso. Eu, que a tal espetáculo presente Estive, quis em verso numeroso Escrevê-lo por ver que assim convinha Pera mais perfeição da musa minha. Comentários ao poema Prosopopeia Considerado pela crítica em geral iniciador da literatura brasileira, Prosopopeia aparece datado de 1601. Coloca-se o poema de Teixeira, portanto, como igualmente inaugurador do Barroco-Maneirismo. Entroncado a Os lusíadas de Camões, o poema se estampa em oitava rima. Para ele confluem todas as consequências desse fato. Além disso, trabalha compositivamente sobre concepções mais maneiristas que barrocas. Isso se verifica por exemplo no fato de a prosopopeia nele presente se referir à fala de Proteu, figura antiga míticodivina de origem grega. Proteu é deus grego do mar. As mitologias antigas se impõem no Maneirismo, ou, pelo menos, dividem o texto com entidades religiosas, que dominam os textos barrocos. O mar, portanto, fala a respeito da impossibilidade de travar o avanço lusitano. O que tem o poema de brasileiro, se isso for possível dizer, em virtude das condições da população leitora aqui presente (no Brasil de então) e em virtude do que o poema oferece, se verifica nas alusões, descrições e valorização do ambiente da Nova Lusitânia, que é como o poema se refere à terra de que Portugal recém se apossara. Ainda do ponto de vista ideológico, o poema está preso aos encômios que faz ao também português Jorge de Albuquerque Coelho e à condição da “língua dos bárbaros escura”. É escura, porque ininteligível aos falantes do idioma do poder, nessa situação, o português. Claro está que bárbaros são os ameríndios com quem conviviam os portugueses. Bárbaros são os estrangeiros, os que não dominam a língua da metrópole, a língua do poder. Focaliza a nova terra como fortuna lusitana, mas a vê como dádiva do “céu”. Estruturalmente, Prosopopeia se constitui das partes então indispensáveis à narrativa épica: proposição, invocação, oferecimento, narração e epílogo. O poema que cronologicamente o antecede no desenvolvimento da literatura brasileira, como um dos precursores dela, que focaliza menos o Brasil de então 15 (seja aceito dizer) é Dos feitos de Mem de Sá, de autoria de José de Anchieta. Esse poema manipula a língua mais tradicional do poder e então língua oficial da igreja católica, o latim. O centro temático, como o diz o título, são os “feitos” de Mem de Sá, no território que hoje conhecemos como Rio de Janeiro. A epopeia brasileira por excelência ainda esperaria por Basílio da Gama, na escola que sucedeu à barroco-maneirista. Cabe ressaltar as reflexões que faz o poema a respeito de alguns valores morais. Vale também por nos ajudar a compreender a situação da produção literária da época, subjugada ainda ao poder católico, representado pelos tribunais da Inquisição, que autorizou a edição do poema, em território português, sob os auspícios da coroa, que exclusivamente podia exercer esse direito. A primeira e a segunda estrofes representam, no excerto aqui utilizado, respetivamente a proposição e a invocação. De mistura com figuras da mitologia antiga, aparece a invocação a Deus, o primeiro recurso que talvez tenha colaborado na autorização dada ao poema para ser editado. A estrofe dezenove é descritiva e explica o nome paranambuco, o Pernambuco que conhecemos hoje. De fato, a descrição se refere ao “recife de paranambuco”. As estrofes quarenta e um e quarenta e quatro dão tom moralista e reflexivo ao poema, sobre o que já foi comentado acima. No epílogo, representado pela estrofe 94, narra a retirada das figuras celestes do mar. Aí se encerra o poema. Por todas essas razões é que parte da crítica nacional reluta em aceitar o poema como efetivamente iniciador da literatura brasileira. Como a literatura e a arte em geral se categorizam nas diferenciações, é possível aceitar o poema como literatura, especialmente se forem levadas em conta as caraterísticas de época, representadas pelos cânones da escola literária então vigente, presa aos ditames ideológico-estilísticos da metrópole, que não aceitaria outra coisa. A segunda questão é mais problemática: ser esse texto literatura brasileira, já que para isso deve o texto estabelecer-se como construção de um conjunto cultural de nação política e ou cultural. A questão se assenta noutra questão: havia efetivamente o Brasil na qualidade de nação política? A pluralidade cultural aqui existente, representada por grande e impreciso número de nações autótones, fica garantida ou, pelo menos, ressalvada no desenrolar do poema como narrativa, como forma estilística peculiar e como representação ideológica? Essa era a nação cultural brasileira; a parcela populacional branca, alfabetizada, europeia ou de origem europeia era representativa do que atualmente entendemos como o Brasil de então? 16 GREGÓRIO DE MATOS Guerra Gregório de Matos nasceu em Salvador (BA), em 1633. Frequentou o Colégio da Companhia de Jesus. Estudou em Coimbra. Aí se diplomou em Direito (1661) e ingressou na magistratura, carreira que interrompeu para voltar ao Brasil. Em 1680 retornou a Portugal. Aí se casou. Nessa altura de sua vida, já teria feito conhecer seu talento de repentista e zombeteiro. No ano seguinte, retornou à Bahia. Casou pela segunda vez. Passou a advogar e tomou hábitos (religiosos) menores. Levou vida boêmia e deu livre vazão a seu estilo satírico. Em razão disso, exilou-se em Angola. Regressou em 1695 para Recife. Aí faleceu um ano depois (1696). Exclusivamente poeta, Gregório de Matos apenas teria publicado em vida um que outro poema. Consta, no entanto, que era reconhecido publicamente, porque seus poemas eram veiculados e recitados, transmitidos de pessoa a pessoa. Por essas razões, a totalidade da obra dele se manteve inédita até a segunda década do século 20, quando Afrânio Peixoto a reuniu em seis volumes publicados no Rio de Janeiro pela Academia Brasileira de Letras, entre 1923 e 1933, sob o título de Obras. Do ponto de vista crítico, a obra de Gregório de Matos pode ser estudada, de acordo com suas conformações estilísticas, como poemas lírico-amorosos (de cunho geralmente sensual), poemas filosóficos, poemas satíricos, poemas místicos. Gregório de Matos é o autor barroco-maneirista brasileiro que tem obtido maior reconhecimento nacional, pelo menos a partir da segunda década do século 20, quando seus poemas ganharam edição formal. Como não se conhecem todos os títulos originais dos poemas de Gregório, nem sempre coincidem nas nominações. Às vezes, se usam os primeiros versos dos poemas, ou fragmentos deles, como títulos. A cidade da Bahia A cada canto um grande conselheiro Que nos quer governar cabana e vinha. Não sabem governar sua cozinha E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um frequente olheiro, Que a vida do vizinho e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha Para a levar à praça e ao terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, 17 Trazidos pelos pés aos homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados, Todos os que não furtam, muito pobres, Eis aqui a cidade da Bahia. À cidade da Bahia Triste Bahia! ó quão dessemelhante Estás e estou do nosso antigo estado, Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado, Rica te vi eu já, tu a mim abundante. A ti trocou-te a máquina mercante, Que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me trocando e tem trocado Tanto negócio e tanto negociante. Deste em dar tanto açúcar excelente Pelas drogas inúteis, que abelhuda Simples aceitas do sagaz brichote. Oh, se quisera Deus, que, de repente, Um dia amanheceras tão sisuda Que fora de algodão o teu capote! Sergipe d’el-rei Três dúzias de casebres remendados, Seis becos de mentastros entupidos, Quinze soldados rotos e despidos, Doze porcos na praça bem criados. Dois conventos, seis frades, três letrados, Um juiz com bigodes, sem ouvidos, Três presos de piolhos carcomidos, Por comer dois meirinhos esfaimados. Damas com sapatos de baeta, Palmilha de tamanco como frade, Saia de chita, cinta de raqueta. O feijão, que só faz ventosidade, Farinha de pipoca, pão que greta, De Sergipe d’el-rei esta é a cidade. Aos caramurus da Bahia Um calção de pindoba, a meia zorra, Camisa de urucu, mantéu de arara, 18 Em lugar de cotó, arco e taquara, Penacho de guarás em vez de gorra. Furado o beiço, sem temer que morra O pai, que lho envasou c’uma titara, Sendo a mãe a que a pedra lhe aplicara Por reprimir-lhe o sangue que não corra. Alarve sem razão, bruto sem fé, Sem mais leis que as do gosto, quando erra. De paiaiá tornou-se abaité. Não sei onde acabou ou em que guerra: Só sei que deste Adão de massapé Procedem os fidalgos desta terra. A Maria dos Povos, sua futura esposa Discreta e formosíssima Maria, Enquanto estamos vendo a qualquer hora, Em tuas faces a rosada Aurora, Em teus olhos, e boca, o sol e o dia: Enquanto, com gentil descortesia, O ar, que fresco Adônis te enamora, Te espalha a rica trança voadora Da madeixa que mais primor te envia: Goza, goza da flor da mocidade, Que o tempo troca e a toda ligeireza E imprime a cada flor uma pisada. Oh não aguardes que a madura idade Te converta essa flor, essa beleza, Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada. A dona Ângela Não vi em minha vida a formosura: Ouvia falar nela cada dia; E ouvida, me incitava e me movia A querer ver tão bela arquitetura. Ontem a vi, por minha desventura, Na cara, no bom ar, na galhardia De uma mulher, que em Anjo se mentia, De um Sol que se trajava em criatura. Me matem (disse então vendo abrasar-me) Se esta a causa não é, que encarecer-me 19 Sabia o mundo, e tanto exagerar-me! Olhos meus (disse mais por defender-me) Se a beleza hei de ver para matar-me, Antes, olhos, cegueis, do que eu perder-me. A Jesus Cristo Nosso Senhor Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado, Da vossa Alta Piedade me despido: Antes, quanto mais tenho delinquido, Vos tenho a perdoar mais empenhado. Se basta a vos irar tanto pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido: Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Vos tem para o perdão lisonjeado. Se uma ovelha perdida e já cobrada Glória tal e prazer tão repentino Vos deu, como afirmais na Sacra História: Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada; Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória. Sobre uma estátua encontrada O todo sem a parte não é todo; A parte com o todo não é parte; Mas se a parte o faz todo sem a parte, Não se diga que é parte sendo o todo. Em todo o Sacramento está Deus todo, E todo assiste inteiro em qualquer parte, E feito em partes todo, cada parte Em qualquer parte sempre fica todo. O braço de Jesus não seja parte, Pois que feito Jesus em partes todo, O todo fica estando em sua parte. Não se sabendo parte deste todo, Um braço que lhe acharam, sendo parte, Nos disse as partes todas desse todo. A um passarinho Contente, alegre, ufano passarinho Que enche o bosque todo de harmonia, Me está dizendo a tua melodia, 20 Que é maior tua voz que o teu corpinho. Como da pequenez desse biquinho Sai tamanho tropel de vozeria? Como cantas, se és flor de Alexandria? Como cheiras, se és pássaro de arminho? Simples cantas e incauto garganteias, Sem ver que estás chamando o homicida, Que te segue por passos de garganta! Não cantes mais, que a morte lisonjeias; Esconde a voz e esconderás a vida, Que em ti não se vê mais que a voz que canta. A vaidade É a vaidade, Fábio, nesta vida, Rosa, que da manhã lisonjeada, Púrpuras mil, com ambição dourada, Airosa rompe, arrasta presumida. É planta que, de abril favorecida, Por mares de soberba desatada, Florida galeota empavesada, Sulca ufana, navega destemida. É nau enfim que, em breve ligeireza, Com presunção de Fênix generosa Galhardias aposta com presteza. Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa, De que importa, se aguarda sem defesa Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa? À inconstância das cousas do mundo Nasce o Sol; e não dura mais que um dia: Depois da luz, se segue a noite escura: Em tristes sombras morre a formosura; Em contínuas tristezas, a alegria. Porém, se acaba o Sol, por que nascia? Se tão formosa a luz é, por que não dura? Como a beleza assim se transfigura? Como o gosto da pena assim se fia? Mas no Sol, e na Luz, falta a firmeza; Na formosura, não se dê constância: E na alegria, sinta-se tristeza. 21 Começa o mundo, enfim, pela ignorância; Pois tem qualquer dos bens, por natureza, A firmeza somente na inconstância. Comentários aos poemas de Gregório de Matos No primeiro soneto, A cidade da Bahia, apresentam-se algumas marcas muito conhecidas do estilo gregoriano. Fundamenta-se na ironia, forma subversiva de trabalhar semanticamente o poema: o contexto do poema permite que se leiam significados inversos aos que estão grafados. Assim, p. ex., “grande conselheiro” quer dizer o contrário; o procedimento é análogo, ainda, em “e podem governar o mundo inteiro!”. A metonímia é a segunda marca presente destacável. Ela possibilita ao leitor, p. ex., ler em “cabana e vinha” concepções semânticas de casa e trabalho. A sátira aparece com evidência no penúltimo verso, em que, embora a forma são (do verbo ser) esteja elíptica, é patente a sentença subentendida – os ricos furtam. Quanto aos aspetos formais, é um soneto tradicional de versos decassílabos com dois apoios rítmicos centrais e cesura após a sexta sílaba poética. O esquema rímico é abba nos quartetos e cde nos tercetos. O segundo soneto, nominado À cidade da Bahia, em virtude da ausência de títulos originais nos poemas, em geral, do autor. Nesse poema, Gregório reflete sobre a condição da exploração colonial dos portugueses sobre o Brasil de então. Hoje não nos parece muito distante essa posição reflexiva, com a diferença de que hoje são outros os exploradores. A sátira é mordente no terceiro soneto, denominado Sergipe d’el rei. Não só o ataque é frontal, como é desmoralizante e parcialmente hilariante. Aos caramurus da Bahia é um dos mais destacados poemas satíricos gregorianos, especialmente em virtude do vocabulário empregado, o que faz realçar as cores da diferença discursivo-literária em relação ao que se praticava em Portugal e na Espanha, literaturas às quais nosso Barroco-Maneirismo esteve ligado. As imagens da presença física, do vestuário, do botoque, da estrutura íntima não perfilam com beleza os remanescentes índios, como eram por alguns vistos, na época. A Maria dos Povos estabelece, sob o ponto de vista ideológico, excelente amostragem da concepção de amor vigente no pensamento barroco-maneirista. Neste caso, trata-se de forma mais maneirista que barroca, em virtude da consagração da efemeridade da vida sem outra esperança. Valores transcendentes desaparecem sob a observação da carnalidade atraente, marcada pela efemeridade: “[...] o tempo troca e a toda ligeireza / E imprime a cada flor uma pisada”. A beleza (“flor”) será transformada (trocada), sem salvação, em terra, cinza, pó, sombra, nada. Mostra-se angustiante a gradação concebida no último verso do poema. 22 A construção antitética – As sombras e a formosura – parece definir-se como expressão nítida do Maneirismo, tratado poeticamente no Brasil. A visão do mundo está entre a dificuldade e a facilidade do prazer carnal. O poema deixa-se também marcar pela aparente hilaridade, que de fato se revela chocante e triste. A Dona Ângela é soneto barroco. Fixa-se na ideia teocêntrica ainda remanescente do período ideológico anterior, mas ainda por vezes observável. Entre o prazer carnal e a defesa contra o mal do pecado, encarnado nas mulheres, o poema, considerado ideologicamente, opta pelo sacrifício físico (“olhos, cegueis”) e a preservação da proximidade com as esperanças de transcendência (“do que eu perder-me”). Poema carateristicamente barroco, A Jesus Cristo Nosso Senhor configura visão de época dominante. Jesus Cristo é Deus, sem qualquer discussão, e cada um deve zelar por si próprio pela redenção depois da morte. É a época marcada pelo tempo em flecha: tudo tem início e fim, menos a eternidade que cada um deve assegurar com Ele, pela redenção. Jesus Cristo-Homem prometeu isso. O poema parte disso e condena-o a garantir sua palavra de salvação, ou descumprirá a palavra empenhada junto à humanidade: “não queirais, Pastor Divino, / Perder na vossa ovelha a vossa glória”. “Eu sou [...] a ovelha desgarrada”: vale dizer: tenho prioridade entre outros que estão ou se julgam salvos. Ou, ainda, toda ovelha desgarrada precisa de especial proteção do pastor. Esse é, enfim, um poema paradigmaticamente místico, na obra de Gregório de Matos. Sobre uma estátua encontrada ou O todo sem a parte não é todo, como também é conhecido esse soneto, marca-se pelo exercício do barroquismo cultista, em que o virtuosismo de linguagem aparece como prioritário, absorvente, definindo o poema como todo. É interessante também observar que o poema defende a ideia, vigente igualmente na Pós-modernidade, de que a simples soma das partes não constitui o todo. O todo ultrapassa a soma das partes. Vale dizer: é necessário ter o todo, para a compreensão das partes e vice-versa e que nada pode ser entendido na superfície. 23 Capítulo 2 Pastoral de outono, de François Boucher (1703-1770). ARCADISMO (1768-1836) Denomina-se Arcádia uma região da Grécia, de vida simples, de pastores e agricultores. Com tais caraterísticas, o império romano não se interessou pela região, da qual não seria possível obter o que os impérios desejam: mais riquezas e mais poder. Desse modo, a Arcádia pôde manter seus costumes e valores tradicionalmente simples. Desde a Antiguidade, o nome e o símbolo foram usados como utopia de vida idílica, marcada pela simplicidade, ambiente feliz, de consagração do amor. Foi a partir disso que jovens da segunda metade do século 18 e da primeira do 19 entenderam que Arcádia seria interessante nome para usar em suas associações que reuniam escritores, cientistas, pensadores. No Brasil, chamaram-se elas, p. ex., Arcádia Ultramarina e Arcádia dos Esquecidos. Em consequência disso, a escola literária que se seguiu ao Barroco-Maneirismo foi chamada de Arcadismo. O Arcadismo constitui a segunda escola literária brasileira, conforme a tradição crítica do país. A ideologia que sustenta essa escola é o Iluminismo. O Iluminismo pode ser entendido como detalhamento do Humanismo, que sustentou o Barroco-Maneirismo. O Iluminismo valoriza especialmente a (luz da) razão e o conhecimento. Haja vista a célebre frase do francês Descartes (“penso, 24 logo existo”), que foi ideologicamente central nalguns momentos históricoideológicos. Na literatura arcádica brasileira, contudo, nem sempre essa proposta ideológica escolar é evidente. Às vezes, nem existe. Parte da produção literária do Arcadismo brasileiro tem sido denominada pré-romântica. O conjunto de textos arcádicos que tem sido classificado assim tende ao sentimentalismo, i. é, por vezes contempla o sentimento como valor central. Por essa razão não parece discrepante pensar que o Humanismo tem fases. Desse modo, pode-se entender o Humanismo, o Iluminismo e o Liberalismo (do Romantismo) como formas de expressão humanista, em sentido geral. Como a literatura é arte, e arte é forma, acima dos posicionamentos ideológicos caraterizadores das escolas está a forma, o estilo. O Arcadismo se marca no Brasil pela construção de poemas líricos e épicos. Em geral são versos que se notabilizam pela simplificação de recursos estilísticos, relativamente ao Barroco-Maneirismo. Tendem a valorizar relacionamentos amorosos e questões políticas centrais aos interesses brasileiros, como a independência do Brasil com relação a Portugal e a integralização do território então considerado como brasileiro. Os autores cujas contribuições aparecem nesta antologia são Tomás Antônio Gonzaga e Basílio da Gama. Além deles, outros são igualmente considerados hábeis artistas da palavra arcádica. Tradicionalmente são citados como árcades líricos Cláudio Manuel da Costa (com obra reunida em Obras poéticas), considerado o iniciador do estilo arcádico nacional e por isso se mostra ainda barroco no início; Manuel Inácio da Silva Alvarenga (Glaura); Inácio José de Alvarenga Peixoto (obra postumamente reunida); Domingos Caldas Barbosa (Viola de Lereno). A produção épica, além da de Basílio da Gama (O Uraguai), foi composta por Cláudio Manuel da Costa (Vila Rica) e José de Santa Rita Durão (Caramuru). Tomás Antônio GONZAGA Gonzaga nasceu na cidade do Porto, Portugal, em 1744, filho de mãe portuguesa e pai brasileiro. Após ter passado parte da infância no Brasil, retornou a Portugal (Coimbra), onde se graduou em Direito. Envolveu-se com a Revolução de Minas, conhecida nacionalmente como Inconfidência Mineira. Em virtude disso, foi preso e levado ao Rio de Janeiro. Aí permaneceu até 1792, quando teve a pena comutada em degredo. Seguiu degredado para Moçambique, onde se casou. Morreu em Moçambique em 1810. Notabilizou-se o relacionamento amoroso que manteve, em Ouro Preto, com Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão. Consta que a figura de Maria 25 Doroteia definiu os contornos de sua obra mais conhecida: Marília de Dirceu. Embora não se trate de poemas confessionais, Marília e Dirceu são nomes árcades da amada e do poeta, como era costume na literatura da época. A obra abarca amplo painel desse relacionamento: esperanças, sofrimentos, frustrações. Marília de Dirceu está dividida em três partes: na primeira, leem-se a esperança e o encanto da promissora vida de amor; na segunda, sobressai a dúvida de chegar a realizá-la; na terceira, aparecem poemas variados que não têm relação (pelo menos direta) com o episódio existencial citado. Cartas chilenas é a obra de Gonzaga menos estudada, mas nem por isso deixa de ser representativa. Cartas chilenas são poemas políticos, em que é criticada a administração lusitana em Minas Gerais. Esses poemas parecem caraterizar a forma de publicidade que os jovens utilizaram na época para conscientização pública em favor da independência nacional, frustrada pela traição do coronel Silvério dos Reis. Marília de Dirceu Lira I (da primeira parte) Eu, Marília, não sou algum vaqueiro, Que viva de guardar alheio gado; De tosco trato, de expressões grosseiro, Dos frios gelos e dos sóis queimado. Tenho próprio casal e nele assisto; Dá-me vinho, legume, fruta, azeite; Das brancas ovelhinhas tiro o leite, E mais as finas lãs, de que me visto. Graças, Marília bela, Graças à minha Estrela! Eu vi o meu semblante numa fonte: Dos anos inda não está cortado; Os pastores que habitam este monte Respeitam o poder do meu cajado. Com tal destreza toco a sanfoninha, Que inveja até me tem o próprio Alceste: Ao som dela concerto a voz celeste Nem canto letra, que não seja minha. Graças, Marília bela, Graças à minha Estrela! Mas tendo tantos dotes de ventura, Só apreço lhes dou, gentil Pastora, Depois que o teu afeto me segura 26 Que queres do que tenho ser Senhora. É bom, minha Marília, é bom ser dono De um rebanho, que cubra monte e prado; Porém, gentil pastora, o teu agrado Vale mais que um rebanho e mais que um trono. Graças, Marília bela, Graças à minha Estrela! Os teus olhos espalham luz divina, A quem a luz do sol em vão se atreve; Papoila ou rosa delicada e fina Te cobre as faces, que são da cor da neve. Os teus cabelos são uns fios d’ouro; Teu lindo corpo bálsamos vapora. Ah! não, não fez o céu, gentil pastora, Para glória de Amor igual tesouro! Graças, Marília bela, Graças à minha Estrela! Leve-me a sementeira muito embora O rio, sobre os campos levantado; Acabe, acabe a peste matadora, Sem deixar uma rês, o nédio gado. Já destes bens, Marília, não preciso Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta: Para viver feliz, Marília, basta Que os olhos movas e me dês um riso. Graças, Marília bela, Graças à minha Estrela! Irás a divertir-te na floresta Sustentada, Marília, no meu braço; Aqui descansarei a quente sesta, Dormindo um leve sono em teu regaço; Enquanto a luta jogam os pastores, E emparelhados correm nas campinas, Toucarei teus cabelos de boninas, Nos troncos gravarei os teus louvores. Graças, Marília bela, Graças à minha Estrela! Depois que nos ferir a mão da Morte, Ou seja neste monte, ou noutra serra, Nossos corpos terão, terão a sorte De consumir os dous a mesma terra. Na campa, rodeada de ciprestes, 27 Lerão estas palavras os pastores: “Quem quiser ser feliz nos seus amores Siga os exemplos, que nos deram estes”. Graças, Marília bela, Graças à minha Estrela! Comentários à Lira I A palavra lira utilizada para intitular os poemas carrega o sentido primário, i. é, do instrumento musical ao som do qual se cantavam poemas (líricos). Daí a razão de os poemas serem denominados liras. Na primeira estrofe da Lira I da primeira parte de Marília de Dirceu já se tem a estrutura técnica do poema: são estrofes de oito versos decassílabos, com rimas finais cruzadas e uma paralela (sexto e sétimo versos). Cada estrofe tem anexo um estribilho composto de dois versos hexassílabos. A primeira palavra (eu) da primeira e da segunda estrofes indica outra tendência desse e de outros poemas do livro: índice de subjetivismo (que viria a ser especialmente marcante no Romantismo). A terceira e a quinta estrofes estabelecem a questão básica do poema: o ter e o ser só terão sentido se a amada estiver junto. Na quarta e na sexta estrofes os verbos e os pronomes se relacionam quase todos ao tu da amada. Em consequência, a última estrofe fala de nós. Do ponto de vista ideológico, o amor é o valor central do poema, a ponto de o casal (nós) passar a ser exemplo de como os casais devem ser para serem felizes. Cabe lembrar que o Arcadismo valorizou o bucolismo, em geral idealizado. Essa proposta ideológica justifica a situação pastoril do lirismo que contextualiza os poemas. São exemplos disso, nesta antologia, as liras I e XV de Marília de Dirceu. A Lira XIV exemplifica parcialmente também essa tendência. A conjunção das escolhas estilísticas com as propostas ideológicas redundou na simplicidade dos textos, que, também nesse aspeto, faz divergir a construção textual dos árcades relativamente aos barroco-maneiristas. Lira XIV (da primeira parte) Minha bela Marília, tudo passa; A sorte deste mundo é mal segura; Se vem depois dos males a ventura, Vem depois dos prazeres a desgraça. Estão os mesmos Deuses Sujeitos ao poder do ímpio Fado: Apolo já fugiu do céu brilhante, Já foi pastor de gado. A devorante mão da negra Morte Acaba de roubar o bem, que temos; 28 Até na triste campa não podemos Zombar do braço da inconstante sorte: Qual fica no sepulcro, Que seus avós ergueram, descansado; Qual no campo e lhe arranca os frios ossos Ferro do torto arado. Ah! enquanto os Destinos impiedosos Não voltam contra nós a face irada, Façamos, sim, façamos, doce amada, Os nossos breves dias mais ditosos. Um coração, que, frouxo, A grata posse de seu bem difere, A si, Marília, a si próprio rouba, A si próprio fere. Ornemos nossas testas com as flores E façamos de feno um brando leito, Prendamo-nos, Marília, em laço estreito, Gozemos do prazer de sãos Amores. Sobre as nossas cabeças, Sem que o possam deter, o tempo corre; E para nós o tempo, que passa, Também, Marília, morre. Com os anos, Marília, o gosto falta, E se entorpece o corpo já cansado; Triste, o velho cordeiro está deitado, E o leve filho sempre alegre salta. A mesma formosura É dote, que só goza a mocidade: Rugam-se as faces, o cabelo alveja, Mal chega a longa idade. Que havemos d’esperar, Marília bela? Que vão passando os florescentes dias? As glórias, que vêm tarde, já vêm frias; E pode enfim mudar-se a nossa estrela. Ah! não, minha Marília, Aproveite-se o tempo, antes que faça O estrago de roubar ao corpo as forças, E ao semblante a graça. 29 Comentários à Lira XIV Nessa lira, a estrutura rímica externa é diferente da anterior. Os dois versos hexassílabos não aparecem em forma de estribilho; estão integrados às estrofes. A proposta ideológica se altera substancialmente entre a Lira XIV e a Lira I. Não mais se fala do amor e da felicidade que viriam, mas de que “a sorte deste mundo é mal segura”, i. é, as coisas mudam. O que mais preocupa é o tempo, que velozmente transforma e extingue. Nada é seguro. Se o amor não se fizer agora, quando se fará? Lira XXXII (da segunda parte) Se o vasto mar se encapela E na rocha em flor rebenta, Grossa nau, que não tem leme, Em vão sustentar-se intenta; Até que naufraga e corre À discrição da tormenta. Quem não tem uma Beleza, Em que ponha o seu cuidado, Se o céu se cobre de nuvens E se assopra o vento irado, Não tem forças que resistam Ao impulso do seu fado. Nesta sombria masmorra, Onde, Marília, vivo, Encosto na mão o rosto, Fico às vezes pensativo. Ah! que imagens tão funestas Me finge o pesar ativo! Parece que vejo a honra, Marília, toda enlutada; A face de um pai, rugosa, Num mar de prantos banhada; Os amigos macilentos, E a família consternada. Quero voltar os meus olhos Para outro diverso lado; Vejo numa grande praça Um teatro levantado; Vejo as cruzes, vejo os potros, Vejo o alfanje afiado. Um frio suor me cobre, Lassam-se os membros, suspiro; Busco alívio às minhas ânsias, Não o descubro, deliro. Já, meu Bem, já me parece 30 Que nas mãos da morte expiro. Vem-me então ao pensamento A tua testa nevada, Os teus meigos, vivos olhos, A tua face rosada, Os teus dentes cristalinos, A tua boca engraçada. Qual, Marília, a estrela d’alva, Que a negra noite afugenta; Qual o sol, que a névoa espalha, Apenas a terra aquenta; Ou qual Íris, que o céu limpa, Quando se vê na tormenta: Assim, Marília, desterro Triste ilusão e demência; Faz de novo o seu ofício A razão e a prudência; E firmo esperanças doces, S’abre a cândida inocência. Restauro as forças perdidas, Sobe a viva cor ao rosto, Gira o sangue pela veia E bate o pulso composto. Vê, Marília, o quanto pode Contra os males teu rosto! Comentários à Lira XXXII É interessante observar que a primeira estrofe dessa lira começa por conjunção condicional. Fala de nau sem leme, que por isso naufraga. Falta-lhe um porto seguro. Na “tormenta” da vida, na situação em que o poeta se encontra no momento, a condição lírica ainda vê a mulher amada como a salvação. A “masmorra” e o que espera o condenado (o próprio, cuja voz lírica se ouve) o afligem. A única maneira de manter esperança é pensar na mulher amada. Por esses motivos sobrevêm as dúvidas a respeito da realização do amor. As dificuldades existenciais sobressaem e dificultam a realização das esperanças. Lira XV (da segunda parte) Eu, Marília, não fui nenhum vaqueiro, Fui honrado pastor da tua aldeia: Vestia finas lãs e tinha sempre A minha choça do preciso cheia. Tiraram-se o casal e o manso gado, Nem tenho, a que me encoste, um só cajado. 31 Para ter que te dar é que eu queria De mor rebanho ainda ser o dono; Prezava o teu semblante, os teus cabelos Ainda muito mais que um grande trono. Agora que te oferte já não vejo Além de um puro amor, de um são desejo. Se o rio levantado me causava, Levando a sementeira, prejuízo, Eu alegre ficava, apenas via Na tua breve boca um ar de riso. Tudo agora perdi; nem tenho o gosto De ver-te ao menos compassivo o rosto. Propunha-me dormir no teu regaço As quentes horas da comprida sesta, Escrever teus louvores nos olmeiros, Toucar-te de papoilas na floresta. Julgou o justo Céu que não convinha Que a tanto grau subisse a glória minha. Ah! minha bela, se a Fortuna volta, Se o bem, que já perdi, alcanço e provo, Por essas brancas mãos, por essas faces, Te juro renascer um homem novo, Romper a nuvem, que os meus olhos cerra, Amar no céu a Jove e a ti na terra! Fiadas comprarei as ovelhinhas, Que pagarei dos poucos do meu ganho, E dentro em pouco tempo nos veremos Senhores outra vez de um bom rebanho. Para o contágio lhe não dar, sobeja Que as afague, Marília, ou só que as veja. Se não tivermos lãs e peles finas, Podem mui bem cobrir as carnes nossas As peles dos cordeiros mal curtidas, E os panos feitos com as lãs mais grossas, Mas ao menos será o teu vestido Por mãos de amor, por minhas mãos cosido. Nós iremos pescar na quente sesta Com canas e com cestos os peixinhos; Nós iremos caçar nas manhãs frias Com a vara envisgada os passarinhos. Para nos divertir faremos quanto 32 Reputa o varão sábio, honesto e santo. Nas noites de serão nos sentaremos C’os filhos, se os tivermos, à fogueira: Entre as falsas histórias, que contares, Lhes contarás a minha, verdadeira: Pasmados te ouvirão; eu, entretanto, Ainda o rosto banharei de pranto. Quando passarmos juntos pela rua, Nos mostrarão c’o dedo os mais pastores, Dizendo uns para os outros: Olha os nossos Exemplos da desgraça e sãos amores. Contentes viveremos dessa sorte, Até que chegue a um dos dois a morte. Comentários à Lira XV (da segunda parte) Bastaria comparar o primeiro verso da Lira XV da segunda parte de Marília de Dirceu com o primeiro verso da Lira I da primeira parte: “Eu, Marília, não sou algum vaqueiro” e “Eu, Marília, não fui nenhum vaqueiro” para penetrar na condição do poema. A forma verbal “sou” se transformou em “fui”, i. é, o olhar lírico passou do presente ao passado. A situação se repete nas três estrofes subsequentes. Para conferir isso, seria suficiente retirar uma forma verbal do primeiro verso de cada uma dessas estrofes: “queria”, “causava”, "propunha”. A partir da quinta estrofe a situação muda, porque a perspetiva é, então, a possibilidade de a felicidade voltar – “se a Fortuna volta”. Assim, sempre relacionada ao primeiro poema do livro, a Lira XV se conclui deixando os amantes que constituem o casal como “exemplos de desgraça e sãos amores”. Os dois últimos versos da última estrofe da Lira I preveem: “Quem quiser ser feliz nos seus amores / Siga os exemplos que nos deram esses”. Seja ainda permitido examinarem-se aspetos técnicos facilmente detetáveis distintivos entre a Lira I da primeira parte de Marília de Dirceu e a Lira XV da segunda parte. As estrofes da Lira XV são sextilhas; não oitavas, como as da Lira I. Na Lira XV, não há estribilho. O esquema rímico do último poema analisado é assimétrico: as rimas finais às vezes são continuadas, às vezes paralelas, às vezes cruzadas, e há versos brancos. Desse modo, talvez tenha sido possível demonstrar as diferenças técnicas e ideológicas mais evidentes entre poemas da primeira e da segunda partes da mais lida das obras de Gonzaga. 33 Cartas chilenas Carta 1a Também, prezado Amigo, também gosto De estar amadornado, mal ouvindo Das águas despenhadas brando estrondo; E vendo ao mesmo tempo as vãs quimeras, Que então me pintam os ligeiros sonhos. Mas, Doroteu, não sintas, que te acorde; Não falta tempo, em que do sono gozes; Então verás Leões com pés de pato; Verás voarem Tigres e Camelos, Verás parirem homens, e nadarem Os roliços penedos sobre as ondas. Porém, que têm que ver esses delírios C'os sucessos reais, que vou contar-te? Acorda, Doroteu, acorda, acorda; Critilo, o teu Critilo é quem te chama: Levanta o corpo das macias penas; Ouvirás, Doroteu, sucessos novos, Estranhos casos, que jamais pintaram Na ideia do doente, ou de quem dorme Agudas febres, desvairados sonhos. Não és tu, Doroteu, aquele mesmo, Que pedes que te diga se é verdade O que se conta dos barbados monos, Que à mesa trazem os fumantes pratos? Não desejas saber se há grandes peixes Que, abraçando os navios com as longas Robustas barbatanas, os suspendem, Inda que o vento, que d'alheta sopra, Lhes inche os soltos, desrizados panos? Não queres que te informe dos costumes Dos incultos gentios? Não perguntas Se entre eles há nações, que os beiços furam? E outras, que matam com piedade falsa Os pais, que afrouxam ao poder dos anos? Pois se queres ouvir notícias velhas, Dispersas por imensos alfarrábios, Escuta a história de um moderno Chefe, Que acaba de reger a nossa Chile, Ilustre imitador a Sancho Pança. E quem dissera, Amigo, que podia Gerar segundo Sancho a nossa Espanha! 34 Comentários às Cartas chilenas A obra é constituída de poemas (cartas) ideologicamente vinculados à publicidade de ideias iluministas de intuitos libertários, já, portanto, respingadas de ideias liberalistas, cujo predomínio se estruturará com o Romantismo, que então se aproximava. As cartas fazem parte da preparação da Revolução de Minas, conhecida na nossa história como Inconfidência Mineira. Embora originalmente anônimas, têm sido atribuídas a Gonzaga. As cartas são chamadas chilenas, porque (elas mesmas) dizem terem sido compostas no Chile (por Critilo) e enviadas à Espanha (a Doroteu). O que propugnam, de fato, é o ataque às vezes frontal (o que os torna satíricos), às vezes subliminar (o que os torna irônicos) ao poder mantido por Portugal em Minas Gerais, o que equivale a dizer, por extensão, no Brasil. O excerto transcrito chama o companheiro, i. é, quem possa ser acordado do sono perigoso da inconsciência, para a necessidade de combater “um moderno Chefe [...] / Ilustre imitador a Sancho Pança”. José BASÍLIO DA GAMA Basílio da Gama nasceu em São José do Rio das Mortes, atual Tiradentes (MG), em 1741. Em 1769 concluiu e publicou em Lisboa O Uraguai, seu poema mais importante. Faleceu em Lisboa em 1795. O poema O Uraguai representa grande avanço técnico para a literatura brasileira da época. Na obra, podem-se ler as ansiedades do pensamento brasileiro que levaram à Inconfidência. O poema trata de tema jamais antes focalizado nas letras nacionais: a prepotência dominadora dos ocupadorescolonizadores ibéricos, portugueses e espanhóis, contra os índios da nação guarani. Aldeados em comunidades então denominadas reduções, organizadas por padres jesuítas, desenvolveram significativa cultura organizacional, social e artística. Como os religiosos denominavam missões suas atividades de evangelização, foi com esse nome que ficaram conhecidas as aldeias. Com o objetivo de demonstrar a importância desses sítios, a Unesco tombou as ruínas das chamadas Missões jesuítico-guaraníticas como patrimônios da humanidade, em territórios brasileiro e argentino (atuais). Por interesses de posse de terras, escravização de ameríndios, domínio político e econômico, Portugal e Espanha formaram dois exércitos unificados e marcharam contra as reduções 35 implantadas à margem esquerda do rio Uruguai. Essa, aliás, é a razão do título do poema. Esses exércitos sustentavam-se politicamente no Tratado de Madri, assinado entre as duas potências marítimo-militares da época. Essa atitude de extremada violência já indicava a decadência política desses países. Ainda ideologicamente, o poema tem alta relevância, em virtude de ter assumido tendência de valorização humanista relativamente aos ameríndios, na qualidade de seres humanos dignos de consideração. Os grandes heróis não são, no poema, europeus, apesar de textualmente aparecer em destaque a presença de Gomes Freire de Andrade, chefe militar português, comandante geral da investida contra as Missões. Heróis plenos são, de fato, personagens da terra: os índios Cacambo, Lindoia, Sepé, Nhenguiru, por exemplo. O poema granjeou reconhecimento público e oficial ao autor. Com a aparente demonstração de apoio à política pombalina no Brasil, Basílio da Gama obteve uma série de êxitos sociais: recebeu carta de fidalguia e nobreza e publicou mais um poema, Quitúbia (1791). O poema Quitúbia deixa ver que o poeta não conseguiu levá-lo a cabo, especialmente considerado o trabalho que executou na obra máxima que compôs. Do ponto de vista estilístico, Basílio da Gama ofereceu impactante demonstração de inventividade e de aperfeiçoamentos técnicos. É épico, porém sem marcas tradicionais da epopeia praticada em língua portuguesa. O poema não foi construído em estrofes camonianas, como então era a tendência. São versos têm rimas assimétricas e sonorizações expressivas e sugestivas. A breve extensão do poema igualmente aponta à libertação dos cânones então vigentes. O Uraguai tem sido, por parte da crítica, considerado parcialmente préromântico, em razão das às vezes evidentes e às vezes subliminares simpatia e valorização dos ameríndios, demonstradas nos versos do poema. No Brasil, o índio foi emblema da pátria, durante o Romantismo. 36 O Uraguai Fumam ainda nas desertas praias Lagos de sangue tépidos e impuros Em que ondeiam cadáveres despidos, Pasto de corvos. Dura inda nos vales O rouco som da irada artilheria. Musa, honremos o Herói que o povo rude Subjugou do Uraguai e no seu sangue Dos decretos reais lavou a afronta. Ai tanto custas, ambição de império! E vós, por quem o Maranhão pendura Rotas cadeias e grilhões pesados, Herói e irmão de heróis, saudosa e triste, Se ao longe a vossa América vos lembra, Protegei os meus versos. Possa entanto Acostumar ao voo as novas asas Em que um dia vos leve. Desta sorte, Medrosa deixa o ninho a vez primeira Águia, que depois foge à humilde terra E vai ver de mais perto no ar vazio O espaço azul, onde não chega o raio. Já dos olhos o véu tinha rasgado A enganada Madri, e ao Novo Mundo, Da vontade do rei, núncio severo, Aportava Catâneo: e ao grande Andrade Avisa que tem prontos os socorros E que em breve saía ao campo armado. Não podia marchar por um deserto O nosso general, sem que chegassem As conduções, que há muito espera. [...] Diz-lhe que está vizinho e traz consigo, Prontos para o caminho e para a guerra, Os fogosos cavalos e os robustos E tardos bois que hão de sofrer o jugo No pesado exercício das carretas. Não tem mais que esperar, e sem demora Responde ao castelhano que partia, E lhe determinou lugar e tempo Para unir os socorros ao seu campo. [...] Atrás dos forçosíssimos cavalos, Quentes sonoros eixos vão gemendo 37 Co peso da funesta artiheria. Vinha logo de guardas rodeado – Fonte de crimes – militar tesouro, Por quem deixa no rego o curvo arado O lavrador, que não conhece a glória; E, vendendo a vil preço o sangue e a vida, Move, e nem sabe por que move, a guerra. [...] Entrara Sem mostras nem sinal de cortesia Sepé no pavilhão. Porém Cacambo Fez, ao seu modo, cortesia estranha, E começou: – Ó general famoso, Tu tens à vista quanta gente bebe Do soberbo Uraguai à esquerda margem. Bem que os nossos avôs fossem despojo Da perfídia de Europa, e daqui mesmo Cos não vingados ossos dos parentes Se vejam branquejar ao longe os vales, Eu, desarmado e só, buscar-te venho. Tanto espero por ti. E enquanto as armas Dão lugar à razão, senhor, vejamos Se se pode salvar a vida e o sangue De tantos desgraçados. Muito tempo Pode ainda tardar-vos o recurso Com o largo oceano de permeio, Em que os suspiros dos vexados povos Perdem o alento. O dilatar-se a entrega Está nas nossas mãos, até que um dia Informados os reis nos restituam A doce antiga paz. Se o rei de Espanha Ao teu rei quer dar terras com mão larga Que lhe dê Buenos Aires e Correntes E outras, que tem por estes vastos climas; Porém não pode dar-lhe os nossos povos. E inda no caso que pudesse dá-los, Eu não sei se o teu rei sabe o que troca, Porém tenho receio que o não saiba. Eu já vi a Colônia portuguesa Na tenra idade dos primeiros anos, Quando meu velho pai cos nossos arcos Às sitiadoras tropas castelhanas Deu socorro e mediu convosco as armas. E quererão deixar os portugueses 38 A praça, que avassala e que domina O gigante das águas, e com ela Toda a navegação do largo rio, Que parece que pôs a natureza Para servir-vos de limite e raia? Será; mas não o creio. E depois disso, As campinas que vês e a nossa terra – Sem o nosso suor e os nossos braços – De que serve ao teu rei? Aqui não temos Nem altas minas, nem caudalosos Rios de areias de ouro. Essa riqueza Que cobre os templos dos benditos padres, Fruto da sua indústria e do comércio Da folha e peles, é riqueza sua. Com o arbítrio dos corpos e das almas O céu lha deu em sorte. A nós somente Nos toca arar e cultivar a terra, Sem outra paga mais que o repartido Por mãos escassas mísero sustento. Pobres choupanas e algodões tecidos E os arcos e as setas e as vistosas penas São as nossas fantásticas riquezas. Muito suor e pouco ou nenhum fasto. Volta, senhor, não passes adiante. Que mais queres de nós? Não nos obrigues A resistir-te em campo aberto. Pode Custar-te muito sangue o dar um passo. Não queiras ver se cortam nossas frechas. Vê que o nome dos reis não nos assusta. O teu está mui longe; e nós, os índios, Não temos outro rei mais do que os padres. Acabou de falar; e assim respondeu O ilustre general: – Ó alma grande, Digna de combater por melhor causa. Vê que te enganam: risca da memória Vãs, funestas imagens, que alimentam Envelhecidos, mal fundados ódios. Por mim te fala o rei: ouve-me, atende E verás uma vez nua a verdade. Fez-vos livres o céu, mas se o ser livres Era viver errantes e dispersos, Sem companheiros, sem amigos, sempre Com as armas na mão em dura guerra, Ter por justiça a força e pelos bosques 39 Viver do acaso, eu julgo que inda fora Melhor a escravidão que a liberdade, Mas nem a escravidão, nem a miséria Quer o benigno rei que o fruto seja Da sua proteção. Esse absoluto Império ilimitado, que exercitam Em vós os padres – como vós, vassalos – É império tirânico, que usurpam. Nem são senhores, nem vós sois escravos. O rei é vosso pai: quer-vos felizes. Sois livres, como eu sou; e sereis livres, Não sendo aqui, em outra qualquer parte. Mas deveis entregar-nos estas terras. Ao bem público cede o bem privado. O sossego da Europa assim o pede. Assim manda o rei. Vós sois rebeldes, Se não obedeceis; mas os rebeldes, Eu sei que não sois vós – são os bons padres, Que vos dizem a todos que sois livres, E se servem de vós como de escravos. Armados de orações vos põem no campo Contra o fero trovão da artilheria, Que os muros arrebata; e se contentam De ver de longe a guerra: sacrificam, Avarentos do seu, o vosso sangue. Eu quero à vossa vista despojá-los Do tirano domínio destes climas, De que a vossa inocência os fez senhores. Dizem-vos que não tendes rei? Cacique, E o juramento de fidelidade? Porque está longe, julgas que não pode Castigar-vos a vós e castigá-los? Generoso inimigo, é tudo engano. Os reis estão na Europa, mas adverte Que estes braços, que vês, são os seus braços. Dentro de pouco tempo um meu aceno Vai cobrir este monte e essas campinas De semivivos palpitantes corpos De míseros mortais, que inda não sabem Por que causa o seu sangue vai agora Lavar a terra e recolher-se em lagos. Não me chames cruel: enquanto é tempo, Pensa e resolve – e, pela mão tomando Ao nobre embaixador, o ilustre Andrade 40 Intenta seduzi-lo por brandura. E o índio, um pouco pensativo, o braço E a mão retira; e, suspirando, disse: Gentes de Europa, nunca vos trouxera O mar e o vento a nós. Ah! não debalde Estendeu entre nós a natureza Todo esse plano espaço imenso de águas. Prosseguia talvez; mas o interrompe Sepé, que entra no meio e diz: – Cacambo Fez mais do que devia; e todos sabem Que estas terras, que pisas, o céu livres Deu aos nossos avôs; nós também livres As recebemos dos antepassados. Livres as hão de herdar os nossos filhos. Desconhecemos, detestamos jugo Que não seja o do céu, por mão dos padres. As frechas partirão nossas contendas Dentro de pouco tempo; e o vosso mundo, Se nele um resto houver de humanidade, Julgará entre nós: se defendemos – Tu a injustiça, e nós, o Deus e a Pátria. Enfim, quereis a guerra e tereis a guerra. [...] Não faltava, Para se dar princípio à estranha festa, Mais que Lindoia. Há muito lhe preparam Todas de brancas penas revestidas Festões de flores as gentis donzelas. Cansados de esperar, ao seu retiro Vão muitos impacientes a buscá-la. Esses de crespa Tanajura aprendem Que entrara no jardim triste e chorosa, Sem consentir que alguém a acompanhasse. Um frio susto corre pelas veias De Caitutu, que deixa os seus no campo; E a irmã por entre as sombras do arvoredo Busca coa vista e teme de encontrá-la. Entram enfim na mais remota e interna Parte do antigo bosque, escuro e negro, Onde ao pé de uma lapa cavernosa Cobre uma rouca fonte, que murmura, Curva latada de jasmins e rosas. Esse lugar delicioso e triste, Cansada de viver, tinha escolhido 41 Para morrer a mísera Lindoia. Lá reclinada, como que dormia, Na branda relva e nas mimosas flores, Tinha a face na mão, e a mão no tronco De um fúnebre cipreste, que espalhava Melancólica sombra. Mais de perto Descobrem que se enrola no seu corpo Verde serpente e lhe passeia e cinge Pescoço e braços e lhe lambe o seio. Fogem de a ver assim, sobressaltados, E param cheios de temor ao longe; E nem se atrevem a chamá-la e temem Que desperte assustada e irrite o monstro E fuja e apresse no fugir a morte. Porém o destro Caitutu, que treme Do perigo da irmã, sem mais demora, Dobrou as pontas do arco e quis três vezes Soltar o tiro e vacilou três vezes Entre a ira e o temor. Enfim sacode O arco e faz voar a aguda seta, Que toca o peito de Lindoia e fere A serpente na testa, e a boca e os dentes Deixou cravados no vizinho tronco. Açouta o campo coa ligeira cauda O irado monstro e em tortuosos giros Se enrosca no cipreste e verte, envolto Em negro sangue, o lívido veneno. Leva nos braços a infeliz Lindoia O desgraçado irmão, que, ao despertá-la, Conhece, com que dor! no frio rosto Os sinais do veneno e vê ferido Pelo dente sutil o brando peito. Os olhos, em que Amor reinava, um dia, Cheios de morte, e muda aquela língua Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes Contou a larga história de seus males. Nos olhos Caitutu não sofre o pranto E rompe em profundíssimos suspiros, Lendo na testa da fronteira gruta De sua mão já trêmula gravado O alheio crime e a voluntária morte E por todas as partes repetido O suspirado nome de Cacambo. Inda conserva o pálido semblante 42 Um não-sei-quê de magoado e triste, Que os corações mais duros enternece, Tanto era bela no seu rosto a morte! Indiferente, admira o caso acerbo Da estranha novidade ali trazido O duro Balda; e os índios, que se achavam, Corre coa vista e os ânimos observa. [...] Fez proezas Sepé naquele dia. Conhecido de todos, no perigo Mostrava descoberto o rosto e o peito, Forçando os seus co exemplo e coas palavras. Já tinha despejado a aljava toda, E destro em atirar, e irado e forte Quantas setas da mão voar fazia Tantas na nossa gente ensanguentava. Setas de novo agora recebia, Para dar outra vez princípio à guerra. Quando o ilustre espanhol que governava Montevidéu, alegre, airoso e pronto, As rédeas volta ao rápido cavalo E, por cima de mortos e feridos Que lutavam coa morte, o índio afronta. Sepé, que o viu, tinha tomado a lança E atrás deitando a um tempo o corpo e o braço A despediu. Por entre o braço e o corpo Ao ligeiro espanhol o ferro passa: Rompe, sem fazer dano, a terra dura E treme fora muito tempo a hástea. Mas de um golpe a Sepé na testa e peito Fere o governador, e as rédeas corta Ao cavalo feroz. Foge o cavalo E leva involuntário e ardendo em ira Por todo o campo a seu senhor; e ou fosse Que regada de sangue aos pés cedia A terra, ou que pusesse as mãos em falso, Rodou sobre si mesmo, e na caída Lançou longe a Sepé. – Rende-te, ou morre! Grita o governador; e o tape altivo, Sem responder, encurva o arco, e a seta Despede, e nela lhe prepara a morte. Enganou-se esta vez. A seta um pouco Declina, e açouta o rosto a leve pluma. Não quis deixar o vencimento incerto 43 Por mais tempo o espanhol e arrebatado Com pistola lhe fez tiro aos peitos. Era pequeno o espaço, e fez o tiro No corpo desarmado estrago horrendo. Viam-se dentro pelas rotas costas Palpitar as entranhas. Quis três vezes Levantar-se do chão: caiu três vezes, E os olhos já nadando em fria morte Lhe cobriu sombra escura e férreo sono. [...] Serás lido, Uraguai. Cubra os meus olhos Embora um dia a escura noite eterna. Tu vive e goza a luz serena e pura. Vai aos bosques de Arcádia – e não receies Chegar desconhecido àquela areia. Ali de fresco entre as sombrias murtas Urna triste a Mireo não todo encerra. Leva de estranho céu, sobre ela espalha Coa peregrina mão bárbaras flores. Comentários aos excertos do poema O Uraguai Dada a extensão do excerto, a análise será feita por sequências. As sequências transcritas se limitam nos sinais de supressão. Estão transcritas, portanto, seis sequências. A primeira estabelece a proposição (caraterística dos poemas narrativos). 1 No caso d’O Uraguai, a proposição vem antecedida por breve descrição do campo de batalha, em que “ondeiam cadáveres despidos” (porque são de índios). É portanto esse o tema da narrativa. Aí surge o primeiro rompimento com a epopeia tradicional feito internamente, no poema. Invoca a musa, e imediatamente a invocação se mistura ao oferecimento e ao pedido de proteção (também tradicional na epopeia) ao poder estabelecido, para que o poema possa vir a lume. Localiza, portanto, o cenário da narrativa: um campo de batalha no território que ele denomina Uraguai (região à margem esquerda do rio Uruguai), onde se localizaram as Missões jesuítico-guaraníticas no atual território brasileiro (RS), cuja destruição por portugueses e espanhóis e dramas internos da população ameríndia o poema narra e analisa. Apresenta já dois personagens centrais do poema, formalmente considerados (v. comentário que antecede o excerto): Andrade, o comandante português, e Catâneo, o espanhol. A narração, aí iniciada, faz o leitor perceber o encontro entre os dois chefes brancos. 1 As epopeias se compõem tradicionalmente de cinco partes: proposição, invocação, oferecimento, narração, epílogo. 44 Na segunda sequência, “nosso general” (Andrade) determina o local do encontro das tropas portuguesas com as espanholas. Na terceira, podem-se perceber a perícia descritiva e os lances de concepção ideológica que o poema habilmente constrói. A quarta sequência narra o encontro de Cacambo e Sepé, líderes guaranis, com Andrade. Nessa sequência, Cacambo demonstra habilidade de expressão, um tanto marcada por sinais do Iluminismo, mas destoa dele em função da aceitação do poder “dos padres”. A bela investida de Cacambo passa então a ser respondida por Andrade, que mostra determinação de executar a tarefa que lhe foi encomendada. Na última parte dessa sequência aparece Sepé, que, diferentemente de Cacambo, se mostra decidido a oferecer resistência guerreira.2 Isso aparentemente o coloca em situação menos racional, i. é, afastado das concepções iluministas; vale dizer: aproxima-o da imagem do incivilizado. A quinta sequência é a parte mais conhecida e elogiada do poema. Temse-lhe dado título particular: A morte de Lindoia. Lindoia, noiva de Cacambo, procura uma serpente para utilizá-la como meio de suicídio, porque, com Cacambo morto por traiçoeira morte, ela seria obrigada a casar-se com outra pessoa, que encarnava interesses dos religiosos. A seguir, breve análise das razões disso. Cacambo, que se mostra contrário à guerra, opõe-se, por esse motivo, ao interesse dos jesuítas, de acordo com a narrativa. Com isso, Cacambo se constrói, enquanto personagem, como ideologicamente partidário das ideias iluminista-pombalinas. Lembremos que Pombal expulsou os jesuítas do território do Brasil. Cacambo, portanto, é um líder inoportuno aos interesses dos jesuítas. Por isso, é assassinado por decisão do padre Balda. Balda tem um filho chamado Baldeta. Com Cacambo morto, Lindoia é forçada a casar-se com Baldeta. Ela, porém, prefere a morte: por isso “era bela no seu rosto a morte”. Sob o ponto de vista ideológico, o episódio da morte da índia Lindoia é profundamente importante. Havia, no Brasil, então, quem discutisse a condição indígena: homem ou meio-homem, i. é, homem-animal, aquele em quem a alma (no conceito religioso) está ausente. Dessa forma, poderia ser escravizado. Era polêmica de época, que ameaçava poderes. O amor, um sentimento, leva Lindoia à decisão fatal. Noutras palavras: o maior valor concebido por ela era o amor. Ora, o amor é um sentimento pessoal, exclusivo. Em consequência disso, Lindoia, ou seja, os ameríndios não são animais, mas pessoas dotadas de sentimentos nobres. Esse fato, entre outras tendências do Arcadismo brasileiro, tem sido apontado como prenunciador do Romantismo. Os árcades procuravam ideologicamente o 2 Sepé Tiaraju é conhecido no Rio Grande do Sul como o primeiro guardião da terra, herói da formação de valores nativos. 45 nativismo, ou seja, valorização das coisas da terra natal. Eis por que, p. ex., Basílio da Gama, entre outras motivações, escolheu personagens ameríndios a enaltecer, embora, por força da circunstância de poder na época, não deixou de promover alguns nomes portugueses e espanhóis. A morte de Lindoia tem sido lido por alguns como lírico no poema épico. Essa prática não destoa, contudo, da tradição. N’Os lusíadas, é igualmente destacado o episódio da morte de Inês de Castro e da vingança do príncipe que a amava. A sexta sequência é o epílogo do poema. Nele o poeta vaticina positivamente sobre o poema que se conclui. Destacam-se os dois versos finais, em que pede “flores” levadas por “mãos bárbaras”. Vale dizer: dá-se identificação entre as novidades técnica e temática do poema e os costumes e atitudes dos bárbaros, i. é, dos ameríndios, representados pelos personagens da nação guarani da margem esquerda do rio Uruguai. Isso representa o esforço e a consciência da diferença, com que o poema sugere outra literatura, não mais a até então conhecida e enaltecida, a lusitana; por extensão, a europeia. Vale lembrar que bárbaro, de acordo com o étimo grego (bárbaros), diz do indivíduo ou comunidade cultural que não fala a língua do poder, o estrangeiro, com relação a quem fala (em nome do poder). Nesse caso, parece aludir à literatura cultivada até então, fora do Brasil, ou fora da América, como se costumava então mais frequentemente dizer. Esse uso foi muito frequente entre nossos românticos (Gonçalves Dias e Alencar subnominavam poemas e romances que produziam como “poesia americana” e “romance americano”). Essa noção antitética de língua culta versus língua bárbara já pôde ser observada, neste estudo, na leitura do poema Prosopopeia, na passagem em que é explicada a origem do substantivo Pernambuco: “língua dos bárbaros escura” – aparece escrito. Os bárbaros são os povos que os lusitanos encontraram aqui. A língua é “escura”, porque é desconhecida dos recémchegados e porque ela não carrega o estigma do poder reconhecido nos reinos possessores. Breve exame técnico pode mostrar também outras caraterísticas interessantes no poema. Tomados os cinco primeiros versos, por exemplo, sob o ponto de vista do metro e do ritmo, têm-se versos decassílabos, com icto central na quarta sílaba poética. Embora tenha o poema sido visto por alguns estudiosos como construído em versos brancos, isso não parece exato. Nesses cinco versos, há rimas internas entre os versos 1 e 4; 3 e 5. Outras rimas menos evidentes são, por exemplo, as que ocorrem entre o icto central do primeiro verso e os finais dos versos 3 e 5; entre o icto central do segundo verso e os finais do primeiro e do quarto. O que se pode seguramente dizer, em consequência dessa observação, é que o poema está cuidadosamente sonorizado. 46 Capítulo 3 A Liberdade conduzindo o povo, por Eugène Delacroix (1798-1863). ROMANTISMO (1836-1881) Comecemos pela palavra romantismo. Romantismo radica na palavra roma, que nomeia a atual capital da Itália. Roma era a zona politicamente central do Lácio (Latium, em latim). A partir dessa região, os latinos moveram suas incursões guerreiro-imperialistas. Levavam sua língua, o latim, cuja forma falada é denominada latim vulgar (do povo geral, por oposição ao clássico, escrito, do poder). Na Península Ibérica, foram dominando tribo a tribo. O latim vulgar era cada vez modificado, em contato com os falares dos povos militar e politicamente anexados. Esses falares foram chamados de romances ou romanços, i. é, falares (porque não eram línguas escritas), cuja base era o idioma de Roma. O século 19 foi buscar nos romances ou romanços, que eram falares do povo comum, a nominação que lhes interessava, para designar a tendência antiaristocrática que o Romantismo deveria ter. A ideologia que sustentou o Romantismo foi o Liberalismo, que teve profundo e amplo papel modificador. É resultado do pensamento romântico-liberal a destituição do poder das aristocracias e a constituição das repúblicas modernas. Os românticos, portanto, se autoimputaram a condição de proximidade ao povo comum. Daí também a proposta ideológica e técnica da literatura romântica ser libertária, vale dizer, estar marcada pela ideia da liberdade temática e técnica. Os românticos valorizaram a liberdade em todas suas dimensões. Duas dessas dimensões ficaram bem marcadas até nossos dias. A primeira é a liberdade de escolha do par amoroso. Os românticos tornaram definitiva a escolha pessoal, baseada em simpatia, desejo, admiração, encantamento, amor etc, que o indivíduo faz de quem o acompanhará por toda vida ou parte dela. É isso que leva as pessoas ainda hoje a designarem como romântica a pessoa ou atitude que demonstre 47 valorização do sentimento amoroso. Essa atitude pessoal, baseada no sentimento, veio superar, como valor social, a concepção aristocrática do casamento por outros interesses, como os políticos, econômicos, ou seja, veio banir a decisão de outrem sobre a vida individual. A escolha do par pelos pais, portanto, passou a ser combatida pelos românticos, e isso foi uma das forças coletivas que o Romantismo desenvolveu a seu favor. A segunda é a liberdade cultural. As culturas devem ser autótones, pensavam os românticos. Ainda que os românticos, no mundo, tenham partido de experiências internacionais, o que passa a valer, segundo eles, são expressões culturais caraterísticas, como a dos índios, a dos gaúchos, a dos sertanejos, a dos negros, p. ex. A concepção romântica de povo, em oposição à aristocracia ou burguesia, contribui à valorização e tematização dos oprimidos sociais. A isso converge igualmente a escolha de categorias sociais subalternas ou pouco conhecidas. O caso das mulheres, que foram em geral muito focalizadas, é especial: elas foram contempladas com a cooptação romântica ao cristianismo: isso fez delas às vezes um tanto divinizadas, em aproximação à figura religiosa da mãe de J. Cristo. Isso explica a preferência às virgens; no casamento, a maternidade lhes devolvia a aura de sacralização. Há outros itens consideráveis nessa proposta, como o da liberdade política. Os atuais países latino-americanos, p. ex., começaram a constituir-se a partir dessas ideias libertárias. Não menor foi o efeito dessas ideias libertárias sobre movimentos revolucionários internos, como a Revolução Farroupilha, no Brasil. Também a juventude da época romântica via a natureza como elemento de libertação das regras sociais, das imposições e dos compromissos. Diziam os poetas que é possível falar com Deus na natureza: Deus fala na e pela natureza. Esse fato corroborava a ideia, que também mantinham, de que o indivíduo é supremamente importante. O indivíduo é, de fato, uma recriação romântica, na medida em que a preocupação básica de cada um – por isso praticavam essa ideia os poetas, p. ex. – era dizer o que vai dentro de si próprio. Expor a individualidade representou ato de libertação. Assim, pois, era possível desconsiderar regras formais de construção textual. Eu é pronome muito usado, porque, com ele, o poema pode dizer da intimidade, sem refrear-se nem constranger-se. Essa supervalorização do indivíduo também era aplicada contra etiquetas sociais. Nesse sentido, os românticos foram os primeiros hippies. O Romantismo, no Brasil, foi muito prolífico. Produziu fértil diversidade de poemas, romances, novelas e contos. Poemas e romances foram predominantes. Poemas como Canção do exílio de Gonçalves Dias, Meus oito anos de Casimiro de Abreu e O navio negreiro de Castro Alves ajudaram a construir a consciência cultural brasileira. A produção poética do romantismo brasileiro tem sido dividida em três estilos de época. Os primeiros têm sido chamados de iniciadores, nacionalistas-indianistas, entre os quais talvez o mais conhecido seja o maranhense Gonçalves Dias. Os segundos na sequência são 48 os ultrarromânticos, entre os quais se nomeia o fluminense Casimiro de Abreu. Os últimos são os condoreiros, entre os quais se destaca o baiano Castro Alves. A prosa romântica brasileira é constituída quase totalmente por romances. Foi com o Romantismo que começou a nascer o romance brasileiro. Joaquim de Macedo com A Moreninha, Caldre e Fião com O corsário, José de Alencar com O guarani, p. ex., além de vários outros, colaboraram decisivamente para a formação e o desenvolvimento da prosa romanesca brasileira. Antônio GONÇALVES DIAS Gonçalves Dias nasceu em 1823, nos arredores de Caxias (MA). Em 1838 partiu para Coimbra, a fim de estudar Direito. Durante o curso, escreveu seus primeiros versos e participou do grupo de poetas medievistas que se reunia em torno de O trovador. Formado, em 1844 regressou ao Maranhão. Aí conheceu Ana Amélia Ferreira do Vale. Parece ter sido ela o centro reflexivo do poema Ainda uma vez – adeus! Em 1846, mudou-se para o Rio de Janeiro. Aí se dedicou ao magistério (professor de Latim e História do Brasil no Colégio Pedro II); ao jornalismo (redator da revista Guanabara) e à elaboração de sua obra poética, teatral, etnográfica e historiográfica, a última das quais relacionada com as várias missões de estudos que lhe foram destinadas, aqui e no estrangeiro. Faleceu ao regressar da Europa, em naufrágio, já próximo da terra natal, em 1864. Publicou Primeiros cantos (1846); Segundos cantos e Sextilhas de Frei Antão (1848); Últimos cantos (1851); Novos cantos e Os timbiras (1857); Dicionário da língua tupi (1858). Para o teatro, produziu Patkul e Beatriz de Cenci (1843); Leonor de Mendonça (1846). Foram editadas suas Obras póstumas, em 6 volumes, organizadas por Antônio Henriques Leal (1868-1869). Tem sido considerado primeiro poeta autenticamente brasileiro, na sensibilidade, na temática e na técnica. É das mais altas vozes de nosso lirismo. Considera-se que a obra de Gonçalves Dias representa a contribuição mais expressiva da primeira fase da poesia romântica brasileira, a dos indianistas nacionalistas. Poemas como Canção do exílio, que haveria de ser reescrito dialogicamente por vários outros poetas nacionais, a começar, ainda durante o Romantismo, são composições que ajudaram e ajudam a construir a concepção nacional ao Brasil. Canção do exílio Minha terra tem palmeiras Onde canta o Sabiá; As aves que aqui gorjeiam 49 Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida, mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores Que tais não encontro eu cá; Em cismar sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá Minha terra tem palmeiras Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro eu cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. Comentários ao poema Canção do exílio Canção do exílio saiu em Primeiros cantos (1846). O poema representa a real instauração das condições do poema romântico brasileiro no estilo de época conhecido como nacionalista e nacionalista-indianista. Claro está que se marca como nacionalista. Não há nele recursos técnicos ou semânticos que o possam indicar como indianista. Pode-se dizer, ainda, como introdução ao estudo desse poema, que marcou de tal maneira a cultura literária nacional, que produziu várias outras canções do exílio, ainda que nem sempre com o mesmo título. Além da de Casimiro de Abreu (Exílio), ainda no Romantismo, são bem conhecidas a de Oswald de Andrade (Canto de regresso à pátria), no Modernismo, e a de Chico Buarque (Sabiá), no Pós-modernismo. O contato ótico inicial com o poema o mostra em cinco estrofes, das quais três são quadras e duas são sextilhas. Tanto quadras como sextilhas são formas estróficas que sugerem aproximação a formas populares em versos. Isso abona a busca romântica pela expressão oral, ligada às tradições culturais populares. A mesma coisa se pode dizer a respeito da assimetria entre as estrofes: quadras e sextilhas. As quadras (notadamente as heptassílabas) e as sextilhas têm tradição também ibérica. Na Idade Média, a quadra e a sextilha estiveram bastante presentes na construção poético-lírica e poético-narrativa na Península Ibérica. 50 No exame fônico, as quadras são heptassílabas isométricas, com rimas internas e externas. Os ictos estão em 3 e 7, com exceção do terceiro verso da primeira (2 e 7). Idêntica organização se encontra nas sextilhas, que, como as quadras, contêm uma alteração (segundo verso da primeira). Essa aparente discrepância tampouco é falha. Essa escolha se justifica pelo mesmo motivo da opção por quadras e sextilhas. Cabe ainda ressaltar que, a partir do que os títulos do livro e do poema sugerem, é um poema para ser cantado: são cantos e canção. A proposta mais uma vez se adequa à condição ideológico-estilística romântica, como escola fundada na ideologia liberal pós-iluminista. O Romantismo coerentemente buscou se aproximar das formas libertadoras que o vinculassem ao jeito de expressões ligadas às populações também sem livros. Vale dizer: a canção pode ser texto de expressão-comunicação que prescinde do livro; a canção pode ser veiculada também apenas oralmente. Isso agradou especialmente aos poetas românticos, que viram nela o afastamento das convenções sociais aristocráticas, como inicialmente foi o livro. O Romantismo combateu-as. Na leitura semântica, destacam-se as repetições, como maneira de facilitar a apreensão oral e ressaltar a simplicidade, também fundamento estilístico entre os românticos, que a partilharam com os árcades. Marcadamente se destacam igualmente os termos palmeiras e sabiá, tanto por suas forças evocativas, como valorizadoras da natureza tomada como refúgio de beleza e paz. Ambas sugerem a pátria do cantor, nesse caso, o Brasil. Palmeiras parece contrapor-se ao carvalho europeu. A Europa hegemônica, dominadora da América na condição de ex-metrópole recente como território político-econômico e como produtora cultural, precisava ser combatida. Os europeus, então, orgulhosos do seu carvalho, tiveram de confrontar-se com a simbologia da palmeira. A palmeira parece simbolizar a beleza, a elegância, a altivez e a resistência, uma vez que não se tem notícia de que alguma palmeira viva tenha algum dia sido abatida por ventos. Não passe despercebido, ainda, o fato de a palmeira ter múltiplas raízes de aparência frágil, mas de extrema flexibilidade e resistência pela conjunção da união de forças que essas raízes representam. Sabiá registra força análoga, mas, pelo que vários sinais indicam, ainda mais forte e representativo. O sabiá simboliza o encanto da América diante da Europa, enquanto ave canora, em contraposição ao rouxinol europeu. Reforça ainda a ideia subjacente no poema de valorização da voz, da palavra, enfim. A palavra sabiá mereceu do poeta a maiúscula inicial, como forma de concentrar valor de expressividade e sugestividade. Interessante é observar que, em 2003, o sabiá passou a ser oficialmente a ave-símbolo do Brasil. A marca do nacionalismo gonçalvino nesse poema se expressa pelas nomeações da natureza do Brasil, como definidora do paraíso natural, por oposição à devastada natureza europeia. Mesmo à noite, sem a força do sol 51 americano, o pensar é mais prazeroso sob as estrelas vistas, nas várzeas e nos bosques da pátria natal. Não sem motivo foi que Osório Duque Estrada, ao compor o poema que viria a ser a letra do hino nacional brasileiro, incluiu os dois últimos versos da segunda quadra de Canção do exílio de Gonçalves Dias. O canto do piaga I Ó guerreiros da taba sagrada, Ó guerreiros da tribo tupi, Falam deuses nos cantos do piaga, Ó guerreiros, meus cantos ouvi. Esta noite era a lua já morta Anhangá me vedava sonhar; Eis na horrível caverna, que habito, Rouca voz começou-me a chamar. Abro os olhos, inquieto, medroso, Manitôs! Que prodígios que vi! Arde o pau de resina fumosa, Não fui eu, não fui eu, que o acendi! Eis rebenta a meus pés um fantasma, Um fantasma d’imensa extensão; Liso crânio repousa a meu lado, Feia cobra se enrosca no chão. O meu sangue gelou-se nas veias, Todo inteiro, ossos, carnes, tremi, Frio horror me coou pelos membros, Frio vento no rosto senti. Era feio, medonho, tremendo, Ó guerreiros, o espectro que eu vi. Falam deuses nos cantos do piaga, Ó guerreiros, meus cantos ouvi! II Por que dormes, ó piaga divino? Começou-me a Visão a falar, Por que dormes? O sacro instrumento De per si já começa a vibrar. Tu não viste nos céus um negrume Toda a face do sol ofuscar? Não ouviste a coruja, de dia, Seus estrídulos torva soltar? 52 Tu não viste dos bosques a coma Sem aragem vergar-se e gemer? Nem a lua de fogo entre nuvens, Qual em vestes de sangue, nascer? E tu dormes, ó piaga divino! E Anhangá te proíbe sonhar! E tu dormes, ó piaga, e não sabes, E não podes augúrios cantar?! Ouve o anúncio do horrendo fantasma, Ouve os sons do fiel Maracá: Manitôs já fugiram da taba! Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá! III Pelas ondas do mar sem limites Basta selva, sem folhas, i vem; Hartos troncos, robustos, gigantes; Vossas matas tais monstros contêm. Traz embira dos cimos pendente – Brenha espessa de vário cipó – Dessas brenhas contêm vossas matas, Tais e quais, mas com folhas; é só! Negro monstro o sustenta por baixo, Brancas asas abrindo ao tufão, Como um bando de cândidas garças, Que nos ares pairando lá vão. Oh! quem foi das entranhas das águas O marinho arcabouço arrancar? Vossas terras demanda, fareja... Esse monstro... o que vem cá buscar? Não sabeis o que o monstro procura? Não sabeis a que vem, o que quer? Vem matar vossos bravos guerreiros, Vem roubar-vos a filha, a mulher! Vem trazer-vos crueza, impiedade – Dons cruéis do cruel Anhangá; Vem quebrar-vos a maça valente, Profanar Manitôs, Maracás. Vem trazer-vos algemas pesadas, Com que a tribo tupi vai gemer; Hão de os velhos servirem de escravos, 53 Mesmo o piaga inda escravo há de ser! Fugireis procurando um asilo, Triste asilo por ínvio sertão; Anhangá de prazer há de rir-se, Vendo os vossos quão poucos serão. Vossos deuses, ó piaga, conjura, Susta as iras do fero Anhangá. Manitôs já fugiram da taba, Ó desgraça! ó ruína! ó Tupá! Comentários ao poema O canto do piaga O poema está estruturado em três partes, indicadas por algarismos romanos. Na primeira aparecem seis estrofes; na segunda, cinco; na terceira, nove. As estrofes são quadras eneassilábicas, com três ictos por verso. O ritmo que os versos conseguem expressar sugere ação, movimento incessante, durante todo o desenvolvimento do poema. As rimas externas são cruzadas, mas não ocorrem em todos os versos. Há contudo constantes sonorizações. Frequentemente, ocorrem também rimas internas entre versos. Na primeira parte do poema, a voz do piaga conjura os homens para ouvirem o relato de acontecimentos estranhos e assustadores, que remetem a um sonho dele. Nesse sonho, porém, quem fala é um ser sobrenatural, que na segunda parte é denominado Visão. Na segunda parte, a voz do piaga procura reproduzir a mensagem dessa Visão. Ela mostra sinais, que são presságios, de terríveis acontecimentos que estão na iminência de ocorrer. Na terceira parte, o poema, que já se apresenta nas duas anteriores de modo elaborado, em expressividade vibrante, cresce mais ainda. Desse modo, o poema vai-se coroando como, talvez, a maior conquista poética do primeiro estilo de época do Romantismo, no Brasil. É possível dizer isso, em virtude do lugar de fala da voz poética. O ponto de visão parte do índio, da cultura dele. É a voz do outro. É por essa razão que a descrição do navio dos que vêm para destruir a cultura e a vida dos índios (personificados nos tupi) é feita com recursos sígnicos dessa cultura. Por razões evidentes, não poderia, claro, utilizar também a língua da nação ameríndia focalizada no poema. 54 Ainda uma vez – Adeus! Enfim te vejo! enfim posso, Curvado a teus pés, dizer-te Que não cessei de querer-te, Pesar de quanto sofri. Muito penei! Cruas ânsias, Dos teus olhos afastado, Houveram-me acabrunhado, A não lembrar-me de ti! Dum mundo a outro impelido, Derramei os meus lamentos Nas surdas asas dos ventos, Do mar na crespa cerviz! Baldão, ludíbrio da sorte, Em terra estranha, entre gente Que alheios males não sente, Nem se condói do infeliz! Louco, aflito, a saciar-me D’agravar minha ferida, Tomou-me tédio da vida, Passos da morte senti; Mas quase no passo extremo, No último arcar da esp’rança, Tu me vieste à lembrança: Quis viver mais e vivi! Vivi; pois Deus me guardava Para este lugar e hora! Depois de tanto, senhora, Ver-te e falar-te outra vez; Rever-me em teu rosto amigo, Pensar em quanto hei perdido, E este pranto dolorido Deixar correr a teus pés. Mas que tens? Não me conheces? De mim afastas teu rosto? Pois tanto pôde o desgosto Transformar o rosto meu? Sei a aflição quanto pode, Sei quanto ela desfigura, E eu não vivi na ventura... Olha-me bem, que sou eu! 55 Nenhuma voz me diriges!.. Julgas-te acaso ofendida? Deste-me amor, e a vida Que me darias bem sei; Mas lembrem-te aqueles feros Corações, que se meteram Entre nós; e se venceram, Mal sabes quanto lutei! Oh! se lutei!... mas devera Expor-te em pública praça, Como um alvo à populaça, Um alvo aos dictérios seus! Devera, podia acaso Tal sacrifício aceitar-te Para no cabo pagar-te, Meus dias unindo aos teus? Devera, sim; mas pensava, Que de mim t’esquecerias, Que, sem mim, alegres dias T’esperavam; e em favor De minhas preces, contava Que o bom Deus me aceitaria O meu quinhão de alegria Pelo teu quinhão de dor! Que me enganei, ora o vejo: Nadam-te os olhos em pranto, Arfa-te o peito e, no entanto, Nem me podes encarar; Erro foi, mas não foi crime, Não te esqueci, eu to juro: Sacrifiquei meu futuro, Vida e glória por te amar! Tudo, tudo; e na miséria Dum martírio prolongado, Lento, cruel, disfarçado, Que eu nem a ti confiei; “Ela é feliz (me dizia) “Seu descanso é obra minha” Negou-me a sorte mesquinha... Perdoa, que me enganei! Tantos encantos me tinham, Tanta ilusão me afagava 56 De noite, quando acordava, De dia em sonhos talvez! Tudo isso agora onde para? Onde a ilusão dos meus sonhos? Tantos projetos risonhos, Tudo esse engano desfez! Enganei-me!... – Horrendo caos Nessas palavras se encerra, Quando do engano, quem erra, Não pode voltar atrás! Amarga irrisão! reflete: Quando eu gozar-te pudera Mártir quis ser, cuidei qu’era... E um louco fui, nada mais! Louco, julguei adornar-me Com palmas d’alta virtude! Que tinha eu bronco e rude Co’o que se chama ideal? O meu eras tu, não outro; ‘Stava em deixar minha vida Correr por ti conduzida, Pura, na ausência do mal. Pensar eu que o teu destino Ligado ao meu, outro fora, Pensar que te vejo agora, Por culpa minha, infeliz; Pensar que a tua ventura Deus ab eterno a fizera, No meu caminho a pusera... E eu! Eu fui que a não quis! És doutro agora, e p’ra sempre! Eu a mísero desterro Volto, chorando o meu erro, Quase descrendo dos céus! Dói-te de mim, pois me encontras Em tanta miséria posto, Que a expressão deste desgosto Será um crime ante Deus! Dói-te de mim, que t’imploro Perdão, a teus pés curvado; Perdão!... de não ter ousado Viver contente e feliz! 57 Perdão da minha miséria, Da dor que me rala o peito, E, se do mal que te hei feito, Também do mal que me fiz! Adeus qu’eu parto, senhora; Negou-me o fado inimigo Passar a vida contigo, Ter sepultura entre os meus; Negou-me nesta hora extrema, Por extrema despedida, Ouvir-te a voz comovida Soluçar um breve Adeus! Lerás porém algum dia Meus versos, d’alma arrancados, D’amargo pranto banhados, Com sangue escritos; e então Confio que te comovas, Que a minha dor te apiade, Que chores, não de saudade, Nem de amor, de compaixão. Comentários ao poema Ainda uma vez – Adeus! Ainda uma vez – Adeus! tem sido lido como completa expressão do amor entre um homem e uma mulher concebido pelos românticos brasileiros da primeira fase. O amor do casal é obra de Deus, que faz o destino: “Deus ab eterno a fizera, / No meu caminho a pusera”; “Vivi; pois Deus me guardava / Para este lugar e hora!” O desencontro desse destino gera sofrimento, infelicidade. O “erro” foi não ter enfrentado os impedimentos à realização do amor: “Será um crime ante Deus”. A palavra Deus aparece quatro vezes no poema, remarcando a relação entre o amor humano e o divino. O casamento é “pra sempre”, porque é obra de Deus, o que elimina a esperança. A compensação pode ser a “compaixão” pelo sofrimento; ela serve, porque permite ao menos a permanência de uma relação entre ambos. A posição masculina é de sujeição diante da mulher amada: “enfim posso, / Curvado a teus pés, dizer-te”; “Dói-te de mim, que t’imploro / Perdão, a teus pés curvado”; “este pranto dolorido / Deixar correr a teus pés”. A espiritualização do amor é também decorrente dessa sujeição, da proximidade da presença divina e da aproximação entre os ideários românticos e cristãos. 58 Joaquim Manuel de MACEDO Macedo nasceu em 1820, em São João do Itaboraí (RJ). Faleceu em 1882, no Rio de Janeiro (RJ). Formou-se em Medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro em 1844. No mesmo ano, publicou A moreninha, que atingiu grande êxito e determinou o rumo que o escritor seguiria até o fim da vida. Dedicou-se ao jornalismo, à política (deputado estadual e geral em várias legislaturas), ao magistério (professor de História e Geografia no Colégio Pedro II). Seu prestígio de ficcionista romântico só foi superado pelo de José de Alencar. Sua obra divide-se entre romances, poemas, peças de teatro e crônicas. Algumas de suas obras: A moreninha (1844), O moço loiro (1845), O forasteiro (1855), O culto do dever (1865), A luneta mágica (1869), A namoradeira (1870), Um noivo e duas noivas (1871), A baronesa do amor (1876) – romances; O primo da Califórnia (1858), O novo Otelo (1863), Lusbela (1863) – teatro; A nebulosa (1857) – poema. A moreninha (excerto do capítulo 22) A bela Moreninha tinha visto romper a aurora do domingo, no rochedo da gruta, e tendo, debalde, esperado o seu estudante até alto dia, voltou para a casa arrufada. No almoço não houve prato que não acusasse de mal temperado: faltava-lhe o tempero do amor; o chá não se podia tomar, o dia estava frio de enregelar, toda gente de sua casa a olhava com maus olhos, e seu próprio irmão tinha um defeito imperdoável: era estudante, pertencia a uma classe, cujos membros eram, sem exceção, sem exceção nenhuma (bradava ela lindamente enraivecida) falsos, maus, mentirosos e até... feios. À tarde sentiu-se incomodada. Retirou-se, não ceou e não dormiu. Tudo neste mundo é mais ou menos compensado, e o amor não podia deixar de fazer parte da regra. Ele, que de um nadazinho tira motivos para o prazer de dias inteiros, que de uma flor já murcha engendra o mais vivo contentamento, que por um só cabelo faz escarcéus tais, que nem mesmo a sorte grande os causaria, que por uma cartinha de cinco linhas põe os lábios de um pobre amante em inflamação aguda com o estalar de tantos beijos, se não produzisse também agastados arrufos, às vezes algumas cólicas, outras, amargores de boca, palpitações, ataques de hipocondria, pruído de canelas etc., seria tão completa a felicidade cá embaixo, que a terra chegaria a lembrar-se de ser competidora do céu. Um exemplo dessa regra está sendo a nossa cara menina. Coitadinha! vai passando uma semana de ciúmes e amarguras; acordando-se ao primeiro trinar do canário, ela busca o rochedo e, com os olhos embebidos no mar, canta muitas 59 vezes a balada de Ahy, repetindo com fogo a estrofe que tanto lhe condiz, por principiar assim: Eu tenho quinze anos E sou morena e linda. E quando o sol começa a fazer-se quente, deixa o rochedo, para passar o dia inteiro no fundo do seu gabinete, ou ao lado de sua boa avó, que mal pode consolá-la, porque, conhecendo já a causa da tristeza da querida neta, teme vêla fugir vermelha de pejo, se não fingir com finura ignorar o estado de seu coração. O dia de sexta-feira trouxe ainda algumas novidades à ilha de... A Srª D. Ana recebeu cartas que a tornaram talvez menos triste, mas, sem dúvida, muito pensativa. A presença da linda neta parecia alentar mais essas reflexões, que se prolongaram até à tarde do dia seguinte, em que um velho e particular amigo de sua família veio da corte visitá-la e com a respeitável senhora ficou duas horas conferenciando a sós. Esse homem despediu-se, enfim, da Srª D. Ana, deixando-a cheia de prazer; e, no momento em que saltava dentro do seu batel, vendo a interessante Moreninha que tristemente passeava à borda do mar, saudou-a com esta simples palavra, apontando para o céu: – Esperança! D. Carolina levantou a cabeça e viu que já o batel cortava as ondas, mas, como para compreender a tão animador cumprimento, ela por sua vez apontou também para o céu e, pondo a outra mão no lugar do coração, disse: – Esperarei. Comentários à obra A moreninha O enredo de A moreninha está centralizado num caso de amor entre dois jovens da burguesia do Rio de Janeiro. Carolina, a Moreninha, representa o ideal feminino propugnado pelos românticos brasileiros. Augusto é estudante de Medicina e está descrente do amor. Tem uma promessa de casamento desde a infância: uma menina que conheceu na praia e nunca mais viu. Não se trata de promessa dos pais deles, mas uma situação armada pelo destino, que ambos aprovaram. Essa é a razão de seu desinteresse por compromissos amorosos sérios. O desenrolar do enredo descobre que Moreninha era aquela menina da praia e da promessa. A paixão que os enlaça leva o personagem a escrever essa mesma história, a história desse amor. O excerto trata dos sinais de amor que se desencadeiam em Carolina. Ideologicamente, o romance prende-se a ações da juventude burguesa fluminense, no século 19. A morenice de Carolina investe sobre o emblema da beleza americana, como diziam os românticos. (O adjetivo americano/a não tinha, então, único dono, como hoje. Queria expressar a condição de alguém ou algo originário das Américas.) Por oposição à loirice emblemática das heroínas 60 europeias, nada mais americano do que dispor de uma personagem central morena, com todos os demais predicados interessantes para cumprir esse desígnio nacionalista da prosa romântica brasileira e dar título à narrativa. Sob o ponto de vista estilístico, o romance tem recebido da crítica boas referências, a ponto de ter sido indicado como o efetivo início da prosa romanesca brasileira. Apesar disso, é possível identificar algumas falhas de exposição, caraterísticas de processo de formação, no caso, do romance nacional. Para ter-se uma ideia a respeito, basta considerar o excerto transcrito e observar-lhe o segundo parágrafo. No segundo período sintático desse parágrafo, o pronome ele, que se refere ao substantivo amor do período imediatamente anterior, não encontra seu verbo. Pelo menos nos exemplares verificados, de mais de uma edição, não foi possível encontrar a forma sintaticamente completa desse período. Como é a sintaxe que constrói os significados, essas falhas constituem manchas de só palavras, ou seja, de vazios semânticos ou simplesmente de obscuridade. José Antônio do Vale CALDRE E FIÃO Caldre e Fião nasceu e morreu em Porto Alegre (1821-1876). Formou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e exerceu aí a profissão e atividades de professor e jornalista. Fundou o jornal O filantropo, no qual atuou de 1849 a 1851. Defendia a substituição do trabalho escravo pelo livre, o que lhe valeu perseguições e campanha contra o jornal. De retorno a Porto Alegre, além de ter mantido as atividades que exercera no Rio de Janeiro, foi eleito deputado à Assembleia Provincial em várias legislaturas. Escreveu romances, poemas, peças para teatro e ensaios sobre medicina homeopática. Ficou também conhecido em virtude de ter atuado na Sociedade Partenon Literário, instituída em 1868, da qual foi presidente e colaborador na Revista mensal (da agremiação). São conhecidos dele dois romances: A divina pastora (1847) e O corsário (1849). O verdadeiro nome do romancista não inclui o nome pelo qual é principalmente conhecido, Caldre e Fião. Esse acréscimo ao nome original acabou sendo sua forma de referência. (No bairro Partenon, em Porto Alegre, a rua que o homenageia é conhecida apenas como Caldre e Fião. O bairro Partenon deve o nome à Sociedade Partenon Literário, entre cujos integrantes se encontrava Caldre e Fião.) É bem possível que o nome artístico tenha sido iniciativa para despistar perseguidores, especialmente por causa da atuação que desenvolveu em prol da libertação dos escravos negros. (Por razões 61 semelhantes, Manuel Antônio de Almeida assinava matérias jornalísticas sob vários nomes.) O corsário (excerto do Sexto quadro) Eram quatro moços vestidos à gaúcha: eles traziam chapéus arredondados de abas largas; trajavam chilipás com franjas; coletes vermelhos com botões amarelos, chales de cachemira velhos amarrados à cintura, excetuando um deles que cingia uma linda e bordada guaiaca; e traziam ainda grandes e pesadas chilenas de prata; estavam armados à rio-grandense, com espada, duas pistolas, uma faca, uma carabina e o laço e as bolas, que estavam seguras aos tentos dos cavalos; seus aspectos eram guerreiros; em seu todo apresentavam uma lhana franqueza e alegria bem pronunciada. Três dentre eles tinham cabelos ruivos em cabeleiras pendentes sobre os ombros, exceto o que cingia a guaiaca, que tinha cabelos castanhos também da mesma forma dispostos. – Manoel da Cunha, disse um moço ao que cingia a guaiaca, este dia não está muito bom para pesquisarmos o sujeito. Por Deus! que se o pilhasse fazialhe a cabeça em astilhas com os copos de ferradura da minha espada! – Nós procuraremos por aqui perto uma pousada e pasto para os nossos cavalos: tu, Anselmo, por amor da tua Bibi, não nos desampares um só instante! – Eu, disse o que lhe tinham dirigido a palavra; como hei de deixar-te? Somos inseparáveis, e parece-me que não há poder da terra nem do céu que nos possa desligar jamais! É a ti que devo a posse da Bibi, da minha bela e encantadora esposa!... Para que me lembraste, Manoel da Cunha, de uma semelhante cousa?!... Ah, demônio, que, se não fosse a amizade que nos liga, eu disparava! e já me raspava campo fora, que nem um fuá matreiro, para casa de meu sogro, a ouvir o que diz aquela que enlaçou o meu coração e amansoume de modo que fiquei um tambeiro de conta! – Então? que digo eu? Queres disparar e deixar-nos! – Mas eu já sei que hei de levar-te à cola... não te havia deixar aqui nestas areias, disse Anselmo. – Este Anselmo é um pobre louco!... disse um dos outros dous; é capaz de morrer pelas mulheres com a língua de fora!... nunca vi maior pateta! – Cala-te, Fernão; disse Anselmo; tu não entendes o que são as simpatias do coração. Além das charqueadas de teu pai, nada mais tens visto, nasceste e te criaste sobre os arreios do cavalo sem contudo saíres um só dia do recinto da tua estância e queres deste modo julgar a vida e os atos dos outros. – Fernão Lopo nunca saiu da sua estância, é verdade; a sua vida tem-se passado na charqueada de seu pai; mas a sua razão é de homem que pensa. 62 – Em quanto a isso, disse o quarto, não digas mais uma palavra: dizia minha avó que elogio em boca própria é como selim em cima de burro matreiro; entendes, Fernão? Eu estimo-te como um bom rapaz; mas não quero que tenhas tanta presunção!... Comentários à obra O corsário O corsário foi editado originalmente (1849-1851?) como folhetim. Depois (1851?), apareceu em livro, em dois tomos. Como aconteceu com A divina pastora, o romance desapareceu. Há quem credite o desaparecimento aos inimigos ideológicos do romancista. A divina pastora é o caso mais curioso. Era conhecida a existência dele, por informação de Guilhermino Cesar, que descobriu referência à primeira edição, em jornal do Rio de Janeiro, da época. Muitos pesquisadores se empenharam em descobrir-lhe o destino. Por força do acaso, ou da lei das probabilidades, um livreiro adquiriu uma caixa de livros usados no Uruguai. Nele foi encontrado o primeiro exemplar conhecido por nós do Divina pastora, primeiro romance de Caldre e Fião. A segunda edição que o romance teve (1992) também contribuiu para a (pequena) divulgação do romance. Essa edição foi feita por empresa jornalística, que o distribuiu como cortesia. O enredo do romance cujo excerto foi lido acima, O corsário, tematiza a estrutura moral dos homens que construíram a nação (na acepção romântica) dos gaúchos. Os episódios são contemporâneos da Revolução Farroupilha (1835-1845), movimento político-guerreiro gaúcho movido contra o império brasileiro. O italiano Vanzini é o corsário. A má conformação moral desse personagem (estrangeiro) se confronta com a boa força moral dos homens locais. Vanzini, náufrago, dá à praia de Tramandaí. Acaba por vilipendiar a jovem que o retirara desacordado da praia e que se apaixonara por ele. Ele tenta trair também o líder do movimento guerreiro sul-rio-grandense, Bento Gonçalves da Silva. É interessante observar que Alencar iria construir o personagem maniqueistamente mau de O guarani (1857), à semelhança do de Caldre e Fião. Assim como Vanzini, Loredano é italiano. Assim como Vanzini, Loredano é lascivo. Assim como Vanzini, Loredano é traiçoeiro. Caldre e Fião trabalhou sobre subliminar noção de nação de gaúchos, no Rio Grande do Sul. Alencar construiu um Brasil indianista, entre o Ceará e o Rio de Janeiro. Essa terra era para ser lusitana e ameríndia; essa foi a idealização da origem nacional que o autor cearense preconizou. Ainda que com estilo nem sempre de fluidez desejável para texto literário, nem por isso se podem negar a Caldre e Fião os fatos de ter sido o pioneiro na construção do romance gaúcho e um dos primeiros construtores do romance brasileiro. O estilo de Macedo, entre outros, no seu romance mais conhecido, A moreninha, também se ressente por vezes dessa marca estilística. Ressalte-se 63 ainda, a favor de O corsário e de seu autor, a constatação de ter sido nesse romance que pela primeira vez aparece descrita a figura do gaúcho, na literatura brasileira. Manuel Antônio ÁLVARES DE AZEVEDO Álvares de Azevedo nasceu em São Paulo em 1831 e morreu no Rio de Janeiro em 1852. Pertenceu à chamada de segunda geração romântica brasileira, cuja poesia se caracterizou pelo ultrarromantismo. Álvares de Azevedo utilizou-se também, algumas vezes, do humorismo. O humorismo se configura no uso da ironia e da hilaridade em alguns dos seus poemas. A maioria de suas obras foi publicada postumamente. Eis algumas delas: Lira dos vinte anos (único livro editado em vida do poeta), Poesias diversas, Poema do Frade, O conde Lopo, Estudos literários, Cartas, Discursos, o livro de contos A noite na taverna. Tem sido apontado frequentemente pela crítica como a mais representativa voz poética do ultrarromantismo brasileiro. Se eu morresse amanhã! Se eu morresse amanhã, viria ao menos Fechar meus olhos minha triste irmã; Minha mãe de saudades morreria Se eu morresse amanhã! Quanta glória pressinto em meu futuro! Que aurora de porvir e que manhã! Eu perdera chorando essas coroas Se eu morresse amanhã! Que sol! que céu azul! que doce n'alva Acorda a natureza mais louçã! Não me batera tanto amor no peito Se eu morresse amanhã! Mas essa dor da vida que devora A ânsia de glória, o dolorido afã... A dor no peito emudecera ao menos Se eu morresse amanhã! Comentários ao poema Se eu morresse amanhã No poema Se eu morresse amanhã, podem-se ler tendências ultrarromânticas caraterísticas de Álvares de Azevedo. Surge certa ambivalência entre o desejo de morrer e o chamamento dos jovens à vida, nas suas esperanças. “A dor da vida que devora / A ânsia de glória” é o que justificaria a 64 valorização da morte. Evidencia-se também certo apego ao ventre feminino, origem da vida, já que “minha triste irmã” e “minha mãe” é que compensariam o desamparo na iminência da morte. Lembrança de morrer Quando em meu peito rebentar-se a fibra Que o espírito enlaça à dor vivente, Não derramem por mim nenhuma lágrima Em pálpebra demente. Nem desfolhem na matéria impura A flor do vale que adormece ao vento: Não quero que uma nota de alegria Se cale por meu triste passamento. Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto o poento caminheiro, Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro. Como o desterro de minh’alma errante, Onde fogo insensato a consumia: Só levo uma saudade – é desses tempos Que amorosa ilusão embelecia. Só levo uma saudade – é dessas sombras Que eu sentia velar nas noites minhas... De ti, ó minha mãe, pobre coitada, Que por minha tristeza te definhas! De meu pai... de meus únicos amigos, Poucos – bem poucos – e que não zombavam Quando, em noite de febre endoudecido, Minhas pálidas crenças duvidavam. Se uma lágrima as pálpebras me inunda, Se um suspiro nos seios treme ainda, É pela virgem que sonhei... que nunca Aos lábios me encostou a face linda! Só tu à mocidade sonhadora Do pálido poeta deste flores... Se viveu, foi por ti! e da esperança De na vida gozar de teus amores. Beijarei a verdade santa e nua, Verei cristalizar-se o sonho amigo... Ó minha virgem dos errantes sonhos, Filha do céu, eu vou amar contigo! 65 Descansem o meu leito solitário Na floresta dos homens esquecida, À sombra de uma cruz, e escrevam nela: – Foi poeta – sonhou – e amou na vida. Sombras do vale, noites da montanha Que minh’alma cantou e amava tanto, Protegei o meu corpo abandonado E no silêncio derramai-lhe canto! Mas quando preludia ave d’aurora E quando à meia-noite o céu repousa, Arvoredos do bosque, abri os ramos... Deixai a lua pratear-me a lousa! Comentários ao poema Lembrança de morrer As duas primeiras estrofes do poema expõem a concepção subjetivista da nulidade do valor da vida que se manifesta numa pessoa, diante da beleza representada pela natureza. A unidade parece não ser, aí, o indivíduo, mas o conjunto da vida da natureza. Primeiro, não vale a pena derramar “nenhuma lágrima”; segundo, a alegria está fora da pessoa: está nas manifestações de vida da natureza, como, p. ex., nas flores. A morte da pessoa não merece a morte das flores. Vale ainda considerar que a concepção de vida que aparece na abertura do poema é a mesma entendida religiosamente: a vida é o enlace do “espírito” à “dor vivente”, em que a “dor vivente” é o fato de estar vivo. As duas estrofes subsequentes expõem, por comparações, a alegria de deixar a vida. Nas duas seguintes, quinta e sexta estrofes, transparece o desencanto que representa o afastamento das pessoas queridas, cuja nomeação começa por “ti, ó minha mãe”. Na sétima e na oitava estrofes, lê-se alusão à mulher impossível, caraterística do ultrarromantismo: “a virgem que sonhei”. Não se lê a virgem com quem sonhei. Essa seria uma pessoa. Trata-se da “virgem que sonhei”, i. é, a jovem virgem idealizada, que não encontra correspondência no mundo concretosensorial. Por isso, ela “nunca aos lábios me encostou a face linda”: de fato, ela não tem face tangível nenhuma. Esse é quase sempre o motivo central do desencanto da vida nos poemas de Lira dos vinte anos. Ela foi, contudo, quem deu “flores” ao “pálido poeta”. A estrofe seguinte é ideologicamente central no poema. Nela está expresso o desejo alcandorado: a transfiguração da virgem sonhada na imagem da morte. A morte é a “minha virgem dos errantes sonhos”, “filha do céu!”: “vou amar contigo!” As três estrofes finais expressam desejos para depois da morte. 66 O título – Lembrança de morrer – faz referência ao que pode lembrar (pensar, esperar, desejar) quem precisa morrer, nessa concepção da poesia romântica do mal-do-século. CASIMIRO José Marques de ABREU Casimiro de Abreu nasceu em 1839, em Barra de São João (RJ), e morreu em 1860, em Nova Friburgo (RJ). Seus poemas são marcados pela simplicidade técnica e por temas filtrados pela saudade. Sua obra mais estudada é o livro de poemas Primaveras. Antes da televisão, as mães costumavam recitar para os filhos pequenos alguns dos poemas de Casimiro, especialmente Meus oito anos. Assim, parte da obra do poeta marcou a formação cultural da juventude em diversas regiões brasileiras. A valsa Tu, ontem, Na dança Que cansa, Voavas Co'as faces Em rosas Formosas De vivo, Lascivo Carmim; Na valsa Tão falsa, Corrias, Fugias, Ardente, Contente, Tranquila, Serena, Sem pena De mim! Quem dera Que sintas As dores De amores Que louco Senti! Quem dera 67 Que sintas!... – Não negues, Não mintas... – Eu vi!... Valsavas: Teus belos Cabelos, Já soltos, Revoltos, Saltavam, Voavam, Brincavam No colo Que é meu; E os olhos Escuros Tão puros, Os olhos Perjuros Volvias, Tremias, Sorrias, P'ra outro, Não eu! Quem dera Que sintas As dores De amores Que louco Senti! Quem dera Que sintas!... – Não negues, Não mintas... – Eu vi!... Meu Deus! Eras bela Donzela, Valsando, Sorrindo, Fugindo, Qual silfo Risonho 68 Que em sonho Nos vem! Mas esse Sorriso Tão liso Que tinhas Nos lábios De rosa, Formosa, Tu davas, Mandavas A quem ?! Quem dera Que sintas As dores De amores Que louco Senti! Quem dera Que sintas!... – Não negues, Não mintas... – Eu vi!... Calado, Sozinho, Mesquinho, Em zelos Ardendo, Eu vi-te Correndo Tão falsa Na valsa Veloz! Eu triste Vi tudo! Mas mudo Não tive Nas galas Das salas, Nem falas, Nem cantos Nem prantos, Nem voz! 69 Quem dera Que sintas As dores De amores Que louco Senti! Quem dera Que sintas!... – Não negues, Não mintas... – Eu vi!... Na valsa Cansaste; Ficaste Prostrada, Turbada! Pensavas, Cismavas, E estavas Tão pálida Então; Qual pálida Rosa Mimosa No vale Do vento Cruento Batida, Caída Sem vida No chão! Quem dera Que sintas As dores De amores Que louco Senti! Quem dera Que sintas!... – Não negues, Não mintas... – Eu vi!... 70 Comentários ao poema A valsa A valsa é ritmada em dois toques fracos e um forte. O poema tem apenas duas sílabas poéticas, uma átona, outra tônica, e apenas um icto em cada verso. Isso determina que o leitor não busque a identificação rítmica com a valsa, mas com a dança ou com os dançantes da valsa. “As galas / Das salas” determinam a situação dos bailarinos. O poema então está fundamentado na ação da dança: os pés dos dançantes determinam a ritmação do poema. O par observado, do qual ela é o foco da observação, está dançando. Nesse ritmo o poema estabelece a relação entre o sujeito lírico e o objeto da observação. Daí “As dores / De amores”. Os versos “O colo / Que é meu” evidenciam a expetativa do observador e os “zelos” que disso advêm. O sujeito lírico sente-se preterido, atraiçoado, por isso “– Não negues, / Não mintas, / – Eu vi”. Minh’alma é triste I Minh’alma é triste como a rola aflita Que o bosque acorda desde o albor da aurora, E em doce arrulo que o soluço imita O morto esposo gemedora chora. E, como a rola que perdeu o esposo, Minh’alma chora as ilusões perdidas, E no seu livro de fanado gozo Relê as folhas que já foram lidas. E como notas de chorosa endeixa Seu pobre canto com a dor desmaia, E seus gemidos são iguais à queixa Que a vaga solta quando beija a praia. Como a criança que banhada em prantos Procura o brinco que levou-lhe o rio, Minh’alma quer ressuscitar nos cantos Um só dos lírios que murchou o estio. Dizem que há gozos nas mundanas galas, Mas eu não sei em que o prazer consiste. – Ou só no campo, ou no rumor das salas, Não sei por quê – mas minh’alma é triste! II Minh’alma é triste como a voz do sino Carpindo o morto sobre a laje fria; E doce e grave qual no templo um hino, Ou como a prece ao desmaiar do dia. 71 Se passa um bote com as velas soltas, Minh’alma o segue n’amplidão dos mares; E longas horas acompanha as voltas Das andorinhas recortando os ares. Às vezes, louca, num cismar perdida, Minh’alma triste vai vagando à toa, Bem como a folha que do sul batida Boia nas águas de gentil lagoa! E como a rola que em sentida queixa O bosque acorda desde o albor da aurora, Minh’alma em notas de chorosa endeixa Lamenta os sonhos que já tive outrora. Dizem que há gozos no correr dos anos!... Só eu não sei em que o prazer consiste. – Pobre ludíbrio de cruéis enganos, Perdi os risos – a minh’alma é triste! III Minh’alma é triste como a flor que morre Pendida à beira do riacho ingrato; Nem beijos dá-lhe a viração que corre, Nem doce canto o sabiá do mato! E como a flor que solitária pende Sem ter carícias no voar da brisa, Minh’alma murcha, mas ninguém entende Que a pobrezinha só de amor precisa! Amei outrora com amor bem santo Os negros olhos de gentil donzela, Mas dessa fronte de sublime encanto Outro tirou a virginal capela. Oh! quantas vezes a prendi nos braços! Que o diga e fale o laranjal florido! Se mão de ferro espedaçou dois laço Ambos choramos mas num só gemido! Dizem que há gozos no viver d’amores, Só eu não sei em que o prazer consiste! – Eu vejo o mundo na estação das flores... Tudo sorri – mas a minh’alma é triste! IV Minh’alma é triste como o grito agudo Das arapongas no sertão deserto; 72 E como o nauta sobre o mar sanhudo, Longe da praia que julgou tão perto! A mocidade no sonhar florida Em mim foi beijo de lasciva virgem: – Pulava o sangue e me fervia a vida, Ardendo a fronte em bacanal vertigem. De tanto fogo tinha a mente cheia!... No afã da glória me atirei com ânsia... E, perto ou longe, quis beijar a s’reia Que em doce canto me atraiu na infância. Ai! loucos sonhos de mancebo ardente! Esp’ranças altas... Ei-las já tão rasas!... – Pombo selvagem, quis voar contente... – Feriu-me a bala no bater das asas! Dizem que há gozos no correr da vida... Só eu não sei em que o prazer consiste! – No amor, na glória, na mundana lida, Foram-se as flores – a minh’alma é triste! Comentários ao poema Minh’alma é triste O poema se compõe de quatro partes, como a sugerir as quatro estações do ano: o tempo todo minha alma é triste. Vale dizer: em qualquer tempo, no íntimo, sou triste. A tristeza, o tédio da vida, a negação das alegrias são marcas sintomáticas do ultrarromantismo. Dizer o tempo todo é como dizer em qualquer situação. Daí a incondicionalidade da tristeza, do tédio pela vida. Por essas razões ideológico-estilísticas, Minh’alma é triste é exemplo elucidador das construções poéticas desse estilo de época da poesia romântica brasileira. Na primeira parte, através de comparações (alma vs rola, endecha, criança triste), o poema expressa várias ideias de tristeza. Na segunda, a comparação se faz com a “voz do sino” fúnebre, com “hino” de igreja, com uma folha (arrancada do galho) e depois novamente com a rola. Na terceira parte, a “alma” é comparada com uma “flor que morre”, uma flor triste, solitária. Também na terceira parte, surge um desabafo poético, em que se narra a perda do amor, por forças alheias. Contrariamente ao mundo que ri (“Tudo ri”), a alma é triste: a voz lírica sublinha constantemente, desde a primeira parte, essa caraterística do momento ultrarromântico da nossa poesia. Na quarta parte, a comparação se faz com o “grito agudo / Das arapongas no sertão deserto”; como o marinheiro sobre o mar que assusta. Surpreende aqui o leitor a metaforização do mar com o mundo e do navegador com quem vive. Aliás, é bom considerar que as comparações não eliminam as metáforas, que vão construindo breves alegorias, que tecem a grande alegoria do poema. Nessa parte, há fluente sequência 73 metafórica. O poema se encerra, portanto, carregado de metáforas, diferentemente do começo, em que predominam as comparações. Meus oito anos Oh! que saudades que eu tenho Da aurora da minha vida, Da minha infância querida Que os anos não trazem mais! Que amor, que sonhos, que flores, Naquelas tardes fagueiras À sombra das bananeiras, Debaixo dos laranjais! Como são belos os dias Do despontar da existência! Respira a alma inocência Como perfumes a flor; O mar é – lago sereno, O céu – um manto azulado, O mundo – um sonho dourado, A vida – um hino d’amor! Que auroras, que sol, que vida, Que noites de melodia Naquela doce alegria, Naquele ingênuo folgar! O céu bordado d’estrelas, A terra de aromas cheia, As ondas beijando a areia E a lua beijando o mar! Oh! dias da minha infância! Oh! meu céu de primavera! Que doce a vida não era Nessa risonha manhã! Em vez das mágoas de agora, Eu tinha nessas delícias De minha mãe as carícias E beijos de minha irmã! Livre filho das montanhas, Eu ia bem satisfeito, Da camisa aberto o peito, – Pés descalços, braços nus – Correndo pelas campinas À roda das cachoeiras, 74 Atrás das asas ligeiras Das borboletas azuis! Naqueles tempos ditosos Ia colher as pitangas, Trepava a tirar as mangas, Brincava à beira do mar; Rezava às ave-marias, Achava o céu sempre lindo, Adormecia sorrindo E despertava a cantar! Oh! que saudades que tenho Da aurora da minha vida, Da minha infância querida Que os anos não trazem mais! – Que amor, que sonhos, que flores, Naquelas tardes fagueiras À sombra das bananeiras, Debaixo dos laranjais! Comentários ao poema Meus oito anos Poema exemplar da poética de Casimiro de Abreu, Meus oito anos é peça de lirismo marcado pela simplicidade e pela inocência (“Respira a alma inocência, / Como perfumes, a flor”). A inocência foi durante o Romantismo valor exponencial. Não só o texto propriamente dito é simples, como a motivação é toda do lar: pode ser sentido o lugar de fala, o ambiente de casa. As três primeiras estrofes estão construídas com verbos no presente, o que reforça o princípio da inocência de que as coisas são (no agora do poema). Com evidência, isso pode ser confirmado nos quatro últimos versos da segunda estrofe: “O mar é – lago sereno, / O céu – um manto azulado, / O mundo – um sonho dourado, A vida – um hino d’amor!” O verbo aqui é o mesmo: primeiro expresso; depois, elítico. A partir da quarta estrofe, os verbos aparecem no pretérito, numa sugestão de que o mundo assim idealizado foi, já mesmo no presente do poema: a inocência acabou, quer em si mesma, quer na percepção da voz lírica do poema. Em resumo, o poema considera elementos de valor a infância, o passado, a natureza, a inocência, a família, a oração, todos na perspetiva da lembrança ou, se se quiser, da saudade, como parte da crítica tem considerado o olhar lírico de Primaveras. 75 Luís Nicolau FAGUNDES VARELA Fagundes Varela nasceu em 1841 em Rio Claro (RJ) e faleceu em 1875 em Niterói (RJ). Estudou em São Paulo e foi, por algum tempo, colega de Castro Alves na Faculdade de Direito de Recife. Teve vida coerente com a proposta poética que susteve. Obras: Noturnas e O estandarte auriverde (1863), Vozes da América (1864), Cantos e fantasias (1865), Cantos meridionais e Cantos do ermo e da cidade (1869), Anchieta ou o evangelho nas selvas (1875), Cantos religiosos (1878), Diário de Lázaro (1880), A fundação de Piratininga, Ponto negro, O demônio do jogo. Tematicamente, Varela priorizou o retiro junto à natureza, o misticismo, o olhar sobre a América. Cântico do Calvário À memória de Meu Filho, morto a 11 de dezembro de 1863. Eras na vida a pomba predileta Que sobre um mar de angústias conduzia O ramo da esperança. – Eras a estrela Que entre névoas do inverno cintilava Apontando o caminho ao pegureiro. Eras a messe de um dourado estio. Eras o idílio de um amor sublime. Eras a glória, – a inspiração, – a pátria, O porvir de teu pai! – Ah! no entanto, Pomba, – varou-te a flecha do destino! Astro, – engoliu-te o temporal do norte! Teto, caíste! – Crença, já não vives! Correi, correi, oh! lágrimas saudosas, Legado acerbo da ventura extinta, Dúbios archotes que a tremer clareiam A lousa fria de um sonhar que é morto! Correi! Um dia vos verei mais belas Que os diamantes de Ofir e de Golgonda Fulgurar na coroa de martírios Que me circunda a fronte cismadora! São mortos para mim da noite os fachos, Mas Deus vos fez brilhar, lágrimas santas, E à vossa luz caminharei nos ermos! Estrelas do sofrer, – gotas de mágoa, Brando orvalho do céu! – Sede benditas! Oh! filho de minh’alma! Última rosa 76 Que neste solo ingrato vicejava! Minha esperança amargamente doce! Quando as garças vierem do ocidente Buscando um novo clima onde pousarem, Não mais te embalarei sobre os joelhos, Nem de teus olhos no cerúleo brilho Acharei um consolo a meus tormentos! Não mais invocarei a musa errante Nesses retiros onde cada folha Era um polido espelho de esmeralda Que refletia os fugitivos quadros Dos suspirados tempos que se foram! Não mais perdido em vaporosas cismas Escutarei ao pôr do sol, nas serras, Vibrar a trompa sonorosa e leda Do caçador que aos lares se recolhe! Não mais! A areia tem corrido, e o livro De minha infanda história está completo! Pouco tenho de andar! Um passo ainda E o fruto de meus dias, negro, podre, Do galho eivado rolará por terra! Ainda um treno, e o vendaval sem freio Ao soprar quebrará a última fibra Da lira infausta que nas mãos sustenho! Tornei-me o eco das tristezas todas Que entre os homens achei! O lago escuro Onde ao clarão dos fogos da tormenta Miram-se as larvas fúnebres do estrago! Por toda parte em que arrastei meu manto Deixei um traço fundo de agonias!... Oh! Quantas horas não gastei, sentado Sobre as costas bravias do Oceano, Esperando que a vida se esvaísse Como um floco de espuma, ou como o friso Que deixa n’água o lenho do barqueiro! Quantos momentos de loucura e febre Não consumi perdido nos desertos, Escutando os rumores das florestas, E procurando nessas vozes torvas Distinguir o meu cântico de morte! Quantas noites de angústias e delírios Não velei, entre as sombras espreitando A passagem veloz do gênio horrendo 77 Que o mundo abate ao galopar infrene Do selvagem corcel?... E tudo embalde! A vida parecia ardente e douda Agarrar-se a meu ser!... E tu tão jovem, Tão puro ainda, ainda n’alvorada, Ave banhada em mares de esperança, Rosa em botão, crisálida entre luzes, Foste o escolhido na tremenda ceifa! Ah! quando a vez primeira em meus cabelos Senti bater teu hálito suave; Quando em meus braços te cerrei, ouvindo Pulsar-te o coração divino ainda; Quando fitei teus olhos sossegados, Abismos de inocência e de candura, E baixo e a medo murmurei: meu filho! Meu filho! frase imensa, inexplicável, Grata como o chorar de Madalena Aos pés do Redentor... ah! pelas fibras Senti rugir o vento incendiado Desse amor infinito que eterniza O consórcio dos orbes que se enredam Dos mistérios do ser na teia augusta! Que prende o céu à terra e a terra aos anjos! Que se expande em torrentes inefáveis Do seio imaculado de Maria! Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem! E de meu erro a punição cruenta Na mesma glória que elevou-me aos astros, Chorando aos pés da cruz, hoje padeço! O som da orquestra, o retumbar dos bronzes, A voz mentida de rafeiros bardos, Torpe alegria que circunda os berços Quando a opulência doura-lhe as bordas, Não te saudaram ao sorrir primeiro, Clícia mimosa rebentada à sombra! Mas ah! se pompas, esplendor faltaram-te, Tiveste mais que os príncipes da terra! Templos, altares de afeição sem termos! Mundos de sentimento e de magia! Cantos ditados pelo próprio Deus! Oh! quantos reis que a humanidade aviltam, E o gênio esmagam dos soberbos tronos, Trocariam a púrpura romana 78 Por um verso, uma nota, um som apenas Dos fecundos poemas que inspiraste! Que belos sonhos! Que ilusões benditas! Do cantor infeliz lançaste à vida. Arco-íris do amor! Luz da aliança, Calma e fulgente em meio da tormenta! Do exílio escuro a cítara chorosa Surgiu de novo e às virações errantes Lançou dilúvios de harmonias! – O gozo Ao pranto sucedeu. As férreas horas Em desejos alados se mudaram. Noites fugiam, madrugadas vinham, Mas sepultado num prazer profundo Não te deixava o berço descuidoso, Nem de teu rosto meu olhar tirava, Nem de outros sonhos que dos teus vivia! Como eras lindo! Nas rosadas faces Tinhas ainda o tépido vestígio Dos beijos divinais, – nos olhos langues Brilhava o brando raio que acendera A bênção do Senhor quando o deixaste! Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos, Filhos do éter e da luz, voavam, Riam-se alegres, das caçoilas níveas Celeste aroma te vertendo ao corpo! E eu dizia comigo: – teu destino Será mais belo que o cantar das fadas Que dançam no arrebol, – mais triunfante Que o sol nascente derribando ao nada Muralhas de negrume!... Irás tão alto Como o pássaro-rei do Novo Mundo! Ai! doudo sonho!... Uma estação passou-se, E tantas glórias, tão risonhos planos Desfizeram-se em pó! O gênio escuro Abrasou com seu facho ensanguentado Meus soberbos castelos. A desgraça Sentou-se em meu solar, e a soberana Dos sinistros impérios de além-mundo Com seu dedo real selou-te a fronte! Inda te vejo pelas noites minhas, Em meus dias sem luz vejo-te ainda, Creio-te vivo, e morto te pranteio!... Ouço o tanger monótono dos sinos, 79 E cada vibração contar parece As ilusões que murcham-se contigo! Escuto em meio de confusas vozes, Cheias de frases pueris, estultas, O linho mortuário que retalham Para envolver teu corpo! Vejo esparsas Saudades e perpétuas, – sinto o aroma Do incenso das igrejas, – ouço os cantos Dos ministros de Deus que me repetem Que não és mais da Terra!... E choro embalde. Mas não! Tu dormes no infinito seio Do Criador dos seres! Tu me falas Na voz dos ventos, no chorar das aves, Talvez das ondas no respiro flébil! Tu me contemplas lá do céu, quem sabe, No vulto solitário de uma estrela, E são teus raios que meu estro aquecem! Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho! Brilha e fulgura no azulado manto, Mas não te arrojes, lágrima da noite, Nas ondas nebulosas do ocidente! Brilha e fulgura! Quando a morte fria Sobre mim sacudir o pó das asas, Escada de Jacó serão teus raios Por onde asinha subirá minh’alma. Comentários ao poema Cântico do Calvário O poema Cântico do Calvário representa bem várias tendências da produção poética de Fagundes Varela. O título, por exemplo, expressa e sugere, o que Fagundes Varela geralmente fez bem. Expressa, no sentido de ir buscar do íntimo sentimentos e reflexões às vezes espontâneas e imediatas, às vezes demonstrando espontaneidade, mas sempre com pouco ou muito trabalho discursivo. Há esforço constante de o poema expressar subliminarmente derramamento, prioritário sobre a realização. Sugere traços místicos (Fagundes Varela poetizou fartamente o misticismo) como no poema em questão, tanto como relação místico-cristã, quanto como simbologia cristã do sofrimento. O poema abre por sequência metafórica que vai constituindo alegorias, algumas bem conhecidas: “Eras na vida a pomba predileta / Que sobre um mar de angústias conduzia / O ramo da esperança.” Essa pomba é a do mito bíblico do dilúvio: sobre o mar de angústias (sofrimentos do mundo) leva o ramo da esperança. “– Eras a estrela / Que entre as névoas do inverno cintilava / 80 Apontando o caminho ao pegureiro”: A metáfora da estrela aponta ao etéreo, à luz permanente (símbolo de Deus), à distância inatingível. É o farol que guia o viajante. “Eras a messe de um dourado estio. / Eras o idílio de um amor sublime. / Eras a glória, a inspiração, a pátria, / O porvir de teu pai!”. O filho era colheita, arrimo, glória, inspiração, pátria, porvir – todos se mostram semas de esperança e segurança, que se desfizeram na morte. As metáforas continuam: “Pomba – varou-te a flecha do destino! / Astro – engoliu-te o temporal do norte! / Teto, caíste! – Crença, já não vives!” De todos os índices, no entanto, a estrela é o que permanece, como se lê na conclusão do poema: “Tu me contemplas lá do céu, quem sabe, / No vulto solitário de uma estrela, / E são teus raios que meu estro aquecem!” Ela é o caminho para a subida ao encontro do filho morto, por isso é “lágrima da noite”: “Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho! / Brilha e fulgura no azulado manto, / Mas não te arrojes, lágrima da noite, / Nas ondas nebulosas do ocidente!” A estrela, a luz, a imagem do filho constituem o ponto referencial que há de permanecer para lhe possibilitar a elevação espiritual: “Brilha e fulgura! Quando a morte fria / Sobre mim sacudir o pó das asas, / Escada de Jacó serão teus raios / Por onde asinha subirá minh’alma”. É notável como a voz lírica se funde na do próprio texto, nesses poemas parcialmente confessionais. Seja por isso permitido dizer que o subjetivismo ultrarromântico às vezes chega ao máximo, a ponto de configurar um quase amálgama entre mundo concreto-sensorial e o lírico. Cabe ainda destacar “o pássaro-rei do Novo Mundo” (sétima estrofe). Ele é o condor, que haveria de virar símbolo da América, como a enxergaram os românticos, especialmente na terceira fase poética. Essa é a razão do nome que a destaca – condoreirismo. Vale dizer: já no ultrarromantismo começava-se a vaticinar a transformação da América como um todo, de colonizada em soberana. O poema Cântico do Calvário exemplifica portanto várias tendências da produção poética de Fagundes Varela, como a expressão do indivíduo sofrido num mundo que se pode compreender em vista da redenção cristã, a sugestividade do poema gerado meio espontaneamente no berço do gênio, a valorização de símbolos de espiritualidade. Espontaneidade foi força buscada pelos românticos em geral, a fim de mais claramente expor o indivíduo (o indivisível ou inigualável) que há em cada um. Gênio foi também concepção romântica para a força íntima do indivíduo, que é capaz, à sombra de Deus, criar espontaneamente. 81 Luís José JUNQUEIRA FREIRE Junqueira Freire nasceu em Salvador (BA) em 1832 e faleceu na mesma cidade, em 1855. Com Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Fagundes Varela forma a quadríade mais conhecida do ultrarromantismo brasileiro. Sua primeira obra foi Autobiografia (1854), em que o poeta, na forma do sujeito lírico dos textos, se dilata em senso agudo de autoanálise. Ao mesmo tempo, cuidou da impressão de uma coletânea de versos, a que deu o nome de Inspirações do claustro, impressa na Bahia pouco antes de morrer, aos 23 anos, motivada por moléstia cardíaca de que sofria desde a infância. Desejo (Hora do delírio) Se além dos mundos esse inferno existe, Essa pátria de horrores, Onde habitam os tétricos tormentos, As inefáveis dores; Se ali se sente o que jamais na vida O desespero inspira: Se o suplício maior, que a mente finge, A mente ali respira; Se é de compacta, de infinita brasa O solo que se pisa: Se é de fogo, e fumo, e súlfur, e terrores Tudo que ali se visa; Se ali se goza um gênero inaudito De sensações terríveis; Se ali se encontra esse real de dores Na vida não possíveis; Se é verdade esse quadro, imaginam As seitas dos cristãos; Se esses demônios, anjos maus, ou fúrias, Não são uns erros vãos; Eu – que tenho provado neste mundo As sensações possíveis; Que tenho ido da afeição mais terna Às penas mais incríveis; Eu – que tenho pisado o colo altivo De vária e muita dor; Que tenho sempre das batalhas dela 82 Surgido vencedor; Eu – que tenho arrostado imensas mortes, E que pareço eterno; Eu quero de uma vez morrer p’ra sempre, Entrar por fim no inferno! Eu quero ver se encontro ali no abismo Um tormento invencível: Desses que achá-los na existência toda Jamais será possível! Eu quero ver se encontro alguns suplícios, Que o coração me domem; Quero lhe ouvir esta palavra incógnita: Chora por fim, – que és homem! Que, de arrostar as dores desta vida, Quase pareço eterno! Estou cansado de vencer o mundo, Quero vencer o inferno! Comentários ao poema Desejo Junqueira Freire representa, entre os poetas do ultrarromantismo brasileiro, a voz mais contundente. A voz lírica do poema não oscila entre o desejo de ficar e partir. Expõe claramente seu desejo, às vezes de forma ardente, de despedirse do mundo. A força dos poemas de Junqueira Freire, que ultrapassam as investidas dos moços dessa geração romântica, parece vir da descrença. O lirismo que o constitui demonstra insistente desafio à crença em entidades criadas para castigar. Entende o mundo já como espaço existencial de sofrimento e se diz, em Desejo, vitorioso sobre esse mundo. A esperança que acalenta é de “vencer o inferno”. RITA BARÉM de Melo Nasceu em Porto Alegre em 1840 e faleceu em Rio Grande, em 1868, aos 28 anos. Estreou aos dezesseis anos no semanário O Guaíba (1856-1858), editado sob os auspícios da Sociedade Partenon Literário, utilizando o pseudônimo Juriti. A escritora despontou como integrante da primeira geração romântica no Rio Grande do Sul, correspondente tematicamente ao ultrarromantismo ou segundo estilo de época do Romantismo brasileiro. há poemas, como o que a seguir se lerá, que apontam a preocupações sociais referente às camadas sociais, que viria à baila com o condoreirismo. Nesse sentido, antecede a produção castralvina, considerando que Os escravos saiu em 1876. Sua obra, Sorrisos e prantos (1868), reúne poemas escritos entre 1854 83 e 1867, dos quais a maioria é datada de 1856. Além dos franceses Lamartine, A. Dumas e Victor Hugo, observam-se em sua obra leituras de poetas portugueses, Camões, Garret, Herculano e outros. Foi leitora perspicaz também de seus contemporâneos brasileiros, como Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, além do gaúcho Félix da Cunha. O soldado no Paraguai Esta guerra não se acaba Ai! de ti, pobre soldado! Pra ti o pior bocado, De glória o menor quinhão. Nas partes oficiais – Seja dito de passagem – Pois não te falta coragem Para – especial – menção. Mas somos tantos os bravos, Para falar a verdade, Nós, braços da liberdade, Soldados de coração. Que prêmios se no-los dessem De quantos mister seria?! E teriam mais valia Que as nossas feridas? Não! Nesta lida sem descanso Vou cantando a sorte dura: Esta guerra quanto dura A sorver sangue e dinheiro! Canto: fumega o churrasco Passam belas argentinas, É milhafre d’esterlinas Aquele riso matreiro. Mas eu c’o a minha morena Em dia de soldo pago, À viola bebo um trago E a saudade assim mitigo. Saudade sim! Pois não pungem Nas horas de desalento As garras desse tormento Distante do lar amigo? Mas soe a hora da luta, E o soldado que chorava, 84 Mostrará na lide brava Que o leão se faz herói! Então nem pai, nem esposa, Nem filhos nem mãe relembra, Só a vingança me lembra Que ofendida a pátria foi! Corrientes ficou rica... Ouro inglês aqui é mato, Tem enchido tanto rato Que já temos ratões de ouro! Lá na terra oriental Ouro fino é como terra: Viva a pátria! viva a guerra! Viva o brasíleo tesouro! Tira o pobre aos filhos tenros Uma fatia de pão Para ajudar a Nação A encher as bolsas de... ouro, Mas os grandes, certamente, Também dão belo quinhão! O pobre dá sangue e pão... O rico?... Viva o tesouro! Rio Grande, 8 de dezembro de 1867. Comentários ao poema O soldado no Paraguai Embora a predominância temático-estilística do livro Sorrisos e prantos seja de conformação ultrarromântica, como foi o ultrarromantismo no Brasil, o poema selecionado para comentário foi o Soldado no Paraguai. É que esse poema se carateriza por expressiva consciência ideológico-política sobre episódio polarizante da época: a Guerra do Paraguai. A forma como o poema examina a questão destoa do que em geral foi feito na época. Não se lê nada de exposição de heroísmos de chefes poderosos; nada de júbilo por vitórias mirabolantes; tampouco se esquecem – principalmente – o sofrimento nem a ganância que acompanham as guerras. Mais: a perspetiva é do indivíduo insignificante perdido na multidão numérica sob resoluções dos agrupamentos sociais no poder. Cabe outrossim destacar a simplicidade discursiva (vocabulário, sintaxe, rimas e estrofes). Ideologicamente o poema se aproxima dos condoreiros; estilisticamente se afasta deles. Estilisticamente se aproxima de alguns poetas ultrarromânticos brasileiros; ideologicamente se afasta deles. O poema se conclui pelo grito de revolta contra as desonestidades praticadas pelos “grandes” contra o erário e pela delação contra os conluios sociais que acarretam sofrimentos e empobrecimentos dos pequenos. 85 JOSÉ Martiniano de ALENCAR José de Alencar (1829-1877), político, jornalista, advogado e escritor brasileiro, nasceu em Mecejana (CE). Formou-se em Direito e foi jornalista no Rio de Janeiro. Faleceu no Rio de Janeiro. Sua vasta obra romanesca costuma ser dividida em três conjuntos: (1º) romances urbanos: Cinco minutos (1860), A viuvinha (1860), Lucíola (1862), Diva (1864), A pata da gazela (1870), Sonhos d’ouro (1872), Senhora (1875) e Encarnação (1877); (2º) romances históricos: O guarani (1870), Iracema (1865), As minas de prata (1862), Alfarrábios (1873), A guerra dos mascates (1873) e Ubirajara (1874); (3º) romances regionalistas: O gaúcho (1870), O tronco do ipê (1871), Til (1872), O sertanejo (1876). Apesar de essa divisão ser discutível – alguns romances classificados como históricos soem ser igualmente classificados como indianistas – ela auxilia no estudo da obra do mais renomado romancista romântico brasileiro. Alencar criou literatura de base nacionalista e defensora de valores morais a favor dos quais sempre propugnou. Conseguiu captar e reelaborar em romances e dramas aspetos do sentir e do pensar de muitos brasileiros. A gigantesca meta que se propôs na construção da obra romanesca que nos legou foi elaborar grande painel do Brasil, desde as origens – do contato dos portugueses com os ameríndios – até as primeiras construções étnico-culturais brasileiras. São exemplos desse esforço O guarani, Iracema, A guerra dos mascates, Ubirajara, O gaúcho, O tronco de ipê, O sertanejo. O guarani (capítulo 4 – Caçada) Quando a cavalgata chegou à margem da clareira, aí se passava uma cena curiosa. Em pé, no meio do espaço que formava a grande abóbada de árvores, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um índio na flor da idade. Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam aimará, apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates, caía-lhe dos ombros até ao meio da perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem. Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor do cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto pouco oval a beleza inculta da graça, da força e da inteligência. 86 Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro, à qual se prendiam do lado esquerdo duas plumas matizadas, que descrevendo uma longa espiral, vinham roçar com as pontas negras o pescoço flexível. Era de alta estatura; tinha as mãos delicadas; a perna ágil e nervosa, ornada com uma axorca de frutos amarelos, apoiava-se sobre um pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida. Segurava o arco e as flechas com a mão direita caída, e com a esquerda mantinha verticalmente diante de si um longo forcado de pau enegrecido pelo fogo. Perto dele estava atirada ao chão uma clavina tauxiada, uma pequena bolsa de couro que devia conter munições, e uma rica faca flamenga, cujo uso foi depois proibido em Portugal e no Brasil. Nesse instante erguia a cabeça e fitava os olhos numa sebe de folhas que se elevava a vinte passos de distância, e se agitava imperceptivelmente. Ali por entre a folhagem, distinguiam-se as ondulações felinas de um dorso negro, brilhante, marchetado de pardo; às vezes viam-se brilhar na sombra dois raios vítreos e pálidos, que semelhavam os reflexos de alguma cristalização de rocha, ferida pela luz do sol. Era uma onça enorme; de garras apoiadas sobre um grosso ramo de árvore, e pés suspensos no galho superior, encolhia o corpo, preparando o salto gigantesco. Batia os flancos com a larga cauda e movia a cabeça monstruosa, como procurando uma aberta entre a folhagem para arremessar o pulo; uma espécie de riso sardônico e feroz contraía-lhe as negras mandíbulas e mostrava a linha de dentes amarelos; as ventas dilatadas aspiravam fortemente e pareciam deleitar-se já com o odor do sangue da vítima. O índio, sorrindo e indolentemente encostado ao tronco seco, não perdia um só desses movimentos, e esperava o inimigo com a calma e serenidade do homem que contempla uma cena agradável: apenas a fixidade do olhar revelava um pensamento de defesa. Assim, durante um curto instante, a fera e o selvagem mediram-se mutuamente, com os olhos nos olhos um do outro; depois o tigre agachou-se e ia formar o salto, quando a cavalgata apareceu na entrada da clareira. Então o animal, lançando ao redor um olhar injetado de sangue, eriçou o pelo, e ficou imóvel no mesmo lugar, hesitando se devia arriscar o ataque. O índio, que ao movimento da onça acurvara ligeiramente os joelhos e apertava o forcado, endireitou-se de novo; sem deixar a sua posição, nem tirar os olhos do animal, viu a banda que parara à sua direita. Estendeu o braço e fez com a mão um gesto de rei, que rei das florestas ele era, intimando os cavaleiros que continuassem a sua marcha. 87 Como, porém, o italiano, com o arcabuz em face, procurasse fazer a pontaria entre as folhas, o índio bateu com o pé no chão em sinal de impaciência, e exclamou apontando para o tigre e levando a mão ao peito: – É meu!... meu só! Estas palavras foram ditas em português, com uma pronúncia doce e sonora, mas em tom de energia e resolução. O italiano riu. – Por Deus! Eis um direito original! Não quereis que se ofenda a vossa amiga?... Está bem, dom cacique, continuou, lançando o arcabuz a tiracolo; ela vo-lo agradecerá. Em resposta a esta ameaça, o índio empurrou desdenhosamente com a ponta do pé a clavina que estava atirada ao chão, como para exprimir que, se ele o quisesse, já teria abatido o tigre de um tiro. Os cavaleiros compreenderam o gesto, porque, além da precaução necessária para o caso de algum ataque direto, não fizeram a menor demonstração ofensiva. Tudo isso se passou rapidamente, em um segundo, sem que o índio deixasse um só instante com os olhos o inimigo. A um sinal de Álvaro de Sá, os cavaleiros prosseguiram a sua marcha e entranharam-se de novo na floresta. O tigre, que observava os cavaleiros, imóvel, com o pelo eriçado, não ousara investir nem retirar-se, temendo expor-se aos tiros dos arcabuzes; mas apenas viu a tropa distanciar-se e sumir-se no fundo da mata, soltou um novo rugido de alegria e contentamento. Ouviu-se um rumor de galhos que se espedaçavam como se uma árvore houvesse tombado na floresta, e o vulto negro da fera passou no ar; de um pulo tinha ganho outro tronco e metido entre ela e o seu adversário uma distância de trinta palmos. O selvagem compreendeu imediatamente a razão disso: a onça, com os seus instintos carniceiros e a sede voraz de sangue, tinha visto os cavalos e desdenhava o homem, fraca presa para saciá-la. Com a mesma rapidez com que formulou este pensamento, tomou na cinta uma flecha pequena e delgada como espinho de ouriço e esticou a corda do grande arco, que excedia de um terço à sua altura. Ouviu-se um forte sibilo, que foi acompanhado por um bramido da fera; a pequena seta despedida pelo índio se cravara na orelha, e uma segunda, açoitando o ar, ia ferir-lhe a mandíbula inferior. O tigre tinha-se voltado ameaçador e terrível, aguçando os dentes uns nos outros, rugindo de fúria e vingança: de dois saltos aproximou-se novamente. 88 Era uma luta de morte a que ia se travar; o índio o sabia, e esperou tranquilamente, como da primeira vez; a inquietação que sentira um momento de que a presa lhe escapasse, desaparecera: estava satisfeito. Assim, estes dois selvagens das matas do Brasil, cada um com as suas armas, cada um com a consciência de sua força e de sua coragem, consideravam-se mutuamente como vítimas que iam ser imoladas. O tigre desta vez não se demorou; apenas se achou a coisa de quinze passos do inimigo, retraiu-se com uma força de elasticidade extraordinária e atirou-se como um estilhaço de rocha, cortada pelo raio. Foi cair sobre o índio, apoiado nas largas patas de trás, com o corpo direito, as garras estendidas para degolar a sua vítima, e os dentes prontos a cortar-lhe a jugular. A velocidade deste salto monstruoso foi tal, que, no mesmo instante em que se vira brilhar entre as folhas os reflexos negros de sua pele azevichada, já a fera tocava o chão com as patas. Mas tinha em frente um inimigo digno dela, pela força e agilidade. Como a princípio, o índio havia dobrado um pouco os joelhos, e segurava na esquerda a longa forquilha, sua única defesa; os olhos sempre fixos magnetizavam o animal. No momento em que o tigre se lançara, curvou-se ainda mais; e fugindo com o corpo apresentou o gancho. A fera, caindo com a força do peso e a ligeireza do pulo, sentiu o forcado cerrar-lhe o colo e vacilou. Então, o selvagem distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote; fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça, que, subjugada, prostrada de costas, com a cabeça presa ao chão pelo gancho, debatia-se contra o seu vencedor, procurando debalde alcançá-lo com as garras. Esta luta durou minutos; o índio, com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça, e o corpo inclinado sobre a forquilha, mantinha assim imóvel a fera, que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem. Quando o animal, quase asfixiado pela estrangulação, já não fazia senão uma fraca resistência, o selvagem, segurando sempre a forquilha, meteu a mão debaixo da túnica e tirou uma corda de ticum que tinha enrolada à cintura em muitas voltas. Nas pontas desta corda havia dois laços que ele abriu com os dentes e passou nas patas dianteiras ligando-as fortemente uma à outra; depois fez o mesmo às pernas e acabou por amarrar as duas mandíbulas, de modo que a onça não pudesse abrir a boca. Feito isso, correu a um pequeno arroio que passava perto; e enchendo de água uma folha de cajueiro-bravo, que tornou cova, veio borrifar a cabeça da fera. Pouco a pouco o animal ia tornando a si; e o seu vencedor aproveitava este 89 tempo para reforçar os laços que o prendiam, e contra os quais toda a força e agilidade do tigre seriam impotentes. Neste momento uma cutia tímida e arisca apareceu na lezíria da mata, e adiantando o focinho, escondeu-se arrepiando o seu pelo vermelho e afogueado. O índio saltou sobre o arco e abateu-a daí a alguns passos no meio da carreira; depois, apanhando o corpo do animal que ainda palpitava, arrancou a flecha e veio deixar cair nos dentes da onça as gotas do sangue quente e fumegante. Apenas o tigre moribundo sentiu o odor da carniça, e o sabor do sangue que filtrando entre as presas caíra na boca, fez uma contorção violenta, e quis soltar um urro que apenas exalou-se num gemido surdo e abafado. O índio sorria, vendo os esforços da fera para arrebentar as cordas que a atavam de maneira que não podia fazer um movimento, a não serem essas retorções do corpo, em que debalde se agitava. Por cautela tinha-lhe ligado até os dedos uns aos outros para privar-lhe que pudesse usar das unhas longas e retorcidas, que são a sua arma mais terrível. Quando o índio satisfez o prazer de contemplar o seu cativo, quebrou na mata dois galhos secos de biribá, e roçando rapidamente um contra o outro, tirou fogo pelo atrito e tratou de preparar a sua caça para jantar. Em pouco tempo tinha acabado a selvagem refeição, que ele acompanhou com alguns favos de mel de uma pequena abelha que fabrica as suas colmeias no chão. Foi ao regato, bebeu alguns goles de água, lavou as mãos, o rosto e os pés, e cuidou em pôr-se a caminho. Passando pelas patas do tigre o seu longo arco que suspendeu ao ombro, e vergando ao peso do animal que se debatia em contorções, tomou a picada por onde tinha seguido a cavalgata. Momentos depois, no lugar desta cena já deserto, entreabriu-se uma moita espessa e surdiu um índio completamente nu, ornado apenas com uma trofa de penas amarelas. Lançou ao redor um olhar espantado, examinou cautelosamente o fogo que ardia ainda e os restos da caça; deitou-se encostando o ouvido em terra e assim ficou algum tempo. Depois se ergueu e entranhou de novo pela floresta, na mesma direção que o outro tomara pouco tempo antes. Comentários ao capítulo Caçada do romance O guarani A escolha desse capítulo para estudo tem várias finalidades. A primeira é mostrar a técnica de construção do capítulo caraterístico do folhetim. É a razão que fez com que o “índio completamente nu” aparecesse após a saída de Peri do centro da cena. Como se pôde observar, Peri está vestido. Esse aspeto tem 90 descrição razoavelmente detalhada. O fato de estar vestido organiza um conjunto de signos que o identificam com a vestimenta dos brancos. Isso lhe dá sinais de civilização, de que o outro carece. O índio nu observa, escuta, ou seja, lê a situação e – é o que texto sugere – segue os passos do outro. Nesse momento, o capítulo se encerra. O leitor vai supostamente querer saber o que aconteceu. Por isso vai se abrir outro capítulo, no próximo capítulo do folhetim. Essa técnica é mantida até nossos dias no que se tem chamado de folhetim eletrônico, as telenovelas. A segunda finalidade é examinar a presença do personagem prototípico, o índio brasileiro que o Romantismo construiu e a valorização das culturas originais e peculiares. A beleza física e a coragem dele procuram aproximar dos habitantes nativos do Brasil valores que os conquistadores-colonizadores valorizavam. Assim é também porque o índio é “rei das florestas”. Os europeus não conseguiam, então, conceber o mundo sem a presença, ainda que falseada, do rei, como guia da organização política. Antes do Romantismo não havia nações; havia reinos. A concepção de indivíduo que os românticos elaboraram permitiu tanto a livre exposição de formas pessoais e íntimas de expressar e comunicar, como a construção político-social das nações e das repúblicas. Nações são individuações sociais étnico-culturais. Assim como cada indivíduo pessoal é especial e único, assim especiais e únicos são os grupos socioculturais, as nações. A terceira é mostrar a sucinta e implícita justificativa do narrador a respeito do nome do guarani – Peri. Peri significa junco selvagem, forma vegetal elegante, de grande resistência às intempéries, como o vento e a correnteza. O junco flexível dobra, mas não quebra; passadas as violências da natureza, ele recupera sua posição vertical e bela. A quarta é demonstrar o jogo maniqueísta na construção dos personagens. Nesta pequena análise, interessam-nos o “italiano” e o índio guarani de nome Peri, a partir do qual se compõe o título do romance. Como em Iracema, em O guarani a narrativa procura estabelecer o mito (a fala do princípio) sobre a geração dos brasileiros. Os brasileiros devem provir das relações em todos os sentidos dos portugueses e dos índios bons. O índio nu não é bom. Maniqueistamente falando, se não for bom, é mau. Loredano, o italiano, carrega semas do mal, na ótica romântica: é estrangeiro (nem lusitano nem brasileiro), é apóstata, maneja armas de fogo e só com elas se sente seguro; além disso, demonstra-se, ao longo da narrativa, traiçoeiro e concupiscente. Por raciocínio análogo, se não é bom, Loredano é mau. Vale dizer: é o mal da civilização, como o índio nu é o mal da floresta. O índio deve ser originalmente bom, é filho da natureza como Deus a criou, a natureza boa que produz o homem puro, tese caraterística do Romantismo. Esse é o denominado mito do bom selvagem, pensamento oriundo do Liberalismo de origem francesa; mais precisamente, da construção ideológica rousseauniana. 91 Loredano se socorre da arma de fogo para enfrentar as forças da natureza. Peri usa os recursos que lhe permitiriam aprisionar a onça, porque a queria viva. Se quisesse, tê-la-ia matado, porque tinha também, jogada no chão, uma clavina. Por desprezar a cultura nativa do Brasil, Loredano ironiza Peri, ao referirse a ele como “dom cacique”. Dom é forma que os europeus (ibéricos) usavam para designar os fidalgos. Corrosivo se mostra ao dizer que era um “direito original” de Peri o de enfrentar a onça: subliminarmente imprime relação entre irracionais. Essas faltas cometidas condenam definitivamente o personagem ao mal, irreversivelmente. Essa relação entre a falta do estrangeiro e o pecado da perdição eterna é igualmente coerente com a posição ideológica de grande parte dos textos românticos, uma vez que o Romantismo se manteve aderente quase sempre a princípios do Cristianismo. Iracema (1881), por José Maria de Medeiros (1849-1925). Iracema (capítulo 1) Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba; Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros; Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas. Aonde vai a afouta jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fresco terral a grande vela? Aonde vai como branca alcíone buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano? Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora. 92 Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano: uma criança e um rafeiro que viram a luz no berço das florestas, e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem. A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que ressoa entre o marulho das vagas: – Iracema ! O moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos presos na sombra fugitiva da terra; a espaços o olhar empanado por tênue lágrima cai sobre o jirau, onde folgam as duas inocentes criaturas, companheiras de seu infortúnio. Nesse momento o lábio arranca d'alma um agro sorriso. Que deixara ele na terra do exílio? Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci, à calada da noite, quando a lua passeava no céu argenteando os campos, e a brisa rugitava nos palmares. Refresca o vento. O rulo das vagas precipita. O barco salta sobre as ondas e desaparece no horizonte. Abre-se a imensidade dos mares; e a borrasca enverga, como o condor, as foscas asas sobre o abismo. Deus te leve a salvo, brioso e altivo barco, por entre as vagas revoltas, e te poje nalguma enseada amiga. Soprem para ti as brandas auras: e para ti jaspeie a bonança mares de leite! Enquanto vogas assim à discrição do vento, airoso barco, volva às brancas areias a saudade, que te acompanha, mas não se parte da terra onde revoa. Iracema (capítulo 33) O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Ceará, levando no frágil barco o filho e o cão fiel. A jandaia não quis deixar a terra onde repousava sua amiga e senhora. O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra pátria. Havia aí a predestinação de uma raça? Poti levantava a taba de seus guerreiros na margem do rio e esperava o irmão que lhe prometera voltar. Todas as manhãs subia ao morro das areias e volvia os olhos ao mar, para ver se branqueava ao longe a vela amiga. Afinal volta Martim de novo às terras, que foram de sua felicidade, e são agora de amarga saudade. Quando seu pé sentiu o calor das brancas areias, em seu coração derramou-se um fogo, que o requeimou: era o fogo das recordações que ardiam como a centelha sob as cinzas. 93 Só aplacou essa chama quando ele tocou a terra, onde dormia sua esposa; porque nesse instante seu coração transudou, como o tronco do jataí nos ardentes calores, e orvalhou sua tristeza de lágrimas abundantes. Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para fundar com ele a mairi dos cristãos. Veio também um sacerdote de sua religião, de negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem. Poti foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho; não sofria ele que nada mais o separasse de seu irmão branco. Deviam ter ambos um só deus, como tinham um só coração. Ele recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei, a quem ia servir, e sobre os dous o seu, na língua dos novos irmãos. Sua fama cresceu e ainda hoje é o orgulho da terra, onde ele primeiro viu a luz. A mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará, medrou. Germinou a palavra do Deus verdadeiro na terra selvagem; e o bronze sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá. Jacaúna veio habitar nos campos da Porangaba para estar perto de seu amigo branco; Camarão erguera a taba de seus guerreiros nas margens da Mecejana. Tempo depois, quando veio Albuquerque, o grande chefe dos guerreiros brancos, Martim e Camarão partiram para as margens do Mearim a castigar o feroz tupinambá e expulsar o branco tapuia. Era sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas onde fora tão feliz, e as verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara. Muitas vezes ia sentar-se naquelas doces areias, para cismar e acalentar no peito a agra saudade. A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro; mas não repetia já o mavioso nome de Iracema. Tudo passa sobre a terra. Comentários aos capítulos 1 e 33 de Iracema As primeiras observações que o leitor é levado a fazer, ao iniciar a leitura do primeiro capítulo do romance Iracema, são o vocabulário, marcado por neologismos (considerada a língua portuguesa então usual) advindos do emprego de formas de falares ameríndios brasileiros; a sintaxe, que empresta ao discurso literário peculiaridades que acabam por caraterizar o romance todo; a pontuação especial usada: há parágrafos que terminam por ponto-e-vírgula, sinal de pontuação tradicionalmente inadequado a essa finalidade; o ritmo, que sinaliza a relação constante entre prosa e verso, ou limites frágeis entre as duas formas lítero-expressivas. Esse conjunto de quatro itens constrói o discurso literário de Iracema, ao longo do romance. Embora haja outros romances chamados igualmente de indianistas, do mesmo autor, nenhum é como Iracema. 94 O primeiro capítulo introduz a narração com vocativo aos “verdes mares bravios da minha terra”. Uma jangada que leva “três entes” que partem das praias do Brasil em demanda da Europa. O sofrimento marca a aparência de Martim, o herói lusitano, em decorrência da morte da amada, Iracema, cuja história ainda o leitor não leu. O último capítulo de Iracema dá conta do retorno dos viajantes descritos no primeiro. Vêm agora acompanhados de outros portugueses para construir a primeira cidade brasileira. A narrativa define também opções do novo povo, como a religião e a paz. A ausência de Iracema continua a ser sentida. Estampase nesse capítulo, ainda, um aforismo que marca concepção da transformação do mundo. A pata da gazela (capítulo 18) Laura e Amélia eram primas e amigas de infância; havia entre elas apenas a diferença de dezoito meses. Desde a idade de três ou quatro anos, isto é, desde que deixou as faixas, Laura usou sempre de roupas compridas. Isso causava reparo a todos que viam a menina trajada como uma senhora. Muitos achavam extravagante e ridículo o capricho e censuravam a mãe. Esta ouvia as censuras de suas amigas, assim como os motejos estranhos, e calava-se; mas não alterava o vestuário da menina. A ternura e piedade materna lhe davam a paciência necessária para arrostar com as zombarias do mundo. Laura tinha um aleijão; nascera com os pés disformes. Para mais agravar o desgosto dos pais, essa monstruosidade vinha ligada a uma beleza angélica. A senhora avaliou do infortúnio de sua filha, e preparou-se para todos os sacrifícios. Consultas foram dirigidas aos melhores médicos da Europa; chegou a empreender uma viagem para tentar os recursos da ciência; foram todos ineficazes. Desenganada afinal, dedicou-se a esconder a desgraça de sua filha, a fim de que ela não fosse obrigada a envergonhar-se na sociedade. Durante muito tempo Laura não teve outra criada, além de sua mãe. À custa de esforços constantes, de uma vigilância incessante de cada dia e cada hora, conseguiu a senhora manter esse segredo de família, do qual dependia a felicidade da filha. Atingindo a idade de oito anos, a menina com o instinto de mulher, compreendera seu infortúnio: e desde então descansou a mãe daquele cuidado incessante. Ficando moça casou-se, e seu marido que amava estremecidamente morreu ignorando o segredo. Com bastante mágoa sua, Amélia surpreendeu o segredo da prima e amiga. A filha de Sales tinha dois pezinhos de fada, breves, arqueados, com uns dedos que pareciam botões de rosa. O desgosto e vexame que isso causava à moça, ninguém o imagina. Ela supunha-se aleijada; apesar de seus 18 anos, seus pés eram de menina. 95 Assim o mesmo cuidado com que Laura escondia a sua monstruosidade, punha ela em ocultar essa graça e prenda da natureza. Naquele tempo não se tinha introduzido ainda a moda dos vestidos curtos; bem ao contrário, o tom era arrastar desdenhosamente pelo chão a longa fímbria do vestido. Um dia que Laura passou em sua casa, Amélia teve curiosidade de comparar seu pezinho com o da prima, para saber se a diferença era excessiva. Enquanto a outra endireitava o penteado no toucador, realizou ela seu intento. Avalie-se da vergonha e aflição de Laura; o desespero de Amélia foi maior ainda. Não perdoava a si mesma o ter causado tão grande pesar à prima, a quem ela queria muito bem. Para mitigar essa dor profunda, Laura esqueceu a sua. Desde então as duas amigas se consolavam mutuamente. Laura admirava o pezinho de Amélia; esta, ou sinceramente, ou para atenuar a mágoa da prima, chegava a invejar o seu infortúnio. Aborrecida de não encontrar nas lojas calçado que lhe servisse, Amélia tinha descoberto por acaso o sapateiro da Rua Sete de Setembro. Conhecendo a habilidade do Matos, pensou que ele pudesse disfarçar o defeito da prima. Não se enganou; o artista realizara a obra-prima de paciência, que Leopoldo tivera ocasião de apreciar por um acaso. Amélia fez a Laura o sacrifício de expor-se para não comprometer o segredo da amiga. O sapateiro não a conhecia, nunca a tinha visto, recebia as encomendas por intermédio de um criado que pagava à vista. Fácil foi portanto iludi-lo. Na ocasião em que duas primas esperavam de carro na Rua da Quitanda, o lacaio vinha da casa do sapateiro, o qual vexado com a pressa, esquecera as recomendações de fechar bem o embrulho. As pretensões de Horácio vieram pouco depois a arrefecer a amizade das duas primas; já não se viam tão a miúdo; mas não obstante Amélia continuou a prestar a Laura o mesmo serviço, e essa, coagida pela necessidade, foi obrigada a aceitá-lo. Iam as coisas por esse teor, quando houve o baile do Azevedo. Depois da primeira quadrilha, Amélia foi ao toucador. Era este em uma sala que dava para o jardim. Aproximando-se de uma janela entreaberta, obscurecida pela sombra do cortinado da cama, viu a moça os dois amigos no momento em que eles vieram sentar-se no banco, justamente colocado por baixo da janela. A casa era abarracada. Amélia, encostada no portal da janela, descobria os dois cavalheiros por entre a folhagem, e ouvia distintamente suas palavras. Aí, imóvel, mas agitada por comoções diversas, escutou ela a história do pé e a história do sorriso. Já os dois amigos tinham afastado, e a moça permanecia no mesmo lugar, como extática. A narração de Horácio, e as observações que fizera Leopoldo a esse respeito, revelaram à moça uma coisa que já anteriormente se havia apresentado, embora indistinta, vaga e confusa a seu espírito. O que Horácio amava nela não era mais do que uma forma, um capricho, um sonho de sua imaginação enferma. Ela compreendeu essa aberração dos sentidos em um homem gasto para o amor e saciado de prazeres. A mulher era 96 para o leão uma coisa comum e vulgar, incapaz de produzir-lhe emoções fortes. Tinha-as admirado, de todos os tipos e de todos os caracteres. Seu coração exausto precisava de alguma coisa nova, original e extravagante. Amélia compreendeu isto, não por uma análise, que seu espírito casto não poderia fazer, mas por uma intuição d’alma. Quando de novo encontrou Horácio no baile, suas maneiras não podiam que se não ressentissem do estado de seu coração. Tratou o leão secamente; mas logo tornou-se amável; ocorreu-lhe uma ideia; quis pôr à prova o amor do noivo, antes de confiar-lhe seu destino. Foi na sua alcova, durante a insônia, que ela recordou-se da história de Leopoldo, e comparou seu amor ao de Horácio. Repassando na mente as palavras comovidas do primeiro, pensando naquele afeito tão desprendido das misérias humanas, tão d’alma, Amélia sentia-se como purificada dos desejos do sedutor. Esse amor puro e imaterial era um batismo para seu coração virgem. A moça conheceu que o engano de Leopoldo provinha de uma ilusão da vista, no momento de entrar no carro com Laura; ilusão confirmada pela presença do lacaio na loja de sapateiro. Chegou a estimar esse incidente que pôs em relevo a alma nobre e generosa do mancebo. Acudiu-lhe à lembrança sua primeira conversa em casa de D. Clementina. As palavras que então lhe pareceram ininteligíveis, tinham agora um sentido. Compreendia toda a sublimidade do coração que dizia com uma profunda convicção: – Sinto-me capaz de amar o horrível, sinto-me capaz de nutrir uma dessas paixões mártires, de amar o anjo ainda mesmo encarnado no aleijão. – Esse me ama realmente, a mim e não à sua fantasia! murmurou a moça com tristeza. No dia seguinte, depois de uma noite de insônia, preparou-se para receber Horácio e submetê-lo à prova. O Matos conservava um par das antigas botinas de Laura, o qual lhe fora para modelo. Mandou Amélia buscá-lo; e encheu-o de algodão para acomodar nessa enormidade o seu mimoso pezinho. O bordado do bastidor foi expressamente inventado. Procurando uma letra para indicar a pessoa a quem destinava o pretendido presente, insensivelmente traçou um L. Era a inicial de Laura, que lhe acudira à mente, ou era lembrança de Leopoldo, que lhe esvoaçava ainda na imaginação? Foi uma e outra coisa. Serviu-se do pretexto da amiga para evocar o nome do homem, que tão profundamente a amava. Depois da cena que teve lugar na tarde do jantar, Amélia arrependeu-se. Receava ter-se excedido; bastava-lhe matar a ilusão do mancebo, não devia ter excitado o horror. Mas o afeto de Leopoldo a tornara exigente; ela queria ser amada por Horácio da mesma forma, com aquela sublime abnegação. Durante alguns dias, alimentou a esperança de conservar a afeição do noivo, e regozijava-se com a ideia da surpresa que lhe guardava. A ausência do leão foi desenganando de dia em dia. Travou-se então uma luta em seu espírito. 97 Devia esquecer o homem que não amava nela senão uma fantasia? O tom de Horácio na última noite a irritou. Seu amor-próprio indignou-se com o menoscabo do moço e súbita revelação de sua alma lhe advertiu que esse casamento causaria sua desgraça. No dia seguinte ao do rompimento, Amélia foi, como havia dito na véspera, à casa de D. Clementina. Era a primeira vez que tornava a ver Leopoldo depois do baile. Estiveram juntos alguns momentos. Como de costume Leopoldo falou, e a moça embebeu-se daquelas palavras apaixonadas como de um eflúvio suave. Em um momento de pausa, disse Amélia: – O senhor passou por nossa casa na terça-feira? – É verdade. Por que pergunta? – Eu estava no jardim. Vi-o quando passava; cuidei que ia entrar. – Não me animava. – Por quê?... Mamãe já lhe ofereceu nossa casa. – Tenho receio de ser importuno. – Pouco saímos agora; à exceção das noites que passamos aqui, estamos sempre sós; mamãe lendo, e eu tocando ou fazendo algum trabalho de lã. – E ninguém mais? perguntou Leopoldo, fitando na moça um olhar interrogador. – Ninguém! respondeu Amélia em tom grave. Leopoldo ficou suspenso, buscando compreender o pensamento da moça. Era mágoa do bem perdido, ou temor do mal frustrado, que assim lhe anuviara a fisionomia? Mas o sorriso prazenteiro iluminou o semblante da moça: – Sabe? Naquela noite do baile, me contaram uma história muito interessante, disse ela. – Não se pode saber? – O senhor pode. Foi a história de um sorriso, disse Amélia sublinhando a palavra com um gesto faceiro. – Quem lhe contou? Foi ele? – Foi o senhor. – Eu? – O senhor mesmo. Já não se lembra? – Quer gracejar? – O senhor estava no jardim conversando com seu amigo, e eu na janela do toucador. Leopoldo adivinhou. – Então ouviu tudo? – Tudo!... – E... perdoou-me? 98 – Não; não tinha de quê, mas... E seus belos olhos límpidos repousaram no semblante do moço. – Mas compreendi! Nesse momento D. Leonor chamou Amélia. Comentários à obra A pata da gazela Em A pata da gazela, o maniqueísmo dos personagens românticos se expõe com meridiana clareza. As cargas semânticas dos antivalores recaem sobre Horácio; Leopoldo recebe as de valores positivos. Horácio é o mundano, o materialista, o que concebe valor em sinais eróticos. Está-lhe portanto reservada a derrota diante do personagem opositivo relativamente ao amor de Amélia. Amélia se sacrifica e é igualmente compensada. O discurso flui bem, em tom um tanto juvenil, perfeitamente adequado, aliás, ao enredo da narrativa. O centro do interesse é o relacionamento amoroso de dois casais jovens. A humildade, a perseverança e alguma sagacidade são as qualidades com que contam os personagens centrais, que levam a simpatia do narrador, para conquistar o melhor desenlace à trama. Pode-se perceber íntima relação entre a história da Gata Borralheira e a de A pata da gazela. O primeiro motivo parece ser uma das temáticas que cortam o texto: o erotismo. O pé feminino deteve (e detém) certo atrativo erótico. Basta ver a importância que adquiriram os sapatos de saltos altos no vestuário feminino e a própria história da Cinderela. O erotismo do encontro do corpo nu com o vestuário parece nascer nos locais onde a vestimenta se corta. No momento histórico do Romantismo, o pé feminino foi zona de mostra-esconde. Despontou por isso como curiosidade e, mais tarde, como símbolo do corpo e da corporeidade, conforme se constata no texto em estudo. Atente-se ao fato de que, em A pata da gazela, tudo começa com o acesso das moças (personagens) a uma carruagem, o que lhes força a mostrar a zona erotizada do corpo. Marca erótica igualmente carrega o título. Pata (porque de gazela) é metáfora de pé. Gazela é espécie de antílope, carne preferida de leões. Pelo Dicionário escolar da língua portuguesa (MEC-Fename, 1956), gazela é também “mulher nova e elegante, altiva”. Leão é metáfora do caçador urbano, instintivo e desprovido de bons sentimentos. 99 ALFREDO D’Escragnolle TAUNAY Taunay, também conhecido como visconde de Taunay, nasceu no Rio de Janeiro, em 1843, e faleceu na mesma cidade, em 1899. Foi bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas, engenheiro-geógrafo, militar (participou da Guerra do Paraguai), professor (História, Línguas, Mineralogia, Geologia e Botânica, na Escola Militar), político (senador por SC e presidente da Província de SC e PR); dedicou-se à música, à pintura, ao jornalismo e à crítica. Embora filho de franceses, soube ser um escritor essencialmente brasileiro. Iniciou-se nas Letras com o romance A mocidade de Trajano (1871), sob o pseudônimo de Sílvio Dinarte. No mesmo ano, publicou em francês suas impressões acerca dum episódio decisivo da Guerra do Paraguai, A retirada de Laguna. Sua principal obra é Inocência, de 1872. Inocência (excerto do capítulo 6) Depois das explicações dadas ao seu hóspede, sentiu-se o mineiro mais despreocupado. – Então, ele disse, se quiser, vamos já ver a nossa doentinha. – Com muito gosto, concordou Cirino. E saindo da sala, acompanhou Pereira, que o fez passar por duas cercas e rodear a casa toda, antes de tomar a porta do fundo, fronteira a magnífico laranjal, naquela ocasião todo pontuado das brancas e olorosas flores. – Neste lugar, disse o mineiro apontando para o pomar, todos os dias se juntam tamanhos bandos de graúnas, que é um barulho dos meus pecados. Nocência gosta muito disso e vem sempre coser debaixo do arvoredo. É uma menina esquisita... Parando no limiar da porta, continuou com expansão: – Nem o Sr. imagina... Às vezes, aquela criança tem lembranças e perguntas que me fazem embatucar... Aqui, havia um livro de horas da minha defunta avó. Pois não é que um belo dia ela me pediu que lhe ensinasse a ler?... Que ideia!... Ainda há pouco tempo me disse que quisera ter nascido princesa... Eu lhe retruquei: E sabe você o que é ser princesa? Sei, me secundou ela com toda a clareza, é uma moça muito boa, muito bonita, que tem uma coroa de diamantes na cabeça, muitos lavrados no pescoço e que manda nos homens... Fiquei meio tonto. E se o Sr. visse os modos que tem com os bichinhos?!... Parece que está falando com eles e que os entende... Uma bicharia, em chegando ao pé de Nocência, fica mansa que nem ovelhinha parida de fresco... Se fosse agora a contar-lhe histórias dessa rapariga, seria um não acabar nunca... Entremos, que é melhor... 100 Quando Cirino penetrou no quarto da filha do mineiro, era quase noite, de maneira que, no primeiro olhar que atirou ao redor de si, só pôde lobrigar, além de diversos trastes de formas antiquadas, uma dessas camas, muito em uso no interior; altas e largas, feitas de tiras de couro engradadas. Estava encostada a um canto, e nela havia uma pessoa deitada. Mandara Pereira acender uma vela de sebo. Vinda a luz, aproximaram-se ambos do leito da enferma que, achegando ao corpo e puxando para debaixo do queixo uma coberta de algodão de Minas, se encolheu toda, e voltou-se para os que entravam. – Está aqui o doutor, disse-lhe Pereira, que vem curar-te de vez. – Boas-noites, dona, saudou Cirino. Tímida voz murmurou uma resposta, ao passo que o jovem, no seu papel de médico, se sentava num escabelo junto à cama e tomava o pulso à doente. Caía então luz de chapa sobre ela, iluminando-lhe o rosto, parte do colo e da cabeça, coberta por um lenço vermelho atado por trás da nuca. Apesar de bastante descorada e um tanto magra, era Inocência de beleza deslumbrante. Do seu rosto irradiava singela expressão de encantadora ingenuidade, realçado pela meiguice do olhar sereno que, a custo, parecia coar por entre os cílios sedosos a franjar-lhe as pálpebras, e compridos a ponto de projetarem sombras nas mimosas faces. Era o nariz fino, um bocadinho arqueado; a boca pequena, e o queixo admiravelmente torneado. Ao erguer a cabeça para tirar o braço de sob o lençol, descera um nada a camisinha de crivo que vestia, deixando nu um colo de fascinadora alvura, em que ressaltava um ou outro sinal de nascença. Razões de sobra tinha, pois, o pretenso facultativo para sentir a mão fria e um tanto incerta, e não poder atinar com o pulso de tão gentil cliente. – Então? perguntou o pai. – Febre nenhuma, respondeu Cirino, cujos olhos fitavam com mal disfarçada surpresa as feições de Inocência. – E que temos que fazer? – Dar-lhe hoje mesmo um suador de folhas de laranjeira da terra a ver se transpira bastante e, quando for meia-noite, acordar-me para vir administrar uma boa dose de sulfato. Levantara a doente os olhos e os cravara em Cirino, para seguir com atenção as prescrições que lhe deviam restituir a saúde. 101 – Não tem fome nenhuma, observou o pai; há quase três dias que só vive de beberagens. É uma ardência contínua; isto até nem parecem maleitas. – Tanto melhor, replicou o moço; amanhã verá que a febre lhe sai do corpo, e daqui a uma semana sua filha está de pé com certeza. Sou eu que lhe afianço. – Fale o doutor pela boca de um anjo, disse Pereira com alegria. – Hão de as cores voltar logo, continuou Cirino. Ligeiramente enrubesceu Inocência e descansou a cabeça no travesseiro. – Por que amarrou esse lenço? perguntou em seguida o moço. – Por nada, respondeu ela com acanhamento. – Sente dor de cabeça? – Nhor-não. – Tire-o, pois: convém não chamar o sangue; solte, pelo contrário, os cabelos. Inocência obedeceu e descobriu uma espessa cabeleira, negra como o âmago da cabiúna e que em liberdade devia cair até abaixo da cintura. Estava enrolado em bastas tranças, que davam duas voltas inteiras ao redor do cocoruto. – É preciso, continuou Cirino, ter de dia o quarto arejado e pôr a cama na linha do nascente ao poente. – Amanhã de manhãzinha hei de virá-la, disse o mineiro. – Bom, por hoje então, ou melhor, agora mesmo, o suador. Fechem tudo, e que a dona sue bem. À meia-noite, mais ou menos, virei aqui dar-lhe a mezinha. Sossegue o seu espírito e reze duas Ave-Marias para que a quina faça logo efeito. – Nhor-sim, balbuciou a enferma. – Não lhe dói a luz nos olhos? perguntou Cirino, achegando-lhe um momento a vela ao rosto. – Pouco... – um nadinha. – Isso é bom sinal. Creio que não há de ser nada. E, levantando-se, despediu-se: – Até logo, sinhá-moça. Depois do que, convidou Pereira a sair. Este acenou para alguém que estava num canto do quarto e na sombra. – Ó Tico, disse ele, venha cá... Levantou-se, a este chamado, um anão muito entanguido, embora perfeitamente proporcionado em todos os seus membros. Tinha o rosto sulcado de rugas, como se já fora entrado em anos; mas 102 os olhinhos vivos e a negrejante guedelha mostravam idade pouco adiantada. Suas perninhas um tanto arqueadas terminavam em pés largos e chatos que, sem grave desarranjo na conformação, poderiam pertencer a qualquer palmípede. Trajava comprida blusa parda sobre calças que, por haverem pertencido a quem quer que fosse muito mais alto, formavam embaixo volumosa rodilha, apesar de estarem dobradas. À cabeça, trazia um chapéu de palha de carandá sem copa, de maneira que a melena lhe aparecia toda arrepiada e erguida em torcidas e emaranhadas grenhas. – Oh! exclamou Cirino ao ver entrar no círculo de luz tão estranha figura, isto deveras é um tico da gente. – Não anarquize o meu Tonico, protestou sorrindo-se Pereira. Ele é pequeno... mas bom. Não é, meu nanico? O homúnculo riu-se, ou melhor, fez uma careta mostrando dentinhos alvos e agudos, ao passo que deitava para Cirino olhar inquisitor e altivo. – O Sr. vê, doutor, continuou Pereira, esta criaturinha de Cristo ouve perfeitamente tudo quanto se lhe diz e logo compreende. Não pode falar... isto é, sempre pode dizer uma palavra ou outra, mas muito a custo e quase a estourar de raiva e de canseira. Quando se mete a querer explicar qualquer coisa, é um barulho dos seiscentos, uma gritaria dos meus pecados, onde aparece uma voz aqui, outra acolá, mais cristãzinhas no meio da barafunda. – É que não lhe cortaram a língua, observou Cirino. – Não tinha nada que cortar, replicou Pereira. De nascença é o defeito e não pode ser remediado. Mas isto é um diabrete, que cruza este sertão de cabo a rabo, a todas horas do dia e da noite. Não é verdade, Tico? O anão abanou a cabeça, olhando com orgulho para Cirino. – Mas é filho aqui da casa? perguntou este. – Nhor-não; tem mãe à beira do rio Sucuriú, daqui a quarenta léguas, e envereda de lá para cá num instante, vindo a pousar pelas casas, que todas o recebem com gosto, porque é bichinho que não faz mal a ninguém. Aqui fica duas, três e mais semanas e depois dispara como um mateiro para a casa da mãe. É uma espécie de cachorro de Nocência. Não é, Tico? Fez o mudo sinal que sim e apontou com ar risonho para o lado da moça. Pereira, depois de todas aquelas explicações que o anão parecia ouvir com satisfação, disse, voltando-se para este, ou melhor, abaixando-se em cima da sua cabeça: – Agora, meu filho, vai ao curral grande e apanha para mim uma mãozada de folhas de laranjeira da terra... daquele pé grande que encosta na tronqueira. 103 Mostrou o homúnculo com expressivo gesto que entendera e saiu correndo. Ia Cirino deixar o quarto, não sem ter olhado com demora para o lugar onde estava deitada a enferma, quando Pereira o chamou: – Ó doutor, Nocência quer beber uma pouca de água... Fará mal? – Aqui não há limões-doces? Indagou o moço. – É um nunca acabar... e dos melhores. – Pois então faça sua filha chupar uns gomos. Pereira, depois de ter paternalmente arranjado e dispostos os cobertores ao redor do corpo da menina, acompanhou Cirino que, parado à porta da saída, estava mirando as primeiras estrelas da noite. Comentários à obra Inocência O texto vai buscar no interior mineiro o ambiente natural e social que vai compô-lo. Como em vários outros romances românticos, o tema é a defesa do respeito aos sentimentos individuais. Essa posição ideológica foi marcante em todo o movimento romântico. Tomou importância nuclear no Romantismo, porque se funda na própria ideologia predominante da escola, o Liberalismo (originário do adjetivo latino liber, livre). O comprometimento prévio do casamento de Inocência com Chicão impede a felicidade da protagonista com Cirino. O nome da protagonista e o título do romance apontam à sua condição. A inocência era valor social e foi princípio defendido por muitos romances românticos brasileiros, em personagens femininos. É o caso, p. ex., de Ceci (O guarani), de Carolina (A moreninha), de Adélia (A divina pastora), entre outros. BERNARDO Joaquim da Silva GUIMARÃES Nasceu em 1825, em Ouro Preto (MG). Faleceu na mesma cidade, em 1884. Formou-se em 1852 na Academia de Direito de São Paulo. Exerceu o cargo de juiz em Catalão, por duas vezes. Praticou jornalismo no Rio de Janeiro. Em 1867, fixou-se em Ouro Preto, onde se casou e passou a lecionar Retórica e Poética. Em 1873, foi nomeado professor de Latim e Francês em Queluz. Nesse tempo, ia publicando sua obra numerosa e firmando reputação de um dos mais populares romancistas da época. Algumas de suas obras: O seminarista (1872), A escrava Isaura (1875), Rosaura, a enjeitada (1883). 104 O seminarista (excerto do capítulo 10) Mas Eugênio já era um guapo mocetão de dezesseis a dezessete anos, e Margarida, com os seus quatorze, já era uma moça feita em toda a plenitude e esplendor de seu rápido desenvolvimento. Umbelina bem via que já não ficava bem deixar a sós por muito tempo e entregues a si mesmos como no tempo da meninice aquelas duas criaturas que se queriam tanto, e portanto não lhes permitia mais que vagassem sozinhos pelos campos como outrora, longe de suas vistas. Fazia muito bem; mas, não obstante, a tia Umbelina, toda atarefada como sempre andava, não podia deixar de proporcionar-lhes muitas ocasiões de se acharem a sós em ocasiões de que sabiam aproveitar-se muito bem para se afagarem. Esses afagos porém não passavam de uns prolongados apertos de mão, de algum abraço dado assim em ar de brinquedo e sem intenção amorosa, ou de um desses olhares mudos, longos e repassados de ternura, que em si resumem todo um poema de amor. Bem vontade tinham eles de se beijarem, mas tolhia-os um acanhamento virginal, esse pudor nativo, que é como o orvalho, que só na aurora esmalta o cálix das flores, e os desejos morreram-lhes dentro da alma, e os beijos apenas lhes estremeciam na ponta dos lábios, como tenros passarinhos batendo as asas implumes à beira do ninho, ansiando, mas nunca ousando desprender o voo pelo espaço. Quanto mais viva se tornava a afeição de Eugênio por Margarida, maior era a repugnância, que ia tomando pelo estado eclesiástico. Não se pode imaginar com que desgosto todos os domingos envergava a roupeta colegial e a sobrepeliz para ir ajudar na vila a missa conventual ao vigário. Mas esse era o gosto, essa era a ordem de seus pais, que sentiam indizível prazer em apresentar ao público o seu lindo padrezinho em botão, e não cabiam na pele de contentes, quando o viam funcionando no altar com aquela sisudez e gravidade de um verdadeiro sacerdote. Quando, ao fazer algumas das evoluções do seu mister, Eugênio voltavase para o público, e encontrava entre a turba das mulheres os grandes e luzentes olhos de Margarida fitos sobre ele, perturbava-se, ficava enfiado e corava como uma papoula; vinha-lhe à ideia a história da mula-sem-cabeça, e esta lembrança lhe causava a mais desagradável e horripilante impressão. A assídua frequência de Eugênio em casa de Margarida já ia dando muito nos olhos, e tornando-se por demais comprometedora não deixava de causar desgostos e inquietação a seus pais. – Menino – dizia a senhora Antunes a seu filho, talvez já pela trigésima vez –, isto não vai bem. Não paras um momento perto de tua mãe e de teu pai, e não sais da casa da comadre Umbelina!... olha que tens de ser padre e um padre, que não quer senão estar perto das moças... não sei o que lhe diga... isso não te fica bem. 105 – Ora, mamãe!... pois que tem lá isso?... desde criança que estou acostumado a brincar com a Margarida! pois se eu tivesse uma irmã mais moça, não podia brincar com ela?... – Ora, faça-se de tolo!... como está inocente o meu filho!... então porque brincaste com ela em criança, podes brincar agora, e mesmo depois de padre poderás brincar ainda, como no tempo em que andavas em fraldas de camisa; não é assim?... Ah! minha mãe?... também eu... a falar a verdade... Eugênio suspirou e não teve ânimo de prosseguir. – Também eu o quê, meu filho?... acaba. – Não tenho vontade nenhuma... Eugênio empacou outra vez. – Vontade nenhuma de quê?... desemperra essa língua; fala; não tenhas susto. – Minha mãe não fica zangada? – Eu, não, meu filho; fala o que tens no coração; se for alguma asneira, me entrará por um ouvido e sairá pelo outro. De que é que não tem vontade nenhuma?... – De ser padre, minha mãe... Há muito tempo que Eugênio desejava, mas não tinha ânimo de fazer aquela confissão, que lhe dava um nó na garganta, e lhe pesava como um rochedo sobre o coração, sentiu-se aliviado alijando-o sobre sua mãe. – Deveres, meu filho?... exclamou a mãe com surpresa – que me dizes? isso é de agora, pois sempre te percebi muita inclinação para padre... Que te dizia eu?... a tal minha afilhada está te virando a cabecinha... logo vi... não são senão elas, que te andam metendo essas caraminholas na cabeça... – Elas nunca me disseram nada, minha mãe, por Deus!... elas até gostam tanto de me ver de batina ajudando à missa na vila!... a tia Umbelina até já me prometeu uma sobrepeliz e uma volta bordada para quando eu disser missa nova. Eu mesmo é que não tenho inclinação nenhuma... – Não digas tal, menino!... interrompeu a mãe com azedume. Seja como for, é preciso que não vás mais tão a miúdo àquela casa. Isso não te fica bem. A Margarida já está ficando moça, e tu não és nenhum criançola; as tuas repetidas visitas podem dar que falar da pobre da menina. – Mas, mamãe; nós nunca saímos de perto da tia Umbelina. – Não importa. Demais depois que a Margarida está ficando moça, ali é casa de muito ajuntamento, e eu não te quero ver metido no meio de gentalha... – Mas, minha mãe, quando lá há gente demais, eu sempre me venho embora. 106 – Nada! nada!... isto não pode continuar assim, pode-te acontecer alguma. Se teimas em continuar a não sair lá da casa da comadre Umbelina, falo com teu pai para te mandar já para o seminário, mesmo antes de se acabarem as férias, e não voltas de lá senão depois de ordenado. Com esta tremenda cominação de Eugênio ficou acabrunhado. As últimas palavras de sua mãe caíram como rochedos sobre o seu coração, e o esmagaram. A ideia de voltar ao seminário e de separar-se de Margarida era a nuvem sinistra e carregada, que há muito ensombrava um canto do seu risonho e límpido céu de amor, e que ameaçava envolvê-lo todo em lúgubre e eterna escuridão. Triste, mudo e amuado, Eugênio retirou-se, e foi encerrar-se em seu quarto donde não saiu mais todo esse dia. Como os conselhos e exprobrações do padre diretor no seminário, as repreensões e ameaças maternas vieram dar maior vulto à paixão do moço, tornando ainda mais desejado o objeto amado. É essa a inalterável e eterna lei do coração humano. Se o padre diretor ao chamar o estudante ao seu quarto lhe tivesse dito simplesmente: – Menino, tens no coração uma afeição mundana, que não pode compadecer-se com o estado a que te destinas, e que é preciso que combatas. Mas se acaso não puderes banir do teu coração esse afeto, que pode ser puro e legítimo, podes continuar a estudar, porém não para o estado eclesiástico – se tivesse procedido assim, o padre teria talvez conseguido melhor o seu intento. Deixando ampla liberdade de expansão aos sentimentos do menino, teria talvez facilitado ao seu neófito a vitória sobre si mesmo. A torrente represada acaba por despedaçar diques e arrojar-se mais furiosa no seu leito natural. Desde que Eugênio viu interpor-se entre ele e Margarida um anátema tremendo, que como um abismo os separava, perturbou-se para sempre a severidade da sua alma, e esse afeto que votava à companheira de sua infância, posto que a princípio abafado temporariamente pelo manto de gelo de um factício e austero ascetismo, e agora de fresco rudemente contrariado por sua mãe, ia fatalmente transformar-se na mais ardente, profunda e impetuosa paixão. Se por seu lado também a senhora Antunes, que devia conhecer melhor do que ninguém o coração de seu filho, sem deixar-lhe a rédea solta a todos os caprichos e desvarios da imaginação, procurasse com mais brandura encaminhá-lo ao fim que desejava, sem contrariar de frente as mais caras afeições de seu coração, talvez o tivesse conseguido, ou pelo menos evitaria a longa e dolorosa luta que iria dilacerar o coração de seu filho sem outro resultado mais do que um infortúnio certo e irremediável. A mãe de Eugênio era fanática e supersticiosa. A aventura da cobra enleando-se no corpo de Margarida, que nunca lhe saía da lembrança, lhe 107 incomodara sempre o espírito. Agora refletindo sobre a cega e ardente afeição que a menina ia inspirando cada vez mais a seu filho, entrou a nutrir as mais tristes e sombrias apreensões, e acabou por convencer-se que não era senão o demônio, que em figura de cobra viera lançar no seio da menina o germe da tentação para seduzir seu filho, desviá-lo da sua santa vocação, e arrastá-lo ao caminho da perdição. Daí aquela severidade e rigor que lhe não eram usuais, e que só por um tão poderoso motivo podia ser impelida. A boa senhora não considerava que o germe da tentação já Margarida, como toda moça bonita, o tinha nos olhos, e por mais tremendos que fossem os anátemas que fulminasse para preservar o novo Adão das seduções da serpente, mais lhe acenderia o desejo de provar do pomo vedado. O que, portanto, não lhe era permitido fazer francamente e à luz do sol, procurou Eugênio fazê-lo furtivamente e à sombra do manto silencioso e discreto da noite, cujos véus propícios ocultaram mais de uma entrevista, em que os ardentes afetos dos dois amantes se expandiram muito mais à vontade sem testemunhas nem constrangimento de espécie alguma. Romeu, iludindo a vigilância materna, nas horas mortas da noite, quando o julgavam tranquilamente adormecido, abria de mansinho a janela do seu quarto, saltava ao terreiro, e veloz e sutil como um silfo noturno, atravessando os vales silenciosos corria pressuroso para junto da sua Julieta. Os dois amantes, pondo de parte toda a reserva e timidez, deram livre expansão aos seus afetos, e pela primeira vez falaram sem rebuço de amor, de casamento, de felicidade futura nos braços um do outro, e os beijos, aqueles beijos, que à luz do sol apenas esvoaçavam tímidos à flor dos lábios e morriam no limbo dos desejos, soltaram o voo, encontraram-se através das grades, e imprimiram-se férvidos e trementes nos lábios de um e outro amante. As meigas falas que ali se ciciaram em segredo, os arrulhos estremecidos, os suspiros abafados, que ali se exalaram, a noite e a solidão os receberam em seu seio segredoso, e os dispersaram nos ares de envolta com o sussurro da folhagem. Comentários ao romance O seminarista Eugênio e Margarida compõem o casal do sofrimento de amor. A razão do sofrimento é a intromissão de outrem na vida individual. Vale dizer: a concepção libertária do Romantismo, fundada na ideologia da escola literária, o Liberalismo, se confronta com o poder exacerbado dos que se imiscuem nas decisões pessoais. Isso significa impedir a livre escolha dos corações, que, por essa lógica, têm suas razões, as quais devem ser respeitadas. A inocência e a livre inclinação pessoal constroem, de acordo com o que se lê, o que se costuma designar como destino, que precisa ser soberano. É ele que decide a felicidade ou a infelicidade, a realização ou irrealização pessoais dos personagens. Assim deve ser também no mundo, de acordo com o Romantismo, porque o texto se 108 origina do mundo circunstante e para ele se dirige. A leitura do texto só tem sentido na relação com o mundo que o constitui. Assim como o autor lê o mundo para compor o texto, o leitor lê o texto em íntima e indissociável relação com o mundo. Tanto o autor como o leitor são os sujeitos do texto: um na elaboração; outro, na reelaboração dele. Assim é o texto literário. “A mãe de Eugênio era fanática e supersticiosa”: isso, entre outras várias condições, esclarece ideologicamente a proposta textual. O texto reclama, pois, além da valorização dos sentimentos, boa dose de reflexão, de abertura e aceitação das diferenças. Esse item ideológico acolhe com perfeição a proposta romântica da consideração às individualidades. Não deixa porém de contemplar também indícios do que o Realismo valorizaria, mais adiante: qualquer fanatismo desmerece o homem, porque lhe sequestra a liberdade e lhe usurpa a razão. Antônio Frederico de CASTRO ALVES Castro Alves nasceu na fazenda Cabaceiras, antiga freguesia de Muritiba, perto da vila de Curralinho, hoje cidade Castro Alves, na Bahia, em 1847, e morreu em Salvador, em 1871. Por volta de 1853, ao mudar-se com a família para a capital, estudou no colégio de Abílio César Borges, onde foi colega de Rui Barbosa. Demonstrava vocação apaixonada e precoce para a poesia. Aos dezesseis anos foi para Recife estudar Direito. Depois, em São Paulo, cursou o 3º ano da Faculdade de Direito. Em 1868, numa caçada, feriu-se com um tiro de espingarda no pé direito. Foi conduzido para o Rio de Janeiro e teve o pé amputado. Daí passou a caminhar apoiado numa bengala e utilizando um pé de borracha. Como já a tuberculose o afligia, teve seus males agravados pelo acidente. Em 1870 retornou à Bahia, onde publicou Espumas flutuantes, único livro seu que viu impresso. Escreveu poesia lírica e poesia de caráter social, principalmente a favor da abolição da escravatura. Desenvolveu, como prógono, o estilo de época condoreiro, da denominada terceira geração romântica brasileira. Obras de Castro Alves: Espumas flutuantes (1870), Os escravos e A cachoeira de Paulo Afonso (1876) e o drama Gonzaga ou a revolução de Minas (1876). Vozes d’África, O navio negreiro e Prometeu são exemplos significativos do condoreirismo castralvino. Adormecida Uma noite, eu me lembro... Ela dormia Numa rede encostada molemente... Quase aberto o roupão... solto o cabelo E o pé descalço do tapete rente. 109 ‘Stava aberta a janela. Um cheiro agreste Exalavam as silvas da campina... E ao longe, num pedaço do horizonte, Via-se a noite plácida e divina. De um jasmineiro os galhos encurvados, Indiscretos, entravam pela sala, E de leve, oscilando ao tom das auras, Iam na face trêmulos – beijá-la. Era um quadro celeste!... A cada afago, Mesmo em sonhos, a moça estremecia... Quando ela serenava... a flor beijava-a... Quando ela ia beijá-la... a flor fugia... Dir-se-ia que naquele doce instante Brincavam duas cândidas crianças... A brisa, que agitava as folhas verdes, Fazia-lhe ondear as negras tranças! E o ramo ora chegava, ora afastava-se... Mas quando a via despeitada a meio, P’ra não zangá-la... sacudia alegre Uma chuva de pétalas no seio... ------Eu, fitando essa cena, repetia Naquela noite lânguida e sentida: Ó flor! – tu és a virgem das campinas! Virgem! – tu és a flor da minha vida!... (São Paulo, novembro de 1868.) Comentários ao poema Adormecida Adormecida integra o único livro publicado em vida pelo autor: Espumas flutuantes. No Prólogo do livro fica-se sabendo que o poeta voltava de São Paulo para a terra natal, de (navio a) vapor, abatido pela doença. Debruçado na amurada do navio, contemplou as espumas flutuantes que o navio deixava sobre o mar e que logo se desfaziam. Pensou que sua obra poética assim também seria, por isso o título do livro. Adormecida contempla o elogio à imagem feminina. A imagem feminina que aí aparece não é a que se tinha visto na primeira geração poética romântica (indianismo-nacionalismo), como a que construiu Gonçalves Dias em Ainda uma vez – Adeus, p. ex. Tampouco coincide com a imagem feminina proposta pelos ultrarromânticos, a idealizadamente incorpórea, às vezes imprecisa. A imagem feminina no poema em estudo tem carnalidade, e dela aparecem sinais eróticos. A identidade dela com as coisas lindas da natureza é a única idealização que o poema mantém. 110 O navio negreiro (Tragédia no mar) 1ª ‘Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Brinca o luar – dourada borboleta; E as vagas após ele correm... cansam Como turba de infantes inquieta. ‘Stamos em pleno mar... Do firmamento Os astros saltam como espumas de ouro... O mar em troca acende as ardentias – Constelações do líquido tesouro... ‘Stamos em pleno mar... Dois infinitos Ali se estreitam num abraço insano Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Qual dos dous é o céu? Qual é o oceano?... ‘Stamos em pleno mar... Abrindo as velas Ao quente arfar das virações marinhas, Veleiro brigue corre à flor dos mares Como roçam na vaga as andorinhas... De onde vem?... aonde vai?... Das naus errantes Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? Neste saara os corcéis o pó levantam, Galopam, voam, mas não deixam traço. Bem feliz quem ali pode nest’hora Sentir deste painel a majestade!... Embaixo – o mar... em cima – o firmamento... E no mar e no céu – a imensidade! Oh! que doce harmonia traz-me a brisa! Que música suave ao longe soa! Meu Deus! como é sublime um canto ardente Pelas vagas sem fim boiando à toa! Homens do mar! Ó rudes marinheiros, Tostados pelo sol dos quatro mundos! Crianças que a procela acalentara No berço destes pélagos profundos! Esperai! Esperai! deixai que eu beba Essa selvagem, livre poesia... Orquestra – é o mar que ruge pela proa, E o vento que nas cordas assobia... ............................................................... 111 Por que foges assim, barco ligeiro? Por que foges do pávido poeta? Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira Que semelha no mar – doudo cometa! Albatroz! Albatroz! águia do oceano, Tu, que dormes das nuvens entre as gazas, Sacode as penas, Leviatã do espaço! Albatroz! Albatroz! dá-me essas asas... 2ª Que importa do nauta o berço, Donde é filho, qual seu lar?... Ama a cadência do verso Que lhe ensina o velho mar! Cantai! Que a noite é divina! Resvala o brigue à bolina Como golfinho veloz. Presa ao mastro da mezena Saudosa bandeira acena Às vagas que deixa após. Do Espanhol as cantilenas Requebradas de langor, Lembram as moças morenas, As andaluzas em flor. Da Itália o filho indolente Canta Veneza dormente – Terra de amor e traição – Ou do golfo no regaço Relembra os versos de Tasso Junto às lavas do Vulcão! O Inglês – marinheiro frio, Que ao nascer no mar se achou, – (Porque a Inglaterra é um navio, Que Deus na Mancha ancorou), Rijo entoa pátrias glórias, Lembrando, orgulhoso, histórias De Nelson e de Aboukir. O Francês – predestinado – Canta os louros do passado E os loureiros do porvir... Os marinheiros Helenos, Que a vaga iônia criou, Belos piratas morenos 112 Do mar que Ulisses cortou, Homens que Fídias talhara, Vão cantando em noite clara Versos que Homero gemeu... ... Nautas de todas as plagas! Vós sabeis achar nas vagas As melodias do céu... 3ª Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! Desce mais, inda mais... não pode o olhar humano Como o teu mergulhar no brigue voador. Mas que vejo eu aí... que quadro d’amarguras! É canto funeral!... Que tétricas figuras!... Que cena infame e vil!... Meu Deus! meu Deus! Que horror! 4ª Era um sonho dantesco... o tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho, Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar do açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar... Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães: Outras, moças... mas nuas, espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs. E ri-se a orquestra, irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais... Se o velho arqueja, se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais... Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali! ........................................................... Um de raiva delira, outro enlouquece... Outro, que martírios embrutece, Cantando, geme e ri! No entanto o capitão manda a manobra 113 E após, fitando o céu que se desdobra Tão puro sobre o mar, Diz do fumo entre densos nevoeiros: “Vibrai rijo chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!...” E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais... Qual um sonho dantesco as sombras voam... Gritos, ais, maldições, preces ressoam! E ri-se Satanás!... 5ª Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade Tanto horror perante os céus... Ó mar, por que não apagas Co’a esponja de tuas vagas De teu manto esse borrão?... Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão!... Quem são esses desgraçados Que não encontram em vós, Mais que o rir calmo da turba Que excita a fúria do algoz? Quem são?... Se a estrela se cala, Se a vaga à pressa resvala Como cúmplice fugaz, Perante a noite confusa... Dize-o tu, severa Musa, Musa libérrima, audaz! São os filhos do deserto, Onde a terra esposa a luz, Onde vive em campo aberto A tribo dos homens nus... São os guerreiros ousados Que com os tigres mosqueados Combatem na solidão... Ontem simples, fortes, bravos... Hoje míseros escravos Sem luz, sem ar, sem razão... 114 São mulheres desgraçadas Como Agar o foi também, Que sedentas, alquebradas, De longe... bem longe vêm... Trazendo com tíbios passos, Filhos e algemas nos braços, N’alma – lágrimas e fel. Como Agar sofrendo tanto, Que nem o leite de pranto Têm que dar para Ismael... Lá nas areias infindas, Das palmeiras no país, Nasceram – crianças lindas, Viveram – moças gentis... Passa um dia a caravana, Quando a virgem na cabana Cisma da noite nos véus... ... Adeus! ó choça do monte!... ... Adeus! palmeiras da fonte!... ... Adeus! amores... adeus!... Ontem a Serra Leoa, A guerra, a caça ao leão, O sono dormido à toa Sob as tendas d’amplidão... Hoje... porão negro, fundo, Infecto, apertado, imundo, Tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado Pelo arranco de um finado, E o baque de um corpo ao mar... Ontem plena liberdade, A vontade por poder... Hoje... cúm’lo de maldade Não são livres p’ra morrer... Prende-os a mesma corrente – Férrea, lúgubre serpente – Nas roscas da escravidão. E assim roubados à morte, Dança a lúgubre coorte Ao som do açoute... Irrisão!... Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! 115 Se eu deliro... ou se é verdade Tanto horror perante os céus... Ó mar, por que não apagas Co’a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?... Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão!... 6ª E existe um povo que a bandeira empresta P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... E deixa-a transformar-se nessa festa Em manto impuro de bacante fria!... Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta, Que impudente na gávea tripudia?!... Silêncio!... Musa! chora, chora tanto Que o pavilhão se lave no teu pranto... Auriverde pendão da minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra, E as promessas divinas da esperança... Tu, que da Liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na lança, Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!... Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o brigue imundo O trilho que Colombo abriu na vaga Como íris no pélago profundo!... ...Mas é infâmia demais... Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! Andrada! arranca esse pendão dos ares! Colombo! Fecha a porta de teus mares! Comentários ao poema O navio negreiro O poema O navio negreiro integra a obra Os escravos, a qual tem atraído a maior atenção da crítica que estuda a produção poética de Castro Alves. Os denominados navios negreiros eram as embarcações de transporte de pessoas escravizadas oriundas da África. O poema é composto de seis partes. 116 Na primeira parte, podem-se identificar pelo menos três sequências de quadras decassílabas. Na primeira delas, composta pelas quatro primeiras estrofes, o poema focaliza um navio navegando mar a fora. Na segunda, composta pelas seis estrofes seguintes, expressa-se a vontade de saber de onde vem e aonde vai, quem o navega, por que se desloca tão apressadamente. Na terceira sequência, identificada na última estrofe (da primeira parte), a voz poética mostra insatisfação por não poder conhecer de que barco se trata e pede auxílio ao albatroz, para que identifique o que até esse momento do poema não foi possível esclarecer. A segunda parte é constituída de quatro décimas heptassílabas. Essas estrofes delineiam as possibilidades da origem desse barco e dos marinheiros que nele viajam. A terceira parte tem apenas uma estrofe de seis versos dodecassílabos. Nessa altura é possível observar que a construção técnica dos versos, como a extensão métrica com que são compostos, atende a efeitos de expressividade planejados. Nessa estrofe, com o auxílio do albatroz, a voz poética se mostra chocada com o que pode ver no navio, que na primeira parte aparecia coroado de belezas. A sugestão aponta à diferença entre os dons da natureza (obra de Deus) e as más ações humanas. Na quarta parte do poema, Castro Alves constrói surpreendentes momentos poéticos, tanto do ponto de vista formal como do ponto de vista ideológico. Aliás, a correlação entre esses elementos elabora precisamente o que denominamos texto literário por excelência. Constituem-na seis estrofes heterométricas (versos deca e hexassílabos). Essa técnica, entre outros efeitos de ordem rítmica, provoca maior atenção do leitor à leitura. Já no primeiro verso da primeira estrofe, o adjetivo dantesco leva a leitura ao âmbito propriamente condoreiro do vocabulário castralvino, no poema. A seguir, a presença constante de vocábulos com o fonema erre mantém a estrofe sob sugestividade que reforça o que está explicitamente dito: “Tinir de ferros... estalar do açoite... [...] / Horrendos a dançar...”. São “horrendos a dançar” não por outro motivo, senão porque essa é uma dança sob chicotes. É contudo na segunda estrofe que a quarta parte do poema se solidifica especialmente. Destaquemos os três primeiros versos: “Negras mulheres, suspendendo às tetas / Magras crianças, cujas bocas pretas / Rega o sangue das mães”. Nos versos iniciais, a anteposição dos adjetivos “negras” e “magras” concentra força semântica e expressiva. As “negras mulheres suspendendo às tetas” são, pois, vistas mais como negras e menos como mulheres. Isso permite que seja escrito “tetas” para designar os seios das escravas. Tetas são próprias de animais mamíferos fêmeos. É precisamente nessa passagem que a sugestividade semântica se consubstancia de maneira marcante. Essas mulheres, que, antes de serem mulheres propriamente, são vistas como animais, só podem mesmo ser concebidas portando tetas. Como já não têm leite para alimentar os filhos, eles lhes sugam sangue, que é o que lhes resta. Esse é outro momento de 117 interessante perspicácia poético-ideológica, porque sugar o sangue é expressão que se usa em português para dizer algo como exploração profunda, até as últimas consequências. Nessa quarta parte, portanto, o poema explora os horrores do navio negreiro, que foi então possível poeticamente observar. A quinta parte se dedica a saber quem são essas pessoas assim tratadas. Como o albatroz se cala, a o poema apela à musa (a palavra aparece com inicial maiúscula), i. é, à poesia, à literatura, à inteligência, à razão e todas as adjacências semânticas que a metonímia pode aí expressar. Na primeira e na nona (última) estrofes, a apóstrofe é para o ser de maior grandeza que o ser humano pôde conceber: “Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura... se é verdade / Tanto horror perante os céus?!” É também interessante observar que o poeta concebe um “Deus dos desgraçados”, i. é, um Deus diferente do Deus dos cheios de graça, dos afortunados, dos felizes. Aí igualmente a sugestividade semântica carrega perguntas: É a infelicidade esquecimento de Deus? A desgraça é (também) obra de Deus? Como pode Deus admitir a injustiça, a “irrisão”? – como se lê na penúltima estrofe dessa quinta parte? Como agora sabemos quem são as pessoas desgraçadas, resta desvendar quem é responsável pelo navio. Isso se lê na sexta (derradeira) parte, composta de três oitavas decassílabas. Ao conhecer a bandeira que o navio leva, a expressão poética pede tempo para acreditar no que vê e apela à musa: “Silêncio!... Musa! chora, chora tanto, / Que o pavilhão se lave no teu pranto”. Suja a bandeira com o que pratica e esconde, só a literatura poderá limpá-la, i. é, resgatar o crime, agir contra o que ficou constatado. A segunda estrofe diz de que bandeira se trata: “Auriverde pendão da minha terra, / Que a brisa do Brasil beija e balança”. O segundo verso chama a atenção para a marcante aliteração, em que a sequência de bilabiais sugere simultaneamente o beijo e o estalo da bandeira sobre si mesma, batida pelo vento (“brisa”). O poema se encerra com dois pedidos aos “heróis do Novo Mundo”, Andrada e Colombo: ao primeiro, porque ajudou a criar a bandeira do Brasil, que desfaça o que fez; ao segundo, porque a ele se tem atribuído o descobrimento do caminho marítimo para as Américas, que o interrompa. Propõe com isso que melhor teria sido não existirem a bandeira, i. é, o país, nem a ligação marítima das Américas com outros continentes, do que terem servido para o tráfico escravista. Neste ponto da análise, é interessante retornar parcialmente ao conceito anteriormente. A literatura, na forma como o poema O navio negreiro a entende, coincide com o que ficou dito (Literatura: reflexões conceituais). A arte literária é reflexão sobre o mundo e age sobre ele. Dignifica o homem. Retira-lhe marcas de brutalidade. Concede-lhe refinamento de pensar e de sentir. 118 Prometeu Inda arrogante e forte, o olhar no sol cravado Sublime no sofrer, vencido – não domado Na última agonia arqueja Prometeu. O Cáucaso é seu cepo; é seu sudário o céu, Como um braço de algoz, que em sangueira se nutre, Revolve-lhe as entranhas o pescoço do abutre. P’ras iras lhe sustar, corta o raio a amplidão E em correntes de luz prende, amarra o Titão. Agonia sublime!... E ninguém nesta hora Consola aquela dor, naquela angústia chora. Ai! por cúmulo de horror!... o Oriente golfa a luz. No Olimpo brinca Amor por entre os seios nus. De tirso em punho o bando das lúbricas bacantes Correm montanha e val em danças delirantes. E ao gigante caído... a terra e o céu (rivais!...) Prantos lascivos dão, suor de bacanais. ............................................................................ ............................................................................ Mas não! Quando arquejante em hórrido granito Se estorce Prometeu, gigantesco precito, Vós, Nereidas gentis, meigas filhas do mar! O oceano lhe trazeis, p’ra em prantos derramar... Povo! povo infeliz! Povo, mártir eterno, Tu és do cativeiro o Prometeu moderno... Enlaça-te no poste a cadeia das Leis, O pescoço do abutre é o cetro dos maus reis. Para tais dimensões, p’ra músculos tão grandes, Era pequeno o Cáucaso... amarram-te nos Andes. E enquanto tu, Titão, sangrento arcas aí, O século da luz olha... caminha... ri... Mas não! mártir divino, Encélado tombado! Junto ao calvário teu, por todos desprezado, A musa do poeta irá – filha do mar – O oceano de sua alma... em cantos derramar... Comentários ao poema Prometeu Prometeu, Castro Alves exercita poeticamente a transferência do mito grego (Prometeu) à situação especificamente sul-americana. A América do Sul está aí presente metonimicamente no substantivo Andes. O poema está construído em duas partes, separadas por duas linhas pontilhadas. Na primeira parte, o poema focaliza o mito grego antigo. 119 Prometeu é o titã, filho de Zeus, que furta o fogo do Olimpo e o entrega aos homens. Noutras palavras, Prometeu é o símbolo humano da ação, da transformação do mundo para o bem da humanidade. Como castigo, o deuspai condena o filho ao acorrentamento perpétuo a um poste de pedra, numa ilha, no Cáucaso. Um abutre lhe come continuamente o fígado, e o fígado cresce continuamente. Esse é o destino dos heróis, i. é, daqueles que não aceitam a obediência por ela mesma, dos que não se contentam que outros lhes decidam a existência. Esses hão de continuamente sofrer os tormentos que lhes infligem os poderes constituídos, quando se sentem ameaçados. Na segunda parte, o mito antigo é transposto ao Novo Mundo. A América (do Sul) aparece citada em Andes, nome da maior cordilheira do continente. A escolha desse nome marca também o estilo condoreiro, referência explícita ou implícita a grandezas representativas utilizada como léxico. Os Andes são também o hábita do condor, ave que dá nome ao estilo de época pontificado por Castro Alves. O condor foi citado anteriormente por Varela, que inaugurou, pois, a escolha do símbolo. Prometeu aqui é o “Povo! povo infeliz! Povo, mártir eterno, / Tu és do cativeiro o Prometeu moderno...”. Essa concepção é também inovadora. O povo – que para os românticos significou a população sem poder nem prestígio – é cativo. As leis e os maus governantes são as correntes que o aprisionam e o abutre que lhe come as entranhas. Nesses termos, explicita poeticamente os sofrimentos da América dos pobres nos do mito grego. Mocidade e morte Oh! eu quero viver, beber perfumes Na flor silvestre, que embalsama os ares; Ver minh'alma adejar pelo infinito, Qual branca vela n'amplidão dos mares. No seio da mulher há tanto aroma... Nos seus beijos de fogo há tanta vida... – Árabe errante, vou dormir à tarde À sombra fresca da palmeira erguida. Mas uma voz responde-me sombria: Terás o sono sob a lájea fria. Morrer... quando este mundo é um paraíso, E a alma um cisne de douradas plumas: Não! o seio da amante é um lago virgem... Quero boiar à tona das espumas. Vem! – formosa mulher – camélia pálida, Que banharam de pranto as alvoradas. Minh'alma é a borboleta, que espaneja O pó das asas lúcidas, douradas... 120 E a mesma voz repete-me terrível, Com gargalhar sarcástico: – impossível! Eu sinto em mim o borbulhar do gênio. Vejo além um futuro radiante: Avante! – brada-me o talento n'alma E o eco ao longe me repete: – avante! – O futuro... o futuro... no seu seio... Entre louros e bênçãos dorme a glória! Após – um nome do universo n'alma, Um nome escrito no Panteão da história. E a mesma voz repete funerária: – Teu Panteão – a pedra mortuária! Morrer – é ver extinto dentre as névoas O fanal, que nos guia na tormenta: Condenado – escutar dobres de sino, – Voz da morte, que a morte lhe lamenta – Ai! morrer – é trocar astros por círios, Leito macio por esquife imundo, Trocar os beijos da mulher – no visco Da larva errante no sepulcro fundo. Ver tudo findo... só na lousa um nome, Que o viandante a perpassar consome. E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito Um mal terrível me devora a vida: Triste Ahasverus, que no fim da estrada Só tem por braços uma cruz erguida. Sou o cipreste, qu'inda mesmo florido, Sombra de morte no ramal encerra! Vivo – que vaga sobre o chão da morte, Morto – entre os vivos a vagar na Terra. Do sepulcro escutando triste grito Sempre, sempre bradando-me: maldito! E eu morro, ó Deus! na aurora da existência, Quando a sede e o desejo em nós palpita.. Levei aos lábios o dourado pomo, Mordi no fruto podre do Asfaltita. No triclínio da vida – novo Tântalo – O vinho do viver ante mim passa... Sou dos convivas da legenda hebraica, O estilete de Deus quebra-me a taça. É que até minha sombra é inexorável, 121 Morrer! morrer! soluça-me implacável. Adeus, pálida amante dos meus sonhos! Adeus, vida! Adeus, glória! amor! anelos! Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga Os prantos de meu pai nos teus cabelos. Fora louco esperar! fria rajada Sinto que do viver me extingue a lampa... Resta-me agora por futuro – a terra, Por glória – nada, por amor – a campa. Adeus... arrasta-me uma voz sombria, Já me foge a razão na noite fria!... Comentários ao poema Mocidade e morte Em Mocidade e morte, lê-se a dialética da vida e da morte na perspetiva do terceiro estilo de época da poesia romântica brasileira. Diferentemente da proposta ultrarromântica, em Castro Alves se pode ler o brilho da vida, mas obscurecido pela morte iminente. A voz da vida é sempre secundada pela da morte. O lamento da mocidade que morre é o fato de não ter podido gozar do “pomo dourado”, do “vinho do viver”. A presença feminina se transforma em aspiração da vida, na própria noção de “viver, beber perfumes”. Essa concepção se adequa ao que foi possível estudar relativamente ao primeiro poema deste poeta baiano, aqui analisado, Adormecida. Personagens lendários, míticos, emblemáticos da cultura tradicional aparecem no poema, como parte da fatalidade que desfaz as esperanças da vida. Manuel Antônio de ALMEIDA Manuel Antônio de Almeida nasceu no Rio de Janeiro em 1830 e morreu em naufrágio, perto de Macaé (RJ) em 1861. Formou-se em Medicina em 1855, mas não exerceu a profissão. Foi funcionário público (Tipografia Nacional e Ministério da Fazenda). Foi jornalista e tradutor. O romance Memórias de um sargento de milícias, publicado originalmente em folhetins, em dois volumes, que saíram nos anos de 1854 e 1855, lhe garantiu o nome literário. Há quem diga que foi o primeiro romance de costumes publicado no Brasil. Há sinais de que Machado de Assis tem dívida técnica relativamente ao romance Memórias de um sargento de milícias, tanto na estrutura narrativa, quanto na constituição de alguns personagens, especialmente em Memórias póstumas de Brás Cubas. Foi através de Almeida que Machado de Assis iniciou na imprensa. 122 Memórias de um sargento de milícias (capítulo 2 – Primeiros infortúnios) Passemos por alto sobre os anos que decorreram desde o nascimento e batizado do nosso memorando, e vamos encontrá-lo já na idade de sete anos. Digamos unicamente que durante todo este tempo o menino não desmentiu aquilo que anunciara desde que nasceu: atormentava a vizinhança com um choro sempre em oitava alta; era colérico; tinha ojeriza particular à madrinha, a quem não podia encarar, e era estranhão até não poder mais. Logo que pôde andar e falar tornou-se um flagelo; quebrava e rasgava tudo que lhe vinha à mão. Tinha uma paixão decidida pelo chapéu armado do Leonardo; se este o deixava por esquecimento em algum lugar ao seu alcance, tomava-o imediatamente, espanava com ele todos os móveis, punha-lhe dentro tudo que encontrava, esfregava-o em uma parede, e acabava por varrer com ele a casa; até que a Maria, exasperada pelo que aquilo lhe havia de custar aos ouvidos, e talvez às costas, arrancava-lhe das mãos a vítima infeliz. Era, além de traquinas, guloso; quando não traquinava, comia. A Maria não lhe perdoava; trazia-lhe bem maltratada uma região do corpo; porém ele não se emendava, que era também teimoso, e as travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas. Assim chegou aos sete anos. Afinal de contas a Maria sempre era saloia, e o Leonardo começava a arrepender-se seriamente de tudo que tinha feito por ela e com ela. E tinha razão, porque, digamos depressa e sem mais cerimônias, havia ele desde certo tempo concebido fundadas suspeitas de que era atraiçoado. Havia alguns meses atrás tinha notado que um certo sargento passava-lhe muitas vezes pela porta, e enfiava olhares curiosos através das rótulas: uma ocasião, recolhendo-se, parecera-lhe que o vira encostado à janela. Isto porém passou sem mais novidade. Depois começou a estranhar que um certo colega seu o procurasse em casa, para tratar de negócios do ofício, sempre em horas desencontradas: porém isto também passou em breve. Finalmente aconteceu-lhe por três ou quatro vezes esbarrar-se junto de casa com o capitão do navio em que tinha vindo de Lisboa, e isto causou-lhe sérios cuidados. Um dia de manhã entrou sem ser esperado pela porta adentro; alguém que estava na sala abriu precipitadamente a janela, saltou por ela para a rua, e desapareceu. À vista disto nada havia a duvidar: o pobre homem perdeu, como se costuma dizer, as estribeiras; ficou cego de ciúme. Largou apressado sobre um banco uns autos que trazia embaixo do braço, e endireitou para a Maria com os punhos cerrados. – Grandessíssima!... 123 E a injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou... e pôs-se a tremer com todo o corpo. A Maria recuou dois passos e pôs-se em guarda, pois também não era das que se receavam com qualquer coisa. – Tira-te lá, ó Leonardo! – Não chames mais pelo meu nome, não chames... que tranco-te essa boca a socos... – Safe-se daí! Quem lhe mandou pôr-se aos namoricos comigo a bordo? Isto exasperou o Leonardo; a lembrança do amor aumentou-lhe a dor da traição, e o ciúme e a raiva de que se achava possuído transbordaram em socos sobre a Maria, que depois de uma tentativa inútil de resistência desatou a correr, a chorar e a gritar: – Ai... ai... acuda, Sr. compadre... Sr. compadre!... Porém o compadre ensaboava nesse momento a cara de um freguês, e não podia largá-lo. Portanto a Maria pagou caro e por junto todas as contas. Encolheu-se a choramingar em um canto. O menino assistira a toda essa cena com imperturbável sangue-frio: enquanto a Maria apanhava e o Leonardo esbravejava, aquele ocupava-se tranquilamente em rasgar as folhas dos autos que este tinha largado ao entrar, e em fazer delas uma grande coleção de cartuchos. Quando, esmorecida a raiva, o Leonardo pôde ver alguma coisa mais do que seu ciúme, reparou então na obra meritória em que se ocupava o pequeno. Enfurece-se de novo: suspendeu o menino pelas orelhas, fê-lo dar no ar uma meia volta, ergue o pé direito, assenta-lhe em cheio sobre os glúteos atirando-o sentado a quatro braças de distância. – És filho de uma pisadela e de um beliscão; mereces que um pontapé te acabe a casta. O menino suportou tudo com coragem de mártir, apenas abriu ligeiramente a boca quando foi levantado pelas orelhas: mal caiu, ergueu-se, embarafustou pela porta fora, e em três pulos estava dentro da loja do padrinho, e atracandose-lhe às pernas. O padrinho erguia nesse momento por cima da cabeça do freguês a bacia de barbear que lhe tirara dos queixos: com o choque que sofreu a bacia inclinou-se, e o freguês recebeu um batismo de água de sabão. – Ora, mestre, esta não está má!... – Senhor, balbuciou este... a culpa é deste endiabrado... O que é que tens, menino? O pequeno nada disse, dirigiu apenas os olhos espantados para defronte, apontando com a mão trêmula nessa direção. 124 O compadre olhou também, aplicou a atenção, e ouviu então os soluços da Maria. – Hã! resmungou; já sei o que há de ser... eu bem dizia... ora aí está!... E desculpando-se com o freguês saiu da loja e foi acudir ao que se passava. Por estas palavras vê-se que ele suspeitara alguma coisa; e saiba o leitor que suspeitara a verdade. Espiar a vida alheia, inquirir dos escravos o que se passava no interior das casas, era naquele tempo coisa tão comum e enraizada nos costumes, que ainda hoje, depois de passados tantos anos, restam grandes vestígios desse belo hábito. Sentado pois no fundo da loja, afiando por disfarce os instrumentos do ofício, o compadre presenciara os passeios do sargento por perto da rótula de Leonardo, as visitas extemporâneas do colega deste, e finalmente os intentos do capitão do navio. Por isso contava ele mais dia menos dia com o que acabava de suceder. Chegando ao outro lado da rua empurrou a rótula que o menino ao sair deixara cerrada, e entrou. Dirigiu-se ao Leonardo, que se conservava ainda em posição hostil. – Ó compadre, disse, você perdeu o juízo?... – Não foi o juízo, disse o Leonardo em tom dramático, foi a honra!... A Maria, vendo-se protegida pela presença do compadre, cobrou ânimo, e altanando-se disse em tom de zombaria: – Honra!... honra de meirinho... ora! O vulcão de despeito que as lágrimas da Maria tinham apagado um pouco, borbotou de novo com este insulto, que não ofendia só um homem, porém uma classe inteira! Injúrias e murros à mistura caíram de novo sobre a Maria das mãos e da boca de Leonardo. O compadre, que se interpusera, levou alguns por descuido; afastou-se, pois, a distância conveniente, murmurando despeitado por ver frustrados seus esforços de conciliador: – Honra de meirinho é como fidelidade de saloia. Enfim serenou a tormenta: a Maria sentou-se a um canto a chorar e a maldizer a hora em que nascera, o dia em que pela primeira vez vira o Leonardo, a pisadela, o beliscão com que tinha começado o namoro a bordo, e tudo mais que a dor dos murros lhe trazia à cabeça. O Leonardo, depois de um pouco de calma, teve um momento de exasperação; avermelharam-se-lhe os olhos e as faces, cerrou os dentes, meteu as mãos nos bolsos do calção, inchou as bochechas e pôs-se a balançar 125 violentamente a perna direita. Depois, como tomando uma resolução extrema, juntou as folhas dispersas dos autos que o menino despedaçara, enterrou atravessado na cabeça o chapéu armado, agarrou na bengala, e saiu batendo com a rótula e exclamando: – Vá-se tudo com os diabos!... – Vai... vai... exclamou a Maria já de novo em segurança, pondo as mãos nas cadeiras, que o caso não há de ficar assim... pôr-me as mãos!... ora... vou com isto à justiça!... – Comadre... – Nada, não atendo, compadre... vou com isto à justiça, e apesar de ser ele um meirinhaço muito velhaco, há de se haver comigo. – É melhor não se meter nisto, comadre... sempre são negócios com a justiça... o compadre é seu oficial, e ela há de punir pelos seus. As ameaças da Maria não passavam de bravatas que lhe arrancava o despeito, e portanto com mais quatro razões do compadre cedeu, e foi restituída a paz em casa. Houve então larga conferência entre os dois, no fim da qual o compadre saiu dizendo: – Ele há de voltar... aquilo é gênio... há de passar... e se não... o dito está dito; fico com o pequeno. A Maria mostrou-se satisfeita. Tinha ela suas resoluções tomadas, ou anteriormente ou naquela ocasião, e por isso na conferência que referimos tratara de engordar o compadre e arrancar-lhe a promessa de que no caso de algum desarranjo tomaria a si e cuidaria do filho. Esse desarranjo ela figurara e o compadre acreditara que só partiria de Leonardo; porém o leitor vai ver que o pobre homem era condescendente, e que a Maria tinha razão quando falara ironicamente em honra de meirinho. Toda esta cena que acabamos de descrever passou-se de manhã. À tardinha o Leonardo entrou pela loja do compadre, aflito e triste. O pequeno estremeceu no banco em que se achava sentado, lembrando-se do passeio aéreo que o pontapé de seu pai lhe fizera dar de manhã. O compadre adiantouse e disse-lhe com um sorriso conciliador: – O passado passado; vamos... ela está arrependida... doidices de rapariga... mas não há de fazer outra... O Leonardo não respondeu; pôs-se a passear pela loja com as mãos cruzadas para trás e por baixo das abas da casaca; porém pelo seu semblante via-se que ele estimara as palavras do compadre, e que seria o primeiro a pronunciá-las se ele não o precedesse. – Vamos até lá, disse o compadre, e acabe-se tudo! Coitada!... ela ficou muito chorosa. 126 – Vamos, disse o Leonardo... Chegando à porta de casa fez uma pequena parada como quem tinha tomado a resolução de não entrar; mas o que ele queria eram algumas súplicas do compadre, que pudessem ser ouvidas pela Maria; a fim de fazê-la acreditar que se ele voltava era arrastado, e não por sua vontade. O compadre percebeu isto, e satisfez o pensamento de Leonardo dizendo: – Entre, homem... basta de criançadas... o passado passado. Entraram. A sala estava vazia; o Leonardo sentou-se junto de uma mesa, descansou o rosto numa das mãos, conservando sempre o chapéu armado atravessado na cabeça, o que lhe dava um aspecto entre cômico e melancólico. – Comadre, disse em voz alta o agente da conciliação, tudo está acabado; venha cá... Ninguém respondeu. – Há de estar aí a chorar metida em algum canto, tornou o compadre. E começou a procurar por toda a casa. Não era esta mui grande; em pouco percorreu-a toda, e ficou tomado do mais cruel desapontamento por não encontrar a Maria. Voltou portanto à sala entre consternado e espantado. O Leonardo, supondo que ele tinha achado a Maria, e que sem dúvida a trazia pela mão contrita e humilhada, quis fazer-se de bom: ergueu-se, meteu as mãos nos bolsos, e pôs-se de costas para o lugar donde vinha o compadre. – Ó compadre, disse este aproximando-se... – Nada, atalhou o Leonardo sem voltar-se... o dito por não dito...mudei de resolução!... – Olhe, homem... – Nada, nada... está tudo acabado... O Leonardo, dizendo isto, ia dando sempre as costas ao compadre, quando se lhe queria pôr de frente. – Homem... escute... olhe que a comadre... – Não quero saber dela... está tudo acabado; e já disse... – Foi-se embora... homem... foi-se embora, gritou o compadre impacientado. O Leonardo foi fulminado por estas palavras; voltou-se então todo trêmulo. Não vendo a Maria desatou a chorar. – Pois bem, disse entre soluços, está tudo acabado... adeus compadre! – Mas olhe que o pequeno... atalhou este. O Leonardo nada respondeu, e saiu precipitadamente. 127 O compadre compreendeu tudo: viu que o Leonardo abandonava o filho, uma vez que a mãe o tinha abandonado, e fez um gesto como quem queria dizer: Está bom, já agora... vá; ficaremos com uma carga às costas. Ao outro dia sabia-se por toda a vizinhança que a moça do Leonardo tinha fugido para Portugal com o capitão de um navio que partira na véspera de noite. – Ah! disse o compadre com um sorriso maligno, ao saber da notícia, foram saudades da terra!... Memórias de um sargento de milícias (capítulo 48 – Conclusão feliz) A comadre passou com a viúva e sua tia quase todo o tempo do nojo, e acompanhou-as à missa do sétimo dia. O Leonardo compareceu também nessa ocasião e levou a família à casa depois de acabado o sacrifício. Aquele aperto de mão que no dia do enterro de seu marido Luisinha dera ao Leonardo não caíra no chão a D. Maria, assim como também lhe não escaparam muitos outros fatos consecutivos a esse. O caso é que não lhe parecia extravagante certa ideia que lhe andava na mente. Muitas vezes, ao cair de ave-maria, quando a boa da velha se sentava a rezar na sua banquinha em um canto da sala, entre um padre-nosso e uma avemaria do seu bendito rosário vinha-lhe à ideia casar de novo a fresca viuvinha, que corria o risco de ficar de um momento para outro desamparada num mundo em que maridos, como José Manuel, não são difíceis de aparecer, especialmente a uma viuvinha apatacada. Ao mesmo tempo que lhe vinha esta ideia lembrava-se do Leonardo, que amara a sua sobrinha no tempo da criançada, e que era, apesar de extravagante, um bom moço, não de todo desarranjado, graças à benevolência do padrinho barbeiro. Verdade é que se não sabiam bem as contas que seu pai havia feito a esse respeito; mas como era coisa que constava de verba testamentária, D. Maria nada via de mais fácil do que propor uma demanda, cujo resultado não seria duvidoso. Havia porém no meio de tudo uma circunstância que lhe desconsertava os planos. O Leonardo era soldado. Ora, soldado, naquele tempo, era coisa de meter medo. Quando D. Maria chegava a este ponto de suas meditações, abandonavaas, e continuava o seu rosário. A comadre fazia quase exatamente os mesmos cálculos por sua parte, e também só esta única dificuldade se antolhava à realização de seus planos. Enquanto estas duas pensavam, os outros dois obravam. 128 Luisinha e Leonardo haviam reatado o antigo namoro; e quem quiser ver coisa de andar depressa é ver namoro de viúva. Na primeira ocasião Leonardo quis recorrer a uma nova declaração; Luisinha porém fez o processo sumário, aceitando a declaração de há tantos anos. Sem que os vissem, viam-se os dois muitas vezes, e dispunham seus negócios. Infelizmente ocorria-lhes a mesma dificuldade: um sargento de linha não podia casar. Havia talvez um meio muito simples de tudo remediar. Antes de tudo, porém, os dois amavam-se sinceramente; e a ideia de uma união ilegítima lhes repugnava. O amor os inspirava bem. Esse meio de que falamos, essa caricatura da família, então muito em moda, é seguramente uma das coisas que produziu o triste estado moral da nossa sociedade. Só essa dificuldade demorava os dois. Entretanto o Leonardo achou um dia o salvatério, e veio comunicar a Luisinha o meio que tudo remediava: podia ficar ele sendo soldado e casar, dando baixa na tropa de linha, e passando-se no mesmo posto para as milícias. A dificuldade, porém, estava ainda em arranjar-se essa baixa e essa passagem: Luisinha encarregou-se de vencer esse embaraço. Um dia em que estava sua tia a rezar no seu rosário, justamente num daqueles intervalos de padre-nosso a ave-maria de que acima falamos, Luisinha chegou a ela, e comunicou-lhe com confiança tudo que havia, fazendo preceder sua narração da seguinte declaração, que cortava a questão pela raiz: – Para lhe obedecer e fazer-lhe o gosto casei-me uma vez, e não fui feliz; quero ver agora se acerto melhor, fazendo por mim mesma nova escolha. Em breve, porém, conheceu que fora inútil sua precaução, porque D. Maria confessou que de há muito ruminava aquele mesmo plano. Combinaram-se pois as duas. A bondade do major inspirava-lhes muita confiança, e lembraram-se por isso de recorrer a ele de novo. Foram ter com Maria-Regalada, que mesmo na véspera lhes tinha mandado dar parte que se mudara da Prainha, e oferecia-lhes sua nova morada. A comadre, de tudo inteirada, fez parte da comissão. Quando entraram em casa de Maria-Regalada, a primeira pessoa que lhes apareceu foi o major Vidigal, e, o que é mais, o major Vidigal, em hábitos menores, de rodaque e tamancos. 129 – Ah! disse a comadre em tom malicioso, apenas apareceu a MariaRegalada, pelo que vejo isto por aqui vai bem... – Não se lembra, respondeu Maria-Regalada, daquele segredo com que obtive o perdão do moço? Pois era isto!... A Maria-Regalada tinha por muito tempo resistido aos desejos ardentes que nutria o major de que ela viesse definitivamente morar em sua companhia. Não atribuímos esta resistência senão a capricho, para não fazermos mau juízo de ninguém; o caso é que o major punha naquilo o maior empenho; teria lá suas razões. O segredo que a Maria-Regalada dissera ao ouvido do major no dia em que fora, acompanhada por D. Maria e a comadre, pedir pelo Leonardo, foi a promessa de que, se fosse servida, cumpriria o gosto do major. Está pois explicada a benevolência deste para com o Leonardo, que fora ao ponto de, não só disfarçar e obter perdão de todas as suas faltas, como de alcançar-lhe aquele rápido acesso de posto. Fica também explicada a presença do major em casa da Maria-Regalada. Depois disto entraram todos em conferência. O major desta vez achou o pedido muito justo, em consequência do fim que se tinha em vista. Com a sua influência tudo alcançou; e em uma semana entregou ao Leonardo dois papéis: um era a sua baixa de tropa de linha; outro, sua nomeação de sargento de milícias. Além disto recebeu o Leonardo ao mesmo tempo carta de seu pai, na qual o chamava para fazer-lhe entrega do que lhe deixara seu padrinho, que se achava religiosamente intacto. Passado o tempo indispensável do luto, o Leonardo, em uniforme de sargento de milícias, recebeu-se na Sé com Luisinha, assistindo à cerimônia a família em peso. Daqui em diante aparece o reverso da medalha. Seguiu-se a morte de D. Maria, a do Leonardo-Pataca e uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazendo aqui ponto-final. Comentários aos capítulos 2 e 48 de Memórias de um sargento de milícias O capítulo 2 representa a abertura da intriga propriamente dita. Começa a despontar o protagonista, Leonardo (filho). Começam a aparecer certos estigmas de nascimento e de educação, prenúncios já da forma realistanaturalista que se vislumbram na literatura brasileira. A concentração da narrativa sobre personagens da pequena-burguesia também aponta à mudança de pontos de vista ideológicos nos textos. Paralelamente aos episódicos hilariantes, que se desenrolam com frequência durante a narrativa, desenvolve-se a relação sentimental entre 130 Leonardo e Luisinha. Esse elo fica rompido temporariamente por causa do casamento de Luisinha com Manuel José, que, no entanto, falece prematuramente. Como atesta o capítulo 43, Luisinha, desimpedida para o casamento, em virtude da viuvez, casa-se com Leonardo. Assim se configuram outras tendências que afastam o texto de Memórias de um sargento de milícias da proposta romântica propriamente dita. O alcandorado desígnio ideológico da virgindade como valor fundamental para a felicidade no casamento começa a ruir. Uma viúva é, então, a personagem feminina central do enlace sentimental. Também a pseudoelevação do herói, por interseção de mulheres e pela ação interesseira e arbitrária de personagem um tanto grotesco, como Vidigal, desfere golpe mortal aos heróis românticos até então valorizados. Cabe ainda lembrar que, como os itens anteriormente comentados a partir dos parâmetros românticos, a conquista de bens econômicos também pode ser contada de maneira diversa à da transmissão por herança, já que Leonardo não consegue sua segurança econômica dessa maneira tradicional. A transmissão da herança foi durante muito tempo a maneira de assegurar riqueza e poder às famílias ditas aristocráticas. Ainda que a proposta romântica se tenha posto contra a aristocracia, especialmente na questão da escolha do par amoroso (os românticos bateram-se pela livre escolha dos amantes), noutros pontos não houve oposição radical. Permanece coerentemente, para a finalização do enredo em Memórias de um sargento de milícias, a centralidade das relações dominadas pelos sentimentos, valores fundamentais da vida e da literatura românticas: Vidigal aceita liberar Leonardo das perseguições e concede-lhe o título de sargento de milícias, para que tenha sustentação financeira para o casamento e limpe a reputação, que vinha sendo mantida um tanto manchada, durante o desenrolar do enredo. Segundo a narrativa, ser sargento de milícias assegurava igualmente a tranquilidade de não ser chamado para a guerra, caso guerra viesse a ocorrer, considerando que, de qualquer modo, Leonardo passa a ser militar. A segurança e a acomodação podem ter, portanto, tendo em vista a narrativa, formas incomumente consideradas como viáveis. 131 Bibliografia crítico-teórica e de referência AMORA, Antônio S. O Romantismo. São Paulo: Cultrix, 1967. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. CASTELLO, José A. Manifestações literárias da era colonial. São Paulo: Cultrix, 1967. CESAR, Guilhermino. História da literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1956. GONZAGA, Sérgius. Literatura brasileira.10. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. LINHARES, Temístocles. História crítica do romance brasileiro: 1728-1981. 3 v. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1987. LUFT, Celso P. Dicionário de literatura portuguesa e brasileira. 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Valverde, 1943. ---oo0oo--- 133 Volume 2 Sumário Realismo-Naturalismo-Parnasianismo, Simbolismo, Prémodernismo Capítulo 4 REALISMO-NATURALISMO-PARNASIANISMO / 136 Machado de Assis / 138 Memórias póstumas de Brás Cubas (capítulos) / 139 Dom Casmurro (capítulos) / 146 Missa do galo / 151 Círculo vicioso / 157 Aluísio de Azevedo / 158 O cortiço (excerto) / 158 Raul Pompeia / 162 O Ateneu (excerto) / 163 Adolfo Caminha / 169 Bom-crioulo (excerto) / 169 Raimundo Correia / 171 Mal secreto / 171 As pombas / 172 Anoitecer / 172 Olavo Bilac / 173 Profissão de fé / 173 Língua portuguesa / 176 Júlio Salusse / 177 Os cisnes / 177 Vicente de Carvalho / 177 Velho tema / 177 Luiz Araújo Filho / 178 Recordações gaúchas (excerto) / 172 134 Capítulo 5 SIMBOLISMO / 183 Cruz e Souza / 185 Antífona / 185 Lésbia / 186 Cárcere das almas / 186 Livre / 187 Monja / 187 Alphonsus de Guimaraens / 188 A catedral / 188 Pulchra ut luna / 189 Eduardo Guimaraens / 189 Canto ao velho minuano / 189 Capítulo 6 PRÉ-MODERNISMO / 192 Augusto dos Anjos / 193 Vencedor / 193 Versos íntimos / 194 Barcarola / 194 Alceu Wamosy / 197 A revolta do corvo / 197 Por quê? / 197 Oferta / 198 Duas almas / 198 Lopes Neto / 201 [Introdução aos Contos gauchescos] / 201 Trezentas onças / 203 A salamanca do Jarau / 209 Monteiro Lobato / 233 Negrinha / 233 Lima Barreto / 240 Triste fim de Policarpo Quaresma (excerto) / 240 Amaro Juvenal [Ramiro Barcelos] / 246 Antônio Chimango (excerto) / 246 Alcides Maya / 250 Ruínas vivas (excerto) / 251 135 Bibliografia crítico-teórica e de referência / 255 Córpus antológico / 256 136 Capítulo 4 Caipira picando fumo A mendiga Saudade Obras de Almeida Júnior (1893, 1899, 1899) REALISMO-NATURALISMO-PARNASIANISMO (1881 – 1893) O Realismo sucede ao Romantismo. Marcou-se como escola literária, cuja ideologia de suporte é o Positivismo. O Positivismo tem conexão propositiva com o Iluminismo. Ideologicamente, o Realismo mantém a utopia de que é possível ao homem conhecer objetivamente a realidade. A realidade considerada é a que se deixa observar pelos sentidos e pela dedução. Noutras palavras: crê-se, à época, que as coisas têm única dimensão e que, tomadas como objetos do conhecimento, podem ser conhecidas pelo ser humano. A noção de única dimensão das coisas, a que aqui se alude, na perspetiva realista, revela que as coisas são efetivamente o que os sentidos demonstram que aparentam ser. Para os realistas, o processo do conhecimento põe o objeto a ser conhecido fora da dimensão do sujeito. Essa é a marca de objetividade dos realistas. Sujeito e objeto não interagem. Essa concepção tem diversas consequências consideráveis. Uma delas é a oposição que essa proposta faz à dos românticos. Costuma-se dizer que os românticos são subjetivistas. Significa isso dizer que o sujeito do texto (autor e leitor, à sua vez) é primordial; que a partir dele as pessoas e as coisas do mundo têm tais ou quais valores. Os realistas preconizam, pois, posição oposta, ou seja, o sujeito (que vê, observa, examina) não interfere na concepção do que seja o objeto para o sujeito. O objeto tem, portanto, dimensão própria, independente do sujeito que o observa. Do ponto de vista estilístico, isso acarreta a desconsideração do sujeito do texto. Essa soma de entendimentos constrói um paradoxo técnico-literário. Autor e leitor se limitam no texto, considerando-se que limitar significa tanto separar quanto aproximar. 137 O autor lê o mundo, reflete sobre ele e o literaturiza. O leitor lê o texto, mas tem como referência o mundo. Se o mundo é realmente o texto, é negada ao leitor a interpretação. A interpretação pressupõe diálogo com o texto, com todas as consequências desse fato: o texto não é o mundo, mas uma interpretação que o autor faz dele. Do modo análogo, o leitor interpreta o mundo de acordo com suas condições (culturais, sociais, experienciais etc). O texto, por conseguinte, depende, pelo menos parcialmente, também do leitor. O objeto, portanto, depende do sujeito. É aconselhável, outrossim, não confundir realidade com real. O real, que é central em qualquer arte, é central na literatura. O real é a conjunção de realidade, imaginário e imaginação. O real assume valor preponderante relativamente à realidade, porque a realidade é destrutível. A escola realista tem três estilos de época: o próprio Realismo, o Naturalismo e o Parnasianismo. O realismo brasileiro consiste, quase integralmente, segundo se observa no estudo da crítica do Brasil, na obra machadiana. Ordem e o progresso, lema positivista que se lê na nossa bandeira, não aparece com clareza na obra machadiana considerada realista. Nosso realismo demonstra-se, na leitura da obra de Machado de Assis, produção literária psicologista e de demolição de costumes e do ambiente social focalizado, o do Rio de Janeiro, a corte, pelo menos simbólica. O naturalismo, no Brasil, segue tendências internacionais. Focaliza casos grotescos da vida humana. Explora temas até então reprimidos, como prostituição, homossexualismo, consequências do celibato religioso, avareza, semidemência... Os ambientes constituem em geral recortes de coletividades, como favelas, marinheiros embarcados, internatos escolares, grupos humanos de atividades iguais ou semelhantes. O Parnasianismo também tende à dimensão universalizante. Preocupa-se com a construção de temas inindividualizados. Em geral, os poemas parnasianos geralmente ou são descritivos ou tematizam condições adversas da vida humana, o que tem atraído a tendência da crítica de classificá-lo como pessimista. Nesse item, não discrepa da obra narrativa realista machadiana, que muitas vezes é vista também desse modo. O cientificismo marcou a escola, especialmente na prosa, em decorrência da proposta positivista. O estilo de construção de temas realistas está bem marcado pela psicologia e pela psicanálise, recém-instalada. O estilo de construção de temas naturalistas carateriza-se pelo desenvolvimento das noções de hereditariedade biológica e de predomínio do meio ambiente sobre a formação psicossomática dos grupos sociais e consequências expressivas, em coerência com meio e personagens. A defesa do purismo linguístico, de fato insustentável, definiu grande parte da produção parnasiana. 138 O discurso literário realista mantém-se conetado a formas legitimadas da língua, embora demonstre criatividade ao aplicá-las. O discurso naturalista incursiona por formas populares, em coerência com a maioria dos personagens. O parnasiano é cuidado, restritivo e às vezes formalista. O formalismo parnasiano desencadeou a noção de que a obra parnasiana tende à arte pela arte. Isso, em parte pelo menos, desvinculou a produção poética parnasiana dos meios populares brasileiros. Joaquim Maria MACHADO DE ASSIS Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro em 1839 e morreu na mesma cidade em 1908. Foi jornalista, contista, cronista, romancista, poeta, crítico e teatrólogo. Era filho de operários. Cedo perdeu a mãe. Foi criado no morro do Livramento. Desenvolveu, desde menino, atividades de sobrevivência. Sem meios para cursos regulares, estudou como pôde. O emprego de aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional lhe abriu o meio editorial fluminense da época e a amizade de Manuel Antônio de Almeida. Nessa época, começou a escrever os primeiros versos, alguns dos quais foram publicados no jornal A marmota. Em 1860, foi convidado por Quintino Bocaiúva a colaborar no Diário do Rio de Janeiro. Casou-se com Carolina Augusta Xavier de Novais. Não tiveram filhos. Machado de Assis é considerado um dos maiores talentos literários brasileiros de todos os tempos. Suas obras são repassadas de fino humor irônico, compostas em estilo elaborado. A estreia de seu nome deu-se em Queda que as mulheres têm pelos tolos (1861). Embora o texto apareça como tradução, parte da crítica informa que se trata de autoria. Depois disso, publicou várias peças teatrais. Em 1864, apareceu o livro de poemas Crisálidas. Em 1870, publicou Falenas (poemas) e Contos fluminenses. A partir daí, o público e a crítica consagraram seus méritos de escritor. Machado de Assis foi fundador da Academia Brasileira de Letras e seu primeiro presidente. Ocupou a Cadeira n. 23, cujo patrono é José de Alencar, que também foi amigo dele. Obra: Além de Crisálidas e Falenas, publicou Americanas (1875) e Ocidentais (em Poesias completas, 1901) – poemas. Contos fluminenses (1870); Histórias da meia-noite (1873); Papéis avulsos (1882); Histórias sem data (1884); Várias histórias (1896) – contos. Ressurreição (1872); A mão e a luva (1874); Helena (1876); Iaiá Garcia (1878); Memórias póstumas de Brás Cubas (1881); Quincas Borba (1891); Dom Casmurro (1899); Esaú e Jacó (1904); Memorial de Aires (1908) – romances. O caminho da porta e O protocolo (1863); Quase ministro (1864); Os deuses de casaca (1866); Uma ode a Anacreonte 139 (1870); O pote de rapé (1878); Antes da missa (1878); Tu, só tu, puro amor (1881); Não consultes médico (1896); Lição de botânica (1906) – teatro. Páginas recolhidas (1899); Relíquias da casa velha (1906); Outras relíquias (1910) – crônicas. Crítica (1910); A semana (1914); Novas relíquias (1932) – crítica em edições póstumas. Casa velha (1944), novela editada postumamente. Memórias póstumas de Brás Cubas Ao leitor Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte, e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião. Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se não te agradar, pago-te com um piparote, e adeus. Comentários a Ao leitor Ao leitor consiste no que hoje chamaríamos de introdução, ou seja, um texto que introduz o leitor no tipo de obra que vem a seguir. Tem a finalidade de explicar procedimentos, para melhor abordagem do texto maior. Segundo se lê acima, procura ser um prólogo. Prólogo equivale a prefácio: pequeno texto de apresentação de obras, com explicação sobre temáticas trabalhadas, objetivos e ou sobre o autor. Pelo prólogo, o leitor já se pergunta se o realismo do texto coincide mesmo com a proposta de uma escola literária que pressupõe a possibilidade de apreensão do mundo como se mostra em aparência, porque o pseudoautor (e narrador) é um morto. Imediatamente, o texto demonstra que está marcado por ironia e algo de humor. 140 Em “[...] a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance [...]” e “[...] a gente frívola não achará nele o seu romance usual [...]”, há bastante que ler. A primeira sentença afirma que a maioria das pessoas padece de seriedade que lhe impede de admitir que nem tudo é como parece. Os graves, pelo que se lê, torcem o nariz para a arte, no caso, para a literatura, dita no substantivo romance. Tangencia, portanto, aquela ideia um tanto vulgar de que o que não aconteceu no mundo concreto-sensorial não é coisa séria. De acordo com o texto, a segunda grande coluna de opinião é composta de frívolos. Para esses, romances (leia-se narrativas) sem episódios atraentes pontificados por heróis admiráveis não são bem recebidos. Trata-se mais ou menos do que ocorre atualmente com algumas telenovelas, filmes e livros transformados em empreendimentos prioritariamente lucrativos. Com a afirmação de que “o melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado”, o texto, ao tempo em que diz que prólogos são suprimíveis, sugere que prólogos não devem explicar a obra a que se referem e devem ser breves. Caso haja o prólogo, ironiza que não precisa ser claro nem inteligível. Surpreendentemente ou não, é o que grande parte da crítica, inclusive certa crítica de origem universitária faz hoje. Depois, o prólogo trata do “[...] processo extraordinário [...]”, incomum, empregado na construção do romance. Demonstra, portanto, preocupação metanarrativa, como também ocorre atualmente, na escola denominada pósmodernista. No último período, “a obra em si mesma é tudo [...]” representa posicionamento crítico decisivo. É uma lição que, se aceita, pode orientar leitores e professores. Literatura se faz na leitura do texto literário. Discussões críticas auxiliam leitores e autores, mas não são a literatura propriamente dita. História da literatura auxilia na compreensão da cultura em geral, mas tampouco substitui a leitura dos textos. O menino é pai do homem (cap. 11) Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, e, com certeza, as magnólias são menos inquietas do que eu era na minha infância. Um poeta dizia que o menino é pai do homem. Se isso é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino. Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher de doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito com a travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um 141 moleque da casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia –algumas vezes gemendo –, mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – “ai, nhonhô!” – ao que eu retorquia: – “Cala a boca, besta!” Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e, se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos. Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéus; mas opiniático, egoísta e algo contemptor dos homens, isso fui; se não passei o tempo a esconder-lhes os chapéus, alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabeleiras. Outrossim, afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares. Minha mãe doutrinavame a seu modo, fazia-me decorar alguns preceitos e orações; mas eu sentia que, mais do que as orações, me governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia o espírito, que a faz viver, para se tornar uma vã fórmula. De manhã, antes do mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manhã e a noite fazia uma grande maldade, e meu pai, passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: Ah! brejeiro! Ah! brejeiro! Sim, meu pai adorava-me. Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramente piedosa – caseira, apesar de bonita, e modesta, apesar de abastada; temente às trovoadas e ao marido. O marido era na Terra o seu deus. Da colaboração dessas duas criaturas nasceu a minha educação, que, se tinha alguma coisa boa, era no geral viciosa, incompleta, e, em partes, negativa. Meu tio cônego fazia às vezes alguns reparos ao irmão; dizia-lhe que ele me dava mais liberdade do que ensino e mais afeição do que emenda; mas meu pai respondia que aplicava na minha educação um sistema inteiramente superior ao sistema usado; e, por esse modo, sem confundir o irmão, iludia-se a si próprio. De envolta com a transmissão e a educação, houve ainda um exemplo estranho, o meio doméstico. Vimos os pais; vejamos os tios. Um deles, o João, era um homem de língua solta, vida galante, conversa picaresca. Desde os onze anos entrou a admitir-me às anedotas reais ou não, eivadas todas de obscenidade ou imundície. Não me respeitava a adolescência, como não respeitava a batina do irmão; com a diferença que este fugia logo que ele enveredava por assunto escabroso. Eu não; deixava-me estar, sem entender 142 nada, a princípio, depois entendendo, e enfim achando-lhe graça. No fim de certo tempo, quem o procurava era eu; e ele gostava muito de mim, dava-me doces, levava-me a passeio. Em casa, quando lá ia passar alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achá-lo, no fundo da chácara, no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; aí é que era um desfiar de anedotas, de ditos, de perguntas e um estalar de risadas, que ninguém podia ouvir, porque o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a arregaçarlhes um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque, outras fora, inclinadas sobre as peças de roupa, a batê-las, a ensaboá-las, a torcê-las, iam ouvindo e redarguindo às pilhérias do tio João, e a comentá-las de quando em quando com esta palavra: – Cruz, diabo!... Esse sinhô João é o diabo! Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha muita austeridade e pureza; tais dotes, contudo, não realçavam um espírito superior, apenas compensavam um espírito medíocre. Não era homem que visse a parte substancial da Igreja; via o lado externo, a hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que uma infração dos mandamentos. Agora, a tantos anos de distância, não estou certo se ele poderia atinar facilmente com um trecho de Tertuliano, ou expor, sem titubear, a história do símbolo de Nicéia; mas ninguém, nas festas cantadas, sabia melhor o número e caso das cortesias que se deviam ao oficiante. Cônego foi a única ambição de sua vida; e dizia de coração que era a maior dignidade a que podia aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso na observância das regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuía algumas virtudes, em que era exemplar, mas carecia absolutamente da força de as incutir, de as impor aos outros. Não digo nada de minha tia materna, Dona Emerenciana, e aliás era a pessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa diferenciava-se grandemente dos outros; mas viveu pouco tempo em nossa companhia, uns dois anos. Outros parentes e alguns íntimos não merecem a pena de ser citados; não tivemos uma vida comum, mas intermitente, com grandes claros de separação. O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada – vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor. A casinha (cap. 67) Jantei e fui a casa. Lá achei uma caixa de charutos, que me mandara o Lobo Neves, embrulhada em papel de seda, e ornada de fitinhas cor-de-rosa. Entendi, abri-a, e tirei este bilhete: “Meu B... 143 Desconfiam de nós; tudo está perdido; esqueça-me para sempre. Não nos veremos mais. Adeus; esqueça-se da infeliz V...a.” Foi um golpe esta carta; não obstante, apenas fechou a noite, corri à casa de Virgília. Era tempo; estava arrependida. Ao vão de uma janela, contou-me o que se passara com a baronesa. A baronesa disse-lhe francamente que se falara muito, no teatro, na noite anterior, a propósito da minha ausência do camarote do Lobo Neves; tinha comentado as minhas relações em casa; em suma, éramos objeto de suspeita pública. Concluiu dizendo que não sabia que fazer. – O melhor é fugirmos, insinuei. – Nunca, respondeu ela abanando a cabeça. Vi que era impossível separar duas coisas que no espírito dela estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a consideração pública. Virgília era capaz de iguais e grandes sacrifícios para conservar ambas as vantagens, e a fuga só lhe deixava uma. Talvez senti alguma coisa semelhante a despeito; mas as comoções daqueles dois dias eram já muitas, e o despeito morreu depressa. Vá lá; arranjemos a casinha. Com efeito, achei-a, dias depois, expressamente feita, em um recanto de Gamboa. Um brinco! Nova, caiada de fresco, com quatro janelas na frente e duas de cada lado, – todas com venezianas cor de tijolo, – trepadeira nos cantos, jardim na frente; mistério e solidão. Um brinco! Convencionamos que iria morar ali uma mulher, conhecida de Virgília, em cuja casa fora costureira e agregada. Virgília exercia sobre ela verdadeira fascinação. Não se lhe diria tudo; ela aceitaria facilmente o resto. Para mim era aquilo uma situação nova do nosso amor, uma aparência de posse exclusiva, de domínio absoluto, alguma coisa que me faria adormecer a consciência e resguardar o decoro. Já estava cansado das cortinas de outro, das cadeiras, do tapete, do canapé, de todas essas coisas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa duplicidade. Agora podia evitar os jantares frequentes, o chá de todas as noites, enfim a presença do filho deles, meu cúmplice e meu inimigo. A casa resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria à porta; – dali para dentro era o infinito, um mundo eterno, superior, excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, sem instituições, sem baronesa, sem olheiros, sem escutas, – um só mundo, um só casal, uma só vida, uma só vontade, uma só afeição, – a unidade moral de todas as coisas pela exclusão das que me eram contrárias. O senão do livro (cap. 71) Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, 144 porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem. E caem! – Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-ia uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar... Heis de cair. A história de Dona Plácida (cap. 74) Não te arrependas de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma confidência de Dona Plácida, e conseguintemente este capítulo. Dias depois, como eu a achasse só em casa, travamos palestra, e ela contou-me em breves termos a sua história. Era filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora. Perdeu o pai aos dez anos. Já então ralava coco e fazia não sei o que outros trabalhos de doceira, compatíveis com a idade. Aos quinze ou dezesseis casou com um alfaiate, que morreu tísico algum tempo depois, deixando-lhe uma filha. Viúva e moça, ficaram a seu cargo a filha, com dois anos, e a mãe, cansada de trabalhar. Tinha de sustentar a três pessoas. Fazia doces, que era seu ofício, mas cosia também, de dia e de noite, com afinco, para três ou quatro lojas, e ensinava algumas crianças do bairro, a dez tostões por mês. Com isto iam-se passando os anos, não a beleza, porque não a tivera nunca. Apareceram-lhe alguns namoros, propostas, seduções, a que resistia. – Se eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ela, creia que me teria casado; mas ninguém queria casar comigo. Um dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; não sendo, porém, mais delicado que os outros, Dona Plácida despediu-o do mesmo modo, e, depois de o despedir, chorou muito. Continuou a coser para fora e a escumar os tachos. A mãe tinha a rabugem do temperamento, dos anos e da necessidade; mortificava a filha para que tomasse um dos maridos de empréstimo e de ocasião que lha pediam. E bradava: – Queres ser melhor do que eu? Não sei donde te vêm essas fidúcias de pessoa rica. Minha camarada, a vida não se arranja à toa; não se come vento. Ora esta! Moços tão bons como Policarpo da venda, coitado... esperas algum fidalgo, não é? Dona Plácida jurou-me que não esperava fidalgo nenhum. Era gênio. Queria ser casada. Sabia muito bem que a mãe o não fora, e conhecia algumas que tinham só o seu moço delas; mas era gênio e queria ser casada. Não queria também que a filha fosse outra coisa. Trabalhava muito, queimando os dedos ao fogão, e os olhos ao candeeiro, para comer e não cair. Emagreceu, adoeceu, perdeu a mãe, enterrou-a por subscrição, e continuou a trabalhar. A filha estava 145 com quatorze anos; mas era muito fraquinha, e não fazia nada, a não ser namorar os capadócios que lhe rondavam a rótula. Dona Plácida vivia com imensos cuidados, levando-a consigo, quando tinha de ir entregar costuras. A gente das lojas arregalava e piscava os olhos, convencida de que ela a levava para colher marido ou outra coisa. Alguns diziam graçolas, faziam cumprimentos; a mãe chegou a receber propostas de dinheiro... Interrompeu-se um instante, e continuou logo: – Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber... Deixou-me só, mas tão triste, tão triste, que pensei morrer. Não tinha ninguém mais no mundo e estava quase velha e doente. Foi por esse tempo que conheci a família de Iaiá: boa gente, que me deu que fazer, e até chegou a me dar casa. Estive lá muitos meses, um ano, mais de um ano, agregada, costurando. Saí quanto Iaiá casou. Depois vivi como Deus foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas mãos... E mostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas de agulhas. – Não se cria isto à toa, meu senhor; Deus sabe como é que isto se cria... Felizmente, Iaiá me protegeu, e o senhor doutor também... Eu tinha um medo de acabar na rua, pedindo esmola... Ao soltar a última frase, Dona Plácida teve um calafrio. Depois, como se tornasse a si, pareceu atentar na inconveniência daquela confissão ao amante de uma mulher casada, e começou a rir, a desdizer-se, a chamar-se tola, “cheia de fidúcias”, como lhe dizia a mãe; enfim, cansada do meu silêncio, retirou-se da sala. Eu fiquei a olhar para a ponta do botim. Comentários aos excertos de Memórias póstumas de Brás Cubas Em O menino é pai do homem, o texto analisa a educação familiar e o meio como formador da personalidade. Parece que, por trás de tudo, está o aviso de que o memorando (por ele mesmo) não abrigará sentimentos de amor a quem quer que seja. A ironia, que se manifesta aqui e ali, se transmuta em sarcasmo no último período. Em A casinha, lê-se a organização de relações amorosas paralelas, em ambiente burguês. Não deixa de haver também uns pontos de ridículos algo hilariantes. Sobretudo, examina-se aí o egoísmo. Em O senão do livro, o narrador, como faz com frequência, interrompe a narrativa sequenciada para comentar a forma constitutiva da narrativa do texto. Apresenta-se aí ao leitor a contraditória condição da soberba. O capítulo 74, A história de dona Plácida, provavelmente seja um dos trechos que o leitor atento não esquecerá facilmente. Para mostrar as desigualdades, em que sobressaem o sacrifício existencial de uns em contraposição à comodidade hipócrita de outros, o capítulo narra a doída dependência de dona Plácida a qualquer compromisso que lhe supra as necessidades que a ameaçam. Em contracena, Brás não vê outra coisa que seus botins: não tem horizontes, não pretende reformar pontos de vista, recusa reflexões. 146 Essas são, em pequena porção, algumas das memórias do “defunto autor”, como o narrador se autoclassifica no capítulo 1. Sem compromisso, sequer de coerência, com o mundo dos vivos, não encontra dificuldades em usar a crua sinceridade, que a escola literária permitiu ao texto. Dom Casmurro Do título (cap. 1) Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso. – Continue, disse eu acordando. – Já acabei, murmurou ele. – São muito bonitos. Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: “Dom Casmurro, domingo vou jantar com você”. – “Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo”. – “Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça”. Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto. 147 As leis são belas (cap. 26) Pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo de uma ideia – uma ideia que o alegrou extraordinariamente. Calou-se alguns instantes; eu tinha os olhos nele, ele voltara os seus para o lado da barra. Como insistisse: – É tarde, disse ele; mas, para lhe provar que não há falta de vontade, irei falar a sua mãe. Não prometo vencer, mas lutar: trabalharei com alma. Deveras, não quer ser padre? As leis são belas, meu querido... Pode ir a São Paulo, a Pernambuco, ou ainda mais longe. Há boas universidades por esse mundo fora. Vá para as leis, se tal é a sua vocação. Vou falar a D. Glória, mas não conte só comigo; fale também a seu tio. – Hei de falar. – Pegue-se também com Deus, – com Deus e a Virgem Santíssima, concluiu apontando para o céu. O céu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes pássaros negros faziam giros, avoaçando ou pairando, e desciam a roçar os pés na água, e tornavam a erguer-se para descer novamente. Mas nem as sombras do céu, nem as danças fantásticas dos pássaros me desviavam o espírito do meu interlocutor. Depois de lhe responder que sim, emendei-me: – Deus fará o que o senhor quiser. – Não blasfeme. Deus é dono de tudo; ele é, só por si, a terra e o céu, o passado, o presente e o futuro. Peça-lhe a sua felicidade, que eu não faço outra coisa... Uma vez que você não pode ser padre, e prefere as leis... As leis são belas, sem desfazer da teologia, que é melhor que tudo, como a vida eclesiástica é a mais santa... Por que não há de ir estudar leis fora daqui? Melhor é ir logo para alguma universidade e, ao mesmo tempo que estuda, viaja. Podemos ir juntos: veremos as terras estrangeiras, ouviremos inglês, francês, espanhol, italiano, russo e até sueco. D. Glória provavelmente não poderá acompanhá-lo; ainda que possa e vá, não quererá guiar os negócios, papéis, matrículas, e cuidar de hospedarias, e andar com você de um lado para o outro... Oh! As leis são belíssimas! – Está dito, pede a mamãe que me não meta no seminário. – Pedir, peço, mas pedir não é alcançar: Anjo de meu coração, se vontade de servir é poder de mandar, estamos aqui, estamos a bordo. Ah! você não imagina o que é a Europa; oh! a Europa... Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma das suas ambições era tornar à Europa, falava dela muitas vezes, sem acabar de tentar minha mãe nem tio Cosme, por mais que louvasse os ares e as belezas... Não contava com essa possibilidade de ir comigo e lá ficar durante a eternidade de meus estudos. – Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo! 148 Olhos de ressaca (cap. 32) Tudo era matéria às curiosidade de Capitu. Caso houve, porém, no qual não sei se aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as coisas, como eu. É o que contarei no outro capítulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal, nem esperou que eu lhe perguntasse pela filha. – Está na sala, penteando o cabelo, disse-me; vá devagarzinho para lhe pregar um susto. Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este pode ser que não fosse; era um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão, pendente da parede, entre as duas janelas. Se não foi ele, foi o pé. Um ou outro, verdade é que, apenas entrei na sala, pente, cabelos, toda ela voou pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta: – Há alguma coisa? – Não há nada, respondi; vim ver você antes que o Padre Cabral chegue para a lição. Como passou a noite? – Eu bem. José Dias ainda não falou? – Parece que não. – Mas então quando fala? – Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assunto; não vai logo de pancada, falará assim por alto e por longe, um toque. Depois, entrará na matéria. Quer primeiro ver se mamãe tem a resolução feita... – Que tem, tem, interrompeu Capitu. E se não fosse preciso alguém para vencer já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias poderá influir tanto; acho que fará tudo, se sentir que você realmente não quer ser padre, mas poderá alcançar?... Ele é atendido; se, porém... É um inferno isso! Você teime com ele, Bentinho. – Teimo; hoje mesmo ele há de falar. – Você jura? – Juro! Deixe ver os olhos, Capitu. Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe 149 deu outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los de mais perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que... Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluído misterioso e energético, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitu, mas então com as mãos, e disse-lhe – para dizer alguma coisa – que era capaz de os pentear, se quisesse. – Você? – Eu mesmo. – Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim. – Se embaraçar, você desembaraça depois. – Vamos ver. O penteado (cap. 33) Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos cabelos, colhi-os todos e entrei a alisá-los com o pente, desde a testa até as últimas pontas, que lhe desciam à cintura. Em pé não dava jeito: não esquecestes que ela era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse. – Senta aqui, é melhor. Sentou-se. “Vamos ver o grande cabeleireiro”, disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Nas as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo 150 tato aqueles fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Não pedi ao céu que eles fossem tão longos como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. Se isso vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma jovem pequena, nunca puseste as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa; digamos somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e pagãs. Enfim, acabei as duas tranças. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas? Em cima da mesa, um triste pedaço da fita enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra alargando aqui, achatando ali, até que exclamei: – Pronto! – Estará bom? – Veja no espelho. Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos para ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela, rosto a rosto, mas trocados, os olhos de uma na linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu. – Levanta, Capitu! Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e... Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até a parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam, vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso, atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas... Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos. 151 Comentários aos capítulos de Dom Casmurro No capítulo 1, o narrador, Dom Casmurro, informo ao leitor o motivo do título do romance. Não cogita sequer em explicar por que o preferiu, uma vez que, no último capítulo, se refere à narrativa como História dos subúrbios, apesar de dizer que “[...] se não tiver outro até o fim do livro, vai esse mesmo”. Não fecha o ciclo do romance, como não se fecha o ciclo da vida que pretendeu. Já longe da juventude, não consegue conceber ou valorizar o mundo juvenil. Também se pode ver aí o desencontro humano, na imagem do moço romântico em mundo que desconsidera o eu do outro. “Tudo por estar [Dom Casmurro] cochilando!” No último período do capítulo, ainda sobra espaço para fustigar as escolas literárias que formam epígonos, em vez de inventivos. Em As leis são belas, a narrativa analisa a ação e a reação provocadas pelas conveniências, como já fizera em Memórias póstumas de Brás Cubas, mas aqui de maneira diferente. Há intenções geridas por interessas, mas não há decisões. Desse modo, ficam examinados os carateres dos personagens envolvidos. No capítulo 32, Olhos de ressaca, começa-se a aprofundar o exame da alma feminina, no romance. O objeto é Capitu, e o examinador é Bentinho, então vistos ambos por Dom Casmurro. Capitu já demonstra-se resoluta, planejadora, firme. A par disso, narra-se a (um tanto) desajeitada aproximação física de dois adolescentes. N’O penteado, o recurso estilístico básico é a ironia. A partir de experiências que o leitor quase certamente tem (o referente do texto é o mundo), o texto desenvolve a precocidade da menina e a dependência de Bentinho. Certamente, não é gratuito o fato de levarem os nomes que levam. O capítulo deixa o leitor observar que o narrador-personagem sugere que Capitu, porque era pobre, tinha outros interesses em relação a ele. Fica implícito também que, como Bentinho, não se poderia ter dado conta disso. São raciocínios que fundamentam as acusações contra Capitu, que ele faz durante a narrativa. Missa do galo Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordálo à meia-noite. A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranquilo, naquela casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos 152 quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro e, mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se e acabou achando que era muito direito. Boa Conceição! Chamavam-lhe a santa, e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar. Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver a missa do galo na Corte. A família recolheu-se à hora do costume; eu metime na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa. – Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de Conceição. – Leio, D. Inácia. Tinha comigo um romance, os Três mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala e, à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição. – Ainda não foi? perguntou ela. – Não fui; parece que ainda não é meia-noite. – Que paciência! 153 Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza: – Não! qual! Acordei por acordar. Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa. – Mas a hora já há de estar próxima, disse eu. – Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu. – Quando ouvi os passos, estranhei; mas a senhora apareceu logo. – Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros. – Justamente: é muito bonito. – Gosta de romances? – Gosto. – Já leu A Moreninha? – Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba. – Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido? Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meiocerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos. – Talvez esteja aborrecida, pensei eu. E logo alto: – D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu... – Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia? 154 – Já tenho feito isso. – Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha. – Que velha o quê, D. Conceição? Tal foi o calor da minha palavra, que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranquilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, davame uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou consertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas ideias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte e não queria perdê-la. – É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem. – Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. São João não digo, nem Santo Antônio... Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muitos claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que, apesar da pouca claridade, podia contálas do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade e de outras coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por quê, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e verlhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me: – Mais baixo! Mamãe pode acordar. E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho: 155 – Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono. – Eu também sou assim. – O quê? perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor. Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves. – Há ocasiões em que sou como mamãe: acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me, e nada. – Foi o que lhe aconteceu hoje. – Não, não, atalhou ela. Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me: – Mais baixo, mais baixo... Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes, creio que deu por mim embebido na sua pessoa e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede. – Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros. Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio desse homem. Um representava Cleópatra; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios. – São bonitos, disse eu. 156 – Bonitos são; mas estão manchados. E depois, francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro. – De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro. – Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório. A ideia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos. Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos e entrou a olhar à toa para as paredes. – Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo. Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo. Chegamos a ficar por algum tempo - não posso dizer quanto - inteiramente calados. O rumor único e escasso era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: Missa do galo! missa do galo! – Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus. – Já serão horas? perguntei. – Naturalmente. 157 – Missa do galo! repetiram de fora, batendo. – Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã. E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez entre mim e o padre; fique isso à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo AnoBom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido. Comentários ao conto Missa do galo Missa do galo é outro exemplo de narrativa realista. Tematiza o retorno ao passado pessoal, em que o narrador procura entender relações passadas. Sem episódios fulgurantes sem mesmo ação notável, o conto se detém em reflexões do personagem-narrador. Embora deixe notar certa hipocrisia (o fato de ter entendido posteriormente a intenção de Conceição), o narrador guia o leitor no conjunto narrativo de discurso sedutor e subliminar proposta sedutora, na temática. Círculo vicioso Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume: “Quem me dera que fosse aquela loura estrela, Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!” Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme: “Pudesse eu copiar-te o transparente lume, Que, da grega coluna à gótica janela, Contemplou, suspirosa, a fonte amada e bela”... Mas a lua fitando o sol com azedume: “Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela Claridade imortal, que toda a luz resume!” Mas o sol, inclinando a rútila capela: “Pesa-me esta brilhante auréola de nume... Enfara-me esta azul e desmedida umbela... Por que não nasci eu um simples vaga-lume?” Comentários ao poema Círculo vicioso O poema comparece com o objetivo principal de expor o parnasianismo de Machado de Assis. Embora seja carateristicamente um soneto, a construção 158 rímica vai além do que tradicionalmente se requer para essa forma poemática: o poema mantém nos tercetos as rimas externas iniciadas nos quartetos. Tematicamente, o poema reflete sobre a insatisfação humana, utilizando elementos da natureza e cósmicos. ALUÍSIO Tancredo Gonçalves de AZEVEDO Aluísio de Azevedo nasceu em São Luís (MA) em 1857. Estudou de Artes no Rio de Janeiro. Colaborou com caricaturas e poemas em jornais e revistas. Seu primeiro romance, Uma lágrima de mulher (1880), em estilo romântico, lhe rendeu leitores e posição crítica positiva. Como diplomata esteve na Espanha, Japão, Uruguai, Inglaterra, Itália, Paraguai e Argentina. Faleceu em 1913 em Buenos Aires. Um ano depois do romance de estreia, saiu O mulato (1881), em que o autor tenta analisar a posição do mestiço na sociedade maranhense da época. Tentou lançar em São Luís um periódico anticlerical intitulado O pensador (1881). A reações hostis fizeram com que voltasse definitivamente para o Rio de Janeiro. Além de O mulato, os romances que o consagraram perante a crítica e o público foram Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890), considerado sua obra-prima. Outros romances: A condessa de Vésper (1902), inicialmente em folhetim, sob o título Memórias de um condenado (1882); Girândola de amores (1900), inicialmente em folhetim (1882), como Mistério da Tijuca; Filomena Borges (1884); O homem (1887); O Coruja (1895), inicialmente em rodapé de jornal (1889); O esqueleto (mistérios da casa de Bragança) (1890), sob o pseudônimo de Victor Leal; A mortalha de Alzira (1893); O livro de uma sogra (1895), além dos contos de Demônios (1890). O cortiço (cap. 1) João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna nos refolhos do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara nessa dúzia de anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro, como ainda um conto e quinhentos em dinheiro. Proprietário e estabelecido por sua conta, o rapaz atirou-se à labutação ainda com mais ardor, possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa cheio de palha. A comida arranjava-lha, mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua 159 vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente de Juiz de Fora e amigada com um português que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade. Bertoleza também trabalhava forte; a sua quitanda era a mais bem afreguesada do bairro. De manhã vendia angu, e à noite peixe frito e iscas de fígado; pagava de jornal a seu dono vinte mil-réis por mês, e, apesar disso, tinha de parte quase que o necessário para a alforria. Um dia, porém, o seu homem, depois de correr meia légua, puxando uma carga superior às suas forças, caiu morto na rua, ao lado da carroça, estrompado como uma besta. João Romão mostrou grande interesse por essa desgraça, fez-se até participante direto dos sofrimentos da vizinha, e com tamanho empenho a lamentou, que a boa mulher o escolheu para confidente das suas desventuras. Abriu-se com ele, contou-lhe a sua vida e amofinações e dificuldades. “Seu senhor comia-lhe a pele do corpo! Não era brinquedo para uma pobre mulher ter de escarrar pr’ali, todos os meses, vinte mil-réis em dinheiro!” Segredou-lhe então o que tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos. Daí por diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro da crioula. No fim de pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo que ela produzia, e era também quem punha e dispunha dos seus pecúlios, e quem se encarregava de remeter ao senhor os vinte mil-réis mensais. Abriu-lhe logo uma conta corrente, e a quitandeira, quando precisava de dinheiro para qualquer coisa, dava um pulo até à venda e recebia-o das mãos do vendeiro, de “Seu João”, como ela dizia. Seu João debitava metodicamente essas pequenas quantias num caderninho, em cuja capa de papel pardo lia-se, mal escrito e em letras cortadas de jornal: “Ativo e passivo de Bertoleza”. E por tal forma foi o taverneiro ganhando confiança no espírito da mulher, que esta afinal nada mais resolvia só por si, e aceitava dele, cegamente, todo e qualquer arbítrio. Por último, se alguém precisava tratar com ela qualquer negócio, nem mais se dava ao trabalho de procurá-la, ia logo direito a João Romão. Quando deram fé, estavam amigados. Ele propôs-lhe morarem juntos, e ela concordou de braços abertos, feliz em meter-se de novo com um português, porque, como toda cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua. João Romão comprou então, com as economias da amiga, alguns palmos de terreno ao lado esquerdo da venda e levantou uma casinha de duas portas, dividida ao meio paralelamente à rua, sendo a parte da frente destinada à quitanda, e a do fundo, para um dormitório que se arranjou com os cacarecos de 160 Bertoleza. Havia, além da cama, uma cômoda de jacarandá muito velha com maçanetas de metal amarelo já mareadas, um oratório cheio de santos e forrado de papel de cor, um baú grande de couro cru tacheado, dois banquinhos de pau feitos de uma só peça e um formidável cabide de pregar na parede, com a sua competente coberta de retalhos de chita. O vendeiro nunca tivera tanta mobília. – Agora, disse ele à crioula, as coisas vão correr melhor para você. Você vai ficar forra; eu entro com o que falta. Nesse dia ele saiu muito à rua, e uma semana depois apareceu com uma folha de papel toda escrita, que leu em voz alta à companheira. – Você agora não tem mais senhor! declarou em seguida à leitura, que ela ouviu entre lágrimas agradecidas. Agora está livre. Doravante o que você fizer é só seu e mais de seus filhos, se os tiver. Acabou-se o cativeiro de pagar os vinte mil-réis à peste do cego! – Coitado! A gente se queixa é da sorte! Ele, como meu senhor, exigia o jornal, exigia o que era seu! – Seu ou não seu, acabou-se! É vida nova! Contra todo o costume, abriu-se nesse dia uma garrafa de vinho do Porto, e os dois beberam-na em honra ao grande acontecimento. Entretanto, a tal carta de liberdade era obra do próprio João Romão, e nem mesmo o selo, que ele entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar à burla maior formalidade, representava despesa, porque o esperto aproveitara uma estampilha já servida. O senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do fato; o que lhe constou sim foi que a sua escrava lhe havia fugido para a Bahia depois da morte do amigo. – O cego que venha buscá-la aqui, se for capaz... desafiou o vendeiro de si para si. Ele que caia nessa e verá se tem ou não pra peras! Não obstante, só ficou tranquilo de todo daí a três meses, quando lhe constou a morte do velho. A escrava passara naturalmente em herança a qualquer dos filhos do morto; mas, por esses, nada havia que recear: dois pândegos de marca maior que, empolgada a legítima, cuidariam de tudo, menos de atirar-se na pista de uma crioula a quem não viam de muitos anos àquela parte. “Ora! Bastava já, e não era pouco, o que lhe tinham sugado durante tanto tempo!” Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro da madrugada estava na faina de todos os dias, aviando o café para os fregueses e depois preparando o almoço para os trabalhadores de uma pedreira que havia para além de um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão na taverna quando o amigo andava ocupado lá por 161 fora; fazia a sua quitanda durante o dia no intervalo de outros serviços e à noite passava-se para a porta da venda e, defronte de um fogareiro de barro, fritava fígado e frigia sardinhas, que Romão ia pela manhã, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias, comprar à praia do Peixe. O demônio da mulher ainda encontrava tempo para lavar e consertar, além da sua, a roupa do seu homem, que esta, valha a verdade, não era tanta e nunca passava em todo mês de alguns pares de calças de zuarte e outras tantas camisas de riscado. João Romão não saía nunca a passeio, nem ia à missa aos domingos; tudo que rendia a sua venda e mais a quitanda seguia direitinho para a caixa econômica e daí então para o banco. Tanto assim que, um ano depois da aquisição da crioula, indo em hasta pública algumas braças de terra situadas ao fundo da taverna, arrematou-as logo e tratou, sem perda de tempo, de construir três casinhas de porta e janela. Que milagres de esperteza e de economia não realizou ele nessa construção! Servia de pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra, que o velhaco, fora de horas, junto com a amiga, furtava à pedreira do fundo, da mesma forma que subtraíam o material das casas em obra que havia por ali perto. Esses furtos eram feitos com todas as cautelas e sempre coroados do melhor sucesso, graças à circunstância de que nesse tempo a polícia não se mostrava muito por aquelas alturas. João Romão observava durante o dia quais as obras em que ficava material para o dia seguinte, e à noite lá estava ele rente, mais a Bertoleza, a removerem tábuas, tijolos, telhas, sacos de cal, para o meio da rua, com tamanha habilidade que se não ouvia vislumbre de rumor. Depois, um tomava uma carga e partia para casa, enquanto o outro ficava de alcateia ao lado do resto, pronto a dar sinal, em caso de perigo; e, quando o que tinha ido voltava, seguia então o companheiro, carregado por sua vez. Nada lhe escapava, nem mesmo as escadas dos pedreiros, os cavalos de pau, o banco ou a ferramenta dos marceneiros. O fato é que aquelas três casinhas, tão engenhosamente construídas, foram o ponto de partida do grande cortiço de São Romão. Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia o vendeiro conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua bodega; e, à proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o número de moradores. Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo nunca a ocasião de assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas medidas, comprando por dez réis de mel coado o que os escravos furtavam da casa dos seus senhores, apertando cada vez mais as próprias despesas, empilhando privações sobre privações, trabalhando e mais a amiga 162 como uma junta de bois, João Romão veio afinal a comprar uma boa parte da bela pedreira, que ele, todos os dias, ao cair da tarde, assentado um instante à porta da venda, contemplava de longe com um resignado olhar de cobiça. Pôs lá seis homens a quebrarem pedra e outros seis a fazerem lajedos e paralelepípedos e então principiou a ganhar em grosso, tão grosso que, dentro de ano e meio, arrematava já todo o espaço compreendido entre as suas casinhas e a pedreira, isto é, umas oitenta braças de fundo sobre vinte de frente em plano enxuto e magnífico para construir. [...] E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. Comentários ao capítulo 1 de O cortiço. A crítica em geral considera O cortiço romance naturalista exemplar na literatura brasileira. Manias, taras e vícios se tramam nos caminhos dos personagens. Com temática focada no concreto-sensorial escolhidamente abjeto e repugnante, a trama põe em relevo o personagem João Romão, capaz de qualquer atitude na busca de conveniências pessoais, sem qualquer sinal de sentimento e sem arrependimentos (de que fala o poema Ode ao burguês de Mário de Andrade (Modernismo). Ao lado dele, aparece Bertoleza, a servil e traída, usada impiedosamente pelo companheiro. Pelo primeiro capítulo, é possível ter noção da estirpe humana do cortiço, ou favela, como é costume nomear atualmente. Pela descrição do ambiente físico, carateristicamente no último parágrafo transcrito acima, pode-se entender já as condições de atuação dos personagens e figurantes. É a lógica naturalista do predomínio do meio ambiente sobre o indivíduo, ou seja, a comunidade tal, em tal ambiente, produto desse ambiente, são como “larvas no esterco”. RAUL d’Ávila POMPEIA Raul Pompeia nasceu em Angra dos Reis (RJ), em 1863. Após os anos de internato no Colégio Abílio, cujas experiências utilizaria mais tarde para compor O Ateneu (1888), estudou no Colégio Pedro II e na Faculdade de Direito, ocasião em que acolheu os ideais republicanos e abolicionistas. Completou o curso de Direito em Recife em 1885. Em 1892, travou duelo com Olavo Bilac. Suicidou-se em 1895. Fora numerosos contos e crônicas esparsos, publicou as seguintes obras: Uma tragédia no Amazonas (1880), Microscópicos (1881), As joias da coroa (1882), O Ateneu (1888), Canções sem metro (1900). 163 O Ateneu (excerto do cap. 1) “Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta”. Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso. Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se houvesse perseguido outrora e não viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam. Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que se transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo – a paisagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da vida. Eu tinha onze anos. Frequentara como externo, durante alguns meses, uma escola familiar do Caminho Novo, onde algumas senhoras inglesas, sob a direção do pai, distribuíam educação à infância como melhor lhes parecia. Entrava às nove horas, timidamente, ignorando as lições com a maior regularidade, e bocejava até às duas, torcendo-me de insipidez sobre os carcomidos bancos que o colégio comprara, de pinho e usados, lustrosos do contato da malandragem de não sei quantas gerações de pequenos. Ao meio-dia, davam-nos pão com manteiga. Essa recordação gulosa é o que mais pronunciadamente me ficou dos meses de externato; com a lembrança de alguns companheiros – um que gostava de fazer rir à aula, espécie interessante de mono louro, arrepiado, vivendo a morder, nas costas da mão esquerda, uma protuberância calosa que tinha; outro adamado, elegante, sempre retirado, que vinha à escola de branco, engomadinho e radioso, fechada a blusa em diagonal do ombro à cinta por botões de madrepérola. Mais ainda: a primeira vez que ouvi certa injúria crespa, um palavrão cercado de terror no estabelecimento, que os partistas denunciavam às mestras por duas iniciais como em monograma. Lecionou-me depois um professor em domicílio. Apesar desse ensaio da vida escolar a que me sujeitou a família, antes da verdadeira provação, eu estava perfeitamente virgem para as sensações da nova fase. O internato! Destacada do conchego placentário da dieta caseira, vinha próximo o momento de se definir a minha individualidade. Amarguei por 164 antecipação o adeus às primeiras alegrias; olhei triste os meus brinquedos, antigos já! Os meus queridos pelotões de chumbo! Espécie de museu militar, de todas as fardas, de todas as bandeiras, escolhida amostra da força dos estados, em proporções de microscópio, que eu fazia formar a combate como uma ameaça tenebrosa ao equilíbrio do mundo; que eu fazia guerrear em desordenado aperto, massa tempestuosa das antipatias geográficas, encontro definitivo e ebulição dos seculares ódios de fronteira e de raça, que eu pacificava por fim, com uma facilidade de Providência Divina, intervindo sabiamente, resolvendo as pendências pela concórdia promíscua das caixas de pau. Força era deixar à ferrugem do abandono o elegante vapor da linha circular do lago, no jardim, onde talvez não mais tornasse a perturbar com a palpitação das rodas a sonolência morosa dos peixinhos rubros, dourados, argentados, pensativos à sombra dos tinhorões, na transparência adamantina da água... Mas um movimento animou-se, primeiro estímulo sério da vaidade: distanciava-me da comunhão da família, como um homem! Ia por minha conta empenhar a luta dos merecimentos; e a confiança nas próprias forças sobrava. Quando me disseram que estava a escolha feita da casa de educação que me devia receber, a notícia veio a achar-me em armas para a conquista audaciosa do desconhecido. Um dia, meu pai tomou-me pela mão, minha mãe beijou-me a testa, molhando-me de lágrimas os cabelos, e eu parti. Duas vezes fora visitar o Ateneu antes da minha instalação. Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de nutrido reclame, mantido por um diretor que de tempos a tempos reformava o estabelecimento, pintando-o jeitosamente de novidade, como os negociantes que liquidam para recomeçar com artigos de última remessa; o Ateneu desde muito tinha consolidado crédito na preferência dos pais, sem levar em conta a simpatia da meninada, a cercar de aclamações o bombo vistoso dos anúncios. O Dr. Aristarco Argolo de Ramos, da conhecida família do Visconde de Ramos, do Norte, enchia o império com o seu renome de pedagogo. Eram boletins de propaganda pelas províncias, conferências em diversos pontos da cidade, a pedidos, à sustância, atochando a imprensa dos lugarejos, caixões, sobretudo, de livros elementares, fabricados às pressas com o ofegante e esbaforido concurso de professores prudentemente anônimos, caixões e mais caixões de volumosos cartonados em Leipzig, inundando as escolas públicas em toda parte com a sua invasão de capas azuis, róseas, amarelas, em que o nome de Aristarco, inteiro e sonoro, oferecia-se ao pasmo venerador dos esfaimados de alfabeto dos confins da pátria. Os lugares que os não procuravam eram um belo dia surpreendidos pela enchente, gratuita, espontânea, irresistível! E não havia senão aceitar a farinha daquela marca para o pão do espírito. E engordavam as letras, à força, daquele pão. Um benemérito. Não admira que em dias de gala, íntima ou nacional, festas do colégio ou recepção 165 da coroa, o largo peito do grande educador desaparecesse sob constelações de pedraria, opulentando a nobreza de todos os honoríficos berloques. Nas ocasiões de aparato é que se podia tomar o pulso ao homem. Não só as condecorações gritavam-lhe do peito como uma couraça de grilos: Ateneu! Ateneu! Aristarco todo era um anúncio. Os gestos, calmos, soberanos, eram de um rei – o autocrata excelso do silabários; a pausa hierática do andar deixava sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia para levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino público; o olhar fulgurante, sob a crispação áspera dos supercílios de monstro japonês, penetrando de luz as almas circunstantes – era a educação da inteligência; o queixo, severamente escanhoado, de orelha a orelha, lembrava a lisura das consciências limpas – era a educação moral. A própria estatura, na imobilidade do gesto, na mudez do vulto, a simples estatura dizia dele: aqui está um grande homem... não veem os côvados de Golias?!... Retorça-se sobre tudo isso um par de bigodes, volutas maciças de fios alvos, torneadas a capricho, cobrindo os lábios, fecho de prata sobre o silêncio de ouro, que tão belamente impunha como o retraimento fecundo de seu espírito, teremos esboçado, moralmente, materialmente, o perfil do ilustre diretor. Em suma, um personagem que, ao primeiro exame, produzia-nos a impressão de um enfermo dessa enfermidade atroz e estranha: a obsessão da própria estátua. Como tardasse a estátua, Aristarco interinamente satisfazia-se com a afluência dos estudantes ricos para o seu instituto. De fato, os educandos do Ateneu significavam a fina flor da mocidade brasileira. A irradiação do reclame alongava de tal modo os tentáculos através do país, que não havia família de dinheiro, enriquecida pela setentrional borracha ou pela charqueada do sul, que não reputasse um compromisso de honra com a posteridade doméstica mandar, dentre seus jovens, um, dois, três representantes abeberar-se à fonte espiritual do Ateneu. Fiados nessa seleção apuradora, que é comum o erro sensato de julgar melhores famílias as mais ricas, sucedia que muitas, indiferentes mesmo e sorrindo do estardalhaço da fama, lá mandavam os filhos. Assim entrei eu. A primeira vez que vi o estabelecimento, foi por uma festa de encerramento de trabalhos. Transformara-se em anfiteatro uma das salas da frente do edifício, exatamente a que servia de capela; paredes estucadas de suntuosos relevos, e o teto aprofundado em largo medalhão, de magistral pintura, onde uma aberta de céu azul despenhava aos cachos deliciosos anjinhos, ostentando atrevimentos róseos de carne, agitando os minúsculos pés e as mãozinhas, desatando fitas de gaze no ar. Desarmado o oratório, construíram-se bancadas circulares, que encobriam o luxo das paredes. Os alunos ocupavam a arquibancada. Como a maior concorrência preferia sempre a exibição dos exercícios ginásticos, solenizada dias depois do encerramento das aulas, a acomodação deixada aos circunstantes era pouco espaçosa; e o público, pais e 166 correspondentes em geral, porém mais numeroso do que se esperava, tinha que transbordar da sala de festa para a imediata. Dessa antessala, trepado a uma cadeira, eu espiava. Meu pai ministrava-me informações. Diante da arquibancada, ostentava-se uma mesa de grosso pano verde e borlas de ouro. Lá estava o diretor, o ministro do Império, a comissão dos prêmios. Eu via e ouvia. Houve uma alocução comovente de Aristarco; houve discursos de alunos e mestres; houve cantos, poesias declamadas em diversas línguas. O espetáculo comunicava-me certo prazer respeitoso. O diretor, ao lado do ministro, de acanhado físico, fazia-o incivilmente desaparecer na brutalidade de um contraste escandaloso. Em grande tênue dos dias graves, sentava-se, elevado no seu orgulho como em um trono. A bela farda negra dos alunos, de botões dourados, infundia-me a consideração tímida de um militarismo brilhante, aparelhado para as campanhas da ciência e do bem. A letra dos cantos, em coro dos falsetes indisciplinados da puberdade; os discursos, visados pelo diretor, pançudos da sisudez, na boca irreverente da primeira idade, como um Cendrillon mal feito da burguesia conservadora, recitados em monotonia de realejo e gestos rodantes de manivela, ou exagerados, voz cava e caretas de tragédia fora de tempo, eu recebia tudo convincentemente, como o texto da bíblia do dever; e as banalidades profundamente lançadas como as sábias máximas do ensino redentor. Parecia-me estar vendo a legião dos amigos do estudo, mestres à frente, na investida heroica do obscurantismo, agarrando pelos cabelos, derribando, calcando aos pés a Ignorância e o Vício, misérrimos trambolhos, consternados e esperneantes. Um discurso principalmente impressionou-me. À direita da comissão dos prêmios, ficava a tribuna dos oradores. Galgou-a firme, tesinho, o Venâncio, professor do colégio, a quarenta mil-réis por matéria, mas importante, sabendo falar grosso, o timbre de independência, mestiço de bronze, pequenino e tenaz, que havia de varar carreira mais tarde. O discurso foi o confronto chapa dos torneios medievais com o moderno certame das armas da inteligência; depois, uma preleção pedagógica, tacheada de flores de retórica a martelo; e a apologia da vida de colégio, seguindo-se à exaltação do mestre em geral e a exaltação, em particular, de Aristarco e do Ateneu. “O mestre, perorou Venâncio, é o prolongamento do amor paterno, é o complemento da ternura das mães, o guia zeloso dos primeiros passos, na senda escabrosa que vai às conquistas do saber e da moralidade. Experimentado no labutar cotidiano da sagrada profissão, o seu auxílio ampara-nos como a Providência na terra; escolta-nos assíduo como um anjo da guarda; a sua lição prudente esclarece-nos a jornada inteira do futuro. Devemos ao pai a existência do corpo; o mestre cria-nos o espírito (sorites de sensação), e o espírito é a força que o impele, o impulso que triunfa, o triunfo que nobilita, o enobrecimento que glorifica, e a glória é o ideal da vida, o louro do guerreiro, o carvalho do artista, a palma do crente! A família é o amor no lar, o estado é a segurança civil; o mestre, com o amor forte que ensina e corrige, 167 prepara-nos para a segurança íntima inapreciável da vontade. Acima de Aristarco – Deus! Deus tão-somente; abaixo de Deus – Aristarco”. Um último gesto espaçoso, como um jamegão no vácuo, arrematou o repto de eloquência. Eu me sentia compenetrado daquilo tudo; não tanto por entender bem, como pela facilidade da fé cega a que estava disposto. As paredes pintadas da antessala imitavam pórfiro verde; em frente ao pórtico aberto para o jardim, graduava-se uma ampla escada, caminho do andar superior. Flanqueando a majestosa porta dessa escada, havia dois quadros de alto relevo: à direita, uma alegoria das artes e do estudo; à esquerda, as indústrias humanas, meninos nus como nos frisos de Kaulbach, risonhos, com a ferramenta simbólica – psicologia pura do trabalho, modelada idealmente na candura do gesso e da inocência. Eram meus irmãos! Eu estava a esperar que um deles, convidativo, me estendesse a mão para o bailado feliz que os levava. Oh! que não seria o colégio, tradução concreta da alegoria, ronda angélica de corações à porta de um templo, dulia permanente das almas jovens no ritual austero da virtude! Por ocasião da festa da ginástica, voltei ao colégio. O Ateneu estava situado no Rio Comprido, extremo ao chegar aos morros. As eminências de sombria pedra e a vegetação selvática debruçavam sobre o edifício um crepúsculo de melancolia, resistente ao próprio Sol a pino dos meios-dias de novembro. Essa melancolia era um plágio ao detestável pavor monacal de outra casa de educação, o negro Caraça de Minas. Aristarco davase palmas dessa tristeza aérea – a atmosfera moral da meditação e do estudo, definia, escolhida a dedo para maior luxo da casa, como um apêndice mínimo da arquitetura. No dia da festa de educação física, como rezava o programa (programa de arromba, porque o secretário do diretor tinha o talento dos programas) não percebi a sensação de ermo tão acentuada em sítios montanhosos, que havia de notar depois. As galas do momento faziam sorrir a paisagem. O arvoredo do imenso jardim, entretecido a cores por mil bandeiras, brilhava ao sol vivo com o esplendor de estranha alegria; os vistosos panos, em meio da ramagem, fingiam flores colossais, numa caricatura extravagante de primavera; os galhos frutificavam em lanternas venezianas, pomos de papel enormes, de uma uberdade carnavalesca. Eu ia carregado, no impulso da multidão. Meu pai prendia-me solidamente o pulso, que me não extraviasse. Mergulhado na onda, eu tinha que olhar para cima, para respirar. Adiante de mim, um sujeito mais próximo fez-me rir; levava de fora a fralda da camisa... Mas não era fralda; verifiquei que era o lenço. Do chão subia um cheiro forte de canela pisada; através das árvores, com intervalos, passavam rajadas de música, como uma tempestade de filarmônicas. 168 Um último aperto mais rijo, estalando-me as costelas, espremeu-me, por um estreito corte de muro, para o espaço livre. Em frente, um gramal vastíssimo. Rodeava-o uma ala de galhardetes, contentes no espaço, com o pitoresco dos tons energéticos cantando vivo sobre a harmoniosa surdina do verde das montanhas. Por todos os lados apinhava-se o povo. Voltando-me, divisei, ao longo do muro, duas linhas de estrado com cadeiras quase exclusivamente ocupadas por senhoras, fulgindo os vestuários, em violenta confusão de colorido. Algumas protegiam o olhar com a mão enluvada, com o leque, à altura da fronte, contra a rutilação do dia num bloco de nuvens que crescia do céu. Acima do estrado balouçavam docemente e sussurravam bosquetes de bambu, projetando franjas longuíssimas de sombra pelo campo de relva. Algumas damas empunhavam binóculos. Na direção dos binóculos distinguia-se um movimento alvejante. Eram os rapazes. “Aí vêm! Disse-me meu pai; vão desfilar por diante da princesa”. A princesa imperial, Regente nessa época, achava-se à direita em gracioso palanque de sarrafos. Comentários ao romance O Ateneu O Ateneu tem sido entendido pela crítica, em geral, como romance exemplar do impressionismo, no Brasil. Disponibiliza ao leitor amplo ideário, em que, pelo menos, duas ideologias podem ser identificadas. A primeira é proposta de revisão da educação no país. A bem da verdade, porém, a proposta não se dirige apenas à educação, mas às formas sociais de agir. Chega a dizer que essa educação é apenas um braço do monstro. No fim do romance, um dos estudantes, Américo (observe-se o nome dele), põe fogo n’ O Ateneu. Trata-se de evidente sugestão revolucionária: para termos boa educação, teremos que arrasar a que temos e começar de novo. Dentro dela, o anátema mais indignado volta-se contra a instituição do internato. Ao longo da trama, evidencia-se igualmente a tese psicológica do prejuízo, às vezes irreversível, à intimidade dos internos, em contato próximo constante e único com outros estudantes do mesmo sexo. O estilo da narrativa é particularmente vibrante na fluência do discurso e nas minúcias do que cada observador faz do entorno concreto-sensorial e da conjunção social. Nesse âmbito é que as impressões são preponderantes. São elas que definem as veracidades e as revoltas, produzem os transtornos e os traumas psíquicos. O autor soube apanhar caraterísticas definidoras principalmente das deficiências, mas também de algumas qualidades dos tipos humanos que atuam no romance. Argúcia de observação e precisão descritiva de aspetos físicos e psicológicos possibilitaram-lhe transpor ao texto em poucas palavras o retrato de personagens focalizados. Por isso, alguns o qualificam como exílio miniaturista. 169 Por se tratar de romance naturalista, não fica destoante falar em retrato da concretude. Por esse mesmo motivo, é coerente aludir à tese de que o meio é superior (forjador) do indivíduo. Dá para perceber esse como ponto de distanciamento da visão de indivíduo que tinham os românticos. O Ateneu, tomado no romance a partir da existência concreta da escola, é experiência traumatizante ao narrador, Sérgio, que contava apenas onze anos, quando ingressou ali, pela mão do próprio pai. A grosseira e ou maldosa confusão entre personagem (mesmo que seja o narrador), que nesse caso narra em primeira pessoa, montou ambiência pública conflitiva na vida do autor, que o levou ao suicídio, aos trinta e dois anos de idade. ADOLFO Ferreira CAMINHA Adolfo Caminha nasceu em 1867 na cidade de Aracati (CE). Em 1893 publicou A normalista, romance em que traçou um quadro pessimista da vida urbana, "esse acervo de mentiras galantes e torpezas dissimuladas". Viajou aos Estados Unidos; das observações da viagem resultou No país dos ianques (1894). No ano seguinte, provocou escândalo, mas firmou sua reputação literária ao escrever Bom-crioulo, obra na qual aborda a questão do homossexualismo masculino. Colaborou também com a imprensa carioca (Gazeta de notícias e Jornal do Comércio). Já doente, lançou o último romance, Tentação (1896). Morreu no Rio de Janeiro em 1897. Bom-crioulo (excerto do capítulo 1) Com efeito, Bom-Crioulo não era somente um homem robusto, uma dessas organizações privilegiadas que trazem no corpo a sobranceira resistência do bronze e que esmagam com o peso dos músculos. A força nervosa era nele uma qualidade intrínseca sobrepujando todas as outras qualidades fisiológicas, emprestando-lhe movimentos extraordinários, invencíveis mesmo, de um acrobatismo imprevisto e raro. Esse dom precioso e natural desenvolvera-se-lhe à força de um exercício continuado que o tornara conhecido em terra, nos conflitos com soldados e catraieiros, e a bordo, quando entrava embriagado. Porque Bom-Crioulo de longe em longe sorvia o seu gole de aguardente, chegando mesmo a se chafurdar em bebedeiras que o obrigavam a toda sorte de loucuras. Armava-se de navalha, ia para o cais, todo transfigurado, os olhos dardejando fogo, o boné de um lado, a camisa aberta num desleixo de louco, e então era um risco, uma temeridade alguém aproximar-se dele. O negro parecia 170 uma fera desencarcerada: fazia todo mundo fugir, marinheiros e homens da praia, porque ninguém estava para sofrer uma agressão... Quando havia conflito no cais Pharoux, já toda gente sabia que era o BomCrioulo às voltas com a polícia. Reunia povo, toda a população do litoral corria enchendo a praça, como se tivesse acontecido uma desgraça enorme, formavam-se partidos a favor da polícia e da marinha... uma coisa indescritível! O motivo, porém, de sua prisão agora, no alto-mar, a bordo da corveta, era outro, muito outro: Bom-Crioulo esmurrara desapiedadamente um segundaclasse, porque esse ousara, “sem o seu consentimento”, maltratar o grumete Aleixo, um belo marinheirito de olhos azuis, muito querido por todos e de quem diziam-se coisas. Metido em ferros no porão, Bom-Crioulo não deu palavra. Admiravelmente manso, quando se achava em seu estado normal, longe de qualquer influência alcoólica, submeteu-se à vontade superior, esperando resignado castigo. – Reconhecia que fizera mal, que devia ser punido, que era tão bom quanto os outros, mas, que diabo! estava satisfeito: mostrara ainda uma vez que era homem... Depois estimava o grumete e tinha certeza de o conquistar inteiramente, como se conquista uma mulher formosa, uma terra virgem, um país de ouro... Estava satisfeitíssimo! A chibata não lhe fazia mossa; tinha costas de ferro para resistir como um hércules ao pulso do guardião Agostinho. Já nem se lembrava do número das vezes que apanhara de chibata... – Uma! cantou a mesma voz. – Duas!... três!... Bom-Crioulo tinha despido a camisa de algodão e, nu da cintura pra cima, numa riquíssima exibição de músculos, os seios muito salientes, as espáduas negras reluzentes, um sulco profundo e liso de alto a baixo no dorso, nem sequer gemia, como se estivesse a receber o mais leve dos castigos. Entretanto, já iam cinquenta chibatadas! Ninguém lhe ouvira um gemido, nem percebera uma contorção, um gesto qualquer de dor. Viam-se unicamente naquele costão negro as marcas de junco, umas sobre outras, entrecruzando-se como uma grande teia de aranha, roxas e latejantes, cortando a pele em todos os sentidos. De repente, porém, Bom-Crioulo teve um estremecimento e soergueu um braço: a chibata vibrava em cheio sobre os rins, empolgando o baixo-ventre. Fora um golpe medonho, arremessado com uma força extraordinária. Por sua vez, Agostinho estremeceu, mas estremeceu de gozo ao ver, afinal, triunfar a rijeza do seu pulso. Marinheiros e oficiais, num silêncio concentrado, alongavam o olhar, cheios de interesse, a cada golpe. – Cento e cinquenta! 171 Só então houve quem visse um ponto vermelho, uma gota rubra deslizar no espinhaço negro do marinheiro e logo esse ponto vermelho se transformar numa fita de sangue. Nesse momento o oficial, ponteirando o óculo de alcance, procurava reconhecer uma sombra quase invisível que parecia flutuar muito longe, nos confins do horizonte: era, talvez, a fumaça dalgum transatlântico... – Basta! impôs o comandante. Estava terminado o castigo. Ia recomeçar a faina. Comentários à obra Bom-crioulo Bom-crioulo narra naturalistamente, como tema principal, a história de relacionamento homossexual masculino. Como em outras obras naturalistas, o enredo focaliza duas criaturas num ambiente maior, coletivizado por outros personagens. O papel ideológico do romance, no âmbito do naturalismo brasileiro, foi explorar assunto escamoteado e inseri-lo em ambientes marginais à sociedade leitora. Trabalha também a relação entre estereótipos e ações desenvolvidas pelos personagens construídos. Na época, a preocupação com essa relação (estereótipo x tipo social) estava em debate. A fundamentação estilística deu forma literária à temática, então, de difícil abordagem, mesmo na arte. RAIMUNDO da Mota de Azevedo CORREIA Raimundo Correia (1860-1911) nasceu a bordo de navio, na costa de São Luís (MA). Forma com Olavo Bilac e Alberto de Oliveira a chamada tríade parnasiana. Estudou Direito em São Paulo e foi magistrado em vários Estados brasileiros. A crítica tem destacado três fases na poesia de Raimundo Correia: Fase romântica: nela se percebem relações poéticas com obras de Casimiro de Abreu e Fagundes Varela, representada por Primeiros sonhos (1879); fase parnasiana propriamente dita: representada pelas obras Sinfonias (1883) e Versos e versões (1887), marcada pelo pessimismo originário de contradições existenciais humanas e por reflexões de cunho moral e social; fase pré-simbolista: nela, o pessimismo diante da condição humana busca refúgio na metafísica e na religião, enquanto a linguagem apresenta pesquisas em musicalidade e sinestesia. Mal secreto Se a cólera que espuma, a dor que mora N’alma, e destrói cada ilusão que nasce, Tudo o que punge, tudo o que devora 172 O coração, no resto se estampasse; Se se pudesse, o espírito que chora Ver através da máscara da face, Quanta gente, talvez, que inveja agora Nos causa, então piedade nos causasse! Quanta gente que ri, talvez, consigo Guarda um atroz, recôndito inimigo, Como invisível chaga cancerosa! Quanta gente que ri, talvez existe, Cuja ventura única consiste Em parecer aos outros venturosa! As pombas Vai-se a primeira pomba despertada... Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas De pombas vão-se dos pombais, apenas Raia sanguínea e fresca a madrugada... E à tarde, quando a rígida nortada Sopra, aos pombais de novo elas, serenas, Ruflando as asas, sacudindo as penas, Voltam todas em bando e em revoada... Também dos corações, onde abotoam, Os sonhos, um por um, céleres voam, Como voam as pombas dos pombais; No azul da adolescência as asas soltam, Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam, E eles aos corações não voltam mais... Anoitecer Esbraseia o Ocidente na agonia O sol... Aves em bandos destacados, Por céus de oiro e púrpura raiados, Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia... Delineiam-se, além da serrania, Os vértices de chama aureolados, E em tudo, em torno, esbatem derramados Uns tons suaves de melancolia... Um mundo de vapores no ar flutua... Como uma informe nódoa, avulta e cresce A sombra, à proporção que a luz recua... A natureza apática esmaece... 173 Pouco a pouco, entre as árvores, a lua Surge trêmula, trêmula... Anoitece. OLAVO Brás Martins dos Guimarães BILAC Olavo Bilac nasceu em 1865, no Rio de Janeiro, e faleceu em 1918 no mesmo Estado. Cursou Medicina e Direito. Abandonou a advocacia para dedicar-se exclusivamente à literatura. Ao registrar-se a revolta da Armada, o governo Floriano Peixoto considerou-o comprometido e mandou encerrá-lo. Colaborou em vários jornais e revistas. Exerceu o cargo de Secretário do Congresso de Pan-americano em Buenos Aires, Inspetor da Instrução Pública e Membro do Conselho Superior do Departamento Federal. Foi um dos principais poetas parnasianos do Brasil. Sua consagração definitiva foi obtida com a obra Poesias (1888). Escreveu muito, nunca se descuidando da forma. Algumas de suas obras: Via Láctea, Sarças de fogo, Crônicas e novelas. O livro Tarde foi publicado postumamente (1919). Profissão de fé Le poète est ciseleur, Le ciseleur est poète. Vitor Hugo Não quero o Zeus Capitolino, Hercúleo e belo, Talhar no mármore divino Com o camartelo. Que outro – não eu! – a pedra corte Para, brutal, Erguer de Atene o altivo porte Descomunal. Mais que esse vulto extraordinário, Que assombra a vista, Seduz-me um leve relicário De fino artista. Invejo o ouvires quando escrevo: Imito o amor Com que ele, em ouro, o alto relevo Faz de um flor. Imito-o. E, pois, nem de Carrara A pedra firo: O alvo cristal, a pedra rara, O ônix prefiro. 174 Por isso, corre, por servir-me, Sobre o papel A pena, como em prata firme Corre cinzel. Corre; desenha, enfeita a imagem, A ideia veste: Cinge-lhe o corpo a ampla roupagem Azul-celeste. Torce, aprimora, alteia, lima A frase; e, enfim, No verso de ouro engasta a rima, Como um rubim. Quero que a estrofe cristalina, Dobrada ao jeito Do ourives, saia da oficina Sem um defeito: E que o lavor do verso, acaso, Por tão sutil, Possa o lavor lembrar de um vaso De Becerril. E horas sem conta passo, mudo, O olhar atento, A trabalhar, longe de tudo, O pensamento. Porque o escrever – tanta perícia, Tanto requer, Que ofício tal... nem há notícia De outro qualquer. Assim procedo. Minha pena Segue esta norma, Por te servir, Deusa serena, Serena Forma! Deusa! A onda vil, que se avoluma De um torvo mar, Deixa-a crescer; e o lodo e a espuma Deixa-a rolar! Blasfemo, em grita surda e horrendo Ímpeto, o bando Venha dos bárbaros crescendo, Vociferando... 175 Deixa-o: que venha e uivando passe – Bando feroz! Não se te mude a cor da face E o tom da voz! Olha-os somente, armada e pronta, Radiante e bela: E, ao braço o escudo, a raiva afronta Dessa procela! Este que à frente vem, e o todo Possui minaz De um vândalo ou de um visigodo, Cruel e audaz; Este, que, de entre os mais, o vulto Ferrenho alteia, E, em jacto, expele o amargo insulto Que te enlameia; É em vão que as forças cansa, e à luta Se atira; é em vão Que brande no ar a maça bruta À bruta mão. Não morrerás, Deusa sublime! Do trono egrégio Assistirás intata ao crime Do sacrilégio. E, se morreres por ventura, Possa eu morrer Contigo, e a mesma noite escura Nos envolver! Ah! ver por terra, profanada, A ara partida; E a Arte imortal aos pés calçada, Prostituída!... Ver derribar do eterno sólio O Belo, e o som Ouvir da queda do Acropólio, Do Partenon!... Sem sacerdote, a Crença morta Sentir, e o susto Ver, e o extermínio, entrando a porta Do templo augusto!... 176 Ver esta língua, que cultivo, Sem ouropéis, Mirrada ao hálito nocivo Dos infiéis!... Não! Morra tudo que me é caro, Fique eu sozinho! Que não encontre um só amparo Em meu caminho! Que a minha dor nem a um amigo Inspire dó... Mas, ah! que eu fique contigo, Contigo só! Vive! que eu viverei servindo Teu culto, e, obscuro, Tuas custódias esculpindo No ouro mais puro. Celebrarei o teu ofício No altar: porém, Se inda é pequeno o sacrifício, Morra eu também! Caia eu também, sem esperança, Porém tranquilo, Inda, ao cair, vibrando a lança, Em prol do Estilo! Língua portuguesa Última flor do Lácio, inculta e bela, És, a um tempo, esplendor e sepultura: Ouro nativo, que na ganga impura A bruta mina entre os cascalhos vela... Amo-te assim, desconhecida e obscura, Tuba de alto clangor, lira singela, Que tens o trom e o silvo da procela, E o arroio da saudade e da ternura! Amo o teu viço agreste e o teu aroma De virgens selvas e de oceano largo! Amo-te, ó rude e doloroso idioma, Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”, E em que Camões chorou, no exílio amargo, O gênio sem ventura e o amor sem brilho! 177 JÚLIO Mário SALUSSE Nasceu em Bom Jardim (RJ), em 1872, e faleceu em Niterói (RJ), em 1948. JS tem sido chamado de o último parnasiano. Foi bacharel em Direito e trabalhou no Ministério Público Fluminense. Obras: Nevrose azul (1894) e Sombras (1901). Seu soneto Os cisnes é um dos mais célebres da poesia brasileira. Foi um poeta de técnica marcante. Desilusão, mágoa, êxtase, solidão, paixão cortam a obra dele. Os cisnes A vida, manso lago azul algumas Vezes, algumas vezes mar fremente, Tem sido para nós, constantemente, Um lago azul, sem ondas, sem espumas. Sobre ele, quando, desfazendo as brumas Matinais, rompe um sol vermelho e quente, Nós dois vogamos, indolentemente, Como dois cisnes de alvacentas plumas. Um dia, um cisne morrerá por certo: Quando chegar esse momento incerto No lago, onde talvez a água se tisne, Que o cisne vivo, cheio de saudade, Nunca mais cante, nem sozinho nade, Nem nade nunca ao lado de outro cisne... VICENTE Augusto de CARVALHO Vicente de Carvalho nasceu em Santos (SP), em 1866, e morreu em São Paulo, em 1924. Revelou desde cedo sua marcante inclinação literária, sem no entanto deixar de exercer muitas outras atividades, como escrever para teatro e ditar medidas sobre a economia cafeeira. Foi Ministro do Tribunal de Justiça do Estado de são Paulo, em Santos. Obras: Ardentias (1885), Relicário (1888), Rosa, rosa de amor (1902), Poemas e canções (1908), Verso e prosa (1909) e Páginas soltas (1911). Velho tema Só a leve esperança, em toda a vida, Disfarça a pena de viver, mais nada; 178 Nem é mais a existência resumida, Que uma grande esperança malograda. O eterno sonho da alma desterrada, Sonho que a traz ansiosa e embevecida, É uma hora feliz sempre adiada E que não chega nunca em toda a vida. Essa felicidade que supomos, Árvore milagrosa que sonhamos Toda arreada de dourados pomos, Existe sim; mas nós não a alcançamos, Porque está sempre apenas onde a pomos, E nunca a pomos onde nós estamos. LUIZ ARAÚJO FILHO Luiz Araújo Filho (LAF) nasceu em Pelotas (RS), em 1845, e faleceu em Alegrete (RS), em 1918. Foi domador de cavalos, professor, jornalista, advogado e desempenhou atividades público-administrativas. Como produtor de literatura, deixou a novela Recordações gaúchas (1897 ou 1898, em Alegrete). A edição usada para transcrição do excerto a seguir foi a de 1905, saída em Pelotas. Recordações gaúchas (excerto do capítulo 11) Quase uma hora durou a sumanta, e, quando se desataram os homens, mal podiam tranquear e assim mesmo foram tirados campo fora a laçaços e os largaram. – Com esse vareio, disse o capitão Claro, não hão de querer carchear a mais ninguém. – Quem sabe, disse o coronel, essa gente há de pertencer a alguma maloca e pode voltar com companheiros para tirar vingança. Eu sou de parecer que devíamos ir pousar na estância; já é tarde, mas tínhamos tempo de chegar com a lua. Essa opinião foi aceita por uns poucos que tinham acompanhado o coronel, quando se tratou da morte dos homens, mas nisso levantou-se um chamado João Vivaldo, e, como era guapetão reconhecido, disse que quem fosse homem e quisesse acompanhá-lo que se acusasse, porque ele estava disposto a não sair de onde estava e convidou o capitão de quem era amigo. Esse o acompanhou e, com ele, muitos companheiros. Os outros naturalmente, pra não passarem por maulas, ficaram também. 179 Quando cerrou a noite, o coronel meteu para dentro de casão o seu cavalo, que era um parelheiro, dizendo que era cavalo de trato, que o sereno podia fazerlhe mal e outras coisas. – Era soldado velho, disse J. de Borba, e devia ter ficado com a pulga na orelha, depois da sova dos pátrias. E os outros não coicearam no cabresto com isso de ele recolher o cavalo? – Não sei, mas ele era mui respeitado, e ninguém disse nada, segundo ele mesmo me contou depois. A noite passaram sem novidade, e todos amanheceram mui satisfeitos. Mas, pouco depois de nascer o sol, avistaram quatro ou cinco ginetes que se aproximavam, aqui por estes lados, e logo em seguida, outros, assim foram chegando quatro, cinco, daqui, dois, três, dali, e cercaram por longe a casa. Uma pacotilha como dez a doze, onde vinha um oficial, chegaram em casa e apearam-se, cortando logo os maneadores e soltando os cavalos que estavam à soga. A isso a nossa gente se entrincheirou na casa, porque logo conheceu, pela fala e pelos modos, que aqueles deviam ser da mesma maloca dos dois que tinham apanhado na véspera. O oficial, que parecia o chefe, chegou à porta e ordenou, com rompante, que saíssem para fora. De dentro, diversos lhe gritaram que entrasse, se era capaz. Ele mostrou que era atrevido, porque em seguida desembainhou uma adaga e atropelou a porta, seguido de mais companheiros, porque então todos já tinham arrodeado a casa. Mas, no tempo de ele pisar no portal, o capitão meteu-lhe a pistola e o derrubou atravessado na porta. Alguns quiseram entrar a um tempo, mas caíram logo três ou quatro dos mais valentes, e os outros redemoinharam e se abriram. Cerrou aí o tiroteio, de dentro pra fora e de fora pra dentro. Dois dos atacantes cerraram as esporas nos cavalos e, chegando à beira da casa, quiseram prender-lhe fogo, mas aí mesmo ficaram, porque de dentro os rebentaram a bala. A tudo isso já o sol ia alto, e dos nossos não tinha morrido ninguém, nem sido ferido, mas a munição ia escasseando, e só se desfechava algum tiro mui seguro, porque a nossa gente não estava armada para um caso daqueles: muitos traziam pistolas, mas não eram todos, e esses mesmos com seis ou oito cartuchos cada um, e os mais eram espada ou facão. 180 Os inimigos, vendo que estavam perdendo gente sem vantagem, fizeram cerco por longe, a vinte ou trinta varas, e começaram a arrodear os nossos a trote e a galope, atirando pedras enroladas em panos acesos contra o rancho, que era de capim. Tanto atiraram até que acendeu labareda, e a quincha começou a arder. Nesse ponto o compadre Giloca fez uma pequena pausa... suspirou... sacudiu a cabeça e sorveu com frenesi três ou quatro goles seguidos de mate. – Ah! Amigo... aí é que foi a desgraça, continuou ele. A nossa gente saiu toda em peso, tocada pelo fogo, formada... não faltava ninguém... Foi então que se viu que os inimigos eram três a quatro vezes mais do que nós, e vinham armados de lanças, tercerolas, pistolas e espadas. – Ao mato, e ninguém se assuste, gritou o capitão Claro. – Aqui está o vosso comandante velho, gritou o coronel Bica, e vamos mostrar que ainda não perdemos o costume de pelear. Todos puxaram pelas armas que traziam: espadas, adagas, facões e boleadeiras. Armas de fogo já não tinham nenhuma munição. Era quase meio-dia. O mato ficava a umas quinze quadras... se pudessem chegar até lá estavam salvos... mas Deus não quis... O coronel Bica, montando o cavalo, em pelo, colocou-se à frente dos companheiros e romperam a marcha, formados em pelotão, em direção ao mato, abandonando o seu infeliz reduto, onde o fogo os acossava, e não era mais possível permanecer. Logo, porém, os inimigos deram uma carga, e seis dos nossos caíram feridos, entre eles o capitão Claro, que teve uma perna quebrada. Esses foram ultimados a lança, dando o capitão bastante trabalho, porque era destro e, mesmo sentado, defendia-se valorosamente com a espada. Os outros avançavam, apressando a marcha a rumo do mato, mas sempre arrodeados e apertados pelos pátrias, já não tiveram mais alce, de modo que companheiro ferido, que meio se atrasava, era logo morto e despilchado, porque nós andávamos bem de recursos, e os inimigos andavam mui escassos, e aproveitaram a volteada para se rebuscarem. Assim foi que pelo meio do caminho já não restavam mais que uns dez ou doze, e o coronel Bica, vendo que tudo estava perdido, atropelou e rompeu a fila dos inimigos, que vinham como pau-a-pique. Logo de sopetão, derrubou dois ou três com a espada, e, enquanto os outros meio titubearam na retintiva, ele cortou-se, mas lhe saíram perto, errando-lhe muitos tiros, até que perto do mato, como meia quadra, bolearam-lhe o cavalo. O animal correu um pouco boleado, mas logo arrastou os quartos e rodou. Ele saiu correndo com a espada na mão e ganhou o mato, onde os inimigos não o perseguiram mais. 181 Essa tarde passou escondido, porém, quando anoiteceu, saiu à beira do campo e costeou o mato, por dentro do espinilhal; atravessou banhados, bibocas e socavões, e, quando foi de madrugada, bateu na estância, que fica como duas léguas daqui, arroio a cima, lá onde passamos. Aí contou tudo; ele não estava ferido, mas vinha mui extraviado e cansado, descalço e meio nu, porque a roupa tinha ficado aos nacos nas japecangas e taquarais, que há muito por aqui. De manhã saímos com muitos vizinhos e viemos em procura dos nossos companheiros que já maliciávamos que estivessem mortos. Nesse tempo por aqui só havia este posto, e essa estrada passava daqui a mais de légua, no passo do Cardoso, lá em cima. Muito antes de chegar, avistamos já o bando de caranchos que, tendo descoberto os cadáveres estivados sanga abaixo, começavam a estraçalharlhes as carnes e de longe nos serviam de guia. Aí estavam 29 dos nossos companheiros, todos completamente nus, degolados e cobertos de feridas. Todo dia levamos a enterrá-los. Depois soubemos por vizinhos que os próprios inimigos declararam que nunca tinham visto homens tão valentes; que todos, até o último, brigaram até morrer. Os três, que ficamos, tomamos cada qual o nosso rumo, desguaritados e tristes por esse mundo. [...] O compadre Giloca calou-se, e J. de Borba deu ordem de encilhar, seguindo logo depois a comitiva a sua interrompida viagem. Ao montar a cavalo, o compadre Giloca olhou por derradeira vez para o canhadão, como que se despedindo com a vista do lugar onde jaziam seus antigos companheiros. – Parece que foi ontem; cada vez que chego aqui se me afigura que estou vendo meus companheiros, e entretanto já vai pra 15 anos... nunca hei de esquecer. Seguiram silenciosamente juntos ainda por meia hora e, finalmente, numa bifurcação da estrada, apartaram-se cada qual para suas residências, que perto ficavam. Comentários ao capítulo 11 de Recordações gaúchas A novela de Luís Araújo Filho deve ter sido ponto referencial à prosa empreendida por João Simões Lopes Neto, que a seguir se estudará. A narrativa 182 começa com travessão dialogal, em conversa do tipo uma-traz-outra, marca das charlas de galpão, à beira do fogo, na roda do mate. Histórias especiais, principalmente fora de centros urbanos, quase sempre nascem de viagens, em que outros mundos são atrações e curiosidades. Desse modo nasce a narrativa de Recordações gaúchas: são tropeiros em viagem que trançam os relatos. No caso presente, o âmago do argumento é a fala de galpão ou, mais precisamente, neste caso, do fogo de chão. O discurso é a linha de orientação das histórias. Através dele, os personagens, entre eles o narrador, se identificam, explanam a vida que levam, dão-se a conhecer, vivem histórias como aventuras vivas. O excerto transcrito mostra isso. Mostra também os inícios continentinos, como se dizia do Rio Grande do Sul, antigo Continente do Rio Grande. Foi terra de contendas, cultura viril e agreste, em que se valorizava a coragem e a hombridade, o domínio sobre os animais xucros e o companheirismo. O desassombro diante da incerteza era marca de honra dos guascas, dos vaqueanos, dos tapejaras, dos gaudérios, mais tarde chamados todos de gaúchos. A tal ponto o patronímico foi recebido como honroso, que não demorou para que todo o povo natural ou apenas habitante do Rio Grande do Sul fosse chamado de gaúcho. 183 Capítulo 5 Obras de Gustave Moreau (1826-1898). SIMBOLISMO (1893 – 1902) O Simbolismo, como o nome sugere, produziu literatura baseada na utilização de símbolos. Em consequência, a literatura simbolista é exclusivamente constituída de poemas. O símbolo, para comunicar seu significado, exige conhecimentos da cultura que o alimenta. Em poemas, o símbolo pode ser criado e ou desenvolvido, para cada caso, em cada poema, o que exige, normalmente, perspicácia e instrumentação teórica do leitor. O poema, desse modo, gera aura de mistério, que tem sido apontado pela crítica como elemento basilar da poética simbolista. A objetividade, exigida pelo texto em prosa, como construção de personagem e exposição narrativa de episódios, p. ex.,desfaz a aura de mistério necessária ao poema simbolista. A ideologia de sustentação do Simbolismo é o Intuitivismo. O Intuitivismo decorre principalmente do pensamento do filósofo Bergson. Constitui doutrina segundo a qual todo conhecimento tem base na intuição. O Intuitivismo valoriza a intuição, em contraposição à proposta positivista, de valorização do que os realistas denominavam realidade objetiva. A intuição é forma de conhecimento não perfeitamente demonstrável, de foro íntimo, pessoal. Isso permitiu que os estudiosos tenham definido a literatura simbolista como subjetiva. Haja vista o que acima ficou exposto a respeito da utilização de símbolos. Também pode ser vista como arte subjetivista, em função do ambiente misterioso que muitas vezes ronda os poemas. A proposta simbolista, portanto, afasta-se do Realismo e aproxima-se, o quanto isso é possível entre escolas literárias, do Romantismo. Enquanto vigia o Simbolismo, formas parnasianas subsistiam no que se convencionou 184 denominar neoparnasianismo. Muitos poetas, como o a seguir citado Wamosy, começaram neoparnasianos e depois aderiram ao Simbolismo. Tornou-se usual, entre os simbolistas, a utilização de palavras que sugiram e ou expressem brancuras, espiritualidade, misticismo, religiosidade, sonoridade, musicalidade. Brancuras em geral funcionam como simbólicas da imaterialidade humana, do que não aparece no mundo da realidade concretosensorial, em contraposição à proposta realista. A sugestão e ou expressão de espiritualidade traduz-se em palavras como alma, espírito, e pela desvalorização da materialidade, especialmente em seu caráter de transitoriedade. A religiosidade, que às vezes se confunde com a espiritualidade no poema, é expressa em citações de objetos de ofícios religiosos e na aceitação da fé, como solução à vida. Misticismo tem o mesmo radical de mistério; como as religiões trabalham implicitamente com mistérios, essa marca se estabelece bem na proposta literária do Simbolismo. Sonoridade e musicalidade são construídas sobre uma das marcas mais caraterísticas da poesia simbolista: a especial valorização do vocábulo sobre a palavra, ou seja, do significante sobre o significado. Noutras palavras: a elaboração do poema privilegia efeitos sonoros das palavras sobre o significado que elas costumeiramente têm na língua. Criase, assim, uma linguagem poética simbolista ou, noutras palavras, o estilo discursivo simbolista. Em Oferta, poema de Alceu Wamosy, se pode observar isso com bastante evidência. (Wamosy está estudado (a seguir) como pré-modernista, por motivos que a seu tempo se verão.) Esses versos, que eu fiz à glória de tua alma, têm a sonoridade esquisita de um bronze e a clara limpidez de um cibório de prata. Possuem do teu gesto encantador o ritmo, e, nos símbolos seus, anda o mesmo mistério que te aparta do mundo e apenas te revela para o amor do meu culto – esplendor do meu sonho. Ó toda pulcra Urna divina, Urna de carne onde a Beleza dorme, harmoniosa e radiante, recebe este Missal da minha adoração. Nesse poema, podem-se identificar algumas tendências marcantes da arte dos simbolistas na construção dos versos. Como se pode também observar, a própria grafia da palavra pode ser simbólica ou sugestiva: letras maiúsculas podem sugerir significados subliminares. No Brasil, o Simbolismo constituiu-se escola literária um tanto marginal. Floresceu em ambientes urbanos periféricos, não desfrutou de prestígio público e, de acordo com a crítica, pontificou apenas durante nove anos. Rigorosamente, 185 pontificou não corresponde exatamente ao que ocorreu, como anteriormente ficou dito. João da CRUZ E SOUZA Cruz e Souza nasceu (filho de escravos) em Desterro, a Florianópolis (SC) de hoje, em 1861. Morreu em Sítio (MG), em 1898, aonde tinha ida a tratamento de saúde. É conhecido como o Cisne Negro da literatura brasileira. Questionou preconceitos e outros problemas sociais em sua participação política. Tem sido considerado nosso mais completo poeta simbolista. O início oficial do movimento simbolista no Brasil tem sido apontado como estabelecido com a publicação de Missal e de Broquéis (1893), de sua autoria. Além de ter iniciado (oficialmente) o simbolismo brasileiro, consolidou o movimento através da qualificação técnica e da decisão temática da obra que compôs. Obras: Missal (poema em prosa), Broquéis, Tropos e fantasias, Faróis, Últimos sonetos e O caminho da glória. Antífona Ó Formas alvas, brancas, Formas claras De luares, de neves, de neblinas!... Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas... Incensos dos turíbulos das aras... Formas do Amor, constelarmente puras, De Virgens e de Santas vaporosas... Brilhos errantes, mádidas frescuras E dolências de lírios e de rosas... Indefiníveis músicas supremas, Harmonias da Cor e do Perfume... Horas do Ocaso, trêmulas, extremas, Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume... Visões, salmos e cânticos serenos, Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes... Dormências de volúpicos venenos Sutis e suaves, mórbidos, radiantes... Infinitos espíritos dispersos, Inefáveis, edênicos, aéreos, Fecundai o Mistério destes versos, Com a chama ideal de todos os mistérios. Do Sonho as mais azuis diafaneidades Que fuljam, que na Estrofe se levantem, 186 E as emoções, todas castidades Da alma do verso pelos versos cantem. Que o pólen de ouro dos mais finos astros Fecunde e inflame a rima clara e ardente... Que brilhe a correção dos alabastros Sonoramente, luminosamente. Forças originais, essência, graça De carnes de mulher, delicadezas... Todo esse eflúvio que por ondas passa Do Éter nas róseas áureas correntezas... Cristais diluídos de clarões alacres, Desejos, vibrações, ânsias, alentos, Fulvas vitórias, triunfamentos acres, Os mais estranhos estremecimentos... Flores negras do tédio e flores vagas De amores vãos, tantálicos, doentios... Fundas vermelhidões de velhas chagas Em sangue, abertas, escorrendo em rios... Tudo! Vivo e nervoso e quente e forte, Nos turbilhões quiméricos do Sonho, Passe, cantando, ante o perfil medonho E o tropel cabalístico da Morte... Lésbia Cróton selvagem, tinhorão lascivo, Planta mortal, carnívora, sangrenta, Da tua carne báquica rebenta A vermelha explosão de um sangue vivo. Nesse lábio mordente e convulsivo, Ri, ri risadas de expressão violenta O Amor, trágico e triste, e passa, lenta, A morte, o espasmo gélido, aflitivo... Lésbia nervosa, fascinante e doente, Cruel e demoníaca serpente Das flamejantes atrações do gozo. Dos teus seios acídulos, amargos, Fluem capros aromas e os letargos, Os ópios de um luar tuberculoso... Cárcere das almas Ah! Toda a alma num cárcere anda presa, 187 Soluçando nas trevas, entre as grades Do calabouço, olhando imensidades, Mares, estrelas, tardes, natureza. Tudo se veste de uma igual grandeza, Quando a alma entre grilhões as liberdades Sonha e, sonhando, as imortalidades Rasga no etéreo Espaço da Pureza. Ó almas presas, mudas e fechadas Nas prisões colossais e abandonadas Da Dor no calabouço atroz, funéreo! Nesses silêncios solitários, graves, Que chaveiro do Céu possui as chaves Para abrir-vos as portas do Mistério?! Livre Livre! Ser livre da matéria escrava, Arrancar os grilhões que nos flagelam E livre penetrar nos Dons que selam A alma e lhe emprestam toda a etérea lava. Livre da humana, da terrestre lava Dos corações daninhos que regelam, Quando os nossos sentidos se rebelam Contra a Infâmia bifronte que deprava. Livre! bem livre para andar mais puro, Mais junto à Natureza e mais seguro Do seu Amor, de todas as justiças. Livre! para sentir a Natureza, Para gozar, na universal Grandeza, Fecundas e arcangélicas preguiças. Monja Ó Lua, Lua triste, amargurada, Fantasma de brancuras vaporosas, A tua nívea luz ciliciada Faz murchecer e congelar as rosas. Nas floridas searas ondulosas, Cuja folhagem brilha fosforeada, Passam sombras angélicas, nivosas, Lua, monja da cela constelada. Filtros dormentes dão aos lagos quietos, Ao mar, ao campo, os sonhos mais secretos, 188 Que vão pelo ar, noctâmbulos, pairando... Então, ó Monja branca dos espaços, Parece que abres para mim os braços, Fria, de joelhos, trêmula, rezando... ALPHONSUS de GUIMARAENS Alphonsus de Guimaraens é o nome literário de Afonso Henrique da Costa Guimarães. Ele nasceu em Ouro Preto (MG), em 1870, e faleceu em Mariana (MG), em 1921. Formou-se pelo curso de Ciências Jurídicas na Faculdade de Direito de São Paulo. Foi nomeado promotor de Conceição do Serro e, mais tarde, juiz na cidade de Mariana. Construiu sua obra nos parâmetros do Simbolismo. Obras: Dona Mística (1899), Câmara ardente (1899), Septenário das dores de Nossa Senhora (1899), Kiryale (1902), Pauvre Lyre (1921), Pastoral aos crentes do amor e da morte (1923). A catedral Entre brumas, ao longe, surge a aurora. O hialino orvalho aos poucos se evapora, Agoniza o arrebol. A catedral ebúrnea do meu sonho Aparece, na paz no céu risonho, Toda branca de sol. E o sino canta em lúgubres responsos: “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!” O astro glorioso segue a eterna estrada. Uma áurea seta lhe cintila em cada Refulgente raio de luz. A catedral ebúrnea do meu sonho, Onde os meus olhos tão cansados ponho, Recebe a bênção de Jesus. E o sino clama em lúgubres responsos: “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!” Por entre lírios e lilases desce A tarde esquiva: amargurada prece Põe-se a lua a rezar. A catedral ebúrnea do meu sonho Aparece, na paz do céu tristonho, Toda branca de luar. 189 E o sino chora em lúgubres responsos: “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!” O céu é todo trevas: o vento uiva. Do relâmpago a cabeleira ruiva Vem açoitar o rosto meu. E a catedral ebúrnea do meu sonho Afunda-se no caos do céu medonho Como um astro que já morreu. E o sino geme em lúgubres responsos: “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!” Pulchra ut luna Celeste... É assim, divina, que te chamas. Belo nome tu tens, Dona Celeste... Que outro terias entre humanas damas, Tu que, embora na terra, do céu vieste? Celeste... E como tu és do céu não amas: Forma imortal que o espírito reveste De luz, não temes sol, não temes chamas, Porque és sol, porque és luar, sendo celeste. Incoercível como a melancolia, Andas em tudo: o sol no poente vasto Pede-te a mágoa do findar do dia. E a lua, em meio à noite constelada, Pede-te o luar indefinido e casto Da tua palidez de hóstia sagrada. EDUARDO Gaspar da Costa GUIMARÃES Assinava a produção literária como Eduardo Guimaraens. Nasceu em Porto Alegre em 1892; faleceu no Rio de Janeiro em 1928. Colaborou em vários periódicos da capital gaúcha. Entre 1912 e 1916 viveu no Rio de Janeiro, onde igualmente atuou na imprensa. Traduziu poemas e peças de teatro. Sua poesia dialoga com poetas simbolistas, especialmente europeus. Obras: Caminho da vida (1908); A divina quimera (1916). Canto do velho minuano Sutil, sutílimo, um tanto lento, logo subindo, como se a voz de alguém vibrasse na altura do vento 190 do Pampa, se ergue, chama por nós! Terrível, uiva! Mas, nessa grita, que de hinos claros! E desvairada, por sobre as cousas se precipita, sopra, sibila, silva a lufada! Quase torrente que se encapela, serpeia, aéreo mar, o tufão, mais cheio de ondas do que a procela que a pique os barcos põe, de roldão! Assim, o vento da minha terra, em vindo o inverno que os campos tala, solta o seu forte brado de guerra! Tinem espadas e há trons de bala... Todo o passado! Todo! Ora, os que amam – poetas! – a alma do seu país sentem-na, em ritmos que se derramam pelo ar das noites, cantar, feliz, no imenso vento, que o Pampa atroa e gela, e grosso de rebeldias, águia suprema, sem pausas, voa três longas noites, três longos dias. Porque nos giros do seu insano desregramento, do seu furor, sempre saudável, o Minuano é também uma força de amor! Seca as chuvadas, áspero e frio, e aclara a abóboda azul-celeste – Quebram violas ao desafio... – o meteoro que vem do Oeste! Desfaz as nuvens, que o raio encerra. Limpa os céus, funde-os como metais... (Divinas tardes da minha terra! Céus dos crepúsculos sem iguais!) Quando entra às frinchas de cada porta, faz-se acalanto com que adormecem – se acaso acordam, por noite morta – os bebês frágeis que as mães aquecem! Na solitude dos campos, à hora cheia de graça do anoitecer, tu retransmites espaço em fora o som dos sinos, que ensina a crer! E ao mesmo tempo, rural e urbano, que retemperas o corpo e a alma, nos estimulas, ó Minuano, com os acenos da melhor palma! 191 Quis, no meu canto, se é que ele encerra um eco apenas do teu – ou não, louvar-te, ó vento da minha terra! Fôlego largo do meu torrão! 192 Capítulo 6 Quadro de Trípoli Gaudenzi sobre os episódios de Canudos. PRÉ-MODERNISMO (1902 – 1922) Para iniciar o estudo do Pré-modernismo, é necessário admitir que essa é uma nominação imprecisa. Ainda há outra dificuldade: como ainda não estudamos o Modernismo, precisamos procurar conceber o Pré-modernismo na carência dessas bases conceituais. A tradição crítica brasileira tem dito que o Pré-modernismo é o único período literário da nossa literatura. Por período literário entende-se um espaço de tempo em que os textos da literatura carecem de uma (única) ideologia predominante. Vale dizer: o procedimento de produção literária é eclético: os textos desenvolvem ideários independentes e ou diferentes, e os estilos tampouco procuram aproximar-se uns dos outros. O ecletismo é marcado pela diversidade. Assim, pois, a variedade estilístico-ideológica é o que sinaliza teoricamente, de modo marcante, a produção literária do que denominamos Prémodernismo. Por não se identificar com qualquer unidade ideológica (única) nem os textos produzidos manterem aproximações estilísticas, o período pré-modernista não deve ser considerado escola literária, que precisa desses requisitos para constituir-se como tal. Tampouco deve ser aceito como estilo de época, porque não pontifica um, mas vários coexistem. Estilos de época são produções identificadas por certas marcas estilísticas no interior duma escola. Mantém-se, pois, a concepção de período literário para o Pré-modernismo. O período pré-modernista começa em 1902 com a produção de dois romances: Os sertões de Euclides da Cunha, e Canaã, de J. A. Graça Aranha. Há no fato da publicação desses romances algo a considerar de maneira 193 especial. É que o Simbolismo, entre outras marcas, se caraterizou pelo subjetivismo marcante, i. é, pela centralidade da expressão no sujeito, quer seja ele o autor, quer seja o leitor do texto. A objetividade necessária para elaborar personagens da narração do romance já desconfigura a possibilidade técnicoestilística simbolista que, por isso, se restringiu à produção de poemas. A concretização de episódios narrativos também impede a manutenção da aura simbolista. Escolheram-se para este capítulo autores que tenham sido significativos dessa diversidade pré-modernista, que tenham desenvolvido estilos marcantes e ideários diversificados entre si, como Lopes Neto, Monteiro Lobato, Lima Barreto, Alcides Maya (na prosa); Augusto dos Anjos, Alceu Wamosy, Ramiro Barcelos (na poesia). AUGUSTO de Carvalho Rodrigues dos ANJOS Augusto dos Anjos tem sido considerado um dos mais singulares poetas do país. Nasceu em Pau D'Arco (PB) em 1884 e faleceu em 1919 em Leopoldina (MG), aos 29 anos de idade. Escreveu um único livro, Eu. O livro parece manifestar certo sentimento trágico da vida. Utiliza vocabulário geralmente de tendências naturalistas e às vezes com marcas simbolistas. Já aí se evidencia (pelo menos aparentemente) contradição teórica. Augusto dos Anjos parece enquadrar-se com maior clareza no Pré-modernismo, que, como já foi comentado acima, não chegou a constituir escola literária e caracterizou-se pela convivência de várias tendências. Vencedor Toma as espadas rútilas, guerreiro, E à rutilância das espadas, toma A adaga de aço, o gládio de aço, e doma Meu coração – estranho carniceiro! Não podes?! Chama então presto o primeiro E o mais possante gladiador de Roma. E qual mais pronto e qual mais presto assoma, Nenhum pôde domar o prisioneiro. Meu coração triunfava nas arenas. Veio depois um domador de hienas, E outro mais, e, por fim, veio um atleta, Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem. E não pôde domá-lo, enfim, ninguém, Que ninguém doma um coração de poeta! 194 Versos íntimos Vês?! Ninguém assistiu ao formidável Enterro da tua última quimera. Somente a ingratidão – essa pantera – Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra miserável, Mora entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija! Barcarola Cantam nautas, choram flautas Pelo mar e, pelo mar, Uma sereia a cantar Vela o Destino dos nautas. Espalham-se os esplendores Do Céu, em reflexos, nas Águas, fingindo cristais Das mais deslumbrantes cores. Em fulvos filões doirados Cai a luz dos astros por Sobre o marítimo horror, Como globos estrelados. Lá onde as rochas se assentam Fulguram como outros sóis Os flamívomos faróis Que os navegantes orientam. Vem uma onda, vem outra onda E nesse eterno vaivém – Coitadas! não acham quem, Quem as esconda, as esconda... Alegoria tristonha Do que pelo Mundo vai! Se um sonha e se ergue, outro cai; 195 Se um cai, outro se ergue e sonha. Mas desgraçado do pobre Que em meio da Vida cai! Esse não volta, esse vai Para o túmulo que o cobre. Vagueia um poeta num barco. O Céu, de cima, a luzir Como um diamante de Ofir Imita a curva de um arco. A Lua – globo de louça – Surgiu, em lúcido véu. Cantam! Os astros do Céu Ouçam e a Lua Cheia ouça! Ouça do alto a Lua Cheia Que a sereia vai falar... Haja silêncio no mar Para se ouvir a sereia. Que é que ela diz?! Será uma História de amor feliz? Não! O que a sereia diz Não é história nenhuma. É com um réquiem profundo De tristíssimos bemóis... Sua voz é igual à voz Das dores todas do mundo! “Fecha-te nesse medonho Reduto de Maldição, Viageiro da extrema-unção, Sonhador do último sonho! Numa redoma ilusória Cercou-te a glória falaz, Mas nunca mais, nunca mais Há de cercar-te essa glória! Nunca mais! Sê, porém, forte. O poeta é como Jesus! Abraça-te à tua Cruz E morre, poeta da Morte!” – E disse e porque isto disse O luar no Céu se apagou... Súbito o barco tombou 196 Sem que o poeta pressentisse! Vista de um luto o Universo E Deus se enlute no Céu! Mais um poeta que morreu, Mais um coveiro do Verso! Cantam nautas, choram flautas Pelo mar e, pelo mar, Uma sereia a cantar Vela o Destino dos nautas! Comentários aos poemas de Augusto dos Anjos Em Vencedor, leem-se reflexões a respeito da importância do poder da força e das organizações sociais que constituem oposição ao “coração do poeta”, esse, sim, indomável. Vale dizer: coração aponta para o sentimento, a intimidade, a determinação. Por metonímia, alonga-se o sentido também para algo como valores intelectuais, que se contrapõem aos que inicialmente são apresentados no soneto. Mais ou menos como diz o ditado popular, mais vale a pena do sábio do que a espada do guerreiro. Em Versos íntimos, Augusto dos Anjos volta a pautar o texto pela forma do soneto tradicional. Do ponto de vista do ideário, contudo, utiliza recursos da língua que lhe possibilitam explorar o gosto naturalista pelo cientificismo e por expressões chocantes. Desse modo, delineia-se a busca de forma e tema, no período literário que está sendo analisado. A busca da forma se demonstra pela utilização de fôrma poética tradicional retomada no Parnasianismo (1883-1902), o soneto, mas lança mão de recursos a que o Naturalismo (1881-1902) recorreu. Desse modo, parece também desenhar-se o que foi possível pensar como Prémodernismo. Apesar disso, ensaiam-se alguns recursos simbolistas, como sonorização, vocabulário incomum e musicalidade. Essa conformação técnica, por conseguinte, demonstra reutilização de várias conformações estilísticoideológicas, para construção de novas formas estilísticas, no sentido exato da busca e da variedade, como convém, segundo a teorização aqui sustentada, para o período pré-modernista. Dos três poemas selecionados, talvez Barcarola seja o de maior complexidade técnica e temática. Nesse poema, o poeta não opta pela forma fixa. Faz uso da simplicidade da quadra heptassílaba, com dois ictos por verso. O recurso estrutural é agora mais próximo do Romantismo e do Modernismo do que do Parnasianismo e do Simbolismo. É possível identificar em Barcarola marcas românticas e simbolistas. Nele se vislumbram, p. ex., entroncamentos com Gonçalves Dias, Castro Alves, Álvares de Azevedo; com Cruz e Sousa. O poema trata da vida, através da velha 197 alegoria da viagem (a existência) pelas ondas (problemas) do mar (o espaço existencial disponível). Tal viagem tem Destino marcado: ninguém foge disso. Nesse sentido, o poema investe nas concepções realista-naturalista-parnasiana e simbolista. ALCEU de Freitas WAMOSY Wamosy nasceu em Uruguaiana (RS) em 1894. Foi jornalista na cidade natal e em Alegrete (RS). Viveu também em Santana do Livramento (RS). Frequentou a companhia de outros intelectuais da época, em Porto Alegre, onde esteve por breve tempo. Faleceu em Livramento, dez dias depois de ter sido baleado em combate da luta armada de 1923. Obra: Flâmulas (20 sonetos de estreia), composto pelo próprio poeta, nas oficinas do jornal (1913); Na terra virgem (1914) e Coroa de sonhos (1925). Há notícias da existência de poema ou poemas em prosa com o título Jardim das estátuas tristes, até hoje sem ter sido localizado nem editado. A prosa está reunida em Prosa de Alceu Wamosy (1967). A revolta do corvo Negro, petrificado e frio como um mito De Buda, a passear o olhar de lado a lado, Ele deixou-se ali ficar, sob o infinito Peso de sua tortura – estranho torturado... E lançando, talvez, à bruma do passado, Seu profundo olhar, sereno, de proscrito Atirou para o alto e negro céu calado A blasfêmia audaciosa e rubra do seu grito! E o céu, que não escuta e que é marmóreo e torvo, Riu, talvez, para si, da pequenez do corvo E afivelou de novo a máscara de aço. E o corvo, alçando o voo, embriagado e tonto, Subiu... cortou a névoa... a bruma... e como um ponto Negro, sumiu-se além, na escuridão do espaço... Por quê? Se tu és tão bom, Senhor – se o teu poder é tanto, Que terra e mar e céus, tudo tu tens na mão; Se os que vivem sofrendo achar consolo vão, Nas dobras imortais do teu paterno manto; 198 Se não és, simplesmente, a simples ilusão Dos que os olhos já têm, secos de chorar tanto; Se apagas toda a dor e enxugas todo o pranto Que a desdita acumula em nosso coração; Se és o supremo bem; se és o gozo supremo Daqueles a quem punge um mal negro e profundo, E a quem abate e prostra um sofrimento extremo; Dize por que é, Senhor! Dize, Senhor, por que é Que ainda andam a gemer, nas solidões do mundo, Bocas que não têm pão – almas que não têm fé?! Oferta Esses versos, que eu fiz à glória de tua alma, têm a sonoridade esquisita de um bronze e a clara limpidez de um cibório de prata. Possuem do teu gesto encantador o ritmo, e, nos símbolos seus, anda o mesmo mistério que te aparta do mundo e apenas te revela para o amor do meu culto – esplendor do meu sonho. Ó toda pulcra Urna divina, Urna de carne onde a Beleza dorme, harmoniosa e radiante, recebe este Missal da minha adoração. Duas almas Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada, Entra, e, sob este teto encontrarás carinho: Eu nunca fui amado e vivo tão sozinho, vives sozinha sempre, e nunca foste amada... A neve anda a branquear, lividamente, a estrada, e a minha alcova tem a tepidez de um ninho. Entra, ao menos até que as curvas do caminho se banhem no esplendor nascente da alvorada. E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa, essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua, podes partir de novo, ó nômade formosa! Já não serei tão só, nem irás tão sozinha: Há de ficar comigo uma saudade tua... Hás de levar contigo uma saudade minha... 199 Comentários aos poemas de Alceu Wamosy A revolta do corvo integrou a edição original de Flâmulas (vinte sonetos de estreia), composto integralmente por ele: não apenas lhe foi o autor, como igualmente o imprimiu e distribuiu. O poema é um soneto de forma tradicional, versos dodecassílabos com dois ictos cada. Misturam-se no texto marcas parnasianas e antissimbolistas, como convém ao que denominamos de produção pré-modernista. É possível contudo constatar predominância de marcas parnasianas, o que facilita a concepção do que também se tem chamado de neoparnasianismo. Essa produção toda cabe, como se viu anteriormente, no período pré-modernista, dadas as caraterísticas que demonstra. É possível identificar-se o antissimbolismo, p. ex., na imagem do corvo, “negro, petrificado e frio como um mito / De Buda” que “atirou [...] para o negro céu calado / A blasfêmia audaciosa e rubra do seu grito”. O corvo, por fim, “cortou a névoa... a bruma...”. Nessas passagens poéticas se evidenciam sinais que contrariam a proposta simbolista: o corvo, símbolo valorizado no poema, é negro; lança-se contra o céu também negro e calado, i. é, ignoto, inescrutável e que não responde aos anseios humanos. O céu não aparece como uma esperança, mas máscara de aço, fechado e ameaçador. A revolta tem tons de vingança: o corvo negro perfura e vence a névoa e a bruma, símbolos exaustivamente utilizados pelos simbolistas, para expressar e valorizar imaterialidade e espiritualidade. O espaço é também escuro. Nele não se nomeia o sol nem a lua. Luminosidade, outra preocupação estilística dos simbolistas, tampouco comparece no poema. Por quê? está composto em formas análogas ao poema anteriormente analisado. Ambos têm caraterísticas que se aproximam. Por quê?, contudo, é mais explícito que A revolta do corvo. O que primeiro chama a atenção é a utilização do substantivo Senhor, com inicial maiúscula. O primeiro contato com essa palavra faz quiçá o leitor pensar num poema místico, poema quem sabe simbolista. O que se lê no entanto revela o contrário. O poema põe em dúvida a existência de um ser superior completo, que se preocupe com os humanos, como se pai fosse deles. Onde está a justiça para a humanidade, questiona o poema, se há os que sofrem por não terem fé e ou outros por não terem alimentos. É digno de nota, ainda, o fato de o poema falar primeiro em pão, só depois em fé, em sugestiva e subliminar escala de valores. De qualquer modo, segundo se lê no soneto, ambas as carências produzem infelicidade. Oferta já é poema com outra configuração estilístico-ideológica. O poema tem apenas dez versos, em estrofes de 3 e 4 versos. O poema é metapoético, i. é, está fundado na concepção (agora) simbolista do fazer poético. Valoriza, p. ex., versos, glória, alma, sonoridade, bronze, clara limpidez, cibório de prata, gesto, ritmo, símbolos, mistério, amor, culto, sonho, missal, adoração. Foi possível encontrar, em dez versos dodecassílabos, dezessete substantivos e um adjetivo que expressam e sugerem imaterialidade, espiritualidade, religiosidade, 200 misticismo. Adiante ainda será possível destacar outros momentos importantes desse trabalho, que expõe de forma inequívoca a adesão formal e ideológico do poema à proposta simbolista. É esclarecedor igualmente dizer que Oferta abre o último livro do poeta, Coroa de sonhos. Na análise de Duas almas será possível retornar a essa questão e tentar eliminar alguns equívocos frequentes de análise da obra de Wamosy. A expressão “mistério / que te aparta do mundo” segue a sequência de semas de valorização da imaterialidade, de outro mundo melhor. O amor que dedica à amada é um culto e é esplendor do sonho que alimenta. O adjetivo latino pulcra liga a escolha vocabular, do mesmo modo, ao incomum, a que os simbolistas procuraram sempre relacionar o vocabulário e secundariamente a semântica, no sentido de ampliar e aprofundar a sensação de mistério e fuga do cotidiano limitador. (Lembremos que Alphonus de Guimaraens tem um soneto intitulado Pulcra ut luna.) Concebe a mulher amada como urna divina e como urna de carne, i. é, guarda a pureza e a vida, mas o sentido de imaterialidade antecede o de carnalidade. Mais: a palavra “Urna” está grafada, como “Beleza” (2o verso da mesma estrofe), com inicial maiúscula; vale dizer: essas palavras devem ser lidas como substantivos próprios, ou como símbolos primordiais do poema. Além disso, urna, com inicial maiúscula, sugere, do ponto de vista ótico, imagem que pode ser entendida com algo de erótico. Por fim, o substantivo missal também está grafado com inicial maiúscula, sobrecarregando de valor poético-ideológico o sentimento religioso, tão grato ao Simbolismo. Como conclusão parcial, pode-se ainda dizer que o poema Oferta, dedicado à noiva, é um texto propositivo e de adesão ao Simbolismo galharda e sofridamente vivenciado pelo admirado Cruz e Sousa, com quem, aliás, não seria desmedido relacionar o primeiro poema de Wamosy presente nesta antologia, embora sem possibilidade de justificativa ideológica. Duas almas é o poema que chamou atenção especial sobre o poeta e sua obra. É o poema que está gravado em bronze, sob a herma do poeta, na praça central de sua cidade natal. É o poema que tem sido enfeixado nas antologias nacionais que incluem Wamosy entre os poetas representativos da nossa literatura. Essa talvez seja a primeira razão de o autor ter sido quase sempre considerado simplesmente simbolista, ainda que de última hora. A outra talvez seja a falta de acesso à obra completa. O título aponta para a espiritualização ou imaterialização do amor. O soneto tem forma tradicional. Ideologicamente, não se define com precisão, o que também o conduz ao conjunto dos textos carateristicamente simbolistas. As auras de mistério e de imprecisão aliadas ao expressivo e sugestivo trabalho verbo-fônico, incluída a musicalidade, definem o soneto como aderente à poética simbolista. Os jogos bipolares marcam o texto e reafirmam o universo onírico das duas almas. 201 Para demonstração do trabalho de construção simbolista do soneto, destaco o segundo verso do primeiro terceto. No texto, “sem fim” é semanticamente equivalente a “imensa”, e “deserta” o é a “nua”. Na observação dos significados, portanto, há quatro informações para duas significações. Esses pleonasmos estão menos fundados no que dizem e mais no que sugerem. O trabalho com significantes é, na poética simbolista, mais importante que o trabalho com significados. A sonoridade, a musicalidade, a sugestividade são de fato constituintes fundamentais dos textos no estilo simbolista. Por essa razão, a repetição dos significados não diminui o poema; ao contrário, a sugestividade fônica, baseada nas vogais, faz brotarem nuanças musicais e sensações visuais de afastamento. João SIMÕES LOPES NETO Lopes Neto nasceu em 1865, na estância da família, interior de Pelotas. Aos 11 anos, foi para a cidade. Aos 13, matriculou-se no Colégio Abílio, no Rio de Janeiro. Abandonou os estudos quatro anos mais tarde e regressou à cidade natal. Viajou a Uruguaiana em companhia do pai, que administrava uma das propriedades da família. Começou a escrever em 1888, no jornal A pátria, de Pelotas. Criou a Sociedade Anônima Vidraria Pelotense. Em 1892, estreou no Diário popular. Montou, como incorporador, a Companhia Destilação Pelotense. Publicou em 1893, no Correio mercantil, em 15 capítulos, sob o pseudônimo de Serafim Bemol, um folhetim chamado A mandinga. Escreveu peças teatrais em única autoria e em parcerias, que foram encenadas em Pelotas. Continuou com atividade jornalística. A peça Viúva Pitorra foi editada pela Livraria Comercial. Em 1906, começou a publicar a Coleção brasiliana, de divulgação da história nacional, através de postais confeccionados em Pelotas. No mesmo ano, tornou-se professor da Academia de Comércio do Clube Caixeiral e divulgou pelo Correio mercantil o conto de base lendária O Negrinho do Pastoreio. Suas principais obras apareceram mais tarde: Cancioneiro guasca (1910), Contos gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913). Faleceu em 1916, na cidade natal. Contos gauchescos [Introdução] Patrício, apresento-te Blau, o vaqueano. – Eu tenho cruzado o nosso Estado em caprichoso ziguezague. Já senti a ardentia das areias desoladas do litoral; já me recreei nas encantadoras ilhas da Lagoa Mirim; fatiguei-me na extensão da coxilha de Santana; molhei as mãos no soberbo Uruguai, tive o estremecimento do medo nas ásperas penedias do 202 Caverá; já colhi malmequeres nas planícies do Saicã, oscilei sobre as águas grandes do Ibicuí; palmilhei os quatro ângulos da derrocada fortaleza de Santa Tecla, pousei em São Gabriel, a forja rebrilhante que tantas espadas valorosas temperou, e, arrastado no turbilhão das máquinas possantes, corri pelas paragens magníficas de Tupanciretã, o nome doce, que no lábio ingênuo dos caboclos quer dizer os campos onde repousou a mãe de Deus... – Saudei a graciosa Santa Maria, fagueira e tranquila na encosta da serra, emergindo do verde-negro da montanha copada o casario, branco, como um fantástico algodoal em explosão de casulos. – Subi aos extremos de Passo Fundo, deambulei para os cumes da Lagoa Vermelha, retrovim para a merencória Soledade, flor do deserto, alma risonha no silêncio dos ecos do mundo; cortei um formigueiro humano na zona colonial. – Da digressão longa e demorada, feita em etapas de datas diferentes, estes olhos trazem ainda a impressão vivaz e maravilhosa da grandeza, da uberdade, da hospitalidade. – Vi a colmeia e o curral; vi o pomar e o rebanho, vi a seara e as manufaturas; vi a serra, os rios, a campina e as cidades; e dos rostos e das auroras, de pássaros e crianças, dos sulcos do arado, das águas e de tudo, estes olhos, pobres olhos condenados à morte, ao desaparecimento, guardarão na retina até mesmo o último milésimo da luz, a impressão da visão sublimada e consoladora: e o coração, quando faltar ao ritmo, arfará num último esto para que a raça que se está formando, aquilate, ame e glorifique os lugares e os homens dos nossos tempos heroicos, pela integração da Pátria comum, agora abençoada na paz. E, por circunstâncias de caráter pessoal, decorrentes da amizade e da confiança, sucedeu que foi meu constante guia e segundo o benquisto tapejara Blau Nunes, desempenado arcabouço de oitenta e oito anos, todos os dentes, vista aguda e ouvido fino, mantendo o seu aprumo de furriel farroupilha, que foi, de Bento Gonçalves, e de marinheiro improvisado, em que deu baixa, ferido, de Tamandaré. Fazia-me ele a impressão de um perene tarumã verdejante, rijo para o machado e para o raio, e abrigando dentro do tronco cernoso enxames de abelhas, nos galhos ninhos de pombas... Genuíno tipo – crioulo – rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através da imaginosa e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco. E, do trotar sobre tantíssimos rumos; das pousadas pelas estâncias; dos fogões a que se aqueceu; dos ranchos em que cantou, dos povoados que atravessou; das cousas que ele compreendia e das que eram-lhe vedadas ao 203 singelo entendimento; do pelo-a-pelo com os homens, das erosões da morte e das eclosões da vida, entre o Blau – moço militar – e o Blau – velho, paisano -, ficou estendida uma longa estrada semeada de recordações – casos, dizia – que de vez em quando o vaqueano recontava, como quem estende ao sol, para arejar, roupas guardadas ao fundo de uma arca. Querido digno velho! Saudoso Blau! Patrício, escuta-o. Comentários à apresentação de Blau Nunes A página introdutória dos Contos gauchescos não tem título. Ela é de fato apresentação do personagem e narrador Blau Nunes. Marca também o território do discurso e dos episódios que ele prolata a partir do primeiro conto do livro, Trezentas onças. Esse é seu lugar de fala. Por isso lhe vai ser possível desconsiderar preceitos gramaticais de origem lusitana. Apesar disso, as grandes contribuições de Lopes Neto para a renovação do discurso literário brasileiro só aparecem a partir do primeiro conto. Nesses textos é que a elaboração discursiva conquista a condição de grande literatura. O personagem Blau foi construído como protótipo. Nos seus limites se lê a formação moral do homem gaúcho do pampa. Está no discurso de Blau contido o universo pessoal e social desse homem, a que se tem acesso pela formulação de sua escala de valores. Trezentas onças – Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilha, onde devia pousar. Parece que foi ontem!... Era por fevereiro; eu vinha abombado da troteada. – Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato, que está nos vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos pelegos, a cabeça no lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma sesteada morruda. Despertando, ouvindo o ruído manso da água tão limpa e tão fresca rolando sobre o pedregulho, tive ganas de me banhar; até para quebrar a lombeira… e fui-me à água que nem capincho! Debaixo da barranca havia um fundão onde mergulhei umas quantas vezes; e sempre puxei umas braçadas, poucas, porque não tinha cancha para um bom nado. E solito e no silêncio, tornei a vestir-me, encilhei o zaino e montei. Daquela vereda andei como três léguas, chegando à estância cedo ainda, obra assim de braça e meia de sol. 204 – Ah!…esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorrinho brasino, um cusco mui esperto e boa vigia. Era das crianças, mas às vezes dava-lhe para acompanhar-me, e depois de sair da porteira, nem por nada fazia cara-volta, a não ser comigo. E nas viagens dormia sempre ao meu lado, sobre a ponta da carona, na cabeceira dos arreios. Por sinal que uma noite... Mas isto é outra cousa; vamos ao caso. Durante a troteada bem reparei que volta e meia o cusco parava-se na estrada e latia e corria pra trás, e olhava-me, olhava-me, e latia de novo e troteava um pouco sobre o rastro; – parecia que o bichinho estava me chamando!... Mas como eu ia, ele tornava a alcançar-me, para daí a pouco recomeçar. – Pois, amigo! Não lhe conto nada! Quando botei o pé em terra na ramada da estância, ao tempo que dava as – boas-tardes! – ao dono da casa, aguentei um tirão seco no coração... não senti na cintura o peso da guaiaca! Tinha perdido trezentas onças de ouro que levava, para pagamento de gados que ia levantar. E logo passou-me pelos olhos um clarão de cegar, depois uns coriscos tirante a roxo... depois tudo me ficou cinzento, para escuro... Eu era mui pobre – e ainda hoje, é como vancê sabe... ; estava começando a vida, e o dinheiro era do meu patrão, um charqueador, sujeito de contas mui limpas e brabo como uma manga de pedras... Assim, de meio assombrado me fui repondo quando ouvi que indagavam: – Então, patrício? está doente? – Obrigado! Não senhor, respondi, não é doença; é que sucedeu-me uma desgraça: perdi uma dinheirama do meu patrão... – A la fresca!... – É verdade... antes morresse, que isto! Que vai ele pensar agora de mim!... – É uma dos diabos, é...; mas não se acoquine, homem! Nisto o cusco brasino deu uns pulos ao focinho do cavalo, como querendo lambê-lo, e logo correu para a estrada, aos latidos. E olhava-me, e vinha e ia, e tornava a latir... Ah!... E num repente lembrei-me bem de tudo. Parecia que estava vendo o lugar da sesteada, o banho, a arrumação das roupas nuns galhos de sarandi, e, em cima de uma pedra, a guaiaca e por cima dela o cinto das armas, e até uma ponta de cigarro de que tirei uma última tragada, antes de entrar na água, e que 205 deixei espetada num espinho, ainda fumegando, soltando uma fitinha de fumaça azul, que subia, fininha e direita, no ar sem vento...; tudo, vi tudo. Estava lá, na beirada do passo, a guaiaca. E o remédio era um só: tocar a meia rédea, antes que outros andantes passassem. Num vu estava a cavalo; e mal isto, o cachorrinho pegou a retouçar, numa alegria, ganindo – Deus me perdoe! – que até parecia fala! E dei de rédea, dobrando o cotovelo do cercado. Ali logo frenteei com uma comitiva de tropeiros, com grande cavalhada por diante, e que por certo vinha tomar pouso na estância. Na cruzada nos tocamos todos na aba do sombreiro; uns quantos vinham de balandrau enfiado. Sempre me deu uma coraçonada para fazer umas perguntas... mas engoli a língua. Amaguei o corpo e penicando de esporas, toquei a galope largo. O cachorrinho ia ganiçando, ao lado, na sombra do cavalo, já mui comprida. A estrada estendia-se deserta; à esquerda os campos desdobravam-se a perder de vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol morrente, manchados de pontas de gado que iam se arrolhando nos paradouros da noite; à direita, o sol, muito baixo, vermelho-dourado, entrando em massa de nuvens de beiradas luminosas. Nos atoleiros, secos, nem um quero-quero; uma que outra perdiz, sorrateira, piava de manso por entre os pastos maduros; e longe, entre o resto da luz que fugia de um lado e a noite que vinha, peneirada, do outro, alvejava a brancura de um joão-grande, voando, sereno, quase sem mover as asas, como numa despedida triste, em que a gente também não sacode os braços... Foi caindo uma aragem fresca; e um silêncio grande, em tudo. O zaino era um pingaço de lei; e o cachorrinho, agora sossegado, meio de banda, de língua de fora e de rabo em pé, troteava miúdo e ligeiro dentro da polvadeira rasteira que as patas do flete levantavam. E entrou o sol; ficou nas alturas um clarão afogueado, como de incêndio num pajonal; depois o lusco-fusco; depois, cerrou a noite escura; depois, no céu, só estrelas... só estrelas... O zaino atirava o freio e gemia no compasso do galope, comendo caminho. Bem por cima da minha cabeça as Três-Marias tão bonitas, tão vivas, tão alinhadas, pareciam me acompanhar... lembrei-me dos meus filhinhos, que as estavam vendo, talvez; lembrei-me da minha mãe, de meu pai, que também as viram, quando eram crianças e que já as conheceram pelo seu nome de Marias, as Três-Marias. – Amigo! Vancê é moço, passa a sua vida rindo...; Deus o conserve!… sem saber nunca como é pesada a tristeza dos campos quando o coração pena!... 206 – Há que tempos eu não chorava!... Pois me vieram lágrimas..., devagarinho, como gateando, subiram... tremiam sobre as pestanas, luziam um tempinho... e ainda quentes, no arranco do galope lá caíam elas na polvadeira da estrada, como um pingo d’água perdido, que nem mosca nem formiga daria com ele!... Por entre as minhas lágrimas, como um sol cortando um chuvisqueiro, passou-me na lembrança a toada dum verso lá dos meus pagos: Quem canta refresca a alma, Cantar adoça o sofrer; Quem canta zomba da morte: Cantar ajuda a viver!... Mas que cantar, podia eu!... O zaino respirou forte e sentou, trocando a orelha, farejando no escuro: o bagual tinha reconhecido o lugar, estava no passo. Senti o cachorrinho respirando, como assoleado. Apeei-me. Não bulia uma folha; o silêncio, nas sombras do arvoredo, metia respeito... que medo, não, que não entra em peito de gaúcho. Embaixo, o rumor da água pipocando sobre o pedregulho; vaga-lumes retouçando no escuro. Desci, dei com o lugar onde havia estado; tenteei os galhos do sarandi; achei a pedra onde tinha posto a guaiaca e as armas; corri as mãos por todos os lados, mais pra lá, mais pra cá...; nada!... nada!... Então, senti frio dentro da alma… o meu patrão ia dizer que eu o havia roubado!... roubado!... Pois então eu ia lá perder as onças!... Qual! Ladrão, ladrão, é que era!... E logo uma tenção ruim entrou-me nos miolos: eu devia matar-me, para não sofrer a vergonha daquela suposição. É; era o que eu devia fazer: matar-me... e já, aqui mesmo! Tirei a pistola do cinto; amartilhei o gatilho... benzi-me, e encostei no ouvido o cano, grosso e frio, carregado de bala... – Ah! patrício! Deus existe!... No refilão daquele tormento, olhei para diante e vi... as Três-Marias luzindo na água... o cusco encarapitado na pedra, ao meu lado, estava me lambendo a mão... e logo, logo, o zaino relinchou lá em cima, na barranca do riacho, ao mesmíssimo tempo que a cantoria alegre de um grilo retinia ali perto, num oco de pau!... – Patrício! não me avexo duma heresia; mas era Deus que estava no luzimento daquelas estrelas, era ele que mandava aqueles bichos brutos arredarem de mim a má tenção... 207 O cachorrinho tão fiel lembrou-me a amizade da minha gente; o meu cavalo lembrou-me a liberdade, o trabalho, e aquele grilo cantador trouxe a esperança... Eh-pucha! patrício, eu sou mui rude... a gente vê caras, não vê corações...; pois o meu, dentro do peito, naquela hora, estava como um espinilho ao sol, num descampado, no pino do meio-dia: era luz de Deus por todos os lados!... E já todo no meu sossego de homem, meti a pistola no cinto. Fechei um baio, bati o isqueiro e comecei a pitar. E fui pensando. Tinha, por minha culpa, exclusivamente por minha culpa, tinha perdido as trezentas onças, uma fortuna para mim. Não sabia como explicar o sucedido comigo, acostumado a bem cuidar das cousas. Agora... era vender o campito, a ponta de gado manso – tirando umas leiteiras para as crianças e a junta dos jaguanés lavradores – vender a tropilha dos colorados… e pronto! Isso havia de chegar, folgado; e caso mermasse a conta... enfim, havia de se ver o jeito a dar... Porém matar-se um homem, assim no mais... e chefe de família... isso, não! E d’espacito vim subindo a barranca; assim que me sentiu, o zaino escarceou, mastigando o freio. Desmaneei-o, apresilhei o cabresto; o pingo agarrou a volta e eu montei, aliviado. O cusco escaramuçou, contente; a trote e galope voltei para a estância. Ao dobrar a esquina do cercado enxerguei luz na casa; a cachorrada saiu logo, acuando. O zaino relinchou alegremente, sentindo os companheiros; do potreiro outros relinchos vieram. Apeei-me no galpão, arrumei as garras e soltei o pingo, que se reboleou, com ganas. Então fui para dentro: na porta dei o “Louvado seja Jesu-Cristo; boa-noite! e entrei, e comigo, rente, o cusco. Na sala do estancieiro havia uns quantos paisanos; era a comitiva que chegava quando eu saía; corria o amargo. Em cima da mesa, a chaleira, e ao lado dela, enroscada, como uma jararaca na ressolana, estava a minha guaiaca, barriguda, por certo com as trezentas onças, dentro. – Louvado seja Jesu-Cristo, patrício! Boa-noite! Entonces, que tal le foi de susto?... E houve uma risada grande de gente boa. Eu também fiquei-me rindo, olhando para a guaiaca e para o guaipeva, arrolhadito aos meus pés... 208 Comentários ao conto Trezentas onças À narrativa se antepõe um travessão. Esse travessão, que a rigor poderia ser dispensado, está aí anunciando a fala do personagem. Como já sabemos, trata-se de narrador-personagem. Blau fala. A onipresença de Blau nos contos e nas lendas lhe dá condição de fala única e de testemunha das ações e reflexões contidas nos relatos. Ao longo dos episódios que vai narrando, vai sendo construída a figura do gaúcho. O universo cósmico que habita está exposto nas referências ao ambiente físico, aos animais e ao imaginário. Por meio de recurso impressionista, o narrador, nos cinco parágrafos em que descreve o anoitecer, enquanto Blau volta em busca do dinheiro extraviado, o que ocorre no exterior ocorre de modo análogo no interior do narradorpersonagem. Esse recurso marca a interação ou quase-unicidade cósmica entre o ser humano e seu ambiente. Podem-se destacar ainda recursos estilísticosugestivos, como o polissíndeto habilmente elaborado no parágrafo a seguir transcrito: “Durante a troteada bem reparei que volta e meia o cusco parava-se na estrada e latia e corria pra trás, e olhava-me, olhava-me, e latia de novo e troteava um pouco sobre o rastro; – parecia que o bichinho estava me chamando!... Mas como eu ia, ele tornava a alcançar-me, para daí a pouco recomeçar”. A palavra patrício, cuidadosamente escolhida, reforça a condição da unificação da pátria, após a Revolução Farroupilha. A palavra gaúcho só aparece mais adiante, quando já a escala de valores da figura está parcialmente montada. Essa deve ser, aliás, a razão principal da presença do adjetivo gauchescos no título. A palavra gaúcho manteve durante algum tempo adjacências semânticas pejorativas. Os gaúchos, mestiços autótones, foram tidos pelos proprietários de origem portuguesa e espanhola como ladrões. Assim foram considerados, porque viviam do gado bovino e utilizavam os eqüinos, que não tinham dono e que viviam livremente nos campos. Os que detinham títulos de propriedade precisavam também de mão-de-obra. Os gaúchos eram cavaleiros desinteressados, porque, como seus ascendentes ameríndios, não tinham noção de propriedade particular, como a conhecemos, nem conheciam a moeda. Por esse motivo, constituíam mão-de-obra ideal. Eram tidos também como vagabundos, porque determinavam sua sobrevivência de acordo com a disponibilidade que a natureza oferecia. A apropriação da força de trabalho deles, portanto, se justificava por ambas razões, de acordo com o caraterístico eurocentralismo branco. Devem ter sido essas, pelo menos, duas razões de o título não estampar o adjetivo gaúchos, mas gauchescos, porque, a rigor, podem-se citar outras. O conto parece destacar alguns valores constitutivos da figura do gaúcho. Entre eles, aparecem a honestidade, a gentileza, a coragem. 209 Imagem disponibilizada na internete em A salamanca do Jarau. (Sem informação de autoria no saite.) A salamanca do Jarau I Era um dia... um dia, um gaúcho pobre, Blau, de nome, guasca de bom porte, mas que só tinha de seu um cavalo gordo, o facão afiado e as estradas reais, estava conchavado de posteiro, ali na entrada do rincão; e nesse dia andava campeando um boi barroso. E no tranquito andava, olhando; olhando para o fundo das sangas, para o alto das coxilhas, ao comprido das canhadas; talvez deitado estivesse entre as carquejas – a carqueja é sinal de campo bom –, por isso o campeiro às vezes alçava-se nos estribos e, de mão em pala sobre os olhos, firmava mais a vista em torno; mas o boi barroso, crioulo daquela querência, não aparecia; e Blau ia campeando, campeando... Campeando e cantando: Meu bonito boi barroso, Que eu já contava perdido, Deixando o rastro na areia, Foi logo reconhecido. Montei no cavalo escuro E trabalhei logo de espora; E gritei – aperta, gente, Que o meu boi se vai embora! No cruzar uma picada, Meu cavalo relinchou. Dei de rédea para a esquerda, E o meu boi me atropelou! Nos tentos levava um laço De vinte e cinco rodilhas, Pra laçar o boi barroso 210 Lá no alto das coxilhas! Mas no mato carrasquento Onde o boi 'stava embretado, Não quis usar o meu laço, Pra não vê-lo retalhado. E mandei fazer um laço Da casca do jacaré, Pra laçar meu boi barroso Num redomão pangaré. E mandei fazer um laço Do couro da jacutinga, Pra laçar meu boi barroso Lá no passo da restinga. E mandei fazer um laço Do couro de capivara Pra laçar meu boi barroso Nem que fosse à meia-cara. Este era um laço de sorte, Pois quebrou do boi a balda... ................................................ ................................................ No tranquito ia, cantando, e pensando na sua pobreza, no atraso das suas cousas. No atraso das suas cousas, desde o dia em que topou – cara a cara! – com o Caipora num campestre da serra grande, pra lá, muito longe, no Botucaraí... A lua ia recém-saindo...; e foi à boquinha da noite... Hora de agouro, pois então! Gaúcho valente que era dantes, ainda era valente, agora; mas, quando cruzava o facão com qualquer paisano, o ferro da sua mão ia mermando e o do contrário o lanhava... Domador destorcido e parador, que por só pabulagem gostava de paletear, ainda era domador, agora; mas, quando gineteava mais folheiro, às vezes, num redepente, era volteado... De mão feliz para plantar, que lhe não chochava semente, nem muda de raiz se perdia, ainda era plantador, agora; mas, quando a semeadura ia apontando da terra, dava a praga em toda, tanta, que benzedura não vencia...; e o arvoredo do seu plantio crescia entecado e mal floria, e quando dava fruta, era mixe e era azeda... 211 E assim, por esse teor, as cousas corriam-lhe mal; e pensando nelas o gaúcho pobre, Blau, de nome, ia, ao tranquito, campeando, sem topar co'o boi barroso. De repente, na volta duma reboleira, bem na beirada dum boqueirão sofrenou o tostado...: ali em frente, quieto e manso, estava um vulto, de face tristonha e mui branca. Aquele vulto de face branca... aquela face tristonha!... Já ouvira falar dele, sim, não uma nem duas, mas muitas vezes...; e de homens que o procuravam, de todas as pintas, vindos de longe, num propósito, para endrôminas de encantamentos..., conversas que se falavam baixinho, como num medo; pro caso, os que podiam contar não contavam, porque uns, desandavam apatetados e vagavam por aí, sem dizer cousa com cousa, e outros calavam-se muito bem calados, talvez por juramento dado... Aquele vulto era o santão da salamanca do cerro. Blau Nunes sofrenou o cavalo. Correu-lhe um arrepio no corpo, mas era tarde para recuar: um homem é para outro homem!... E como era ele quem chegava, ele é que tinha de louvar; saudou: – Laus Sus-Cris!... – Para sempre, amém! – disse o outro, e logo ajuntou: – O boi barroso vai trepando cerro acima, vai trepando... Ele anda cumprindo o seu fadário... Blau Nunes pasmou do adivinho; mas repostou: – Vou no rastro!... – Está enredado... – Sou tapejara, sei tudo, palmo a palmo, até à boca preta da furna do cerro... – Tu, tu, paisano, sabes a entrada da salamanca?... – É lá?... Então, sei, sei! A salamanca do cerro do Jarau!... Desde a minha avó charrua, que ouvi falar!... – O que contava a tua avó? – A mãe da minha mãe dizia assim: II – Na terra dos espanhóis, do outro lado do mar, havia uma cidade chamada Salamanca, onde viveram os mouros, os mouros que eram mestres nas artes de magia; e era numa furna escura que eles guardavam o condão mágico, por causa da luz branca do sol, que diz que desmancha a força da bruxaria... O condão estava no regaço duma fada velha, que era uma princesa moça, encantada, e bonita, bonita como só ela!... 212 Num mês de quaresma, os mouros escarneceram muito do jejum dos batizados, e logo perderam uma batalha muito pelejada; e vencidos foram obrigados a ajoelharem-se ao pé da Cruz Bendita... e a baterem nos peitos, pedindo perdão... Então, depois, alguns, fingidos de cristãos, passaram o mar e vieram dar nestas terras sossegadas, procurando riquezas, ouro, prata, pedras finas, gomas cheirosas... riquezas para levantar de novo o seu poder e alçar de novo a MeiaLua sobre a Estrela de Belém... E para segurança das suas tranças trouxeram escondida a fada velha, que era a sua formosa princesa moça. E devia ter mesmo muita força o condão, porque nem os navios se afundaram, nem os frades de bordo desconfiaram, nem os próprios santos que vinham, não sentiram... Nem admira, porque o condão das mouras encantadas sempre aplastou a alma dos frades e não se importa com os santos do altar, porque esses são só imagens... Assim bateram nas praias da gente pampiana os tais mouros e mais outros espanhóis renegados. E como eles eram, todos, de alma condenada, mal puseram pé em terra, logo na meia-noite da primeira sexta-feira foram visitados pelo mesmo Diabo deles, que neste lado do mundo era chamado de Anhangápitã e mui respeitado. Então, mouros e renegados disseram ao que vinham; e Anhangá-pitã folgou muito; folgou, porque a gente nativa daquelas campanhas e a destas serras era gente sem cobiça de riquezas, que só comia a caça, o peixe, a fruta e as raízes que Tupã despejava sem conta, para todos, das suas mãos sempre abertas e fazedoras. Por isso Anhangá-pitã folgou, porque assim minava para o peito dos inocentes as maldades encobertas que aqueles chegados traziam... e pois, escutando o que eles ambicionavam para vencer a Cruz com a força do Crescente, o maldoso pegou do condão mágico – que navegara em navio bento e entre frades rezadores e santos milagrosos –, esfregou-o no suor do seu corpo e virou-o em pedra transparente; e lançando o bafo queimante do seu peito sobre a fada moura, demudou-a em teiniaguá, sem cabeça. E por cabeça encravou então no novo corpo da encantada a pedra, aquela, que era o condão, aquele. E como já era sobre a madrugada, no crescimento da primeira luz do dia, do sol vermelho que ia querendo romper dos confins por sobre o mar, por isso a cabeça de pedra transparente ficou vermelha como brasa e tão brilhante que olhos de gente vivente não podiam parar nela, ficando encandeados, quase cegos! E desfez-se a companhia até o dia da peleja da nova batalha. E chamaram – salamanca – à furna desse encontro; e o nome ficou pras furnas todas, em lembrança da cidade dos mestres mágicos. 213 Levantou-se um ventarrão de tormenta, e Anhangá-pitã, trazendo num bocó a teiniaguá, montou nele, de salto, e veio correndo sobre a correnteza do Uruguai, por léguas e léguas, até as suas nascentes, entre serranias macotas. Depois, desceu, sempre com ela; em sete noites de sexta-feira ensinou-lhe a vaqueanagem de todas as furnas recamadas de tesouros escondidos... escondidos pelos cauílas, perdidos para os medrosos e achadios de valentes... E a mais desses, muitos outros tesouros que a terra esconde e que só os olhos dos zaoris podem vispar... Então Anhangá-pitã, cansado, pegou num cochilo pesado, esperando o cardume das desgraças novas, que deviam pegar pra sempre... Só não tomou tenência que a teiniaguá era mulher... Aqui está tudo o que eu sei, que a minha avó charrua contava à minha mãe, e que ela já ouviu, como cousa velha, contar por outros, que, esses viram! E Blau Nunes bateu o chapéu para o alto da cabeça, deu um safanão no cinto, aprumando o facão... foi parando o gesto e ficou-se olhando, sem mira, para muito longe, para onde a vista não chegava mas onde o sonho acordado que havia nos seus olhos chegava de sobra e ainda passava... ainda passava porque o sonho não tem lindeiros nem tapumes... Falou então o vulto de face branca e tristonha; falou em voz macia. E disse assim: III – É certo: não tomou tenência que a teiniaguá era mulher... Ouve, paisano. No costado da cidade onde eu vivia havia uma lagoa, larga e funda, com uma ilha de palmital, no meio. Havia uma lagoa... A minha cabeça foi banhada na água benta da pia, mas nela entraram soberbos pensamentos maus... O meu peito foi ungido com os santos óleos, mas nele entrou a doçura que tanto amarga, do pecado... A minha boca, provou do sal piedoso... e nela entrou a frescura que requeima, dos beijos da tentadora... Mas, é que assim era o fado... tempo e homem virão para me libertar, quebrando o encantamento que me amarra; duzentos anos hão de findar; eu esperarei, no entanto, vivendo na minha tristeza seca, tristeza de arrependido que não chora... Tudo o que volteia no ar tem seu dia de aquietar-se no chão... Era eu que cuidava dos altares e ajudava a missa dos santos padres da igreja de São Tomé, do lado ao poente do grande rio Uruguai. Sabia bem acender os círios, feitos com a cera virgem das abelheiras da serra; e bem balançar o turíbulo, fazendo ondear a fumaça cheirosa do rito; e bem tocar a 214 santos, na quina do altar, dois degraus abaixo, à direita do padre; e dizia as palavras do missal; e nos dias de festa sabia repicar o sino; e bater as horas e dobrar a finados... eu era o sacristão. Um dia, na hora do mormaço, todo o povo estava nas sombras, sesteando; nem voz grossa de homem, nem cantoria das moças, nem choro de crianças: tudo sesteava. O sol faiscava nos pedregulhos lustrosos, e a luz parecia que tremia, peneirada, no ar parado, sem uma viração. Foi nessa hora que eu saí da igreja, pela portinha da sacristia, levando no corpo a frescura da sombra benta, levando na roupa o cheiro de fumaça piedosa. E saí sem pensar em nada, nem de bem nem de mal; fui andando, como levado... Todo povo sesteava, por isso ninguém viu. A água da lagoa borbulhava toda, numa fervura, ronquejando tal e qual como uma marmita no borralho. Por certo que lá embaixo, dentro da terra, é que estaria o braseiro que levantava aquela fervura que cozinhava os juncos e as traíras e pelava as pernas dos socós e espantava todos os mais bichos barulhentos daquelas águas... Eu vi, vi o milagre de ferver toda aquela lagoa... ferver, sem fogo que se visse! A mão direita, pelo costume, andou para fazer o pelo-sinal... e parou, pesada como chumbo; quis rezar um credo, e a lembrança dele recuou; e voltar, correr e mostrar o Santíssimo... e tanger o sino em dobre... e chamar o padre superior, tudo para esconjurar aquela obra do inferno... e nada fiz... nada fiz, sem força de vontade, nada fiz... nada fiz, sem governo no corpo!... Eu fui andando, como levado, para de mais perto ver, e não perder de ver o espantoso... Porém logo outra força acalmou tudo; apenas a água fumegante continuou retorcendo os lodos remexidos, onde boiava toda uma mortandade dos viventes que morrem sem gritar... Era no fim de um lançante comprido, estrada batida e limpa, de todos os dias as mulheres irem para a lavagem: e quando eu estava na beira da água, vendo o que estava vendo, então rompeu dela um clarão, maior que o da luz a pino do dia, clarão vermelho, como dum sol morrente, e que luzia desde o fundão da lagoa e varava a água barrenta... E veio crescendo para a barranca, e saiu e tomou terra, e sem medo e sem ameaça veio andando para mim a sempre escapada maravilha..., maravilha que os que nunca viram juravam sempre ser – verdade – e que eu, que estava vendo, ainda jurava ser – mentira! Era a teiniaguá, de cabeça de pedra luzente, por sem dúvida; dela já tinha ouvido ao padre superior a história contada dum encontradiço que quase cegou de teimar em agarrá-la. 215 Entrecerrei os olhos, coando a vista, cautelando o perigo; mas a teiniaguá veio-se me chegando, deixando no chão duro rastro d'água que escorria e logo secava, do seu corpinho verde de lagartixa engraçada e buliçosa... Lembrei-me – como quem olha dentro duma cerração –, lembrei-me do que corria na voz da gente sobre o entanguimento que traspassa o nosso corpo na hora do encantamento: é como o azeite fino num couro ressequido... Mas não perdi de todo a retentiva: pois que da água saía, é que na água viveria. Ali perto, entre os capins, vi uma guampa e foi quando agarrei dela e enchi-a na lagoa, ainda escaldando, e frenteei a teiniaguá que, da vereda que levava, entreparou-se, tremente, firmando nas patinhas da frente a cabeça cristalina, como curiosa, faiscando... De olhos apertados, piscando, para me não atordoar dum golpe de cegueira, assentei no chão a guampa e, preparando o bote, num repente, entre susto e coragem, segurei a teiniaguá e meti-a para dentro dela! Neste passo senti o coração como que martelar-me no peito e a cabeça sonando como um sino de catedral... Corri para o meu quarto, na casa-grande dos santos padres. Entrei pelo cemitério, por detrás da igreja e, desatinado, derrubei cruzes, pisoteei ramos, calquei sepultura!... Todo povo sesteava; por isso ninguém viu. Fechei a guampa dentro da canastra e fiquei estatelado, pensando. Pelo falar do padre superior eu bem sabia que quem prendesse a teiniaguá ficava sendo o homem mais rico do mundo; mais rico que o Papa de Roma , e o Imperador Carlos Magno e o rei da Trebizonda e os Cavaleiros da Tábula... Nos livros que eu lia esses todos eram os mais ricos que se conhecia. E eu, agora!... E não pensei mais dentro da minha cabeça, não; era uma cousa nova e esquisita: eu via, com os meus olhos, os pensamentos diante deles, como se fossem cousas que se pudesse tantear com as mãos... E foram se escancarando portas de castelos e palácios, onde eu entrava e saía, subia e descia escadarias largas, chegava às janelas, arredava reposteiros, deitava-me camas grandes, de pés torneados, esbarrava-me em trastes que nunca tinha visto e servia-me em baixelas estranhas, que eu não sabia para o que prestavam... E foram se estendendo e alargando campos sem fim, perdendo o verde no azul das distâncias e ainda lindando com outras estâncias, que também eram minhas, e todas cheias de gadaria, rebanhos e manadas... 216 E logo cancheava erva nos meus ervais, cerrados e altos como mato virgem... E atulhava de planta colhida – milho, feijão, mandioca – os meus paióis. E detrás das minhas camas, em todos os quartos dos meus palácios, amontoava surrões de ouro em pó e pilhotes de barras de prata; dependuradas na galhação de cem cabeças de servos, tinha bolsas de couro e de veludo, atochadas de diamantes, brancos como gotas d'água filtrada em pedra, que meus escravos – saídos mil, chegados dez –, tinham ido catar nas profundas do sertão, muito pra lá de uma cachoeira grande, em meia-lua, chamada de Iguaçu, muito pra lá doutra cachoeira grande, de sete saltos, chamada de Iguaíra... Tudo isso eu media e pesava e contava, até cair de cansaço; e mal que respirava um descanso, de novamente, de novamente pegava a contar, a pesar, a medir... Tudo isso eu podia ter – e tinha, de meu, tinha! – porque era o dono da teiniaguá, que estava presa dentro da guampa, fechada na canastra forrada de couro cru, tauxiada de cobre, dobradiças de bronze!... Aqui ouvi o sino da torre badalando para a oração da meia-tarde... Pela primeira vez não fui eu que; seria um dos padres, na minha falta. Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu. Voltei a mim. Lembrei-me de que o animalzinho precisava alimento. Tranquei portas e janelas e saí para buscar um porongo de mel de lexiguana, por ser o mais fino. E fui; melei; e voltei. Abri sutil a porta e tornei a fechá-la ficando no escuro. E quando descerrei a janela e andei para a canastra a tirar a guampa e libertar a teiniaguá para comer o mel, quando ia fazer isso, os pés se me enraizaram, os sentidos do rosto se ariscaram, e o coração mermou no compassar o sangue!... Bonita, linda, bela, na minha frente estava uma moça!... Que disse: IV – Eu sou a princesa moura encantada, trazida de outras terras por sobre um mar que os meus nunca sulcaram... Vim, e Anhangá-pitã transformou-me em teiniaguá de cabeça luminosa, que outros chamam o – carbúnculo – e temem e desejam, porque eu sou a rosa dos tesouros escondidos dentro da casca do mundo... 217 Muitos têm me procurado com o peito somente cheio de torpeza, e eu lhes hei escapado das mãos ambicioneiras e dos olhos cobiçosos, relampejando desdenhosa o lume vermelho da minha cabeça transparente... Tu não; tu não me procuraste ganoso... e eu subi ao teu encontro; e me bem trataste pondo água na guampa e trazendo mel fino para o meu sustento. Se quiseres, tu, todas as riquezas que eu sei, entrarei de novo na guampa e irás andando e me levarás onde eu te encaminhar, e serás senhor do muito, do mais, do tudo!... A teiniaguá que sabe dos tesouros, sou eu, mas sou também princesa moura... Sou jovem... sou formosa... o meu corpo é rijo e não tocado!... E estava escrito que tu serias o meu par. Serás o meu par... se a cruz do teu rosário me não esconjurar... Se não, serás ligado ao meu flanco, para, quando quebrado o encantamento, do sangue de nós ambos nascer uma nova gente, guapa e sábia, que nunca mais será vencida, porque terá todas as riquezas que eu sei e as que tu lhe carrearás por via dessas!... Se a cruz do teu rosário não me esconjurar... Sobre a cabeça da moura amarelejava nesse instante o crescente dos infiéis... E foi se adelgaçando no silêncio a cadência embalante da fala induzidora... A cruz do meu rosário... Fui passando as contas, apressado e atrevido, começando na primeira... e quando tenteei a última... e que entre as duas os meus dedos, formigando, deram com a Cruz do Salvador... fui levantando o Crucificado... bem em frente da bruxa, em salvatério... na altura do seu coração... na altura de sua garganta... da sua boca... na altura dos... E aí parou, porque olhos de amor, tão soberanos e cativos, em mil vidas de homem outros se não viram!... Parou... e a minha alma de cristão foi saindo de mim, como o sumo se aparta do bagaço, como o aroma sai da flor que vai apodrecendo... Cada noite era meu ninho o regaço da moura; mas, quando batia a alva, ela desaparecia ante a minha face cavada de olheiras... E crivado de pecados mortais, no adjutório da missa trocava os améns, e todo me estorcegava e doía quando o padre lançava a bênção sobre a gente ajoelhada, que rezava para alívio dos seus pobres pecados, que nem pecados eram, comparados com os meus... Uma noite ela quis misturar o mel do seu sustento com o vinho do santo sacrifício; e eu fui, busquei no altar o copo de ouro consagrado, todo lavorado de palmas e resplendores: e trouxe-o, transbordante, transbordando... De boca para boca, por lábios incendiados a passamos... E embebedados caímos, abraçados. Sol nado, despertei; estava cercado pelos santos padres. 218 Eu, descomposto; no chão, o copo, entornado; sobre o oratório, desdobrada, uma charpa de seda lavrada de bordaduras exóticas, onde sobressaía uma meia-lua prendendo entre as aspas uma estrela... E acharam na canastra a guampa e no porongo o mel... e até no ar farejaram cheiro mulherengo... Nem tanto era preciso para ser logo jungido em manilhas de ferro. Afrontei o arrocho da tortura, entre ossos e carnes amachucadas e unhas e cabelos repuxados. Dentro das paredes do segredo não havia gritos nem palavras grossas: os padres remordiam a minha alma, prometendo o inferno eterno e espremiam o meu arquejo decifrando uma confissão..., mas a minha boca não falou... não falou por senha firme de vontade, que não me palpitava confessar quem era ela e que era linda... E raivado entre dois amargos desesperos não atinava sair deles: se das riquezas, que eu queria só pra mim, se do seu amor, que eu não queria que fosse senão meu, inteiro e todo! Mas por senha da vontade a boca não falou. Fui sentenciado a morrer pela morte do garrote, que é infame; condenado fui por ter dado passo errado com bicho imundo, que era bicho e mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira. No adro e no largo da igreja, o povo ajoelhado batia nos peitos, clamando a morte do meu corpo e a misericórdia para a minha alma. O sino começou dobrando a finados. Trouxeram-me em braços, entre alabardas e lanças, e um cortejo moveu-se compassando a gente d'armas, os santos padres, o carrasco e o povaréu. Dobrando a finados... dobrando a finados... Era por mim. V E quando, sem mais esperança nos homens nem no socorro do céu, chorei uma lágrima de adeus à teiniaguá encantada, dentro do meu sofrer floreteou uma réstia de saudade do seu cativo e soberano amor..., como em rocha dura serpenteia às vezes um fio de ouro alastrado e firme, como uma raiz que não quer morrer!... E aquela saudade parece que saiu para fora do meu peito, subiu aos olhos feita em lágrimas e ponteou para algum rumo, ao encontro doutra saudade rastreada sem engano...; parece, porque nesse momento um ventarrão estourou sobre as águas da lagoa, e a terra tremeu, sacudida, tanto, de as árvores desprenderem os seus frutos, de os animais estaquearem-se, medrosos, e dos homens caírem de coc’ras, aguentando as armas, outros, de bruços, tateando o chão... E nas correntezas sem corpo, da ventania, redemoinhavam em chusma vozes guaranis, esbravejando se soltasse o padecente... Para trás do cortejo, desfiando o som entre as poeiras grossas e folhas secas levantadas, continuava o sino dobrando a finados... dobrando a finados!... 219 Os santos padres, pasmados mas sisudos, rezavam encomendando a minha alma; em roda, boquejando, chinas, piás, índios velhos, soldados de couraça e lança, e o alcaide, vestido de samarra amarela com dois leões vermelhos e a coroa d'el-rei brilhando em canutilho de ouro... A lágrima do adeus ficou suspensa, como uma cortina que embacia o claro ver: e o palmital da lagoa, o boleado das coxilhas, o recorte da serra, tudo isso, que era grande e sozinho, cada um enchia e sobrava para os olhos limpos dum homem, tudo isso eu enxergava junto, empastalhado e pouco, espelhando-se na lágrima suspensa, que se encrespava e adelgaçava, fazendo franjas entre as pestanas balançantes dos meus olhos de condenado sem perdão. A menos de braça, estava o carrasco atento no garrote! Mas os olhos do meu pensamento, altanados e livres, esses, esses viam o corpo bonito, lindo, belo, da princesa moura, e recreavam-se na luz cegante da cabeça encantada da teiniaguá, onde reinavam os olhos dela, olhos de amor, tão soberanos e cativos como em mil vidas de homem outros se não viram!... E por certo por essa força que nos ligava sem ser vista, como naquele dia em que o povo sesteava e também nada viu... por força dessa força, quanto mais os padres e alguazis ordenavam que eu morresse, mais pelo meu livramento forcejava o irado peito da encantada, não sei se de amor perdida pelo homem, se de orgulho perverso do perjuro, se da esperança de um dia ser humana... O fogo dos borralhos foi-se alteando em labaredas e saindo pela quincha dos ranchos, sem queimá-los..., as crianças de peito soltaram palavras feitas, como gente grande... e bandadas de urubus apareceram e começaram a contradançar tão baixo, que se lhes ouvia o esfregar das penas contra o vento..., a contradançar, afiados para uma carniça que ainda não havia, porém que havia de haver... Mas os santos padres alinharam-se na sombra do Santíssimo e borrifaram de água benta o povo amedrontado; e seguiram, como num propósito, encomendando a minha alma; o alcaide levantou o pendão real, e o carrasco varejou-me sobre o garrote, infâmia de minha morte, por ter tido amores com mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira. Rolou, então, sobre o vento e nele foi a lágrima do adeus, que a saudade destilara. Deu logo a lagoa um ronco bruto, nunca ouvido, tão dilatado e monstruoso...: e rasgou-se cerce em um sangão medonho, entre largo e fundo... e lá no abismo, na caixa por onde ia já correndo, em borbotão, a água lamenta sujando as barrancas novas, lá, eu vi e todos viram a teiniaguá de cabeça de pedra transparente, fogachando luminosa como nunca, a teiniaguá correr, estrombando os barrocais, até rasgar, até romper, arruir a boca do sangão na alta barranca do Uruguai, onde a correnteza em marcha despencou-se, espadanando em espumarada escura, como cauda de chuvas tormentosas!... 220 A gente levantou pro céu um vozear de lástimas e choros e gemidos. – Que a Missão de São Tomé ia perecer... e desabar a igreja... a terra expulsar os mortos do cemitério... que as crianças inocentes iam perder a graça do batismo... e as mães secar o leite... e as roças, o plantio, os homens, a coragem... Depois um grande silêncio balançou no ar, como esperando... Mas um milagre se fez: o Santíssimo, de si próprio, perpassou a altura das cousas e, lá em cima, cortou no ar turvado a Cruz Bendita!... O padre superior tremeu como em terçã e tartamudo e trôpego marchou para o povoado; os acólitos seguiram, e o alcaide, os soldados, o carrasco e a indiada toda desandou, como em procissão emparvados, num assombro, e sem ter mais do que tremer, porque ventos, fogo, urubus e estrondos se humilharam, fenecendo, dominados!... Fiquei sozinho, abandonado, e no mesmo lugar e mesmos ferros posto. Fiquei sozinho, ouvindo com os ouvidos da minha cabeça as ladainhas que iam minguando, em retirada... mas também ouvindo com os ouvidos do pensamento o chamado carinhoso da teiniaguá; os olhos do meu rosto viam a consolação da graça de Maria Puríssima que se alonjava... mas os olhos do pensamento viam a tentação do riso mimoso de teiniaguá; o nariz do meu rosto tomava o faro do incenso que fugia, ardendo e perfumando as santidades... mas o faro do pensamento sorvia a essência das flores do mel fino de que a teiniaguá tanto gostava; a língua da minha boca estava seca, de agonia, dura, de terror, amarga, de doença... mas a língua do pensamento saboreava os beijos de teiniaguá, doces e macios, frescos e sumarentos como polpa de guabiju colhido ao nascer do sol; o tato das minhas mãos tocava manilhas de ferro, que me prendiam por braços e pernas... mas o tato do pensamento roçava sôfrego pelo corpo da encantada, torneado e rijo, que se encolhia em ânsias, arrepiado com um lombo de jaguar no cio, que se estendia planchado como um corpo de cascavel em fúria... E tanto como o povo ia entrando na cidade, ia eu chegando à barranca do Uruguai; tanto como as gentes, lá, iam acabando as orações para alcançar a clemência divina, ia eu começando o meu fadário, todo dado à teiniaguá, que me enfeitiçou de amor, pelo seu amor de princesa moura, pelo seu amor de mulher, que vale mais que destino de homem!... Sem peso de dores nos ossos e nas carnes, sem peso de ferros no corpo, sem peso de remorsos na alma, passei o rio pelo lado do nascente. A teiniaguá fechou os tesouros da outra banda, e juntos fizemos então caminho para o cerro do Jarau, que ficou sendo o paiol das riquezas de todas as salamancas dos outros lugares. Para a memória do dia tão espantoso, lá ficou o sangão rasgado na baixada da cidade de Santo Tomé, desde o tempo antigo das Missões. 221 VI Faz duzentos anos que aqui estou: aprendi sabedorias árabes e tenho tornado contentes alguns raros homens que bem sabem que a alma é um peso entre o mandar e o ser mandado... Nunca mais dormi; nunca mais nem fome, nem sede, nem dor, nem riso... Passeio no palácio maravilhoso, dentro deste cerro do Jarau, ando sem parar e sem cansaço; piso com pés vagarosos, piso torrões de ouro em pó, que se desfazem como terra fofa; o areão dos jardins, que calco, enjoado, é todo feito de pedras verdes e amarelas e escarlates, azuis, rosadas, violetas... e quando a encantada passa todas incendeiam-se num íris de cores rebrilhantes, como se cada uma fosse uma brasa viva faiscando sem a mais leve cinza...; há poços largos que estão atulhados de dobrões e de onças e peças de joias e armaduras, tudo ouro maciço do Peru e do México e das Minas Gerais, tudo cunhado com os troféus dos senhores reis de Portugal e de Castela e Aragão. E eu olho para tudo, enfarado de ter tanto e de não poder gozar nada entre os homens, como quando era como eles e como eles gemia necessidades e cuspia invejas, tendo horas de bom coração por dia de maldades e sempre aborrecimento do que possuía, ambicionando o que não possuía... O encantamento que me aprisiona consente que eu acompanhe os homens de alma forte e coração sereno que quiserem contratar a sorte nesta salamanca que eu tornei famosa, do Jarau. Muitos têm vindo... e têm saído piorados, para lá longe irem morrer do medo aqui pegado, ou andarem pelos povoados assustando as gentes, loucos, ou pelos campos fazendo vida com os bichos brutos... Poucos toparam a parada... ah!... mas esses que toparam tiveram o que pediram, que a rosa dos tesouros, a moura encantada, não desmente o que eu prometo, nem retoma o que dá! E todos os que chegam deixam um resgate de si próprios para o nosso livramento um dia... Mas todos que vieram são altaneiros e vieram arrastados pela ânsia da cobiça ou dos vícios ou dos ódios: tu foste o único que veio sem pensar e o único que me saudou como filho de Deus... Foste o primeiro até agora; quando terceira saudação de cristão bafejar estas alturas, o encantamento cessará, porque eu estou arrependido... e, como Pedro Apóstolo que três vezes negou Cristo foi perdoado, eu estou arrependido e serei perdoado. Está escrito que a salvação há de vir assim; e por bem de mim, quando cessar o meu cessará também o encantamento de teiniaguá: e quando isso se der a salamanca desaparecerá, e todas as riquezas, todas as pedras finas, todas as peças cunhadas, todos os sortilégios, todos os filtros para amar por força... 222 para matar... para vencer... tudo, tudo, tudo se virará uma fumaça que há de sair pelo cabeço roto do cerro, espalhada nas rosas do ventos pela rosa dos tesouros... Tu me saudaste – o primeiro, tu! – saudaste-me como cristão. Pois bem: alma forte e coração sereno!... quem isso tem entra na salamanca, toca o condão mágico e escolhe do quanto quer... Alma forte e coração sereno! A furna escura está lá: entra! Entra! Lá dentro sopra um vento quente que apaga qualquer torcida de candeia... e tramado nele corre outro vento frio, frio... que corta como serrilha de geada. Não há ninguém lá dentro... mas bem que se escuta voz de gente, vozes que falam... falam, mas não se entende o que dizem, porque são línguas atoradas que falam, são os escravos da princesa moura, os espíritos da teiniaguá... Não há ninguém... não se vê ninguém: mas há mãos que batem, como convidando, no ombro do que entra firme, e que empurram, como ainda ameaçando, o que recua com medo... Alma forte e coração sereno! Se entrares assim, se te portares lá dentro assim, podes então querer e serás servido! Mas, governa o pensamento e segura a língua: o pensamento dos homens é que os levanta acima do mundo, e a sua língua é que os amesquinha... Alma forte, coração sereno!... Vai! Blau, o guasca, apeou-se; maneou o flete e por de seguro ainda pelo cabresto prendeu-o a um galho de cambuim que verga sem quebrar-se; rodou as esporas para o peito do pé; aprumou de bom jeito o facão; santiguou-se e seguiu... Calado fez; calado entrou. O sacristão levantou-se, e o seu corpo desfez-se em sombra na sombra da reboleira. O silêncio que então se desdobrou era como o voo parado das corujas: metia medo... VII Blau Nunes foi andando. Entrou na boca da toca apenas aí clareada e isso pouco, por causa da enrediça da ramaria que se cruzava nela; pra o fundo era tudo escuro... Andou mais, num corredor dumas braças; mais, ainda; sete corredores nasciam desse. Blau Nunes foi andando. Enveredou por um deles; fez voltas e contravoltas, subiu, desceu. Sempre escuro. Sempre silêncio. 223 Mãos de gente, sem gente que ele visse, batiam-lhe no ombro. Numa cruzada de carreiros sentiu ruído de ferros que se chocavam, tinir de muitas espadas, seu conhecido. Por então o escuro ia já mudado num luzir de vaga-lume. Grupos de sombras com feitio de homens peleavam de morte; nem pragas nem fuzilar d'olhos raivosos, porém furiosos eram os golpes que elas iam talhando umas nas outras, no silêncio. Blau teve um relance de parada, mas atentou logo no dizer do vulto de face branca e tristonha – Alma forte coração sereno... E meteu o peito por entre o espinheiro das espadas, sentiu o corte delas, o fino das pontas, o redondo dos copos... mas passou, sem nem olhar aos lados, num entono, escutando porém choros e gemidos dos peleadores. Mãos mais leves bateram-lhe no ombro, como carinhosas e satisfeitas. Outro mais ruído nenhum ouvia ele no ar quieto da furna que o rangido dos cabrestilhos das suas esporas. Blau Nunes foi andando. Andando numa luz macia, que não dava sombra. Enredada como os caminhos dum cupim era a furna, dando corredores sem conta, a todos os rumos; e ao desembocar do em que vinha, justo num cotovelo dele, saltaram-lhe aos quatro lados jaguares e pumas, de goela aberta e bafo quente, patas levantadas mostrando as unhas, a cola mosqueando, numa fúria... E ele meteu o peito e passou, sentindo as cerdas duras das feras roçaremlhe o corpo; passou sem pressa nem vagar, escutando os urros que para trás iam ficando e morrendo sem eco... As mãos, de braços que ele não via, em corpos que não sentia, mas que, certo, o ladeavam, as mãos iam-lhe sempre afagando os ombros, sem bem o empurrar, mas atirando-o para adiante... adiante... A luz ia na mesma, cor da de vaga-lume, esverdeada e amarela... Blau Nunes foi andando. Agora era um lançante e ao fim dele parou num redondel topetado de ossamentas de criaturas. Esqueletos, de pé, encostados uns nos outros, muitos derreados, como numa preguiça: pelo chão caídas, partes deles, despencadas; caveiras soltas, dentes branqueando, tampos de cabeças, buracos de olhos; pernas e pés em passo de dança, alcatras e costelas meneando-se num vagar compassado, outras em saracoteio... Aí o seu braço direito quase moveu-se acima, como para fazer o sinal da cruz...; porém ruído – alma forte, coração sereno! – meteu o peito e passou entre as ossadas, sentindo o bafio que elas soltavam das suas juntas bolorentas. As mãos, aquelas, sempre brandas, afagavam-lhe outra vez os ombros... Blau Nunes foi andando. O chão ia alteando-se, numa trepada forte que ele venceu sem aumentar a respiração; e num desvão, a modo dum forno, teve de passar por uma como a 224 porta dele, e aí dentro era um jogo de línguas de fogo, vermelho e forte, como atiçado com a lenha de nhanduvai; e repuxos d'água, saídos das paredes, batiam nele e referviam, chiando, fazendo vapor; um ventarrão rondava ali dentro, enovelando águas e fogos, que era uma temeridade cortar aquele turbilhão... Outra vez ele meteu o peito e passou, sentindo o mormaço das labaredas. As mãos do ar mais o palmeavam nos ombros, como querendo dizer – muito bem! Blau Nunes foi andando. Já tinha perdido a conta do tempo e do rumo que trazia; sentia no silêncio como que um peso de arrobas; a claridade mortiça, porém, já se lhe assentara nos olhos e tanto, que viu adiante, em sua frente e caminho, um corpo enroscado, sarapintado e grosso, batendo no chão uns chocalhos, grandes como ovos de téu-téu. Era a boicininga, guarda desta passagem, que levantava a cabeça flechosa, lanceando o ar com a língua de cabelos, preta, firmando no vivente a escama dos olhos, luzindo, preto, como botões de veludo... Das duas presas recurvas, grandes como as aspas dum tourito de sobreano, pingava uma goma escura, que era a peçonha sobrante por um muito jejum de mortandade, lá fora... A boicininga – a cascavel amaldiçoada – toda se meneava, chocalhando os guizos, como por aviso, fueirando o ar com a língua, como por prova... Uma serenada de suor minou na testa do paisano... porém ele meteu o peito e passou, vendo, sem olhar, a boicininga altear-se e descair, chata e tremente... e passou, ouvindo o chocalho da que não perdoa, o sibildo da que não esquece... E logo então, que era este o quinto passo de valentia que vencera sem temer - de alma forte e coração sereno - logo então as mãos voantes anediaramlhe o cabelo, palmearam-lhe mais chegadas os ombros. Blau Nunes foi andando. Desembocou num campestre, de gramado fofo, que tinha um cheiro doce que ele não conhecia; em toda volta árvores enfloradas e estadeando frutos; passarinhada de penas vivas e cantoria alegre; veadinhos mansos; capororocas e outro muito bicharedo, que recreava os olhos; e listando a meio o campestre, brotado duma roça coberta de samambaias, um olho-d’água, que saía em toalha e logo corria em riachinho, pipocando o quanto-quanto sobre areão solto, palhetado de malacachetas brancas, como uma farinha de prata... E logo uma ronda de moças – cada qual que mais cativa! –, uma ronda alegre saiu dentre o arvoredo, a cercá-lo, a seduzi-lo, a ele Blau, gaúcho pobre, que só mulheres de anáguas resvalonas conhecia... Vestiam-se umas em frouxo trançado de flores, outras de fios de contas, outras na própria cabeleira solta...; estas chegavam-lhe à boca caramujos estrambóticos, cheios de bebida recendente e fumegando entre vidros frios, como de geada; dançavam outras num requebro marcado como por música... 225 outras lá acenavam-lhe para a lindeza dos seus corpos, atirando no chão esteiras macias, num convite aberto e ardiloso... Porém ele meteu o peito e passou, com as fontes golpeando, por motivo do ar malicioso que o seu bofe respirava... Blau Nunes foi andando. Entrou no arvoredo e foi logo rodeado por uma tropa de anões, cambaios e cabeçudos, cada qual melhor para galhofa, e todos em piruetas e mesuras, fandangueiros e volantins, pulando como aranhões, armando lutas, fazendo caretas impossíveis para rostos da gente... Porém o paisano meteu o peito neles e passou, sem nem sequer um ar de riso no canto dos olhos... E com este, que era o último, contou os sete passos das provas. E logo então, aqui, surdiu-lhe em frente o vulto de face tristonha e branca, que, certo, lhe andara nas pisadas, de companheiro – sem corpo – e sem nunca lhe valer nos apuros do caminho; e tomou-lhe a mão. E Blau Nunes foi seguindo. Por detrás de um cortinado como de escamas de peixe-dourado, havia um socavão reluzente. E sentada numa banqueta transparente, fogueando cores como as do arco-íris, estava uma velha, muito velha, carquincha e curvada, e como tremendo de caduca. E segurava nas mãos uma varinha branca, que ela revirava e tangia e atava em nós que se desfaziam, laçadas que se deslaçavam e torcidas que se destorciam, ficando sempre linheira. – Cunhã, disse o vulto, o paisano quer! – Tu vieste; tu chegaste; pede, tu, pois! respondeu a velha. E moveu e ergueu o corpo magro, dando estalos nas juntas, e levantou a varinha para o ar: logo o condão coriscou por sobre ela uma chuva de raios, mais que como num temporal desfeito das nuvens carregadas cairia. E disse: – Por sete provas que passaste, sete escolhas dar-te-ei... Paisano, escolhe! Para ganhar a parada em qualquer jogo... de naipes, que as mãos ajeitam, de dados, que a sorte revira, de cavalos, que se cotejam, do osso, que se sopesa, da rifa... queres? – Não! – disse Blau, e todo o seu parecer foi se mudando num semblante como de sonâmbulo, que vê o que os outros não veem... como os gatos, que acompanham com os olhos cousas que passam no ar e ninguém vê... – Para tocar a viola e cantar... amarrando nas cordas dela o coração das mulheres que te escutarem... e que hão de sonhar contigo e ao teu chamado irão – obedientes, como aves varadas pelo olhar das cobras –, deitar-se entregues ao dispor de teus beijos, ao apertar dos teus braços, ao resfolegar dos teus desejos... queres? – Não! – respondeu a boca, por mandado só do ouvido... – Para conhecer as ervas, as raízes, os sucos das plantas e assim poderes curar os males dos que tu estimares ou desfazer a saúde dos que aborreceres;... 226 e saber simpatias fortes para dar sonhos ou loucuras, para tirar a fome, relaxar o sangue, e gretar a pele e espumar os ossos...; ou para ligar apartados, achar cousas perdidas, descobrir invejas...; queres? – Não! – Para não errar o golpe – de tiro, lança ou faca – em teu inimigo, mesmo no escuro ou na distância, parado ou correndo, destro ou prevenido, mais forte que tu ou astucioso...; queres? – Não! – Para seres mandão no teu distrito e que todos te obedeçam sem resmungos...; seres língua com os estrangeiros e que todos te entendam...; queres? – Não! – Para seres ricaço de campo e gado e manadas de todo pelo...; queres? – Não! – Para fazeres pintura em tela, versos harmoniosos, novelas de sofrimentos, autos de chocarrice, músicas de consolar, lavores no ouro, figuras no mármore, queres? – Não! – Pois que em sete poderes te não fartas, nada te darei, porque do que te foi prometido nada quiseste. Vai-te! Blau nem se moveu; e, carpindo dentro em si a própria rudeza, pensou no que queria dizer e não podia e que era assim: – Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque tu és tudo!... És tudo o que eu não sei o que é, porém que atino que existe fora de mim, em volta de mim, superior a mim... Eu te queria a ti, teiniaguá encantada!... Mas uma escuridão fechada, como nem noite a mais escura dá parelha, caiu sobre o silêncio que se fez, e uma força torceu o paisano. Blau Nunes arrastou um passo e outro e o terceiro; e desandou caminho; e quando ele andara em voltas e contravoltas, em subidas e descidas, tanto em direitura foi bater na boca na furna por onde ele havia entrado, sem engano. E viu atado e quieto o seu cavalo; em roda as mesmas restingas, ao longe os mesmos descampados mosqueados de pontas de gado, a um lado o encordoado das coxilhas, a outro, numa aberta entre matos um claro prateado, que era água do arroio. Memorou o que tinha acabado de ver e de ouvir e de responder; dormido, não tinha, nem susto lhe tirara o entendimento. E pensou que tendo tido oferta de muito não lograra nada por querer tudo...; e num arranco de raiva cega decidiu outra investida. Voltou-se para entrar de novo... mas bateu co'o peito na parede dura do cerro. Terra maciça, mato cerrado, capins, limos... e nenhuma fresta, nem brecha, nem buraco, nem furna, caverna, toca por onde escorresse um corpinho de guri, quando mais passasse porte de homem!... 227 Desanimado e penaroso, compôs o cavalo e montou; e ao dar de rédea apareceu-lhe pelo lado de laçar o sacristão, o vulto de face branca e tristonha, que tristemente estendeu-lhe a mão, dizendo: – Nada quiseste; tiveste a alma forte e o coração sereno, tiveste, mas não soubeste governar o pensamento nem segurar a língua!... Não te direi se bem fizeste ou mal. Mas como és pobre e isso te aflige, aceita este meu presente, que te dou. É uma onça de ouro que está furada pelo condão mágico; ela te dará tantas outras quantas quiseres, mas sempre de uma e uma e nunca mais que uma por vez; guarda-a em lembrança de mim! E o corpo do sacristão encantado desfez-se em sombra na sombra da reboleira... Blau Nunes meteu na guaiaca a onça furada e deu de rédea. O sol tinha cambado, e o cerro do Jarau já fazia sombra comprida sobre os bamburrais e restingas que lhe formavam assento. VIII Na troteada para o posto em que morava, um ranchote de beira no chão tendo por porta um couro, Blau rumeou para uma venda grande que sortia aquele vizindário, mesmo a troco de courama, cerda ou algum tambeiro; e, como vinha de garganta seca e cabeça atordoada, mandou botar uma bebida. Bebeu; e puxou da guaiaca a onça e pagou; era tão mínima a despesa, e o câmbio que veio, tanto, que pasmou, olhando para ele, de tão desacostumado que andava de ver dinheiro tanto, que chamasse seu... E de dedos engatanhados socou-o todo para dentro da guaiaca, sentindolhe o peso e o sonido afogado. Calado, montou de novo, retirando-se. No caminho foi pensando nas todas as cousas que carecia e que iria comprar. Entre aperos e armas e roupas, um lenço grande e umas botas, outro cavalo, umas esporas e embelecos que pretendia, andava tudo por uma mão cheia de cruzados; e a si próprio perguntava se aquela onça encantada, dada para indez, teria mesmo o condão de entropilhar outras muitas tantas como as que precisava, e mais ainda, outras que o seu desejo fosse despencado?!... Chegou ao posto e, como homem avisado, não falou do que fizera durante o dia, apenas do boi barroso, que campeou e não achou; e, no seguinte, logo cedo saiu a empeçar a prova do prometido. Naquele mesmo negociante ajustou umas roupas tafulonas; e mais uma adaga de cabo e bainha com anéis de prata; e mais umas esporas e um rebenque de argolão. Toda a compra passava de três onças. E Blau, as fontes latejando, a boca cerrada, num aperto que lhe fazia doer o carrinho, piscando os olhos, a respiração atropelada, todo ele numa 228 desconfiança, Blau, por debaixo do seu balandrau remendado começou a gargantear e guaiaca... e caiu-lhe na mão uma onça... e outra... e outra... e outra!... As quatro, que por agora eram tão de jeito!... Mas não caíram duas e duas ou três e uma, ou as quatro, juntas, porém sim de uma em uma, as quatro, de cada vez só uma... Voltou ao rancho com a maleta atochada, mas, como homem avisado, não falou do acontecido. No outro dia seguia outro rumo, para outro negociante mais forte e de prateleiras mais variadas. Já levava alinhavado o sortimento que ia fazer, e, muito em ordem, foi encomendando o aparte das cousas, tendo cuidado em não querer nada de cortar, só peças inteiras, que era para, no caso de falhar a onça, recuar da compra, fazendo um feio, é verdade, mas não sendo obrigado a pagar estrago algum. Notou a conta, que andava por quinze onças, uns cruzados pra menos. E outra vez, por debaixo do seu balandrau remendado, começou a gargantear a guaiaca, e logo lhe foi caindo na mão uma onça... e segunda... outra... e quarta, mais outra, e sexta... e assim de uma em uma, as quinze necessárias! O negociante ia recebendo e alinhando sobre o balcão as moedas conforme vinham elas minando da mão do pagador e, quando estavam todas disse, entre risonho e desconfiado: – Cuê-pucha!... cada onça das suas parece que um pinhão, que é preciso descascar à unha!... No terceiro dia passou na estrada uma cavalhada; Blau fez parar a tropa e ajustou uma quadrilha, apartada por ele, à sua vontade, e, como facilitou o preço, fechou-se o trato. Ele e o capataz, sós no meio da cavalhada, iam fazendo mover-se os animais; no apinhado de todas, Blau marcava a cabeça que mais lhe agradava pelo focinho, pelos olhos, pelas orelhas; como um sovéu fino, de armada pequena, reboleava por dentro e ia, certo, laçar o bagual escolhido; se ainda, sem ovas e bons cascos, aprazia-lhe, tirava-o então, como seu, para o potreiro do piquete. Olho de campeiro, não errou vez alguma a escolha, e trinta cavalos, a flor, foram apartados, custando quarenta e cinco onças. E enquanto a tropa verdeava e bebia, os tratistas foram para a sombra duma figueira que havia na beira da estrada. Blau por debaixo do seu balandrau remendado, ainda desconfiando, começou a gargantear a guaiaca... e foi logo aparando, onça por onça, uma, duas, três, seis, dez, dezoito, vinte e cinco, quarenta, quarenta e cinco!... 229 O vendedor, estranhando aquela novidade e demora, não se conteve e disse: – Amigo! As suas onças parecem talas de jerivá, que só cai uma de cada vez!... Depois desses três dias de prova Blau acreditou na onça encantada. Arrendou um campo e comprou o gado, pra mais de dez mil cabeças, aquerenciado. O negócio era muito acima de três mil onças, a pagar no recebimento. Aí o coitado perdeu quase o dia inteiro a gargantear a guaiaca e a aparar onça por onça, uma atrás da outra, sempre uma a uma!... Cansou-lhe o braço, cansou-lhe o corpo, não falhava golpe, mas tinha de ser como martelada, que não se dá duas ao mesmo tempo... O vendedor, à espera que Blau completasse a soma, saiu, mateou, sesteou; e quando, sobre a tarde, voltou à ramada, lá estava ele ainda aparando onça trás onça!... Ao escurecer estava completo o ajuste. Começou a correr a fama da sua fortuna. E todos espantavam-se por ele, gaúcho despilchado de ontem, pobre, que só tinha de seu as chilcas, afrontar os abonados, assim, do pé, para a mão... E também era falado o seu esquisito modo de pagar – que pagava sempre, valha a verdade – só de onça por onça, uma depois de outra e nunca, nunca ao menos duas, acolheradas!... Aparecia gente a propor-lhe negócio, ainda de pouco preço, só para ver como aquilo era; e para todos era o mesmo mistério... Mistério para o próprio Blau... muito rico... muito rico... mas de onça em onça, como tala de jerivá, que só cai uma de cada vez... como pinhão de serra, que só se descasca de um em um!... Mistério para Blau, muito rico... muito rico... Mas todo o dinheiro que ele recebia, que entrava das vendas feitas, todo o dinheiro que lhe pagavam a ele, todo desaparecia, guardado na arca de ferro, desaparecia como desfeito em ar... Muito rico... muito rico das onças que precisasse, e nunca faltaram para gastar no que lhe parecesse: bastava-lhe gargantear a guaiaca, e elas começam a pingar; mas nenhuma das que recebia lhe ficava, todas evaporavam-se, como água em tijolo quente... IX Então começou a correr um boquejo de ouvido para ouvido... e era que ele tinha parte com o diabo, e que o dinheiro dele era maldito, porque todos com quem tratava e recebiam as suas onças, todos entravam, ao depois, a fazer 230 maus negócios e todos perdiam em prejuízos exatamente a quantia igual à de suas mãos recebida. Ele comprava e pagava à vista, é certo, o vendedor contava e recebia, é certo... mas o negócio empreendido com esse valor era de prejuízo garantido. Ele vendia e recebia, é certo; mas o valor recebido, que ele guardava e rondava, sumia-se como vento, e não era roubado nem perdido; era sumido, por si mesmo... O boquejar foi alastrando, e já diziam que aquilo, por certo, era mandinga arrumada na salamanca do Jarau, onde ele foi visto mais de uma feita... e que lá é que se jogava a alma contra a sorte... E os mais vivarachos já faziam suas madrugadas sobre o Jarau; outros, mais sorros, pra lá tocavam-se ao escurecer, outros, atrevidaços, iam à meianoite, outros ainda ao primeiro cantar dos galos... E como nesse carreio de precatados cada um fazia por ir de mais escondido, sucedeu que como sombras se pechavam entre as sombras das reboleiras, sem atinar co'a salamanca, ou sem topete para, na escuridão, quebrar aquele silêncio, chamado o santão, num grito alto... No entanto Blau começou a ser tratado de longe, como um chimarrão rabioso... Já não tinha com quem pautear; churrasqueava solito, e solito mateava, rodeado dos cachorros, que uivavam às vezes um, às vezes todos... A peonada foi saindo e conchavando-se noutras partes; os negociantes nada compravam-lhe e negaceavam para vender-lhe; os andantes cortavam campo para não pararem nos seus galpões... Blau deu em cismar, e cisma foi que resolveu acabar com aquele cerco de isolamento, que o ralava e esmorecia... Montou a cavalo e foi ao cerro. Na trepada sentiu aos dois lados barulho nos bamburrais e nas restingas, mas pensou que seria alguma ponta de gado xucro que disparava e não fez caso; foi trepando. Mas não era, não, gado xucro espantado, nem guaraxaim corrido, nem tatu vadio; era gente, gente que se escondia uns dos outros e dele... Assim chegou à reboleira do mato, tão sua conhecida e recordada, e como chegou, deu de cara com um vulto de face branca e tristonha, o sacristão encantado, o santão. Ainda desta vez, como era ele que chegava, a ele competia louvar; saudou, como da outra: – Laus Sus-Cris! – Para sempre, amém! – respondeu o vulto. 231 Então Blau, de a cavalo, atirou-lhe aos pés a onça de ouro, dizendo: – Devolvo! Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza dessa onça, que não se acaba, é verdade, mas que parece amaldiçoada, porque nunca tem parelha e separa o dono dos outros donos de onças!... Adeus! Fica-te com Deus, sacristão! – Seja Deus louvado! – disse o vulto e caiu de joelhos, de mãos postas, como numa reza. Pela terceira vez falaste no Nome Santo, tu, paisano, e com ele quebraste o encantamento!... Graças! Graças! Graças!... E neste mesmo instante, que era o da terceira vez que Blau saudava o Nome Santo, nesse mesmo instante ouviu-se um imenso estouro, que retumbou naquelas vinte léguas em redor, o cerro de Jarau tremeu de alto a baixo, até às suas raízes, nas profundas da terra, e logo, em cima, no chapéu do espigão, apareceu, cresceu, subiu, aprumou-se, brilhou, apagou-se uma língua de fogo, alta como um pinheiro, apagou-se, e começou a sair fumaça negra, em rolos grandes, que o vento ia tocando para longe, por cima do encordoado das coxilhas, sem rumo feito, porque a fumaceira inchava-se e desparramava-se no ar, dando voltas e contravoltas, torcendo-se, enroscando-se, em altos e baixos, num desgoverno, como uma tropa de gado alçado, que espirra e se desmancha como água passada em regador... Era a queima dos tesouros da Salamanca, como dissera o sacristão. Sobre as caídas do Cerro levantou-se um vozerio e tropel: eram os maulas que andavam rastreando a furna encantada e que agora fugiam, desguaritados, como filhotes de perdiz... X Para os olhos de Blau, o cerro ficou como de vidro transparente, e então viu ele o que lá dentro se passava: os brigões, os jaguares, os esqueletos, os anões, as lindas moças, a boicininga, tudo, torcido e enovelado, amontoado, revolvido, corcoveava dentro das labaredas vermelhas que subiam e apagavamse dentro dos corredores, cada vez mais carregados de fumaça... e urros, gritos, tinidos, silbidos, gemidos, tudo se confundia no tronar da voz maior que estrondeava no cabeço empenachado do cerro. Ainda uma vez a velha carquincha transformou-se na teiniaguá... e a teiniaguá, na princesa moura... a moura numa tapuia formosa...; e logo o vulto de face branca e tristonha tornou à figura do sacristão de Santo Tomé, o sacristão, por sua vez, num guasca desempenado... E assim, quebrado o encantamento que suspendia fora da vida das outras aquelas criaturas vindas do tempo antigo e de lugar distante, aquele par, juntado e tangido pelo Destino, que é o senhor de todos nós, aquele par novo, de mãos dadas como namorados, deu costas ao seu desterro e foi descendo a pendente do coxilhão, até à várzea limpa, plana e verde, serena e amornada de sol claro, 232 toda bordada de boninas amarelas, de bibis roxas, de malmequeres brancos, como uma cancha convidante para uma cruzada de ventura, em viagem de alegria, a caminho do repouso!... Blau Nunes também não quis mais ver; traçou sobre seu peito uma cruz larga, de defesa, na testa do seu cavalo outra, e deu de rédea e d'espacito foi baixando a encosta do cerro, com o coração aliviado e retinindo como se dentro dele cantasse o passarinho verde... E agora, estava certo de que era pobre como dantes, porém que comeria em paz o seu churrasco...; e em paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua vida!... Assim acabou a salamanca do cerro do Jarau, que aí durou duzentos anos, que tantos se contam desde o tempo das Sete Missões, em que estas cousas principiaram. Anhangá-pitã, também, desde aí, não foi mais visto. Dizem que, desgostoso, anda escondido, por não haver tomado bem tenência que a teiniaguá era mulher... Comentários ao conto de base lendária A salamanca do Jarau Por lendas se entendem narrativas oriundas da cultura popular. As lendas nascem dialogicamente de múltiplas vozes, muitas vezes em espaços geográficos diversos e em situações históricas diferentes. Elas têm fundamentos verídicos e geralmente incluem episódios misteriosos. É comum igualmente que contenham elementos míticos. O texto comentado agora, pelas razões antes expostas e pelos fatos de ter autor definido, ter sido composto sobre o papel, captado da oralidade, com narrador ficcional, composto com requintes de arte narrativa planejada, não precisa ser classificado necessariamente como lenda, mas como conto de base (ou fundamentação) lendária. No título se expõem elementos fundamentais que encaminham à leitura do texto. A palavra salamanca se origina de forma de saudação árabe. Salamaleque (cumprimento em que há reverência a quem se cumprimenta) tem a mesma origem. Termo e significado chegaram à nossa língua pelo espanhol. Designa cova de rio, furna de barranca de rio, gruta natural. Designa também mistério, algo que não se explica com simplicidade ou não se esclarece na racionalidade comum. No caso do texto comentado agora, os dois significados são possíveis e coerentes. O motivo pelo qual a palavra salamanca passou a designar significados relacionados a mistério se explica pelo fato de os árabes terem dominado a Península Ibérica por setecentos anos. Deixaram lá muitas marcas culturais. Um dos domínios árabes era a alquimia (depois, química). Esses procedimentos alquímicos eram guardados em segredo. Como eram reservados, o termo ligou 233 semanticamente esses segredos a mistérios, que se executavam em locais incertos, retirados da convivência social, como as furnas. O título, portanto, além de outros significados possíveis, diz algo como os mistérios da furna do Jarau, que se pode ampliar, depois de lido o texto, para respostas mítico-lendárias; p. ex.: explicação de como este povo [os gaúchos] chegou aqui? qual é a sua formação? A construção estilística do texto o coloca em condição privilegiada, mesmo na obra de Lopes Neto, que se carateriza por destacado trabalho artístico. Assim também, os lances de sabedoria perpassam a narrativa e condicionam ampliada extensão cultural ao leitor. Eis por que – um dos motivos – é texto para ser lido atentamente. José Bento MONTEIRO LOBATO Monteiro Lobato é o mais bem reputado escritor de textos para a infância do Brasil. Nasceu em 1882, em Taubaté (SP), e faleceu em 1948, na capital paulista. Quando estudante, participou do grupo O Cenáculo. Nessa época, escreveu crônicas e artigos irreverentes. Em 1907 foi para Areias como promotor público. Casou-se, teve três filhos. Em 1918 lançou, com êxito, seu primeiro livro de contos, Urupês. Fundou a Editora Monteiro Lobato & Cia, melhorou a qualidade gráfica vigente no Brasil, lançou autores inéditos e faliu. Em 1920 lançou A menina do nariz arrebitado, com desenhos e capa de Voltolino, obra que foi adotada em escolas. Conseguiu edição numericamente recorde de 50.000 exemplares. Fundou a Cia Editora Nacional. Viveu também em Buenos Aires, como exilado, por ter sido simpatizante comunista. Traduziu muito e teve suas obras traduzidas e transformadas para outras linguagens de grande alcance popular. Marca sua obra para a infância o título Sítio do Pica-pau Amarelo, que a televisão popularizou e que atualmente aparece na entrada da fazenda que lhe pertenceu, em Taubaté. Negrinha Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados. Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças. Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. 234 Uma virtuosa senhora em suma – “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo. Ótima, a dona Inácia. Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa: – Quem é a peste que está chorando aí? Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero. – Cale a boca, diabo! No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer... Assim cresceu Negrinha – magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a ideia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punhaa na sala, ao pé de si, num desvão da porta. – Sentadinha aí, e bico, hein? Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas. – Braços cruzados, já, diabo! Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas – um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante. Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim. Que ideia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo – não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim – por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida – nem esse de personalizar a peste... 235 O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta... A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos – e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo – essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! Qualquer coisinha: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: Como é ruim a sinhá!... O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo: – Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!... Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma – divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para doer fino nada melhor! Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente. Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha – coisa de rir – um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta – atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias. – Peste? Espere aí! Você vai ver quem é peste – e foi contar o caso à patroa. Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se. – Eu curo ela! – disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias. – Traga um ovo. Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, 236 aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou: – Venha cá! Negrinha aproximou-se. – Abra a boca! Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água pulando o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois: – Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste? E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que chegava. – Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária – mas que trabalheira me dá! – A caridade é a mais bela das virtudes cristãs, minha senhora – murmurou o padre. – Sim, mas cansa... – Quem dá aos pobres empresta a Deus. A boa senhora suspirou resignadamente. – Inda é o que vale... Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas. Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu – alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo. Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado – e findo o seu inferno – e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos. Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”? 237 Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral – sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos – a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre. – Quem é, titia? – perguntou uma das meninas, curiosa. – Quem há de ser? – disse a tia, num suspiro de vítima. – Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora. – Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! – refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco. Chegaram as malas e logo: – Meus brinquedos! – reclamaram as duas meninas. Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos. Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava mamã... que dormia... Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial. – É feita?... – perguntou, extasiada. E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão, o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la. As meninas admiraram-se daquilo. – Nunca viu boneca? – Boneca? – repetiu Negrinha. – Chama-se Boneca? Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade. – Como é boba! – disseram. – E você como se chama? – Negrinha. As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca: – Pegue! Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente... Era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse 238 vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena. Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se. Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos. Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo – estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida: – Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein? Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu. Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha... Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma – na princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca – preparatório –, e o momento dos filhos – definitivo. Depois disso, está extinta a mulher. Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa – e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava! Assim foi – e essa consciência a matou. Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada. Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida. Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos. Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a. 239 Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma. Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça – abraçada, rodopiada. Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta. Mas, imóvel, sem rufar as asas. Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou... E tudo se esvaiu em trevas. Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira – uma miséria, trinta quilos mal pesados... E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas. – “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?” Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia. – “Como era boa para um cocre!...” Comentários ao conto Negrinha Em geral, os teóricos do conto consideram o diálogo textual elemento muito positivo desse tipo de narrativa. Negrinha é um conhecido e elogiado conto brasileiro. Alguns contos como esse têm colocado Lobato ao lado dos mais renomados contistas brasileiros, como Machado de Assis e Lopes Neto. Negrinha, como outros textos do autor, começam a resgatar dignidades, através da construção de personagens representativos de camadas desprestigiadas da população. Da maneira como isso ocorreu na literatura brasileira, é possível considerar que essa é uma das boas contribuições do Prémodernismo. O Modernismo ampliaria e aprofundaria isso. O conto em questão, ao tempo em que olha para a figura da desamparada personagem, procura também prospectar como o olhar dela teria visto o mundo. Do ponto de vista estilístico, encontram-se elementos naturalistas, realistas e românticos no texto. Como elementos naturalistas, podem-se citar, p. ex., aspetos chocantes de personagens, o anticlericalismo, a contundência. Como elementos realistas, aparece o delineamento psicológico, às vezes até escancarado, dos personagens. Como elementos românticos, é possível serem citados, p. ex., a utilização da figura dos anjos como simbólica da beleza e da 240 pureza e o toque sentimental do conto. Essa confluência de estilos é caraterística dos textos pré-modernistas, como se sabe. Afonso Henriques de LIMA BARRETO Nasceu no Rio de janeiro, em 1881. Estudante na Escola Politécnica, em 1902, colaborou em jornais acadêmicos. Com doença do pai, em 1903, Lima Barreto foi obrigado a deixar a faculdade para sustentar a família. Ingressou como amanuense na Secretaria da Guerra. Em 1905 passou a trabalhar como jornalista profissional. Em 1907, fundou a revista Floreal. Em 1909, apareceu em Lisboa o romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, publicado pelo editor M. Teixeira. Em 1911, o romance Triste fim de Policarpo Quaresma começa a ser editado em folhetins. Em 1912, Lima Barreto publicou, além de relatos folhetinescos, a sátira Numa e a ninfa. Em 1916, foi internado para tratamento de saúde. Em 1917, passou a atuar na imprensa anarquista. Em 1918, por ter sido considerado inválido para o serviço público, foi aposentado. Em 1922, morreu em casa, de colapso cardíaco. Triste fim de Policarpo Quaresma (excerto do capítulo 1, Patriotas, da 3ª parte) O major ia aproximar-se, mas logo estacou no lugar em que estava. Uma chusma de oficiais subalternos e cadetes cercou o ditador, e a sua atenção convergiu para eles. Não se ouvia o que diziam. Falavam ao ouvido de Floriano, cochichavam, batiam-lhe nas espáduas. O marechal quase não falava: movia com a cabeça ou pronunciava um monossílabo, coisa que Quaresma percebia pela articulação dos lábios. Começaram a sair. Apertavam a mão do ditador, e um deles, mais jovial, mais familiar, ao despedir-se, apertou-lhe com força a mão mole, bateu-lhe no ombro com intimidade, e disse alto e com ênfase: – Energia, marechal! Aquilo tudo parecia tão natural, normal, tendo entrado no novo cerimonial da República, que ninguém, nem o próprio Floriano, teve a mínima surpresa; ao contrário, alguns até sorriam alegres por ver o califa, o cã, o emir, transmitir um pouco do que tinha de sagrado ao subalterno desabusado. Não se foram todos imediatamente. Um deles demorou-se mais a segredar coisas à suprema autoridade do país. Era um cadete da Escola Militar, com a sua farda azulturquesa, talim e sabre de praça de pré. Os cadetes da Escola Militar formavam a falange sagrada. 241 Tinham todos os privilégios e todos os direitos; precediam ministros nas entrevistas com o ditador e abusavam dessa situação de esteio do Sila, para oprimir e vexar a cidade inteira. Uns trapos de positivismo se tinham colado naquelas inteligências, e uma religiosidade especial brotara-lhes no sentimento, transformando a autoridade, especialmente Floriano e vagamente a República, em artigo de fé, em feitiço, em ídolo mexicano, em cujo altar todas as violências e crimes eram oblatas dignas e oferendas úteis para a sua satisfação e eternidade. O cadete lá estava... Quaresma pôde então ver melhor a fisionomia do homem que ia enfeixar em suas mãos, durante quase um ano, tão fortes poderes, poderes de Imperador Romano, pairando sobre tudo, limitando tudo, sem encontrar obstáculo algum aos seus caprichos, às suas franquezas e vontades, nem nas leis, nem nos costumes, nem na piedade universal e humana. Era vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava uma grande mosca, os traços flácidos e grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou o olhar que fosse próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso – parecia não ter nervos. Não quis o major ver em tais sinais nada que lhe denotasse o caráter, a inteligência e o temperamento. Essas coisas não vogam, disse ele de si para si. O seu entusiasmo por aquele ídolo político era forte, sincero e desinteressado. Tinha-o na conta de enérgico, de fino e supervidente, tenaz e conhecedor das necessidades do país, manhoso talvez um pouco, uma espécie de Luís XI forrado de um Bismarck. Entretanto, não era assim. Com uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do Marechal Floriano uma qualidade predominante: tibieza de ânimo e, no seu temperamento, muita preguiça. Não a preguiça comum, essa preguiça de nós todos; era uma preguiça mórbida, como que uma pobreza de irrigação nervosa, provinda de uma insuficiente quantidade de fluido no seu organismo. Pelos lugares que passou, tornou-se notável pela indolência e desamor às obrigações dos seus cargos. Quando diretor do arsenal de Pernambuco, nem energia tinha para assinar o expediente respectivo; e, durante o tempo em que foi ministro da Guerra, passava meses e meses sem lá ir, deixando tudo por assinar, pelo que legou ao seu substituto um trabalho avultadíssimo. Quem conhece a atividade papeleira de Colbert, de um Napoleão, de um Filipe II, de um Guilherme I, da Alemanha, em geral todos os grandes homens de Estado, não compreende o descaso florianesco pela expedição de ordens, explicações aos subalternos, de suas vontades, de suas vistas. Certamente 242 necessárias deviam ser tais transmissões para que o seu senso superior se fizesse sentir e influísse na marcha das coisas governamentais e administrativas. Dessa sua preguiça de pensar e de agir, vinha o seu mutismo, os seus misteriosos monossílabos, levados à altura de ditos sibilinos, as famosas encruzilhadas dos talvezes, que tanto reagiram sobre a inteligência e imaginação nacionais, mendigas de heróis e grandes homens. Essa doentia preguiça fazia-o andar de chinelos e deu-lhe aquele aspecto de calma superior, calma de grande homem de Estado ou de guerreiro extraordinário. Toda gente ainda se lembra como foram os seus primeiros meses de governo. A braços com o levante de presos, praças e inferiores da fortaleza de Santa Cruz, tendo mandado fazer um inquérito, abafou-o com medo que as pessoas indicadas como instigadoras não fizessem outra sedição e, não contente com isto, deu a essas pessoas as melhores e mais altas recompensas. Demais, ninguém pode admitir um homem forte, um César, um Napoleão, que permita aos subalternos aquelas intimidades deprimentes e tenha com eles as condescendências que ele tinha, consentindo que o seu nome servisse de lábaro para uma vasta série de crimes de toda espécie. Uma recordação basta. Sabe-se bem sob que atmosfera de má vontade Napoleão assumiu o comando do exército da Itália. Augereau, que o chamava general de rua, disse a alguém, após lhe ter falado: “O homem meteu-me medo”; e o corso estava senhor do exército, sem batidelas no ombro, sem delegar tácita ou explicitamente a sua autoridade a subalternos irresponsáveis. De resto, a lentidão com que sufocou a revolta de 6 de setembro mostra bem a incerteza, a vacilação de vontade de um homem que dispunha daqueles extraordinários recursos que estavam às suas ordens. Há uma outra face do Marechal Floriano que muito explica os seus movimentos, atos e gestos. Era o seu amor à família, um amor entranhado, alguma coisa de patriarcal, de antigo que já se vai esvaindo com a marcha da civilização. Em virtude de insucessos na exploração agrícola de duas das suas propriedades, a sua situação particular era precária, e não queria morrer sem deixar à família as suas propriedades agrícolas desoneradas do peso da dívidas. Honesto e probo como era, a única esperança que lhe restava repousava nas economias sobre os seus ordenados. Daí lhe veio essa dubiedade, esse jogo com pau de dois bicos, jogo indispensável para conservar os rendosos lugares que teve e o fez atarraxar-se tenazmente à presidência da República. A hipoteca do Brejão e do Duarte foi o seu nariz de Cleópatra... A sua preguiça, a sua tibieza de ânimo e o seu amor fervoroso pelo lar deram em resultado esse homem-talvez que, refratado nas necessidades 243 mentais e sociais do homem do tempo, foi transformado em estadista, em Richelieu, e pôde resistir a uma séria revolta com mais teimosia que vigor, obtendo vidas, dinheiro e despertando até entusiasmo e fanatismo. Esse entusiasmo e esse fanatismo, que o amparam, que o animaram, que o sustentaram, só teriam sido possíveis, depois de ter ele sido ajudante general do Império, senador, ministro, isto é, após se ter fabricado à vista de todos e cristalizado a lenda na mente de todos. A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia, nem a aristocracia; era a de uma tirania doméstica. O bebê portou-se mal, castiga-se. Levada a coisa ao grande, portar-se mal era fazer-lhe oposição, ter opiniões contrárias às suas, e o castigo não eram mais palmadas, sim, porém, prisão e morte. Não há dinheiro no Tesouro; ponham-se as notas recolhidas em circulação, assim como se faz em casa quando chegam visitas, e a sopa é pouca: põe-se mais água. Demais, a educação militar e a sua fraca cultura deram mais realce a essa concepção infantil, raiando-a de violência, não tanto por ele em si, pela sua perversidade natural, pelo seu desprezo pela vida humana, mas pela fraqueza com que acobertou e não reprimiu a ferocidade dos seus auxiliares e asseclas. Quaresma estava longe de pensar nisso tudo; ele com muitos homens honestos e sinceros do tempo foram tomados pelo entusiasmo contagioso que Floriano conseguira despertar. Pensava na grande obra que o Destino reservava àquela figura plácida e triste; na reforma radical que ele ia levar ao organismo aniquilado da pátria, que o major se habituara a crer a mais rica do mundo, embora, de uns tempos para cá, já tivesse dúvidas a certos respeitos. Decerto, ele não negaria tais esperanças, e a sua ação poderosa havia de se fazer sentir pelos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil, levandolhes estradas, segurança, proteção aos fracos, assegurando o trabalho e promovendo a riqueza. Não se demorou muito nessa ordem de pensamentos. Um seu companheiro de espera, desde que o marechal lhe falou familiarmente, começou a considerar aquele homem pequenino, taciturno, de pince-nez e foi-se chegando, se aproximando e, quando já perto, disse a Quaresma, quase como um terrível segredo. – Eles vão ver o cabloco... O major há muito que o conhece? Respondeu-lhe o major, e o outro ainda lhe fez uma outra pergunta; o presidente, porém, ficara só, e Quaresma avançou. – Então, Quaresma? fez Floriano. – Venho oferecer a Vossa Excelência os meus fracos préstimos. 244 O presidente considerou um instante aquela pequenez de homem, sorriu com dificuldade, mas, levemente, com um pouco de satisfação. Sentiu por aí a força de sua popularidade e se não a razão boa de sua causa. – Agradeço-te muito... Onde tens andado? Sei que deixaste o arsenal. Floriano tinha essa capacidade de guardar fisionomias, nomes, empregos, situações dos subalternos com quem lidava. Tinha alguma coisa de asiático; era cruel e paternal ao mesmo tempo. Quaresma explicou-lhe a sua vida e aproveitou a ocasião para lhe falar em leis agrárias, medidas tendentes a desafogar e dar novas bases à nossa vida agrícola. O marechal ouviu-o distraído, com uma dobra de aborrecimento no canto dos lábios. – Trazia a Vossa Excelência até este memorial... O presidente teve um gesto de mau humor, um quase não me amole e disse com preguiça a Quaresma: – Deixa aí... Depositou o manuscrito sobre a mesa, e logo o ditador dirigiu-se ao interlocutor de ainda agora: – O que há, Bustamante? E o batalhão vai? O homem aproximou-se mais, um tanto amedrontado: – Vai bem, marechal. Precisamos de um quartel!... Se Vossa Excelência desse ordem... – É exato. Fala ao Rufino em meu nome que ele pode arranjar... Ou antes: leva-lhe este bilhete. Rasgou um pedaço de uma das primeiras páginas do manuscrito de Quaresma e, assim mesmo, sobre aquela ponta de papel, a lápis azul, escreveu algumas palavras ao seu ministro da guerra. Ao acabar é que deu com a desconsideração: – Ora! Quaresma! rasguei o teu escrito... Não faz mal... Era a parte de cima, não tinha nada escrito. O major confirmou, e o presidente, em seguida, voltando-se para Bustamente: – Aproveita Quaresma no teu batalhão. Que posto queres? – Eu! fez Quaresma estupidamente. – Bem. Vocês lá se entendem. Os dois se despediram do presidente e desceram vagarosamente as escadas do Itamarati. Até à rua nada disseram um ao outro. Quaresma vinha um pouco frio. O dia estava claro e quente; o movimento da cidade parecia não ter 245 sofrido alteração apreciável. Havia a mesma agitação de bondes, carros e carroças; mas nas fisionomias, um terror, um espanto, alguma coisa de tremendo ameaçava todos e parecia estar suspenso no ar. Comentários ao excerto do capítulo 1, Patriotas, da 3a parte de Triste fim de Policarpo Quaresma As conexões entre Lima Barreto e Machado de Assis vão além de terem sido romancistas e contistas, de terem vivido no Rio de Janeiro e de terem atenção à vida urbana da cidade que por muitos anos centralizou o poder político do país. A ironia é também recurso que se encontra nos textos produzidos por ambos. Em Lima Barreto, geralmente menos sutil que em Machado de Assis, mas nem por isso menos eficaz. Em Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto focaliza a questão do poder, personalizado em Floriano Peixoto e nos círculos militares fluminenses. Desenvolve o assunto a partir de noções de patriotismo, variáveis e efêmeras, ao sabor de interesses pessoais e corporativos dos próprios círculos do poder político-militar. Toca, portanto, em assuntos que impõem dificuldades ao escritor, especialmente quando os fatos sobre os quais as reflexões incidem são cronologicamente próximos. Conhecemos o caso exemplar de Caldre e Fião, durante o Romantismo. No caso de Triste fim de Policarpo Quaresma, o romancista constrói o personagem que empresta nome ao título, como exemplo de patriotismo singelo, mas sincero. As circunstâncias que modelam o personagem possibilitam que sejam mostradas situações, em que o leitor identifica com precisão a gama de traições que o poder instituído inflige sobre o homem honesto e às vezes ingênuo. Desprevenido das arapucas do poder, dos interesses corporativos, do desprezo pela vida e pelos sentimentos de pessoas fiéis a seu amor à pátria, esse homem, personalizado em Policarpo Quaresma, percebe tarde demais os engodos a que foi submetido. As boas intenções não são valorizadas nem o trabalho é recompensado. O povo é feito marginal aos processos do poder efetivo. Há quem veja quixotismo nas atitudes de Quaresma. Se o há, deve ser entendido no idealismo, no que se denomina pureza, que caraterizam o personagem. Algo disso se pode também detectar em Bentinho de Dom Casmurro. A loucura que se pode ver no personagem de Lima Barreto é a que alguns veem em todos que têm ideias próprias, que não se deixam guiar por opiniões correntes, que se desviam do senso comum e que põem em prático o que entendem como o melhor a fazer pelo bem de todos. 246 AMARO JUVENAL Amaro Juvenal é pseudônimo de Ramiro Fortes de Barcelos. Ramiro Barcelos nasceu em Cachoeira do Sul (RS), em 1851 e faleceu em Porto Alegre em 1919. Adotou o pseudônimo Amaro Juvenal para a publicação de seus textos nos jornais A federação e O novo mundo. Com esse pseudônimo assinou o poema narrativo Antônio Chimango: poemeto campestre (1915), em que expõe satiricamente a condição do Rio Grande do Sul sob o governo de Borges de Medeiros. Foi Antônio Chimango a obra que perenizou o autor nas letras brasileiras. Foi escritor, pecuarista, médico e político. Foi secretário da fazenda do Rio Grande do Sul e embaixador do Brasil no Uruguai. Primeira ronda (excerto) Para les contar a vida Saco da mala o bandônio, A vida de um tal Antônio Chimango – por sobrenome, Magro como lobisome, Mesquinho como o demônio. Nos cerros de Caçapava Foi que viu a luz do dia, À hora d'Ave Maria, De uma tarde meio suja; Logo cantou a coruja Em honra de quem nascia. Veio ao mundo tão flaquito, Tão esmirrado e chochinho Que, ao finado seu padrinho, Disse espantada a comadre: “Virgem do céu, Santo Padre! Isto é gente ou passarinho?” 247 “Você parteira e não sabe? Isto logo se descobre: Terneiro de campo pobre Não tem quartos nem papada. É produção desgraçada, Que não vale nem um cobre.” “Coitadinho, está tremendo, Sente frio o perereca.” “Qual sente frio, isto é seca, Meta o guri na gamela, Dê-le uns tirões na canela, Pra que não fique guaipeca.” Saiu roxinho de frio, Ansim meio encarangado, Como um pintinho pesteado Sai debaixo da goteira; E o embrulhou a parteira Nuns paninhos de riscado. C'um naco de marmelada, Que tirou de uma caixeta, Arranjou-lhe uma chupeta Que l'entrouxou pela boca; E, escondidinho na touca, Chupou, fazendo careta. Co'aquele doce nos queixos Acudiu logo o mosquedo: Foi aprendendo bem cedo Que, quem tem doce pra dar, Fica logo popular, Todo mundo o aponta o dedo. Inda aos três anos mamava E só dizia: – teteia, Numa magreza mui feia, Quase como a se sumir, Pra dar um passo ou subir Era só por mão alheia. Mesmo ansim tão fanadinho, Pescoço cheio de figas, Levado por mãos amigas E a bênção dos seus padrinhos, Foi crescendo aos bocadinhos, 248 Cheio de manha e lombrigas. Então, por aqueles tempos, Já faz disso um ror de anos, Uma tropa de ciganos Acampou-se muito a gosto, Ali por perto do posto, Num toldo feito de panos. Logo na manhã seguinte, Uma mulher grande e forte, Porém, mais feia que a morte, Num passinho de carancho, Veio entrando pelo rancho Diz-que pra tirar a sorte. Principiou a cigana Exigindo um candieiro, Um pelego de carneiro E uma guampa d'água fria; Mas, o que ela mais pedia É que le dessem dinheiro. Queimava lá do pelego, Assoprava na fumaça, E, ansim, co'aquela trapaça E seus ares de maluca, Armava a sua urupuca, Nada fazia de graça: Às meninas les dizia Coisas de seus namorados, Às velhas de seus pecados, Cometidos noutras eras, No bamborral das taperas, Ou no fundo dos cercados. Chegada a vez do Chimango, Deu uma mãozinha com medo; E ela ansim, meio em segredo, Numa língua atravessada, Dando uma grande risada, Disse, apontando c'o dedo: “Vira-bosta é preguiçoso, Mas velhaco passarinho; Pra não fazer o seu ninho Se apossa do ninho alheio; 249 Este há de, segundo creio, Seguir o mesmo caminho. Cobra é bicho traiçoeiro, Guaraxaim, disfarçado, Quando se sente pegado, Deita e se finge de morto; Matreiro é o novilho torto, Que se esconde no banhado. A erva de passarinho É praga mui conhecida E tão mal-agradecida Às arves em que se nutre, Que, mais feroz que um abutre, Mata as que le dão a vida. O pescador se aproveita Da minhoca, bicho à-toa, Também muita gente boa Se serve da mão canhota, De um couro se faz pelota, Quando não se tem canoa. Ninguém se fie, portanto, Neste tambeiro mansinho; E o digo porque adivinho E percebo muito bem Na linha torta que tem Perto do dedo minguinho. Este, pois, que aqui se vê C'um jeitinho de raposa, Parece um Mané de Sousa, Mas, isto é só na aparência; Inda há de ter excelência, Inda há de ser grande cousa.” Ansim falou a cigana E toda a gente se ria Das bobages que dizia Sobre a sorte do miúdo; Amigos, aquilo tudo Tinha de ser algum dia. 250 Comentários ao poema Antônio Chimango Antônio Chimango tem tido constante atenção da crítica do Rio Grande do Sul. Entre esses estudos se destacam os de Augusto Meyer, de Maria Helena Martins e de Donaldo Schüler. Focaliza não apenas as truculências do poder discricionário. Nesse sentido, do ponto de vista temático, aproxima-se de Triste fim de Policarpo Quaresma. Paralelamente à questão que move o poema, a questão dos regimes autocráticos, a temática se amplia à vida da população geral. Também nesse sentido não está distante da proposta de Lima Barreto, no romance comentado anteriormente. Acresce Antônio Chimango a peculiaridade da vida do campo, no pampa gaúcho. Em consequência dessa opção técnicoestilística, o poema trabalha com discurso e sintaxe caraterísticos. Só dessa maneira pôde captar e expressar artisticamente a cultura em que se funda. Assim, há duas vozes vigentes no poema de Amaro Juvenal: uma de conformação ideológico-satírica e outra de caraterização cultural do homem do campo sul-rio-grandense. Lautério é dono da voz que fica, que traz o leitor à recepção da totalidade do universo proposto no poema. O poema é dividido em cinco cantos, que, em Amaro Juvenal, se chamam de rondas. Rondas são, entre os tropeiros do pampa, as vigias que se fazem de cuidado ao gado, nos descansos das tropas. Nesses momentos de suspensão da marcha e descanso de parte dos tropeiros, é que Lautério, com auxílio de seu “bandônio”, canta as sequências narrativas. O poema se mostra judicativo, à semelhança de outros textos, como Martim Fierro e Santos Vega, entre os gaúchos platinos, p. ex., e como Blau Nunes, em Batendo orelha de Lopes Neto, entre os gaúchos brasileiros. ALCIDES Castilho MAYA Alcides Maya nasceu em São Gabriel (RS) em 1878. Foi advogado e jornalista. Viveu na terra natal, em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Publicou Ruínas vivas (romance, 1910); Tapera (contos, 1911); Alma bárbara (contos, 1922). Faleceu no Rio de Janeiro, em 1944. A obra de Maya foi construída em discurso que marca a presença de recurso expressivos simbolistas e naturalistas. Em Ruínas vivas, o amor à minúcia, a preocupação de desenhar a frase com exatidão torturada, de modo que espose a realidade em todos os contornos, sem a omissão do menor acidente, dão muitas vezes a impressão de uma falta de perspectiva no conjunto, e a sua prosa míope obriga o leitor a aguçar a atenção período a período, página a página, com prejuízo da leitura corrida. Cada capítulo assume a importância de um todo, não há nada secundário; o 251 desenho finíssimo das nervuras mal deixa ver as folhas, ao passo que as folhas encobrem as árvores, e as árvores por sua vez escondem a floresta (Augusto Meyer). Excerto do capítulo 4 do Primeiro livro de Ruínas vivas Era uma noite de lua: as estrelas descoravam, numa cintilação argêntea mais remota sobre o azul etéreo; diminuía de furta-cores o bruxuleio das lucíolas: a quietude dos campos aumentara, como se derivasse do firmamento pérvio; envolvia o espaço uma doçura infinita, misto de silêncio, de translucidez, de olvido; e o astro já se denunciava, através de cúmulos, por uma leve claridade velutínea. Só o Estaqueador ainda avultava sombrio, com a sua mataria em estorço nas planícies, agigantada nas coxilhas, perdendo-se indecisa no horizonte: o mais surgia calmo, claro, aeriforme; e, ao apontar o luar, diademando as nuvens e difluindo no solo os seus raios mornos, rasgou-se, no encantamento luminoso, uma dessas noites pampianas indescritíveis, em que a asperidade campestre se esvai em opalescência e o espírito se difunde lânguido nas lhamas de prata das superfícies desertas. O plenilúnio dealbava, em geladas plagas ermas, as chapadas e os coles; as rochas ganhavam aparências gigânteas, milenárias; cá e lá, ora perto, ora longe, águas deslizavam cristalinas, em filetes, ou fulgiam derramadas, límpidas, dormentes, entre arbúsculos; o luar refletia-se tranquilo na placa rútila das lagoas; os arroios, fluindo leves, melancolizavam o ar a sons velados; ouvia-se as vezes um quebro mais nítido, de linfa em despenho nalgum lançante; faúlhas corriam, ligeiras, as vaporações esparsas, alvadias; e, à tênue cerração imponderável, fosforeada, que diamantizava o ambiente, oscilavam para os confins da campanha, sublineadas em neblinas alvas, formas notâmbulas, dilúcidas. Eram, na bruma sutílima, como sombras flutuantes, passageiras; eram como brilhos intensos e fugazes nos clarões serenos: ou de libélulas que empanassem um segundo, às miríades, com a gaze transparente das asas, o tremeluzir das esferas, ou de lampírios acatassolando, breves, a solidão dos planos, ou de nuvens finíssimas a coarem veloces nos seus flocos gélidos a radiação lunar. A terra configurava-se num delineamento simples, vagamente apainelada; a intervalos, vegetais lucidavamse, frágeis e ondulando à brisa fresca, ou densos e imobilizados na modorra hipnoticadas plantas sob a carícia trêmula dos reflexos; as ramas e as folharias, bulindo, projetavam no chão figuras monstruosas, de aracnídeos colossais, assustados e presos, esmagados ao meio, sob o peso dos troncos; e nas extensões varzinas, imersas numa doce neblina transluzente, mudos e esfíngicos na sua atitude letárgica, vultos de animais, em grupos circulares, aos renques, solitários, pareciam maiores, mais fortes e talhados em pedra... Excerto do capítulo 4 do Terceiro livro de Ruínas vivas Iam carnear. A rês, vaquilhona osca de uns dois anos, boa de carnes, comprada ao Bento, já estava presa pelas aspas; escolheram o Jango para 252 matá-la; porém os cinchadores não conseguiam esticar convenientemente os laços, e a cena, complicada pelos acidentes do terreno, ia além da expectativa, impacientando a todos, gulosos de carne fresca a chiar ao fogo. Embolada, a cabeça gacha, de um lado, a língua pêndula, a babar-se em longos fios prateados, ela berrava escornando desajeitadamente o ar. Jango Souza, que a rodeava, de mangas arregaçadas e de faca em punho, a bainha de couro preto tenteado a bater contra o tirador de vaqueta, reluzente ao sol a folha bem afiada, tinha no rosto, não obstante o hábito, um ligeiro ríctus desmentindo-lhe a fleugma. E não se ajeitava, adiantando-se, retrocedendo, passando por debaixo das tranças do couro, indo a ferir e fugindo, à espera de momento oportuno para bem golpear. A uma ordem sua, um dos laçadores passou a trama ao tronco de uma árvore; o outro paleteou o cavalo: as duas cordas vibraram, tensas, no espaço, e a novilha parou, firmando as patas na grama revolta. Decorreu um instante de suprema imobilidade e apenas leves frêmitos percorriam os laços, animando-os de ondulações serpentinas. Queda, a terneira deu azo a que se lhe conchegasse o gaúcho, desgarronando-a, seguro à ponta da cola. Um dos cavalos, arisco, desviando-se, suxou o laço e a osca, apoiada na perna sã, de pelo desenrugado sobre a giba, à arqueadura da espinha, atirou uma violenta marrada, e só depois do cavaleiro dominar a besta foi possível a sangria. Mas, se o homem medira com certeza o jarrete, errou no golpe ao pescoço: ferida, a vaca ainda se manteve em pé, balouçando os cornos entre os laços remitidos e tentando escoucear com a perna retalhada, cujos músculos vãmente retesava; e só ao tirão seco de um dos ginetes abateu, escabujando, num jorro de sangue borbulhante. Devia-se renovar o corte; preparava-se já para fazê-lo Jango Souza; porém Miguelito, que despira, num ápice, o casaco, achegou-se com surpresa de todos, pois não o conheciam, curvou-se sobre o corpo estertorante e, friamente, suavemente, afundou-lhe o facão no sangradouro, torcendo-o para tassalhar o músculo cardíaco. Era decisivo, esse: à dor, convulsou-se a vítima num sobressalto de morte, encolhendo-se toda, com um mugido soluçado, num respiro ortopnéico de ar. As bordas sangrentas do talho, unindo-se, apertaram a lâmina cravada, cujo cabo repuxou a mão trigueira que o premava com os dedos recurvos, como grampos. Arrancada a folha enrojecida, gotejante, saiu cingindo nas cartilagens espadeladas, de onde, mais grosso, aos coágulos, solfejou um resto de cruor. Limpou-a Miguelito passando-a algumas vezes no couro arrepiado: luzia-lhe cerrada, por entre os lábios entreabertos, a dentadura forte, muito alva; e saíralhe à cara o gozo íntimo, inconscientemente feroz, algo de sensualidade profunda, ancestral e sinistra. A novilha, entretanto, agonizava, extinta a consciência num último impulso baldado de fuga espavorida. Sacudiu-a o derradeiro arquejo; inteiriçou-se, rígida; a língua, de lixa, esbranquiçada, caiu mais, para fora, endureceu de um lado e os olhos foram-se embaciando aos poucos, refletindo na retina, como em uma guache minúscula, o espetáculo da planície com os salsos próximos e a figurilha do matador, inclinado, o braço 253 estendido, a suster a arma, em que os raios de luz morrediça do ocaso deixavam agora, vez por outra, postremos revérberos. Um cachorro lambia docemente, às costelas, o sangue colado à pele, e, sobre a sangueira que empapava as ervas, o leitão de um dos carreteiros fuçava cheio de voracidade, coinchando. Foi além, avizinhou-se, introduziu o focinho, de cerdas úmidas de grúmulos rubros, na golada hiante, bafejando-a, arreganhando-a, remorado a princípio, numa carícia de gula mansa, depois rapidamente, a grunhir, sôfrego, às cabeçadas. Espantaram-no para tirarem o couro. Os tecidos, quentes, riscados, fundo, pelas facas, estremeciam ainda, meio vivos; fêveras crispavam-se; havia repuxamentos demorados de músculos, remexer, contrações de nervos... Uma irradiação postreira incendiava de todo cabo, no poente, as nuvens amontoadas; era mais terreno, atmosfera acima, atmosfera abaixo, o girar dos corvos contornando a carretama; adensava-se, da parte do arroio, o muro de sombra das árvores, de ramaria fundida na mesma soturna massa, impenetrável ao esguardo; e, à aproximação da treva, subia de ponto no acampamento o resfôlego de prazer da gente solta. Na praça formada pelos carros, acendera-se uma fogueira; negros, caboclos, homens brancos apertavam-se ao redor, atraídos pelos assados; manuseavam-se espetos; o bucho da rês, arrojado aos cães, exalava um cheiro acre de ervas esmoídas; e continuamente ressoava, entre risos, o lique-lique seco, áspero e frio das lâminas das facas passadas com rapidez nas chairas de aço. Comentários aos excertos de Ruínas vivas Os dois excertos transcritos procuram prioritariamente demonstrar o toque de artífice que o estilo de Maya revela. No primeiro caso, a sugestividade de contornos simbolistas e sensações de cunho impressionista delineiam o trecho. No segundo, coexistem vocabulário e sonoridade relacionados às elaborações textuais simbolistas com a força de recursos de origem naturalista. Marcado pela confluência de tendências românticas, realistas, simbolistas e do estilo de época naturalista, o estilo que se observa nos excertos consagra sua inclusão no período pré-modernista. Esse fenômeno pode igualmente ser constatado nos textos que integram o período. A produção literária de Lobato, de Lopes Neto, de Augusto dos Anjos, para citar apenas nomes largamente reconhecidos, se estriba nessas combinações. É natural, contudo, que, para cada texto e ou autor, seja possível identificarem-se algumas predominâncias. É exatamente o caso da sobressaliência dos toques simbolistas de sonoridade e sugestividade do primeiro excerto transcrito de Ruínas vivas, ainda que se evidencie, no todo, focalização descritiva. No segundo texto, o naturalismo ecoa sob a forma um pouco simbolista e um pouco romântica. De maneira semelhante, isso é observável nos textos dos autores anteriormente citados, aqui reproduzidos. 254 Como demonstra o exame da produção pré-modernista, o período literário se notabiliza pela busca de formas e de temas caraterizadores das identidades culturais das coletividades. Por esses meios, expressam-se as diversas maneiras de ser do Brasil. Observa-se que esse esforço já foi exercido pelos românticos brasileiros. Uma diferença destacável entre os recursos ideológicoestilísticos postos em prática pelos românticos e os praticados pelos prémodernistas é a maneira própria, mais localista do que individualista (caraterística poético romântica), em que os textos pré-modernistas se vazam. Precisamente essa diversidade, oriunda de formas próprias das diferentes coletividades culturais e da ausência de unidade ideológica, é que fundamenta a concepção de período literário para o Pré-modernismo, comparativamente ao que se concebe como escola literária. 255 Bibliografia crítico-teórica e de referência AMORA, Antônio S. O Romantismo. São Paulo: Cultrix, 1967. ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972. ASSIS BRASIL, L. A.; MOREIRA, M. E.; ZILBERMAN, R. (org.). Pequeno dicionário da literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Novo Século, 1999. BOSI, Alfredo. 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Porto Alegre: Alves-IEL-Edipucrs, 1994. ---oo0oo--- 257 Volume 3 Sumário Modernismo e Pós-modernismo Capítulo 7 MODERNISMO / 261 Manuel Bandeira / 263 Poética / 263 Nova poética / 265 O bicho / 266 O pardalzinho / 267 Mário de Andrade / 267 Ode ao burguês / 268 Agora eu quero cantar / 270 Macunaíma / 275 Vinícius de Moraes / 283 Soneto de fidelidade / 284 O operário em construção / 284 Drummond de Andrade / 290 Mãos dadas / 290 O novo homem / 290 Graciliano Ramos / 293 Vidas secas / 294 Cyro Martins / 300 Porteira fechada / 300 Estrada nova / 305 Jorge Amado / 314 Gabriela, cravo e canela / 314 Dyonélio Machado / 318 Os ratos / 319 Érico Veríssimo / 327 Olhai os lírios do campo / 328 O Continente / 331 Cyro dos Anjos / 337 Abdias / 337 258 Mário Quintana / 340 Os poemas / 341 Cartaz para uma feira do livro / 341 Capítulo 8 PÓS-MODERNISMO / 342 João Cabral de Melo Neto / 345 Catar feijão / 345 Graciliano Ramos: / 346 Morte e vida severina: Auto de natal pernambucano / 347 João Guimarães Rosa / 352 Grande sertão: veredas (excerto) / 352 Clarice Lispector / 359 A hora da estrela (excerto) / 359 Vanguardas poéticas / 362 Décio Pignatari / 362 Terra / 363 Ronaldo Azeredo / 363 Velocidade / 363 Manoel de Barros / 365 Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada / 365 Terceiro dia / 365 Mundo pequeno / 366 Ferreira Gullar / 368 Dentro da noite veloz / 368 Notícia da morte de Alberto da Silva / 375 Armindo Trevisan / 378 Oração por uma criança / 379 O lixeiro / 379 Prado Veppo / 384 Poema do plantão do hospital / 384 Cristo Homem / 385 Resolução / 385 O dia da caça / 386 O perdão / 386 A cadeira / 387 Os bonecos / 387 Apparicio Silva Rillo / 387 259 Pago vago / 387 Chico Buarque / 389 Pedro Pedreiro / 389 A televisão / 391 Soneto / 392 Moacyr Scliar / 393 O carnaval dos animais (conto Os leões) / 393 L. A. de Assis Brasil / 395 A prole do corvo (excerto) / 395 Manhã transfigurada (excerto) / 400 Donaldo Schüler / 405 O tatu (capítulo O monarca das coxilhas) / 405 João Antônio / 410 Leão-de-chácara (conto Zona) / 410 Sinval Medina / 414 Memorial de Santa Cruz (excerto) / 414 Tratado da altura das estrelas (excerto) / 420 Rubem Fonseca / 423 A grande arte (excerto) / 423 Patricia Bins / 429 Pele nua do espelho (excerto) / 429 Carlos Nejar / 431 Canga / 432 Affonso Romano de Sant’Anna / 433 Certeza / 433 Que país é este? / 434 Cavalcanti Proença / 437 Manuscrito holandês / 437 Heraclides Santa Helena / 443 Onze braças de campo e algumas sobras (conto homônimo) / 443 José Clemente Pozenato / 448 O quatrilho (excerto) / 448 João Ubaldo Ribeiro / 453 Livro de histórias (excerto do conto Já podeis da pátria filhos) / 453 Darcy Ribeiro / 455 Maíra (excerto) / 456 Tabajara Ruas / 460 Os varões assinalados (excerto) / 460 260 Charles Kiefer / 464 Quem faz gemer a terra (excerto) / 464 Bibliografia crítico-teórica / 466 Córpus antológico / 467 261 Capítulo 7 Composição montada para esta obra: Anúncio da SAM; figura feminina de Encontro (Lasar Segall); M. Bandeira; Memórias sentimentais de João Miramar; Oswald de Andrade; Abaporu (Tarsila do Amaral); sobre o Manifesto Pau-brasil; Antropofagia (Tarsila do Amaral); Monumento às Bandeiras (Victor Brecheret). MODERNISMO (1922-1945) Para iniciar esta breve teorização introdutória sobre o Moderismo, cabe distinguir semanticamente os substantivos modernismo e modernidade. Ambos provêm de modus hodiernus, i. é, modos (maneiras) hodiernos. A expressão modus hodiernus formou moderno, e o adjetivo (moderno) provocou a existência dos substantivos cujos significados estamos tentando elucidar. Moderno, portanto, se refere ao que ocorre na atualidade de quem fala. O adjetivo é utilizado já há pelo menos seiscentos anos. Modernidade, como a palavra diz, se refere à Idade Moderna. De acordo com concepção tradicional da História, a humanidade teria quatro fases de desenvolvimento histórico: Préhistória, Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna ou Modernidade. O sufixo ismo (usado para formar substantivos que nomeiam escolas, sistemas, crenças, conformações, origens) junto ao radical (modern-) passou a denotar a primeira escola literária nascida no século 20, no Brasil. O Modernismo brasileiro se desenvolveu a partir da chamada de Semana da Arte Moderna de São Paulo (13, 15, 17 de fevereiro de 1922). Desse episódio, que virou movimento, participaram, entre vários outros, p. ex., Mário de Andrade e Oswald de Andrade, pela literatura; Heitor Villa-Lobos, pela música; Victor 262 Brecheret, pela escultura; Di Cavalcanti (Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque Melo), pela pintura. O Modernismo, como escola literária, teve, segundo a crítica brasileira, duas fases ou dois estilos de época. A primeira, de 1922 a 1930, marcou-se pela combatividade a favor da libertação dos produtores de textos e dos próprios textos das formas mais ou menos rígidas que especialmente o Parnasianismo e o Simbolismo tinham estabelecido. Os participantes dessa proposta chamaramse genericamente de futuristas, porque se recusavam a produzir literatura sob os parâmetros tradicionais. Consideravam-se, pois, avançados, como se supusessem no futuro e se futuro fosse mais avançado que atualidade. (Nessa particularidade nocional, revela-se concepção positivista (ideologia do RealismoNaturalismo-Parnasianismo), o que, de algum modo, aponta a certa incoerência.) A tendência mais frequente na produção poética engajada nesse movimento foi a contrariedade às formas consagradas do estatuto literário e do estatuto linguístico. Tudo que apontasse ao passado era chamado de passadismo, e os representantes dessas formas literárias, de passadistas. Por isso, essa primeira fase costuma ser denominada destrutiva. A primeira fase modernista brasileira produziu especialmente poemas. Os poemas produzidos então desenvolveram temáticas preocupadas com novos estilos e assuntos sociais. Nas focalizações estilísticas, propuseram-se e discutiram-se as novas formas literárias a serem implantadas. Nas temáticas sociais, a preocupação com as desigualdades foi frequentemente abordada, especialmente quanto à condição operária. São dessa fase, p. ex., Poética de Manuel Bandeira e Agora eu quero cantar de Mário de Andrade, um em cada temática antes comentada. Essa primeira fase produziu também prosa, mas em quantidade bem menor. Em prosa, são dessa primeira fase Amar, verbo intransitivo (1927) e Macunaíma (1928), ambos de Mário de Andrade, por exemplo. Em seguida, os futuristas passaram a chamar-se de modernistas, que acabou sendo a forma mais conhecida para designá-los. A segunda fase, também conhecida como construtiva (ou reconstrutiva), teve desdobramentos. A produção poética seguiu dois caminhos. Por um, deu-se a consolidação da poesia modernista. Noutro, a produção manteve-se conservadora, em temas urbanos e rurais. Nalguns casos, ensaiou retornos a propostas estilísticas estabelecidas anteriormente. Na prosa, a segunda fase marcou-se especialmente pela construção do romance de trinta. O romance de trinta é uma sequência de produção romanesca que se tem denominado igualmente romance neorrealista brasileiro. Embora a denominação seja romance de trinta, essa sequência começou em 1928, com A bagaceira de José Américo de Almeida, e terminou em 1954, com Estrada nova de Cyro Martins. O romance de trinta trabalhou sobre duas temáticas gerais. A temática agrária discutiu a situação de sertanejos, caipiras, gaúchos, denominados em 263 geral peões, e a questão fundiária propriamente dita no Brasil. Marcaram o romance de trinta de temática agrária Graciliano Ramos, no Nordeste, e Cyro Martins no Sul. O outro veio do romance de trinta foi psicológico. Esse veio mostra relação com o romance realista machadiano. Cyro dos Anjos é um dos representantes renomados do romance de trinta de temática psicológica. A ideologia de sustentação do Modernismo é o Marxismo, como se pode constatar com evidência nos poemas Ode ao burguês de Mário de Andrade e Operário em construção de Vinícius de Moraes e no romance de trinta, mais abertamente, p. ex., em Seara vermelha (Jorge Amado) e Estrada nova (Cyro Martins). Primeira fase modernista (1922-1930)3 MANUEL Carneiro de Souza BANDEIRA Filho Manuel Bandeira nasceu em Recife (PE), em 1886. Faleceu em 1968, no Rio de Janeiro. Matriculou-se na Escola Politécnica, em São Paulo, pretendendo tornar-se arquiteto. Estudou também, à noite, desenho e pintura no Liceu de Artes e Ofícios. Seu primeiro emprego foi na Estrada de Ferro Sorocabana. Após isso, descobriu-se doente e foi para cidades menores, a fim de recuperar-se. Colaborou em diversas revistas, jornais e folhetins. Lecionou no Colégio Pedro II e na Faculdade Nacional de Filosofia. Sua obra é constituída de poesia, prosa e tradução. Eis alguns livros de poemas: Carnaval (1919), Libertinagem (1930), Poesias completas (1940) e Estrela da tarde (1960). Poética Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente [protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho [vernáculo de um vocábulo Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção 3 Há autores cuja obra dificilmente pode ser enquadrada numa única fase. Por questão de esclarecimento didático, contudo, usam-se dois critérios para esse enquadramento: o da representatividade da produção e o da predominância técnico-temática. 264 Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo. De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de cossenos secretário do amante [exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres etc. Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbados O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare – Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. (Libertinagem, 1930) Comentários ao poema Poética O termo poética, como substantivo, integra o vocabulário crítico-teórico da literatura, com o sentido de estudo do verso e da poesia em geral. Mais precisamente, aponta a estudo do ser da poesia e das formas de construir versos, i. é, poemas. Foi Aristóteles (384-322 a. C.) quem nos legou a primeira Poética, i. é, os primeiros estudos sobre a literatura de que se tem notícia no Ocidente. A palavra poética (do grego, poiticós) pode ser tomada como faculdade ou talento poético; a partir do verbo poetize (poetar), pode significar inventar, propor, compor. Depois do de Aristóteles, outros trabalhos foram produzidos e publicados, a partir do dele. Bandeira também partiu dessa tradição. Há bastantes diferenças, porém, entre esses textos anteriores e o do poeta recifense. O poeta brasileiro escreveu sua poética em versos e simultaneamente a aplicou no próprio poema que a constitui. Esse é diferencial de valor, porque, segundo a tradição, os textos literários se sequenciam exatamente por diferenciação e não por superação, i. é, um não anula outro da sequência, porque não o supera, mas todos se mantêm em igualdade de condições (pela diferença) perante o leitor, a quem cabe a decisão de lê-los, comentá-los, analisá-los e criticá-los. O poema Poética é constituído de dezenove versos assimétricos. A assimetria bem marcada revela adesão do poema às propostas modernistas de 1922. Mais que simples adesão, esse poema se mostra nuclear na construção da proposta modernista brasileira. A assimetria evidente propicia amostragem 265 das concepções estilísticas modernistas. Contrariamente ao que até então se praticava na poesia, os versos dos modernistas foram negadores (na própria forma que os consubstancia) das propostas estilísticas de escolas literárias que os antecederam. Assim, ao discurso expandido sucede a contenção e busca máxima de expressividade; à simetria, possibilitada pelas regras métricas e rímicas, sucede a (pelo menos) aparente despreocupação formal simétrica e tradicionalmente organizada. As estrofes do poema também são assimétricas, e a pontuação tradicional fica dispensada. Alguns versos são tão longos, que não cabem na linha do papel; outros são tão breves que são constituídos de única palavra (nesse caso, com duas sílabas poéticas). Com isso, o metro do poema fica abertamente irregular. O texto é sucinto: evita muitos verbos, adjetivos, advérbios. Vamos considerar a terceira estrofe para verificar-lhe a constituição sintática das orações. Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis O primeiro verso revela a utilização de maneira oral-popular de dizer. É forma usual nas inscrições em muros e paredes, como publicidade política principalmente. Supõe a elipse, p. ex., de quero que venham abaixo (que deixem de existir, que não sejam valorizados) os puristas, i. é, os parnasianos da língua. A tradição passadista passa a ser o centro do ataque dos futuristas. Os três versos subsequentes pressupõem a elipse de quero, proponho. No primeiro deles, está expressa a adesão à utilização do que a gramática normativa tradicional denominou barbarismo, i. é, palavras que deveriam ser desprezadas, por terem origem estranha à língua portuguesa. O segundo pede o uso de formas sintáticas diferentes das estabelecidas pelas normatizações a respeito. O terceiro prevê a construção de versos sem marcação métrica; portanto, sem construção de ritmo fundada na metrificação. As três propostas incluídas nessa estrofe estão contempladas ao longo do desenvolvimento do próprio poema. Não se suponha com isso que todas as normas passam a ser abolidas. O próprio poema propõe sua própria poética, ou seja, normas à construção de poemas modernistas. Nova poética Vou lançar a teoria do poeta sórdido. Poeta sórdido: Aquele em cuja poesia há marca suja da vida. Vai um sujeito, 266 Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem [engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, [salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama: É a vida. O poema deve ser como a nódoa no brim: Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero. Sei que a poesia é também orvalho Mas esse fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens [cem por cento e as amadas que envelheceram sem [maldade. (Belo Belo, 1948) Comentários ao poema Nova poética Nova poética constitui nova visão da poética do Modernismo, i. é, estabelece alguma revisão das concepções expressas no poema Poética. A teoria do “poeta sórdido” é a proposta da literatura como reflexão sobre o mundo, especialmente no que ele tem de sujo, aspetos da vida que não conhecem idealização. Naturalmente, essa visão já andou pelas teorizações e pelos textos da literatura antes do Modernismo, mas aqui tem caraterísticas um tanto peculiares, pelo menos no que para a literatura é fundamental: o estilo, a forma. Apesar da sordidez, que se possa observar, “a poesia [a literatura] é também orvalho”, i. é, pureza, simplicidade, sensação de paz. O bicho Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. (Belo Belo, 1948) Comentários ao poema O bicho O bicho é constituído de quatro estrofes, das quais três se mostram simétricas quanto ao número de versos. São contudo heterométricas e heterorrítmicas. A quarta quebra esse aspeto simétrico do poema. Esse é exemplo de texto poético cujo centro propositivo é ideológico, i. é, tem uma ideologia destacável, para além de sua constituição técnica. Isso é o que o 267 diferencia, sob esse prisma, dos dois anteriores, cuja proposta básica está vinculada a aspetos formais, i. é, estilísticos da literatura. Do ponto de vista ideológico, O bicho é evidente em si mesmo. À maneira de soneto, o último verso resolve abruptamente a preocupação ideológica do poema. Pardalzinho O pardalzinho nasceu Livre. Quebraram-lhe a asa. Sacha lhe deu uma casa, Água, comida e carinhos. Foram cuidados em vão: A casa era uma prisão, O pardalzinho morreu. O corpo Sacha enterrou No jardim; a alma, essa voou Para o céu dos passarinhos! Petrópolis, 10/3/1943. Comentários ao poema Pardalzinho O poema Pardalzinho é ideológica e tecnicamente uniestrófico. A única estrofe (física) é reforçada por versos que parecem apertados nas linhas, fazem um retângulo fechado: expressa-se assim a essencialidade da liberdade às aves. Constitui, portanto, pleonasmo, já que as palavras dizem exatamente isso. Observação: O poema Trem de ferro, de Manuel Bandeira, foi musicado por Tom Jobim (Antônio Carlos Jobim). Pode ser acompanhado na internete. MÁRIO Raul Morais de ANDRADE Nascido em São Paulo no ano de 1893, Mário de Andrade começou sua carreira artística dedicando-se à música. Formou-se em música no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, no qual mais tarde foi professor de História da Música. Seu contato com a literatura começou também cedo, através de críticas de arte que escrevia para jornais e revistas. Em 1917 saiu seu primeiro livro, sob o pseudônimo de Mário Sobral: Há uma gota de sangue em cada poema. Na condição de participante da Semana de Arte Moderna em 1922, Mário de Andrade se revelou líder. Publicou Pauliceia desvairada (1922), o primeiro livro de poemas do nosso Modernismo. A obra marca, portanto, o início da escola no Brasil. Lecionou por algum tempo na Universidade do Distrito Federal (de então) e exerceu vários cargos públicos ligados à cultura. Foi importante pesquisador do folclore brasileiro (que incorporou em algumas de suas obras). Teve participação importante nas principais revistas de caráter modernista: Klaxon, Estética, Terra 268 roxa e outras terras. Há várias edições das obras completas de Mário de Andrade. Faleceu em 1945, na sua São Paulo natal, vítima de ataque cardíaco. Ode ao burguês Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, o burguês-burguês! A digestão bem-feita de São Paulo! O homem-curva! O homem-nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! Eu insulto as aristocracias cautelosas! Os barões lampiões! Os condes joões! Os duques zurros! que vivem dentro de muros sem pulos; e gemem sangues de alguns mil-réis fracos para dizerem que as filhas da senhora falam francês e tocam os Printemps com as unhas! Eu insulto o burguês-funesto! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Fora os que algarismam os amanhãs! Olha a vida dos nossos setembros! Fará Sol? Choverá? Arlequinal! Mas à chuva dos rosais o êxtase fará sempre Sol! Morte à gordura! Morte às adiposidades cerebrais! Morte ao burguês-mensal! ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi! Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano! “– Ai, filha, que te darei pelos teus anos? – Um colar... – Conto e quinhentos!!! Mas nós morremos de fome!” Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma! Oh! purée de batatas morais! Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas! Ódio aos temperamentos regulares! Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia! Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados! Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos, sempiternamente as mesmices convencionais! De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia! Dois a dois! Primeira posição! Marcha! 269 Todos para a Central do meu rancor inebriante! Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio! Morte ao burguês de giolhos, cheirando religião e que não crê em Deus! Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico! Ódio fundamento, sem perdão! Fora! Fu! Fora o bom burguês!... (Pauliceia desvairada) Comentários ao poema Ode ao burguês Diferentemente do tratamento analítico dispensado aos poemas de Bandeira, relativamente ao poema Ode ao burguês a análise estará principalmente ligada à proposta ideológica. Isso não significa contudo que os aspetos formais modernistas não estejam contemplados nestes comentários. Considere-se inicialmente o título, depois de ter sido lido o poema inteiro. Ode (do grego, odi) é uma espécie de poema para ser cantado. Tradicionalmente, é um poema encomiástico. Nessa espécie estão, p. ex., os hinos. Como se percebe, no poema de Mário de Andrade aqui analisado não ocorre exatamente isso; ao contrário: é um texto satírico, sarcástico e irônico contra a figura do burguês, que começava então a surgir poderosa na Pauliceia do autor. Desse modo, pode-se concluir que a ode de Mário de Andrade é de fato uma antiode: uma ode ao contrário. Se for lido o título como seria pronunciado no Brasil, de modo geral, se ouviria algo como odiaoburguês, ou, mais claramente, ódio ao burguês. Essa leitura se mostra coerente com o texto do poema, no qual a palavra ódio é repetida diversas vezes. A presença do burguês como figura de malhação é explicável pelo fato de a ideologia que sustentou o Modernismo, o Marxismo, estar chegando ao Brasil. Para essa ideologia, o burguês é o vilão, porque foi a partir da atuação da burguesia em busca do lucro sobre o trabalho alheio que a ideologia engelianomarxista foi construída. Assim – parece – se explica o título. As duas primeiras estrofes centram-se na ideia de insulto ao burguês, em razão do apego dele ao dinheiro. Há referências também às formas físicas dele, adquiridas em razão dos costumes que mantém. A estrofe alude igualmente a preocupações com ascendência e aos cuidados para não perder o que possui. A terceira estrofe volta a esses temas, mas acrescenta a insensibilidade: segundo a estrofe, o burguês, preocupado com questões econômico-financeiras não percebe a vida. A quarta retoma alguns pontos já referidos e acrescenta preocupação com a aparência. A quinta consolida a temática do ódio, que já foi comentada quando se tratou do título. Nela estão incluídas importantes referências para o estudo da base ideológica do movimento Modernista: a voz poética determina o que fazer com o burguês: “De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia! / Dois a dois! Primeira posição! Marcha! / Todos para a Central 270 do meu rancor inebriante! / Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio! / Morte ao burguês de giolhos [...]”. O poema, portanto, nessa altura sugere e ou prevê a execução do burguês. A palavra “Central”, com inicial maiúscula, aponta ao agrupamento classista dos trabalhadores a partir da vitória da revolução bolchevista soviética (1917). A expressão “ódio vermelho” é também extremamente sugestiva. A última estrofe (no último verso) declara a saída de cena do burguês (mais ou menos como se enxotam cães) e ensaia um impropério. Essa aparente fúria contra a burguesia parece coerente, dada a sustentação ideológica do Modernismo. Mostra-se igualmente coerente, se for observada a sequência das grandes revoluções ideológicas da humanidade: primeiro, no centro estiveram os deuses; depois, os cleros; depois, as aristocracias; depois a burguesia; depois o proletariado. Vale dizer: o que se chamou de revolução do proletariado precisava assumir o poder (ou o lugar no poder) da burguesia, que o tomara da aristocracia. Agora eu quero cantar Agora eu quero cantar Uma história muito triste Que nunca ninguém cantou, A triste história de Pedro, Que acabou qual principiou. Não houve acalanto. Apenas Um guincho fraco no quarto Alugado. O pai falou, Enquanto a mãe se limpava: – É Pedro. E Pedro ficou. Ela tinha o que fazer, Ele inda mais, e outro nome Ali ninguém procurou, Não pensaram em Alcibíades, Floriscópio, Ciro, Adrasto, Que de tempo pra inventar! – É Pedro. E Pedro ficou. Pedrinho engatinhou logo Mas muito tarde falou; Ninguém falava com ele, Quando chorava era surra E aprendeu a emudecer. Falou tarde, brincou pouco, Em breve a mãe ajudou. Nesse trabalho insuspeito Passou o dia, e nem bem A noite escura chegou, Como única resposta Um sono bruto o prostrou. 271 Por trás do quarto alugado Tinha uma serra muito alta Que Pedro nunca notou, Mas num dia desses, não Se sabe por que, Pedrinho Para a serra se voltou: – Havia de ter, decerto, Uma vida bem mais linda Por trás da serra, pensou. Sineta que fere ouvido Vida nova anunciou; Que medo ficar sozinho, Sem pai, mesmo longínquo, sem Mãe, mesmo ralhando, tanta Piazada, ele sem ninguém... Pedro foi para um cantinho, Escondeu o olho e chorou. Mas depois foi divertido, Aliás prazer misturado, Feito de comparação. O menino roupa-nova Pegava tudo o que a mestra Dizia, ele não pegou! Porque!... Mas depois de muito Custo, a coisa melhorou. Ele gostava era da História natural, os Bichos, as plantas, os pássaros, Tudo entrava fácil na Cabecinha mal penteada, Tudo Pedro decorou. Havia de saber tudo! Se dedicar! descobrir! Mas já estava bem grandinho E o pai da escola o tirou. Ah que dia desgraçado! E quando a noite chegou, Como única resposta Um sono bruto o prostrou. Por trás da escola de Pedro Tinha uma serra bem alta Que o menino nunca olhou; Logo no dia seguinte Quando a oficina parou, Machucado, sujo, exausto, Pedrinho a escola rondou. E eis que de repente, não Se sabe por que, Pedrinho Para a serra se voltou: 272 – Havia de ter por certo Outra vida bem mais linda Por trás da serra! pensou. Vida que foi de trabalho, Vida que o dia espalhou, Adeus, bela natureza, Adeus, bichos, adeus, flores, Tudo o rapaz, obrigado Pela oficina, largou. Perdeu alguns dentes e antes, Pouco antes de fazer quinze Anos, na boca da máquina Um dedo Pedro deixou. Mas depois de mês e pico Ao trabalho ele voltou, E quando em frente da máquina, Pensam que teve ódio? Não! Pedro sentiu alegria! A máquina era ele! A máquina Era o que a vida lhe dava! E Pedro tudo perdoou. Foi pensando, foi pensando, E pensou que mais pensou, Teve uma ideia, veio outra, Andou falando sozinho, Não dormiu, fez experiência, E um ano depois, num grito, Louca alegria de amor, A máquina aperfeiçoou. O patrão veio amigável E Pedro galardoou, Pôs ele noutro trabalho, Subiu um pouco o ordenado: – Aperfeiçoe esta máquina, Caro Pedro! e se afastou. Era um cacareco de Máquina! e lá, bem na frente, Bela, puxa vida! bela, A primeira namorada De Pedro, nas mãos dum outro, Bela, mais bela que nunca, Se mexendo trabalhou O dia inteiro. Nem bem A noite negra chegou, O rapaz desiludido Um sono bruto prostrou. Por trás da fábrica havia Uma serra bem mais baixa Que Pedro nunca enxergou, 273 Porém no dia seguinte Chegando pra trabalhar, Não se sabe por que, Pedro Para a serra se voltou: – Havia de ter, decerto, Uma vida bem mais linda Por trás da serra, pensou. Oh, segunda namorada, Flor de abril! cabelo crespo, Mão de princesa, corpinho De vaca nova... Era vaca. Aquele riso que faz Que ri nunca me enganou... Caiu nos braços de quem? Caiu nos braços de todos, Caiu na vida e acabou. Com a terceira namorada, Na primeira roupa preta, Pedro de preto casou. E logo vieram os filhos, Vieram doenças... Veio a vida Que tudo, tudo aplainou. Nada de horrível, não pensem, Nenhuma desgraça ilustre Nem dores maravilhosas, Dessas que orgulham a gente, Fazendo cegos vaidosos, Tísicos excepcionais, Ou formando Aleijadinhos, Beethovens e heróis assim: Pedro apenas trabalhou. Ganhou mais, foi subindinho, Um pão de terra comprou. Um pão apenas, três quartos E cozinha, num subúrbio Que tudo dificultou. Menos tempo, mais despesa, Terra fraca, alguma pera, Emprego lá na cidade, Escola pra filho, ofício Pra filho, um, num choque de Trem, inválido ficou. – Sono! único bem da vida!... Foi essa frase sem força, Sem História Natural, Sem máquina, sem patente De invenção, que por derradeiro Pedro na vida inventou. E quando remoendo a frase, 274 A noite preta chegou, Pedro, Pedrinho, José, Francisco, e nunca Alcibíades, Um sono bruto anulou. Por trás da morada nova Não tinha serra nenhuma, Nem morro tinha, era um plano Devastado e sem valor, Mas um dia desses, sempre Igual ao que ontem passou, Pedro, João, Manduca, não Se sabe por que, Antônio, Para o plano se voltou: – Talvez houvesse, quem sabe, Uma vida bem mais calma Além do plano, pensou. Havia, Pedro, era a morte, Era a noite mais escura, Era o grande sono imenso; Havia, desgraçado, havia Sim, burro, idiota, besta, Havia sim, animal, Bicho, escravo sem história, Só da história natural!... Por trás do túmulo dele Tinha outro túmulo... Igual. Comentários ao poema Agora eu quero cantar Esse é um poema originalmente sem título. Por isso se usa o primeiro verso do poema à guisa de título. É também plausível denominá-lo Pedro, porque o símbolo metonímico central do poema é Pedro. Parece relevante observar que o poema fala em “cantar” e não contar “a história de Pedro”. O cantar escolhido faz lembrar os cantos de Gonçalves Dias. O canto – e não o poema – é a maneira mais simples de atingir a população comum. Durante e após a leitura é possível se observar essa tendência de focalização do povo comum e utilização de linguagem adequada. A proposta ideológica se aproxima da desenvolvida no poema anterior. O foco é a desigualdade das condições de vida dos trabalhadores relativamente às das camadas sociais que detêm o capital. Isso carateriza claramente a ideologia sustentadora do Modernismo. Ressalte-se a questão levantada a respeito da História e da História Natural frente ao escravo sem história e ao homem histórico. O Marxismo vem sendo estudado a partir da denominação (posterior a Marx e Engels) de materialismo história. Por essa teoria, em cada época histórica há grupos opressores e grupos oprimidos. No capitalismo, por exemplo, o capital oprime o trabalho. O modo de mudar essa situação seria pela revolução, ou seja, 275 rebelião das classes oprimidas. Por isso a História passa a ser tão importante. Quanto à História Natural, era a denominação que se utilizava para designar várias ciências, como a Biologia e suas subdivisões. Macunaíma (excerto do capítulo 9, Carta pras icamiabas) Ás mui queridas súbditas nossas, Senhoras Amazonas. Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis, São Paulo. Senhoras: Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de saudades e muito amor, com desagradável nova. É bem verdade que na boa cidade de São Paulo – a maior do universo, no dizer de seus prolixos habitantes – não sois conhecidas por “icamiabas”, voz espúria, sinão que pelo apelativo de Amazonas; e de vós, se afirma, cavalgardes ginetes belígeros e virdes da Hélade clássica; e assim sois chamadas. Muito nos pesou a nós, Imperator vosso, tais dislates de erudição porém heis de convir conosco que, assim, ficais mais heroicas e mais conspícuas, tocadas por essa plátina respeitável da tradição e da pureza antiga. Mas não devemos esperdiçarmos vosso tempo fero, e muito menos conturbarmos vosso entendimento, com notícias de mau calibre; passemos pois, imediato, ao relato dos nossos feitos por cá. Nem cinco sóis eram passados que de vós nos partíramos, quando a mais temerosa desdita pesou sobre Nós. Por uma bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã, que outrém grafara muraquitã, e, alguns doutos, ciosos de etimologias esdrúxulas, ortografam muyrakitan e até mesmo muraquéitã, não sorrias! Haveis de saber que este vocábulo, tão familiar às vossas trompas de Eustáquio, é quase desconhecido por aqui. Por estas paragens mui civis, os guerreiros chamam-se polícias, grilos, guardas-cívicas, boxistas, legalistas, mazorqueiros, etc.; sendo que alguns desses termos são neologismos absurdos – bagaço nefando com que os desleixos e petimetres conspurcam o bom falar lusitano. Mas não nos sobra já vagar para discretearmos “sub tegmine fagi”, sobre a língua portuguesa, também chamada lusitana. O que vos interessará mais, por sem dúvida, é saberdes que os guerreiros de cá não buscam mavórticas damas para o enlace epitalâmico; mas antes as preferem dóceis e facilmente trocáveis por pequeninas e voláteis folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro – o “curriculum vitae” da Civilização, a que hoje fazemos ponto de honra em pertencermos. Assim a palavra muiraquitã, que fere já os ouvidos latinos do vosso Imperador, é desconhecida dos guerreiros, e de todos em geral que por estas partes respiram. Apenas alguns “sujeitos de importância em virtude e letras”, como já dizia o bom velhinho e clássico frei Luís de Souza, citado pelo doutor Rui Barbosa, ainda sobre as muiraquitãs projetam as suas 276 luzes, para aquilatá-las de medíocre valia, originárias da Ásia, e não de vossos dedos, violentos no polir. Estávamos ainda abatido por termos perdido a nossa muiraquitã, em forma de sáurio, quando talvez por algum influxo metapsíquico, ou, qui lo sá, provocado por algum libido saudoso, como explica o sábio tudesco, doutor Sigmundo Freud (lede Froide), se nos deparou em sonho um arcanjo maravilhoso. Por ele soubemos que o talismã perdido estava nas dilectas mãos do doutor Venceslau Pietro Pietra, súbdito do Vice-Reinado do Peru, e de origem francamente florentina, como os Cavalcântis de Pernambuco. E como o doutor demorasse na ilustre cidade anchietana, sem demora nos partimos para cá, em busca do velocino roubado. As nossas relações atuais com o doutor Venceslau são as mais lisonjeiras possíveis; e sem dúvida mui para breve recebereis a grata nova de que hemos reavido o talismã; e por ela vos pediremos alvíçaras. Porque, súbditas diletas, é incontestável que Nós, Imperator vosso, nos achamos em precária condição. O tesouro que daí trouxemos, foi-nos de mister convertê-lo na moeda corrente do país; e tal conversão muito nos há dificultado o mantenimento, devido às oscilações do câmbio e à baixa do cacau. Sabereis mais que as donas de cá não se derribam a paulada, nem brincam por brincar, gratuitamente, senão que a chuvas do vil metal, repuxos brasonados de champagne, e uns monstros comestíveis, a que, vulgarmente, dão o nome de lagostas. E que monstros encantados, senhoras Amazonas!!! Duma carapaça polida e sobrosada, feita a modo de casco de nau, saem braços, tentáculos e cauda de ramígeros, de muitos feitios; de modo que o pesado engenho, deposto num prato de porcelana de Sêvres, se nos antoja qual velejante trirreme a bordeisjar água de Nilo, trazendo no bojo o corpo inestimável de Cleópatra. Comentários ao excerto do capítulo 9 de Macunaíma Carta pras icamiabas é o capítulo da rapsódia que, segundo Mário de Andrade em carta a Manuel Bandeira, mais lhe agradava. A tônica do capítulo é a questão da língua portuguesa relativamente às linguagens verbais brasileiras. O capítulo está pautado pela ironia. Macunaíma, originário da floresta, se encontra em São Paulo. Como está precisando de dinheiro, escreve às icamiabas, pedindo ajuda, quase socorro. Perturbado pelas mudanças que vai descobrindo entre sua cultura de origem e a paulistana, perde a alma, como haveria mais tarde de escrever Darcy Ribeiro, alegorizando situação análoga enfrentada pelo personagem Isaías no romance Maíra (1977). Macunaíma olha a pauliceia desvairada com olhos de quem vem do interior do Brasil. Tem dificuldade de reconhecer naquela vida – mas especialmente naquela fala – sua própria terra e ambiente cultural. Timbra sublinhadamente a questão da imitação de formas estranhas ao Brasil, ou seja, da falsa língua e da falsa cultura nacionais, estranhas ao que é próprio daqui, a 277 quem fala. Eis aí o ridículo que é sublinhado pelo capítulo. De resto, toda a narrativa da rapsódia pauta essa questão. Macunaíma (capítulo 12, Tequeteque, chupinzão e a injustiça dos homens) No outro dia Macunaíma acordou febrento. Tinha mesmo delirado a noite inteira e sonhado com navio. – Isso é viagem por mar, falou a dona da pensão. Macunaíma agradeceu e de tão satisfeito virou logo Jiguê na máquina telefone pra insultar a mãe de Venceslau Pietro Pietra. Mas a sombra telefonista avisou que não secundavam. Macunaíma achou aquilo esquisito e quis se levantar pra ir saber o que era. Porém, sentia um calorão coçado no corpo todo e uma moleza de água. Murmurou: – Ai... que preguiça... Virou a cara pro canto e principiou falando bocagens. Quando os manos vieram saber o que era, era sarampão. Maanape logo foi buscar o famoso Bento curandeiro em Beberibe que curava com alma de índio e água de pote. Bento deu uma aguinha e fez reza cantada. Numa semana o herói já estava descascando. Então se levantou e foi saber o que tinha sucedido pro gigante. Não tinha ninguém no palácio e a copeira do vizinho contou que Piaimã com toda a família fora na Europa descansar da sova. Macunaíma perdeu todo o requebrado e se contrariou bem. Brincou com a copeira muito aluado e voltou macambúzio pra pensão. Maanape e Jiguê encontraram o herói na porta da rua e perguntaram pra ele: – Quem matou seu cachorrinho, meus cuidados? Então Macunaíma contou o sucedido e principiou chorando. Os manos ficaram bem tristes de ver o herói assim e levaram ele visitar o Leprosário de Guapira, porém Macunaíma estava muito contrariado e o passeio não teve graça nenhuma. Quando chegaram na pensão era noitinha e todos já estavam desesperados. Tiraram uma porção enorme de tabaco dum cornimboque imitando cabeça de tucano e espirraram bem. Então puderam pensamentear. – Pois é, meus cuidados, você andou lerdeando, cozinhando galo, o gigante é que não havia de esperar, foi-se. Agora aguente a massada! Nisto Jiguê bateu na cabeça e exclamou: – Achei! Os manos levaram um susto. Então Jiguê lembrou que eles podiam ir na Europa também, atrás da muiraquitã. Dinheiro, inda sobravam quarenta contos do cacau vendido. Macunaíma aprovou logo porém Maanape que era feiticeiro imaginou, imaginou e concluiu: – Tem coisa milhor. 278 – Pois então desembuche! – Macunaíma finge de pianista, arranja uma pensão do governo e vai sozinho. – Mas pra que tanta complicação si a gente possui dinheiro à beça e os manos podem me ajudar na Europa! – Você tem cada uma que até parece duas! Poder a gente pode sim porém mano seguindo com arame do governo não é milhor? É. Pois então! Macunaíma estava refletindo e de repente bateu na testa: – Achei! Os manos levaram um susto. – Que foi! – Pois então finjo de pintor que é mais bonito! Foi buscar a máquina óculos de tartaruga um gramofoninho meias de golfe luvas e ficou parecido com pintor. No outro dia pra esperar a nomeação matou tempo fazendo pinturas. Assim: agarrou num romance de Eça de Queirós e foi na Cantareira passear. Então passou perto dele um cotruco andarengo muito marupiara porque possuía folhinha de picapau. Macunaíma deitado de bruços divertia-se amassando os tacurus das formigas tapipitingas. O tequeteque saudou: – Bom-dia, conhecido, como le vai, muito obrigado, bem. Trabalhando, não? – Quem não trabuca não manduca. – É mesmo. Bom, té-loguinho. E passou. Légua e meia adiante topou com um micura e lembrou de trabucar também um bocado. Pegou no gambazinho, fez ele engolir dez pratas de dois milréis e voltou com o bicho debaixo do braço. Chegando perto de Macunaíma, mascateou: – Bom-dia, conhecido, como le vai, muito obrigado, bem. Si você quer te vendo meu micura. – Que que eu vou fazer com um bicho tão pichento! Macunaíma secundou botando a mão no nariz. – Tem aca mas é coisa muito boa! Quando faz necessidade só prata que sai! Vendo barato pra você! – Deixa de conversa, turco! Onde que se viu micura assim! Então o tequeteque apertou a barriga do gambá e o bicho desistiu das dez pratinhas. 279 – Está vendo! Faz necessidade é prata só! Ajuntando a gente fica riquíssimo! Barato pra você! – Quanto que custa? – Quatrocentos contos. – Não posso comprar, só tenho trinta. – Pois então pra ficar freguês deixo por trinta contos pra você! Macunaíma desabotoou as calças e por debaixo da camisa tirou o cinto que carregava dinheiro. Porém só tinha a letra de quarenta contos e seis fichas do Cassino de Copacabana. Deu a letra e teve vergonha de receber o troco. Até inda deu as fichas de inhapa e agradeceu a bondade do tequeteque. Nem bem o mascate sovertera entre as sapupiras guarubas e parinaris do mato que já o micura quis fazer necessidade outra feita. O herói arredondou o bolso aparando e a porcaria caiu toda ali. Então Macunaíma percebeu o logro e abriu numa gritaria desgraçada, caminho da pensão. Virando uma esquina encontrou o José Prequeté e gritou pra ele: – Zé Prequeté, tira bicho do pé pra comer com café! José Prequeté ficou com ódio e insultou a mãe do herói porém este não fez caso não, deu uma grande gargalhada e foi seguindo. Mais adiante lembrou que ia indo pra casa zangado e pegou na gritaria outra vez. Os manos inda não tinham voltado da maloca do governo e a patroa veio no quarto pra consolar Macunaíma, brincaram. Depois de brincarem o herói pegou no choro. Quando os manos chegaram toda a gente se sarapantou porque eles tinham cinco metros de altura. Não vê que o governo estava com mil vezes mil pintores já encaminhados pra mandar na pensão da Europa e Macunaíma ser nomeado era mas só no dia de São Nunca. Ficava muito longe. O invento tinha favado e os manos ficaram compridos por causa do desaponto. Quando enxergaram o mano chorando, se assustaram bem e quiseram saber a causa. E como esqueceram o desaponto voltaram pro tamanho de dantes, Maanape já velhinho e Jiguê na força do homem. O herói fazia: – Ihihih! Tequeteque me embromou! Ihihih! Comprei micura dele, quarenta contos me custou! Então os irmãos se descabelaram. Agora não era possível mais irem na Europa não, porque possuíam só a noite e o dia. Levaram na prantina enquanto o herói esfregava o ólio de andiroba no corpo pros mosquitos não amolarem e adormecia bem. No outro dia amanheceu fazendo um calorão temível e Macunaíma suava que mais suava dum lado pra outro enraivecido com a injustiça do governo. Quis sair pra espairecer porém aquela roupa tanta aumentando o calor... Teve mais 280 raiva. Teve raiva por demais e maliciou que ia ficar com a butecaiana que é doença de raiva. Então exclamou: – Ara! Ande eu quente, ria-se a gente! Tirou as calças pra refrescar e pisou em cima. A raiva se acalmou no sufragante e até que muito satisfeito Macunaíma falou pros manos: – Paciência, manos! Não! Não vou na Europa não. Sou americano e meu lugar é na América. A civilização europeia de certo esculhamba a inteireza do nosso caráter. Durante uma semana os três vararam o Brasil todo pelas restingas de areia marinha, pelas restingas de mato ralo, barrancas de paranãs, abertões, corredeiras carrascos carrascões e chavascais, coroas de vazante boqueirões mangas e fundões que eram ninhos de geada, espraiados pancadas pedrais funis bocainas barroqueiras rasouras, todos esses lugares, campeando nas ruínas dos conventos e na base dos cruzeiros pra ver si não achavam alguma panela com dinheiro enterrado. Não acharam nada. – Paciência, manos! Macunaíma repetiu macambúzio. Jogamos no bicho! E foi na praça Antônio Prado meditar sobre a injustiça dos homens. Ficou lá encostado num plátano muito bem. Todos os comerciantes e aquele despropósito de máquinas passavam rentinho do herói grugunzando sobre a injustiça dos homens. Macunaíma já estava disposto a mudar o dístico pra: “Pouca saúde e muitos pintores os males do Brasil são” quando escutou um “Ihihih!” chorando atrás. Virou e viu no chão um tico-tico e um chupim. O tico-tico era pequetitinho e o chupim era macota. O ticotiquinho ia dum lado pra outro acompanhado sempre do chupinzão chorando pro outro dar de comer pra ele. Fazia raiva. O tico-tiquinho imaginava que o chupinzão era filhote dele mas não era. Então voava, arranjava um decumê por aí que botava no bico do chupinzão. Chupinzão engolia e pegava na manha outra vez: “Ihihih! Mamãe... telo decumê!... telo decumê!...” lá na língua dele. O ticotiquinho ficava azaranzado porque estava padecendo fome e aquele nhenhenhémnhenhenhém azucrinando ele atrás, diz-que “Telo decumê!... telo decumê!...” não podia com o amor sofrendo. Largava de si, voava buscar um bichinho uma quirerinha, todos esses decumês, botava no bico do chupinzão, chupinzão engolia e principiava atrás do ticotiquinho outra vez. Macunaíma estava meditando na injustiça dos homens e teve um amargor imenso da injustiça do chupinzão. Era porque Macunaíma sabia que de primeiro os passarinhos foram gente feito nós... Então o herói pegou num porrete e matou o ticotiquinho. Foi-se embora. Depois que andou légua e meia sentiu calor e lembrou de beber pinga pra refrescar. Trazia sempre num bolso do paletó uma garrafinha de pinga presa ao puíto por uma corrente de prata. Desarrolhou e chupitou de manso. Eis sinão quando escutou atrás um “Ihihih!” chorando. Virou sarapantado. Era o chupinzão. 281 – Ihihih! Papai... telo decumê!... telo decumê!... lá na língua dele. Macunaíma ficou com ódio. Abriu o bolso onde estava guardado aquilo do micura e falou: – Pois coma então! Chupinzão pulou na beira do bolso e comeu tudo sem saber. Foi engordando, virou num pássaro preto bem grande e voou pros matos gritando “Afinca! Afinca!”. É o Pai do Vira! Macunaíma seguiu caminho. Légua e meia adiante estava um macaco mono comendo coquinho baguaçu. Pegava no coquinho, botava no vão das pernas junto com uma pedra, apertava e juque! a fruta quebrava. Macunaíma veio e esgurejou com a boca cheia d’água. Falou: – Bom-dia, meu tio, como lhe vai? – Assim assim, sobrinho. – Em casa todos bons? – Na mesma. E continuou mastigando. Macunaíma ali, sapeando. O outro enquizilou assanhado: – Não me olhe de banda que não sou quitanda, não me olhe de lado que não sou melado! – Mas o que você está fazendo aí, tio! O macaco mono soverteu o coquinho na mão fechada e secundou: – Estou quebrando os meus toaliquiçus pra comer. – Vá mentir na praia! – Uai, sobrinho, si tu não dá crédito então pra que pergunta! Macunaíma estava com vontade de acreditar e indagou: – É gostoso é? O mono estalou a língua: – Chi! Prove só! Quebrou escondido outro coquinho, fingindo que era um dos toaliquiçus deu pra Macunaíma comer. Macunaíma gostou bem. – É bom mesmo, tio! Tem mais? – Agora se acabou mas si o meu era gostoso que fará os vossos! Come eles, sobrinho! O herói teve medo: – Não dói não? 282 – Qual, si até é agradável!... O herói agarrou num paralelepípedo. O macaco mono rindo por dentro inda falou pra ele: – Você tem mesmo coragem, sobrinho? – Boni-t-ó-tó macacheira mocotó! O herói exclamou empafioso. Firmou bem o paralelepípedo e juque! nos toaliquiçus. Caiu morto. O macaco mono caçoou assim: – Pois, meus cuidados, não falei que tu morrias! Falei! Não me escutas! Estás vendo o que sucede pros desobedientes? Agora: sic transit! Então calçou as luvas de balata e foi-se. Daí a pouco veio uma chuvarada que refrescou a carne verde do herói, impedindo a putrefação. Logo se formou um poder de correições de formigas guajuguajus e murupetecas pro corpo morto. O advogado Fulano atraído pelas correições topou com o defunto. Abaixou, tirou a carteira do cadáver porém só tinha cartão-de-visita. Então resolveu levar o defunto pra pensão, fez. Carregou Macunaíma nas costas e foi andando. Porém o defunto pesava por demais e o advogado viu que não podia com o peso. Então arreou o cadáver e deu uma coça de vara nele. O defunto ficou levianinho e o advogado Fulano pôde levá-lo pra pensão. Maanape chorou muito se atirando sobre o corpo do mano. Depois descobriu o esmagamento. Maanape era feiticeiro. Logo pediu emprestado pra patroa dois cocos-da-bahia, amarrou-os com nó-cego no lugar dos toaliquiçus amassados e assoprou fumaça de cachimbo no defunto herói. Macunaíma foi se erguendo muito desmerecido. Deram guaraná pra ele e daí a pouco matava sozinho as formigas que inda o mordiam. Estava tremendo muito porque por causa da chuvarada a friagem batera de repente. Macunaíma tirou a garrafinha do bolso e bebeu o resto da pinga pra esquentar. Depois pediu uma centena pra Maanape e foi até um chalé jogar no bicho. De-tarde quando viram, a centena tinha dado mesmo. E assim eles viveram com os palpites do mano mais velho. Maanape era feiticeiro. Comentários ao capítulo 12 de Macunaíma No cap. 12, são narrados vários pequenos episódios. Esses episódios não demonstram muita conexão entre si. A relação maior entre eles é a presença do personagem Macunaíma e o discurso que os constrói. A hilaridade também lhes é comum. O mais intrigante parece ser o episódio do tico-tico e do chupinzão. O chupinzão é o explorador desbordado, e o tico-tico, o que o sustenta. Por que então matar o tico-tico, que é o que faz Macunaíma? A resposta radica na ideologia do Modernismo. Permanecer servindo permanentemente quem nos suga e desgraça não é atitude digna de um herói modernista. Veja-se que no poema Agora eu quero cantar, em circunstância análoga, a de Pedro, lê-se: 283 “Havia, desgraçado, havia / Sim, burro, idiota, besta, / Havia sim, animal, / Bicho, escravo sem história, / Só da história natural!... / Por trás do túmulo dele / Tinha outro túmulo... Igual.” A história de Pedro, como se leu, é história de submissão. Mais claro: o poema propõe a inaceitação da dominação do capital sobre o trabalho e sugere o levante social. É possível fazer-se analogia desse poema com o Cachoeira de Paulo Afonso, de Castro Alves. No poema romântico, subjaz a sugestão segundo a qual a aceitação pacífica da escravidão por parte dos escravos jamais alteraria a situação. O que se lê em Agora eu quero cantar vai ser possível examinar também em Operário em construção de Vinicius de Morais, na segunda fase modernista. As marcas ideológicas identificáveis em Agora eu quero cantar e em Operário em construção apontam à ideologia que sustentou o Modernismo brasileiro. Tudo isso está conetado à atitude aparentemente estranha de matar o tico-tico, e não o vira-vira, que não constrói o próprio ninho, mas se aproveita do dos outros. Provavelmente, a conclusão mais interessante a ser obtida da leitura de Macunaíma é a atenção que o autor dispensou ao discurso elaborado no texto. Por discurso aqui se entende a especial e única organização da linguagem literária em determinado texto, a partir das possibilidades oferecidas pela língua. A extensão do título da rapsódia, o herói sem nem um caráter, é coerente com a proposta discursiva. O discurso em Macunaíma constitui generoso esforço de hibridação de falas e formas do Brasil, única maneira – parece – que Mário de Andrade vislumbrou para a construção da literatura brasileira, sem predominância de nenhum caráter cultural sobre os demais. Só dessa maneira – parece sugerir Mário de Andrade – haveria uma literatura que se poderia chamar de brasileira. Segunda fase modernista (1930–1945) Marcus VINÍCIUS de MORAES Vinícius de Moraes nasceu no Rio de Janeiro em 1913 e aí faleceu em 1980. Em 1933 publicou seu primeiro livro de poemas, O caminho para a distância. A obra poética de Vinícius de Moraes é dividida habitualmente em duas fases: uma de sentido místico, lírico e político, e outra mais sensual e de linguagem mais simples, que ele usou também nas composições musicais. Em 1954 iniciou-se como teatrólogo, com Orfeu da Conceição, que mais tarde virou filme, Orfeu do carnaval. Poesia completa e prosa (1998) reúne a produção literária de Vinícius de Moraes. Como diplomata, morou nos Estados Unidos, França e Uruguai. Após a promulgação do AI-5 (Ato Institucional n. 5), em 1968, editado pelo poder 284 ditatorial militar, o poeta foi aposentado compulsoriamente da carreira diplomática. A partir de então passou a se dedicar à música popular. Soneto de fidelidade De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento. E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive, Quem sabe a solidão, fim de quem ama, Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama, Mas que seja infinito enquanto dure. Comentários ao poema Soneto de fidelidade Soneto de fidelidade tem versos decassílabos de caraterísticas tradicionais dessa espécie de poema, salvo breves licenças nas posições do esquema rímico (como se pode constatar nas rimas finais dos tercetos). Sob o ponto de vista ideológico, o poema reflete sobre concepção existencialista da vida: a vida deve ser vivida enquanto vida presente e usufruto. Por esse caminho foi sendo criada a poesia lírico-amorosa desse momento. A chamada de música popular brasileira dessa época carregava toques penumbristas, cuja redenção é a vida presente, como se poderá constatar também em Mãos dadas de Drummond de Andrade. A esperança e a utopia continuaram a marcar o Modernismo na segunda fase. Na segunda fase, a manifestação social da literatura, especialmente em prosa, tende à denúncia das desigualdades e das más condições de trabalho dos operários rurais e urbanos. O operário em construção Era ele que erguia casas Onde antes só havia chão. Como um pássaro sem asas Ele subia com as casas Que lhe brotavam da mão. Mas tudo desconhecia De sua grande missão: Não sabia, por exemplo, 285 Que a casa de um homem É um templo sem religião Como tampouco sabia Que a casa que ele fazia Sendo a sua liberdade Era a sua escravidão. De fato, como podia Um operário em construção Compreender por que um tijolo Valia mais do que um pão? Tijolos ele empilhava Com pá, cimento e esquadria Quanto ao pão, ele o comia... Mas fosse comer tijolo! E assim o operário ia Com suor e com cimento Erguendo uma casa aqui Adiante um apartamento Além uma igreja, à frente Um quartel e uma prisão: Prisão de que sofreria Não fosse, eventualmente, Um operário em construção. Mas ele desconhecia Esse fato extraordinário: Que o operário faz a coisa E a coisa faz o operário. De forma que, certo dia À mesa, ao cortar o pão O operário foi tomado De uma súbita emoção Ao constatar assombrado Que tudo naquela mesa – Garrafa, prato, facão – Era ele quem fazia Ele, um humilde operário, Um operário em construção. Olhou em torno: gamela, Banco, enxerga, caldeirão, Vidro, parede, janela, Casa, cidade, nação! Tudo, tudo o que existia Era ele quem fazia 286 Ele, um humilde operário, Um operário que sabia Exercer a profissão. Ah, homens de pensamento Não sabereis nunca o quanto Aquele humilde operário Soube naquele momento! Naquela casa vazia Que ele mesmo levantara Um mundo novo nascia De que sequer suspeitava. O operário emocionado Olhou sua própria mão Sua rude mão de operário De operário em construção E olhando bem para ela Teve um segundo a impressão De que não havia no mundo Coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão Desse instante solitário Que, tal sua construção, Cresceu também o operário Cresceu em alto e profundo Em largo e no coração E como tudo que cresce Ele não cresceu em vão. Pois além do que sabia – Exercer a profissão – O operário adquiriu Uma nova dimensão: A dimensão da poesia. E um fato novo se viu Que a todos admirava: O que o operário dizia Outro operário escutava. E foi assim que o operário Do edifício em construção Que sempre dizia sim Começou a dizer não. E aprendeu a notar coisas A que não dava atenção: Notou que sua marmita 287 Era o prato do patrão Que sua cerveja preta Era o uísque do patrão Que seu macacão de zuarte Era o terno do patrão Que o casebre onde morava Era a mansão do patrão Que seus dois pés andarilhos Eram as rodas do patrão Que a dureza do seu dia Era a noite do patrão Que sua imensa fadiga Era amiga do patrão. E o operário disse: Não! E o operário fez-se forte Na sua resolução. Como era de se esperar As bocas da delação Começaram a dizer coisas Aos ouvidos do patrão. – Mas o patrão não queria Nenhuma preocupação – “Convençam-no” do contrário – Disse ele sobre o operário E ao dizer isso sorria. Dia seguinte, o operário Ao sair da construção Viu-se súbito cercado Dos homens da delação E sofreu, por destinado, Sua primeira agressão. Teve seu rosto cuspido Teve seu braço quebrado, Mas quando foi perguntado O operário disse: Não! Em vão sofrera o operário Sua primeira agressão. Muitas outras se seguiram Muitas outras seguirão. Porém, por imprescindível Ao edifício em construção Seu trabalho prosseguia 288 E todo o seu sofrimento Misturava-se ao cimento Da construção que crescia. Sentindo que a violência Não dobraria o operário, Um dia tentou o patrão Dobrá-lo de modo vário. De sorte que o foi levando Ao alto da construção E num momento de tempo Mostrou–lhe toda a região E apontando-a ao operário Fez-lhe esta declaração: – Dar-te-ei todo esse poder E a sua satisfação Porque a mim me foi entregue E dou-a a quem quiser. Dou-te tempo de lazer Dou-te tempo de mulher. Portanto, tudo o que vês Será teu se me adorares E, ainda mais, se abandonares O que te faz dizer não. Disse, e fitou o operário Que olhava e que refletia Mas o que via o operário O patrão nunca veria. O operário via as casas E dentro das estruturas Via coisas, objetos, Produtos, manufaturas. Via tudo o que fazia O lucro do seu patrão E em cada coisa que via Misteriosamente havia A marca de sua mão. E o operário disse: Não! – Loucura! – gritou o patrão, Não vês o que te dou eu? – Mentira! – disse o operário, Não podes dar-me o que é meu. E um grande silêncio fez-se Dentro do seu coração 289 Um silêncio de martírios Um silêncio de prisão Um silêncio povoado De pedidos de perdão Um silêncio apavorado Com o medo em solidão Um silêncio de torturas E gritos de maldição Um silêncio de fraturas A se arrastarem no chão. E o operário ouviu a voz De todos os seus irmãos Os seus irmãos que morreram Por outros que viverão. Uma esperança sincera Cresceu em seu coração E dentro da tarde mansa Agigantou-se a razão De um homem pobre e esquecido Razão porém que fizera Em operário construído O operário em construção. Comentários ao poema Operário em construção O operário em construção desenvolve a temática da relação capitaltrabalho. Faz isso, porém, de maneira um tanto diferente das usadas nos textos anteriores. A reflexão desenvolvida pelo poema está centrada na ideia da conscientização político-deológica dos operários, i. é, das pessoas subalternas, sem prestígio nem poder, na sociedade. A consciência da condição, ou o reconhecimento da real situação, é que poderá desencadear mudanças, a partir de atitudes, na linha de Agora eu quero cantar, de Mário de Andrade. Os grupos sociais sem acesso aos benefícios do trabalho que especialmente esses mesmos grupos produzem é o mote fundamental das reflexões críticoideológicas dessa literatura. Construção, no texto em estudo, significa construção, fabricação de alguma coisa. Significa também, principalmente, a construção da consciência de classe entre o operariado, de modo que, a partir dessa conscientização, seja possível construir a luta de classes, o aperfeiçoamento, o justiçamento social. 290 Carlos DRUMMOND de ANDRADE Drummond de Andrade nasceu em 1902 em Itabira (MG) e faleceu em 1987, no Rio de Janeiro. Criou-se em fazenda. Estudou em Itabira, Friburgo e Belo Horizonte; diplomou-se em Farmácia; lecionou Geografia; exerceu o jornalismo e ocupou cargos públicos desde 1929. A partir de 1933 residiu no Rio. Trabalhou no Ministério da Educação e no Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Fundou A revista, em 1925, em que expôs a missão que entendia caber ao escritor. Algumas obras dele: A rosa do povo (1945), Viola de bolso (1952), 50 poemas escolhidos pelo autor (1956), Boitempo & A falta que ama (1968) – livros de poemas; Confissões de Minas (1944), Cadeira de balanço (1966), Os dias lindos (1977) – prosa. Mãos dadas Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. Comentários ao poema Mãos dadas Semelhantemente ao Soneto de fidelidade, Mãos dadas procura refletir sobre a circunstância do mundo plausível presente. Não o seduzem o passado nem o futuro. Tampouco interessam mecanismos sublimação, misticismo e fuga. A esperança, unida à solidariedade, possibilita, segundo o poema, que a humanidade caminhe de “mãos dadas”. O novo homem O homem será feito em laboratório. Será tão perfeito 291 como no antigório. Rirá como gente beberá cerveja deliciadamente, caçará narceja e bicho do mato. Jogará no bicho, tirará retrato com o maior capricho. Usará bermuda e gola roulée. Queimará arruda indo ao canjerê, e do não-objeto fará escultura. Será neoconcreto se houver censura. Ganhará dinheiro e muitos diplomas, fino cavalheiro em noventa idiomas. Chegará a Marte em seu cavalinho de ir a toda parte mesmo sem caminho. O homem será feito em laboratório, muito mais perfeito do que no antigório. Dispensa-se amor, ternura ou desejo. Seja como for (até num bocejo) salta da retorta um senhor garoto. Vai abrindo a porta com sorriso maroto: “Nove meses, eu? Nem nove minutos.” Quem já concebeu melhores produtos? A dor não preside sua gestação. Seu nascer elide 292 o sonho e a aflição. Nascerá bonito? Corpo bem talhado? Claro: não é mito, é planificado. Nele, tudo exato, medido, bem posto: o justo formato, o standard do rosto. Duzentos modelos, todos atraentes. (Escolher, ao vê-los, nossos descendentes.) Quer um sábio? Peça. Ministro? Encomende. Uma ficha impressa a todos atende. Perdão: acabou-se a época dos pais. Quem comia doce já não come mais. Não chame de filho este ser diverso que pisa o ladrilho de outro universo. Sua independência é total: sem marca de família, vence a lei do patriarca. Liberto da herança de sangue ou de afeto, desconhece a aliança de avô com seu neto. Pai: macromolécula; mãe: tubo de ensaio, e, per omnia secula, livre, papagaio, sem memória e sexo, feliz, por que não? pois rompeu o nexo da velha Criação, eis que o homem feito em laboratório sem qualquer defeito 293 como no antigório, acabou com o Homem. Bem feito. Comentários ao poema O novo homem Bandeira falou em quintanares para referir-se a certo tipo de textos compostos por Mário Quintana. Consideram-se em geral os quintanares frasespoemas: breves, simples e de grande intensidade significativa. Por exemplo: “Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem”. Quintana intitulou esse microtexto Para um portal de biblioteca. A crítica chamou de versiprosa o estilo de certo tipo de textos produzidos por Drummond de Andrade. Como o nome pretende dizer, trata-se de textos simples, rápidos, no limite da oralidade, construídos em versos, geralmente para serem publicados em jornais. Marcam-se também como crônicas jornalísticas, i. é, tematizam fatos, fenômenos, constatações do dia-a-dia. Assim é que se poderia introduzir a leitura de Novo homem. Com a iminência do advento da fecundação humana in vitro, na época, surgiram surpresa e preocupação. Parece que o destino do homem tende ao perigo, a modificações extraordinariamente sérias, a ponto de, como se constata na leitura do poema, descaraterizar o próprio ser humano. O novo homem “acabou com o Homem” diz o penúltimo verso. Observe-se que no primeiro verso o substantivo “homem” aparece grafado com inicial minúscula; no penúltimo, em referência à espécie humana, com inicial maiúscula. “Bem feito” é o que se lê no último verso. A leitura, portanto, tem duas possibilidades justificadas: O novo homem acabou com o homem (que era) bem feito, i. e, gerado e gestado como deve ser uma pessoa; o incessante afã humano de buscas de novidades, sejam quais forem, levou-o a autodestruir-se – “bem feito” pra ele, que não se comporta como homem: faltam-lhe resignação, autorreconhecimento de limites e humildade. GRACILIANO RAMOS de Oliveira Graciliano Ramos nasceu em 1892 na cidade de Quebrângulo, no sertão alagoano. Viveu em Viçosa e Palmeira dos Índios, Maceió (AL), Buíque (PE) e Rio de Janeiro. Trabalhou como jornalista. Em 1933 foi publicado Caetés, sua estreia, em composição desde 1925. No ano seguinte, publicou São Bernardo. Em março de 1936, acusado de conspiração no levante comunista de 1935, foi preso em Maceió e enviado a Recife e daí ao Rio de Janeiro, com outros 115 presos. O país estava sob a ditadura de Vargas e do coronel Filinto Müller. Depois de libertado, passou a trabalhar em jornais do Rio de Janeiro. 294 Recebeu o prêmio Literatura Infantil, do Ministério da Educação, com A terra dos meninos pelados. Em 1938, publicou Vidas secas; em 1944, Histórias de Alexandre. Em abril de 1952, viajou à Tchecoslováquia e à Rússia, onde teve alguns de seus romances traduzidos. Visitou também a França e Portugal. Viajou depois a Buenos Aires, em busca de tratamento médico. Faleceu no Rio de Janeiro em 1953. Nesse ano foi publicado Memórias do cárcere, cujo capítulo final não chegou a ser escrito. Vidas secas (capítulo Fabiano) Fabiano curou no rasto a bicheira da novilha raposa. Levava no aió um frasco de creolina e, se houvesse achado o animal, teria feito o curativo ordinário. Não o encontrou, mas supôs distinguir as pisadas dele na areia, baixou-se, cruzou dois gravetos no chão e rezou. Se o bicho não estivesse morto, voltaria para o curral, que a oração era forte. Cumprida a obrigação, Fabiano levantou-se com a consciência tranquila e marchou para casa. Chegou à beira do rio. A areia fofa cansava-o, mas ali, na lama seca, as alpercatas dele faziam chape-chape, os badalos dos chocalhos que lhe pesavam no ombro, pendurados em correias, batiam surdos. A cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a direita e para a esquerda. Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô e outros antepassados mais antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as mãos. E os filhos já começavam a reproduzir o gesto hereditário. Chape-chape. Os três pares de alpercatas batiam na lama rachada, seca e branca por cima, preta e mole por baixo. A lama da beira do rio, calcada pelas alpercatas, balançava. A cachorra Baleia corria na frente, o focinho arregaçado, procurando na catinga a novilha raposa. Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera. Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao binga, pôs-se a fumar regalado. – Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta. 295 Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas, como viviam em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra. Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando: – Você é um bicho, Fabiano. Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. Chegara naquela situação medonha – e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha. – Um bicho, Fabiano. Era. Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto, passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã. Viera a trovoada. E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e oferecera os seus préstimos, resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o e entregara-lhe as marcas de ferro. Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou as quipás, os mandacarus e os xiquexiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, sinha Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra. Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco. Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de passagem, de hóspede. Sim senhor, hóspede que se demorava demais, tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite. Deu estalos com os dedos. A cachorra Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe as mãos grossas e cabeludas. Fabiano recebeu a carícia, enterneceu-se: – Você é um bicho, Baleia. Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia 296 para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. Uma das crianças aproximou-se, perguntou-lhe qualquer coisa. Fabiano parou, franziu a testa, esperou de boca aberta a repetição da pergunta. Não percebendo o que o filho desejava, repreendeu-o. O menino estava ficando muito curioso, muito enxerido. Se continuasse assim, metido com o que não era da conta dele, como iria acabar? Repeliu-o, vexado: – Esses capetas têm ideias... Não completou o pensamento, mas achou que aquilo estava errado. Tentou recordar o seu tempo de infância, viu-se miúdo, enfezado, a camisinha encardida e rota, acompanhando o pai no serviço do campo, interrogando-se debalde. Chamou os filhos, falou de coisas imediatas, procurou interessá-los. Bateu palmas: – Ecô! ecô! A cachorra Baleia saiu correndo entre os alastrados e quipás, farejando a novilha raposa. Depois de alguns segundos voltou desanimada, triste, o rabo murcho. Fabiano consolou-a, afagou-a. Queria apenas dar um ensinamento aos meninos. Era bom eles saberem que deviam proceder assim. Alargou o passo, deixou a lama seca da beira do rio, chegou à ladeira que levava ao pátio. Ia inquieto, uma sombra no olho azulado. Era como se na sua vida houvesse aparecido um buraco. Necessitava falar com a mulher, afastar aquela perturbação, encher os cestos, dar pedaços de mandacaru ao gado. Felizmente a novilha estava curada com reza. Se morresse, não seria por culpa dele. – Ecô! ecô! Baleia voou de novo entre as macambiras, inutilmente. As crianças divertiram-se, animaram-se, e o espírito de Fabiano destoldou. Aquilo é que estava certo. Baleia não podia achar a novilha num banco de macambira, mas era conveniente que os meninos se acostumassem ao exercício fácil – bater palmas, expandir-se em gritaria, seguindo os movimentos do animal. A cachorra tornou a voltar, a língua pendurada, arquejando. Fabiano tomou a frente do grupo, satisfeito com a lição, pensando na égua que ia montar, uma égua que não fora ferrada nem levara sela. Haveria na catinga um barulho medonho. Agora queria entender-se com sinha Vitória a respeito da educação dos pequenos. Certamente ela não era culpada. Entregue aos arranjos da casa, regando os craveiros e as panelas de losna, descendo ao bebedouro com o pote vazio e regressando com o pote cheio; deixava os filhos soltos no barreiro, 297 enlameados como porcos. E eles estavam perguntadores, insuportáveis. Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha. – Está aí. Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais e nunca ficaria satisfeito. Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão o mais arrasado era o seu Tomás da bolandeira. Por quê? Só se era porque lia demais. Ele, Fabiano, muitas vezes dissera: – “Seu Tomás, vossemecê não regula. Para que tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros.” Pois viera a seca, e o pobre velho, tão bom e tão lido, perdera tudo, andava por aí, mole. Talvez já tivesse dado o couro às varas, que pessoa como ele não podia aguentar verão puxado. Certamente aquela sabedoria inspirava respeito. Quando seu Tomás da bolandeira passava, amarelo, sisudo, corcunda, montado num cavalo cego, pé aqui, pé acolá, Fabiano e outros semelhantes descobriam-se. E seu Tomás respondia tocando na beira do chapéu de palha, virava-se para um lado e para outro, abrindo muito as pernas calçadas em botas pretas com remendos vermelhos. Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras difíceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo. Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e livros, mas não sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem remediado ser cortês. Até o povo censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele. Ah! Quem disse que não obedeciam? Os outros brancos eram diferentes. O patrão atual, por exemplo, berrava sem precisão. Quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha porque podia descompor, e Fabiano ouvia as descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-se e prometia emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha dúvida? Fabiano, uma coisa da fazenda, um traste, seria despedido quando menos esperasse. Ao ser contratado, recebera um cavalo de fábrica, perneiras, gibão, guarda-peito e sapatões de couro, mas ao sair largaria tudo ao vaqueiro que o substituísse. Sinha Vitória desejava possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que era 298 doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os botaria para fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem de baixo de um pau. Olhou a catinga amarela, que o poente avermelhava. Se a seca chegasse, não ficaria planta verde. Arrepiou-se. Chegaria, naturalmente. Sempre tinha sido assim, desde que ele se entendera. E antes de se entender, antes de nascer, sucedera o mesmo – anos bons misturados com anos ruins. A desgraça estava em caminho, talvez andasse perto. Nem valia a pena trabalhar. Ele marchando para casa, trepando a ladeira, espalhando seixos com as alpercatas – ela se avizinhando a galope, com vontade de matá-lo. Virou o rosto para fugir à curiosidade dos filhos, benzeu-se. Não queria morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver terras, conhecer gente importante como seu Tomás da bolandeira. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar com ela, sentir-se com força para brigar com ela e vencê-la. Não queria morrer. Estava escondido no mato como tatu. Duro, lerdo como tatu. Mas um dia sairia da toca, andaria com a cabeça levantada, seria homem. – Um homem, Fabiano. Coçou o queixo cabeludo, parou, reacendeu o cigarro. Não, provavelmente não seria homem: seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia. Mas depois? Fabiano tinha a certeza de que não se acabaria tão cedo. Passara dias sem comer, apertando o cinturão, encolhendo o estômago. Viveria muitos anos, viveria um século. Mas se morresse de fome ou nas pontas de um touro, deixaria filhos robustos, que gerariam outros filhos. Tudo seco em redor. E o patrão era seco também, arreliado, exigente e ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru. Indispensável os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para o gado, consertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não calejassem, teriam o fim de seu Tomás da bolandeira. Coitado. Para que lhe servira tanto livro, tanto jornal? Morrera por causa do estômago doente e das pernas fracas. Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito... Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Não sabia. Seu Tomás da bolandeira é que devia ter lido isso. Livres daquele perigo, os meninos poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos. Agora tinham obrigação de comportar-se como gente da laia deles. Alcançou o pátio, enxergou a casa baixa e escura, de telhas pretas, deixou atrás os juazeiros, as pedras onde se jogavam cobras mortas, o carro de bois. 299 As alpercatas dos pequenos batiam no chão branco e liso. A cachorra Baleia trotava arquejando, a boca aberta. Àquela hora sinha Vitória devia estar na cozinha, acocorada junto à trempe, a saia de ramagens entalada entre as coxas, preparando a janta. Fabiano sentiu vontade de comer. Depois da comida, falaria com sinha Vitória a respeito da educação dos meninos. Comentários ao capítulo Fabiano de Vidas secas Vidas secas constitui experiência inovadora no romance brasileiro. Mesmo para o romance de trinta, que tentou revigorar a forma realista de romance, mas às vezes com técnicas românticas incluídas, Vidas secas representa variada gama de inovações. Sob o ponto de vista estrutural, os capítulos estão centrados em personagens e episódios. Os personagens fazem a conexão entre os capítulos, que se fecham semelhantemente a contos. Central no capítulo em estudo parece ser a reflexão do personagem Fabiano. Fabiano, como se constata, não é o narrador, mas é sob sua perspectiva que a narrativa flui. Fabiano reflete em voz alta: “– Fabiano, você é um homem”. Em seguida, envergonha-se do que dissera e reconsidera: “– Um bicho, Fabiano”. Adiante, quando Baleia lhe lambe as mãos, Fabiano diz para ela: “Você é um bicho, Baleia”. Vendo-se mais na condição de Baleia do que na de seu Tomás da bolandeira, Fabiano considera-se mais bicho que homem. O fato de Baleia lhe lamber as mãos, imediatamente antes de ele dizer que ela é um bicho, remete à condição social que o aflige: sua dependência ao patrão, sua subjugação ao soldado amarelo, ao fiscal de impostos da prefeitura, todos injustos, arbitrários e violentos. Mais adiante, ainda nesse capítulo, ele admite sua condição de homem, fundado na esperança de mudar seu rumo de vida. É o anúncio subliminar da utopia da igualdade social que se fez novamente forte, no romance de trinta. Vidas secas pode ser lido, com coerência, como o romance que discute, entre outros assuntos, a situação limiar entre a condição da vida e da sobrevivência. Trabalha, portanto, sobre a temática já encontrada em Agora eu quero cantar e outros textos da época. Pode-se examinar isso em Vidas secas, tanto do ponto de vista da sobrevivência da condição de homem num ambiente hostil, como foi feito anteriormente, quanto da sobrevivência da vida individual das pessoas, nesse tipo de ambiente. Por essa razão se justificam, p. ex., a ausência de nomes próprios nos filhos do casal, que são indicados apenas como o “menino mais novo” e o “menino mais velho”. Fabiano, em situação de desespero, chega mesmo a admitir morte prematura do mais velho, para que não atrapalhasse a viagem a pé da família pelo sertão estorricado, porque o menino estava exausto e não mais conseguia caminhar. 300 Baleia, que é uma cadela, tem nome (estranho nome, aliás, para vivente do sertão nordestino brasileiro): lembra pujança, poder e mar. Contrariamente, os meninos, apesar da condição humana, não os têm. Eis aí a questão que esclarece a leitura dos limiares, acima discutida. Baleia caça e come restos, ossos. Os meninos não ajudam na subsistência; diferentemente de Baleia, apenas consomem. Não seria essa uma forte razão de eles não terem a distinção do nome próprio, em situação subumana, em que a sobrevivência é central? CYRO dos Santos MARTINS Cyro Martins nasceu em Quaraí (RS), município limítrofe com Artigas (Uruguai), na fronteira sudoeste, na Campanha gaúcha, em 1908. Faleceu em 1995 em Porto Alegre (RS). Formou-se em Medicina em Porto Alegre e especializou-se em Psicanálise em Buenos Aires. A produção intelectual do autor é constituída de ficção (romances e contos) e ensaios nas áreas da psiquiatria, da psicanálise e da crítica literária. Tem obras traduzidas para o espanhol e para o alemão. Do conjunto da obra do autor, é especialmente conhecida a trilogia do gaúcho a pé. A trilogia é formada pelos romances Sem rumo (1937), Porteira fechada (1944) e Estrada nova (1954) e trata da condição social do homem do campo do Rio Grande do Sul, no século 20. Cyro Martins tem sido considerado o mais autêntico autor do romance de trinta sobre assuntos campeiros no Rio Grande do Sul. Outras obras de Cyro Martins: Campo fora (1934); O príncipe da vila (1982); O professor (1988) – ficção; A criação artística e a psicanálise (1970), Escritores gaúchos (1976), O mundo em que vivemos (1983) e Páginas soltas (1994) – ensaios. Em Porto Alegre têm sede o Instituto Cyro Martins, centro de psiquiatria e psicoterapia, e o CelpCyro, Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise, homenagens e extensões do trabalho literário e profissional do autor. Porteira fechada (excerto do capítulo 2) João Guedes, um dos assíduos frequentadores do boliche do capitão, mudara-se da campanha havia três anos. Três anos de pobreza na cidade bastaram para o degradar. Ao morrer, não tinha vintém nos bolsos e fazia dois meses que saíra da cadeia, onde estivera preso por roubo de ovelha. A história da sua desgraça se confunde com a da maioria dos que povoam a aldeia de Boa Ventura, uma cidadezinha distante, triste e precocemente envelhecida, situada nos confins da fronteira do Brasil com o Uruguai. 301 Essa história começou numa manhã, no tempo em que João Guedes ainda era morador da campanha. Levantara, como de costume, ao clarear do dia. Logo ao pisar fora da porta, foi festejado pelo Amigo, um cusquinho malhado, já velhusco e trôpego, mas se conservando ladino e de confiança. Ao contato da aragem fina, estirou os braços e bocejou, estralando as juntas, num espreguiçamento que foi uma desajeitada e agreste saudação à aurora. Depois agradou o companheiro de madrugadas. – Buenas, Amigo! O cãozinho pôs-se de pé sobre as patas traseiras, esfregando a cola na terra, as mãozinhas dobradas, os olhos miúdos apertados, franzindo o focinho e ganindo como num choro, mas de alegria. Retribuindo tamanha festa, Guedes palmeou-lhe a cabeça e se deixou lamber, antes de seguir o caminho que tinha em mira na direção da pipa. Esta, a pipa de arrastar água, era um barril de vinho nacional, reatado com arame sobre uma forquilha de açoita-cavalo. Ao chegar lá, agarrou a vasilha, uma lata de compota de abacaxi, permanentemente emborcada sobre o saco dobrado que tapava a boca do barril. Encheu em seguida a bacia de folha amassada que vazava e que, fazia tempos, se mantinha tembleque em cima dum lavatório de três pernas, enferrujado, enclenque e amarrado ao tronco dum cinamomo para que os bichos não o derrubassem. Meteu as mãos n’água e lavou a cara, terminando por passar as palmas molhadas, de diante para trás, no cabelo crescido e duro. Depois, enxaguou a boca e cuspiu longe o jorro, que caiu em esguicho, fazendo um barulhinho esparramado de grão atirado ao terreiro, logrando as galinhas. Sem demora, dirigiu-se para o galpão, um galpãozinho de três paredes, aberto para o Norte. Agachou-se no lugar do fogo, chegou as pontas dos tições apagados da véspera e amontoou entre eles umas palhas secas de milho. Lascou um fósforo e esperou com um prazer primitivo a labareda que não demorou a se erguer, lambendo com fome o picumã da chaleira. Abancado num cepo, enquanto aguardava o chiado para principiar o mate, Guedes espichou frouxamente a perna esquerda, meteu a mão no bolso e tirou os avios de fumar. Sem pressa, picou o amarelinho, esfregou-o na palma da mão, sovou a palha, enrolou o crioulo e o prendeu numa brasa solita, que se gastava à toa no borralho. O Amigo se postara em frente, na sua atitude habitual de “mirante” que às vezes se distrai e pega no sono. Guedes planejava capinar nesse dia o eito de batata doce, ameaçado de invasão pelo ervaçal. E também, antes que o inverno embrabecesse, barrear o rancho, pelo menos as paredes que davam para o Sul. Enfim, ocupação não faltava. Mas felizmente ainda se achava com forças para qualquer trabalho, por pesado que fosse. 302 Quando chupava o quarto mate e o sol vinha nascendo, apareceu a Maria José. Logo atrás surgiram o Lelo, a Tita e a Isabel, ambas mais velhas que o rapaz, que não passava dos doze anos. Tinham ficado na cama as duas menores, Picucha e Aurora. Depois de estarem todos reunidos durante alguns momentos, Maria José mandou o filho manguear as vacas mansas, enquanto ela tomava uns mates com o marido. Lelo se mexeu sem vontade, fazendo beiço, mas foi. Estava habituado ao ar livre e ao sereno nos pés descalços. Não gostava, porém, daquele serviço, que constituía uma das suas obrigações diárias: botar vaca de manhã e de tarde. Andar à toa pelo campo, a cavalo ou a pé mesmo, isso, sim, o divertia. A mãe o seguia com olhar vigilante, enquanto o pai, de cabeça baixa, chupando a bomba, trazia para entre os joelhos a Picucha, a menorzinha de todas, que recém viera lá de dentro. Nisto, a Tita falou: – Lá apontou um. Atenderam todos na direção que o dedo da menina mostrara. Guedes se levantou. E depois de observação demorada, declarou não conhecer o que vinha vindo e acrescentou ainda que lhe parecia não ser gente de por ali. A esta voz, Maria José e as filhas se retiraram. O gaúcho botou fora um pouco de erva e encilhou o mate para esperar o forasteiro. Como dava tempo, pegou a vassoura de guanxuma e deu uma varrida rápida, por alto, em redor do fogo, amontoando o cisco num canto. Feito isso, pôs-se a olhar de novo, imaginando quem seria. Chapéu... não soube explicar como era o chapéu, casaco de couro, botas lustrosas, cavalo gordo... Não, era debalde, não conhecia. Não era dali o sujeito. Só depois que o homem chegou na frente da casa foi que ele viu que se tratava do seu Júlio Bica e não escondeu a satisfação de revê-lo, depois de uma ponchada de anos, pois o fazendeiro pouco parava na estância, vivendo mais na cidade ultimamente. – Coisa das filhas, que estão se parando moças. São elas que me puxam pra lá – explicou Júlio Bica , sem necessidade, só para se mostrar agradável. Apesar da insistência de Guedes, o fazendeiro não quis passar para a salinha do rancho, preferindo ficar ali mesmo, no galpão. Não era homem de cerimônia, em qualquer parte estava bem, principalmente perto do fogo. – Se le agrada... Guedes ofereceu-lhe um mochinho de três pés, baixo, acomodando-se ele no cepo de cortiça. Em seguida apanhou a cuia e recomeçou a cevar o chimarrão, bastante intrigado com a presença do outro em sua casa, apesar de serem lindeiros. Júlio Bica era dos fazendeiros mais fortes do município e homem muito falado. Vinha se expandindo assombrosamente nos últimos tempos, a ponto de 303 dobrar a extensão de campo em pouco mais de dois anos. Sendo moço e ambicioso, imaginava-se aonde poderia chegar se continuasse nesse tranco. Chuparam uns mates em silêncio. Guedes não achava o que dizer, e o outro aguardava um “a propósito”. Finalmente, entesando o peito no conforto do casaco de couro e com um ar de broma de quem quer usar de franqueza sem constranger, o fazendeiro tocou em cheio no assunto. – Então, já sabe que lhe botei pra fora daqui? Guedes aturdiu-se com a nova, ficando a bolapé na conversa. De tantos anos que morava ali, quase se esquecera que aquele pedacinho de campo não lhe pertencia, que ele não passava dum simples arrendatário. Por isso, custou a vir à tona e, quando veio, foi para dizer: – Puxa, que sogaço! Júlio Bica, que se calara, espreitando o efeito das suas palavras, fez uma pergunta condescendente, em tom de admiração: – Mas o seu Bento não lhe avisou nada? – Faz muitos dias que não vejo ele. Acredito mesmo que não esteja em casa, que ande para a cidade. O estancieiro sabia perfeitamente que o outro ignorava tudo, pois o negócio fora fechado dois dias antes, em Boa Ventura. Entretanto, diante do desapontamento de Guedes, deixou-se tomar de um vago sentimento de remorso e de pena, meio arrependido do arranco inicial. Mas esse estado durou pouco. Em seguida reagiu contra a própria fraqueza: “Que diabo, negócio é negócio!” Bobagens, sentimentalismos não abalariam em nada o seu plano: forçar o arrendatário a desocupar o campo o quanto antes. Guedes ainda manifestou estranheza pelo fato de seu Bento, um homem sério, ter realizado um negócio daqueles sem lhe avisar de nada, sendo ele seu arrendatário. O fazendeiro assumiu ares circunspectos para responder, vagueando o olhar no ambiente acanhado do galpãozinho. Ao que se dizia, o homem andava mal e decerto por isso não quis perder a pechincha. Guedes que visse bem, aquele era um campo de segunda, e ele dera dezoito contos a quadra. Sim, o Bento fizera um negocião, não restava dúvida. Era opinião geral. Tinha até medo de estar passando por bobo Comentários ao excerto do capítulo 2 de Porteira fechada Composta de três romances, a trilogia ou o ciclo do gaúcho a pé constitui momento decisivo do romance de trinta no Rio Grande do Sul. O termo ciclo tem sido preferencialmente usado, no caso da obra de Cyro Martins, a exemplo do ciclo da seca (O quinze, Vidas secas, Gabriela, cravo e canela e outros) e do ciclo da cana-de-açúcar (A bagaceira, Menino de engenho, Usina e outros). 304 Porteira fechada é o segundo romance do ciclo (depois de Sem rumo e antes de Estrada nova). Empregando recursos diletos ao romance de trinta, o discurso procura focalizar a fala na forma mais comum e caraterística de determinado meio cultural. A sequência dos capítulos está na ordem tradicional de causa-efeito. A proposta ideológica predominantemente defendida é a discussão da condição de abandono do homem comum da campanha gaúcha, as injustiças sociais que sofre, pobre e desprotegido. Há mesmo, em alguns momentos, certa tendência a retratos instantâneos, apanágio do Naturalismo. Como a concepção que perpassa esta antologia não acolhe a noção de literatura como retrato, mas como reflexão sobre o mundo, essa tendência do romance de trinta aponta a aproximação com o estilo naturalista. No chamado de romance de trinta justapõem-se ou se amalgamam formas realista-naturalistas e até formas românticas. Por essa razão, o romance de trinta é também conhecido como romance neorrealista brasileiro. O pequeno trecho lido narra o momento em que o gaúcho, que não é proprietário, mas arrendatário de pequena extensão de campo, é informado de que a terra que usa para trabalhar acaba de trocar de proprietário. É o novo proprietário que lhe vem dar a notícia. A caraterização dos personagens vai evidenciando suas tendências e intuitos. Separam-se maniqueistamente o personagem do bem do personagem do mal. O mal está no lado de quem é proprietário poderoso, quase sempre, o que estabelece alguma semelhança com alguns textos do Romantismo. O romance põe algum relevo também na avaliação da concepção de êxodo rural, mais comum nos meios de comunicação. Os fazendeiros apenas vão para a cidade; os pobres promovem o êxodo. O êxodo aqui, porém, aparece provocado pela ganância dos latifundiários. A partida de Guedes para a periferia da cidade, com cinco filhos e mulher, já sinaliza o fim degradante e ou trágico que espera os personagens. Porteira fechada (capítulo 22) A tarde desse dia, nos campos, caiu serena, sem um frêmito. O sol descambava devagar, refletindo-se nas sanguinhas cheias, cantantes, irisando as espumas de sapo, reluzindo nos capinzais crescidos, nos fios do aramado, na chapa das lagoas. Pendia sobre a campanha uma claridade tênue de céu lavado. Os animais saíam para os altos a sorver o frescor das pastagens úmidas. Perdizes assobiavam contentes entre as moitas. Bandos de avestruzes vagavam, catando bichinhos à flor da terra. Longe de Boa Ventura, lá no fundo duma estância, numa invernada de dez quadras de sesmaria, lotada de bois, defrontavam-se três taperas: a do Bentinho, a do João Guedes e a da Gertrudes. Sobravam algumas árvores, algumas 305 pedras e os sinais de moradia humana no chão. Nada mais. Os bois gostavam de lamber aquela terra. Aquilo agora era um rincão despovoado. Não se avistava um vulto de campeiro, não se ouvia um latido de cachorro numa porta de toca, não tremulava um pala endomingado, não chiava uma carreta, os arados não rompiam a terra. Mas que engorde dava aquela invernada! Para um fim de safra, então, já com caídas para o inverno, não havia campo que se lhe igualasse. Seiscentos novilhos pastavam folgadamente entre as altas cercas de sete fios de madeirama de lei que a tapavam. O sol entrou sem grandes esplendores. A noitinha caiu suavemente. Que paz naqueles campos! Comentários ao capítulo 22 de Porteira fechada Esse é o fim do romance. As taperas marcam o afastamento dos antigos moradores, expulsos pelo latifúndio. É uma forma de ver a relação opositiva capital-trabalho. A sustentação ideológica é pois coerente com a escola. “Que paz naqueles campos!” A paz que sobrevém é a da ausência da vida: “Não se avistava um vulto de campeiro, não se ouvia um latido de cachorro numa porta de toca, não tremulava um pala endomingado, não chiava uma carreta, os arados não rompiam a terra”. São cinco orações, cujos cinco verbos estão acompanhados de advérbios de negação. O derradeiro período do texto, portanto, recorre à ironia, para alcançar os objetivos estilístico e ideológicos do romance. Estrada nova (capítulo 30) Depois que o Dr. Serafim, o delegado, os brigadianos, Lobo e Demenciano foram embora, a vida na Estância Velha tentava recobrar sua rotina, ainda bastante abalada. Os mensuais saíram pra o campo, para uma percorrida por perto. O capataz os mandara encilhar os cavalos e sair, só pra que não ficassem sebeando no galpão, com o sol alto. O peão caseiro foi cortar lenha no picadeiro. O chofer, sim, esse privilegiado sesteava na garagem. E o cachorro velho caduco, o outrora temido Carranca, modorrava no mormaço do galpão aberto. Miguel, pelo visto, não saíra, porque o seu cavalo lá estava embaixo dum cinamomo. Ele não andaria longe, provavelmente pelas mangueiras, provando a firmeza dos moirões e verificando se as cordas das cercas estavam bem puxadas. Lá dentro, no pátio fechado, as mulheres entregavam-se às lidas costumeiras, um pouco mais quietas que nos outros dias. Teodoro encerrara-se na salinha do oitão, de cara feia, os dedos ocupados em fazer palitos com o seu canivete muito afiado, um atrás do outro, o coração oprimido por pressentimentos vagos. A sobra duma tristeza flutuava no ar 306 parado. Algo ruíra. O seu feudo? Não que houvesse ruído lá fora, com estrondo. Muito pior, no seu íntimo, silenciosamente. Para Anastácia, o velho estava apenas emburrado. Era mais um burro, entre os tantos da tropilha. E ela já sabia de anos, esses burros se amansavam sozinhos. O melhor era deixá-los que se empanturrassem nas touceiras de capim-limão das fúrias caladas do Coronel. Para Dona Almerinda... Bem, ela, uma pessoa plácida, rezadeira, confiante e temente a Deus... Ela sentia que aquele rebuliço todo provocara um transtorno no Teodoro. Onde iriam parar as coisas, por ora não atinava. Estava com cuidados por ele. Mas seriam simples burros, os tradicionais, familiares a todos da casa, o sentimento que o oprimia ante a constatação de que se criara uma situação constrangedora, capaz de alterar definitivamente a sua vida, dando por terra com os últimos resquícios do seu prestígio distrital e da sua fama de homem bom? Complicações de família, assim, imediatas, não as tinha, embora... Bem, os filhos, criados, casados, ricos, despreocupados do ganho diário, gozavam a fortuna longe. Só de vez em quando se lembravam deles, os velhos. Casualmente havia poucos dias, uma raridade!, recebera uma carta do Ataliba, o mais velho, contando-lhe as maravilhas e peripécias da viagem que fizera de automóvel de Porto Alegre a São Paulo. Tudo narrado num tom brincalhão, leviano, de quem já está com o mundo no papo. Não concordava em absoluto com o caminho de esbanjamento por onde enveredara aquele rapaz, criado na moleza e na abundância. Alentado pelas suas fracassadas ambições caudilhescas, pensara fazer dele, aproveitando-lhe a estampa e a simpatia à primeira vista, um advogado, um político, um deputado, mas o tiro lhe saíra pela culatra. E Ataliba, como o outro, o Aluísio, não passavam hoje de homens fúteis, criançolas irresponsáveis. E quem sabe ainda, porque o mundo dá tantas voltas, se um dia não iriam botar fora a fortuna herdada e acabar por aí nomais, como uns pobres diabos? Conhecia exemplos... Pensariam que ele era eterno? Para ele, o seu mundo, o mundo em que criara os filhos, já estava se alterando, deteriorando-se, no sentido de não oferecer mais aquela segurança de futuro tranquilo, de antigamente. Seria legítimo esse pensar ou matutava assim porque estava triste? Qualquer voz secreta lhe dizia que, daqui por diante, para os da geração dos seus filhos, seria preciso aligeirar o passo para não tropeçar. Uma flecha de sol morrente pousou no retrato do Coronel Januário. De cada vez que isso acontecia, era levado a olhar para trás, ao arrepio da estrada da sua vida, tendo pena de si mesmo às vezes, com orgulho, outras. Teodoro contemplou demoradamente a fisionomia do cunhado, analisando-lhe os traços. Não era de agora a consciência que possuía de que os intentos acariciados na mocidade de igualá-lo e substituí-lo haviam malogrado. Durante muito tempo atribuíra esse fracasso, desculpando-se intimamente, à falta de certos atributos físicos, o timbre convincente da fala, a 307 penetração do olhar que parecia bandear as almas sem ferir, a barba, tão bem casada com o aprumo do porte, até o jeito dele divisar longe a cavalo do alto duma coxilha, tudo enfim que fazia duma grandeza natural e impunha à primeira vista a figura de Januário. À medida que corriam os anos, a velhice chegava e as esperanças minguavam, iam-se acentuando suas dessemelhanças com o modelo. E não só no corpo, também no moral. Reconhecia agora, mordendo o beiço amargurado, que nunca tivera a coragem, o desprendimento, o cavalheirismo, o tino político e a convicção de propósitos que distinguiam a personalidade do cunhado. Na verdade, enriquecera mais que Januário, era dono de maior extensão de campo, tinha mais gado, mais dinheiro disponível nos bancos, porém o sonho caudilhesco de chefia política fora só desandando com o tempo. Em 23 perdera uma oportunidade única, por vacilação, por falta de astúcia e por medo, valha a verdade. Entretanto, apesar desses contratempos anteriores, com a fortuna que acumulara, era pra ninguém lhe pisar no poncho ali no distrito, talvez no município. Para isso, porém, necessitava dispor de gente, ser homem de círculo. Consolava-o, no entanto, a certeza de que o seu caso não era isolado, pois sabia, isso se comentava, que nenhum grande fazendeiro da fronteira contava mais com um eleitorado apreciável. Todos, sem sobrar um pra remédio, haviam cavado o vazio em torno de si. Era o castigo da ambição desmedida, reconhecia desapontado. Tinham corrido os agregados, o vizindário miúdo, reduzido o número de peães, não se importando mesmo com a sorte dos pobres. Claro, de vez em quando um gesto bonzão. Mas isso não chegava. Não é que a gente tenha ficado muito pior que os de dantes. Puxa, no seu tempo de guri e de mocito ouviu contar cada história de judiaria de estancieiro! Não haveria de ser de graça que corria mundo, na boca do povo, aquele causo bonito-triste do Negrinho do Pastoreio, a mentira-verdade mais verdadeira que ele já conheceu. Pois bem, taí, recebiam agora a paga do que fizeram. Daí, quem sabe, seria bem assim? Fizeram e não fizeram, os tempos fizeram... Os tempos fazem tanta coisa! Hoje, por exemplo, os campeiros antigos, como o Janguta e os seus descendentes que já mal conheceram cavalo, andam estropeando os pés nos pedregulhos das cidades. E nós, fazendeiros, que já não temos muito o que fazer a cavalo, andamos de auto. Também vamos indo ou já estamos por lá. Engraçado, até parece que a campanha, aquela campanha linda e livre de se camperear de antigamente, assim que se demudava, foi enjoando os Jangutas e os seus Teodoros e tocando com eles rumo à cidade. O remédio agora era aguentar na fibra aquele baita tirão, legítimo tirão de atrás. E irem morrer no povo, juntos, acolherados por um fadário igual-desigual, os Jangutas e os seus Teodoros, como peixe fora d’água, como ressaca de arroio, que apodrece sem nenhum proveito em cima dos barrancos. Mas o mundo velho não para. E entre o décimo oitavo palito e o décimo nono, foi completando o seu pensamento: é verdade que, de vez em quando, apeia (o mundo) para compor os arreios... E também às vezes, no bom da galopeada, a cincha corre pras virilhas, o pingo corcoveia, e o ginete que se agarre com força no santo-antônio! 308 O coronel largou o canivete e os palitos, mirou mais uns instantes o retrato de Januário, sorriu, fez uma careta. Parecia estar fazendo pouco de alguém. Dele mesmo? Do cunhado e chefe? Não, o mundo, o mundo grande, o mundo que ele ouvia pelo rádio, esse não iria parar, a não ser para dois dedos de prosa. E em seguida, de novo, continuaria a bater estrada, descendo canhadas, subindo coxilhas, varando a nado arroios cheios. Simplesmente porque o mundo não podia parar. O que mudava eram os sistemas de vida. O seu já era bem diferente daquele do tempo do coronel Januário. E dali pra frente, que seria o sistema imperante nos dias dos seus filhos... Bem, lhe cortava a alma prosseguir... Aqueles rapazes, se não se precatassem, e pelo visto não iriam se precatar, de repente cairiam de bunda no chão e deslizariam lançante abaixo. Teodoro pôs-se de pé, pesado, doído, deu alguns passos indecisos pela sala em penumbra, depois abriu a porta, recebeu na cara a aragem da tardinha, e, numa súbita resolução, esquecido momentaneamente da longa charla com seus adentros, gritou forte para fora: – Miguel! O capataz respondeu logo, como se estivesse postado desde horas em ponto estratégico, à espera daquele chamado. – E o Janguta e a mulher e a filha? – Já se foram. – Como? – A pé. – A pé? Então, você me deixa alguém sair a pé da minha estância? – Quando vi, patrão, eles já iam longe, mal se enxergando os vultos. O que chamou a atenção foi o grito dos quero-queros. Saíram fugidos. – E pra completar, mais esta! Atrás do galpão, o negrinho da cozinheira não estava brincando de estância e, se o fazendeiro o surpreendesse naquele momento, não desconfiaria que ele não sonhava em ser um dia seu igual, dono de léguas de campo e milhares de cabeças. Ele estava brincando, mas era de polícia. Prendera um comunista e judiava dele para que confessasse a quem tinha matado e roubado ou a quem planejava matar e roubar. Já lhe havia dado muitos coronhaços na cabeça, posto de braços estendidos, estaqueado dois palmos acima do chão, atirado num lagoão fundo com uma corda no pescoço, numa madrugada fria e, como o sujeito teimava em manter-se calado, ameaçava capá-lo. Inocências vingativas de criança!... Durante o dia, a conversa no galpão fora só isso. O Lobo, então, se esparramou contando proezas de crueldade. O negrinho ouviu tudo aquilo atento, meio se escondendo, fulo, sem fôlego, num susto só, e ficou depois o resto do dia imaginando o outro lado das coisas... 309 Manuel, um mensual novato, vinha a trotezinho rumo às casas, tocando por diante uma vaca com terneiro abichado. Saíra pra o campo, sem que o capataz o mandasse, de propósito, para pensar. Voltava decidido a pedir arreglo de contas. Ficara amedrontado com o que vira e ouvira na fazenda aquele dia. Não ia dizer pra ninguém o motivo de ir embora, pra não dar na vista, e se mandaria sorrateiro na madrugada seguinte, a pé, porque nem cavalo tinha. Manuel nunca saíra daquelas imediações. Era cria de por ali nomais. Nascera, piá, atrás “daquele” cerro, um pouco adiante do finado umbu da Estância Velha. Tinha dezenove anos, não servira ainda no exército e talvez nem viesse a servir, porque não era registrado. Não conhecia letra, não conhecia mulher, não conhecia outros pagos. Seus pés nunca viram botas. O índio vago, que se escondia naquela aparência de songamonga, acordara de repente. Manuel resolvera correr mundo... Pra onde e por onde? Pra bem longe, por esses cafundós do deus-dará! Quem sabe se pelo município de Alegrete?!... Teodoro, durante a vagarosa caminhada que empreendera ao redor do estabelecimento para arejar a cabeça, depois de muito perguntar-se coisas a si mesmo, tomara uma resolução grave. Ia fazer como a maioria dos fazendeiros – se mandar de muda para a cidade e só viria ali de vez em quando, de visita, por dois ou três dias. Miguel conhecia muito bem o seu sistema e cuidaria da fazenda com capricho. E as safras seriam boas. Pelo menos enquanto o seu sistema vigorasse. De volta, parou um momento na porta da frente, olhando o poente, mais calado que antes. Que saudade do seu umbu! Em seguida, dando as costas para os tormentos e sentindo-se mais firme nos estribos, entrou. Logo avistou Dona Almerinda sentada na cadeira de balanço, no pátio lajeado, tomando mate doce servido por Anastácia. Os ponteiros do relógio de Dona Almerinda estavam parados! Seria oportuno comunicar-lhe naquela hora sua decisão? Ela parecia calma, o pensamento longe, decerto nos filhos, uns ingratos. Por que não deixála aninhada na sua quietude, depois de tantas tormentas, umas sobre as outras? Sua presença, embora de semblante sereno, cortou a espontaneidade das duas mulheres. Almerinda olhou pra ele com uma expressão condoída. Anastácia afastou-se, indo recostar-se na parede da cozinha. – Me dá um copo d’água, Anastácia! – disse Teodoro, com uma maciez que não lhe era comum. Ao mesmo tempo pensava: garantido que o diabo da china já havia de estar farejando o que lhe passava pela cabeça. Aquilo era um azougue. – Grácias, estava bem fresca. Anastácia branqueou os olhos com espanto. Ué, o que estaria para acontecer, santo Deus? Não tinha lembrança de lhe ouvir um muito obrigado, por mais que ela lhe servisse com o melhor jeito do mundo. 310 Teodoro percorria comovidamente, também sentado na sua cadeira de balanço, com a sensação de estar abrindo os olhos, o pátio grande e limpo, a parreira carregada de uvas verdes, prometendo... as copadas altas dos cinamomos e entre os ramos, perseguindo-se e chilreando, os últimos passarinhos contentes antes do anoitecer. A madressilva do portãozinho, tão decorativa e perfumosa! E do outro lado da tela, as galinhas que se recolhiam ao poleiro, encerrando a jornada. Era uma vergonha, mas, pelo menos para ele mesmo, não devia calar o sentimento. Estava com vontade de chorar. Chorar por conta da mudança, da saudade que iria sentir da sua casa, daqueles descampados, do seu umbu, dos seus cavalos, alguns envelhecendo junto com ele... Do seu prestígio perdido e, sobretudo, da sua fama de homem bom que se fora águas abaixo! Um gato manhoso lhe pulou no colo. Dona Almerinda e Anastácia pasmaram ao vê-lo acariciar, lacrimoso, o dorso fremente do bichano. Janguta, a mulher e a filha caminhavam dês das quatro da tarde e ainda se encontravam distantes da última divisa do Coronel Teodoro. Iam agora enterrando os pés nas cinzas do campo queimado. – Horre, desgraçado! – Bem feito, animal! – Que pena que não queimasse o resto! A mancha negra, vista a pé, impressionava muito mais. Dava medo, pela imensidão. A invernada de luxo do Coronel transformara-se num deserto, sequer um ruído de bicho entre macegas. Nenhum cavalo, nenhuma rês, nenhuma avestruz naquela terra queimada, nenhum dorminhoco gingando naquele voo de se desmanchar no ar saturado de cinza. Eles pestanejavam, esfregavam as vistas, tapavam o nariz, apuravam os passos, que rendiam pouco. O chapadão não tinha fim. Janguta, de fôlego curto, sentia a canseira aumentar. Era como se estivesse se afogando num mar de cinzas. As mulheres, mais fortes, se adiantavam. Viam o sol morrer, na tarde muito calma, num esbanjo de cores que era um mistério. De repente, Janguta ergueu a cabeça, encorajado por uma lembrança. Recordara-se de Ricardo, das suas conversas, das ideias que tinha, sobretudo da sua esperança. Quando viriam os homens dos quais ele falava com tanta crença? Aqueles homens que, como dizia Ricardo, pensavam “na gente” e que um dia viriam pela “estrada nova”, a galope, alvissareiros, cortando os campos verdes, acordando os pagos, anunciando uma fartura de verão chuvoso, enriquecendo de alegria o coração dos pobres! 311 Comentários aos romances da trilogia do gaúcho a pé Estrada nova aparece como a culminância da sequência dos romances do ciclo do gaúcho a pé. Os títulos tomados em sequência são especialmente eloquentes. Sem rumo reflete sobre os indivíduos perdidos no pampa, a pobreza, a perseguição, a desesperança. Porteira fechada sugere o vislumbre de uma solução, mas a entrada está vedada. Estrada nova claramente expõe a alternativa ao desamparo: um novo sistema político, nova distribuição de poderes, passados inclusive pelo arrasamento do até então existente (o fogo na invernada), o que sugere, portanto, modificações profundas. Os recursos de estilo com os quais foi construído Estrada nova apresentam novidades, comparativamente a outras obras do mesmo autor. Percebem-se liberdades de narração, especialmente no discurso, que possibilitam expressão adequada de sentimentos internalizados. Destaca-se o delineamento de condições de recepção também adequadas à concepção ética, social e do imaginário do ambiente social em que a narrativa atua. O discurso central do narrador está pautado em formas da língua de prestígio, mas se percebem variadas concessões vocabulares, semânticas e sintáticas, que demonstram, também nesse âmbito, variações estilísticas positivas. Ideologicamente, contudo, Estrada nova pontifica entre a produção do romance de trinta. Se Vidas secas fosse tomado, p. ex., como parâmetro de comparação, dada sua quase unanimidade crítica positiva no Brasil, seria possível constatar a vantagem da proposta ideológica do romance gaúcho sobre o alagoano. Os personagens de Vidas secas, depois de todos os sofrimentos, partem para a cidade, na expetativa de consolidarem sua condição humana. A esperança flui, de fato, como alternativa aos filhos. Deixam para trás os problemas do sertão que os atormentaram e afugentaram: o problema, no entanto, persiste e continuará a desgraçar as famílias que a de Fabiano alegoriza no romance de Graciliano Ramos. Em Estrada nova, aparece proposta concreta de mudança; não de fuga do problema evidenciado, resumida na mudança de lugar geográfico (do sertão à cidade) dos personagens. A proposta de Estrada nova se funda na ideologia política que conforma a narrativa, a mesma que sustenta o Modernismo, como escola literária. Uma análise com mais detalhes do capítulo forneceria, p. ex., estas outras reflexões possíveis. 312 A alusão ao “causo bonito-triste do Negrinho do Pastoreio” instiga a reflexão sobre a lenda gaúcha do menino escravo, levado à morte por ter perdido uma carreira cuja aposta fora alta, feita por dois fazendeiros. Vale dizer: há quem explore até à morte pessoas sem guarida nem esperanças. Não custa lembrar que o Negrinho não tem nome próprio nem padrinhos, ou seja, identidade nem a quem recorrer de seus infortúnios. Outra digressão sobre a qual importa refletir é aquela em que o narrador se refere ao destino dos personagens masculinos que pontificam as representações dos proprietários e dos peões, que, sem mais condições de atuar na Campanha, “acolherados por um fadário igual-desigual, os Jangutas e os seus Teodoros” se encurralam na cidade, como se a cidade fosse a antecâmara do fim definitivo. A cidade não é, portanto, a salvação que Fabiano e a família esperam. “Você me deixa alguém sair a pé da minha estância?” – eis a grande indignação do coronel Teodoro, algo quase inacreditável e inaceitável na tradição cultural do pampa. Homens do campo transformados em gaúchos a pé é sinal terrível de degradação, a que só se chega no fim das expetativas. Nessa atitude falta, de um lado, a metade do homem da Campanha, o cavalo. De outro, faltam a solidariedade e a hospitalidade, pontos éticos referenciais da cultura desses homens. Eis aí o nascimento literário do gaúcho a pé. O gaúcho a pé representa, pois, a morte do centauro, que na América se estabeleceu de maneira exemplar, não talvez na figura do homem-cavalo, mas na do homem-acavalo. O fazendeiro, ao falar, usa o pronome “me” (“Você me deixa alguém sair a pé da minha estância”), que, do ponto de vista sintático formal, parece desnecessário. Além disso, a construção sintática configurar redundância com “minha”). O caso é que, na situação presente, o me coloca Teodoro na condição de faltante, de transgressor da ética que honorabiliza os homens da Campanha gaúcha. O outro pronome “(minha”) reforça a noção de poder, então em decadência. Considere-se agora o excerto transcrito imediatamente a seguir: Atrás do galpão, o negrinho da cozinheira não estava brincando de estância e, se o fazendeiro o surpreendesse naquele momento, não desconfiaria que ele não sonhava em ser um dia seu igual, dono de léguas de campo e milhares de cabeças. Ele estava brincando, mas era de polícia. Prendera um comunista e judiava dele para que confessasse a quem tinha matado e roubado ou a quem planejava matar e roubar. Já lhe havia dado muitos coronhaços na cabeça, posto de braços estendidos, estaqueado dois palmos acima do chão, atirado num lagoão fundo com uma corda no pescoço, numa madrugada fria e, como o sujeito teimava em manter-se calado, ameaçava capá-lo. Inocências vingativas de criança!... 313 No excerto em questão, faz-se mister observar especialmente o fato de que “o negrinho” brincava “atrás do galpão”. O galpão já é ambiente e lugar de secundários hierárquicos na estância. O menino brinca atrás do galpão, um tanto às escondidas. De que brincava? Não brincava de fazendeiro; brincava “de polícia”. Por que brincava de polícia? As histórias que vinha ultimamente ouvindo no galpão tratavam de perseguições e maus-tratos a comunistas, que de fato eram suposições e figurações imaginárias dos detentores do poder, aterrorizados com a ideia de perder bens. Na inocência da criança, essas atitudes eram dignas de um homem, e os meninos que convivem quase exclusivamente com adultos desejam fazer-se homens nas brincadeiras. Desse modo, o que se ressalta são prepotência e arbitrariedade sobre os desamparados. O incêndio na invernada, embora a narrativa ressalve que ocorreu por inadvertência, lembra outros incêndios, como o do prédio do Ateneu, no romance homônimo de Raul Pompeia. A necessidade da revolução provoca o arrasamento, para que a reconstrução seja realmente nova. A mensagem ideológica final, condensadora, portanto, da proposta ideológica do romance (e dos romances do ciclo do gaúcho a pé), faz referência clara à “estrada nova”, o caminho novo, a solução político-social modificadora da condição, em que se encontravam os desamparados da Campanha: o socialismo é o fogo de chão com roda de mate, em que se esperam aquecer os jangutas e os ricardos da Campanha do Rio Grande do Sul. Quando viriam os homens dos quais ele falava com tanta crença? Aqueles homens que, como dizia Ricardo, pensavam na gente e que um dia viriam pela estrada nova, a galope, alvissareiros, cortando os campos verdes, acordando os pagos, anunciando uma fartura de verão chuvoso, enriquecendo de alegria o coração dos pobres! [No original, “na gente” e “estrada nova” aparecem entre aspas.] A gente (de “na gente”) nomeia os injustiçados, ofendidos, humilhados. A estrada nova é a nova sequência histórico-política. O papel desses homens (“aqueles homens”) é “acordar os pagos”, que estão dormidos, não se estão dando conta do que podem e devem fazer. É também papel deles anunciar a “fartura de verão chuvoso”, que todos esperam e desejam. Eis portanto a proposta clara do ideário de Estrada nova, diferente da de Vidas secas, p. ex., que inicialmente, para clarificar reflexões, foi tomado como parâmetro para o comentários sobre Estrada nova. 314 JORGE Leal AMADO de Faria Jorge Amado nasceu em 1912 em Itabuna (BA) e faleceu em 2001 em Salvador (BA). De sua vivência no interior da Bahia, escreveu as obras Cacau (1933) e Suor (1934). Formou-se em Direito. Nessa época, começou a colaborar em jornais. Apresentado por Raquel de Queirós (O quinze), aproximou-se de grupos de esquerda. Passou a sofrer perseguições políticas. Por isso mudou-se para a Argentina. Passou pelo Uruguai, por outros países da América Latina, pelos Estados Unidos e por alguns países da Europa Oriental. Seus livros começaram a ser traduzidos para várias línguas. No retorno ao Brasil, foi eleito deputado estadual, mas foi cassado em razão de o Partido Comunista ter sido posto fora da lei. Alguns romances dele: Mar morto (1936); Capitães da areia (1937); Seara vermelha (1946); Os subterrâneos da liberdade (1954); Gabriela, cravo e canela (1958); Os pastores da noite (1964). Gabriela, cravo e canela (excerto do capítulo 3, Gabriela com pássaro preso) – Oh! que beleza! – musicou Gabriela vendo o sofrê. Nacib depositou a gaiola numa cadeira, o pássaro se batia contra as grades. – Pra você... Pra lhe fazer companhia. Ele se havia sentado, Gabriela acomodou-se no chão a seus pés. Tomoulhe da mão grande peluda. Beijou-lhe a palma naquele gesto que recordava a Nacib, nem mesmo sabia por que, a terra de seus pais, as montanhas da Síria. Depois encostou a cabeça em seus joelhos, ele passou-lhe a mão nos cabelos. O pássaro sossegara, soltou seu trinado. – Dois presentes de uma vez... Moço tão bom! – Dois? – O passarinho e, mais bom ainda, ter vindo trazer. Todo dia o moço só chega de noite... E ia perdê-la... “Cada mulher, por mais fiel, tinha seu limite”, Nhô-Galo queria dizer seu preço. Refletiu-se-lhe a amargura no rosto de Gabriela, que levantara os olhos ao falar, constatou: – Seu Nacib anda triste... Era assim não... Era faceiro, risonho, agora anda triste. Por que, seu Nacib? Que lhe podia dizer? Que não sabia como guardá-la, como prendê-la a si para sempre? Aproveitou para falar nas idas diárias ao bar. – Tenho uma coisa para lhe falar. – Pois fale, meu dono... – Não estou gostando de uma coisa, está me preocupando. 315 Ela assustou–se: – A comida tá ruim? A roupa mal lavada? – Não é nada disso. É outra coisa. – E o que é? – Tuas idas ao bar. Não gosto, não me agradam... Arregalaram-se os olhos de Gabriela: – Vou pra ajudar, pra comida não esfriar. Por isso que vou. – Eu sei. Mas os outros não sabem... – Já sei. Não pensei não... Fica feio eu no bar, não é? Os outros não gostam, uma cozinheira no bar... Não pensei não. Oportunista, respondeu: – É isso mesmo. Alguns não se importam mas outros reclamam. Tristes os olhos de Gabriela. O sofrê rompia o peito, canto de rasgar o coração. Tão tristes os olhos de Gabriela: – Que mal eu fazia? Por que fazê-la sofrer, por que não dizer a verdade, contar-lhe de seus ciúmes, gritar-lhe seu amor, chamá-la Bié como tinha vontade, como a chamava em seu pensamento? – Faço assim a partir de amanhã: entro pelos fundos só pra servir a comida. Não ando na sala nem do lado de fora. E por que não? Assim não a deixava de ver ao meio-dia, de tê-la junto a si, de tocar-lhe a mão, a perna, o seio. E sua presença semiescondida não valeria como resposta negativa às ofertas tentadoras, às palavras melosas? – Você gosta de ir? Fez que sim com a cabeça. Era sua livre hora de passeio, como gostava! De atravessar sob o sol, a marmita na mão. De andar entre as mesas, de ouvir as palavras, de sentir os olhos carregados de intenções. Dos velhos não. Das propostas de casa montada feias por coronéis, disso não. De sentir-se mirada, festejada, desejada. Era como uma preparação para a noite, deixava-a como que envolta numa aura de desejo, e nos braços de Nacib ela revia os moços bonitos: seu Tonico, seu Josué, seu Ari, seu Epaminondas, caixeiro de loja. Teria sido algum deles o autor do fuxico? Pensava que não. Um daqueles velhos feios, com certeza, danado por ela não lhe dar atenção. – Está bem, então pode ir. Mas não vai mais servir, fica sentada atrás do balcão. Teria os olhares pelo menos, os sorrisos, algum haveria de vir ao balcão lhe falar. – Vou voltar... – anunciou Nacib. – Tão cedo... – Nem podia ter vindo... 316 Os braços de Gabriela cingiram-lhe as pernas, prendendo-o. Nunca a tivera de dia, fora sempre de noite. Queria levantar-se, ela o retinha, calada e agradecida. – Vem cá... Aqui mesmo... Arrastou-a consigo. Era a primeira vez que ia possuí-la em seu quarto de dormir, em seu leito, como se ela fosse sua mulher e não sua cozinheira. Quando lhe arrancou o vestido de chita e o corpo nu rolou convidativo na cama, enxutas nádegas, duros seios, quando ela tomou sua cabeça e beijou-lhe os olhos, ele lhe perguntou e era a primeira vez que o fazia: – Me diga uma coisa: tu me quer bem? Ela riu no canto do pássaro, era um trinado só: – Moço bonito... Gosto é demais... Estava sentida, aquela história das idas ao bar. Por que fazê-la sofrer, não lhe dizer a verdade? – Ninguém reclamou tuas idas no bar. Sou eu que não quero. Vivo triste é por isso. Todo mundo te fala, dizem besteira, pegam tua mão, só faltam de agarrar ali mesmo, te derrubar no chão... Ela riu, achando engraçado: – Importa não... Não ligo pra eles... – Não liga mesmo? Gabriela o puxou para si, mergulhando-o nos seios. Nacib murmurou: Bié... E em sua língua de amor, que era de árabe, lhe disse a tomá-la: “De hoje em diante és Bié e essa é tua cama, aqui dormirás. Cozinheira não és apesar de cozinhares. És a mulher desta casa, o raio de sol, a luz do luar, o canto dos pássaros. Te chamas Bié...” – Bié é nome de gringa? Me chame Bié, fale mais nessa língua... Gosto de ouvir. Quando Nacib partiu, ela sentou-se ante a gaiola. Seu Nacib era bom, pensava ela, tinha ciúmes. Riu, enfiando o dedo por entre as grades, o pássaro assustado a fugir. Tinha ciúmes, que engraçado... Ela não tinha, se ele sentisse vontade podia ir com outra. No princípio fora assim, ela sabia. Deitava com ela e com as demais. Não se importava. Podia ir com outra. Não pra ficar, só pra dormir. Seu Nacib tinha ciúmes, era engraçado. Que pedaço tirava se Josué lhe tocava na mão? Se seu Tonico, beleza de moço, tão sério na vista de seu Nacib, nas suas costas tentava beijar-lhe o cangote? Se seu Epaminondas pedia um encontro, se seu Ari lhe dava bombons, pegava em seu queixo? Com todos eles dormia cada noite, com eles e com os de antes também, menos seu tio, nos braços de seu Nacib. Ora com um, ora com outro, as mais das vezes com o menino Bebinho e com seu Tonico. Era tão bom, bastava pensar. Tão bom ir ao bar, passar entre os homens. A vida era boa, bastava viver. Quentar-se ao sol, tomar banho frio. Mastigar as goiabas, comer manga espada, pimenta morder. Nas ruas andar, cantigas cantar, com um moço dormir. Com outro moço sonhar. 317 Bié gostava do nome. Seu Nacib, tão grande, quem ia dizer? Mesmo na hora, falava língua de gringo, tinha ciúmes... Que engraçado! Não queria ofendêlo, era homem tão bom! Tomaria cuidado, não queria magoá-lo. Só que não podia ficar sem sair de casa, sem ir à janela, sem andar na rua. De boca fechada, de riso apagado. Sem ouvir voz de homem, a respiração ofegante, o clarão dos seus olhos. “Peça não, seu Nacib, não posso fazer”. O pássaro se batia contra as grades, há quantos dias estaria preso? Muitos não eram com certeza, não dera tempo de acostumar-se. Quem se acostuma com viver preso? Gostava de bichos, tomava-lhes amizade. Gatos, cachorros, mesmo galinhas. Tivera um papagaio na roça, sabia falar. Morrera de fome, antes do tio. Passarinho preso em gaiola não quisera jamais. Dava-lhe pena. Só não dissera pra não ofender seu Nacib. Pensara lhe dar um presente, companhia pra casa, sofrê cantador. Canto tão triste, seu Nacib tão triste! Não queria ofendê-lo, tomaria cuidado. Não queria magoá-lo, diria que o pássaro tinha fugido. Foi pro quintal, abriu a gaiola em frente à goiabeira. O gato dormia. Voou o sofrê, num galho pousou, para ela cantou. Que trinado mais claro e mais alegre! Gabriela sorriu. O gato acordou. Comentários ao excerto de Gabriela com pássaro preso, 3o capítulo de Gabriela, cravo e canela No excerto do capítulo, pode-se ler uma metáfora narrativa. Armava-se prisão para Gabriela, em virtude dos zelos de Nacib por ela, porque começava a amá-la. Nacib lhe oferece uma beleza viva que canta, mas presa. Oferece-lhe amor, que nesse oferecimento (o presente) fica implícito. Gaiola está para casamento, assim como sofrê (o pássaro) está para Gabriela. Nacib a presenteia com um pássaro engaiolado. Gabriela liberta o pássaro, porque não suporta aprisionamentos. Quando o pássaro voa e canta, já livre, o gato, que dormia, se acorda. O gato, caçador de aves, passa a simbolizar os potenciais predadores da liberdade que costumavam frequentar o bar do Nacib. A sempre presente ideia de liberdade que o texto de Gabriela, cravo e canela maneja pode ser tomada como o núcleo ideológico do romance. De fato, o romance em estudo já tem sido considerado ponto referencial da temática da liberdade na obra de Jorge Amado. A liberdade que o romance Gabriela, cravo e canela propõe como alternativa à realização pessoal dos indivíduos vai ser, a partir dele, elemento também central de romances de edições cronologicamente subsequentes. É o caso, p. ex., de Os pastores da noite. Antes de Gabriela, cravo e canela, contudo, a ideia de liberdade que se lia preponderantemente nos romances de Jorge Amado se refere à liberdade política. Mais precisamente, a discussão ideológica geralmente se dá precisamente na expressão da necessidade de conquistar a liberdade política. A liberdade política precisa ser conquistada, ainda que precise sê-lo pelas armas. Em Gabriela, cravo e canela, convivem de fato as duas propostas, mas parece preponderar a da liberdade individual. É por isso que parte da crítica atribui aos romances de Jorge Amado íntima relação com a 318 proposta de liberdade propugnada pela literatura romântica. Por essa razão pode-se igualmente dizer que a obra romanesca do autor tem vínculos com o romantismo literário. O romance Gabriela, cravo e canela não se restringe a narrar episódios de uma história de amor. Gabriela, cravo e canela é um dos romances do ciclo da seca do romance de trinta. Romance de trinta é uma categoria de prosa literária brasileira. O romance de trinta é também dito romance neorrealista, por suas configurações estilístico-ideológicas. O neorrealismo como estilo de época do Modernismo se alicerça ideologicamente no Marxismo. No caso específico, o romance de trinta focaliza especialmente a situação do homem rural brasileiro preso a estrutura fundiária injusta, que condena não apenas o homem do interior, mas o próprio país à pobreza, ao subdesenvolvimento, à submissão. Do ponto de visto estilístico, o romance neorrealista é preponderantemente vinculado ao estilo realista-naturalista. Apesar disso, como foi possível observar em Gabriela, cravo e canela (e como se verá em Érico Veríssimo), o romantismo também se presentifica no romance neorrealista. As concepções liberais do Romantismo se mostram tanto na construção de personagens na qualidade de indivíduos especiais e únicos (Grabriela, p. ex.), como na proposta da ideia de liberdade defendida nesses romances. Gabriela, cravo e canela de fato procura elaborar painel reflexivo a respeito da construção da república brasileira, nos seus primeiros momentos, adequadamente à sua contingência epocal. O jovem (personagem Mundinho Falcão) com titulação de ensino superior chega a Ilhéus, cidade dominada por sistema político caduco, o coronelismo. Enquanto, portanto, os velhos coronéis do cacau representam o passado esclerosado, o jovem recém-chegado passa a representar o futuro, a modernidade. É nessa questão que o romance tem seu fulcro ideológico-político. São bases ideológicas sociais e são também políticas. DYONÉLIO Tubino MACHADO Dyonélio Machado nasceu em Quaraí, na fronteira brasileiro-uruguaia, na Campanha gaúcha, em 1895, e faleceu em Porto Alegre, em 1985. Dyonélio dava aulas a meninos de classes anteriores à sua, para que ele e seu irmão pudessem estudar sem pagar a matrícula da escola. Com 12 anos, trabalhava como servente no semanário O Quaraí, o que possibilitou começar a entrosar-se com a intelectualidade local. Em Quaraí, fundou, em 1911, o jornal O martelo. Em 1921, participou, em Porto Alegre, do lançamento do jornal A informação. Os primeiros anos da década de 20 foram marcantes para Dyonélio. Fundou jornais, casou-se, ingressou na Faculdade de Medicina, publicou seu primeiro livro – Política contemporânea – e tornou-se pai. De 1924 a 1929, 319 dedicou-se ao estudo da medicina, em Porto Alegre. Depois disso, partiu para o Rio de Janeiro, onde se especializou em Psiquiatria. De lá retornou em 1932. Desde 1927, quando publicou, às suas custas, o livro de contos Um pobre homem, vinha-se dedicando à ficção, mas foi com o romance Os ratos (1935) que se tornou amplamente. Os ratos (capítulo 2) O Fraga não viu nada, naturalmente. Lá está ele na porta da casa, do outro lado da rua. Parece que tem os olhos nele. Cumprimentar? Não cumprimentar? O que o incomoda é que ele lhe vai responder o cumprimento com uma saudação entusiasta, saudação manhã-cedo. Dá a impressão, o Fraga, de ter uma vida bem arrumada. O padeiro, o leiteiro, quando voltam, depois de feita a distribuição, ficam algum tempo ainda conversando com ele. O mês já vai em meio, e ele interrompe a palestra, chama a mulher: “– Não seria bom pagar esse homem hoje?” “– Não tem pressa, seu Fraga: ele aí está guardado...” O bonde já se acha no fim da linha. No fim da linha, duas ou três quadras dali, é um amontoado de carroças de leiteiro e de carretas de lenha na frente dum armazém. Os leiteiros e os lenheiros tomam cachaça naturalmente. O seu leiteiro tem um ar de decisão e de insolência, encostado ao balcão, falando com os outros, gesticulando; depois sai... é o risco de um dorso vestido de camiseta muito justa cortando o ar... Pega as rédeas e abala, furioso... O bonde mexeu-se! Das portas, num e noutro ponto, despegam-se os homens, abanam para trás, vão-se pôr nos postes brancos. Da casa contígua à sua sai um rapaz de uns vinte anos, o ar comedido. Cumprimenta a Naziazeno, um cumprimento sério, sem intimidade, enquanto a mulher por trás das vidraças parece que os observa. Naziazeno veio até ao meio da rua (o bonde já se aproxima). Se olha para sua frente, o Fraga é capaz de falar-lhe: acham-se muito perto. Ele terá de fazerlhe uma cara de riso, o ar despreocupado. Depois, ao meio-dia, à sua volta, a mulher já soube pelas crianças, contou tudo ao marido, ele é capaz de ficar com uns beiços moles de espanto... O moço seu vizinho, que espera o bonde quase a seu lado, relanceia-lhe às vezes um pequeno olhar. Sempre Naziazeno se integrou muito com esse rapaz silencioso com cara de quem não vê e não compreende. Só muito tempo depois foi que soube que ele é empregado de escritório da Importadora. Talvez ele não compreenda aquilo. Talvez não saiba o que imaginar. São tão diferentes... Ele nunca briga com a mulher, nunca levanta a voz... Talvez não compreenda... Naziazeno se sente mais a gosto. Passa-lhe pela cabeça que vai assumir uma atitude de cínico, e isso um pouco o perturba. Mas quando o rapaz o fita de novo (ele já o fez várias vezes com regularidade naqueles poucos 320 momentos), ele se firma naquela ideia, diante do seu olhar sereno e vazio, e ergue um pouco a cabeça, embebe-a no ar fresco da manhã. Ele teme dar com os olhos no outro seu vizinho, o dos fundos. É um amanuense da Prefeitura, tem mulher e filhos, anda sempre barbado. Quando Naziazeno foi morar ali, logo soube da fama que acompanha esse sujeito: “– Não paga ninguém!” Se ele agora aparecesse ali, lá viriam aqueles dois olhos, sabidos, de verruma, olhos devassadores... Os melhores lugares do bonde estão ocupados. “– Apesar de tão cedo! É estranho...” Senta-se à extremidade dum dos bancos dos lados, no fundo. O bonde leva uma outra gente. Não a que ele está acostumado a ver, às nove ou dez horas, a sua hora. “– Melhor, melhor.” Essa falta de conhecidos apazigua-o. “– A não ser que o amanuense...” Com efeito, o amanuense da Prefeitura é madrugador, tem galos, todas as exterioridades dum sujeito ordenado como o Fraga. “– Não paga ninguém.” O amanuense na certa que infunde o seu receio. Nunca se ouviu uma altercação no seu pátio. Ele, decerto, franze a cara, diz duas ou três coisas com ar de honestidade que incomoda, e é tudo. O outro bem sabe o valor daquilo, mas não discute mais, anulado numa atitude parecida com a do respeito... É só na carroça que o padeiro, que o leiteiro fazem os valentes, esbravejando, açoitando o burro. Mas o amanuense já está outra vez dando milho ao galo, a mulher perto, ainda indignada. Como são diferentes! Ele torce a cabeça, olha para fora. A cor da luz do sol é diversa de manhã, de tarde, à tardinha. Neste momento é doirada, e as sombras são azuis. Agora, todos os dias, vai levantar àquela hora. Chegar cedo à repartição. Lá há de estar outra vez o Horácio conversando passadas, passeios, casos de cavalos, de sujeitos de outros lugares... O encanto que tem essa vida, que ele já supunha extinta, e que o Horácio e o Clementino, simples serventes, ainda conhecem... Restabeleceram o condutor. Vai para algum tempo. Mas ele não esquece o fato, tão importante achou. O condutor aproxima-se. É bonachão. Aos que estão recostados na janelinha, modorrando ainda, sonhando com a paisagem em disparada, ele os desperta fazendo tilintar os níqueis na concha da mão, como uma velha matrona sacudindo milho para chamar as galinhas. O passageiro sobressalta-se, leva a mão atarantada ao bolso do colete, sob o olhar risonho do empregado... Naziazeno mete também a mão no bolso dos níqueis. São dez tostões: uma garrafa, dois vidros de trezentos gramas (álcool) e dois menores (das poçõezinhas). Parece incrível que na sua casa só havia uma garrafa vazia! 321 Ele guardava aqueles vidros de trezentos gramas. Sem propósito definido... Colecionismo... Essa palavra ele já a ouviu numa conversa entre médicos... Que representará em medicina?... Mas é certo, ele guardava esses vidros grandes, brancos, simpáticos. Nunca lhe ocorrera vendê-los, trocá-los por alguns níqueis: isso foi expediente da mulher. Nem eles lhe lembravam essa grande coisa: o combate, afinal vencido, que foi a doença do garotinho. A diarreia (de se sujar até quinze vezes “nas vinte e quatro horas” – expressão do médico)... a magreza e a debilidade... os olhos caídos, tristes, profundos, de apertar a garganta da gente... E, por fim, aquela palavra terrível! terrível! – Mas ele está atacado de MENINGITE, doutor?!... – Não. Ainda não... – Mas o senhor tem receio então... – Nesses casos de desidratação, de desnutrição violenta, é sempre de recear... – Faça tudo, doutor! Faça o que puder pra salvar o meu filho... O senhor não se arrependerá, doutor! Esteja certo!... O senhor ganhará o que seu trabalho vale... Depois o menino foi pouco a pouco ganhando forças, ganhando carne, ganhando... E o pai mais terno com o filho do que nunca... Mais feliz do que nunca... – Tu ainda não pagaste o doutor, Naziazeno... – “Não paga ninguém.” O bonde continua a sua marcha, parando aqui e ali, entrando pessoas, saindo algumas, e uma dança de lugares quando uma ou outra sai. Já Naziazeno tem um companheiro de banco, à sua esquerda, porque à direita se acha um dos espaldares em que ele se apoia. À sua frente, o outro banco, igual ao seu, está se enchendo também. Um soldado, de pé, as pernas abertas, ampara-se, mais para o fundo, numa das colunas. Toda essa gente se enxerga, se observa. Alguns conversam. O bonde a esta hora sempre vai cheio. Eu me admiro de ainda haver lugar. – Que horas serão? – Sete e meia passadas. – Vou com atraso. – A que horas você entra? – Faltando um quarto pras oito. Têm o tipo de empregados de balcão. Naziazeno mesmo parece já ter visto aquelas caras. Talvez no próprio bonde, quando voltam ao meio-dia. 322 – Que é que você leva aí? – diz um deles, e aponta com os olhos pra um certo objeto que o outro com a mão diligencia por introduzir melhor no bolso de trás da calça. Naziazeno também olha e sente um mal-estar vago e indefinível, quando o outro esclarece: – Leite. É o meu almoço. – “Como é que um homem pode se contentar apenas com um vidro de leite ao meio-dia?” – pensa Naziazeno. O olhar do leiteiro ameaçando-o, insultandoo, e que ele sustenta mal, aparece com nitidez na face atrigueirada, sobre o pescoço forte que emerge da camiseta muito justa... – E de manhã, que é que você toma? – Churrasqueio. Naziazeno observou o indivíduo: ele tem o mesmo ar de pessoa de fora, de gente da campanha. A pele é trigueira, cheia de rugas. Parece homem de quarenta anos. Tem o cabelo todo preto e liso, como de índio. Certamente não mora na linha do bonde. Habita uma pequena chacrinha, onde possui a sua criação. Tudo é relativa fartura lá. Dinheiro não há de ter, dinheiro: mas tem a despensa cheia. A casa produz galinhas, um que outro porco, frutas etc. Aquela cara também inspira respeito, aquela cara de olhar moroso, que traduz uma compreensão lenta e firme. Naziazeno tem medo que lhe leiam na cara essa compreensão de tudo, essa inteligência das coisas, miserável e aviltante, que tem, por exemplo, o Duque. – Ele na frente do seu leiteiro parece que possui a cara do Duque, o olhar como que lhe fica evasivo, ele parece que está mentindo em cada palavra verdadeira e angustiante que profere... Passam carroças de padeiro e de leiteiro, algumas à disparada, meio pendidas para trás, a figura curva do carroceiro açoitando o animal. A carroça que ele tem dentro como se justapõe a essas que por ali transitam: é sempre o mesmo quadro – um rapagão mal-encarado fustigando o burro, possesso... Naziazeno está cansado. O olhar que, de longe em longe, quando desperta, lança ao seu redor há de ter esse cansaço, porque sempre respondem a esse olhar com um olhar de curiosidade. Os amigos, no banco fronteiro, conversam: – Ouvi dizer que o bétin do domingo não saiu. – Quem disse? Saiu sim. Naziazeno quanta esperança já depositara no betting... Aos sábados era certo munir-se de sua cautela. Tinha um companheiro, o Alcides. Às vezes, quando a crise apertava, faziam sociedade. Um dia tinham tido um susto: faltava 323 conferir apenas um páreo, o primeiro do jogo. Alcides começara por longe, pelo último: Macau! Tinha acertado um! E se dá?... Um turbilhão enche-lhe a cabeça. Vamos ver! Vamos ver! O outro! – o outro também, a égua Singapura, o grande azar do penúltimo páreo, o seu azar! Alcides levanta-se da mesa. Tem medo de prosseguir, medo mesmo de acertar. Quase desejava ter já errado, acabado aí essa ilusão torturante. Ele ainda se encaminha em direção ao grande quadro negro pregado numa das paredes do café, o passo vago, como num sonho. Mas logo se reincorpora, decidido: e foge dali, não quer saber mais nada, quer ocultar-se, e é assim que encontra o amigo. Esse susto foi memorável. Não saiu o do outro domingo. Pequena pausa. – O bolo então estava grande. Naziazeno entrara em bettings que chegaram a render oito ou dez contos. Bons bettings... – 5:735$000. – “O movimento está diminuindo” – observa mentalmente Naziazeno. – Tiraram muitos? – Cinco: um conto e tanto per capita. Nova pausa. – Você esteve lá? – Não: não aguento aquela xaropada. Naziazeno, porém, está no prado. É uma tarde comprida. Cheia de pausas, de ócios, de intervalos. Uma pontinha de enxaqueca. De quando em quando, a lufada dos cavalos. O entusiasmo, que cresce muito, depois se atenua, até cair noutra pausa, noutro intervalo, seguido doutra lufada... – Eu só gosto de carreira em cancha reta. Muito mais divertido. Ele se recorda bem e, depois, o Horácio e o Clementino falam muito nessas carreiras. Sempre saem brigas. O Horácio conheceu um sujeito muito esperto, que armava botequim numa barraca ao lado da cancha. A barraca, bebidas, copos iam numa carroça, puxada por um cavalinho de pelo pelado aqui e ali. Depois das corridas principais, atam-se carreiras menores. O sujeito sempre achava quem quisesse correr com seu matungo de pelo pelado. Quantas corresse, quantas ganhava: o espertalhão disfarçara em matungo puxador de carroça um parelheiro... 324 Essa história agora lhe causou um mal-estar. Ele mesmo não vê bem a figura do cavalinho, confundida com a dum burro em disparada. Sente uma amargura doída dentro de si, na altura do peito e do estômago, uma espécie de ânsia e de náusea. E outra vez a figura superior e inquietante do leiteiro... e as palavras da mulher, a metralharem tranquilamente os seus ouvidos: – “Porque tu não viste então o jeito dele quando te declarou: Lhe dou mais um dia!” Também a sua mulher com os outros é tímida, tímida demais. Fosse a mulher do amanuense, queria ver se as coisas não marchariam doutro modo. Ela se encolhe ao primeiro revés. Foi esse ar da ingenuidade, de fraqueza que o tentou, bem se recorda. E como não havia de se recordar, se é ainda esse mesmo ar de fraqueza, de pudor, de coisa oculta e interior que alimenta o amor, a voluptuosidade? Mas é um mal na vida prática. Ele precisava dum ser forte a seu lado. Toda a sua decisão se dilui quando vê junto de si, como nessa manhã, a mulher atarantar-se, perder-se, empalidecer. É o primeiro julgamento que ele recebe; a primeira censura aos seus atos, os quais começam, pois, por lhe parecerem irregulares, ilícitos. Sentir-se-ia fortificado, ou ao menos justificado, se visse a seu lado a mulher do amanuense franzindo a cara ao leiteiro, pedindolhe pra repetir o que houvesse dito, perguntando-lhe o que é que estaria porventura pensando deles. A sua mulher encolhida e apavorada é uma confissão pública de miséria humilhada, sem dignidade – da sua miséria. O bonde, que deslizava numa corrida vertiginosa, para de súbito, travado com força. Há um meio tumulto dentro do veículo, com os passageiros lançados para a frente, os bancos desarticulando-se. Ouve-se a voz ralhada do motorneiro, praguejando para fora, para alguém que ainda se encontra na frente do carro. Alguns passageiros já estão levantados, curiosos. Naziazeno espicha o pescoço com atenção quase indiferente e chega a ver o casal de garotos, causa daquilo, ele e ela, pequeninos, presos pela mão, os olhos apavorados, escapando do perigo com um ar de confusão estúpida. – É um perigo essas crianças... – Os pais é que mereciam... – Querem perder as pernas – comenta o motorneiro, meio voltando-se para os passageiros, a voz ainda alterada, o bonde já em marcha. – Aqui nesta cidade se conhece facilmente os moradores das linhas de bondes: – os que têm mais pernas, têm uma... Risos. Naziazeno mal percebe o que diz o motorneiro. Há um estribilho dentro do seu crânio: “Lhe dou mais um dia! tenho certeza”... Quase ritmado: “Lhe dou mais um dia! tenho certeza”... É que ele está-se fatigando, nem resta dúvida. A sua cabeça mesmo vem-se enchendo confusamente de coisas estranhas, como num meio sonho, de figuras geométricas, de linhas em triângulo, em que há sempre um ponto doloroso de convergência... Tudo vai ter esse ponto... 325 Verdadeira obsessão. O sinal de campainha do interior do bonde leva-o à repartição, à campainha do diretor repreensivo, e deste – ao leiteiro! Passa-se um momento de intervalo. Ouve-se depois uma palavra trivial; e é nova ligação angustiosa: o sapato traz o sapato desemparceirado da mulher (o outro pé o sapateiro não quer soltar) e o todo reconstitui outra vez – o leiteiro! Decorre um certo tempo, longo talvez, em que a sua cabeça se vê riscada tumultuariamente das linhas mais inquietantes: o jardim que os seus olhos afloram e mal enxergam na disparada do bonde faz um traço com um plano antigo e ingênuo dum jardim para o filho, para o filho, “o pobre do nosso filho que não tem onde brincar”, “que não pode ficar, Naziazeno, não pode ficar sem...” O leiteiro!... o leiteiro! Há, por vezes, um alívio. É só a existência vaga e dolorosa duma coisa que ele sabe que existe, como uma vasa, depositada no fundo da consciência, mas que não distingue bem, nem quer distinguir... um sofrimento confuso e indistinto pois... Logo, porém, cortam-se outra vez linhas nítidas, associações triangulares bem definidas. Dorso redondo de passageiro descendo do bonde – traço claro de dorso riscando o ar na escadinha: o leiteiro! A placa (a conhecida placa) no consultório do entroncamento – “Tu ainda não pagaste o doutor, Naziazeno” – o leiteiro! Ideia de desembarcar no mercado, imagem do Duque rondando o café – o leiteiro... leiteiro... As linhas unem os pontos, como num quadro negro de colégio: “Liguemos os pontos a e a linha... os pontos a e a-linha ao ponto o...” Naziazeno suspira cansado. E a sua volta para casa?... meio se interroga, numa espécie de névoa de reflexão. (Para a casa – “Lhe dou mais um dia!” – mais um dia... um dia!...) Comentários ao capítulo 2 de Os ratos A leitura do capítulo 2 possibilita ao leitor uma boa amostragem do tratamento narrativo que Dyonélio Machado deu ao texto de Os ratos. As ações episódicas andam lentamente, mas a vida interior dos personagens anda vertiginosamente, geralmente num constante ir ao passado, a instantâneos memorizados, e voltar ao presente plausível da evolução narrativa. O sofrimento de Naziazeno, pelo que se pode ver na leitura do cap. 2, deriva especialmente disso. As breves descrições de natureza, de ambientes físicos e de personagens, quase sempre com sinais impressionistas, transportam o clima da narrativa para o presente do narrado. Nessa circunstância, o leitor volta também ao presente da leitura. De tudo o que se disse e do que se poderia continuar a dizer, parece claro que o texto se fundamenta na análise psicológica dos personagens, 326 especialmente os personagens mais destacados na narrativa. Os ratos, portanto, a esse respeito, brota do veio estilístico-narrativo do romance realista brasileiro, vale dizer, do romance machadiano. Como já foi comentado, o romance de trinta (séc. 20) se organizou a partir do realismo-naturalismo (séc. 19). Como reelaboração do Realismo, tomou o caminho do que a crítica costuma denominar análise psicológica. Como reelaboração do Naturalismo, procurou discutir principalmente questões de cunho social, geralmente a respeito das relações entre administração pública e população e entre capital e trabalho, no meio rural. Como romancistas que marcaram suas participações no romance de trinta oriundo do primeiro veio citado acima (o Realismo), é indispensável lembrar de Graciliano Ramos (São Bernardo, Infância, Angústia), de Cyro dos Anjos (O amanuense Belmiro e Abdias), além, naturalmente, de Os ratos de Dyonélio Machado. A contribuição ao romance de trinta de veio predominantemente naturalista é também marcante. Construíram-na, entre outros, Cyro Martins (Sem rumo, Porteira fechada, Estrada nova), Graciliano Ramos (Vidas secas, São Bernardo), Jorge Amado (Cacau, Seara vermelha, Gabriela, cravo e canela). Os ratos (excerto do capítulo 27) Um rufar – um pequeno rufar – por sobre a esfera do chiado, no forro... Ratos... são ratos! Naziazeno quer distinguir bem. Atenção. O pequeno rufar – um dedilhar leve – perde-se para um dos cantos do forro... Ele se põe a escutar agudamente. Um esforço para afastar aquele conjunto amorfo de ruidozinhos, aquele chiado... Lá está, num canto, no chão, o guinchinho, feito de várias notinhas geminadas, fininhas... São os ratos!... Vai escutar com atenção, a respiração meio parada. Hão de ser muitos: há várias fontes daquele guinchinho, e de quando em quando, no forro, em vários pontos, o rufar... A casa está cheia de ratos... Espera ouvir um barulho de ratos nas panelas, nos pratos, lá na cozinha. O chiado desapareceu. Agora, é um silêncio, e os ratos... Há um roer ali perto... Que é que estarão comendo? É um roer que começa baixinho, vai aumentando, aumentando... Às vezes para, de súbito. Foi um estalo. Assustou o rato. Ele suspende-se... Mas lá vem outra vez o roer, que começa surdo e vem aumentando, crescendo, absorvendo... Na cozinha, um barulho, um barulho de tampa, de tampa de alumínio que cai. O filho ali na caminha tem um prisco. Mas não acorda. São os ratos na cozinha. Os ratos vão roer – já roeram! – todo o dinheiro!... 327 Comentários ao excerto do capítulo 27 de Os ratos O destaque do pequeno fragmento do cap. 27 tem a finalidade especial de tentar apontar a dois itens ainda não comentados na tessitura do romance. O primeiro item diz respeito ao aspeto tensionista empregado no estudo psicológico do personagem Naziazeno, considerado nestes breves comentários. Esse estudo vai-se desenvolvendo a partir da percepção de Naziazeno a respeito da inarredabilidade da solução que precisa ser encontrada, antes da suspensão da entrega de leite, anunciada pelo leiteiro. O aspeto um tanto ameaçador do leiteiro ajuda no tecido narrativo tensivo, mas seria insuficiente para construí-lo sozinho. O leiteiro, afinal, é um homem pobre, que trabalha sem descanso em labuta insalubre e em horários impróprios. Dever para esse homem é mais opressivo intimamente do que simplesmente dever ou do que ficar sem o leite, mas todas essas situações se acumulam para criar o ambiente de tensão. Os ratos, por conseguinte, vai-se delineando como romance de trinta de temática psicológica, no veio da literatura de análise psicológica, eclodida no Brasil a partir do realismo machadiano. Nessa linha de composição aparecem também outros romances, como já foi exposto quando era estudado o cap. 2 de Os ratos. O segundo item se refere ao título do romance. Depois da tensão, instalase o pânico no personagem. Pode-se perceber isso com bastante clareza no último período sintático transcrito – “Os ratos vão roer – já roeram! – todo o dinheiro!...” Os ratos, portanto, foram produzidos pela profunda tensão. É tão rápida a conclusão psicológica do personagem, no sono-sonho, que não tem sequer tempo de manter a preocupação de que os ratos vão roer o dinheiro; eles já o roeram, i. é, ocorreu o que Naziazeno tanto temia. Como Naziazeno – especialmente ele – e a esposa mantinham-se em tensão em virtude da condição financeiro-econômica, o título aponta igualmente a quem rói o dinheiro deles. Vale dizer: longe, mas indistintamente, pairam imagens de outras formas de viver, sem o pânico da situação de “cada vez mais mês no fim do dinheiro”, como escreveu Millôr Fernandes em Liberdade, liberdade. O título, portanto, aponta também ao problema do salário ou dos vencimentos insuficientes, roídos por quem paga insuficientemente e por quem cobra exageradamente. ÉRICO Lopes VERÍSSIMO Érico Veríssimo nasceu em Cruz Alta (RS), em 1905. Faleceu em Porto Alegre, em 1975. Exerceu várias atividades: ajudante de comércio, bancário, proprietário de farmácia, radialista, tradutor, editor, escritor. A biblioteca paterna lhe deu oportunidade de, bem cedo, tomar contato com boas obras literárias. Foi leitor assíduo. Conheceu Augusto Meyer, pesquisador, crítico e poeta modernista, que o encaminhou ao jornalismo literário. 328 Estreou com Fantoches (1932), contos. Em 1933, publicou seu primeiro romance, Clarissa. Tornou-se conhecido no exterior, especialmente nos Estados Unidos e em Portugal. Visitou também outros países, em que colheu material que resultou em livros, como México (1952) e Israel em abril (1969). Suas obras foram editadas em várias línguas. Dois de seus romances são continuamente reeditados: Olhai os lírios do campo (1938) e O Continente (1949) (de O tempo e o vento). Érico Veríssimo e Jorge Amado foram os primeiros escritores a viver da literatura no Brasil. Olhai os lírios do campo (excerto do capítulo 9) O jardineiro da casa os esperava ao portão e fê-los entrar pela porta dos fundos. A mulher que se cortara estava deitada numa cama, o sangue lhe brotava do pulso, escorria-lhe pela mão, pingava-lhe dos dedos numa bacia de ágata. Ela balia como um cordeiro doente, muito pálida, revirando os olhos dum lado para outro. Haviam-lhe amarrado um pano com força, pouco acima do talho. – Eu morro – gemia ela – ai, eu morro... Em poucos minutos o curativo estava terminado, Eugênio enxugava as mãos que acabava de lavar, e dava instruções à cozinheira, uma preta gorda e lustrosa. Falava com voz firme, num tom pouco paternal. Olhava para o auditório – a cozinheira, a mulatinha camareira e o velho jardineiro – e a certeza de sua superioridade lhe dava um certo repouso, uma sensação agradável de segurança. Surpreendeu-se a usar termos técnicos, pensou em Olívia, imaginoua ali a seu lado a ouvi-lo e corou. – Então não tem mais perigo? – perguntou a preta, com voz untuosa. – Façam o que eu disse e tudo correrá bem. Se houver novidade, me telefonem. Mal terminara estas palavras notou ali no quarto uma presença estranha que nos primeiros instantes se manifestou por uma vaga mancha escarlate e uma onda de perfume. Voltou a cabeça. Uma moça loura se achava parada junto da porta, metida num roupão escarlate. Eugênio ficou conturbado, balbuciou um cumprimento e de imediato se sentiu rebaixado ao nível de criados. A moça contemplava-o com indiferença. Seus olhos revelavam uma curiosidade fria. Parece artificial – achou ele. O sol dava-lhe aos cabelos cor de palha um brilho metálico. E ali estava ela muito tesa, como numa pose estudada. Colorida... irritantemente colorida contra a porta esmaltada de branco. Capa de revista – refletiu ele. E revista fútil. O silêncio foi curto. Eugênio o quebrou: – Tudo em ordem – disse para a desconhecida. – A moça está fora de perigo. 329 Forçou um sorriso. A jovem do roupão escarlate continuava a contemplá-lo sem falar, e ele teve a impressão de que as próprias palavras lhe voltaram contra o rosto, como uma bofetada. O seu constrangimento aumentou. Já não sabia que fazer com as mãos. Vestiu o casaco, desajeitadamente. – Ponha fora esse lençol sujo de sangue! – ordenou a mulher loura à mulatinha. – Jogue-o no lixo ou queime... mas leve isso depressa! – Contraiu o rosto numa careta de nojo. Depois de examinar Eugênio da cabeça aos pés com ar de divertida curiosidade, disse-lhe seca: – O senhor... venha comigo. Fez meia volta e enveredou pelo corredor. Depois dum segundo de hesitação, ele a seguiu. Passou ambas as mãos pelos cabelos, arrumou a gravata. Ouviu a voz do enfermeiro: – Vou esperar no carro, doutor! Atravessaram o corredor claro. Eugênio seguia a mancha escarlate. O cachorrinho atrás da dona, – pensou. Aborreceu-a e aborreceu-se a si mesmo. Não havia de lamber-lhe as mãos; talvez chegasse até a mordê-las... se não lhe faltasse coragem. Mas, que diabo quereria com ele aquela fêmea? Chegaram a um salão sombrio e fresco, vasto living-room cuja decoração ia do marrom profundo ao bege-claro. Por alguns instantes Eugênio esqueceu a moça. Olhou o sofá e as poltronas fofas de aspecto confortável, os quadros das paredes (cujo desenho ele não distinguia bem, mas adivinhava modernos e estranhos), a estante de livros com lombadas atraentes, o vasto tapete peludo... Respirou fundo. Se conforto tinha um cheiro especial, ele o estava aspirando agora: um cheiro adocicado e pulverulento que vinha da madeira lustrada, dos estofos finos, da cera do soalho. A moça voltou-se e mostrou-lhe uma poltrona. – Sente-se. Como se eu fosse um criado... – pensou ele. É uma ordem. Lançou para ela um olhar meio hostil. Mas sentou-se. Mergulhou fundo na poltrona com uma abandonada sensação de bem-estar. Por alguns segundos deixou-se embalar por aquela impressão de conforto e macio repouso. Deu, porém, com os olhos da desconhecida postos nele com fixidez. Desagradável ser analisado daquela forma! E não era direito que ele se achasse em posição tão descuidada, tão à vontade, como se estivesse em casa... Sentou-se mais na ponta da poltrona, empertigando o corpo. A jovem do roupão escarlate inclinouse sobre a pequena mesa redonda e abriu a cigarreira. – Fuma? – perguntou, aproximando de Eugênio a caixa prateada. – Não – mentiu ele. – Muito obrigado. Fumar só lhe podia aumentar o embaraço. 330 Ela acendeu um cigarro, soltou uma baforada e continuou a contemplar Eugênio com os olhos indecifráveis. O embaraço dele aumentava. Tinha a impressão de que formigas de fogo lhe passeavam pelo corpo, desagradavelmente. Devo estar vermelho como um tomate – pensou. Desviou os olhos. Via agora na outra extremidade no salão uma lareira de ladrilhos cuja cor combinava com a dos estofos e dos tapetes. Em cima do parapeito da chaminé jazia uma estatueta preta... uma mulher nua, parecia, ou atleta... ou seria um negro?... Quando tornou a olhar para a moça, viu-a séria, com uma ruga de reflexão na testa. – Qual é a sua opinião sobre Freud? – perguntou ela de repente. A pergunta lhe escapou dos lábios junto com uma baforada de fumaça, mas suas palavras não tinham a natureza vaporosa do fumo. Eram sólidas, agressivas, bateram com violência no peito de Eugênio, deixando-o um instante sem respiração. Ela o contemplava com ar irônico. Havia uma indescritível malícia em seus olhos cor de mel queimado. Eugênio remexeu-se na cadeira e gaguejou: – Que é que penso de Freud? Bom... eu... – riu amarelo. – Essa sua pergunta... – tirou o lenço do bolso e passou-o pelo rosto, que agora sentia úmido de suor. Ela continuava a sorrir com um canto da boca. – Será que nunca ouviu falar em Freud? O senhor não é médico? Sim, sou médico. Mas a senhorita compreende... a pergunta foi tão inesperada... Enfim a minha especialidade não é... Calou-se, sentira que devia estar com cara de idiota. A pequena mangava com ele, divertia-se à sua custa, devia ser dessas meninas ricas, mimadas e literatas, que gostam de falar em Freud e na questão sexual só para mostrarem que são modernas e que não têm preconceitos. E ele se prestava à ridícula brincadeira! Devia ter percebido a coisa antes e ido embora. Sentiu desejos de dizer barbaridades, nem que fossem vestidas de termos científicos. No entanto se mantinha num silêncio embaraçado, dançando na cadeira. – Mas acha estranha a minha pergunta? Não sei por quê... Preferia que eu lhe perguntasse sua opinião sobre o Prof. Piccard? Ou sobre o câmbio? Eugênio ergueu-se. Comentários ao excerto do capítulo 9 de Olhai os lírios do campo O excerto narra o primeiro encontro entre Eugênio e Eunice, que se casam por interesses que elidem as atrações normais que aproximam os jovens e tradicionalmente promovem os casamentos. Eugênio é médico, formado sob inúmeros sacrifícios da família, que é pobre. Eunice é rica e autossuficiente e o 331 despreza. Eugênio conhece Olívia com quem vive grande amor e com quem tem uma filha, Anamaria. Olívia parte e leva a filha. Deixa Eugênio livre para viver a vida que escolheu. O casamento fracassa. Olívia morre. Eugênio recupera a vida com Anamaria. Olhai os lírios do campo é um romance exitoso como raros do ponto de vista editorial. Do ponto de vista literário, tem estrutura muito conhecida, desde o Romantismo. O enredo é simplista e exagera no sentimentalismo. As reflexões são em geral superficiais e tratam do que já foi tratado. Quanto ao discurso, é exemplar o trecho lido: nada se percebe de positivamente extraordinário. A organização sintática das orações nem sempre pode ser justificada como arranjo estilístico de resultados positivos. Que modernismo é esse de Olhai os lírios do campo e que romance de trinta é esse? – talvez pergunte o leitor. A centralização das ações em personagens dos círculos sociais burgueses e pequeno-burgueses indica mais uma vez recursos românticos resgatados. Enquanto, p. ex., Jorge Amado mostra-se preocupado com os trabalhadores das lavouras de cacau, com as transformações político-sociais emergentes no Brasil e com certo doutrinarismo marxista; enquanto Cyro Martins procura levar ao romance a necessidade de se conheceram posicionamentos ideológico-políticos socializantes, o romance em questão pede uma olhada aos lírios do campo, que não fiam nem colhem, segundo a proposta bíblica que a personagem Olívia procura representar. Romance de trinta? Modernismo? Como classificar esse romance? Podese considerá-lo romance de trinta pelo critério de enquadramento cronológico. Pode-se igualmente entendê-lo assim, já que condensa algo de realismo (psicologia dos personagens), algo de romantismo narrativo (amores contrariados – pela condição social), busca de realização no casamento, mas sem a predestinação que os românticos lhe deram. Finalmente, no misticismo da personagem Olívia e sua doação à felicidade do homem que ama, deixandoo livre a que realize o que deseja, sem ela. O Continente (excerto do capítulo A teiniaguá) Por muito tempo Aguinaldo recusara vestir-se como os gaúchos da Província. Conservara a indumentária de couro dos vaqueiros do Nordeste – o que lhe valera muitas vezes a desconfiança e a má vontade dos continentinos – e mesmo agora que decidira abandoná-la em favor da bombacha, do pala e do poncho, conservava ainda o chapéu de sertanejo, de abas viradas para cima, o que, como dizia o Dr. Nepomuceno, lhe dava uns ares napoleônicos. Aguinaldo amava o dinheiro, mas não era sovina. Gostava de pagar “comes e bebes” para os amigos, vivia ajudando os necessitados, e era generoso com os seus agregados, peões e comissionados. Quando pela primeira vez aparecera em Santa Fé, no ano em que fora assinada a paz entre farroupilhas e legalistas, causara a pior das impressões. Chegara escoteiro, montado num cavalo magro 332 e manco, e fazendo questão de mostrar a toda gente que tinha as guaiacas atestadas de moedas de ouro. Começaram então a murmurar na vila que Aguinaldo havia descoberto uma salamanca lá para as bandas de São Borja. “Salamanca? Lorotas!” – retrucavam outros. – “Isso é dinheiro de contrabando. Conheço pelo cheiro.” E um dia, numa roda de bisca na casa do Alvarenga, o P e Otero comentou: “Seja como for, não deve ser dinheiro limpo.” Mas os que precisavam de crédito para seus negócios não se preocuparam com averiguar a origem dos patacões, cruzados e onças de Aguinaldo Silva, quando este se aboletou num rancho nos arredores de Santa Fé e começou a emprestar dinheiro a juro alto. Quando sabia que um lavrador ou criador estava em dificuldades financeiras, procurava-o, blandicioso, e oferecia-lhe um empréstimo, pedindo como garantia terras ou gado num valor que em geral correspondia ao dobro ou ao triplo do capital emprestado. Se o homem era bem sucedido nos negócios, lá voltava o dinheirinho para a bolsa do Aguinaldo, acrescido dos gordos juros. Mas se a dívida se vencia e o devedor não estava em condições de liquidá-la, Aguinaldo, sem desmanchar dos lábios o sorriso amigo, sem a menor dureza na voz cantante, executava a hipoteca. Foi assim que com o passar dos anos, em que fez também muitas tropas e vendeu-as a charqueadores, Aguinaldo se apossou de várias propriedades de Santa Fé – inclusive da de Pedro Terra – e multiplicou sua fortuna de tal forma, que já se dizia estar ele tão rico de campos, gados e moeda sonante quanto o próprio Bento Amaral. Muito religioso, Aguinaldo ia à missa todos os domingos e fazia donativos à Igreja. O Pe Otero gostava de ouvi-lo contar histórias do sertão de Pernambuco em torno de cangaceiros, cabras valentes, lutas de família e casas assombradas, ficava admirado de ver como aquele caboclo analfabeto sabia narrar com fluência e colorido, com um sabor até literário. Também dava muito na vista em Santa Fé o apego que Aguinaldo Silva tinha por dois filhos do lugar: Bolívar Cambará e Florêncio Terra. Conversando certa ocasião com o Pe. Otero, Aguinaldo lhe dissera: – Esses dois meninos são mesmo que filhos meus. Vosmecê sabe, seu vigário, perdi toda minha gente. Da minha família só me sobrou uma neta, a Luzia, que está estudando num colégio na Corte. Quero que ela tenha o que eu não tive e o que os pais dela não tiveram. Tudo de bom e do melhor. E um dia quando o vigário e Aguinaldo se encontravam na praça, debaixo da figueira, conversando e olhando para o sobrado, enquanto trabalhadores lhe caiavam a fachada, o Pe Otero perguntou: – Ainda que mal pergunte, amigo, não acha que o Sobrado é um pouco grandote pra uma família tão pequena? Vosmecê não disse que só tinha uma neta? 333 – Disse. Mas acontece que um dia Luzia vai casar e ter filhos. E os filhos da Luzia vão casar também e ter família. Quero reunir toda a cambada no Sobrado... Ficou um instante pensativo, olhando para a casa. Depois acocorou-se à maneira dos sertanejos e começou a picar fumo. E assim nessa posição, com uma palha de milho atrás da orelha, contou ao padre que um dia, quando menino, vira uma cena que nunca mais lhe saíra da memória: um senhor de engenho cofiando as barbas brancas e sorrindo à cabeceira duma mesa comprida a que estavam sentados, comendo, rindo e conversando, os vinte e tantos membros de sua família – filhos, filhas, genros, noras, netos... Desde esse momento Aguinaldo decidira trabalhar como um burro para um dia ter também casa e família grande, com mesa farta e alegre. – Mas Deus não quis que eu visse minha família reunida – murmurou ele, enrolando o cigarro. – Foi matando todos, um por um... Ergueu os olhos para o vigário, ficou a contemplá-lo por alguns segundos e depois murmurou: – Nunca fui ao confessionário, padre, mas vou lhe contar aqui um segredo que nunca contei a ninguém. – Riu. – Não sei por que estou lhe dizendo isso, mas de repente me deu vontade... Calou-se por um instante, seus olhos se perderam na direção dos campos. Depois, baixinho, num cicio, olhando furtivamente para os lados, contou: – A Luzia não é minha neta de verdade. Peguei ela num asilo, quando ainda de colo. Era órfã de pai e mãe. Mas criei a menina como se fosse minha neta. Um homem não pode viver sem ninguém de seu, pode, padre? O vigário sacudiu a cabeça negativamente. E o nortista acrescentou: – Ela não sabe da verdade. Pensa que é minha neta mesmo. O Pe Otero ficou um instante pensativo e depois disse: – Não desanime, seu Aguinaldo. Vosmecê está ainda forte e, se a Luzia casar, o Sobrado pode estar cheio de crianças dentro de poucos anos. – Se eu viver até lá. – Há de viver, sim, se Deus quiser. Aguinaldo fechou um olho, ficou um instante como que dormindo na pontaria e finalmente perguntou: – Mas será que o Velho quer mesmo? Dessa conversa resultou um novo donativo gordo para a Igreja. O vigário o recebeu sorrindo e a refletir assim: Esse caboclo pensa que pode comprar a dinheiro favores de Deus. Mas bendisse os cruzados do pernambucano, pois 334 precisava deles para custear um puxado que ia fazer na casa paroquial e para comprar uns castiçais novos para o altar-mor. Quando Luzia deixou o colégio e mudou-se para Santa Fé, onde passou a ser a “senhora do Sobrado”, todos acharam que, mais do que ninguém, ela merecia o título. E durante muito tempo a neta de Aguinaldo Silva foi o assunto predileto das conversas da vila. As mulheres reparavam nos seus vestidos, nos seus penteados, no seus “modos de cidade”, mas, bisonhas, não tinham coragem de se aproximar da recém-chegada, tomadas duma grande timidez e duma sensação de inferioridade. Em muitas esse acanhamento se transformava em hostilidade; noutras tomava a forma de maledicência. Luzia era rica, era bonita, tocava cítara – instrumento que pouca gente ou ninguém ali na vila jamais ouvira – sabia recitar versos, tinha bela caligrafia e lia até livros. Os que achavam que Santa Fé não podia dar-se o luxo de ter um sobrado como o de Aguinaldo, agora acrescentavam que a vila também “não comportava” uma moça como Luzia. Para alguns severos pais de família tudo aquilo que a forasteira era e tinha constituía uma extravagância ostensiva que os deixava até meio afrontados. E quando viam Luzia metida nos seus vestidos de renda, de cintura muito fina e saia rodada; quando aspiravam o perfume que emanava dela, não podiam fugir à impressão de que a neta do pernambucano era uma “mulher perdida” e portanto um exemplo perigoso para as moças do lugar. Por outro lado, o passado escuro de Aguinaldo não contribuía em nada para melhorar a situação da moça. Aqueles homens, dum realismo rude, olhavam para o Sobrado e para seus moradores como para intrusos e acabavam dizendo: “Isso não vai dar certo.” Os rapazes da vila, conquanto se sentissem atraídos por Luzia, concluíam quase todos que ela não era o tipo que desejavam para esposa. A moça causava-lhes um vago medo que eles não sabiam explicar com clareza, mas que em geral resumiam para si mesmos numa frase: “Não nasci pra corno.” No entanto, desde o momento em que a rapariga chegara, Bolívar Cambará e Florêncio Terra ficaram fascinados por ela, cercaram-na de atenções e não perdiam pretexto para visitar o Sobrado. Faziam isso, porém, de maneira diferente. Bolívar não escondia seus sentimentos: mostrava-se como era – sôfrego, apaixonado, explosivo. Florêncio, entretanto, mantinha-se reservado, silencioso, mas duma fidelidade canina: portava-se, em suma, como um cachorro triste que – temendo ou sabendo não ser querido pela dona – limitavase a ficar de longe a contemplá-la com olhos cálidos e compridos, cheio dum amor dedicado, mas que não tem coragem de se exprimir. Aguinaldo percebera tudo desde a primeira hora e observava, deliciado, a maneira como a neta tratava os dois rapazes, mangando com ambos, dando a um e outro esperanças que ela própria se encarregava de desmanchar dias ou horas depois com um gesto, uma palavra ou um encolher de ombros. 335 Como era natural, a história se espalhou depressa pela vila: Bolívar e Florêncio, primos-irmãos e amigos de infância, estavam apaixonados por Luzia Silva. Qual dos dois a moça iria escolher? – Escolhe o Florêncio – dizia um – porque é o preferido do Velho. – Não. O preferido do Aguinaldo é o Bolívar – afirmava outro. – Mas, no fim das contas, qual é o preferido da moça? – Decerto os dois! – maliciava um terceiro. – Ela tem olhos de mulher falsa. – Mas não pode casar com os dois... – Ué... Casa com um e depois fica amásia do outro. Gente de cidade grande não tem vergonha na cara. Um dia alguém disse: – O Florêncio e o Bolívar vão acabar brigando. É uma pena. Primosirmãos... cresceram juntos como unha e carne. Agora vem essa bruaca estrangeira... – Mas ela não é estrangeira. Nasceu em Pernambuco. – Sei lá! Não sendo continentino para mim é estrangeiro. Em princípios de 1853, quando os santa-fezenses ainda comentavam o almanaque do Dr. Nepomuceno, espalhou-se por toda a vila a notícia de que Luzia Silva ia contratar casamento com Bolívar Cambará. Comentários ao excerto do capítulo A teiniaguá d’O Continente Teiniaguá é figura mítica do Rio Grande do Sul. Ela tem que ver com salamanca, que também aparece no excerto. Teiniaguá é substantivo formado de teiú (do guarani, tipo de lagarto pequeno), e aguaíca (rapariga pecadora). Uma princesa moura faz pacto com Anhangá-pitã (do guarani, diabo vermelho) e recebe dele corpo de lagartixa e cabeça luminescente. Tem também o poder de retomar a forma humana, de jovem linda e tentadora. Certo sacristão de uma Missão jesuíta-guarani aprisiona a lagartixa, porque tinha ouvido falar nos poderes dela, que os repassaria a quem a dominasse. Apaixona-se pela moça e é condenado à morte pelos padres. Teiniaguá o salva, mas o casal precisa exilarse numa furna (salamanca) no morro do Jarau, que daí será libertado duzentos anos depois pelo gaúcho Blau Nunes. Salamanca também significa mistério, poderes extraordinários. Luzia é o nome da personagem de Érico Veríssimo. Esse nome aponta à ideia de brilho e de luz, i. é, destaque, pensamento, reflexão, marcas obtidas da Teiniaguá. Daí o cognome (Teiniaguá) que Luzia recebe e daí o título dessa parte do romance O Continente. (Continente remete ao primeiro nome do Rio Grande do Sul: Continente de São Pedro do Rio Grande do Sul.) 336 O mito da Teiniaguá percorre vários significados, mas, na discussão a respeito do trecho em questão, é necessário pensar em poderes misteriosos. Nas adjacências desses poderes, o que mais importa aqui é o poder ventral feminino, ligado ao da preservação e da reprodução. Esse poder é subjugador. Especialmente, no caso da construção da imagem do gaúcho, mítica ou não, representa o poder de fixação do homem. O gaúcho é o gaudério, o andante, o andarilho, o índio vago, aquele em quem a marca da liberdade do deslocamento e da ação é intrinsecamente ligada à própria existência e à razão de existir. Numa sociedade de cultura viril como a gaúcha, Teiniaguá é, além de poderosa, ameaçadora. Essa relação é possível de ser feita a partir do que ficou comentado acerca da Teiniaguá e do termo salamanca. A relação, de fato, está feita no texto d’O Continente, acima lido. A integração definitiva do Rio Grande do Sul ao Brasil ocorreu já no fim da primeira metade do século 19, pelo tratado de paz entre o império e os revolucionários farroupilhas (1945). O Rio Grande do Sul faz fronteira em duas faces territoriais com populações de língua espanhola, com as quais mantém várias caraterísticas identitárias, e apenas numa com o resto do Brasil. A quarta face é litorânea. A partir dessa observação, não é difícil entender por que Luzia é “estrangeira” na cidade ficcional de Santa Fé, onde se passam os episódios e reflexões que lemos no trecho destacado. Analogamente ao que foi possível escrever a respeito de Olhai os lírios do campo, em O Continente (e n’O tempo e o vento, como todo) não são abundantes qualidades específicas do que se tem entendido como romance de trinta. O tempo e o vento é reelaborador de mitos; portanto se contrapõe à palavra demolidora do romance de trinta e do próprio Modernismo. Inobstante, estilisticamente, o romance se reconhece em formas narrativas do Realismo narrativo. Isso não elimina a possibilidade de se verem no romance de trinta ou neorrealista brasileiro também proposituras utópicas, o que aliás carateriza as ideologias, e as ideologias são estruturadoras das escolas literárias. O retorno ao passado, porém, para se encontrarem nele soluções míticas, não parece constituir apanágio corriqueiro do romance dessa época. Essas observações finais, todavia, não podem depor contra O Continente, obra exponencial do monumental O tempo e o vento. A trilogia com esse título narra miticamente a formação do Rio Grande do Sul, pelo menos, sob os aspetos social, psicológico, histórico, econômico, etnológico e político, como nenhum o fez anteriormente. É notória também, ao examinar-se a obra inteira de Érico Veríssimo, a linha de fronteira que O tempo e o vento marcou: antes dele, os romances do autor focavam vidas pequeno-burguesas, cercadas de circunstâncias pessoalistas; depois dele, a focalização narrativa do romancista se amplia ao mundo das contingências humanas, em sentido bem mais amplo. 337 CYRO Versiani dos ANJOS Cyro dos Anjos foi jornalista, professor, cronista, romancista, ensaísta e memorialista. Nasceu em Montes Claros (MG) em 1906 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1994. Em 1923, mudou-se para Belo Horizonte, a fim de estudar humanidades e Direito, em que se formou. Durante os anos de estudante universitário, trabalhou como funcionário público e jornalista. Obteve reconhecimentos pelos romances Abdias (1945), Explorações no tempo (1963) e A menina do sobrado (1979). Outras obras do autor: O amanuense Belmiro (1937) e Montanha (1956) – romances; A criação literária (1954) – ensaio; Poemas coronários (1964). O amanuense Belmiro foi traduzido para o inglês e o francês. Abdias (excerto do capítulo 4, Gabriela) Por que esconder a verdade a mim mesmo? Já não tenho dúvida acerca do sentimento que nutro por Gabriela. Só os fracos procuram iludir-se, dissimulando a realidade perante a própria consciência. Não sou fraco. Posso dar aparência disso, por me deixar levar facilmente, em determinadas circunstâncias. Mas, de fato, só transijo quando não há, em causa, um interesse fundamental. Sei que não me faltam vontade e ânimo, pois sempre procurei a verdade e nunca temi enfrentá-la. Amo Gabriela, eis o que se passa comigo. Há uma semana que não a vejo, e nada supre a falta que ela me faz. Dirão que é ridículo, além de desonesto e absurdo. Será o que quiserem, mas, à margem de tudo isso, é algo que tem a grandeza da verdade e que não me envergonho de confessar. Perguntarão como pôde acontecer que um homem prudente como eu caísse em semelhante estultícia. Não sou amoral, e tudo, entretanto, me parece agora perfeitamente razoável: quero Gabriela, como quereria uma flor, uma borboleta, um pássaro. Não são todos alegrias do homem? Todos são belos e filhos da natureza. Bem sinto que há, em nosso coração, uma lei moral, mas o que esta lei me prescreve é que não cause dano a ninguém. Não estou causando mal a ninguém. Carlota não sofrerá com isso, pois jamais saberá. Nem este sentimento é qualquer coisa que possa molestar Gabriela: existe comigo e só para mim. Acho-me tranquilo, convicto de que nada vai haver de extraordinário. Não tenho capacidade para dramas. Possuo um terrível bom-senso, e o bom-senso nunca dramatiza as coisas. 338 É verdade que não sermos capazes de dramas já constitui, por si só, um drama. Para os que o são, um lance épico tudo resolve. Nós outros roemos ingloriamente a nossa dor, burocratizamos o nosso sofrimento. Estou certo, porém, de que não hei de sofrer em demasia. Sou medíocre em tudo. Por que não reprimir este sentimento? Talvez com um pequeno esforço ainda pudesse extirpá-lo, se é que não tem raízes mais profundas do que suponho. Valeria a pena, entretanto? Se não vou ferir a ninguém, por que me hei de privar da agradável emoção que me traz o convívio de Gabriela? Por que cortar esse último contato com a vida e com a poesia? O amor é uma forma de loucura e, como a loucura, tem alternativas: agravase subitamente hoje, amanhã se atenua sem sabermos por quê. No estado em que ontem me achava, teria sido capaz de pôr fogo a uma cidade, só para ver Gabriela. Mau... Começo a usar da linguagem hiperbólica dos namorados. Há nisso, sem dúvida, espantoso exagero. Por certo, eu não atearia fogo nem a um monte de alfafa. Seria mais exato se dissesse que, tendo passado já sete dias sem a ver, se acentuara vivamente em mim o desejo de estar outra vez com ela, beberlhe o olhar e o sorriso, sentir-lhe o timbre da voz ou a graça dos gestos. Suponhamos que a presença, a simples presença, da pessoa amada constitua para o nosso espírito um alimento tão necessário como o são, para o corpo, as proteínas ou os hidratos de carbono. Quando se esgota a provisão do organismo, é forçoso renová-la. Como um hipoglicêmico em crise de açúcar, senti-me deprimido, angustiado, por falta de Gabriela, de que eu me aprovisionara. Eis aí a explicação, em termos prosaicos, do meu estado de espírito ontem. Que me desculpem os que preferem o estilo sublime. O demônio da análise, que me acompanha, compraz-se em despoetizar as coisas. O certo é que passei a manhã toda a excogitar um pretexto para ir à casa de Gabriela, de modo que não causasse estranheza aos seus. Como um criminoso que não foi descoberto é, contudo, tomado pelo medo e imagina ser objeto das suspeitas de todos, já me pus a ver em cada palavra uma alusão e a emprestar sentido a coisas que não o têm. Assim, do fato de haver Glória perguntado por Carlota, da última vez em que estive na sua casa, concluí, arbitrariamente, que já me olham, ali, com desconfianças. Tal pergunta – que deve ter sido feita por simples deferência, como entendi naquele dia – pareceu-me ontem, à luz de agitados pensamentos, corresponder à seguinte reflexão: “Este homem faria melhor se estivesse com sua mulher e 339 seus filhos, em vez de estar procurando a companhia de moças. Sua amizade não convém a Gabriela”... Também me veio à memória outro fato a que eu não havia dado importância, na ocasião, e que passou a significar, a meus olhos, que Carlota suspeitava de meus sentimentos por Gabriela. Aludindo, por certo, à excursão à Serra do Cipó, Carlota falara-me há dias, ao encomendar-me uma gravação de Monpou (Jeunes filles au jardin), que conhecera pelo rádio e desejava ouvir mais atentamente na eletrola que adquirimos: – Você, que agora vive às voltas com mocinhas, vai gostar muito. Dá a impressão de uma aquarela de Marie Laurencin... A comparação da aquarela com a música afigurou-se-me curiosa, por ter Monpou dado às suas jeunes filles, no plano musical, a mesma fluidez, transparência, quase imaterialidade das figuras de Laurencin – mas eu sabia que Carlota estava longe de querer comunicar-me qualquer emoção estética que a gravação lhe houvesse despertado. O que fazia era vingar-se do passeio à Serra, recordando-me ironicamente palavras que escrevi há tempos na Revista de Minas sobre pintura contemporânea, algo pretensiosas, cuja lembrança me desgostava. Tudo isso, dizia eu, me vinha ontem à cabeça, nela incutindo infundados temores. Várias vezes, ao encontrar-me só no meu gabinete do Arquivo Histórico, tomei o receptor do telefone e comecei a girar o disco mágico, que poderia dar-me a cristalina voz de Gabriela. Antes, porém, de se consumar a ligação, eu desligava o aparelho, nervoso, trêmulo, agitado. Quando conseguia vencer, pelo raciocínio, o receio de que a família soubesse do meu segredo e meu telefonema pudesse chocá-la, o dragão amarelo do ridículo inibia-me com o seu riso escancarado: “Que lhe vais dizer, idiota? Não achas que tua assiduidade já deve parecer enfadonha a essa moça? Ou quem sabe pretendes fazer-lhe uma declaração de amor? Isso nem mesmo ofenderia a família, que te julgaria louco. Apenas se descartariam de ti, como de um importuno. Que humilhação, hein, professor?” Por fim, irritado comigo mesmo, decidido a reagir contra aquela franqueza, que era perturbar-me tanto por causa de um telefonema a uma jovem, liguei resolutamente o aparelho. O pretexto seria o do costume – o inquérito do Centro – embora inabilmente eu já houvesse dito a Gabriela que só começaríamos a trabalhar depois dos exames. Não consegui fixar pormenores para o plano da conversa, confiando em poder improvisá-lo. Por sorte minha, a situação simplificou-se bastante, com a circunstância de haver a própria Gabriela atendido o telefone. Falei de modo confuso e hesitante, em contraste com o tom claro e seguro de Gabriela. Como é senhora de si! Foi muito expansiva ao cumprimentar-me e, logo que lhe perguntei se já havia escolhido as companheiras para o nosso 340 trabalho, respondeu que não cuidara disso, em vista do que eu tinha dito, mas que era o de menos. Fá-lo-ia em dois tempos. Repeti-lhe que, de fato, o trabalho não se realizaria antes dos exames, mas que eu me lembrara de lhe telefonar porque acabara de estar com o Roberto Mendonça. Ele se prontificara a entrar em ação, quando quiséssemos. Essa desculpa, arranjada por inspiração de momento, não foi das mais brilhantes, porque Gabriela já se havia esquecido do nome do rapaz, e tive de dar explicações. Depois, Gabriela acrescentou: – Estou mais adiantada do que o senhor supõe. Tenho alguma coisa interessante para lhe mostrar, se quiser ter o incômodo de vir aqui em casa. Consegui reprimir minha efusão, agradecendo-lhe com aparente serenidade convite que tanto me alvoroçava, e combinei ir aquela noite mesmo. Comentários ao excerto do capítulo Gabriela de Abdias Abdias, professor de escola normal que assume o magistério não exatamente por decisão prévia, se deixa atrair pela estudante Gabriela. Abdias é casado com Carlota e tem com ela três filhos ainda pequenos. A análise que Abdias, personagem-narrador, faz de si e de sua situação está marcada pelo psicologismo que carateriza o romance de trinta de veio psicológico. A crença na captação da verdade, o amor extemporâneo e irrealizável, a crença em que é capaz de guardar só para si o sentimento que o assola apontam a certo personalismo ingênuo. A constatação e a verbalização da própria mediocridade dá às reflexões de Abdias cunho interessante de seriedade, o que equilibra a construção do personagem e o faz crível e verossímil. As idealizações são montadas e imediatamente desmontadas. Assim, o tecido textual adequa-se às formulações realistas, o que consagra o estilo do romance como efetivamente neorrealista. MÁRIO de Miranda QUINTANA Mário Quintana nasceu em Alegrete (RS) em 1906. Viveu a maior parte da vida e terminou seus dias em Porto Alegre (1994). Foi poeta e tradutor. Integrou o grupo da Livraria do Globo, na época editora e livraria de renome nacional, localizada em Porto Alegre. É dos únicos escritores brasileiros a ter edição (póstuma) bilíngue português-chinês (Mario Quintana – Antologia poética, 2007). É dos autores brasileiros Poetou sob vários signos estilísticos, ou seja, é possível observar fases ao longo de sua produção poética. 341 Algumas obras que nos legou: Espelho mágico (1951), A rua dos cataventos (1940), Prosa e verso (1978), Antologia poética (1966), Lili inventa o mundo (1983), Poesia completa (2005). Os poemas Os poemas são pássaros que chegam não se sabe de onde e pousam no livro que lês. Quando fechas o livro, eles alçam voo como de um alçapão. Eles não têm pouso nem porto; alimentam-se um instante em cada par de mãos e partem. E olhas, então, essas tuas mãos vazias, no maravilhado espanto de saberes que o alimento deles já estava em ti... Comentários a Os poemas O poema em análise traz pelo menos duas marcas de origem: algo de simbolista e algo de modernista. Do Simbolismo, carrega a suavidade de versos harmonizados por certa musicalidade; do Modernismo, a liberdade de fazer brotar da simplicidade técnica o núcleo temático que expõe. Percebe-se nele certa proximidade ao estilo de Manuel Bandeira (O pardalzinho, p. ex.) e ao de Prado Veppo (Pós-modernismo). Como fundamento ideológico, trabalha a teoria (da leitura) da literatura: o leitor dialoga com o texto, completa-o sob próprios critérios, parcialmente o assimila e ou o recusa. Sob esse aspecto, aproxima-se doutros poemas brasileiros, como Profissão de fé (Bilac), Antífona (Cruz e Sousa), Oferta (Wamosy), Mundo pequeno e Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada (Manoel de Barros). O espetro do poema metaforiza a natureza no interior do ser humano. Eis que o leitor percebe que ele, leitor, é coautor e que entre autor e leitor efetivamente se elabora o poema. Entre eles, não há mais nem menos, mas participantes das mesmas descobertas de significados e significantes, que apontam ao mundo concreto-sensorial e o reconstroem no tecido de palavras. Nem sempre o diálogo ou a suavidade se podem surpreender nos quintanares (formas caraterísticas certos textos breve do Quintana). Nesses poemas-frases, o diálogo pode mudar-se em confronto, e a suavidade, em geral inexiste, como, p. ex., em Cartaz para uma feira do livro: “Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem”. 342 Capítulo 8 PÓS-MODERNISMO (1945/1950-) Na trilha das reflexões sobre a nominação do Modernismo e de sua sequência histórica, estamos agora diante da questão do Pós-modernismo. Analogamente à discussão entre Modernidade e Modernismo, refletiremos sobre Pós-modernidade e Pós-modernismo. A Pós-modernidade consistiria, ao aceitar-lhe a existência, nova (e atual) idade histórica da sociedade humana. A marca essencial dessa configuração histórica seria a perda das noções de utopia, como elas foram elaboradas, parcialmente mantidas e exaltadas, durante a Modernidade. Além das transformações sociopolíticas e geográfico-históricas em várias regiões do planeta, foi época de proposições e experimentações de utopias diversas. O Neo-humanismo eleva-se a categoria de fonte ideológica, o que renova e transfigura a ideologia do Modernismo. Ainda recém-chegados a tais noções e possíveis conceitos, torna-se prudente não expandir outras especulações teóricas. A espiral (veja-se a ilustração de abertura das reflexões sobre o Prémodernismo) expressa algumas ideias coerentemente solidárias, entre Pósmodernidade e Pós-modernismo. Fixamos nosso estudo, a partir deste momento, no que objetivamente nos propusemos: o Pré-modernismo. A máxima norteadora de que nada é, tudo está sendo define carateres ideológicos e artísticos deste momento. Há um ponto de partida único: o núcleo do espiral. À medida que passam pelo tempo, as proposituras e os fatos continuam sendo o que foram, mas já modificados. Essas noções não são novas, mas retomadas. 343 As coisas passam e não passam, no tempo. O presente tem sempre algo no e do passado, como o futuro se fará do presente. No que concerne à literatura e, pois, à arte em geral, esse inabsoluto pode ser demonstrado. Sejam exemplos as tradicionais escolas literárias que vimos estudando. Nessa perspetiva, o Barroco-Maneirismo não é a escola que o antecedeu (fora do Brasil), mas tem algo dela. O Arcadismo não é nem o Barroco-Maneirismo, que o antecede imediatamente, nem o Romantismo que o segue, mas não deixa de ter, na circunscrição e constituição dos textos que o constituem, alguma coisa dessas escolas. O Romantismo não é a mesma coisa que o Arcadismo nem que o Realismo-Naturalismo-Parnasianismo que o sequencia, mas não está livre de abrigar certas marcas dessas escolas. Assim adiante. Será essa, por conseguinte, nova forma possível de se representarem as escolas, período e estilos de época ou manifestações livres da nossa literatura, como a literatura fora-de-escola e outras possíveis – a espiral evolutiva. A discussão do Pós-modernismo (e da Pós-modernidade), apesar de tudo isso, não afasta a pressuposição doutra questão básica inicial: itens questionáveis, cujas existências mesmas podem ser postas em dúvida. Trata-se exatamente de se duvidar da existência efetiva de uma idade histórica pósmoderna e da escola literária pós-modernista. Ao redor do Modernismo aparentemente gravitam o Pré-modernismo e o Pós-modernismo. O período pré-modernista recebeu esse nome especialmente por dois motivos: porque antecede imediatamente o Modernismo e porque alguns textos produzidos nesse momento literário fundamentaram as experiências que os modernistas, especialmente na primeira fase, desenvolveram. Por ser período e não escola em razão de lhe faltarem ideologia própria e estilos convergentes (como foi proposto no estudo do Prémodernismo), a constituição escolar mais próxima e assemelhada lhe dá nomenclatura. O Pré-modernismo alicerçou com conquistas estilísticas as propostas dos modernistas brasileiros. Os modernistas partiram dessas ousadias para exercícios do que consideraram avanços. Um exemplo é o discurso de Macunaíma, em que várias experiências se verificam, da negação do formalismo discursivo ao amálgama de vários falares brasileiros. As formas discursivas pré-modernistas de Lopes Neto, nos Contos gauchescos e nas Lendas do Sul, p. ex., estiveram presentes na construção vocabular, semântica e sintática da rapsódia. Parece que seja sustentável dizer, pois, que o Pré e o Pós-modernismo mantêm relações próximas com o Modernismo. Como o Modernismo claramente constituiu escola, com ideologia sustentadora e estilos circunscritos, tem servido para nomear seus antecedente e consequente. Vamos procurar sustentar a ideia do Pós-modernismo como agrupamento escolar de produção de textos literários brasileiros. 344 Na concepção do Pós-modernismo como escola, é possível admitir o Neohumanismo como sustentação ideológica. Por Neo-humanismo podem-se entender noções de ideologia derivadas do Humanismo e estruturadas sobre a valorização não do homem em sentido genérico, nem do homem como rei do universo, nem do homem iluminado por revelações ou pela luz da razão, nem do homem prototípico, mas do homem comum, integrante das coletividades sem prestígio, dos grupos humanos relegados a posições secundárias e de sustentáculo das atividades proeminentes e dominantes, mas de vários modos marginalizado e ou olvidado. O Pós-modernismo tem como data referencial de início 1945. Esse ano marca o fim da chamada de segunda grande guerra. A partir do conflito armado e suas consequências, uma época histórica se desfigurou e extinguiu-se. Articula-se vagarosamente nova era social, a Pós-modernidade. O desejo de novas formas de vida e de instauração de valores renovados desencadeou também novas concepções de arte. Há quem defenda o início pós-modernista brasileiro na década de 1960. Por motivo de fundamentação já parcialmente exposta e da que seguir vai formulada, procuraremos manter o ano de 1945, como inicial do Pósmodernismo também entre nós, apesar de manter-se como questão, ou seja, ponto em discussão. No Pós-modernismo brasileiro, é comum serem considerados três estilos de época. De 1945 a 1960, pretende-se ver o esteticismo. O esteticismo se carateriza pela revalorização da forma, especialmente no trabalho vocossemântico e na construção de sutilezas expressivas. Algo que lembra o procedimento parnasiano, mas é diferente dele. Provavelmente uma tentativa de reembelezamento formal do mundo decaído. De 1960 a 1980 predomina o expansionismo. O expansionismo se marca pela busca da expressão em várias direções, de várias maneiras, relativamente aos procedimentos estilísticos e aos ideários. Trata-se, pois, de estilo eclético. Assemelha-se, portanto, ao que foi praticado durante o Pré-modernismo, mas doutra maneira. É o momento das vanguardas da poesia figurativa e dos festivais de música que se desenvolveram pelo interior do Brasil. Dá-se nesse momento também o aguçamento do niilismo, ainda que em pequena escala. É momento brasileiro marcado por regime político-governamental de exceção, com imposição de censura às manifestações da arte e do pensamento. De 1980 a 2000, para se manterem datas referenciais, a tendência predominante é o revisionismo. O revisionismo constitui releitura da história, em que se invertem posições quanto a valores: valores tradicionais são contestados e transformados em antivalores, e valores antes considerados negativos recebem consideração positiva. É a prosa que especialmente instaura essa proposta, nas duas décadas finais do século 20. Tem, como se pode notar, vestígios do modernismo destrutivo, mas não é o modernismo da primeira fase. Também como durante a primeira fase modernista, valoriza-se (às vezes extremadamente) a tecnologia. 345 Diferentemente do Modernismo, parece cair sobre o Brasil certa perda de rumo construtivo da nacionalidade. JOÃO CABRAL de Melo Neto João Cabral nasceu em Recife (PE) em 1920 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1999. Foi na Associação Comercial de Pernambuco, em 1937, que obteve seu primeiro emprego, tendo depois trabalhado no Departamento de Estatística do Estado. Foi cônsul brasileiro em Barcelona e em Londres. Viu sua obra reconhecida, em vida. Algumas de suas obras são O engenheiro (1945), O cão sem plumas (1950), Morte e vida severina (1965), A educação pela pedra (1966), Poesias completas (1968). Catar feijão Catar feijão se limita com escrever: joga-se os grãos na água de alguidar, e as palavras na da folha de papel; e depois, joga-se fora o que boiar. Certo, toda palavra boiará no papel, água congelada, por chumbo seu verbo: pois para catar esse feijão, soprar nele e jogar fora o leve e oco, palha e eco. Ora, nesse catar feijão entra um risco: o de que entre os grãos pesados entre um grão qualquer, pedra ou indigesto, um grão imastigável, de quebrar dente. Certo não, quando ao catar palavras: a pedra dá à frase seu grão mais vivo: obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção, isca-a com o risco. (Educação pelo pedra) Comentários ao poema Catar feijão O poema Catar feijão constrói vários segmentos semânticos, que interessam a estes comentários. O título aponta a atividade cotidiana e trivial. Essa busca de aproximação ao cotidiano é marca que os pós-modernistas receberam dos modernistas e a mantiveram; nalguns casos, aprofundaram-na. A apresentação da mancha, a imagem do poema sobre o papel, o identifica em dois blocos de imagens geométricas quase idênticas. O poema inteiro se compõe de duas estrofes de oito versos dodecassílabos cada uma. Nos quatro primeiros versos de cada estrofe, discorre-se a respeito do ato de catar feijão, 346 ou, como dizemos no Sul, escolher feijão. Nos quatro versos finais de cada estrofe, fala-se do escrever. Desse modo, o poema se arma em analogias entre o escolher feijão e o escrever. Nessa operação construtiva, os elementos semânticos se entrelaçam de maneira a sustentar o tecido poético. Segundo o poema, se é verdade que uma “pedra” ou grão “indigesto”, “imastigável, de quebrar dente” é um perigo, algo que pode pôr a perder o esforço da escolha, com o escrever a situação é diferente. No caso da composição (escrita) do poema “a pedra dá à frase seu grão mais vivo”, “obstrui a leitura fluviante, flutual”. Dessa maneira concebido, o texto tangencia também a questão da leitura. Catar feijão, portanto, direciona sua reflexão à poética pósmodernista, incluída nela a importância da leitura, como ação interativa de reconstrução textual. Graciliano Ramos: Falo somente com o que falo: com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol que as limpa do que não é faca: de toda uma crosta viscosa, resto de janta abaianada, que fica na lâmina e cega seu gosto da cicatriz clara. *** Falo somente do que falo: do seco e de suas paisagens, Nordestes, debaixo de um sol ali do mais quente vinagre: que reduz tudo ao espinhaço, cresta o simplesmente folhagem, folha prolixa, folharada, onde possa esconder-se a fraude. *** Falo somente por quem falo: por quem existe nesses climas condicionados pelo sol, pelo gavião e outras rapinas: e onde estão os solos inertes de tantas condições caatinga em que só cabe cultivar o que é sinônimo da míngua. *** 347 Falo somente para quem falo: quem padece sono de morto e precisa um despertador acre, como o sol sobre o olho: que é quando o sol é estridente, a contrapelo, imperioso, e bate nas pálpebras como se bate numa porta a socos. (Serial) Comentários ao poema Graciliano Ramos: A exemplo do anteriormente comentado, este é um poema rigorosamente planejado e construído. O título merece a primeira observação. Graciliano Ramos: se propõe refletir não sobre Graciliano Ramos, mas sobre o estilo de Graciliano Ramos; por isso, a necessidade de manter os dois-pontos. Os doispontos dizem que o romancista Graciliano Ramos vai falar, ou seja, vai-se apresentar no estilo narrativo dele. Daí por que cada conjunto de duas quadras se abre com anúncio de explicitações da fala de Graciliano: “Falo somente com o que falo:”; “Falo somente do que falo:”; “Falo somente por quem falo:”; “Falo somente para quem falo:”. Embora o poema em questão não trate de estilo de poema (mas de estilo de prosa), é, sob certa perspetiva, outro metapoema, porque o estilo que constrói se identifica com o estilo enaltecido. É, com clareza, um poema, pelo menos, metadiscursivo: um metatexto. Morte e vida severina (Auto de natal pernambucano) (excertos) O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI – O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. 348 Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza. Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias 349 e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra. DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ – Agora se me permite minha vez de perguntar: como a senhora, comadre, pode manter o seu lar? – Vou explicar rapidamente, logo compreenderá: como aqui a morte é tanta, vivo de a morte ajudar. – E ainda se me permite que lhe volte a perguntar: é aqui uma profissão trabalho tão singular? – É, sim, uma profissão, e a melhor de quantas há: sou de toda a região rezadora titular. – E ainda se me permite mais outra vez indagar: é boa essa profissão em que a comadre ora está? – De um raio de muitas léguas vem gente aqui me chamar; a verdade é que não pude queixar-me ainda de azar. – E se pela última vez me permite perguntar: não existe outro trabalho para mim neste lugar? – Como aqui a morte é tanta, só é possível trabalhar nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar. Imagine que outra gente de profissão similar, farmacêuticos, coveiros, doutor de anel no anular, remando contra a corrente 350 da gente que baixa ao mar, retirantes às avessas, sobem do mar para cá. Só os roçados da morte compensam aqui cultivar, e cultivá-los é fácil: simples questão de plantar; não se precisa de limpa, de adubar nem de regar; as estiagens e as pragas fazem-nos mais prosperar; e dão lucro imediato; nem é preciso esperar pela colheita; recebe-se na hora mesma de semear. ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO. – Essa cova em que estás com palmos medida, é a conta menor que tiraste em vida. – É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe deste latifúndio. – Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida. – É uma cova grande, para teu pouco defunto, mas estarás mais ancho que estavas no mundo. – É uma cova grande para teu defunto parco, porém mais que no mundo te sentirás largo. – É uma cova grande para tua carne pouca, mas à terra dada não se abre a boca. – Viverás, e para sempre, na terra que aqui aforas: 351 e terás enfim tua roça. – Aí ficarás para sempre, livre do sol e da chuva, criando tuas saúvas. – Agora trabalharás só para ti, não a meias, como antes em terra alheia. – Trabalharás uma terra da qual, além de senhor, serás homem de eito e trator. – Trabalhando nessa terra, tu sozinho tudo empreitas: serás semente, adubo, colheita. – Trabalharás numa terra que também te abriga e te veste: embora com o brim do Nordeste. – Será de terra tua derradeira camisa: te veste, como nunca em vida. – Será de terra tua derradeira camisa: te veste e ninguém cobiça. – Terás de terra completo agora o teu fato: e pela primeira vez, sapato. – Como és homem, a terra te dará chapéu: fosses mulher, xale ou véu. – Tua roupa melhor será de terra e não de fazenda: não se rasga nem se remenda. – Tua roupa melhor e te ficará bem cingida: como roupa feita à medida. Comentários a Morte e vida severina Morte e vida severina é um dos trabalhos mais conhecidos do autor. Tratase de um texto dramático em versos. Daí, a extensão de título – auto de natal pernambucano. Vale dizer: trata-se de um auto que se refere a um nascimento ao jeito pernambucano. Severina pelo nome e severina pela natureza, assim é a vida dos sertanejos. O adjetivo “severina” está posposto aos substantivos e no singular. Ainda assim se refere aos modos de morrer e de viver do sertão semiárido. É possível escolher essa leitura, em função, p. ex., da cena do enterro do lavrador, 352 a que Severino assiste, num dos momentos mais marcantes do texto. Também é possível encontrar outro momento de discordância sintática formal. O primeiro foi no poema Catar feijão (2o verso da 1a estrofe): “Joga-se os grãos na água de alguidar”. Isso permite considerar a discordância nominal do título de Morte e vida severina analogamente à discordância verbal no caso do Catar feijão. Os excertos transcritos possibilitam, pelo menos, visão parcial da peça. No primeiro, Severino (o retirante) se apresenta. No segundo, conversa com uma senhora, na freguesia onde chega, durante a caminhada. No terceiro, assiste ao enterro de um trabalhador de eito. Não é possível, contudo, ler nesses excertos a conclusão ou a ideia conclusiva do auto: entre a morte, que o persegue e o desestimula para a vida, e a vida, representada pelo nascimento de uma criança, valorizado pelas palavras de Seu José Mestre Carpina, a opção final é pela vida, pelas expetativas e pelo desfrute da vida, pelo que ela possa ter de geratriz de esperanças. João GUIMARÃES ROSA Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG) em 1908. Estudou diversas línguas. Com 16 anos, matriculou-se na Faculdade de Medicina da UMG e formou-se em 1930. Mudou-se para o interior de Itaúna (MG), para exercer a profissão. Trabalhou para a embaixada brasileira em Hamburgo e Bogotá. Introduziu inovações no estilo romanesco brasileiro, algo como Lopes Neto tinha feito, durante o Pré-modernismo, a respeito do conto. Foi autor de contos, novelas e romance. Contos: Sagarana (1946), Primeiras estórias (1962), Tutameia (1967), Estas estórias (1969), Ave, palavra (1970). Novelas: Corpo de baile (1956). Romance: Grande sertão: veredas (1956). Faleceu em 1967, no Rio de Janeiro Grande sertão: veredas (excertos dos primeiros parágrafos e os dois últimos) – Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto 353 e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte. Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome dele – dizem só: o Que-Diga. Vôte! não... Quem muito se evita se convive. Sentença num Aristides – o que existe no buritizal primeiro desta minha mão direita, chamado a Vereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita – todo mundo crê: ele não pode passar em três lugares, designados: porque então a gente escuta um chorinho, atrás, e uma vozinha que avisando: – “Eu já vou! Eu já vou!...” – que é o capiroto, o que-diga... E um Jisé Simpilício – quem qualquer daqui jura ele tem um capeta em casa, miúdo satanazim, preso obrigado a ajudar em toda ganância que executa; razão que o Simpilício se empresa em vias de completar de rico. Apre, por isso dizem também que a besta pra ele rupeia, nega de banda, não deixando, quando ele quer amontar... Superstição. Jisé Simpilício e Aristides mesmo estão se engordando, de assim não-ouvir ou ouvir. Ainda o senhor estude: agora mesmo, nestes dias de época, tem gente porfalando que o Diabo próprio parou, de passagem, no Andrequicé. Um Moço de fora teria aparecido e lá se louvou que, para aqui vir – normal, a cavalo, dum dia-e-meio – ele era capaz que só com uns vinte minutos bastava... porque costeava o Rio do Chico pelas cabeceiras! Ou, também, quem sabe – sem ofensas – não terá sido, por um exemplo, até mesmo o senhor quem se anunciou assim, quando passou por lá, por prazido divertimento engraçado? Háde, não me dê crime, sei que não foi. E mal eu não quis. Só que uma pergunta, em hora, às vezes, clareia razão de paz. Mas o senhor entenda: o tal moço, se há, quis mangar. Pois, hem, que, despontar o rio pelas nascentes, será a mesma coisa que um se redobrar nos internos deste nosso Estado nosso, custante viagem de uns três meses... Então? Que-diga? Doideira. A fantasiação. E o respeito de dar a ele assim esses nomes de rebuço é que é mesmo um querer invocar que ele forme forma, com as presenças! Não seja. Eu, pessoalmente, quase que já perdi nele a crença, mercês a Deus; é o que ao senhor lhe digo, à puridade. Sei que é bem estabelecido, que grassa nos Santos-Evangelhos. Em ocasião, conversei com um rapaz seminarista, muito condizente, conferindo no livro de rezas e revestido de paramenta, com uma vara de maria-preta na mão – proseou que ia adjutorar o padre, para extraírem o Cujo, do corpo vivo de uma velha, na Cachoeira-dosBois, ele ia com o vigário do Campo-Redondo... Me concebo. O senhor não é como eu? Não acreditei patavim. Compadre meu Quelemém descreve que o que 354 revela efeito são os baixos espíritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas e com ânsias de se travarem com os viventes – dão encosto. Compadre meu Quelemém é quem muito me consola – Quelemém de Góis. Mas ele tem de morar longe daqui, na Jijujã, Vereda do Buriti Pardo... Arres, me deixa lá, que – em endemoinhamento ou com encosto – o senhor mesmo deverá de ter conhecido diversos, homens, mulheres. Pois não sim? Por mim, tantos vi, que aprendi. Rincha-Mãe, Sangue-d’Outro, o Muitos-Beiços, o Rasga-em-Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre... o Hermógenes... Deles, punhadão. Se eu pudesse esquecer tantos nomes... Não sou amansador de cavalos! E, mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete já é por alguma competência entrante do demônio. Será não? Será? De primeiro, eu fazia e mexia e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range-rede. E me inventei neste gosto, de especular ideia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso... Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco, é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso por estúrdio que me vejam é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela – já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças, eu digo. Pois não é ditado: "menino trem do diabo"? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio-doredemoinho. Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as certas lembranças. Mal haja-me! Sofro pena de contar não... Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar azangada, motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas de manaíbas, vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E ora veja: a outra, a mandioca-brava também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o senhor já viu, por ver, a feiura de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel? Observou o porco 355 gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião, corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar, para adiante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo – que é só assim o significado dum azougue maligno – tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo. Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos é o razoável sofrer. E a alegria de amor, compadre meu Quelemém diz. Família. Deveras? É e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois e Deus, junto. Vi muitas nuvens. Mas, em verdade, filho também abranda. Olhe: um chamado Aleixo, residente a légua do Passo do Pubo, no da-Areia, era o homem de maiores ruindades calmas que já se viu. Me agradou que perto da casa dele tinha um açudinho, entre as palmeiras, com traíras, pra-almas de enormes, desenormes, ao real, que receberam fama; o Aleixo dava de comer a elas, em horas justas, elas se acostumaram a se assim das locas para papar, semelhavam ser peixes ensinados. Um dia, só por graça rústica, ele matou um velhinho que por lá passou, desvalido rogando esmola. O senhor não duvide – tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta... Eh, pois, empós, o resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, vem o são, vem o cão. Esse Aleixo era homem afamilhado, tinha filhos pequenos; aqueles eram o amor dele, todo, despropósito. Dê bem, que não nem um ano estava passado de se matar o velhinho pobre, e os meninos do Aleixo aí adoeceram. Andaço de sarampão, se disse, mas complicado; eles nunca saravam. Quando, então, sararam. Mas os olhos deles vermelhavam altos, numa inflama de sapiranga à rebelde; e susseguinte – o que não sei é se foram todos duma vez, ou um logo e logo outro e outro – eles restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinho de luz dessa nossa! O senhor imagine: uma escadinha – três meninos e uma menina – todos cegados. Sem remediável. O Aleixo não perdeu o juízo; mas mudou: ah, demudou completo – agora vive da banda de Deus, suando para ser bom e caridoso em todas suas horas da noite e do dia. Parece até que ficou o feliz, que antes não era. Ele mesmo diz que foi um homem de sorte, porque Deus quis ter pena dele, transformar para lá o rumo de sua alma. Isso eu ouvi e me deu raiva. Razão das crianças. Se sendo castigo, que culpa das hajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?! Compadre meu Quelemém reprovou minhas incertezas. Que, por certo, noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados, da massa e peça do pai, demônios do mesmo caldeirão de lugar. Senhor o que acha? E o velhinho assassinado? – eu sei que o senhor vai discutir. Pois, 356 também. Em ordem que ele tinha um pecado de crime, no corpo, por pagar. Se a gente – conforme compadre meu Quelemém é quem diz – se a gente torna a encarnar renovado, eu cismo até que inimigo de morte pode vir como filho do inimigo. Mire e veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, vizinho daqui mais seis léguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele, sempre sidos bons, de bem. Eles têm um filho duns dez anos, chamado Valtei – nome moderno, é o que o povo daqui agora apreceia, o senhor sabe. Pois essezinho, essezim, desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar, de todo bicho ou criaçãozinha pequena que pega; uma vez, encontrou uma crioula benta-bêbada dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhou em três pontos a popa da perna dela. O que esse menino babeja vendo é sangrarem galinha ou esfaquear porco. – "Eu gosto de matar..." uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça – o voo já está pronto! Pois, o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de miséria e mastro – botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nu nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele do sangue, com cuia de salmoura. A gente sabe, espia, fica gasturado. O menino já rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo tosse, tossura da que puxa secos peitos. Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feio de diversão – como regulam as sovas em horas certas, confortáveis, até chamam gente para ver o exemplo bom. Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim, não chega para a quaresma que vem... Uê-uê, então?! Não sendo como compadre meu Quelemém quer, que explicação é que o senhor dava? Aquele menino tinha sido homem. Devia, em balanço, terríveis perversidades. Alma dele estava no breu. Mostrava. E, agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando está chorando e penando, ele sofre igual que se fosse um menino bonzinho... Ave, vi de tudo, neste mundo! Já vi até cavalo com soluço... – o que é a coisa mais custosa que há. Bem, mas o senhor dirá, deve de: e no começo – para pecados e artes, as pessoas – como por que foi tanto que tanto emendado se começou? Ei, ei, aí todos esbarram. Compadre meu Quelemém, também. Sou só um sertanejo, nessas altas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde o começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia – que também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro, 357 despaçado. Na fazenda O Limãozinho, de um amigo Vito Soziano, se assina desse almanaque grosso, de logogrifos e charadas e outras divinas matérias, todo ano vem. Em tanto, ponho primazia é na leitura proveitosa, vida de santo, virtudes e exemplos – missionário esperto engambelando os índios, ou São Francisco de Assis, Santo Antônio, São Geraldo... Eu gosto muito de moral. Raciocinar, exortar os outros para o bom caminho, aconselhar a justo. Minha mulher, que o senhor sabe, zela por mim: muito reza. Ela é uma abençoável. Compadre meu Quelemém sempre diz que eu posso aquietar meu temer de consciência, que, sendo bem-assistido, terríveis bons-espíritos me protegem. Ipe! Com gosto... Como é de são efeito, ajudo com meu querer acreditar. Mas nem sempre posso. O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei em mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo! Diverjo de todo mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém! Olhe: o que devia de haver era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições gradas, fecharem o definitivo a noção – proclamar por uma vez, artes assembleias, que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim, davam tranquilidade boa à gente. Por que o Governo não cuida?! Ah, eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente – dá susto se saber – e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons... De sorte que carece de escolher: ou a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida só de religião só. Eu podia ser: padre sacerdote, se não chefe de jagunços; para outras coisas não fui parido. Mas minha velhice já principiou, errei de toda conta. E o reumatismo... Lá como quem diz: nas escorvas. Ahã. Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardeque. Mas, quando posso, vou no Mindubin, onde um Matias é crente, metodista: a gente se de acusa pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me aquieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável. E eu! Bofe! Detesto! O que sou? – o que faço, que quero, muito curial. E em cara de todos faço, executado. Eu? – não tresmalho! [...] 358 E me cerro, aqui, mire e veja. Isto não é o de um relatar passagens de sua vida, em toda admiração. Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras. Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia. Comentários aos excertos de Grande sertão: veredas Grande sertão: veredas é um romance de longo curso sobre a necessidade de falar para compreender a circunstância das pessoas no mundo. A condição da fala, concebida no lugar de fala pelo homem local, e as caraterísticas do discurso dão ao romance condição de excepcionalidade na história do romance brasileiro. Não se trata, porém, de inovações absolutas, que isso não existe. Trata-se de fato de atenta observação do mundo cultural de onde emerge o narrador, Riobaldo. Riobaldo aprendeu a falar com Blau Nunes, personagem e narrador dos contos de Lopes Neto, em Contos gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913). Claro fique, no entanto, que as falas se assemelham nos fundamentos, mas se diferenciam nas respetivas realizações, já que Riobaldo fala do mundo do sertão mineiro; Blau Nunes, do universo das coxilhas sul-riograndenses. São discursos com várias inserções de grande dimensão poética. Riobaldo também aprendeu com Blau que o mundo urbano é ensimesmado e vota às vezes profundo desprezo pelos universos rurais. As falas que integralizem a consciência dos mundos rurais assombram os urbanos. Deixamnos boquiabertos e calados. Mostram-lhes a ignorância que cultivam sobre seus irmãos dos interiores e das periferias. Essas falas forçam as linhas de margem, e as desigualdades cedem espaço à reflexão sem preconceitos. Esse é o segredo da força das falas de Blau Nunes e de Riobaldo. Riobaldo, a exemplo de Dom Casmurro (de Dom Casmurro), Paulo Honório (de São Bernardo), Brasil (de Memorial de Santa Cruz), entre muitos outros, reflete sobre as coisas do mundo, enquanto narra sua própria vida, como a pode lembrar, com o objetivo de entendê-las e dar sentido à existência. O que aqui se lê de Grande sertão são os doze parágrafos iniciais e os dois finais. Neles não se pode ter visão da questão talvez mais crucial da narrativa, que é a dificuldade (às vezes, a impossibilidade) de o ser humano perceber seus momentos decisivos. Trata-se dos encontros de Riobaldo com Reinaldo e das impressões e pensamentos que provocam, que o constrangem. Apesar de terem ocorrido mais de uma vez, não desvendam o mistério. Só bem mais tarde, quando já é impossível, Riobaldo descobre que Reinaldo é de fato Diadorim e que o sentimento, portanto, tinha sido força da natureza para a vida, que ficou 359 recalcado, em virtude das “muitas nuvens”, que nos impedem de ver. Só no ato da fala, no fim dela, é que pode ver as “auroras” e se vê pronto para a “travessia” desta para outra. CLARICE LISPECTOR Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik, Ucrânia, em 1925. Com dois meses de idade, veio com a família para o Brasil. Em 1937, passou a viver no Rio de Janeiro, onde cursou o secundário e iniciou o curso de Direito. Estudante ainda, escreveu seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, publicado em 1944. Acompanhou o marido em viagens à Itália, à Suíça e aos Estados Unidos. Retornou ao Rio de Janeiro na década de 1950. Faleceu em 1977. Alguns títulos de obras suas: Laços de família (1972), Água-viva (1973), A hora da estrela (1977). A hora da estrela (excertos) Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré-história já havia monstros apocalípticos? Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A minha vida, a mais verdadeira, é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa. Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente – é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade. Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes. Como eu irei dizer agora, esta história será o resultado de uma visão gradual – há dois anos e meio venho aos poucos descobrindo os porquês. É a visão da iminência de. De quê? Quem sabe se mais tarde saberei. Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. Só não inicio pelo fim que justificaria o começo – como a morte parece dizer sobre a vida – porque preciso registrar os fatos antecedentes. Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita. De onde no entanto até sangue arfante de tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e logo se coagular em cubos de geleia trêmula. Será essa história um dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há veracidade nela – e é claro que a história é verdadeira embora inventada – que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não 360 tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro – existe a quem falte o delicado essencial. Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão fingindo de sonsos. Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos sustentam. A história – determino com falso livre arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e gran finale seguido de silêncio e de chuva caindo. [...] Sim, mas não esquecer que para escrever não-importa-o-quê o meu material básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. É claro que, como todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que palavra é ação, concordais? Mas não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro – e a jovem (ela tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo, morrendo de fome. Tenho então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência. Limito-me a humildemente – mas sem fazer estardalhaço de minha humildade que já não seria humildade – limitome a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. Ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano primário. Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra por letra – a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à máquina. E a moça ganhara uma dignidade: era enfim datilógrafa. Embora, ao que parece, não aprovasse na linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra linda e redonda do amado chefe a palavra designar de modo como em língua falada diria: desiguinar. Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim, que sou meu desconhecido, e ao escrever me surpreendo um pouco, pois descobri que tenho um destino. Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa? 361 Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu?” cairia estatelada e em cheio no chão. É que “quem sou eu” provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto. A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham. [...] Será mesmo que a ação ultrapassa a palavra? Mas que ao escrever – que o nome real seja dado às coisas. Cada coisa é uma palavra. E quando não se a tem, inventa-se-a. Esse vosso Deus que nos mandou inventar. Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Comentários ao excerto de A hora da estrela O excerto focaliza reflexões do narrador, Rodrigo S. M., acerca da construção do texto literário e acerca da personagem central, Macabéa. É ao redor dessa personagem que o enredo do romance se desenvolve. Macabéa é uma jovem alagoana que escolhe o Rio de Janeiro para morar. Essa decisão acaba por matá-la antes da morte. Por isso o Rio de Janeiro é uma “cidade toda feita contra ela”. A hora da estrela é um breve romance brotado do veio psicologista da prosa brasileira. Em Clarice Lispector e alguns outros autores, especialmente autoras, a produção psicologista, que toca em aspectos indizíveis, inexplicáveis dos procedimentos humanos íntimos, tem sido denominada intimista. A constante reflexão sobre a maneira da produção do texto, que o próprio texto literário assume, tem sido denominada metanarratividade. Também a metanarratividade não é componente original do primeiro estilo de época do Pós-modernismo. Com jeito um pouco diferente, mas a preocupação com a construção e a recepção do texto literário se encontra também em romances machadianos, como Memórias póstumas de Brás Cubas. No caso de Memórias, a alusão a questões de construção e recepção do texto literário é frequente e começa no início do romance. Antes do primeiro capítulo, na página intitulada Ao leitor, já se leem referências a respeito, como “o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias”, nas palavras do narrador. Como todos sabemos, a prosa psicologista brasileira é tributária da obra machadiana. 362 Vanguardas poéticas (dos anos 50-60 do século 20) Como outros movimentos culturais e artísticos, o Pós-modernismo teve as suas vanguardas (concretismo, neoconcretismo, poesia práxis). Entre as vanguardas pós-modernistas, tem-se especialmente destacado o movimento concretista. O concretismo foi movimento de produção poética. Em resumo, o concretismo reivindicava o abandono da discursividade e, por consequência, do verso. O poema deveria ser concreto em si mesmo. No desamparo da musicalidade do verso tradicional, a imagem do texto sobre o papel deveria manter a temática, resumida numa palavra-chave. Os poemas concretos se originaram de longa tradição, mas esteve vinculado à forma como a comunicação televisiva se processa. Soava constantemente, na época, a frase de Marshall McLuhan, para quem “o meio é a mensagem”. A poesia começava, pois, a experimentar a linguagem imagética da televisão, cujas ondas se processam verticalmente. Outra aproximação é com a pressa. Talvez seja melhor dizer, com o imediatismo. A imagem dispensa o processo tradicional de leitura, pelo menos em parte. Os poemas, portanto, também se fazem sintéticos. Geralmente não têm título. Costumava-se denominar esse tipo de produção, também, poesia não-linear e poesia não-verbal. Não se suponha, contudo, que poemas icônicos sejam invenção desse estilo. Formas de compor e ler poemas nessa época é que são as marcas que a registram como vanguardista no Pós-modernismo. A seguir são transcritos dois poemas concretos, para experiência de leitura. DÉCIO PIGNATARI Décio Pignatari nasceu em Jundiaí (SP) em 1927. Estudou na capital do Estado e em 1951 formou-se em Direito. Após temporada na Europa, retornou ao Brasil e passou a trabalhar como publicitário e professor. Seu primeiro livro de poemas, O carrossel (1950), reúne trabalhos de imagens semânticas. Pouco depois, com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos e alguns pintores, lançou o Movimento Concretista e se dedicou à poesia concreta, que rompeu com o verso e a subjetividade lírica. Esteve presente na primeira antologia Noigandres (1952); editou o livro-poema Life (1957); Poesia pois é poesia (1977). Participou de obras coletivas sobre literatura, como Teoria da poesia (1965) com Augusto e Haroldo de Campos. São obras dele: eomul2ieaeaO (1968); Contracomunicação (1970); Semiótica e literatura (1974); Comunicação poética (1977) e Signagem da televisão (1984). 363 ra terra ter rat erra ter rate rra ter rater ra ter raterr a ter raterra terr araterra ter raraterra te rraraterra t erraraterra terraraterra (1956) RONALDO Pinto de AZEREDO Ronaldo de Azeredo nasceu no Rio de Janeiro em 1937 e faleceu em São Paulo em 2006. Publicou seus primeiros poemas na Noigandres 3. A evolução de sua poesia é muito curiosa e a que mais dificuldades apresenta para reprodução. Seus últimos trabalhos (principalmente aqueles editados ao longo dos anos 70, em tiragens mínimas) são irreproduzíveis: poemas em pano, poemas-mapa, poemas-desenho, poemas-partitura, poemas-quebra-cabeça. V V V V V V V V V V V V V V V V V V V E V V V V V V V V E L V V V V V V V E L O V V V V V V E L O C V V V V V V V V V V V E V E L E L O L O C O C I C I D I D A V V E L O C I D A D V E L O C I D A D E (1957) Comentários aos poemas figurativos No caso do primeiro poema, a palavra-chave é terra. Ela aparece inteira ou parcialmente em todos os versos. Semanticamente, o poema traz a temática da terra como espaço de onde os homens precisam tirar sustento. Também trata da questão da posse e da propriedade da terra. Quem a lavra (“ara”) não a possui (“é rara te”). A imagem ótica do poema sobre o papel sugere um trecho de terra lavrada, em que se podem distinguir valos de escoamento e encanteiramento para a 364 semeadura. Leitura em voz alta mostrará também a sugestividade dos fonemas erre, que aproximam o resultado sonoro do barulho dos motores (dos tratores). O segundo poema está centrado no tema da velocidade, por isso é essa sua palavra-chave. O poema traça um retângulo sobre o papel. O retângulo traçado está composto por dois triângulos isósceles. À esquerda e ao alto, o triângulo é constituído apenas da letra vê, cuja sonorização sugere o ruído de algo que se movimenta no ar: é, pois, a sugestão sonora da velocidade. No outro triângulo, à direita e embaixo, as letras impressas compõem a palavra-chave. Os alinhamentos transversais, compostos sempre de uma mesma letra, ao lado das figuras geométricas perfeitas, sugerem a precisão da tecnologia, que capacita alguns objetos ao movimento e à velocidade. 365 MANOEL Wenceslau Leite de BARROS Manoel de Barros nasceu em Cuiabá (MT) à beira do Rio Cuiabá, em 1916. Mudou-se para Corumbá (MS), onde se fixou por algum tempo. Faleceu em Campo Grande (MS), em 2014. Foi poeta, fazendeiro e advogado. A obra dele tem sido reconhecida por leitores, professores, e críticos nacionais. Eis algumas de suas obras: Poemas concebidos sem pecado (1937); Compêndio para uso dos pássaros (1960); Gramática expositiva do chão (1966); Livro de pré-coisas (1985); O guardador de águas (1989); O livro das ignorãças (1993); Livro sobre nada (1996); O fazedor de amanhecer (2001); Obra completa (2010). O primeiro livro escrito por ele está perdido para o público. Foi sequestrado por um policial. O livro foi preso no lugar do autor, porque Manoel de Barros fora procurado por ter escrito frase de apoio ao Comunismo numa estátua de rua, no Rio de Janeiro, onde estudava na época. Ele tinha 18 anos de idade. Intitulavase Nossa Senhora de Minha Escuridão. Era 1934. Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada 4ª parte de O guardador de águas - quinto poema Escrever nem uma coisa Nem outra – A fim de dizer todas – Ou, pelo menos, nenhumas. Assim, Ao poeta faz bem Desexplicar – Tanto quanto escurecer acende os vagalumes. Terceiro dia Os deslimites da palavra – 2ª parte de O livro das ignorãças Terceira parte do primeiro poema Passa um galho de pau movido a borboletas: Com elas celebro meu órgão de ver. Inclino a fala para uma oração. Tem um cheiro de malva esta manhã. Hão de nascer tomilhos em meus sinos. (Existe um tom de mim no anteceder?) Não tenho mecanismo para santo. Palavra que eu uso me inclui nela. Este horizonte usa um tom de paz. Aqui a aranha não denigre o orvalho. 366 Mundo pequeno (3ª parte de O livro das ignorãças) Sétimo poema Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito. Eu pensava que fosse um sujeito escaleno. – Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse. Ele fez um limpamento em meus receios. O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas... E se riu. Você não é de bugre? – ele continuou. Que sim, eu respondi. Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas – Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros. Há que apenas saber errar bem o seu idioma. Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de agramática. Comentários aos poemas de Manoel de Barros No primeiro poema lê-se referência à construção e à recepção do texto poético. A referência ao texto poético dá-se por três vias: o fato de ser um poema; a negação da necessidade de “dizer” algo com certa clareza, como ocorre na prosa (1a estrofe); a alusão direta ao procedimento da elaboração poética centrada no substantivo “poeta” (2 o verso, 2a estrofe). Não explicar (ou “desexplicar” ou deixar o leitor interpretar) aponta ao caráter sintético, antidiscursivo do poema, que o distingue, também por isso, do texto em prosa. Sugere igualmente o encontro dialógico entre texto e leitor. A analogia estabelecida é com “escurecer” (falta de clareza), que “acende os vagalumes”, i. é, acende as luzes do leitor. A multíplice iluminação traz beleza ao texto. A iluminação se coneta à polissemia, uma das marcas fundamentais do texto literário. Em outro poema Manoel de Barros escreveu mais ou menos isso – “Há certas frases que se iluminam pelo opaco” (igualmente de O livro das ignorãças). O segundo poema pertence à segunda parte (Os deslimites da palavra), do mesmo livro, e intitula-se Terceiro dia. A extensão do título do poema já aponta ao rumo temático do texto: “os deslimites da palavra”. O trecho sugere a sequência da criação. Por isso o título é “terceiro dia”. Fala das obras da 367 natureza. Destaca a coexistência do belo tradicional da lírica (simbolizado pelo “orvalho”) unido ao tradicionalmente considerado feio, repelente e apoético. Por isso “aqui a aranha não denigre o orvalho”. Saber ver ao olhar, saber unir e conetar, eis as possibilidades de construir relações de beleza, parece dizer o texto. Sobre a simbologia do orvalho, pode-se ver Nova poética, de Manuel Bandeira (Modernismo). O terceiro poema considera a questão da língua e do uso da língua, ou a relação entre acerto e erro, quando se trata de matéria linguística (a palavra) no âmbito da literatura. “Saber errar bem o seu idioma” é a chave da questão. Subverter o código para que diga mais, para que rompa a banalização que o diaa-dia impõe aos recursos expressivos e sugestivos da língua na configuração do poema, eis a maneira de ultrapassar o corriqueiro. Trata-se, portanto, de um dos ângulos de constituição da poesia. Como se pode perceber, são textos metapoéticos. Se houve alguns anteriores que puderam ser enquadrados no esteticismo, os poemas de Manoel de Barros não parecem enquadrar-se no mesmo estilo de época. Flui nesses textos, mais que a formalização esteticista, a preocupação com encontrar formas para expressar o que se vê, o que não se evidencia em Melo Neto, p. ex. A fluidez das frases é mais facilmente perceptível; em Melo Neto mostra-se a afirmação de certeza artesanal. Há certo embalo despreocupado nos poemas de Barros, ausente em Melo Neto. A literatura de Barros parece mostrar-se mais claramente em buscar ou reencontrar caminhos. De modo semelhante, o ideário está constituído ou centrado nas descobertas das coisas simples, que esclarecem e deslumbram, a começar pela natureza. Por esses motivos, parece mais coerente falar em participação (de Barros) na fase expansionista do Pósmodernismo. Cabe esclarecer a dificuldade que a concepção do expansionismo traz à teorização. Ocorre que expansionismo (1960-1980) diz apenas de momento em que os autores demonstram, nos textos, certa angústia da exposição à censura. Por isso mesmo se pode falar a partir dos autores e não propriamente dos textos. Por expansionismo não se entende exatamente um estilo, mas um período estilístico e a busca de formas e temas. Essa busca se constitui na diversidade dos textos, no ecletismo das propostas, na tentativa ora de despistar, ora de reagir às mesmices que nalguns momentos costumam se abater sobre a produção. Haja vista que foi nessa época que começaram a aparecer os festivais de música no interior e em capitais do Brasil. É como disse um dos idealizadores dum desses festivais: “Precisávamos construir o palco em que pudéssemos cantar do nosso jeito”, sem submissões a modismos, a estrangeirismos, a cartilhas formais e ideológicas. 368 FERREIRA GULLAR Ferreira Gullar é o pseudônimo de José Ribamar Ferreira. Nasceu em São Luís (MA), em 1930. No Rio de Janeiro, colaborou em jornais e revistas, como poeta e como crítico de arte. Fez parte dos movimentos concretista e neoconcretista. Em 1961, considerando o novo movimento esgotado, dedicouse à cultura popular. Reelaborou sua experiência poética com textos de cordel. Obra: Dentro da noite veloz (1975); Poema sujo (1976); Antologia poética (1977). Cultura posta em questão (1964); Vanguarda e subdesenvolvimento ensaio. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come (1966), com Oduvaldo Viana Filho – teatro. Dentro da noite veloz I Na quebrada do Yuro eram 13 horas 30 (em São Paulo era mais tarde; em Paris anoitecera; na Ásia o sono era seda) Na quebrada do rio Yuro a claridade da hora mostrava seu fundo escuro: as águas limpas batiam sem passado e sem futuro. Estalo de mato, pio de ave, brisa nas folhas era silêncio o barulho a paisagem (que se move) está imóvel, se move dentro de si (igual que uma máquina de lavar lavando sob o céu boliviano, a paisagem com suas polias e correntes de ar) Na quebrada do Yuro não era hora nenhuma só pedras plantas e águas 369 II Não era hora nenhuma até que um tiro explode em pássaros e animais até que passos vozes na água rosto nas folhas peito ofegando a clorofila penetra o sangue humano e a história se move a paisagem como um trem começa a andar Na quebrada do Yuro eram 13 horas e 30 III Ernesto Che Guevara teu fim está perto não basta estar certo pra vencer a batalha Ernesto Che Guevara entrega-te à prisão não basta ter razão pra não morrer de bala Ernesto Che Guevara não estejas iludido a bala entra em teu corpo como em qualquer bandido Ernesto Che Guevara por que lutas ainda? a batalha está finda antes que o dia acabe Ernesto Che Guevara é chegada a tua hora e o povo ignora se por ele lutavas IV Correm as águas do Yuro, o tiroteio agora é mais intenso, o inimigo avança 370 e fecha o cerco. Os guerrilheiros em grupos pequenos divididos aguentam a luta, protegem a retirada dos companheiros feridos. No alto, grandes massas de nuvens se deslocam lentamente sobrevoando países em direção ao Pacífico, de cabeleira azul. Uma greve em Santiago. Chove na Jamaica. Em Buenos Aires há sol nas alamedas arborizadas, um general maquina um [golpe. Uma família festeja bodas de prata num trem que se aproxima de Montevidéu. À beira da estrada muge um boi da Swift. A Bolsa no Rio fecha em alta ou baixa. Inti Peredo, Benigno, Urbano, Eustáquio, Ñato castigam o avanço dos rangers. Urbano tomba, Eustáquio, Che Guevara sustenta o fogo, uma rajada o atinge, atira novamente, solve-se-lhe o joelho, no espanto os companheiros voltam para apanhá-lo. É tarde. Fogem. A noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos. V Não está morto, só ferido. Num helicóptero ianque é levado para Higuera onde a morte o espera Não morrerá das feridas ganhas no combate mas de mão assassina 371 que o abate Não morrerá das feridas ganhas a céu aberto mas de um golpe escondido ao nascer do dia Assim o levam pra morte (sujo de terra e de sangue) subjugado no bojo de um helicóptero ianque É o seu último voo sobre a América Latina sob o fulgor das estrelas que nada sabem dos homens que nada sabem do sonho, da esperança, da alegria, da luta surda do homem pela flor de cada dia É o seu último voo sobre a choupana de homens que não sabem o que se passa naquela noite de outubro quem passa sobre seu teto dentro daquele barulho quem é levado pra morte naquela noite noturna VI A noite é mais veloz nos trópicos (com seus na vertigem das folhas na explosão monturos) das águas sujas surdas nos pantanais é mais veloz sob a pele da treva, na conspiração de azuis e vermelhos pulsando como vaginas frutos bocas vegetais (confundidos nos sonhos) ou ramo florido feito um relâmpago parado sobre uma cisterna d’água 372 no escuro É mais funda a noite no sono do homem na sua carne de coca e de fome e dentro do pote uma caneca da lata velha de ervilha da Armour Company A noite é mais veloz nos trópicos com seus monturos e cassinos de jogo entre as pernas das putas o assalto a mão armada aberta em sangue a vida É mais veloz (e mais demorada) nos cárceres a noite latino-americana entre interrogatórios e torturas (lá fora as violetas) e mais violenta (a noite) na cona da ditadura Sob a pele da treva, os frutos crescem conspira o açúcar (de boca para baixo) debaixo das pedras, debaixo da palavra escrita no muro ABAIX e inacabada Ó Tlalhuicole as vozes soterradas da platina Das plumas que ondularam já não resta mais que lembrança no vento Mas é o dia (com seus monturos) pulsando dentro do chão 373 como um pulso apesar da South American Gold and Platinum é a língua do dia no azinhavre Golpeábamos en tanto los muros de adobe y era nuestra herencia una red de agujeros é a língua do homem sob a noite no leprosário de San Pablo nas ruínas de Thiauanaco nas galerias de chumbo e silicose da Cerro de Pasco Corporation Hemos comido grama salitrosa piedras de adobe lagartijas ratones tierra em polvo y gusanos até que o dia (de dentro dos monturos) irrompa com seu bastão de turquesa VII Súbito vimos ao mundo e nos chamamos Ernesto Súbito vimos ao mundo e estamos na América Latina Mas a vida onde está? nos perguntamos Nas tavernas? nas eternas tardes tardas? nas favelas onde a história fede a merda? no cinema? na fêmea caverna dos sonhos e de urina? ou na ingrata faina do poema? (a vida que se esvai no estuário do Prata) Serei cantor serei poeta? 374 Responde o cobre (da Anaconda Cooper): Serás assaltante e proxeneta policial jagunço alcagueta Serei pederasta e homicida? serei viciado? Responde o ferro (de Betlhem Steel): Serás ministro de Estado e suicida Serei dentista? talvez quem sabe oftalmologista? otorrinolaringologista? Responde a bauxita (da Kaiser Aluminium): serás médico aborteiro que dá mais dinheiro Serei uma merda quero ser uma merda Quero de fato viver. Mas onde está essa imunda vida – mesmo imunda? No hospício? num santo ofício? no orifício da bunda? Devo mudar o mundo, a República? A vida terei de plantá-la como um estandarte em praça pública? VIII A vida muda como a cor dos frutos lentamente e para sempre A vida muda como a flor em fruto velozmente A vida muda como a água em folhas o sonho em luz elétrica a rosa desembrulha do carbono o pássaro, da boca mas quando for tempo 375 E é tempo todo tempo mas não basta um século para fazer a pétala que um só minuto faz ou não mas a vida muda a vida muda o morto em multidão. Comentários ao poema Dentro da noite veloz Dentro da noite veloz é uma ode a Che Guevara. O poema está composto em oito partes. A estrofação é irregular ao longo do poema. O ritmo às vezes está marcado, como na 3a e na 5a partes, em que as estrofes são quadras; às vezes os versos obedecem a sequência gráfica que se afasta das formas tradicionais, o que era usual na época. O poema se dedica a analisar a condição da população latino-americana, um pouco como se pode supor que Che Guevara a via. A grande expectativa é que “a vida muda” “para sempre”, “lentamente” ou “velozmente”, mas há o tempo que se instala entre cada etapa. As mudanças às vezes surpreendem, “como a água [que muda] em folhas”, na natureza, e como “o sonho [que muda] em luz elétrica” na atividade do homem. A esperança se resguarda, porque “a vida muda o morto em multidão”, ou seja, a figura lembrada no poema há de ressuscitar na multidão que a utopia há de construir. Notícia da morte de Alberto da Silva (poema dramático para muitas vozes) Eis aqui o morto chegado a bom porto Eis aqui o morto como um rei deposto Eis aqui o morto com seu terno curto Eis aqui o morto com seu corpo duro Eis aqui o morto enfim no seguro II De barba feita, cabelo penteado jamais esteve tão bem arrumado De camisa nova, gravata borboleta parece até que vai para uma festa 376 No rosto calmo, um leve sorriso nem parece aquele mais-morto-que-vivo Imóvel e rijo assim como o vês parece que nunca esteve tão feliz III Morava no Méier desde menino seu grande sonho era tocar violino Fez o curso primário numa escola pública quanto ao secundário resta muita dúvida Aos treze anos já estava empregado num escritório da rua do Senado Quando o pai morreu criou os irmãos sempre foi um homem de bom coração Começou contínuo e acabou funcionário sempre eficiente e cumpridor do horário Gostou de Nezinha, de cabelos longos, que um dia sumiu com um tal de Raimundo Gostou de Esmeralda uma de olhos pretos ela nunca soube desse amor secreto Endoidou de fato por Laura Marlene que dormiu com todos menos com ele Casou com Luísa, que morava longe, não tinha olhos pretos nem cabelos longos Apesar de tudo, foi bom pai de família sua casa tinha uma boa mobília Conversava pouco mas foi bom marido comprou televisão e um rádio transístor Não foi carinhoso com a mulher e a filha mas deixou para elas um seguro de vida Morreu de repente ao chegar em casa ainda com o terno puído que usava Não saiu notícia em jornal algum foi apenas a morte de um homem comum E porque ninguém noticiou o fato fazemos aqui este breve relato IV Não foi nada demais, claro, o que aconteceu: 377 apenas um homem, igual aos outros, que morreu Que nos importa agora se quando menino o seu grande sonho foi tocar violino? Que nos importa agora quando o vamos enterrar se ele não teve sequer tempo de namorar? Que nos importa agora quando tudo está findo se um dia ele achou que o mar estava lindo? Que nos importa agora se algum dia ele quis conhecer Nova Iorque, Londres ou Paris? Que nos importa agora se na mente confusa ele às vezes pensava que a vida era injusta? Agora está completo, já nada lhe falta: nem Paris nem Londres nem os olhos de Esmeralda V Mas é preciso dizer que foi como um fio d’água que não chegou a ser rio Refletiu no seu curso o laranjal dourado sem que nada desse ouro lhe fosse dado Refletiu na sua pele o céu azul de outubro e as esplendentes ruínas do crepúsculo E agora, quando se vai perder no mar imenso, tudo isso, nele, virou rigidez e silêncio: toda palavra dita, toda palavra ouvida, todo riso adiado ou esperança escondida toda fúria guardada, todo gesto detido o orgulho humilhado, o carinho contido o violino sonhado, as nuvens, a espuma das nebulosas, a bomba nuclear agora nele são coisa alguma VI Mas no fim do relato é preciso dizer que esse morto não teve tempo de viver Na verdade vendeu-se, não como Fausto, ao Cão: vendeu sua vida aos seus irmãos Na verdade vendeu-a, não como Fausto, a prazo: vendeu-a à vista, ou melhor, deu-a adiantado 378 Na verdade vendeu-a, não como Fausto, caro: vendeu-a barato e, mais, não lhe pagaram VII Enfim este é o morto agora homem completo: só carne e esqueleto Enfim este é o morto totalmente presente: unha, cabelo, dente Enfim este é o morto: um anônimo brasileiro do Rio de Janeiro de quem nesta oportunidade damos notícia à cidade Comentários ao poema Notícia da morte de Alberto da Silva A extensão do título (poema para muitas vozes) revela a proposta de um poema para ser recitado. Ideologicamente, o poema reflete a respeito da condição do homem comum da cidade. Sem reivindicar, sem ser sujeito de sua história, Alberto da Silva se aproxima de Pedro de Agora eu quero cantar, de Mário de Andrade (Modernismo). Tudo acontece sobre ele; ele não faz acontecer nada. Aproxima-se também da alegoria de A cachoeira de Paulo Afonso de Castro Alves (Romantismo). A falta de reação ao não-ser leva inexoravelmente à morte. Estilisticamente, o poema se fortalece especialmente na quinta parte, quando ensaia alegoria entre o homem e o rio. ARMINDO TREVISAN Armindo Trevisan nasceu em Santa Maria (RS), em 1933. Graduou-se em Filosofia e Teologia. Doutorou-se na Suíça, pela Universidade de Friburgo. Foi professor no Instituto de Artes da UFRGS. É detentor do Prêmio Nacional de Poesia Gonçalves Dias pelo livro A surpresa de ser (1967). Outras obras dele: Funilaria no ar (1973); Em pele e osso (1977); O ferreiro harmonioso (1978); O moinho de Deus (1985); Os olhos da noite (1997); O canto das criaturas: uma biografia lírica de São Francisco de Assis (1998). 379 Oração por uma criança Do nada que habita nossos corpos tiraste Senhor esta flor de carne! O espírito move-lhe as narinas invisível motor a bombear água na montanha. Seu rosto é um pouco nosso rosto. Sua alma voa por entre cerejeiras e corvos. Traz migalhas da escuridão das primeiras águas sobre as quais planavas a incubar o mundo. Oh! Suas pequeninas mãos recendem ao fogo que ardeu em nosso coração numa obscura noite de amor. Repousa agora ao nosso lado imprevisível como uma flecha. Concede-lhe o sopro maior de tua boca. Que a luz de seus olhos se apague no abismo de teus olhos. (O ferreiro harmonioso) Comentários ao poema Oração por uma criança O poema em questão aponta Ao principal recurso ideológico do poeta Armindo Trevisan: o misticismo. O misticismo se revela de maneira patente no livro do qual foi extraído o poema, O ferreiro harmonioso. Como os humanos não somos capazes de dominar a condição existencial, Deus é solicitado. A imprevisibilidade de “uma flecha”, que há na vida humana recém-nascida, revela todas as fragilidades e incertezas dela. Uma flecha em repouso pode ser um adorno como pode ser um índice. Se se puser em movimento, só Deus sabe! A “alma” (do latim, anĭma: sopro, vida), viaja entre universos conflitantes: “cerejeiras e corvos”. Esse ser que veio “do nada que habita nossos corpos” está fadado também ao nada. Por isso, o poema-oração se conclui na súplica maior: que a escuridão dos olhos (quando os olhos já não tenham luz) deságue (se desfaça) no “abismo” da luz dos olhos de Deus, intemporais. O lixeiro I O lixeiro 380 por primeiro lava a alma da manhã as mãos lhe brotam do tronco é linha reta de nariz a nariz II A casca vai construindo a metrópole o pó deserta a cristaleira o trapo se esgueira pela joia III Como quem ceifa o boné do maquinista o avental da florista o lixeiro encova nas mãos a obesidade da vida nele o que sobra da cobra não é veneno é a pele que a estação não carregou IV O lixeiro por dinheiro escarra por dinheiro salta da giba por dinheiro também é lixo 381 V Mas o dinheiro do lixeiro não é lixo é vingança de bicho VI Por dinheiro o lixeiro sorve piche em canudinho engole tinteiro tira dele a assinatura de reservista VII Em lixo ele pensa abre o coração de baixo para cima foi alfabetizado para ser cidadão é no coração que lhe puseram lixo VIII Não que a mão seja mais nobre pelo cobre que martela pelo excremento que aperta não que a mão seja ex-mão por afundar no real onde o limite é fatal mas há de ser menos mão quando obedecer a outra mão 382 não se ligar a ela pelo remo pela vela por tudo que primeiro foi aboio IX A mão do lixeiro remorso da cidade edifica uma latrina sobre a língua da democracia X O lixeiro que passa o cão que o precede sob a luminária a lata que exibe caviar o lixeiro não fala aprendeu depressa a se sujar XI Macho o lixeiro alimenta o enfeite seu riso urina no parágrafo tal XII Vai morrer por ter cumprido o dever girassol na anca do instinto 383 XIII Lixo de vida lixo de morte na sua pétala um verme convivemos no tempo eu no meu reino ele na sua caverna bem haja quem lhe inventou esse nome Pedro da Silva peixe outrora depois ave primata nem isso Pedro da Silva por graça de Deus e dos homens lixeiro ex-lixeiro isso uma coisa Pedro da Silva habitante do Brasil. (Em pele e osso) Comentários ao poema O lixeiro O lixeiro constitui um dos marcantes momentos de elaboração poética de Armindo Trevisan. A conformação dos versos, das estrofes, o vocabulário, a sintaxe são elementos que constroem o primeiro impacto. Algo próximo do que foi visto em Dentro da noite veloz (Ferreira Gullar). A multiplicidade semântica faz o segundo (porque os significados vão brotando aos poucos). O questionamento ideológico penetra em questões sobre as quais nem sempre nos surpreendemos pensando; como, p. ex., o que pode significar democracia. É o que se lê na nona parte: “A mão do lixeiro / remorso da cidade / edifica uma latrina / sobre a língua / da democracia”. Essa passagem mostra-se exemplar das questões que vêm a lume no poema. 384 As desigualdades também encontram contundência no poema. “Lixo de vida / lixo de morte / na sua pétala / um verme / convivemos no tempo / eu no meu reino / ele / na sua caverna”. Como constantemente ocorre ao longo da composição, nessa passagem igualmente a expressividade rítmica se solidifica sobre a sugestividade ótica da leitura, como, p. ex., o pronome “ele” isolado no verso que sozinho constitui. As relações entre “meu reino” e “sua caverna” podem desenvolver amplas reflexões a respeito do relacionamento humano de sempre. Luís Guilherme do PRADO VEPPO Prado Veppo nasceu em Porto Alegre em 1932 e faleceu em Santa Maria (RS) em 1999. Viveu em Porto Alegre, Uruguaiana, Vacaria e em Santa Maria, onde se fixou. Dedicou-se à poesia, à medicina psiquiátrica e ao magistério. São dele Alba, tempo e rosa (1962); O andarilho (1964); Espada de flor (1975); Passos do vislumbre (1994); Os breves (1995); O girassol azul (1996); Quarteto in verso (1996); Quarteto in prosa e verso (1998); Cavaleiros da vida e da morte (1998). A Obra completa foi editada (pela UFSM) em 2002. A obra do Prado Veppo é principalmente constituída de poemas que tratam da vida infantil, seus percalços, frustrações, pequenas e grandes tristezas e alegrias comuns. O que marca estilisticamente a produção poética de Prado Veppo é a simplicidade, que às vezes o aproxima de Casimiro de Abreu, outras, de Vinícius de Moraes, mas sempre de modo próprio. O ritmo e o metro geralmente atendem à melodia da fala cotidiana e às vezes ao embalo da sugestividade adequada a cada texto. Poema do plantão do hospital Estou aqui para as angústias E devo esperar os desesperos. A dor me chamará na madrugada E verei o medo nos olhos Intumescidos de súplicas. Estou aqui para marcar-me De gritos enrouquecidos E sentir a vida fugir Das minhas mãos de brinquedo. Mas eu sei que estou aqui, Para criar novos abraços Em mil braços esquecidos E dar às ruas do mundo Os seus aviões de papel. (Alba, tempo e rosa) 385 Comentários ao Poema do plantão de hospital O Poema do plantão do hospital, como a obra em geral de Prado Veppo, é composição marcada pela simplicidade e pela atenção à infância; nesse caso, ao vir ao mundo. Na primeira estrofe, o poema expressa a condição íntima de quem se prepara a surpresas preocupantes. Na segunda, lê-se a declaração da impotência humana diante da natureza; mais precisamente diante da morte. Já surge aí indício do universo infantil na expressão “mãos de brinquedo”. Na terceira, o poema se abre à esperança: apesar das probabilidades de sofrimentos, é possível esperar os nascimentos. Com eles, surgirão “novos abraços”, mesmo “em mil braços esquecidos” de abraçar. Com eles, as “ruas do mundo” ganham “os seus aviões de papel”. Cristo Homem Eu preferiria um Cristo Homem, Que tivesse nascido do pecado para a vida dos santos. Eu preferiria um Cristo Homem, Amigo de Pedro e de João, Que fosse o maior de todos os Apóstolos. Um Cristo que não tivesse O amparo dos anjos no Horto das Oliveiras E não soubesse da ressurreição. Um Cristo que fosse bom, Não por ser Deus, Mas por ser Cristo. Eu preferiria um Cristo Homem, Pois o exemplo daria Cristos ao mundo, E o mundo daria deuses aos céus. (Alba, tempo e rosa) Comentários ao poema Cristo homem Em Cristo homem, lê-se o Neo-humanismo numa de suas formas: a valorização das pessoas comuns, as que não podem reivindicar qualquer privilégio, que não se entendem com direitos especiais, mas como humanos, simplesmente. Sofrer e morrer devem ter significados bem diferentes, para quem sabe que são passagens definitivas e para quem hipoteticamente soubesse que ambas situações são reversíveis e que a felicidade absoluta espera para se instalar eternamente. Resolução Não cantarei mais o passado imperfeito Dos meus dias. Só o presente indicativo do caminho... E o infinito futuro dos homens iguais! 386 Comentários ao poema Resolução De modo análogo ao que praticaram alguns poetas da segunda fase do Modernismo, como fez Mário Quintana, p. ex., Prado Veppo eleva frases à condição de poema. Resolução trabalha (ou brinca) com tempos e modos verbais e simultaneamente estabelece fundamento ideológico na indignação diante das desigualdades sociais, preocupação constante do Neo-humanismo, pelo menos na literatura. O dia da caça O alçapão nos prendia o dia inteiro no pátio. (O andarilho) Comentário ao poema O dia da caça O dia da caça é outro poema-frase e de comunicação imediata, como em geral conseguem as crianças. O poema procura olhar à alma infantil. O presumível sentido de maldade representada pelo desejo de aprisionar pássaros se desfaz pelo real desinteresse pelo tema anunciado no título. Afinal, a brincadeira prende, de fato, as crianças. O perdão Seguido me encontro, E discuto comigo. Com duras palavras Então me castigo. Me chamo de louco De eterno covarde. Me grito de tudo, Me choro até tarde. Depois me enterneço, Me nano, me nino, Me pego no colo E adormeço menino. (Espada de flor) Comentários ao poema O perdão O perdão não destoa da temática da infância. A diferença é que, nesse poema, aparece a conversão do adulto na criança, para que se encontre, em autoexame de intimidade, ou seja, volte a ser menino. Os versos são pentassílabos; dois são hexassílabos. Nesse metro, os ictos se ressaltam e estabelecem ritmo marcado, que sugere o balanço de ninar. O retorno ao sono do colo (ou do ventre materno) é repouso que faz brotar a criança no adulto. A simplicidade é de tal maneira marcante, que apenas o trabalho fônico-sugestivo elaborado pode solicitar repetição da leitura: semanticamente o poema se esclarece na primeira tentativa. Em voz média, valorizam-se as nuances sonoras do poema. 387 A cadeira Para entristecer-se Já basta o seguinte: Sentar numa cadeira E pensar na maioria. Os bonecos Os meninos pobres São bonecos vivos Que os meninos ricos Comprarão mais tarde. (Os breves) Comentários aos poemas A cadeira e Os bonecos São dois raros poemas de Prado Veppo, em que a mordaz alusão ao mundo adulto aparece sem retoques. A preocupação com dizer, em A cadeira, acabou por preocupar um pouco a poeticidade. “A maioria” parece apontar às pessoas que seguem apenas o que outros fazem e dizem, sem reflexão própria. Assim se fazem costumes, às vezes cruéis e às vezes ridículos. Nessas condições, frequentemente, os valores são sacrificados, ou se pratica inversão deles. No segundo, a crueldade do sistema social afoga o sentimento humanitário e igualitário; morre assim o Neo-humanismo. O olhar do poema é mais uma vez à infância. Apparício Silva RILLO Rillo nasceu em Porto Alegre em 1931 e faleceu em São Borja (RS) em 1995. Residiu também em Guaíba (RS) e acompanhou a família em sucessivas mudanças para outras cidades. Estudou Ciências Econômicas e Contábeis, mas abandonou os estudos e a cidade (Porto Alegre) para trabalhar como contabilista num empório comercial em distrito de São Borja. Em 1958, transferiu-se definitivamente para São Borja. Entre suas obras estão: Cantigas do tempo velho (1959), Viagem ao tempo do pai (1981); Pago vago (1981); Os galos cantarão (1992); Um homem chamado Juca (1994); 50 anos de poesia (2006). Pago vago Vago é meu pago. Este que trago, cicatriz em mim. Raiz de minhas íntimas origens, veio subterrâneo de onde vim. Vago é meu pago. 388 Este que trago, em músculos e ossos. Inteiro como foi porque é memória, flor de perenidade entre destroços. Vago é meu pago. Este que trago, como sombra e manto. É meu destino a cruz de sustentá-lo nos alicerces de vento de meu canto. (Pago vago) Comentários ao poema Pago vago O poema Pago vago abre a coletânea homônima (1981). Embora não seja o livro mais citado nem mais conhecido do autor, Pago vago representa provavelmente o momento mais significativo do poeta. O poema está composto em três estrofes simétricas entre si, quanto ao número de versos e à estrutura deles. Isso não significa dizer que os versos sejam isométricos ou isorrítmicos. Não é difícil perceber que não o são. Os dois versos iniciais das três estrofes funcionam como estribilho, mas de abertura, com forma anafórica. Com quatro sílabas poéticas cada um, estão construídos sobre recursos fônicos, como rimas e ritmo marcado. Esses versos carregam a linha semântica principal do poema: o pago que trago é vago (impreciso). Pago é o lugar de nascimento, o lugar em que se vive, o torrão que se ama. O que o texto procura expressar é a imprecisão (a vaguidade) desse lugar. Pela proposta do poema, o lugar do pago é mais certamente o imaginário. Na primeira estrofe, o pago “é cicatriz em mim”. Cicatriz é ferimento cicatrizado, mas do qual restaram marcas. Ferimento sugere sofrimento, dor. Essa dor está guardada, cicatrizada. O pago é “raiz de minhas íntimas origens, / veio subterrâneo de onde vim”. Nele estão cravadas minhas origens; ele alimenta o tronco, os ramos e as folhas, as pessoas, as famílias, o imaginário e a imaginação. O pago é “veio subterrâneo de onde vim”, é fonte, cacimba, nascedouro, de onde também brotei. O substantivo “veio” (conforme a leitura feita) pode igualmente ser lido como forma verbal de vir. Essa alternativa permite ler: o pago veio do âmago da terra, das coisas, do mundo, como eu também vim (do ventre do mundo, da terra, da mãe, da terra-mãe). A segunda estrofe toma o pago em “músculos e ossos”, i. é, na sua construção material. Músculos e ossos lembram pessoas e animais, ou seja, o trabalho, a construção física do que denominamos pago, a terra de cada um. Como todas as coisas se transformam (aparentemente desaparecem), o pago, desde as origens, não pode manter-se “inteiro” sempre. O único espaço em que pode permanecer é na “memória”. Aí, é sempre inteiro, porque a memória somos nós (cada um e todos) que construímos. Ao redor, o que se vê são ruínas, 389 “destroços”. A memória conserva, faz o pago ser “flor de perenidade” – esse pago que está no interior (“cicatriz em mim”, 1 a estr.). Ao redor, o que se vê são ruínas, deterioração, morte; dentro, o pago transformado, perene, perpétuo, porque pode ser renovado, reelaborado, reconstruído. Por tudo isso, o poema pode dizer que o pago está “inteiro como foi porque é memória, / flor de perenidade entre destroços”. A terceira estrofe justifica enfim por que o pago é (declaradamente) vago. É que o “trago / como sombra e manto”. Vale dizer: trata-se de existência imaterial, fugaz e dependente de luz externa (por isso é sombra). Como manto, é o que aquece, cobre a nudez da carência dessa existência, o pago. Por fim, a voz poética declara que sua cruz (trabalho, destino, sofrimento, espaço) é sustentar a existência imaterial do pago. Para sustentá-la conta apenas com a voz do poema, sustentáculo de tudo que constrói e mantém o pago: sustenta-a “nos alicerces de vento” da poesia: “É meu destino a cruz de sustentá-lo / nos alicerces de vento de meu canto. O “vento” pode ser lido como o sopro da voz, o alento da vida, a própria palavra, ou seja, o poema, a poesia, a literatura, a arte. CHICO BUARQUE Francisco Buarque de Hollanda nasceu (1944) e reside no Rio de Janeiro. Ingressou na faculdade de Arquitetura, mas não concluiu o curso. A obra dele inclui poemas, melodias, textos dramáticos e trilhas cinematográficas. É autor também de prosa (Fazenda modelo, por exemplo). Como compositor fez-se nacionalmente conhecido a partir de 1966, com A banda. Construiu textos de intensa poeticidade e musicalidade, entre os quais se podem destacar, por exemplo, Pedro Pedreiro, Olê olá, A televisão, Roda-viva, Construção, Valsinha, Com açúcar, com afeto, Passaredo, Cálice, João e Maria, Sabiá. Como dramaturgo, compôs, na condição de autor único e na de coautor, Roda-viva, Calabar, Os saltimbancos (infantil), Ópera de malandro. É autor também de literatura para infância (Chapeuzinho Amarelo). Pedro pedreiro Pedro pedreiro penseiro esperando o trem Manhã, parece, carece de esperar também Para o bem de quem tem bem De quem não tem vintém Pedro pedreiro fica assim pensando Assim pensando o tempo passa A gente vai ficando pra trás Esperando, esperando, esperando Esperando o sol Esperando o trem 390 Esperando o aumento Desde o ano passado Para o mês que vem Pedro pedreiro penseiro esperando o trem Manhã, parece, carece de esperar também Para o bem de quem tem bem De quem não tem vintém Pedro pedreiro espera o carnaval E a sorte grande do bilhete pela federal Todo mês Esperando, esperando, esperando Esperando o sol Esperando o trem Esperando aumento Para o mês que vem Esperando a festa Esperando a sorte E a mulher de Pedro Está esperando um filho Pra esperar também Pedro pedreiro penseiro esperando o trem Manhã, parece, carece de esperar também Para o bem de quem tem bem De quem não tem vintém Pedro Pedreiro esperando a morte Ou esperando o dia de voltar pro norte Pedro não sabe mas talvez no fundo Espera alguma coisa mais linda que o mundo Maior do que o mar Mas pra que sonhar Se dá desespero de esperar demais Pedro pedreiro quer voltar atrás Quer ser pedreiro pobre e nada mais Sem ficar esperando, esperando, esperando Esperando o sol Esperando o trem Esperando o aumento para o mês que vem Esperando um filho pra esperar também, Esperando a festa Esperando a sorte Esperando a morte Esperando o norte Esperando o dia de esperar ninguém Esperando enfim nada mais além Que a esperança aflita, bendita, infinita Do apito do trem Pedro pedreiro pedreiro esperando Pedro pedreiro pedreiro esperando Pedro pedreiro pedreiro esperando o trem 391 Que já vem, que já vem, que já vem Comentários a Pedro Pedreiro Há razões para a denominação letras, dada aos poemas construídos com melodia ou musicados, porque a melodia, as sonorizações e as interpretações completam vários balões em branco do texto poético e criam outros. Por esse motivo, também, a construção das letras obedece a lógica um pouco diferente da dos poemas elaborados para serem lidos e ou recitados. Pedro Pedreiro é uma letra. Na qualidade de letra, tem configuração caraterística. Exemplos disso são as repetições, as retomadas, a concentração rítmica. O último verso igualmente marca o texto, pela sugestividade do barulho caraterístico da locomotiva e das rodas do trem sobre os trilhos, que o instrumental e a voz podem tornar explícitos. A televisão O homem da rua Fica só por teimosia Não encontra companhia Mas pra casa não vai não Em casa a roda Já mudou, que a moda muda A roda é triste, a roda é muda Em volta lá da televisão No céu a lua Surge grande e muito prosa Dá uma volta graciosa Pra chamar as atenções O homem da rua Que da lua está distante Por ser nego bem falante Fala só com seus botões O homem da rua Com seu tamborim calado Já pode esperar sentado Sua escola não vem não A sua gente Está aprendendo humildemente Um batuque diferente Que vem lá da televisão No céu a lua Que não estava no programa Cheia e nua, chega e chama Pra mostrar evoluções O homem da rua 392 Não percebe o seu chamego E por falta doutro nego Samba só com seus botões Os namorados Já dispensam seu namoro Quem quer riso, quem quer choro Não faz mais esforço não E a própria vida Ainda vai sentar sentida Vendo a vida mais vivida Que vem lá da televisão O homem da rua Por ser nego conformado Deixa a lua ali de lado E vai ligar os seus botões No céu a lua Encabulada e já minguando Numa nuvem se ocultando Vai de volta pros sertões. Comentários ao poema (ou letra) A televisão A televisão, como o texto anterior, é composição musical. Tipifica a reflexão a respeito da mudança de costumes que se delineava (o texto é de 1967) com a chegada da televisão. Sugere também a questão do serviço a que vem a televisão e a serviço de quem se punha. A televisão chegou ao Brasil na década de 1950, mas se difundiu e solidificou nos anos sessenta, especialmente após a instalação do golpe militar de 1964. O assédio do capital estrangeiro, com objetivos econômico-financeiros e ideológicos, começou então a construir grandes corporações de divulgação. A televisão revela esse momento. Dividido em três estrofes, o poema tem em cada uma delas uma etapa dessa mudança de costume. Na primeira, “o homem da rua”, refém do novo costume, se mantém fiel à vida que deseja, por isso já fale “só com seus botões”. Na segunda, o “homem da rua” já não se toca com o “chamego” da lua, mas tenta manter forma própria de expressão, por isso “samba só com seus botões”. Na terceira, como todos, com o costume adventício, aderiram à nova forma de solidão, “o homem da rua” “vai ligar os seus botões”. A lua “encabulada e já minguando [...] vai de volta pros sertões”: vai mostrar-se a quem a veja e a admire. Noutras palavras, vai aparecer a quem ainda esteja ligado na natureza, nas coisas que geram aproximação com a vida natural. Soneto Por que me descobriste no abandono Com que tortura me arrancaste um beijo 393 Por que me incendiaste de desejo Quando eu estava bem, morta de sono Com que mentira abriste meu segredo De que romance antigo me roubaste Com que raio de luz me iluminaste Quando eu estava bem, morta de medo Por que não me deixaste adormecida E me indicaste o mar, com que navio E me deixaste só, com que saída Por que desceste ao meu porão sombrio Com que direito me ensinaste a vida Quando eu estava bem, morta de frio Comentários ao Soneto Eis um dos raros textos do autor em forma tradicional, como o soneto. A temática, contudo, é bem frequente na produção dele. Em Soneto, a voz lírica retoma o assombro diante do iminente abandono da vida conquistada ou apenas vislumbrada. MOACYR Jaime SCLIAR Moacyr Scliar nasceu (1937) e faleceu (2011) em Porto Alegre. Formou-se em Medicina em 1955. Seu primeiro livro publicado foi Histórias de médicos em formação (1962). Há traduções de seus livros em vários idiomas. Entre suas obras mais conhecidas estão: O carnaval dos animais (1968); A guerra do Bom Fim (1972); O exército de um homem só (1973); Mês de cães danados (1977); O centauro no jardim (1980); A orelha de Van Gogh (1988); Olho enigmático (1988); A mulher que escreveu a Bíblia (1999). O carnaval dos animais (conto Os leões) Hoje não, mas há anos os leões foram perigo. Milhares, milhões deles corriam pela África, fazendo estremecer a selva com seus rugidos. Houve receio de que eles chegassem a invadir a Europa e a América. Wright, Friedman, Mason e outros lançaram sérias advertências a respeito. Foi decidido então exterminar os temíveis felinos. O que foi feito da maneira que se segue. A grande massa deles, concentrada perto do Lago Tchad, foi destruída com uma única bomba atômica de média potência, lançada de um bombardeiro, num dia de verão. Quando o característico cogumelo se dissipou, constatou-se, por fotografias, que o núcleo da massa leonina tinha simplesmente se desintegrado. 394 Rodeava-o um setor de cerca de dois quilômetros, composto de postas de carne, pedaços de osso e jubas sanguinolentas. Na periferia, leões agonizantes. A operação foi classificada de “satisfatória” pelas autoridades encarregadas. No entanto, como sempre acontece em empreendimentos dessa envergadura, os problemas residuais constituíram-se, por sua vez, em fonte de preocupação. Tal foi o caso dos leões radioativos, que tendo escapado à explosão, vagueavam pela selva. É verdade que cerca de vinte por cento deles foram mortos pelos zulus nas duas semanas que se seguiram à explosão. Mas a proporção de baixas entre os nativos (dois para cada leão) desencorajou mesmo os peritos mais otimistas. Tornou-se necessário recorrer a métodos mais elaborados. Para tal criouse um laboratório de treinamento de gazelas, cujo objetivo primário era liberar os animais do instinto de conservação. Seria fastidioso entrar nos detalhes deste trabalho, aliás muito elegante; é suficiente dizer que o método utilizado foi o de Walsh e colaboradores, uma espécie de brain-wash adaptado a animais. Conseguindo um número apreciável de gazelas automatizadas, foi ministrado às mesmas uma forte dose de um tóxico de ação lenta. As gazelas procuraram os leões, deixaram-se matar e comer; as feras, ingerindo a carne envenenada, vieram a ter morte suave em poucos dias. A solução parecia ideal; mas havia uma raça de leões (poucos, felizmente) resistente a esse e a outros poderosos venenos. A tarefa de matá-los foi entregue a caçadores equipados com armamento sofisticado e ultrassecreto. Dessa vez, sobrou apenas um exemplar, uma fêmea que foi capturada e esquartejada perto de Brazzaville. Descobriu-se no útero da leoa um feto viável; pouco radioativo, o animalzinho foi criado em estufa. Visava-se, com isso, a preservação da fauna exótica. Mais tarde o leãozinho foi levado para o Zoo de Londres onde, apesar de toda a vigilância, foi assassinado por um fanático. A morte da pequena fera foi saudada com entusiasmo por amplas camadas da população. “Os leões estão mortos!” – gritava um soldado embriagado. – “Agora seremos felizes!” No dia seguinte começou a guerra da Coreia. Comentários ao conto Os leões O carnaval dos animais (1968), embora seja obra no nascedouro da produção do autor, continua sendo livro referencial. Com ele se definem tendências que Scliar, mais ou menos, manteria ao longo da produção que foi elaborando. Os leões, por seu turno, é conto paradigmático no livro. Tematiza a constante violência que assola as ações humanas. Como fica exposto no texto, a violência assume variadas formas de se constituir e se expor. A partir de pontos referenciais que grande parte dos leitores conhece por informações da imprensa em todas suas formas, consolida a verossimilhança tradicional, pontos sobre os 395 quais o conto vai montando seu parâmetro semântico. Elabora, além disso, a própria verossimilhança, recurso intrínseco ao tipo de texto conhecido como forma do realismo mágico. A verossimilhança intrínseca se assenta sobre a significação textual, ou alegórica. Todos os elementos se unem e consolidam o texto, que dificilmente o leitor vá ler uma única vez, mesmo na primeira ocasião de contato. O leitor atento sente necessidade de voltar à leitura, para inteirar-se da técnica que produz o sentido do texto. O próprio enredo passa a ser fundamental para montar a expressividade semântica da narrativa. É impossível prescindir dele, porque nele se assentam os elementos significativos. O livro de contos O carnaval dos animais propicia também reflexões a cerca da literatura do autor, em relação ao enquadramento técnico-teórico. A obra mostra-se integrante do Expansionismo. Observe-se a busca de temas e formas incomuns e subliminar cuidado diante da censura mordaz do sistema político do momento. Luiz Antonio de ASSIS BRASIL Assis Brasil (ou simplesmente Assis) nasceu em Porto Alegre em 1945. Passou parte da infância em Estrela (RS) e de lá retornou à capital. Estudou música e integrou a OSPA (Orquestra Sinfônica de Porto Alegre). Formou-se em Direito. Coordena a Oficina de Criação Literária do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. Viajou à Alemanha, como bolsista do Instituto Goethe, e aos Açores, para estágio de pós-doutoramento. Obteve vários prêmios por sua obra. Obras: Um quarto de légua em quadro (1976); A prole do corvo (1978); Bacia das almas (1981); Manhã transfigurada (1982); As virtudes da casa (1985); O homem amoroso (1986); Cães da província (1987); Videiras de cristal (1990); Um castelo no pampa, composto de Perversas famílias, Pedra da memória (1993) e Os senhores do século (1994); Breviário das terras do Brasil (1997); O pintor de retratos (2001); A margem imóvel do rio (2003). A prole do corvo (excerto do capítulo 6) O contato duro nos lábios o acorda, e empurra bruscamente a mão que segura a caneca de chifre, esparramando leite morno na barriga. Em volta, preparam carretas, enchendo-as de sacos, baús, fardos de lona e mantas de charque. China-gorda grita com um soldado, mandando que seja mais cuidadoso com as panelas; o soldado ri-se da cozinheira e atira por gosto o panelório dentro da carreta, o que faz China-gorda gritar feito doida, excomungando o marrano filho-da-mãe. Soldados do general, apoiados nos canos das armas, apreciam como ela pega duma vassoura e quer desancá-la na cabeça do outro, que se defende empunhando a bainha da espada, desfeito em gargalhadas. Ficam na 396 luta até que um sargento do general manda que parem o bulício, se não querem todos ir a ferros. A mulher diz-lhe para dar ordens mas é a seus soldados, que ela só recebe ordens de oficial para cima e que as panelas manda ela só. Chamam Firmino, que vem passando enrolado num poncho; não quer saber de encrencas de cozinha e diz para darem parte ao furriel, que é o homem mais certo pra isso. – Enlouqueceram também lá, diz João Inácio, ainda segurando a caneca. – E como é o tranglomango? Passou? – Passou. – Vem, súbita, a lembrança: e o inquérito? João Inácio joga fora o resto do conteúdo do chifre, branqueando o capim de leite: deu em nada, José. – Como, deu em nada? – Somos inocentes, os graúdos decidiram. Filhinho apoia-se nos cotovelos, espantado: então não tem importância o que nós fizemos? – Não. – Mas. Mas nós estivemos lá, não foi? Lá em Bagé, o comerciante, a velha, tudo aquilo. João Inácio fica um instante em silêncio, vendo China-gorda cortar as cebolas à beira de uma tina. – Hoje mesmo estava perguntando isso numa carta para minha mulher. Pena que a resposta vai demorar tanto. – Eu vi. Eu vi Cássio cravar o punhal e vi quando fez aquilo na mulher. Eu ajudei, até. – Como, ajudou? – Ajudei, mesmo, não ajudei, mas não fiz nada, fiquei parado, em vez de. – Sossega, os graúdos já decidiram que não temos culpa. – Então os graúdos decidem até o que a gente tem que sentir? – Se sempre foi assim! No início da guerra a gente tinha de ser federalista, uma coisa que só eles entendiam; depois diziam que a república era melhor e mandaram a gente ser republicano. Quando menos se esperava, veio isso de fazer a independência do Império, e aí tivemos que mudar de pensamento de novo. Quando o Bambá fez a república do Piratini, aí então era para lutar pela República Rio-grandense. Agora, temos que ter vontade de fazer as pazes com o inimigo que antes era pra ter raiva. Por isso é que te digo: se te mandaram ser inocente, é bom que seja, mesmo; amanhã podem mudar de ideia. – Mas não entendo, se estava tudo contra nós, no inquérito. 397 – Contra nós? Depois do que tu disse pro Major Alexandrino? – João Inácio encara-o, entre irônico e surpreso. Uma onda de vergonha formiga o corpo de Filhinho, tem de curvar a cabeça, para não ver a cara de João Inácio. Olha para o botão de dólmã, cujo dourado está descascando e que se prende à fazenda por um único fio de linha. Arranca-o, guarda no bolso. – Mas o Cássio não contou tudo como foi? – Não. Disse que ninguém lhe perguntou nada, estavam discutindo entre eles. – E os outros, o Acaba-de-querer? – Os outros? Os outros foram avisados pelo clarim do teu depoimento e repetiram igualzinho. – Até o Acaba? – Pois foi o que mais floreou a história, disse que tivemos de enfrentar uma fuzilaria que vinha da casa ao lado e que nos perseguiram até aqui. – E tu? – Quando chegou a minha vez, concluíram que não precisava mais, que tudo já estava esclarecido. Dei meia volta e me raspei. – Mas devia ter dito o que aconteceu! Acho. Penso. Quem sabe? Ouve um “de fato?” tão marcante e intencional que teme em olhar para o companheiro. Pega um graveto e quebra-o com raiva, jogando os pedaços para o ar. China-gorda enxuga os olhos ardidos da cebola e ri, dizendo alto: matando fantasma, soldado? Cássio aproxima-se, bravateando com o Acaba-de-querer. O cabo escuta, risonho, uma conversalhada de fandangos e tiroteios. A última vez que vieram juntos assim foi para dar a ordem de ir a Bagé e foi aquilo que aconteceu, não vou falar com eles, não vou, que se danem. – E o guri que salvou o regimento, como le vai isso? – pergunta Cássio. – Bem. – Imediatamente arrepende-se de ter falado. Não quer falar, Cássio não presta, tenho é que ter vontade de matar ele, mas Cássio não tem um jeito de falar mandando, que não se pode deixar de. – Pois o nosso valente cabo Leovegildo quer agradecer a mentira que mudou o destino da guerra. Sim, porque, se nós fôssemos presos, que seria do pobre general? A mão pesada e grossa do cabo avança para cumprimentá-lo: 398 – Soldado José, não sei o que vou dizer, de tanto contentamento. Mas pegamos eles, hein? Bem direitinho no sofragante – pisca o olho empapuçado. – Até dá pra festejar! – Lindo! – interrompe Cássio – e festa é comigo! Se é de beber, se bebe! – Puxa de dentro do capote uma garrafa escura, destampa-a e cheira: da boa! E o primeiro gole é pra o nosso soldado José Cardoso de Paiva! – Henriques – diz Filhinho, logo vexado de ter feito a retificação. – Pois Henriques. Bebe! Filhinho tem à frente de seu nariz o gargalo, vem de dentro o cheiro morno de cachaça. O estômago se contrai numa arcada quando vê a manga de Cássio, ostentando na lã uma débil mancha escura, com sinal de lavado recente. – O que é? Não quer? Ele não quer, João Inácio. – Tá enjoado, teve um abatimento faz pouco. – Se não quer, não posso fazer nada. – Bebe, passa a garrafa para o cabo, que bebe também e oferece: – Quer, João Inácio? – Quero. Faz tempo que. João Inácio toma alguns goles. Pergunta a Filhinho se não quer um pouco. – Não costumo, não sei se vai me fazer bem. – Uma vez é a primeira – reforça Cássio. Filhinho pega a garrafa e bebe em grandes goles, a bebida arde como fogo por dentro, inundando a boca e o nariz de um sabor adocicado e cáustico. – Não quero mais. Avermelha: um calor sobe pelo pescoço, espraia-se pela cabeça, agita o sangue. Olha em torno, para as carretas, para China-gorda, para os soldados que passam carregando caixotes; tudo está diferente, as cores extravasando os contornos das figuras: o azul do lenço de China-gorda dança no ar e os dentes brancos da cozinheira vagam pelo rosto, como algodão ao vento. Aperta os olhos, não consegue segurar no chão as rodas das carretas, que giram para a direita e para a esquerda, rodopiando doidamente nos eixos. Ao seu redor falam, percebe, de guerra, de façanhas e de mortes inesperadas. Acaba-de-querer levanta o dedo, profético; parece um santo da igreja de Aguaclara, um santo ameaçador, de longas barbas frisadas, segurando em uma das mãos um livro dourado e na outra um báculo que mais era uma longa vara de marmelo. Com o pé esmagava um enorme cão negro, o demônio talvez, que, num estertor, abria a boca mostrando dentes cônicos e pontiagudos. 399 Acaba cospe o chão, assegurando que não é de ir na conversa do Caxias, um favorecido, que mal-saído dos cueiros já era tenente, isso porque tinha o pai oficial. Assim até eu, Leovegildo Paim! – arremata. – Mas o Caxias não tem sido bom? – pergunta Cássio, cobiçando os tornozelos de Maria-chica, que passa equilibrando uma trouxa na cabeça. – Ora, quem possui o dinheiro e todas as armas do império nas costas só pode ser bom, não custa. – E estende a mão: me dá essa garrafa um pouco. Cássio pede licença, vai conversar com Maria-chica. O cabo quer apoio de João Inácio: pois tu também não acha? – O quê? – como despertando. – Que não dá pra confiar no Caxias? – Isso quem deve saber é o Bambaqueré. Acaba-de-querer considera melancolicamente a garrafa. Tem a língua amortecida: me tomaram quase tudo. Só ficou um pouquinho. Quer? – Não, já estou fechando os olhos de sono. – Se ninguém quer, vou terminar com a bandida. Filhinho acompanha o sobe-desce do pomo-de-adão sob os pelos do pescoço, segue voo que faz a garrafa até espatifar-se numa pedra. O cabo levanta-se depois de duas tentativas e troca as pernas em direção à carreta do charque. Escurece, e surge entre a névoa uma lua, uma foice pálida e tenebrosa. Filhinho enrosca-se todo para dormir, põe um pelego nos pés, sente-se boiando no ar gelado. Comentário ao excerto de A prole do corvo A prole do corvo é cronologicamente o segundo romance editado por Assis Brasil. Um quarto de légua em quadro inaugura a produção do autor e a sequência de narrativas revisionistas sobre a formação do Rio Grande do Sul. Em A prole do corvo o tema é a Revolução Farroupilha. A Revolução Farroupilha é tema recorrente na literatura produzida no Rio Grande do Sul. Há motivos para isso. Não se trata de entender o episódio histórico como apenas um movimento armado (cujas razões, aliás, vêm sendo discutidas por literatos, historiadores, sociólogos, antropólogos, filósofos, professores, entre outros). É que, por força do tratado de paz com o império brasileiro, o Rio Grande do Sul acabou por constituir definitivamente unidade federativa integrante do Brasil. A Revolução Farroupilha está, portanto, no âmago da gênese da formação da cultura gaúcha no Brasil. Em consequência disso, olhares e questionamentos se dirigem a ela com tal frequência e interesse, que será difícil encontrar outro ponto temático de semelhante interesse, no Estado. 400 No excerto transcrito, aparecem personagens marcantes na narrativa: Cássio, o guerreiro por excelência, inconsciente, ignorante e grosseiro, às vezes grotesco; China-gorda, uma das acompanhantes-serviçais da tropa; José Inácio, homem íntegro, que consegue se adaptar às estripulias da guerra; Acaba-dequerer, cabo de guerra obscuro, bronco e sem êxitos; Filhinho, que recebe o foco da narrativa: é nas adjacências do itinerário que ele perfaz no enredo que o leitor toma conhecimento dos demais personagens e figurantes. Apesar das desigualdades e diferenças que os individualizam, são todos filhos da guerra, i. é, constituem, ao lado de muitos outros, a prole do corvo. De fato, de acordo com a proposta do romance, ninguém escapa das garras nem das consequências do desastre da guerra. “Corvo”, no romance, é sinônimo de urubu, abutre, que se alimenta de cadáveres. Filhinho é o jovem, filho de estancieiro, que é enviado à guerra por decisão do pai. O pai, tendo já auxiliado os dois lados beligerantes com cavalos e bois, vê-se coagido a novo auxílio aos revolucionários. Nessa circunstância é que sobrevém a decisão, e Filhinho (observe-se o apelido familiar do personagem) parte com os revolucionários. É desse modo que toma contato com a guerra e por isso sofre, também ele, as maléficas consequências do conflito sanfrento. Manhã transfigurada (excerto do capítulo 4) Fez-se um silêncio entre ambos. Bernardo sentia ainda muito vivo o gosto da visita que não há muito os noivos fizeram à casa canônica, o sargento tão entusiasmado e ela tão calada, a boca aberta, ouvindo como o Padre Ramiro descrevia a cidade de Roma, fascinando a todos. Olhava-a, por vezes, e via como era bela, muito branca e elegante, os olhos claros acompanhando as circunvoluções da mão do padre quando este descrevia a alta cúpula de uma catedral ou o cimo de um faustoso monumento. Ela piscava seguidamente, as longas pestanas baixando e subindo na agitação de um pensamento que estava longe, perdido naquilo que imaginava da cidade eterna. Bernardo não conseguia mais desprender a atenção de Camila, que passou a olhar as próprias mãos quando seu noivo iniciou a tratar de assuntos de negócios. Ficara aborrecida, será? Notou sua expressão apagada, triste, uma vez passado o encanto que lhe provocou a descrição do padre. Um suspiro escondido. Um inquieto tamborilar de dedos sobre o braço da cadeira. Um instante em que seus olhos ágeis viraram-se para ele. Quando foram embora, Bernardo ainda ficou na janela, vendo-a erguer graciosamente a perna por sobre a sela, montando com decisão, batendo os calcanhares esporeados nos flancos do cavalo. Padre Ramiro ainda disse, lá vai uma bela figura de mulher, não lhe parece? Sim, Bernardo concordara, acrescentando que seria uma boa esposa para o sargento. Na verdade, naquela mesma noite, penitenciara-se amargamente por ter ousado desejar aquela mulher. Dona Camila, a prometida consorte de um maioral do Continente. Decidiu que não participaria do casamento, não queria ver-se de novo envolvido com aquelas saias fofas, com o rendilhado sobre os ombros, ele 401 que vivia tão tranquilo em seu mundo de processos, pautas, audiências, mandados e sacristia. Camila era o perigo, o vento forte e rasteiro que poderia levantar tudo pelos ares. E assim manteve-se, esquecido dela, enchendo suas noites com os sonhos da imaginação. E agora estava ali, trêmulo, segurando o papel terrível. Que vai fazer Vossa Mercê? Perguntou, devolvendo a petição. Padre Ramiro pensou um pouco. Respondeu: vou atender o pedido do homem, trancar Dona Camila em casa, até que se deslinde o caso. Bernardo havia perguntado só para ganhar assunto, pois já conhecia o procedimento de praxe. A prisão era dos cânones. O padre tinha esse poder. Muitas vezes já fora com o meirinho em casa de particulares, com ordem e mandado da justiça eclesiástica, prendendo pessoas em suas próprias casas. Quero que você me prepare o papel, disse Ramiro, sem olhá-lo. No entanto Bernardo afastara-se daquele casamento, metendo-se longe, no campo, entre vacas e bois, procurando não se entregar à melancolia. Mas a imaginação vinha insinuante, pintando as cenas que fazia por não pensar: a entrada da noiva na igreja, o sargento em seu uniforme de gala, as pessoas admirando-se com o arco posto junto ao adro, coroado de flores. Tudo fizera para esquecê-la, mas eis que se via às voltas novamente com ela, e o rumor da novidade o punha excitado, querendo e não querendo, desejando o momento de ir à sua casa e ao mesmo tempo ansiando por não ir, mandar outro. Mas o temor foi vencido pela ousadia, e chegou a pensar que era homem bastante para enfrentar a dona, no exato cumprimento de seu dever legal. Sentou-se à mesa e escreveu. O reverendo Padre Ramiro Menezes Guiães, Vigário Encomendado da Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Campos de Viamão e nela Vigário da Vara pelo Exmo. e Revmo. Sr. Bispo do Rio de Janeiro D. Frei Antônio do Desterro. Mando ao Meirinho deste meu juízo que sendo-lhe apresentado este, em seu cumprimento, vá com o escrivão à casa do Sargento de Ordenanças Miguel de Azevedo Beirão e lá ordene que sua mulher, Dona Camila Beirão que de casa não saia enquanto durar a causa de anulação de matrimônio requerida por seu marido, o sobredito sargento. Dado nesta freguesia de Nossa Senhora dos Campos de Viamão etc. Bernardo releu o que escrevera e gostou. Depositou a pena no descanso, pensando que nunca tivera missão desse quilate. Ele, escrivão do padre, acólito de missas a soldo de fome, morando de favor na casa canônica, de ofício humilde portanto, tinha o poder de ir à casa daquela bela mulher e mandar que não saísse. Fechou os olhos, imaginava prendendo-a em cadeias de ferro, as mãos atadas a grossas correntes, chorando e implorando que ele a soltasse, e ele permanecendo de cabeça erguida, sentindo-se submissa, entregue. Iria 402 portanto à casa da dona com o mais altivo olhar e diria que por graça muito especial não ia botá-la nas cadeias, ia apenas recomendá-la que não saísse do sobrado sem ordem sua. Desenhava na imaginação como ela lhe agradeceria, as mãos em súplica, ia talvez beijá-lo na boca, como beijavam as mulheres de soldo alçado, ela que não era mais virgem. Pelo menos é o que dizia o marido. Como teria sido aquela noite do casamento, entre os dois? O sargento ultrajado em sua honra, esbofeteando a mulher no leito, ela nua, em prantos, os cabelos desgrenhados procurando escapar da ira do marido, que a chamava de puta de mil-réis, já tinha dormido com outro, quem era? Quem era? O homem saindo do quarto, a pistola na mão, pronto a dar um fim no infeliz, imprecando os céus por tanta desgraça ocorrida quando apenas queria dar um lar a uma mulher pobre. Dando tiros para o céu estrelado, causando reboliço em toda a casa, acordando os peões, os cachorros, os negros. A alaúza formada em volta da casa, desgraça acontecida, tragédia. No outro dia, arrumação das malas, ela deveria sair daquela casa, da estância da Lagoa, onde nunca houvera desolação tão grande, acachapante. Ela vestindo-se não para retornar à casa dos pais, que o medo não permitiria, mas para a casa da Vila, rogando ao sargento que fica ali, ninguém sabendo do ocorrido, jurava por Deus e as chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo que daquele dia em diante ia levar vida honesta e pura, frequentando todas as rezas e novenas, ele nem era obrigado a visitá-la, podia até buscar outra mulher, índia ou negra, para desafogar-se. E se tivesse filhos, ela mesma cuidava, chamando de meu afilhado. O sargento concordando, uma forma de resguardar a honra sofrida. Depois, a mulher instalada, o ódio, a ferocidade de quem foi ludibriado, o recurso à causa da anulação, pedida com todo segredo de justiça, tudo na feição de vingar-se e ainda casar-se de novo, sair desse percalço como homem vitorioso. Dobrou o mandado cuidadosamente e o enfiou no bolso. Agora sim, queria ver aquela mulher e senhora não virgem entrar na intimidade por todos tida como recatada, ele porém sabendo que ela já se deitara com outro homem antes do marido. Bernardo inclusive nem precisava ter rodeios, podia falar língua chula e desabusada, que para Camila seria muito conhecida. Afinal já não se entregara a qualquer um? Mandou chamar o meirinho às pressas, tinham de cumprir um mandado do vigário da vara, coisa importante. O meirinho chegou limpando as mãos, estivera preso ao arado, mas de que se tratava? Coisa importante, disse-lhe Bernardo, batendo no bolso, fazendo ouvir um barulho de papel. Sonegou as palavras que o outro desejava ouvir, disse apenas que iam à casa do Sargento Miguel de Azevedo Beirão entregar um mandado à sua mulher. O meirinho fez que sim e sorriu, calado, eram honras de família que estavam em pleito eclesiástico. Dirigiram-se à casa de Camila, Bernardo cumprimentando com sobranceria as escassas pessoas, levava um segredo profundo e insondável na algibeira, junto ao peito. 403 A casa estava totalmente fechada, portas, janelas, tudo. Nenhum rumor de negra na cozinha. No entanto, todos na Vila enxergaram quando Dona Camila viera, dias antes, trazida pelo marido, carregada de caixas, e ninguém soube que tivesse saído desde então. Vai ver que a dona está dormindo, disse o meirinho, ainda é cedo da manhã. Mas as negras pelo menos deveriam estar acordadas, retrucou Bernardo, sentindo que se escapava entre seus dedos a oportunidade de vê-la. Um mundo inteiro de imaginação ruía. Quando já davam volta, Bernardo com ganas de amassar o papel que portava, ouviram uma voz cristalina, do andar superior, perguntando quem está aí? Era ela, Bernardo quase riu de alegria. Mas fez-se sério e disse de que se tratava, tinha de falar um instante. E tu vai-te embora, falou ao meirinho, deixa que eu mesmo colho a assinatura no mandado, depois você rubrica. Sim, pois não, concordou o meirinho, tirando o chapéu com um cumprimento. E rindo: aproveite o que Deus dá. Vai-te logo, infeliz, Bernardo grunhiu, louco de raiva contra aquele intrometido que já suspeitava de alguma coisa. A porta abriu-se um pouco, e a mesma voz mandou que entrasse e ficasse a gosto. Bernardo ouviu as chinelinhas subirem as escadas, num passinho rápido, mulher que foge, e isso atiçou sua curiosidade. Logo estava dentro da casa, na varanda às escuras, onde vislumbrava male-mal os móveis encostados às paredes. Viu correr uma sombra a um canto, um sentimento horrível de que havia gente espreitando, mas o temor foi breve: era sua própria figura refletida no grande espelho, o maior que já vira. Tateando, pressentindo apenas onde estava, achou um sofá de palhinha, sentou-se. Os olhos acostumando-se, admirou-se do lustre de ferro com dezenas de velas, mais outro espelho na outra parede, um aparador com tampo de mármore, duas cadeiras de espaldar alto e braços, tudo coisa do Reino, riqueza sem fim. Um oratório aberto com um santo dentro e, à frente, um móvel de ajoelhar. Ficou atento quando ouviu os passos que desciam as escadas, agora não mais passos de chinelas, mas um ruído mais seco, de botas. Contudo, suave e leve. Precedeu-a um vago perfume de benjoim. Estava radiosa, um largo sorriso mostrando dentes brancos e bem desenhados, imagem única que Bernardo conseguia ver na pouca luz. Não sabia se beijava a sua mão, afinal não era uma puta? Mas no conceito de todos era uma senhora, dona. Quis ser oficial, levantou-se apenas estendeu-lhe a mão, gesto correspondido. Quente e decidida mão, levemente úmida. Vejo que vossa mercê estava mesmo à vontade, ela disse. E acrescentou: mas aqui há pouca luz, um instante. Foi até uma janela e abriu-a um pouco, deixando entrar alguma claridade no aposento. Correu, porém, uma cortina rendada e translúcida, que espalhou a luz. Bernardo pôde vê-la melhor enquanto ela sentava na cadeira em frente, uma mesinha entre ambos. Soberba, o rosto sem os artifícios dos pós de beleza, no frescor de quem acordara há pouco, os cabelos apenas apanhados por uma fita escarlate, algumas mechas caindo nas têmporas, os olhos líquidos, os lábios carnudos, o colo suave que se perdia nos peitos apertados no justilho 404 de tafetá, peitos claros, quase à mostra, como costumam as mulheres agora usar. Os braços estavam totalmente encobertos por mangas de veludo que findavam em rendas de onde emergiam mãos curtas, riscadas de pequenas veias azuis. Cruzou as pernas. Eis aí, pensava Bernardo, mulher honesta não cruza as pernas. Ela, porém, não parecia estar-se preocupando com isso. Ao contrário, perguntava airosa notícias do vigário, as próximas novenas que se realizariam, muito natural e sem afetação. Bernardo improvisava as respostas, e ela sempre perguntando, um verdadeiro interrogatório, quando ele é que deveria ser o algoz naquele momento. A mulher tornando-se muito presente, dotada de voz rica, de riso descuidoso, ela que deveria estar recolhida na mais profunda melancolia e dor, apenas aguardando que as penitências do pecado caíssem sobre sua cabeça. Levantou-se, caminhava pela varanda, meneios de corpo que faziam os seios sacudir com pudins, ah visão. Explicava que as negras todas foram lavar roupa no açude, mandara que fossem cedinho de manhã. Nada podia oferecer de cortesia, não se prouvera de mantimentos, há pouco chegada de fora. Mas, perguntou ela, parando-se frente ao santo, as mãos apoiadas no genuflexório, mas a que vinha? Foi, certamente foi, uma indagação desinteressada, nem parecia ser ela a ré em feito de anulação de casamento. Podia até perceber que ela ria, totalmente senhora de si e, o mais inquietante, com certo ar, um certo volteio na voz, só audível por quem está atento, ar de quem quase se oferece. Bernardo sentiu que se avolumara o sexo entre as pernas, o perfume denso de benjoim o envolvia. Queria conter-se, quase cedia ao desejo de agarrá-la à força e deitar-se ali mesmo, não se importando com o que pudesse acontecer, uma loucura. Trago um mandado do senhor vigário, para que a senhora fique em casa até que se deslinde o feito proposto pelo sargento contra a senhora, que pretende ver anulado seu casamento, disse Bernardo num jato, atrapalhando-se naquelas palavras de estilo, que entretanto eram um escudo contra ela. Sei, disse a mulher, muito serena, meu marido me acusa de não ser mais virgem quando casei, e o senhor o que pensa? Bernardo não sabia o que dizer, como, o que pensava? O atrevimento daquela mulher de soldo alçado interrogando-o de coisa tão profunda, um descabimento, uma vergonha. E ela parava-se rindo, de costas para o oratório, as duas portas abertas parecendo duas asas que saíam de suas espáduas, duas asas azuis pintalgadas de estrelas. Senhora, disse Bernardo, vim apenas para cumprir meu mandado, e espero me desempenhar com brevidade, afinal não fica bem estar um homem, mesmo a serviço da justiça, demorando-se em casa de uma dona. Comentários ao excerto do capítulo 4 de Manhã transfigurada Manhã transfigurada é mais um romance sobre a formação do Rio Grande do Sul. Nesse romance, a temática envolve a formação social. O centro temático é o casamento e os valores que o envolvem. Camila é personagem central na 405 trama. Com ela se casa o sargento de ordenanças Miguel Beirão. Entram em cena também Ramiro, o padre, e Bernardo, o sacristão. Camila concentra a atenção e a atração dos três personagens masculinos. Dessa maneira, casamento, valores religiosos, amor, atração e convivência humana em geral são discutidos no romance. Do ponto de vista estilístico, o romance elabora formas conceituais e discursivas adequadas à participação de cada um dos quatro personagens que se mostram em evidência. Como já foi possível ver em A prole do corvo, Manhã transfigurada procura penetrar no que possa haver de falso nas aparências sociais, especificamente na questão dos valores. Assim, pois, se enquadram ambos no revisionismo pós-modernista. DONALDO SCHÜLER Donaldo Schüler nasceu em Videira (SC), em 1932. Reside em Porto Alegre desde 1945. É doutor em Letras e livre-docente e detentor de vários prêmios como literato e como ensaísta. Foi professor da UFRGS, com passagens por diversas outras universidades nacionais e estrangeiras. Continua na tarefa de docente e de conferencista sob convite. Os assuntos mais vezes tratados são Literatura Brasileira, Literatura Grega, Teoria da Literatura e Filosofia antiga. É dos mais importantes críticos literários brasileiros. Publicou mais de 30 obras de ficção, tradução, poesia e ensaio, tais como A mulher afortunada (1982), O Tatu (1983), Chimarrita (1985), Faustino (1987), Pedro de Malas Artes (1992), Império Caboclo (1994) – ficcionais; Martim Fera (1984) – poema; A palavra imperfeita (1979), A prosa fraturada (1983), A poesia no Rio Grande do Sul (1987), Teoria do romance (1989), Narciso errante (1994), O homem que não sabia jogar (1998), Na conquista do Brasil (2001), Origens do discurso democrático (2002) – ensaios; Finnicius Revém – tradução. O Tatu (capítulo O monarca das coxilhas) Foram tempos difíceis aqueles. Descer de Sorocaba ao Continente de São Pedro era arriscado e a viagem não tinha fim. Mas em Ouro Preto trocavam gado por ouro. Os criadores tinham abandonado os campos. As lavouras estavam cobertas de macega. Ouro, ninguém pensava em outra coisa. Para gastar em Lisboa, Londres, Paris e Amsterdã. Definhavam com baús cheios de ouro. Trocavam boi por ouro. Pagavam índio a peso de ouro. Foram tempos difíceis aqueles. Os índios não se rendiam. Atiravam, lutavam, arranhavam, mordiam, fugiam. Abatiam-se dezenas para capturar um, isto, quando os índios não matavam os agressores. 406 E havia os castelhanos, gente sem lei, nem rei, sem eira, nem beira. Bandoleiros perdidos nos pampas. Não trabalhavam para ninguém. Tinham feito do saque um meio de vida. Muitos dos que desciam de Sorocaba iam ficando. O mar de coxilhas verdes fascinava. Foram aparecendo ranchos, casas. Viam-se rebanhos de gado marcado vigiado por cavaleiros armados, muitos, exércitos. O estancieiro era a ordem, era a lei, era o rei. Nos campos da minha terra, sou gaúcho sem patrão; de cavalo, bem armado, minha lei é o coração. Ser monarca da coxilha foi sempre o meu galardão, e quando alguém me duvida, descasco logo o facão. O Tatu não tinha inclinação para tão luzentes monarquias. Preferia o ranchinho, o chimarrão, o churrasco assado no braseiro, a prosa estirada, o sossego. Valente era. E trabalhador. Eu vi o Tatu montado no seu cavalo picaço, de bolas e tirador, de faca, rebenque e laço. Mas isto era para as horas de precisão. De seu gosto, passava os dias na toca, pitando devagarinho, olhando para dentro e para longe. As horas de sossego foram diminuindo. Gente do monarca gritava, alta madrugada: – Sai da toca, Tatu, tem serviço. Tatu, doma aquela égua; Tatu, providencia lenha; Tatu, vai buscar água na sanga; Tatu, desapareceu gado. Tatu, faz isso; Tatu, faz aquilo. O Tatu queria um ranchinho só para si, algumas cabeças de gado, uma vaca de leite, um cavalo para montar, arreios. Só isto, para que mais? Quando abriu os olhos, não tinha sobrado nada. Os campos eram do monarca; gado, do monarca; cavalos, do monarca; rancho em que morava, do monarca. E tinham trabalhado juntos. Tinham se estabelecido juntos. Lutado juntos. Foi falar com o estancieiro, seu amigo. – Tatu, vê bem! Não comes do meu gado? Não bebes leite das minhas vacas? Não montas os meus cavalos? Não moras no meu rancho? Não te devo nada, Tatu. O serviço que tu fazes está muito bem pago. Dos outros exijo muito mais e sem essas regalias. 407 O Tatu é um homem pobre que não tem nada de seu, tem uma casaca velha que o defunto pai lhe deu. O Tatu sentiu que tinha chegado a hora de partir. Depois de muito corrido nos pagos em que nasceu, o Tatu alçou o ponche pra outras bandas se moveu. O Tatu foi encontrado pras bandas de São Sepé, mui aflito e muito pobre, de freio na mão, a pé. O Tatu subiu a Serra à força de mocotó, caminhou cinquenta léguas pra ver se achava ouro em pó. Não tinha pressa. Ia devagar. Se via uma casa, chegava. Perguntava se não tinha um bagual para domar, uns arreios precisando de conserto, alguma rês bichada. Ajudava, ficava, dormia, comia e se despedia. Foi andando, foi andando até encontrar gente alta e loira. Aí a lida era outra. Arado revolvendo a terra. Mato. Vento levantando ondas nos trigais como se fosse água. Repolho, feijão, milho, arroz, amendoim, batatinha. As casas, um formigueiro. Saía gente e entrava gente. Quem era o patrão? E tinha? Todos trabalhando parelho, velho e moço, homem e mulher. O monarca morava onde? Uma casa igual à outra. De tempos em tempos, outra casa. E a lida era a mesma. Nada de monarquias. O que queria era isso mesmo: um arado, alguns pés de feijão, só para o gasto; milho para os cavalos, forragem para as vacas. Trabalho sossegado. Nada de tropelias. O Tatu foi-se chegando. Os homens loiros desconfiaram. Mandaram as mulheres para dentro. Engatilharam as armas. O Tatu saiu do mato procurando mantimento, caiu numa cachorrada que o levou cortando vento. – O que é isso, minha gente? Sou homem de paz. Não trago cinturão, nem arma. Não uso faca nem facão. Carrego esta casaca velha, herança de meu pai. Sou pobre, mas honesto. E respeitador. Tenho fama de trabalhador. Nunca fiz mal a ninguém. Lá na minha terra me chamavam de Tatu, porque o meu rancho 408 era o que eu mais apreciava. Quero uma casinha, terrinha para plantar, essas coisas que vocês têm. Olharam, conversaram baixo, se coçaram, negacearam. Por fim se aproximou um de nome Fritz. Mostrou-lhe um mato. Disse que podia derrubar, preparar a terra e plantar. O trato era à meia. Metade do Tatu, metade dele, dono do mato. Plantasse, fosse economizando, poupando aqui, poupando ali, um dia teria o suficiente para comprar a terra. Então tudo era seu. Cuidasse do serviço, não se metesse em encrenca, nada de bebedeira. Podia ficar rico. O Tatu derrubou, queimou, lavrou, plantou, colheu, criou. Devia na bodega: arroz, feijão, charque, café, sal e açúcar. Devia na ferraria: arado, carroça, machado, enxada, pá. Devia na serraria: tábuas de quinta para o ranchinho. Devia na olaria: telhas de segunda. Vendeu milho, feijão, arroz, batatinha. Pagou bodegueiro, ferreiro, madeireiro, oleiro. – Não sobrou nada, seu Fritz. Trabalhei duro, o senhor viu. Tudo anda caro. Pagam pouco. No ano que vem eu pago. – Não me venha com lorotas, Tatu. O meu é sagrado. Tenho dívidas e família para sustentar. Me dá o que é meu ou te some antes que eu te mate. O Tatu me foi à roça, toda a roça me comeu; plante roça quem quiser, que o tatu quero ser eu. Foram-se os sonhos dourados do Tatu. Saiu cabisbaixo. Foi andando, foi andando, quando deu acordo de si estava longe. Não era isso que devia fazer? Deixou tudo, até a casaca velha do defunto pai. O Tatu foi encontrado no cerro do Batovi, roendo as unhas de fome, ninguém me contou, eu vi. O Tatu foi encontrado na serra de Canguçu, mais triste que um socó e sujo como urubu. O Tatu é bicho chato, Rasteiro, toca no chão; Inda mais rasteiro fica, Quando vai roubar feijão. O Tatu foi andando. Roubando, comendo e apanhando. Dormiu na cadeia e ao relento. Viajou a pé, de carroça e caminhão. Molhou-se na chuva, adoeceu 409 e passou frio. As estradas iam ficando cada vez mais largas. Começaram a se cobrir de asfalto. As casas iam escondendo a terra. Era uma juntinho da outra. E se espichavam até as nuvens. Assim ainda não tinha visto. Nem imaginado. Foi-se aproximando das margens de um grande rio. Procurava um espaço livre. Olhou como os outros tinham feito. Juntou tábua velha, lata velha, algumas folhas de papelão. O suficiente para se entocar. Para que mais? Se queria espaço, saía a caminhar. Já tinha viajado tanto, visto tanta coisa! Ensinaram-lhe a catar papel. Dava para a cachaça. Comida se encontrava nas latas de lixo dos restaurantes. Comia o que comiam os ricos. Era só saber os lugares e chegar à hora certa. Uma tarde viu as últimas cores do crepúsculo brincarem no espelho da água. Sentiu um apertão no peito e começou a sonhar monarquias. Foi à bodega, pediu um trago: – Na minha terra, eu fui monarca... Comentários ao capítulo O monarca das coxilhas de O Tatu O Tatu é um rimance, espécie literária incomum na produção contemporânea. A espécie rimance teve origem nas narrativas ibéricas medievais, compostas em falares românicos. Rimances são narrativas de cunho popular; nem sempre têm autor ou autores definidos. Em O Tatu, essa espécie é reconstruída a partir da narrativa versificada popular homônima, integrante do cancioneiro sul-rio-grandense. A maior parte do texto, contudo, é elaboração do autor. Essa elaboração inclui quadras, trechos e capítulos em prosa. Esses aspetos são já especificidades caraterizadoras da obra. Em O Tatu há capítulos compostos exclusivamente em versos, em versos e prosa e em prosa. Os capítulos não constituem sequência de causa e efeito, i. é, os capítulos estão integralmente constituídos neles mesmos. Nesse aspeto, o rimance lembra a estrutura organizacional narrativa de Vidas secas, mas com maior liberdade sequencial nos capítulos. Nisso, reconstrói claramente a técnica da narrativa popular versificada O tatu, a partir da qual o rimance foi elaborado e deve ser lido. O discurso em O Tatu, a exemplo dos rimances medievais, é construído sobre falares orais. Ronda as falas de pessoas simples, de pouca ou nenhuma escolaridade. Verbaliza problemas com que camadas subalternas da população convivem diuturnamente. Dialoga com discursos literários e com formas coloquiais. Incorpora formas e significados das trovas presentes na narrativa versificada O tatu, que Augusto Meyer entendeu como uma forma de romance velho (outra maneira de dizer rimance medieval). O capítulo de O Tatu transcrito nesta antologia pode ser considerado central à obra e formador da narrativa toda. Pode ser considerado, ainda, capítulo gerador do rimance: constitui núcleo narrativo que se expande nos 410 demais e traça algo como a estrutura propositiva da obra toda. Parece, mesmo, resumir o planejamento que o autor supostamente seguiu. No capítulo, o leitor começa por conhecer a forma como o gaúcho foi por vezes descrito e apresentado (ainda sob o Romantismo), i. é, como o monarca das coxilhas. Schüler foi buscar as quadrinhas que aparecem nessa sequência (heroicizante) em poema recorrente no Cancioneiro guasca e no Cancioneiro gaúcho, mas com títulos diferentes (O gaúcho e Monarquia, respetivamente). A segunda sequência já o vai encontrar como gaúcho comum, ainda bem de vida, conforme demonstra a descrição da figura. Essa quadra foi retirada da narrativa popular versificada O tatu. Daí em diante, usando algumas quadras transcritas e outras elaboradas especialmente e trechos em prosa, a figura do tatu vai sendo apresentada em crescente degradação. Na condição mais inferiorizada socialmente é que profere a frase final, antecedida de travessão, “– Na minha terra, eu fui monarca”. JOÃO ANTÔNIO Ferreira Filho João Antônio nasceu em São Paulo em 1937. Tinha vinte e três anos quando, em 1960, viu a casa onde morava com seus familiares arder num incêndio e, com ela, os originais daquele que seria o seu primeiro livro, Malagueta, Perus e Bacanaço (1963). A literatura era a vida dele. Foi por isso que, dois anos depois, ele se refugiou na cabine 27 da Biblioteca Municipal Mário de Andrade e o rescreveu novamente. Obteve reconhecimento de público e de crítica. O livro ganhou inúmeros prêmios. Dentre eles, os Jabuti de revelação de autor e melhor livro de contos, Prêmio Fábio Prado e o Prêmio Prefeitura Municipal de São Paulo. O autor faleceu em 1996, no Rio de Janeiro. Outras obras: Malhação do judas carioca e Leão-de-chácara (1975); Meninão do caixote (1984); Casa de loucos (1976); Dama do Encantado (1996). Leão-de-chácara (excerto do conto Zona) Essa história do Paulinho duma Perna Torta... eu explico. Foi dessas besteiras de bordel. Logo depois que arrumei os trapos com Ivete, ali mesmo no Salão Azul, rua dos Aimorés, 178, aprontei um recacau por um conhaque vagabundo e um invertido. A zona ferve de invertidos cheios de nove-horas. Ficam muito à vontade. Fazem aqui o papel de empregadinhas domésticas fricoteiras, fuxiqueiras e melindrosas; vivem de lá para cá, levando e trazendo, como sempre insistentes nos dengues e rebolados. Terríveis, safadinhos, vivos, aflitinhos. Pintam a boca e os olhos, fazem regime para emagrecer. Querem-se enxutos, apertando-se em 411 panos que não são nem de homem, nem de mulher. Um é Carmem, outro Margarida, Dolores, Rosana... sei lá. Mas que ninguém se fie na frescura deles. O Império, por exemplo. Trabalha a navalha, bate carteira, corre o pé e joga cacheta. É um acordado no baralho. E se enraivecido fica cabreiro. Que se cubram, então. Império é ponta firme numa briga. Como poucos malandros. No entanto, a onda de valente se vai depressinha. Perde a ginga de brigador; Império volta a rebolar à passagem dos machos, fazendo gritinhos e se desmunhecando. Algum nojo, eu sinto. Mas são viradores também, sofrendo sem eira nem beira. E para final, cada um é cada um. Bem. Uma tal Jane, empregado do Salão Azul, deu para me namorar. Uma noite, saí da Boca do Arrudão para fazer não sei o quê no salão. Um braço magro me puxou. – Meu modelo, você quer conhaque? Jane, canalhinha. Sabia até desta minha mania de conhaque. Saracoteou, gritou lá para a caixa: – Um conhaque para o meu amor! – me correndo a mão manicurada pelo rosto. Veio abespinhada, uns olhos deste tamanho, que metiam medo. Ivete surgiu no salão. Lembro-me que houve um silêncio sério de gente, e a vitrola tocava: “Tava jogando sinuca, Uma nega maluca me apareceu”. O seu sapato de salto voou para sua mão e marchou para o invertido. Gente abriu a roda. Eu, quieto. Ó, meu bom Jesus de Pirapora! Ia feder. – Vou te ensinar a cantar meu homem, seu puto mafioso! Chupador! O tenderepá explodia, quando o otário que saía do quarto com Ivete se veio chegando e me vomitou uma graça pontuda, zombando com a minha cara. – Ah, então esse é o cafetãozinho... Arranquei-me da cadeira. Um coió daquele que não sabia sequer se havia sido parido ou cagado se metia a gente, me jogando uma liberdade assim na cara? Estava armando quizumba? Pois ia ter. Mandei-lhe o conhaque, mandei-me por cima do lixo, o cabo de aço já na mão. 412 Mas o freguês era de luta e não levei boa vida, não. Pegou-me uma cadeirada aqui na coxa e olhem – dei sorte. A ripada me vinha no crânio. Bem no meio. Dois milicos da Foça Pública se abalaram da rua para o salão. Baixaram firmes, de supetão. Não querendo prosa fiada, iam largar porrada e prender. Raspei-me pelos fundos, me grudei a uma janela e balanguei o corpo, ganhando o telhado. Tornei à Boca do Arrudão, encabulado, murcho, como um balão furado. Horas depois, capengando, capiongo e rasgado. Pegara um rabo-de-foguete. A façanha voou e Laércio já era sabedor. Ria. Ele quem me chamou pela primeira vez de Paulinho duma Perna Torta. Depois, só depois, os vadios da turma. Para adular Arrudão, os vagabundos fizeram o acompanhamento estúpido. (Será que a mãe deles, na hora de pô-los para fora da barriga, também não ficou com a perna torta?) – Paulinho duma Perna Torta! Paulinho duma Perna Torta. Fiquei. Como outros malandros grandes e pequenos de São Paulo, eu ganhava um nome de guerra. Que ia se exagerar e virar lenda na boca das curriolas, nas ocorrências da polícia e na mentirada dos jornais. Como Saracura, como Bola Preta, Ivinho Americano, Diabo Loiro, Marrom e como tantos outros. E belisco e mordo, cobiçando e tomando as coisas dos outros, como é do ensino de Laércio Arrudão. Tenho abandonado a magrela a um canto. Não namorico mais as franguinhas direitinhas que trabalham entre o balcão e as prateleiras de tecidos das lojas da José Paulino, da rua da Graça, da Ribeiro da Silva e da Carmo Cintra. Faria funcionar uns nove-dez truques a fim de marmelar um otário nos trocos do balcão – mas só uso uns três, que não falham: meu capital sobe na Caixa Econômica da Praça da Sé. Aprendi carteado, faço trapaça, marmelo, sociedade e qualquer negócio. Tenho vocação. Dou açúcar antes. E deixo o trouxa duro, durinho na mesa. De pernas pro ar, sem dinheiro e sem destino. Desempregadinho. Crio nome de piranha. Como os trouxas pela perna, cobiço. Torno a tomar a verba do alheio. Corro por dentro dos pacatos. Há tipos basbaques, pivetes ainda, aprendizes principiantes na roda da malandragem, que vêm de longe para me espiar jogando carteado. Porque atiço os dedos e vou ao jogo alto, não querendo nem saber se ando certo ou errado. Vou lá. Sou um relógio. Mamo a grana. Meu nome corre. O diz-que-diz me exagera, começa a me pintar de negro. Anda por aí que, por uma herança, matei meu pai a tiros... Trouxas! 413 O diz-que-diz não está me dizendo nada. Fama não me ilude e não me estorvando... Interessa é a grana. Ivete foi a primeira. Mordo agora duas minas na zona. Vou mamando. Sou de Valquíria também. Lá numa das poucas e caras casas da Ribeiro da Silva. Mulata, novinha, me dá tudo o que ganha. Era doméstica e foi comigo que caiu pela primeira vez. Charlei, abusei. Saquei a mina do emprego. Deflorei. Dormimos uma semana num hotel da Alameda Glete. Preparei aquela criança, ensinei a lidar com homem na cama. E meti na vida. Respeita-me como se eu fosse o sol e me chama de paizinho. Seu corpo novinho me agrada. Tem isto aqui de pernas. Nua, seus cabelos ficam ainda mais pretos. Ivete sabe, está claro. Mas não abre o bico – meu nome de perverso anda falado. Boquejam por aí que se me tiram do sério eu apago um. Que matei meu pai a tiros. Durmo com as duas. Cresço a galope. Aos vinte anos, a crônica policial já me adula. “Perigoso meliante.” Trouxas... Volta e meia, dão o meu retrato e minúcias. Um desses tontos dos jornais me comparou, dia desses, a um galã do cinema italiano... Paulinho duma Perna Torta é respeitado, quase de igual para igual, pelos três maiores cobras da malandragem baixa de São Paulo – Bola Preta, Diabo Loiro e Marrom. Sou um nome. Laércio Arrudão me aprova a conduta. E atiça. Minha concentração é na zona, mas reviro os quatro cantos da cidade. Faço um conluio com a curriola de assaltos de Bola Preta. Mão armada, máquina na mão. Assalto, surrupio carteira, Colt 45, vou gatunando por aí. Cinco passagens na Delegacia de Furtos. A Captura já farejou atrás de mim. Carrego cinco processos no lombo, de que o Doutor Aniz Issara cuida a bom preço. Trato Aniz de você, me impondo – e ele é o maior especialista do crime em São Paulo. Mas estou fichado apenas como ladrão e assaltante. Rufianismo, vadiagem e jogo, não. Comentários ao conto Zona de Leão-de-chácara Três boas contribuições trouxe João Antônio à produção literária brasileira: (1) olhar a uma zona social estigmatizada, raramente observada em textos da literatura, semelhantemente ao que fez Schüler em Pedro de Malas Artes e O Tatu, mas, nesses casos, noutros sentidos; (1) levantamento e revigoração de vocabulário e significados em discurso apropriado; (3) transformação desse caldeamento discursivo-cultural urbano em matéria artística. À medida que a narrativa avança, os personagens, especialmente os narradores, se desnudam, e, à medida que se desnudam, crescem como personagens. 414 O vigor do vocabulário e a clareza da exposição, por via da sintaxe empregada, apesar da condição extraordinária do texto, propiciam experiência peculiar de leitura. O submundo da marginalidade passa a conviver com a imaginação do leitor e a integrar o imaginário social fora desse ambiente. Isso possibilita reflexões sobre causas e efeitos desse tipo de vida, vivência e compreensão acerca de circunstâncias do desvio social de personagens e, por consequência, de pessoas, na vida histórica. SINVAL MEDINA Sinval Medina nasceu em Porto Alegre em 1943. Formou-se em jornalismo pela UFRGS. Em 1971, transferiu-se para São Paulo, onde até 1975 integrou o corpo docente da Escola de Comunicações e Artes da USP. Foi então cassado pelo governo militar. A partir de então, dedicou-se ao jornalismo, de que se afastou. Em 1986 foi anistiado e reconduzido à USP. Algumas de suas obras: Liberdade condicional (1980); Cara, coroa, coragem (1982); Memorial de Santa Cruz (1983); Antes do vendaval (1988); Tratado da altura das estrelas (1997); O herdeiro das sombras (2001); A faca e o mandarim (2004). Tem editado também ficção para leitores infanto-juvenis. Memorial de Santa Cruz (excertos) Cheguei em tempo de escravidão. Não lembro nem data nem lugar; só sei que passei a existido aqui mesmo neste Brasil de Deus, e a verdade não é a da certidão do cartório, que essa eu forjei quando foi preciso: minha certidão de certeza é a vida, é estar vivo e sofrido, ontem forro, hoje prisioneiro, mas lúcido da ideia, historiando o que fui e o que vi desde que me dei por gente. O local preciso em que primeiro divisei um facho de luz, isso daí já é outra conversa: só sei que nasci num cudimundo de mato desses interiores que não apurei ao certo até hoje. Mesmo depois de autodidata estudado em idiomas e geografias, e de percorrido pelas estradas do país inteiro, seja como vagabundo, viajor, marinheiro, capanga, boiadeiro ou motorista de caminhão-jamanta, não consegui descobrir. Mas pergunto: e a mim preocupa saber onde? É claro que por vez ou outra bateu curiosidade fininha, furadeira, daquelas que fica verrumando como ferroada de marimbondo, como saudade de mulher amada, e então me lancei em buscas e pesquisas sem fim, eternamente. Procurando meu pé de serra de nascença, muito moço e contente da vida, meti pau na grana ajuntada no garimpo e ainda contraí dívidas que nunca tive condições de pagar, na procura do oco de chão em que alumbrei. Mais de ano nessa lida, só colhi infortúnio, desengano e pista trocada. Mas então? Na flor da minha mocidade, queria porque queria ver as paragens onde a luz entrou pela primeira vez nos meus olhos e onde espantei bicharedo miúdo 415 com meus choros de moleque. Sentimentalismos, eu sei: mas quem não os tem? O que consegui foi torrar muito capital e assumir moléstias graves, que muito tempo levei para curar, como reumatismo artrítico, opilação, maleita, tifo preto; o que vi de gente tragada pelo cólera, pela tísica, pela febre amarela nesse mundo de Deus, virge nossa senhora. Muita gente. Tenho para mim que nesse país é muito pouco o valor que se dá à vida humana, diferença existindo, para isso de morrer, entre mosca e homem, é um tantinho assim de tão pequena, um quase nada. Muita gente pesteada, inflamada, baleada, caída de andaime, furada de faca, soterrada em vala de construção, amassada em capotamentos, atropelada em ruas e estradas e até finada de fome, morreu no meu ombro, soltou aqui, ó, o último suspiro. Nunca vi lugar pra se morrer de morte besta como esse tal de Brasil. Dá até nojo. Mas vou falando, juntando coisa com coisa, cosendo daqui e dali, e o que importa, a minha nascença, vai ficando para trás. Será porque, pergunto, não gosto de lembrar o dia em que vim ao mundo? Quanto mais assunto, menos atino. Diz que minha mãe foi escrava e meu velho liberto. Ou o contrário. Não acredito. Quando me dei por achado, e olha que me lembro de coisas do meu primeiro ano de vida, minha memória sendo demais de boa, minha mãe era mulata clara e o pai, branco, um tipo até meio alourado, que, segundo vim a saber mais além, seria filho de fazendeiro, porém bastardo. Então: vem desse avô torto, fidalgo, meu olho azul. Diz que também na minha infância eu tive e tinha cabelo cor de palha de milho, tão amarelo que era. Pois sim, acredito: conheci criança que de ruça virou morena em adulto. Eu, e isso não me importa nem um pouco, tenho que reconhecer que não é ofensa nem pecado ou desdouro: sou tisnado. Ou não sou? Mulato do cabelo bom, lábio fino, nariz afilado, mas a pele, não nega, a herança da minha mãe, ou do velho meu pai: dos dois, talvez. Mas como eu dizia, naquele tempo tirava-se um homem, uma família, fora da terra que habitavam assim com quem expulsa um cão ou mata um porco. Chegava o camarada e dizia, olha, o patrão manda dizer que quer esse canto de campo, o recado trazido por um próprio, que o dono não falava com agregado, e lá se ia o infeliz, com mulher e filhos, e ai de quem desobedecesse, caía um bando em cima, tocava fogo no rancho, arrasava roças, tropeliava criações, enfim, punham uma vida de trabalho por águas abaixo de uma hora para outra, num átimo. Minha mãe teve em viagem, em cima de uma carreta, a família expulsada das terras em que morava. Nasci, portanto, em momento de desgraça, em noite de tempestade, creio eu. Meu pai contava que levou todo mundo, Vivina, Tutu, João Bosco, Catileia, Garida e Catirininha, para baixo de uma grande mangueira, ou figueira, à margem da estrada e ficaram, ele e os filhos esperando que a minha mãe me tivesse. Acho que em virtude do mau tempo reinante na hora em que vim ao mundo, até hoje, e isso confesso sem pejo ou vergonha, até hoje apavoro com o ronco de trovão e barulho de temporal, e houve época em que, perdão da palavra, me mijava nas calças, mal começava trovejando. Assim, segundo ficou na minha ideia, vim a furo num caminho carroçável, estradinha vicinal, em cima de uma carreta, calentado pela junta de bois, único bem, sobrado da mudança que meu pai conseguiu carregar, em meio 416 a noite de chuvarada, com minha irmandade, uma escadinha, tudo acocrados debaixo de uma frondosa árvore, tremendo arrupiados do frio que fazia, meu pai, no desespero de ter família enorme pra dar sustento, talvez desejando, meio arrependido, que o mais novo rebento nascesse falecido. Foi de madrugadinha, quando rompeu a aurora e calmou o tempo, eu já saído do ventre materno, mas gelado e silencioso, que apareceram três viajantes a cavalo, que vinham pelo caminho guiados por uma estrela de rabo aparecida naquele tempo, aliás eu próprio tive ocasião de apreciar mais tarde, o tal cometa; pois os três se achegaram com a manhã e vieram ver o nascente abandonado da quentura do útero, que tremia de frio, muito roxo, caladinho como para morrer, e os homens em cavalos muito bem arreados, com selas de couro novo e aperos de prata, parecendo príncipes, ou reis, pediram licença ao pai para velar o recémchegado. Somos viajantes do destino, e Deus, com sua estrela, nos disse que uma criança viu a luz no meio dessa noite de tempestade e que precisava de nós, e assim, se o senhor, que é pai, nos der licença, vamos ajudar para que saia desse transe e entre de vez na vida, de pé direito e cu pra lua. Seu dito, seu feito. Meu pai concordou de todo coração, e os homens, com suas mágicas, me fizeram chorar, abrindo os pulmões, me banharam em óleos perfumosos, me embrulharam num manto muito cálido e colorido e disseram que à criança, que era eu, brilhoso e radiante futuro o destino reservava, o que contentou meus pais, que àquelas alturas e dada minha relutância em aceitar a dádiva, ou a carga da vida, julgavam o filho perdido para as lides e tenências de homem de carne e osso, acreditando-me escolhido pelo Senhor para Seu seleto rebanho de anjos. Mas vivi, sobrevivi, sobrenadei à maré do parto e às águas que caíam naquele dia que não posso precisar qual seja, nem o mês, nem o ano, e aqui estou para contar os sucessos desde então até hoje, com todos os pormenores e minudências da exatidão. Os homens a cavalo, os doutores, meus magos salvadores, deles nunca mais soube rastro ou notícia, e não foi por falta de procura. Sumiram no fim de tarde, quando agarraram certeza de que eu era vivo e forte, e nada deteria o meu arranco vida afora. [...] Como diz a boca do povo, desgraça pouca é bobagem, e urubu, quando está de azar, até no pedregulho se atola. Parece que não bastava o pântano de confusos sentimentos em que me achava metido, e tinha que acontecer coisa mais pior. Por certo não sei bem onde e como se deu o acontecido, lembrando apenas que foi na porta de um botequim, eu recozido de bêbado, ele, o adversário, não menos chumbado e mamado. Estávamos lá dentro, cada qual num canto do balcão, o cara chegou e disse, paga uma aí, meu. De cornos azedos como me encontrava, não gostei da intimidade, mas, para não criar questão, acedi e mandei o português servir. O xará aí parece que não está muito bom, falou o cara para os que estavam ao lado dele. Encolhi-me no meu canto, puxando um cigarro do bolso e fingindo que não era comigo. Se esse filho-daputa não largar do meu pé, vou ter que dar um corretivo nele, pensei, emborcando meu liso da malvada, que desceu queimando. Fiquei naquela: pago 417 a despesa e me arranco, ou mando o portuga tacar mais uma? Se fugisse da raia, iam dizer que tinha afinado. E sempre fui de dar dedo para não entrar numa peleia, mas porém dou o braço inteiro para não sair. Entesei e decidi: bom, se ele altercar vai ter. E comandei outra dose. Para mim também, ripostou o cabra. E eu: só que não às minhas custas. E ele: olhaí, gente, o nosso amizade aqui não está a fim de pagar mais uma, o que é que vocês acham? Rilhei os dentes, resolvido a não aceitar a provocação e só sair no braço em último caso, mas o nego foi e falou para o portuga, põe outro martelo aí que o companheiro vai pagar. E eu: se botar é prejuízo, porque já disse que não pago. Nessa altura começou a juntar gente à volta, pressentindo que o bate-boca poderia degenerar em conflito. Resolvi acabar com a festa: não bota porra nenhuma que não pago mais nada para esse sacana, não tenho filho dessa idade. Olhei pela primeira vez para o sujeito, e era um sarará baixinho e entroncado, de óculos escuros e um dente de ouro na frente. Ele disse, vai pagar por bem ou por mal, cabra safado, e veio na minha direção. Quando se aproximou, o pessoal à volta rindo e esperando que bicho ia dar, meti-lhe a mão na cara que ele saiu pela porta e foi se esparramar na calçada. Já se levantou com a navalha na mão e veio para cima: quebrei o copo de banda e tentei dar-lhe um passapé, sem resultado. Ele veio de novo e consegui segurar a mão que ele empunhava a arma, e atracamos, rolando pelo chão. O povo à volta açulava, sem fazer menção de apartar. Apesar de forte, o sarará não resistiu ao meu maior preparo, de sorte que puxa daqui, puxa dali, vira e mexe, fiquei por cima e prendi os ombros dele com os joelhos, deixando-o imóvel, as espáduas contra o chão. Daí roubei-lhe a lâmina e, erguendo-lhe o queixo com a mão esquerda, com a direita passei, de um só golpe, a navalha na garganta, e de orelha a orelha. Por um instante vi apenas um risquinho vermelho no lugar do talho, com se fosse um arranhão, mas, quando ele gritou, o sangue começou a espirar aos borbotões, e o corpo pegou a tremer como galinha degolada. Compreendi que sangrara o homem para todo o sempre, pois estrebuchava. Levantei com a camisa toda respingada e saí andando, o cutelo na mão, sem que ninguém no círculo que se formara em torno tentasse me deter. A uma certa distância entrei a correr, o porre repentinamente curado, e rumei para os matos e matagais que limitavam o fim da favela, a cabeça desanuviada, disposto a sumir para não ser preso em flagrante. Fiquei homiziado por ali mesmo, indeciso quanto à direção a tomar, e, nesse meio tempo, com a chegada dos policiais, organizou-se verdadeira caçada humana em que a presa era justamente a minha pessoa. Ao amanhecer, fui encurralado, agarrado, jogado dentro de uma viatura e conduzido para a delegacia, onde fiquei sabendo que o sarará morrera antes de dar entrada no hospital, o que me configurava como devedor de crime de morte. Levaram-me à presença da autoridade, onde contei o sucedido sem falsear um único pormenor, deixando bem claro que não provocara a contenda, e que o liquidara porque era ele ou eu. Que não costumava andar armado, que era trabalhador, que nunca me envolvera em questões policiais. E que estava no bar, bebendo e alcoolizado, por motivo de problemas íntimos que vinha enfrentando nos últimos tempos, e 418 que não invocara com ninguém, conforme podiam testemunhar os presentes à cena. E que não tinha mais nada a dizer em meu favor; que o que tivesse que ser que fosse. Era o dia primeiro de abril, e ali, preso, fiquei sabendo que o governo caíra. Permaneci alguns tempos detido na própria delegacia, em péssimas condições de higiene e acomodação, comendo uma comida que mais parecia lavagem de porcos, até que fui transferido para a penitenciária, onde aguardei julgamento assistido por advogado de ofício, que dinheiro meu não possuía para contratar um bom defensor. No tribunal do júri nenhuma testemunha ocular puniu por mim, todos unânimes em declarar que degolara o morto a frio e covardemente, quando já se achava imobilizado e entregue. O que não faltava com a verdade, mas também não dizia tudo. Falaram a meu favor apenas o compadre Cantídio e alguns companheiros de trabalho, para louvar meu procedimento de homem correto, pacato e cumpridor, o que de pouco adiantou. Tascaram-me vinte anos no lombo, e foi assim que perdi minha liberdade e vim parar nesta cadeia imunda; detento 1964, que aqui ninguém me trata pelo nome de Brasil de Santa Cruz. E recordando vou as passagens da minha vida, desde a mais remota infância até os dias atuais, trancafiado a sete chaves e privado de qualquer veleidade humana: uma sina dura, mas que tem que ser cumprida. Planos para quando sair ainda não possuo; se puder, fujo. Se não obter escapula, cumpro a pena e ganho a liberdade, devidamente quitado de um débito que não contraí. Trabalho na carpintaria, jogo meu futebol, ostentando qualidades de craque do meu time; de vez em quando faço uns truques de prestidigitador ou malabarista, aprendidos nos meus tempos circenses, e com isso dou alguma distração aos companheiros. Por bem ou por mal, os dias vão passando. Mas à noite, no escuro da cela, depois que toca o recolher, que me bate a pensadeira e fico a cogitar nas arapucas que me armou o destino. Revejo os sucessos que vivi como num filme, desde o tempo em que morreu meu pai, e as manas caíram na vida, e aqueles homens assassinaram minha mãe, e fugi com os manos por rios e pântanos, sem rumo, e minha estada em companhia de mestre Salustiano Tapajós, e a ida para a capital federal mordido de cão raivoso, e o namoro com a defunta, o ingresso na marinha, a sufocação dos fanáticos, onde aliás vim a matar meu próprio irmão, a revolta, a deserção, o exílio, depois a volta por cima, transformado em lugar-tenente de um homem de infinitas posses, de quem dei cabo por ciúme, e, perseguido, tive que me encafuar na selva, onde virei bugre, andando nu e comendo bicho do mato, gados roubados e frutos silvestres, depois minha liberdade, e a adesão à coluna revoltosa, o novo exílio, a volta ao país, consagrado como craque de futebol, a participação na revolução vitoriosa, a renúncia a qualquer cargo ou honraria, a vida de pescador, a morte de minha noiva, o ingresso no circo, onde me tornei o primeiro introdutor do globo da morte entre nós, o acidente, a convalescença, a fase como cabo eleitoral do Leitão, os tempos de transportador rodoviário, a vinda para São Paulo, as fábricas, a catação de lixo, o romance com a comadre, o desencanto da vida e, afinal, a degola e morte do sarará num dia primeiro de abril. Não posso dizer que a prisão me tirou o tesão de viver ou abateu por 419 demais minha pessoa. Como sempre, aos trancos e barrancos vou marchando. Planos futuros não alimento, mas também não abandonei as esperanças. O tempo foi feito mesmo para passar, e seu escoamento trabalha em meu favor. Qualquer hora deixo de ver o sol nascer quadrado, é só questão de espera, paciência e oportunidade. O importante é que continuo respirando, e não perdi a confiança em meu braço. Como diz o outro, não está morto quem peleia. Por ora, são essas as lembranças que me restam. Quando sair da cadeia começo tudo de novo: aí a gente volta a prosear, que uma boa conversa é a coisa de que mais gosto na vida. Comentários aos excertos de Memorial de Santa Cruz Memorial de Santa Cruz constitui experiência que teve adeptos. O personagem-narrador está encarcerado e grava sua história diante de alguém inidentificado. Esse procedimento técnico justifica outro: o fato de a narrativa conter apenas uma entrada de parágrafo, a inicial. Por essa razão se pode dizer que se trata de romance de fluxo único. Isso, porém, não significa que se possa ter dúvida sobre a espécie narrativa: trata-se mesmo de romance (não de novela). Tampouco se poderia entendê-lo como romance composto apenas do eixo narrativo, sem subenredos afluentes ou carência de núcleos temáticos. A própria técnica narrativa impõe ambiguidades essenciais: o indivíduo, construído sobre o personagem-narrador; a multiplicidade de representações de condições sociais e simbologias que desempenha; a simbiose entre indivíduo, estrato social e país, como todo, em alegorias de origem metonímica. O personagem-narrador, Brasil de Santa Cruz, pertence ao estrato da população de baixo, identificava-se com o povo sofredor e sem prestígio, habitante do Brasil, e com o próprio país. Haja vista que o encarceramento do personagem Brasil ocorre no dia primeiro de abril de 1964, data em que se declarou, historicamente, o último golpe militar no país. O título do romance confirma a relação entre o personagem-narrador e o país: Terra de Santa Cruz foi o segundo nome dado ao Brasil. Lembre-se ainda que o personagem assassinado pelo narrador é um “sarará”, i. é, um mulato. Em parte do imaginário popular brasileiro, o Brasil é moreno, ou mulato, como se constata, p. ex., em Aquarela do Brasil, tido por parte da população como texto representativo do Brasil (ou, de fato, de certo Brasil). O primeiro excerto mostra o início da narrativa; o segundo, o fim da exposição do “detento 1964”. O narrador expõe suas experiências, reflexões, aprendizados, sofrimentos que lhe impuseram e que impôs. No primeiro caso, foram sofrimentos que lhe foram impingidos pela condição e pelas circunstâncias; no segundo, impôs sofrimentos, igualmente possibilitados pela condição e pela circunstância. Restam-lhe, pois, ressacas bem marcadas desses sofrimentos, exacerbados pela consciência que tem das condições em que em cada caso se encontra e da circunstância em que exerce as ações nos episódios que narra. 420 Esse olhar a partir de baixo, a centralidade de personagens representativos de camadas subalternas, a preocupação discursiva, a reflexão metanarrativa, a estilização dos recursos da oralidade das camadas de baixa escolaridade ou sem escolaridade, a presença marcante da ironia, a contraposição às formas de exercício do poder, a demonstração de consciência de necessidade de alterações na organização social fazem do texto bom exemplar da literatura que se produziu na época no Brasil. É possível encontrar em Memorial de Santa Cruz marcas do revisionismo pós-modernista, de vínculo e de expressão populares desse estilo de época, além de inovações técnicas anteriormente comentadas. Tratado da altura das estrelas (capítulo Vê-se à nora o narrador) Se me não trai a memória, em algum ponto deste já alongado relato, historiamos a espantosa viagem da nau Catarineta e da parte que nela tomou um certo gajeiro por nome João Carvalho, o tal que, nascido de mãe cigana e pai ismaelita na moiríssima cidade de Granada, teria sido arrastado pelas correntes do destino ao reino de Portugal, onde viria a tornar-se da carreira do Brasil um dos mais experimentados pilotos, muito contra vontade sua, é verdade, pois o que mais almejava em dias de vida era alcançar a opulência dos reinos da Índia e a riqueza das ilhas do Mar Pacífico, em desconformidade com os fados, que sempre obraram por transformá-lo em reles prisioneiro da banda meridiana do Mar Atlântico, exceto numa única e isolada ocasião, em que por sinal lhe sairia a jornada totalmente pelo torto, mas essa já é outra passagem a ser contada (se o for) no devido tempo. A bem da verdade, paciente leitor, tantas são as histórias e tão parco o engenho deste que se atreve a relatá-las que às vezes, no afã de esclarecer os fatos, ele (ou seja, eu) acaba (acabo) mais atrapalhando do que ajudando. Ufa, que longe vai já a conversa e ainda não tratamos do que pretendíamos no presente item, ou seja, do desembarque do gajeiro João Carvalho em areias de Portugal após a tormentosa travessia da nau Catarineta por mares nunca dantes navegados etc. Ora bem. O primeiro pensamento que lhe vem à mente ao pôr o pé sobre as pisadas pedras do cais da ribeira de Lisboa é não ter um canto onde repor as energias que tanto dissipou na trabalhosa viagem, pobre como se encontra, e, para mais, sozinho com Deus (ou quem sabe com seu tenaz contrairo que é Satã). Enfim, não vem ao caso. É certo que, pese o trato feito com o mestre ao engajar-se, concedeu-lhe o capitão algumas moedas em regozijo pelo sucesso da travessia, o que garantirá poiso e mesa por uns dias, mas se não quiser virar pobre que nem rato de igreja, tamanha sua penúria, carece com urgência arrumar-se em nova equipagem e assim fazer-se ao oceano tão logo lhe permita a sorte, pois, como ensina o adágio, marinheiro em terra e navio atracado, preguiça no lombo e prejuízo dobrado. 421 E andando com tais pensamentos em cabeça pelos becos do ponto à cata de algum catre onde possa despejar-se das fadigas da viagem, eis quando depara com dois encapuzados que, valendo-se do adiantado da hora (já caiu há muito a noite, as ruas estão desertas) lançam-se feito cães famintos sobre um transeunte que, em lentos passos de ancião, segue seu caminho sem reparar no perigo que o ronda. No primeiro momento, cuida o moço João Carvalho de esconder-se para não comer, ele próprio, da comida de urso que os assaltantes estão prestes a servir à vítima. E ali fica, ao abrigo das sombras, decidido a não meter o bico em ninhal de corvos, enquanto o indefeso salteado brada em desalentada voz: Aqui del rei! Acuda-me, pelo amor de Deus! Se lhe perguntassem, não saberia o moço João Carvalho dizer que o bicho o teria mordido ali naquele átimo. A verdade é que, assomado de incontida fúria (e contando apenas com a força dos próprios punhos) desembestou-se sobre os agressores aos socos, cabeçadas, dentadas e pontapés com tamanha valentia que num zás-trás arrumou com eles a correr pela viela abaixo. Voltou-se então para o socorro do ancião, que, apesar de trazer um fundo corte de arma branca sobre a fronte, mostrava-se consciente, tranquilo e em condições de marchar com as próprias pernas. Sem delongar razões, digamos que o pobre homem em boa hora acudido pelo ex-gajeiro da nau Catarineta (e futuro piloto da carreira do Brasil) revelouse ninguém menos do que venerando rabi Abrão Usque, figura principal do círculo judaico de Lisboa, comerciante, financista, armador de naus e caravelas do proveitoso trato ultramarino e sócio de sólidos negociantes israelitas de Amsterdão, que mui grato se mostrou ao moço por havê-lo valido em tão premente momento. — Não fosse tua galhardia, meu bom rapaz, e andaria eu, por essas horas, a prestar contas de meus feitos e mal-feitos no outro mundo, que os sequazes que me atacaram, mais do que a bolsa, projetavam tirar-me a própria vida. — Ainda bem que os pusemos a correr, senhor. Tão cedo não voltam a incomodá-lo, disto estou certo. Mas agora venha, levante-se do chão frio e digame aonde mora, que para mim será uma honra acompanhá-lo até sua casa. E assim praticando (como se fossem velhos conhecidos), lá se foram pelos fétidos becos próximos ao porto, àquela hora mais desertos e sinistros do que os tórridos areais marroquinos há pouco bordejados pela nau Catarineta, como bem lembra seu jejuno gajeiro. No trajeto, mais loquaz do que seu natural, contou o moço um pouco de sua história e planos de vida, até que se acharam diante do portal do rabi, no centro da Judiaria. – Muito bem, mestre, aqui estará a salvo. Tenha uma boa noite e doravante muito cuidadinho para não cair de novo na unha de salteadores de ocasião. O venerando rabi, mirando-o com toda a verdura de que eram capazes os astutos olhos, disse-lhe mansamente: – Então, João Carvalho, crês que sou assim tão mal agradecido? Sei que não tens onde dormir, que vens cheio de fome, que procuras meio de vida, que 422 não conheces quase ninguém nesta adversa cidade... Imagina se te vou deixar assim, ao deus-dará, tão desamparado de tua própria sorte. Sê bem-vindo ao meu lar, onde de todo o coração te recebo na condição de filho. Talvez tenha o rabi Abraão Usque pronunciado outras palavras em sua bênção de acolhida ao moço que o salvara de cobarde ataque num tortuoso beco de Lisboa. Não nos cabe aqui, porém, escrutá-las. Como também não caberá, no escopo do presente relato, minudente crônica da vida do gajeiro granadino João Carvalho nos tempos passados em casa de seu pai adotivo. Basta dizer que, pela altura, vai o povo judeu mui apremiado pelo Venturoso Dom Manuel, que por agrado a seus sogros, os mui católicos reis de Espanha Fernando e Isabel, acabou de decretar o batismo obrigado de quantos em Portugal ousem professar a vetusta lei mosaica. Está, portanto, o encanecido rabi virado em cristão-novo quando recebe João Carvalho em seu círculo doméstico, o que, de resto, nada acrescenta à nossa história. Importa, isso sim, que o sábio Abraão Usque não medirá esforços para encaminhar o protegido (que alguns passam a chamar Bernardo Usque) na senda de profícua carreira como mareante, cuidando de instruí-lo nas artes da navegação astronômica, medição da altura das estrelas, controle das declinações da agulha magnética, aproveitamento de ventos e correntes, leitura de portulanos etc, de sorte a torná-lo (como já ficou aqui comprovado) um dos mais competentes e respeitados pilotos-estrólicos de Portugal, mormente na promissora e recém aberta carreira do Mar Atlântico etc. Termina por aqui (bem menor, portanto, que os anteriores) o presente item, pese o fato de se não terem esgotado todos os temas que o poderiam compor, devendo-se tal interrupção à imperiosa necessidade que sente o narrador de recobrar fôlego e pôr em ordem as ideias. Acrescente-se, em tempo, que datam dessa remota época os primeiros apontamentos de João Carvalho no inconcluso livro que o acompanharia pela vida afora, e que ele denomina, com certa empáfia, Tratado da altura das estrelas. Mas basta de minigâncias e toleimas desimportantes. Se, após a intempestiva e talvez dispensável digressão, reunir o leitor suficiente paciência para seguir avante, oxalá, afinal, a história encontre um norte e desenrasque-se o rabiscador dessas desconchavadas linhas do sarilho em que vai metido. Ao contrário do que diz o ditado, quem corre por gosto esbofase tanto ou mais do que fugitivo da milícia. Enfim... Comentário ao capítulo Vê-se à nora o narrador de Tratado da altura das estrelas A contribuição de Sinval Medina à nossa literatura é das mais significativas. Em Tratado da altura das estrelas, investe vigorosamente sobre reconstrução discursiva. Desse modo, não apenas trabalha o discurso, como desenvolve a metanarratividade, jeitos pós-modernos, entre outros, de tessitura textual. O romance dedica-se também à reconstrução da história e do imaginário que envolvem os chamados de descobrimentos marítimos do século 16. Por 423 esse caminho, reconstitui não apenas as condições sociais e psicológicas de época, como centra a perspectiva em personagens que se autoconstroem, independentemente de aliciamentos históricos. Concebe em geral os personagens de tal modo, que fornecem ao leitor possibilidades verossímeis tanto de caldeamentos étnicos e sociais, como de estruturações psicológicas. Vislumbram-se a partir disso elementos construtivos da psicologia social que em parte nos carateriza. Tratado da altura das estrelas leva o leitor a empreender ações e façanhas ao acompanhar uma viagem de exploração do território que hoje denominamos América. Para isso, lança mão da mítica Nau Catarineta. As perspectivas da viagem e dos personagens que atuam na narrativa convergem para uma visão da Europa, ávida de riquezas, sob concepções eurocêntricas do mundo e marcadas divisões estruturais na organização social. No capítulo lido, o narrador reflete sobre as dificuldades que encontra para levar a cabo a narração que empreende. Entrementes, contudo, tece linhas narrativas e intercruza caminhos de destinos. Isso representa claramente a preocupação metanarrativa, que não se resume ao trabalho discursivo. Marcantes momentos narrativos estão centrados em personagens das periferias sociais, o que inclui a narrativa no âmbito das obras de vínculo popular (mas provavelmente não, no âmbito de leituras simplistas). A força revisionista que flui ideologicamente da narrativa inclui o texto no terceiro estilo de época pósmodernista. A tarefa do autor mostra-se exemplar, por organizar e executar planejadamente o desenvolvimento narrativo. José RUBEM FONSECA Nasceu em Juiz de Fora (MG) em 1925. Formou-se em Direito. Ao vencer o II Concurso Nacional de Contos do Paraná, em 1968, projetou-se nos meios críticos nacionais. Vive no Rio de Janeiro. Algumas de suas obras: A coleira do cão (1965); O homem de fevereiro ou março (1973); O caso morel (1973); Feliz ano novo (1975); A grande arte (1983). A grande arte (excerto da 2ª parte capítulo 1) Poucos dias após o casamento, como Vicentina não quisesse ir, o pai convidou Socorro para acompanhá-lo à inauguração do Teatro Municipal do Rio. Ia ser mostrada a última novidade teatral de Paris, a peça Le refuge, de Dario Nicodemus. Socorro, trajando um vestido de mousseline de seda suave, assistiu à peça no camarote ao lado do pai, portando-se com a elegância recatada das jeunes filles patrícias. No mês seguinte foi com o pai, novamente, ao Teatro 424 Municipal assistir a uma conferência do escritor Anatole France. Na mesma ocasião pediu para ler o poeta Luís Delfino, de quem tanto se falava. Quinhentos sonetos de Delfino, que iam ser editados pela Casa Laemmert, haviam sido destruídos no incêndio da Companhia Typographica sem que deles houvesse cópias. O vate não se importara, alegando que quinhentos sonetos não valiam muita coisa e que tinha mais cinco mil em sua casa na rua Jockey Club. Como Barros Lima fosse amigo do ilustre poeta, solicitou alguns sonetos inéditos para leitura de sua filha, e Delfino mandou para a menina, de presente, uma resma de sonetos do próprio punho. Tendo em vista tudo isso, chegou-se à conclusão de que Maria do Socorro estaria curada, e os serviços de Barbalho foram dispensados. Além da casa em que moravam na rua São Clemente, Barros Lima ao morrer não possuía bens, calando a boca dos seus inimigos políticos que o acusavam de ter enriquecido em negociatas com Rio Branco. Laurinda, quando o pai morreu, vivia em São Paulo, tinha três filhos, um menino de dez anos chamado Fernando e duas meninas, Maria Augusta e Maria Clara, com nove e sete anos, respectivamente. Uma governanta inglesa tomava conta das crianças. Durante a Guerra mundial os negócios da família Prado haviam prosperado ainda mais. Laurinda passou a ter duas casas, pois comprara um palacete na rua São Clemente, no Rio, próximo da mãe, a quem visitava no mínimo uma vez por mês, quando lhe entregava uma generosa quantia em dinheiro para que ela e a irmã pudessem manter a vida confortável que levavam quando o pai ainda era vivo. Uma funda mudança ocorrera com Laurinda. Excluída a gravidez pré-nupcial, ela sempre fora tímida e conformada, mas agora se transformara numa dinâmica e independente patronnesse das artes, e os seus salões, tanto na avenida Paulista quanto o de São Clemente, tornaram-se o centro da sociedade e da intelligentsia da época. O marido, José Priscilio, era um jogador compulsivo e perdia enormes quantias no pôquer, mas dizia-se que ele tinha tanto dinheiro que nem o jogo nem os caprichos de sua mulher podiam dilapidar a fortuna da família. Maria do Socorro podia agora levar a vida dupla dos seus sonhos. Vestiase de homem e frequentava os bordéis de luxo da rua Taylor. As prostitutas com quem estabelecia um intenso, ainda restrito, intercâmbio sexual jamais desconfiaram que ela fosse uma mulher. Os seios muitos pequenos, o corpo esguio e o cabelo cortado à garçonne, comum então, facilitavam a Maria do Socorro o seu travestismo. As mulheres apaixonavam-se por aquele rapaz diferente, de boca sempre perfumada com Odol – “Das Beste für die Zahne” –, de hábitos sexuais exóticos, que nunca tirava seus trajes formais e mesmo assim era capaz de criar as mais alucinantes experiências libidinosas. Era aqueles os salões de Maria do Socorro, onde também se falava de poetas, de Baudelaire, Rimbaud, Schiller, que Socorro lia no original e depois traduzia. Algumas das mulheres eram francesas e outras polacas, que sabiam alemão. A favorita de Socorro, uma jovem polonesa chamada Wanda, também escrevia versos 425 melancólicos recordando sua infância em Cracóvia. Nessas ocasiões, quase sempre no fim da noite, quando os clientes da casa, senadores, comerciantes, altos funcionários, figurões da província, já se haviam retirado, as mulheres vestidas ainda nos belos trajes de gala com que recebiam os visitantes, longos vestidos décolletés de cetim de seda, tomavam champagne e ouviam atentas o jovem Mário recitar poemas. Quando desempenhava publicamente seu papel feminino, Maria do Socorro procurava se comportar como uma jovem mulher da sociedade da época, mas, apesar dos seus cuidados, ainda assim era vista com reservas. Fumava em público cigarros turcos comprados na Tabacaria Londres, dirigia em alta velocidade pelas ruas da cidade um Pierce-Arrow conversível e montava no Club Hípico do Rio de Janeiro. As duas irmãs se davam muito bem, mas começaram a se afastar uma da outra quando da visita ao Brasil do rei Alberto e da rainha Elizabeth, da Bélgica. A visita era considerada de altíssima importância política e dizia-se que marcava em definitivo a entrada do Brasil para o rol das grandes potências. A sociedade estava alvoraçada com a visita do rei, que se portara tão heroicamente durante a Grande Guerra, cujo fim ocorrera havia pouco mais de dois anos. O Teatro Municipal e o Monroe foram cravejados com milhares de lâmpadas. Um calendário de visitas e recepções foi organizado para os monarcas belgas. Laurinda usou todo seu prestígio a fim de que sua casa fosse escolhida para local de um dos banquetes oferecidos aos visitantes, que estavam hospedados no Palácio Guanabara, nas Laranjeiras. Ir ao banquete na casa de Laurinda passou a ser uma honraria disputada por toda a sociedade carioca. Convidada pela irmã, Maria do Socorro disse que não iria, pois estava interessada em conhecer o rei, nem mesmo a rainha. Esse foi o início do estremecimento das duas. Já antes, ao ser chamada para apreciar a nova decoração do palacete de São Clemente, Maria do Socorro provocara a ira da irmã. Laurinda orgulhava-se do seu novo mobiliário. Para Maria do Socorro, móveis antigos eram coisa de nouveau-riche, e ela fez questão de dizer isso para a irmã. “O contacto com esses paulistas carcamanos não anda fazendo bem a você, querida.” O desdém demonstrado pelo convite para a recepção aos reis belgas azedou de vez o relacionamento das duas. Laurinda, magoada, chegou a pensar em cortar parte da mesada que dava para sustentar a mãe e a irmã. Quando, alguns anos mais tarde, ocorreu a torpe tragédia, as duas irmãs não se falavam. Manter um salão no Rio e outro em São Paulo era uma grande proeza, não apenas do ponto de vista dos recursos financeiros e da energia necessários, mas também quanto à inteligência e sensibilidade requeridas. A rivalidade entre as duas cidades era muito grande – de um lado a metrópole, capital política e cultura da nação, do outro a Cidade que Não Podia Parar, onde surgia um novo tipo de burguesia, com dinheiro e ócio suficientes para estimular ou participar da Aventura de Criação. Laurinda sabia como enfrentar o problema: mantinha-se neutra nos salões do Rio, quando mofavam do provincianismo paulista; em São 426 Paulo também não se manifestava quando falavam da indolência decadente dos cariocas. Ao começar a segunda década do século, a vida social de Laurinda chegou ao apogeu. Rui Barbosa abandonara a vida política, começava o desmonte do morro do Castelo e com ele a demolição da parte mais antiga da cidade (“Queremos avenidas largas e geométricas”): os grandes escultores Kanto, Correia Lima, Grazianni, Tadey produziam destacados exemplares da arte funerária, exibidos nos cemitérios de São Francisco Xavier e São João Batista. Tudo era discutido nos salões de Laurinda. A frase de Alceu Amoroso Lima, publicada na Revista do Brasil, “o século XX é de São Paulo”, causava júbilo de um lado e escárnio de outro. A literatura era um dos temas principais. Falava-se de parnasianismo (mal), imagismo, vorticismo, acmeísmo, expressionismo, surrealismo, dadaísmo, simbolismo, romantismo, suprematismo, modernismo, futurismo (“Vasto mundo, o da literatura!”). Os jovens poetas iam à casa de Laurinda recitar seus versos – Manuel Bandeira (“Que pena que ele vá morrer tão cedo, o pobrezinho é tuberculoso, sabia?”), Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade – e muitos anos mais tarde, quando a Semana da Arte Moderna de 22, que não despertara muito interesse, passou a ser encarada como um importante acontecimento cultural, Laurinda gostava de afirmar que a Semana nascera nos salões de sua mansão na avenida Paulista. (“Anita, Oswald, Pagu eram habitués.”) A biblioteca da patronnesse na São Clemente ostentava milhares de livros encadernados, todos com o ex-líbris feito pelo jovem pintor Di Cavalcanti, um desenho que Laurinda depois descobriu ser muito parecido com o ex-líbris que o artista fizera para Ronald de Carvalho. (“Inspirado descaradamente no Beardsley.”) Então a primeira desgraça. Laurinda entretinha seus convidados com um concerto da pianista Maria Carreras, num sarau noturno em São Clemente, no dia do terrível acontecimento. Uma jovem prostituta da rua Taylor assassinara o amante num dos quartos do lupanar. Quando a polícia chegou ao local (dos jornais: “A hetaira em prantos abraçava o rapaz que estava deitado na cama, morto por um disparo de arma de fogo”) verificou que o jovem assassinado por ciúmes pela tresloucada meretriz polaca era, na verdade, uma moça. E essa moça era – que horror! A imprensa colaborou, os donos dos jornais eram amigos, mas a notícia circulou à sorrelfa, de boca em boca, como os boatos e as verdades vergonhosas, para hipócrita consternação e secreta alegria de todos. A casa da rua São Clemente foi fechada e durante muito tempo Laurinda manteve-se afastada do Rio. Vicentina, a contragosto, mudou-se para a casa da filha em São Paulo. Com a idade, a matriarca engordara muito e no seu rosto branco leitoso surgiram finas veias azuis que lhe cortavam a pele em todas as direções, linhas sinuosas como rios num mapa colorido. Vicentina era capaz de ficar horas nas festas, sentada num canto, toda paramentada e coruscante de bagues, boucles, colliers e pendentifs, imóvel, sem dizer uma palavra, como se fosse uma boneca gigante. Quando falava, era de maneira sonolenta e 427 desconexa. A presença da mãe era, para Laurinda, um martírio que suportava com resignação. Os anos trinta, com a revolução constitucionalista em São Paulo, a ascensão dos gaúchos de Vargas e o Estado Novo, não foram propícios para os negócios dos Prado. Ao vício do jogo, Priscilio acrescentou o da cocaína. Laurinda, avó duas vezes, não mais era cortejada pelos frequentadores de sua casa. Tinha saudades das paixões fulminantes que sentira e vivera e relia com prazer as cartas dos seus antigos amantes, guardadas cuidadosamente num cofre que mantinha sempre fechado a chave, em seu quarto. No dia 14 de julho de 1940 aconteceu a segunda tragédia na família. Priscilio, após passar a noite jogando pôquer, chegou em casa de madrugada, deitou-se na cama ao lado de Laurinda, que dormia, e deu um tiro na cabeça. Naquele dia eles faziam trinta e um anos de casados. Também naquele dia Paris rendia-se o Exército alemão. As figuras da sociedade brasileira, abaladas com a queda da cidade que representava os ideais de cultura e civilização e para onde, sazonalmente, iam em busca de alimento para o espírito e para o corpo, não tiveram ânimo nem mesmo para comentar sobre o assunto tão sedutor, como a morte escandalosa de um dos seus membros notórios. José Priscilio Prado estava arruinado e deixou muitas dívidas pessoais que um dos tios pagou imediatamente. Mas os tios de Priscilio ignoraram os apelos da mulher perdulária do sobrinho gastador, e Laurinda teve que vender sua mansão na avenida Paulista e mudar-se para o Rio, para a casa da rua São Clemente. Seu filho Fernando, que se casara em 1931 com Luíza Montilio, filha de um conhecido médico homeopata, mudou-se também para o Rio de Janeiro, onde arranjara emprego modesto na Prefeitura. Maria Augusta Lima Prado, que estava casada com um francês, Bernard Mitry, que se dizia conde, foi abandonada pelo marido quando se patenteou a bancarrota da família. Bernard voltou para a França, sem avisar a mulher. Assim, na casa da rua São Clemente ficaram Laurinda e Maria Augusta com o filho, Roberto. Também ficou morando na casa a filha mais moça de Laurinda, que, como se dizia eufemisticamente, “tinha problemas”. Sofria de acessos de agressividade, atacando as pessoas à sua volta. Era também comum ela uivar como se fosse um lobo. Vivia encarcerada no porão do palacete da avenida Paulista e acompanhou a mãe na mudança para a casa da rua São Clemente, onde também havia um porão, tão discreto e isolado quanto o outro. Todos esses fatos e ocorrências foram ampla e minuciosamente desenvolvidos no livro (quinhentas páginas) Retrato de família, de Basílio Peralta, publicado em 1949. O livro foi um fracasso de vendagem e de crítica, não tendo tido sequer uma breve recensão crítica na imprensa. A família Lima Prado deixara de ser importante. A nova burguesia industrial criara outros clãs mais poderosos e atraentes. Como houvesse, na época, uma crise de papel, os milhares de exemplares encalhados de Retratos de família foram vendidos a 428 peso para serem reprocessados. Basílio Peralta morreu de câncer em 1951. O livro poderia ser considerado uma raridade, se alguém se interessasse por ele. O que estava catalogado na Biblioteca Nacional havia desaparecido, não se sabe quando nem como. Um exemplar, pelo menos, ainda existia, em poder de Thales Lima Prado, neto de Priscilio e d. Laurinda Lima Prado, primo irmão de Roberto Mitry. O livro e os Cadernos chegaram às minhas mãos na mesma ocasião. Sem eles eu não conseguiria saber tanto sobre o banqueiro – suas relações amorosas, suas transações financeiras –, incluindo aí, é claro, o Escritório Central. Usei suas próprias palavras, muitas vezes, retiradas diretamente dos Cadernos, procurando preservar os efeitos literários que ele buscava, afinal Lima Prado se julgava um homem de letras. A esquisita conversa dele com Zakkai, onde Nariz de Ferro menciona o episódio da vagina dentada, e o primeiro encontro de Lima Prado com Mônica, em que se revela, para ele, o fundamento escatófilo do seu desejo, foram mantidos exatamente como se encontram nos Cadernos. Comentários ao excerto da 2ª parte do capítulo 1 de A grande arte O excerto transcrito fornece alguns elementos caraterizadores de tendências narrativas do romance. Como se percebe, o texto não prima pelo trabalho discursivo nem estrutural da narrativa, como se tem caraterizado em geral a produção a partir da segunda metade dos anos quarenta e cinco (séc. 20). Dizer isso não significa afirmar que o texto seja repetitivo nesses aspetos nem que não demonstre passagens inventivas na produção do discurso nem que se mantenha apenas em formas já exaustivamente exploradas. Pontos positivos referenciais do romance parecem centrar-se no engendramento do enredo, no emprego da ironia e no posicionamento ideológico, que tende a desmascarar as diferenças sociais entre os que se encontram no alto e seus antípodas. O enredo desenvolve personagens que se apresentam e são apresentados em sequências durante as quais os polos do alto e do submundo se encontram e se conectam. O eixo narrativo segue igualmente esse procedimento. Vale dizer: há na alta sociedade das grandes cidades quem mantenha relações de negócios que se sustentam nos submundos da prostituição, do tráfico, do assassinato a mando. A representatividade social que as fortunas econômicas propiciam, portanto, é frágil, escusa e obscura. A ironia do texto se elabora a partir do confronto entre a forma como o personagem se apresenta e ou é apresentado e como de fato ele se constitui. Em resumo, o leitor conclui que o personagem é de fato o contrário ou bem diferente do que aparenta ou de como foi inicialmente anunciado. Assim também ocorre no eixo narrativo, com relação ao epílogo. Ao expor a técnica da construção dos personagens e do enredo, fica explícito também o referencial ideológico do romance: não há distinções claras entre classes ou condições sociais, com exceção das aparências. O ser humano é indistinto, em alguns aspetos, de qualquer animal; olhado de bem perto, o ser humano não demonstra muitas vezes o que se conhece com o nome de 429 dignidade, ou a dignidade pode ser apenas aparência e forma falsa de distinção. Surgem desse modo elementos ideológico-estilísticos ligados ao Naturalismo. A tendência narrativa do autor tem sido a de aprofundar o olhar e a discussão a respeito de episódios ou ideias impactantes. Em A grande arte, p. ex., brutalidade e insensibilidade com relação à existência do outro, em alguns episódios, provocam sensação de um mundo de isolamentos (por nem mesmo oferecerem condição para falar em individualismo). Em relação ao título, não apenas é possível ler o que o texto especifica, habilidades no manejo de facas, como igualmente a condição globalizada da vida, em que tudo tem a ver com tudo. Tudo que se vê se funda no invisível, ou tudo tem algo de indizível ou inconfessável. Noutras palavras: tudo que brota acima do solo planta raízes bem abaixo. Os mistérios que surgem como modismos ou formas de dominação podem ser desvendados da maneira mais corriqueira na vida diuturna. O êxito editorial da obra de Rubem Fonseca parece ter, de maneira análoga, relações com a forma tradicional do desenvolvimento discursivo e com as formas já antes empregadas da estruturação narrativa. Com boa parte da construção narrativa conhecida, o leitor se concentra no desenvolvimento. Os desencadeamentos labirínticos tramam a tensão narrativa, o suspense, como se diz no cinema, que para alguns leitores se mostra prioritário. O mundo, já parcial ou quase integralmente explorado, reserva poucas surpresas, mas facilita o domínio do leitor sobre o enredo. PATRÍCIA Doreen BINS Além de romancista, Patrícia Bins foi artista plástica, tradutora e jornalista. Nasceu no Rio de Janeiro (1928), de mãe inglesa e pai húngaro, e estudou nos Estados Unidos. Faleceu em Porto Alegre, em janeiro de 2008. Patrícia Bins é autora de obras que compõem, sob vários aspetos, a condição pós-moderna. Os personagens se marcam por problemas identitários, por dúvidas severas em questão de valores, por carência de espetativas, por isolamento mesmo dentro dos pequenos grupos sociais, como a família, p. ex. Pele nua do espelho (1989) e Caçador de memórias (1995), entre outros textos, são bons exemplos disso. Integram a produção literária da autora, além desses, os romances Theodora (1991), Sarah e os anjos (1993) e outros. Pele nua do espelho (excerto do capítulo 1) Parasempreparanuncaparasempresempresempre: Foi assim que escrevi a frase final do livro que não terminei. Juro, no entanto, que agora será a memória, a desmemória do amor, de um amor paranunca, parasempre: a memória não tem fim, por isso nada acaba mesmo 430 que se morra, fica nos escaninhos dos átomos, das moléculas e de vez em quando surge e paira, nua, exposta, embora difícil de cativar. Este, Emily, parece pensamento raso, mas foi o que me ocorreu hoje, dia vinte e dois talvez, pela manhã, ao retornar da caixa dos correios no portão da casa, longe aliás, como sabes, da morada em si, preciso percorrer o bosque, os túneis verdes, a alameda de plátanos, os maricás selvagens, os pés de jambo vindos do norte, os hibiscos encostados ao muro de ambos os lados, a ilha de palmeiras e coqueiros, vegetação tropical e subtropical que ainda me faz sentir resquícios de vida, embora desolada ante tantos envelopes endereçados à senhora Antônia Roma. Convites, a maioria para vernissages, e pilhas de cartões de boas-festas em julho, por quê? Tua carta continua ausente. Também não respondi às inúmeras que me mandaste dos tantos lugares visitados nos últimos anos. Estavas inteira em cada uma delas, a pureza instalada na caligrafia meio ingênua de colegial. E perguntas, perguntas, querias saber tudo: a antiga morada e a cidade, o rio tão poluído, o movimento artístico e como andavam os pintores e poetas, os únicos com quem te afinavas e que fim (ou princípio?) levaram Angel e Sibylle por exemplo e rugas quem sabe e os corpos mais gordos pela passagem dos cinquenta, e nossos cães, os gatos herdados, o herbário, as flores e os cactos, árvores também (conhecias cada uma delas), objetos, as coleções, caixinhas de ouro, prata, vermeil, madrepérola, esmalte, ágata, bronze, o ex-voto pintado sobre madeira, telas, santos esvoaçantes, anjos barrocos, o teu retrato que afinal ficou aqui e as fotos que nunca tiramos; restaram alguns flashes, posso reconstituí-los se me concentrar, olhos azuis. Às vezes usava pestanas postiças pintadas com rímel negro para parecerem ainda maiores e o rosto pálido, branquíssimo, a boca sem cor, ou um batom vermelho, maçãs salientes, cabelos soltos, loiros, encaracolados, iam até a cintura mas tinhas certo pudor, eram compostos em coque quando ias às compras no bairro, amarravas sobre a cabeça lenços transparentes de seda, moviam-se ao vento enquanto guiavas a contragosto o conversível vermelho, a tolda arriada, óculos escuros em teus olhos de espanto, esplendor, os homens te desejando mesmo assim; braços roliços, corpo envolto em brisa e brasa, vestidos estranhos mal te delineavam as formas exceto os seios firmes sob algodões marroquinos trazidos por Juan a cada viagem. Flashes, memórias de tua figura, dos gestos, gostos, restos da voz e da gargalhada quente ou as vozes que te dominavam quando em transes e dizias ouvir outras vozes, então era preciso o uísque. Para abafar aquelas pessoas que te surgiam de longe e de mais perto e que povoavam também os siameses assustados? Me pedias copo e muito gelo e a garrafa de Vat 69 a teu lado a tarde toda e bebericavas, bebias até que. Geralmente aos domingos, Felicity em casa com as empregadas, teu marido velejava da manhã quase à noite, vinha juntar os ossos à tardinha quando muda o seguias, encolhida, pequena, cambaleante. E nem dizias adeus, nem ele, tão contidos em sua própria ira. Precisavas que isso acontecesse periodicamente, acho que era vingança pelo abandono, a ciranda do medo de 431 perder, entendes? Cada um de nós sofria ao sermos bipartidos, multipartidos, esfacelados em nossa individualidade plural. Interdependência, era isso. Estava inserto em nossas vidas. E não sabíamos. Comentários ao excerto do capítulo 1 (Vento) de Pele nua do espelho O romance Pele nua do espelho tem peculiaridades que devem ser observadas para aprofundamento de análise. O romance é constituído de cinco capítulos: Vento, Catavento, Reconto, Reflexo, Carrossel. A sequência, porém, não gera um crescendo de informações ao leitor, como é comum nas formas tradicionais de narrar. A narrativa se aprofunda, mas não acrescenta mais do que é possível a uma pessoa ver dentro de seu contexto existencial, no mundo concreto-sensorial. A perspectiva do narrador está dentro do mundo ficcional que passa, gira, se repete, acrescenta, retorna, como o vento, os cataventos, os recontos, a imagem e a luz refletidas, os carrosséis. O que é narrado pode estar ocorrendo apenas na suposição ou na imaginação do personagem focado no momento. O mundo ficcional, como metáfora e como metonímia do mundo concreto-sensorial, é sobretudo onírico, desejado, percebido, mas não necessariamente concretizado pelos personagens. Em razão disso, os personagens atuam como pluralidades individuais, os denominados duplos. Um episódio narrado, p. ex., em que determinado personagem age, não afirma que tal coisa tenha de fato ocorrido (no mundo representado), mas pode estar sendo imaginação do personagem. A diferença, relativamente às narrativas em geral, é que o texto não esclarece nem às vezes sugere isso: cabe ao leitor detectá-lo. As simbologias são também abundantes, como, p. ex., os títulos dos capítulos. A trama de símbolos, principalmente a partir de descrições de objetos, é expressiva e contribui para a geração do ambiente onírico ou intelectual do romance. O título do romance alude à imagem do espelho do outro em que cada um se enxerga, se amplia, se diminui, se compara, se distingue, se identifica. Essa parece ser a estrutura dos duplos, abundantes no romance. O título pode igualmente ser entendido como a resposta do espelho, reconhecidamente eloquente para Narciso e para a Madrasta de A gata borralheira. O parágrafo-frase que abre o excerto (e o romance) se prolonga no discurso total da narrativa de várias outras formas. O romance se fecha com “Quero ser real”, i. é, com a expressão do desejo de não ser apenas reflexo, prolongamento, distinção, parte, elemento comparativo etc, mas unidade individual. Como isso seria impossível, a essa busca se resume a utopia dos tempos pós-modernos, segundo se depreende da leitura. Luiz CARLOS Verzoni NEJAR Carlos Nejar é advogado, professor e poeta. Nasceu em Porto Alegre (RS) em 1939. Estreou na literatura em 1960, com Sélesis, antes de concluir o curso de Direito, em 1962. 432 Eis alguns dos títulos que publicou: Sélesis (1960); Livro do tempo (1965); O campeador e o vento (1966); Danações (1969); Canga (1971); Casa dos arreios (1973); O poço do calabouço (1974); Árvore do mundo (1977); O chapéu das estações (1978); Os viventes (1979); Um país o coração (1980); Fausto, as Parcas, Joana das Vozes, Miguel Pampa e Ulisses, poemas dramáticos (1983); A idade da aurora (1990); Simón Vento Bolívar (1993). Obra infanto-juvenil: Menino-rio (1985); Era um vento muito branco (1987); A formiga metafísica (1988). Canga Jesualdo Monte, não és homem. És um burro carregado de ossos; as palavras, insetos, volteiam-te a garupa; até a carne é hostil sob a carcaça e o presságio dos seres te enternece. Não te movem as fendas, nem as urzes, nem o jogo de vozes, o repouso das tardes e as vigas que desceram ao rio no teu lombo. O mundo te apertou com sua cincha e tudo em ti transpõe o desespero, desapegando patas e raízes. É esta a condição de não ser homem: dormir, placidamente, sem remorsos, no curral dos mortos. É esta a condição de não ser homem: ruminar o assombro, junto ao feno, receber o milagre sem transtorno, seguindo sempre, onde manda o dono. É esta a condição de não ser homem: lanhado o casco por chicote lesto, zurrar, apenas, mastigando o freio. É esta a condição de não ser homem. 433 Comentários ao poema Canga do livro Canga No livro Canga nasce Jesualdo Monte, que tem merecido considerações críticas referentes à sua representatividade. No poema Canga, define-se a contracondição humana ou “a condição de não ser homem”. Considerada a época histórica brasileira, de repressão, censura, confusão social e do milagre brasileiro, “receber o milagre sem transtorno / seguindo sempre, onde manda o dono” é bastante eloquente. A partir disso, “zurrar, apenas, mastigando o freio” é consequente. No poema acima, o vocabulário se reforça pela escolha adequada de vogais abertas, a que a pronúncia clara propicia sonoridade e aumenta a impressão poética do texto. Os textos do autor, em geral, são densos, o que evita as leituras fluviantes e flutuais, como ensinou Cabral de Melo Neto em Catar feijão. AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA É mineiro nascido em 1937. Pagou seus estudos de primário e ginásio carregando marmitas, trouxas de roupas para lavadeiras, vendendo papel e balas no cinema. De bicicleta, vendia seus produtos de armazém em armazém; enquanto esperava ser atendido, lia os livros que conseguia em bibliotecas. Cursou Letras em Belo Horizonte e trabalhou em bancos e em jornais para custear os estudos universitários. Em 1962 lançou seu primeiro livro, o ensaio O desemprego da poesia. É autor de poesia, prosa e ensaio. Algumas de suas obras: Que país é este? (1980); O lado esquerdo do meu peito (1991); Epitáfio para o século XX (1997) – poemas; Análise estrutural de romances brasileiros (1989), Por um novo conceito de literatura brasileira (1977), Música popular e moderna poesia brasileira (1997) – ensaios; O livro do seminário (1982), Crônicas mineiras (1984), O livro ao vivo (1995) – prosa. Certeza Quero a certeza, a certeza da fera que dispara, abate a presa e banqueteia sobre a relva ou mesa. A certeza firme, embora peregrina, dos que cegamente rezam montanha acima. 434 A certeza do carrasco na guilhotina. A certeza desabalada da manada estourando na campina, a certeza do mau poeta com suas rimas. A certeza além da lógica formal. A certeza industrial que liga e desliga os conceitos de bem e mal. Ao contrário – vacilante e intranquilo – sou o caçador cujo gatilho espanta a caça antes do tiro, dançarino de pés mancos que desaba aos trancos sobre o palco, ladrão que devolve em dobro o roubo – antes do assalto. A certeza, sei, é desumana, é carapaça, couraça, verniz, mentira, máscara e incapacidade – de viver o drama. Mas, às vezes, gostaria de ter a estúpida e feliz certeza do ditador no trono. A certeza, por certo, causa dano mas é aspiração confessa de quem, nietzschiano, se cansa de ser humano, – demasiadamente humano. Que país é este (parte 2) Há 500 anos caçamos índios e operários, há 500 anos queimamos árvores e hereges, 435 há 500 anos estupramos livros e mulheres, há 500 anos sugamos negras e aluguéis. Há 500 anos dizemos: que o futuro a Deus pertence, que Deus nasceu na Bahia, que São Jorge é que é guerreiro, que do amanhã ninguém sabe, que conosco ninguém pode, que quem não pode sacode. Há 500 anos somos pretos de alma branca, não somos nada violentos, quem espera sempre alcança e quem não chora não mama ou quem tem padrinho vivo não morre nunca pagão. Há 500 anos propalamos: este é o país do futuro, antes tarde do que nunca, mais vale quem Deus ajuda e a Europa ainda se curva. Há 500 anos somos raposas verdes colhendo uvas com olhos, semeamos promessa e vento com tempestades na boca, sonhamos a paz da Suécia com suíças militares, vendemos siris na estrada e papagaios em Haia, senzalamos casas-grandes e sobradamos mocambos, bebemos cachaça e brahma joaquim silvério e derrama, a polícia nos dispersa e o futebol nos conclama, cantamos salve-rainhas e salve-se quem puder, pois Jesus Cristo nos mata num carnaval de mulatas. Este é um país de síndicos em geral, este é um país de cínicos em geral, este é um país de civis e generais. 436 Este é o país do descontínuo onde nada congemina, e somos índios perdidos na eletrônica oficina. Nada nada congemina: a mão leve do político com nossa dura rotina, o salário que nos come e nossa sede canina, a esperança que emparedam e a nossa fé em ruína, nada nada congemina: a placidez desses santos e nossa dor peregrina, e nesse mundo às avessas – a cor da noite é obsclara e a claridez vespertina. (Epitáfio do século XX e outros poemas) Comentários ao poema Certeza Certeza é um poema que diz com propriedade alguns aspetos do que, atualmente, se tem considerado o que literatura seja. Trata-se de uma reflexão sobre o mundo, sobre as coisas, fatos e fenômenos, construída com caraterísticas especiais, peculiares ao tipo de texto que se denomina literário. Como tudo é e não é, porque todas as coisas existem em condição transitória, i. é, apenas estão sendo em suas circunstâncias, entre as quais o tempo é fator marcante. Por isso, o pedido pela certeza, que de fato só podem ter as pessoas limitadas a mundos parciais e normalmente arbitrários. A certeza recorta o mundo e desconsidera o diálogo, porque se origina de voz monológica. Geralmente atende a interesses muito claros e tem objetivos curtos. Por todas essas razões, conforme o poema, a certeza não é apanágio de quem leu Nietzsche. A primeira estrofe carrega o núcleo ideológico do poema, que vai sendo desenvolvido ao longo do texto. Segundo o que aí se lê, aparecem no mesmo nível qualquer fera, seja animal ou homem. Como tudo é e não é ao mesmo tempo, o homem deve ter em si as duas dimensões. Por isso “abate a presa / e banqueteia / sobre a relva ou mesa”. Ao perceber que a prática é exitosa no mundo concreto-sensorial, o poema suspira por não conseguir deixar de ser humano, ou, como se lê no último verso, “demasiadamente humano”. A (falsa) aspiração é já, por si só, contraditória, uma vez que o grande horizonte que o poema descortina é a humanidade de toda a humanidade, ou a humanização de cada um. Por isso se mostra igualmente forte semanticamente o adjunto “cegamente” (segunda estrofe), porque essa circunstância significa, entre outras 437 coisas, não enxergar os outros. Esse fenômeno, aliás, é bem comum no mundo contemporâneo, em que convivem e se dilaceram exacerbados e contraditórios extremismos. Comentários ao poema Que país é este? (parte 2) Em Que país é este?, semelhantemente ao se pôde ver em Certeza, o texto elabora reflexão à semelhança de uma crônica, em que se traçassem perfis temporais da história do Brasil. Em Que país é este?¸ diferentemente do poema anteriormente comentado, trata-se de examinar as condições de vida que conseguimos construir, com olhar depreciativo ou talvez pessimista, como, aliás, é caraterístico da fala cotidiana brasileira sobre o país. Elabora, no entanto, quadro representativo da nossa condição social e política. Com respeito ao estilo, o poema se funda em ritmo bem marcado, fundado em versos heptassílabos, com dois ictos por verso. Vale lembrar: o metro hepta foi fundamental na construção da literatura brasileira e continua sendo, nas formas de expressão oral em versos. O Romantismo marcou as sete sílabas poéticas para sempre, na produção literária em versos do Brasil, porque foram os poetas românticos que marcaram a nacionalidade literária do pais. Isso ocorreu de tal modo, que é corriqueiro poder-se identificar, p. ex., a Canção do exílio de Gonçalves Dias e Meus oito anos de Casimiro de Abreu, com os fundamentos sentimentais da nacionalidade e da vida familiar, respetivamente. CAVALCANTI PROENÇA Manuel Cavalcanti Proença se tornou crítico literário renomado. Tratou de obras como as de Mário de Andrade, Guimarães Rosa e Augusto dos Anjos. Priorizou o estudo sobre a força das características fundamentais da literatura popular, dividida por ele em poesia narrativa, poesia didática e poemas de forma convencional. Procurou sempre valorizar manifestações da expressão marcadas por singularidades nacionais. Obras: Ribeira do São Francisco (1944); Roteiro de Macunaíma (1950); Uniforme de gala (1953); Ritmo e poesia (1955); Nove anos de praça (1956); Trilhas no grande sertão (1958); Augusto dos Anjos e outros ensaios (1958); Literatura popular em verso (1964) José de Alencar na literatura brasileira (1966) – ensaios; Manuscrito holandês (1960) – romance. Manuscrito holandês (capítulo Variantes) Algumas sagas, que registrei como capítulos, apresentam leves variantes, sem que, entretanto, os textos mereçam cotejo entre si. Uma, entretanto, por 438 mais acentuada diferença nas versões repetidas por Jurueba, me pareceu devesse anotar para o devido confronto (H. R.). XI As quatro estrelas do pé de nhandu já estavam baixando no topo dum ingazeiro, quando o céu começou clareando e não demorou muito que a lua despontasse espelhando o rio. Então, a sombra do arvoredo se espichou por cima d’água, como luto do Irovi pela morte das crianças. No fim do estirão o barranco se abaixava, e tudo era só vargem de capim– mimoso, com a baía do Curiangu toda empestanada de pensões de pripiri. Mas o ouvido de Arandu presenciou um burburinho esquisito, como de pena se roçando, e embicou depressa a proa da igarité para o escuro do ramanso, nessa hora um veludo preto. Foi tomando chegada de manso, muito de pé atrás, que quem vai entrar no desconhecido não deve ir de bocó desatado. O rufe-rufe aumentava se alastrando, e Mitavaí meio que se amedrontou, mas, ainda assim, deixou o barco descer de bubuia, só aprumando o bico da proa com as pazadas do jacumã. No primeiro rebaixo do barranco divulgou a várzea e estremeceu de espanto. Era uma brancura espumosa de leite fervendo. Se agarrando num galho de sarã, entreparou a igarité e ficou olhando sem voz. Todas as garças da redondeza tinham feito ajuri na várzea-grande e não tinha lugar para mais nenhuma. As de trás queriam se chegar na beira da baía, mas não se encontrava caminho, tudo trancado de pena branca. E levantavam o pescoço abanando as asas sem voar e o rufe-rufe de pluma contra pluma ficava mais forte. Arandu atou a canoa no sarã, rastejou barranco acima até o oco de um mulungu e ficou bombeando o mutirão das garças. Era dia de banho de Tetaci, garça-guaçu, afilhada de Jaci, garça descendo na hora em que a lua fronteasse o buriti solteiro da várzea e pudesse ver sua cara refletida na água parada da baía. Será que ele tinha sido fadado para assistir ao que raros assistiram? Desgraça pouca é bobagem. O que tem de ser tem muita força e devia ser para já, pois a lua vinha apertando passo na subida e deixara a grimpa da restinga de mato, muito abaixo. Entreparou meio indeciso e faiscou mais prata, enquanto o buriti mexia as folhas, inquieto, sem vento nenhum brisando. Nem o rufe-rufe se ouvia, as garças paradas feito se fossem capuchos de algodão. E do alto veio descendo e lumiando uma garça do maior tamanho e fez sereno pouco na corcova da única pedra que sobressaía na vargem. 439 No mesmo instante, contam, a pele da garça escorregou de ombros abaixo e ficou uma cunhã muito linda que começou nadando nas águas da baía. Então, as garças foram dormir sem barulho, e a várzea ficou um ermo, só o barulhinho dos braços da cunhã chapeando prata. Depois, o corvo alvo saiu das águas e se deitou na sombra do buriti, esperando que as lágrimas da noite ficassem maduras para orvalhar o campo. Arandu sentiu alegre o seu coração e se chegou para as penas, ali mesmo embaixo da pedra. Foi ver logo a moça. O vento da serra espalhava o cheiro de cunhã pela várzea, e Mitavaí chegou muito espantado perto dela. O corpo claro, no verde do mimoso, era ainda mais branco, e ele só fez levantar aquele corpo e pôr nos ombros, voltando para a igarité, sentindo o macio morno da pele de Tetaci. Quando ganhou a igarité, molhou o rosto da moça que já acordou, perguntando: – Quem me molhou com água que não é da baía do Curiangu? – Sou eu, Mitavaí, seu criado, que quero você pra mim. – Para onde me leva? – Para minha mulher, que nunca tive uma tão alva. O rosto de Tetaci ficou triste e os seus olhos de neblina olharam para cima e falou muito triste muito: – Seuci, manda alegria da tua boca para alegrar a minha. Lua, goteja por cima de mim um pouco de sua puçanga para eu ficar mulher. Então, ela se encolheu na popa tapando a nudez; Mitavaí seguiu remando, e o vento levava o seu canto longe longe, e os passarinhos acordavam e cantavam também, e um farrancho de martim-pescador biguá e arapapá vinha apostando mergulho no rasto da igarité. E era cada mergulho que contando nem se acredita. Quando já estava longe do lugar em que a moça falou com Seuci, da lua caíram ali mesmo as gotas de puçanga que afundaram na água, e os peixes ficaram prateados até hoje. Mas Tetaci nunca mais que podia ter filho de Mitavaí. Abicaram a igarité numa ilha, e a moça pediu que esperasse a lua baixar no céu para ser sua mulher. Então, na meia sombra, ela foi a uma árvore de breu branco e tirou um pouco para fazer uma tunaí. Depois que se deitaram, Mitavaí quis que a moça contasse o seu princípio, e ela falou: – Sou Tetaci, que me banho, uma vez em cada cinco anos, na baía do Curiangu. Moro no alto e desço sempre na esperança de esperar que as lágrimas da noite amadureçam, para que toquem minha pele e a lua venha abrir o meu 440 corpo. Sou mulher no peito e no rosto, porém não tenho caminho da lua e fiz uma tunaí para mim. E fechou os olhos de neblina. Quando acordaram, o sol estava de fora, e Mitavaí avisou a Tetaci que a sua tunaí não estava mais. – Com certeza foi o calor do teu corpo que a derreteu. Mas repara agora na minha barriga e veja como está. Foi o calor do teu corpo que me fez moçar. Agora morrerei para viverem os nossos filhos. Arandu não dizia nada, só olhando o corpo branco de Tetaci, com os quadris de curva de rio. Então ela contou: – Se você não tivesse remando a igarité, quando falei com a lua, ela teria mandado puçanga e eu seria mulher. – Não brinque com essas coisas. – Você vai me ver na outra lua cheia. E quando o rosto da lua foi crescendo, os olhos de neblina de Tetaci foram ficando magoados pela separação. Sentaram-se na beira do rio, e Mitavaí, com medo, olhava Tetaci, olhava. – A lindeza de seu amor, Tetaci, me ajudará a enganar meu coração. Então a lua foi chegando no alto, e a moça o mandou para o outro lado do rio: – Volte de manhã. Não fique triste não, que eu torno quando chegar o seu dia. Guarde um canto no seu coração para mim. Contam que o corpo de Tetaci se rompeu, porque não podia ter filhos, e de dentro saíram borboletas brancas, um bando de garças, peixes prateados. Voando, nadando. De manhã um tié acordou Mitavaí, que atravessou o rio num vau. No barranco, falam, encontrou a figura de Tetaci olhando para o rio. Como tudo que ele queria bem já era pedra, falou sozinho: “Só falta desaparecer eu também deste mundo.” Voltou à pedra da várzea, apanhou as penas e se vestiu com elas. De noite, voou para a cidade. Muitos andam dizendo que virou coruja. Apêndice Se o leitor pertence àquele grupo de pessoas que, para tudo, exigem uma explicação, poderá informar-se, neste apêndice, das peripécias havidas com o manuscrito de que se originou este livro. M. C. P. 441 Carta de Bernardo de Claraval (Publicada no Jornal do Brasil, em meados de 1957, na seção “Quem será o Editor?”) Senhor Redator: Há algum tempo venho desejando escrever, mas uma dúvida, misturada de timidez, me tem impedido de fazê-lo. Passarei a expor metodicamente, quanto possível, o caso: 1) O livro para o qual busco editor não é propriamente de minha autoria, mas é como se fosse. Explico: Trata-se de um manuscrito latino que deu à praia do litoral paulista, em circunstâncias algo romanescas, dentro de uma botija de barro, provavelmente de genebra. Um tio meu obteve de pescadores da região o documento e, também, apensa ao mesmo tempo, uma carta escrita por Hans Richter, cidadão holandês de Utrecht, segundo afirma. Na carta, o autor nos dá conta de como e por que redigiu o manuscrito, oferecendo-o àquele a cujas mãos venha o oceano, encarnando o destino, confiá-lo. 2) Como aquele, no caso, sou eu, creio haver explicado a declaração de que me considero autor, além do mais pelo trabalho não pequeno da tradução. 3) Tentarei, agora, resumir a natureza e o assunto do livro, objeto de minha tradução. Começarei pelo título que escolhi, de minha lavra. Uma vez que esqueceu ao autor apô-lo ao manuscrito latino, denominei-o Manuscrito holandês. Explico: como disse, o idioma em que manuscreveu o cidadão H. Richter foi o Latim, mas, na carta apensa, em várias oportunidades, cita ele a sua naturalidade, e o adjetivo batavus aparece com tão insistente frequência, que me senti, às vezes, no dever de suprimi-lo. Em determinada passagem, que a seguir transcrevo, achei inspiração para o título. Ei-la: “Lassi intineribus insulae miseremur codicis batavi, logoenaeque fragilis quam comittimus pelago truci...” Ora, uma tradução imediata e sem meditação nos daria, na ordem: “Cansados dos caminhos da ilha (onde o autor escreveu), nos apiedamos do manuscrito holandês e da frágil garrafa que confiamos ao oceano cruel.” Note-se que esta foi a tradução, como dissemos, sem meditação. A meditação nos dirá que este batavi bem será um nominativo plural, epíteto em aposição ao nos, oculto, como consuetudinário em Latim. Mas esta coincidência de flexões casuais que, à primeira vista, nos proporcionou o título, embora não escoimada de incorreção gramatical, decidiu-nos, afinal, pois nela vimos oportunidade para homenagear o erudito H. Richter. 442 Não usamos o termo erudito para o autor do manuscrito apenas levados pelo ritmo fraseológico, mas porque notamos no trecho citado lembranças da ode III, de Horácio, quando diz: Illi robur et aes triplex Circa pectus erat, qui fragilem truci Commsit pelago ratem. 4) Explicado o título, passemos à natureza e assunto do códice. Trata ele das sagas de um herói índio – Mitavaí Arandu (em Tupi, aproximadamente, Menino-Feio, Sábio). 5) As sagas são narradas por um papagaio jurueba que o Sr. H. Richter teve consigo anos e anos, em uma ilha deserta. 6) Na sequência das sagas o herói apresenta, de início, vivendo na região sertaneja, e, posteriormente, nas cidades. Há intromissão do sobrenatural e, também, casos de sincretismo e aculturação, reveladores de contatos mais ou menos prolongados de culturas de níveis diversos. Ao tradutor que, já agora, se sente quase autor, pareceu que a matéria não era destituída de interesse e pitoresco. Aqui remeto dois excertos do trabalho, os quais escolhi para representação das duas fases da vida do herói. A primeira, sertanista, e a segunda, urbana. O prezado redator poderá, das linhas que aqui ficam, extrair o que achar conveniente, para recomendar o original ao possível editor, se lhe parecer que nele haja merecimento. Caso contrário, continuarei seu mesmo admirador, pois, quando lhe solicitei apoio para obtenção de editor, admiti previamente a serenidade e competência do seu discernimento. Creia na admiração do patrício que se subscreve Bernardo de Claraval Comentários ao capítulo Variantes de Manuscrito holandês Manuscrito holandês é uma das poucas obras que pode ser incluída, como Memórias de um sargento de milícias, Macunaíma e O Tatu, entre a produção da literatura de dissidência, i. é, a literatura fora-de-escola. A literatura de dissidência supera a concepção escolar, porque se mostra rebelde ao enquadramento em caraterizações epocais rígidas. A literatura de dissidência dialoga de modo crítico com a literatura canônica escolar: nisso está seu ponto central de contribuição, porque, por sua própria caraterística de dissidência, não tem pretensão de colocar-se no centro. Manuscrito holandês, examinado pelo ótica do discurso e pela da maneira de organizar e encadear os episódios da narrativa, se aproxima das experiências de Mário de Andrade em Macunaíma. Como paródia – a literatura de dissidência se posiciona como paródia da produção canônica em cada época – o romance se relaciona com Grande sertão: veredas, saído quatro anos antes. O romance 443 de Guimarães Rosa teve grande êxito de crítica e editorial. O diálogo que Manuscrito holandês estabelece com ele se carateriza como paródico. O romance de Proença dialoga também com Macunaíma, no discurso e na atenção às culturas do interior brasileiro. O próprio fato de a fala que originou a narrativa ter sido apanhada a partir de relato de um papagaio aproxima ambos textos. O herói de constituição mágica também os relaciona por aproximação. A ironia e às vezes a sátira com relação a línguas e formas discursivas estranhas à nossa cultura, mas que são, apesar disso, empregados, ou por academicismo ou por imitação vazia, são recursos empregados nos dois textos, com resultados semelhantes. Dialoga também com outros romances, mesmo externos à literatura brasileira, como Dom Quixote, por exemplo. Há episódios que lembram vivamente trechos do romance de Cervantes. Não deixa de se referir, ainda, desde o título, ao passado batavo da história colonial brasileira. São, também esses, recursos que desprendem o texto de filiações rígida dentro da história da literatura brasileira. HERACLIDES SANTA HELENA Nasceu (1919) e faleceu (1988) em Porto Alegre. A profissão que escolheu, a medicina veterinária, levou-o ao interior do Estado, a Quaraí. Nesse município, fez-se pecuarista e político, tendo sido prefeito da cidade. Foi exímio contista. Onze braças de campo e algumas sobras (1982) é a obra literária que o inclui aqui. Foi estudioso da fauna e da flora do Rio Grande do Sul, com obras publicadas a respeito. Onze braças de campo e algumas sobras (conto Onze braças de campo e algumas sobras) Avô barão, pai patrão, neto peão. (Dito popular colhido na zona rural de Caçapava do Sul.) – Desconfio que a velha desistiu de viver por muito já ter vivido. Dum dia pro outro empeçou a mermar... mermar, foi mermando e se finando e no fim era só pele embolsando os ossos. Morreu amontoadinha, magrinha, puro olho e cotovelo. Ali ficou, naquele catre, mortinha da silva, sem queixa nem ai. Me lembro que foi depois duns dias de muito calor e vento norte. Pela meiatarde desabou uma manga-de-pedra que esfiapou o cupiar de santa-fé deste meu rancho. Noite alta, desandou um frio muito frio e pela madrugada a velha pediu uma vela, e ela mesma se alumiou esperando a morte. É claro que a gente sofre quando um cristão se vai, mas a pobre da madrinha estava com noventa e algo mais. E isso puxando pra menos nas contas. A finada irmã dela, de nome Matilde, morreu de uma doença ruim, com 444 setenta nas costas, e era das mais novas da ninhada. E lá se vão como vinte anos se não me falha a memória. O velho marido da minha madrinha era do tempo em que o Cerro do Jarau era cupim, e quando se finou, deixando a madrinha viúva e só neste mundo, ela já era mulher de queixo liso e juntas grossas. Um que outro dente. E isso que não tiveram filhos e eu sempre desconfiei que a madrinha Clotilde era machorra, porque o velho Lourenço, de nome, meu padrinho, deixou, diz-que, um filho gaúcho lá pela Serra, numas andanças que fez tropeando mulas pr'aquelas alturas. Dizem outros que foi na de 23. O que vem ao caso é que o velho se documentou e se provou. Morta a madrinha, ainda morna a pobre da cristã, vem a parentalha insinuando que eu me adonei do que era dela. Não me disseram, mas o diz-quedisse veio ponteando adiante deles. Eu pergunto: ela não era minha madrinha? Quem cuidou da coitadinha? Eu respondo: eu! Quem pagou o doutor? Eles, por acaso? Quem aguentou as caduqueiras da velha? Algum parente? Sempre foram ausentes nos achaques da finada. Há anos se foram para o povo e nem sabiam se morta ou se viva. Agora me aparecem alegando parentesco e que são Silva e que são Pereira por parte de fulano e de beltrano e que isto e que aquilo, pobre da madrinha pra cá, pobre da madrinha pra lá. A verdade é outra e o caso é claro como água. O campinho a velha vendeu logo-logo que o finado padrinho fechou os olhos. Só reservou onze braças de campo com o rancho e a cacimba em cima, mais o zaino da montaria do marido dela. A fora meia dúzia de guaxos terneiras, o mais que pastava no campo era avestruz. Com os minguados sobrantes do negócio, atendeu o doutor, o inventário e as despesas do enterro. Só o enterro foi um dinheirão, e isto que o caixão não era grande coisa: uns floreios dourados de longe em longe. Alegaram que o velho era um homem grande e que morreu muito inchado, e que não iam meter o Alegrete dentro do Quaraí, que não cabia e que gastaram um mundo de madeira e de clavos. Desperdício não houve. Enterro da cruz não se fez até hoje, por culpa do ferreiro que até ontem não entregou a cruz. Enfim, desperdício não houve. É verdade que o campinho vendido não era mau e o preço até que não foi pior pra época e praquela hora de precisão. Também não era uma nesga. Tinha quase meia quadra de sesmaria. Meio duro, um pouco de mio-mio nos plainos, barba-de-bode nas ladeiras de cerros, mas fino e bom pra ovelha, tanto na graxa como na lã. Ia dando pra pobre viver, pagar os seus remédios, encomendar os seus jujos, suas meadas de linha. E eu sempre ajudando, alcançando alguns trocados, até tirando da boca dos meus pra não dizerem que eu criava de arriba no campinho dela. 445 Empeçaram a dar com a língua nos dentes. E se eu criasse, não estava bem criado? Ela não era minha madrinha e eu não era como um filho dela? Quem vestia a pobre, quem agasalhava a vivente que não tinha ninguém por ela neste mundo? Não sou o herdeiro dos pertences dela e das contas de emplastro poroso e elixir paregórico que ela deixou no bolicho do Brandão? Pois então, não me venham com conversas e chismes. Vai um dia, me aparecem por aqui. De calça-corrida, os machos; o mulherio com umas calças de homem, apertadas no traseiro, fumaceando pelos beiços pintados, se adentrando no meu rancho, mui anchos, como se o que é meu de meu, de escritura passada em cartório, fosse o fiofó da mãe-joana. E era primo pra cá, prima pra lá e eu só me fazendo de mocho pra ver se me laçavam pelo pescoço. Meio por longe, fazendo rodeios, foram dando a deixa que queriam churrasquear carne de ovelha. E soslaiavam a guaxa ovelha da Totinha. Eu quieto, sovelando umas garras de couro. Depois, deram uns suspiros mui compridos, baixaram os olhos pro chão e “que tinham saudades da finada... e que queriam uma lembrança, uma lembrancinha que fosse, e que a coitada sempre foi boa em vida, e que isto e aquilo”. E dê-lhe suspiro e fungação. A minha Vicenta, mui boba e sem malícia, vai e traz, da gaveta da cômoda, uma lenço de seda que a finada defunta usava na cabeça, uma que outra vez, quanto troteava pro cemitério pra rezar umas rezas, e ofertar umas flores pro finado marido dela. Um lenço bom, floreado, com algum rasgãozinho o quantoquanto, de certo arruinado da salgadura das lágrimas ou comido das traças, mas bem fuxicado, a preceito, que a velha no dedal e na agulha era mestra. De mão canhota e sem óculos. Não gostaram do lenço. Que “roupa não é lembrança” e seguiram medindo os trastes com os olhos, tudo agarrando, apalpando, cheirando, reculutando e avaliando. Então eu, de boa vontade, ofereci um banquinho mocho, da finada madrinha e parceiro do seu alcatre magro, tanto nas mateadas de mate-doce, como nos trabalhos de agulha e linha. Um banco bom, feitio do Cardoso que pra essas coisas tinha gosto e tempo. Também refugaram e nem disseram por quê. Nem perguntei. Enjeitado o banquinho, cresceram o olho pra cama da falecida. E já fizeram olho-de-choro e que tinham uma filha quase moça e que estava mal acomodada e outras coisas mais que não repito porque até nem botei sentido naquelas conversas sem fundamento. Podia regalar a cama? Nela mesma a velha fechou os olhos e, salvo o cobertor bichará que era do meu padrinho, o resto sempre foi meu, feito dumas 446 aduelas de barrica que me deu o Modesto, quando se secou de raiz com bolicho no Quatepe. Com a voz de “cama, não!” por ali ficaram dando balanço e fé do tudo; as figurinhas coladas na parede, o vasinho de vidro verde, a imagem do santo que devia ter algum valor pra finada madrinha. De certo por algum milagre pedido e recebido. Ela nunca me contou o acontecido e eu nunca perguntei. Tudo o que eu sabia é que aquele santo era milagroso, lá pra velha, não pra mim, que uma vez, na hora da precisão, botei o invido nele... e até ontem. Não levo fé em santo assim, a pé, de vestido comprido, picana curta na mão, sovaco pelado e mãozinha pra cima. Fosse o São Jorge, santo campeiro e bem montado, eu parava patrulha com eles. Que levassem. Não quiseram. Que não prestava ter em casa santo que antes era de defunto. Crendices. Tudo que nesta vida é de vivente, hoje, fica deixado de defunto, amanhã, quando o vivente morrer. Tudo que ambicionavam falta me fazia. Tudo que eu queria, eles desejavam. Desdenhando o oferecido, iam rumbeando pro que eles cobiçavam. Era a cômoda. Aquela com tampo de mármore. Não tiravam os olhos dela desque a Vicenta remexeu nas gavetas, procurando o lenço. Mármore é coisa rara e que vem de longe, é escasso, não pode ser dado assim no mais. E mesmo que não fosse não era de dar. Nela a madrinha guardava os seus trapinhos, uns retratos amarelecidos e um bico de mamadeira, dos antigos, que eu nunca soube de quem nem pra quê. Ofertei o banquinho, o lenço, o santinho e não quiseram. Cresceram o olho na cômoda com tampo de mármore. Foi pra isso que vieram. Cortei logo: “então vocês pensam que eu vou trabalhar uma vida inteira, de estrela a estrela, botando o branco do olho pra dar de comer e de vestir pra madrinha e no fim repartir o que é meu, que eu ganhei e não roubei?” Saíram de culatra torcida. Ainda da cancela do parapeito fizeram cara-volta e perguntaram se a madrinha tomava mate – Que tomava, respondi. Se tinha cuia e se tinha bomba, e se era de mil-furos. Não era. A cuia quebrou e a bomba azinhavrou, mesmo tinha um que outro furinho. Tomaram a estrada. Que façam como eu se é que querem ajuntar alguma coisa na vida. Me criei criando em quarenta e cinco braças de campo. Com onze que a madrinha Clotilde me deixou, fazem cinquenta e seis. Como uma quadra e pico, de sesmaria, e pastando em cima como cento e oitenta ovelhas de véu, a fora os cordeiros e mais dezoito vacas, cobertas pelo touro hosco e outras chegadinhas. Um homem deve viver do seu trabalho e não ser ambicioneiro. Se um dia Deus quiser que a gente tenha mais, a gente vai ter mais. Ele sabe o que faz. O homem deve conservar as suas coisas. O muito por ser muito não está livre de mermar e, com zelo e trabalho, o pouco pode crescer. 447 O meu avô, pai do meu pai, que eu não conheci, quando entregou a alma ao Criador tinha sessenta quadras de sesmaria. Mas, a velha minha avó era como rata; pariu, amamentou e criou onze filhos. Faça as contas: sessenta quadras, onze herdeiros; os advogados comeram duas e uma ponta de gados. Ficaram cinquenta e oito quadras. Reparta por onze e veja que vem a dar um pouco mais de cinco quadras de sesmaria pra cada um. Foi o que o velho meu pai herdou. Puxou ao pai, na parecença e tudo o mais: fez oito filhos e mais eu, nove. Mais não fez porque a velha vivia atempada e em mãos de doutor. Três morreram em pequeno e eu nem conheci. Ficaram seis. Quando os velhos se foram, desta pra melhor, quedamos com uma quadra escassa que vem a dar pouco mais de quarenta e cinco braças de campo. Os mais ganosos por plata, de vereda venderam, e saíram por aí: dos bolichos pras tropeadas, pra mensual de estância, martelando nas esquilas ou changueando. Afinal se fundiram. Dois estão no Uruguai, diz-que muito bem, cortando cana numa plantação do governo. Um terceiro é capataz duns Ferreiras lá pela Uruguaiana. Tancredo, chama-se, conhece? Das irmãs fêmeas, duas casaram bem. A Picucha, que vem a ser a mais velha, casou com um militar da Brigada, cabo que é, ou era, mas pra bom já é sargento, por muito cumpridor que sempre foi e respeitador dos superiores. A segunda, casou com um homem pobre, mas muito bom. É vivente que não incomoda ninguém, vive das suas changas no Alegrete, foi mensual duns Paim, depois tropeou pros Dorneles e entre uma e outra tropeada queima ladrilhos na várgea do Ibirapuitã, alambra, quincha... enfim, uma alma de Deus. A mais moça, a Clarinha, a última notícia que tivemos foi por carta vinda de Cimada-Serra, por via da rádio daqui. Não pra mim, que ela sabe que eu não acolhero uma letra com a outra, mas pra Vicenta. Mandou um retrato bem tirado, colorido, está bem parecida, bonita como sempre foi e deve ter bom passadio. Vive, diz na carta, numa casa grande com outras moças da sua amizade. A casa é de uma tal Dona Marli, ou nome parecido e que é uma segunda mãe pra ela. Continua solteira como quando se foi, depois que vendeu sua parte de campo pruns gringos arrozeiros que moram ali, bem ali onde o sol alumeia aquele açude, e as águas que se esparramam entre as taipas do arrozal. Me coraçona que a Clarinha se arrumou na vida, porque na tal carta, ela encomenda umas roupas de baixo que são de sua precisão e, pelo fino e preço da encomenda, acho que é mulher de posição na vida. Bem que merece. Comentários ao conto Onze braças de campo e algumas sobras O conto Onze braças de campo e algumas sobras marca-se pelo tom da oralidade dos homens campeiros da Campanha do Rio Grande do Sul. O estilo se aproxima da tradição narrativa gaúcha desde, pelo menos, Recordações gaúchas, de Luís Araújo Filho (Realismo). Em semelhante estilo, mais conhecido 448 dos leitores fez-se Lopes Neto, em Contos gauchescos, considerado em geral como expoente nacional nessa técnica narrativa. A forma da oralidade nessas narrativas aproxima-as da técnica do causo. Causos são narrativas curtas ou médias sustentadas por único narrador, que supõe ouvintes. Nascem da convivência de homens simples, que se recolhem no fim do dia para a roda de mate. Tratam geralmente de episódios ligados ao trabalho diuturno, de supostas ocorrências sobrenaturais, de sabedorias da vida prática, de maldades e de sofrimentos. O narrador do conto em estudo se destaca por mostrar certo toque de ingenuidade que se descobre, porém, como conjunto artimanhas, a fim de manter seus pontos de vista. Esse aparente toque ingênuo revela, sob outro ângulo, alguma ironia bem construída. O personagem-narrador expõe argumentos que mantêm o leitor atento, no intuito de descobrir se ele, afinal, é vítima ou montou cuidadoso plano, com a finalidade de organizar vida economicamente equilibrada. José Clemente POZENATO Pozenato nasceu em São Francisco de Paula (RS), no ano de 1938. Ordenou-se sacerdote em 1962. Dez anos depois, abandonou a vida religiosa. Foi professor na Universidade de Caxias do Sul. É autor de ficção, poemas e ensaios. Algumas das obras dele: Vária figura (1971), Carta de viagem (1981), Meridiano (1982) – poemas; O regional e o universal na literatura gaúcha (1974) – ensaio; O quatrilho (1985), O caso do martelo (1985), O jacaré da lagoa (1991); O limpador de fogões (1998) – ficção. O quatrilho (capítulo 4) Aurélio Gardone estava na porta, olhando a chuva, quando chegou o cortejo dos noivos e convidados, escorrendo água das capas e chapéus. Na frente de todos viu Teresa, acenando alegremente para ele. Sentiu um repuxão no braço, que no entanto permaneceu colado ao corpo, sem dar resposta. Todos foram apeando e atando os animais nas árvores e nos cepos da casa, com as capas estendidas sobre os arreios, porque voltava a chover. Teresa correu para a porta, onde ele estava, e o abraçou com força: – Vos recebo por pai – disse ela. – Te recebo por filha – murmurou Aurélio Gardone. Teresa se afastou dele um passo, olhou-o sorridente e, num impulso, deulhe dois beijos estalados, um em cada face. E já estava abraçando as moças, recebendo-as por cunhadas e voando para o quarto, dizendo que ia trocar os 449 sapatos molhados. Aurélio Gardone continuou recebendo os cumprimentos dos que chegavam, mas o que ainda sentia era a impressão do abraço e dos beijos de Teresa, seu rosto molhado de chuva, o cheiro de flor. Alguma coisa morta, bem no fundo dele, parecia dar sinal de vida. Sem se dar conta, ficou esperando que ela apontasse de novo na porta do quarto. E ela apareceu rindo, arrastando Ângelo pelo braço. Deixou o marido na sala, entregue às brincadeiras maliciosas dos homens, e se dirigiu para a cozinha. Aurélio Gardone sentiu um vago ciúme quando ela passou sem lhe dar atenção. Se a cozinha não estivesse cheia de mulheres, gostaria de agora ir se enfiar no seu canto, atrás do fogão, e fumar um cigarro. Assim mesmo chegou até a porta. Dosolina e Bambina pareciam atrapalhadas, com toda aquela gente espremida dentro de casa, cheirando a suor e roupas molhadas. Por sorte, tia Gema tomava conta da situação e dava ordens à esquerda e à direita. Aurélio Gardone achava tia Gema uma mulher disposta e despachada, mas podia fazer menos espalhafato e menos barulho. – Fora, fora daqui, aqui mando eu – gritou tia Gema para Teresa, assim que a viu entrar na cozinha. – Vai cuidar do teu marido. Amanhã e depois não vai te faltar trabalho. Descansa para hoje de noite. E Teresa ria, concordava, achava engraçado. Tia Gema berrava: – Quem não me obedece eu empurro para debaixo da chuva. Quem não ajuda também não estorva. E despachava mulheres com louça, pratos de comida, garrafas de vinho. Teresa retornou à sala, pelo corredor coberto, e de novo não o viu quando passou. Estava entretida demais com a festa. Aurélio Gardone sentia-se como um peixe fora da água, em sua própria casa. Pelo seu gosto, não teria havido festa nenhuma, ao menos não na sua casa. Mas ninguém mais lhe perguntava a opinião e, mesmo que perguntassem, nada teria respondido. Os negócios da casa lhe davam incômodo, e ele queria paz. Já não tinha ido à igreja porque preferia ficar na toca. É verdade que tinha uma boa desculpa: emprestara ao filho a jaqueta de casimira. Mesmo a desculpa era desnecessária, porque ninguém iria lhe perguntar por que não tinha ido. Pelo menos isso havia conseguido: ninguém se importava mais com o que ele fazia ou deixava de fazer. Como agora. Ninguém vinha falar com ele. Era como se ele não existisse para os outros. Tia Gema tomava conta da sala, mandava os homens sentar à mesa, os noivos à cabeceira. Ela veio arrastá-lo pelo braço, e Aurélio Gardone se deixou levar até o lado de Ângelo. – Vem cá, vem cá, senta aqui – gritava ela. – O pai do noivo tem que ficar aqui. Não tem lugar para todos, vamos fazer duas mesadas. Primi i ómini, os homens não têm paciência de esperar, depois as mulheres. Onde estava, Aurélio Gardone não ia poder tomar todo o vinho que quisesse. O filho, ao lado, estaria medindo cada copo, como se ele fosse criança. 450 Por sorte, sentou a seu lado o compadre Cósimo, firme nos seus quase oitenta anos e mais firme ainda no vinho. Estava ali um bom parceiro. Não para conversar. Disso Aurélio Gardone não fazia questão. Mas podiam tomar vinho juntos. Ângelo não teria coragem de impedir seu padrinho de casamento de tomar um pouco mais. – E alora, compare? – falou o velho Cósimo, molhando um pedaço de pão no vinho. – Agora começa a esvaziar a casa. Foi o primeiro. Vai ver como todos saem sem a gente nem se dar conta. Aurélio Gardone respondeu com um resmungo. Que se fossem todos, pensou, não estava se importando com isso. Compadre Cósimo encheu-lhe o copo de vinho: – Beve, compare, che'l vin no fa mal. Hoje é festa. Aurélio Gardone espiou o filho por baixo das sobrancelhas. A boca lhe ardia de vontade de beber. Pegou o copo e esvaziou-o de uma vez. Compadre Cósimo tornou a enchê-lo: – Bravo, compare. Vamos fazer uma bebedeira nós dois. Femo una ciùca, e dopo cantemo. Não repara na cara feia do Ângelo, eu sou o padrinho dele e eu mando nele. E hoje eu mando que nós dois vamos fazer uma bela bebedeira. Por que é que acha que cheguei aos oitenta anos? E com toda a força de homem. Se não acredita, pergunta para a minha velha. – Riu, piscando maliciosamente um olho. – Eu já disse para a Marieta, a minha velha: na minha hora de morrer quero um bom copo de vinho, tirado da pipa na hora. Se a gente tem de morrer, ao menos que se morra com gosto. A conversa do velho Cósimo estava agradando a Aurélio. Mesmo porque já não era uma conversa com ele e, portanto, não precisava estar dando resposta. Todos ao redor, Teresa, Ângelo, o pai de Teresa, todos davam atenção ao velho. Ele se entusiasmava: – Tu, Teresa, faz o Ângelo tomar vinho. De manhã, de meio-dia, de noite. Ele precisa de sangue para ter força de homem. Eu sei que ele não gosta muito. Ei, Ângelo, não faz essa cara. – Eu devia ter me casado com o senhor – riu Teresa. – E garanto que não se arrependia – riu o velho Cósimo com vontade. – Olha – acrescentou, fingindo falar em segredo – se o Ângelo fraquejar esta noite, o Cósimo está aqui firme. Teresa deu uma gargalhada: – E a Marieta? Te copa co la mêscola. Te pega com o pau da polenta. – Ma che! – fez ele abrindo os braços. – Eu despacho a Marieta. Ei, Ângelo, não quer fazer uma troca? Te dou ainda uma mula de volta. 451 Aurélio Gardone tornou a esvaziar o copo, enquanto os outros riam. Falavam todos juntos, as vozes cada vez mais altas. Ele assim se sentia de novo sozinho, como gostava. Via as travessas de massa e leitão assado se esvaziando, o vinho baixando nos garrafões, o sol, de repente, entrando pela janela. No fundo da mesa, um grupo ensaiava cantar, quando tia Gema entrou na sala adentro, aos berros: – Fora, fora tùti. Vão se embebedar lá fora. As mulheres de vocês ainda estão com as tripas roncando. Fora, fora daqui. Os noivos ficam, os noivos ficam, o que é que estão pensando. Nós, mulheres, também queremos olhar bem os noivos. Olha que lindos! Parecem dois anjinhos. Aurélio Gardone levantou-se. Não se sentiu pesado, ao contrário. Bem que gostaria de levar consigo uma garrafa e continuar bebendo sozinho, descansando, no paiol. Só de pensar nisso sentiu um alvoroço por dentro. Aproveitando a confusão, esgueirou-se até a cozinha e arrecadou um garrafão de vinho e uma caneca. Contornou a casa e, sem ser percebido, refugiou-se no paiol, entre as palhas de milho. O ruído da festa chegava amortecido. Tirou a tampa de palha do garrafão e encheu a caneca. Lá fora, vozes, cada vez mais fortes, cantavam: Sul ponte di Bassano Noi ci darêm la mano... A cabeça leve, Aurélio Gardone viajava. Bassano, Bolzano, Beluno. O frio de matar, a fome, o medo do senhorio. Os pais tristes, sem comida para dar aos filhos. O peixinho que ele pegara com barbante no canal e a pequena festa. As tripas de galinha assadas na chapa, um verdadeiro banquete. Noi ci darêm la mano Per un bacin d'amor... Rosa. A sua Rosa. Lembrava tudo daquele primeiro dia. Debaixo de um àlbaro sem folhas, ele com vergonha da camisa remendada, e os olhos brilhantes de Rosa que pareciam derretê-lo por dentro. Ele lhe tomara a mão, pequena e macia. Parecia-lhe estar segurando um passarinho. E o medo de que ele de repente voasse. A sua Rosa. Jurou para si mesmo que não a deixaria viver na miséria, que faria dela uma signora. Por causa desse juramento é que embarcaram para a América, no dia seguinte ao do casamento. Que sonhos eles tinham no navio! Uma casa grande, cheia de filhos, muitas vacas no pasto, belas colheitas de trigo para terem pão no ano inteiro, dinheiro para se vestirem de seda e casimira, perfumes para Rosa, charutos para ele... Bela ciavàda. Aurélio Gardone lembra como se fosse hoje. Quando chegou na colônia que lhe foi destinada, deixando Rosa no barracão dos imigrantes, e viu a altura das árvores que teria de derrubar para plantar ao menos umas covas de milho, chorou. Parecia ter ficado sem força. E foi chorando que deu a primeira 452 machadada, e outra, e outra. A primeira árvore caiu, e ele deu um grito de alegria. Alguns dias depois tinha já erguido um rancho e trouxe a sua Rosa. Ela ria, saltava sobre os troncos caídos, achava graça dos gritos dos macacos, divertiase em cozinhar a polenta sobre três pedras, debaixo de sol e de chuva. Mas à noite se agarrava nele. Ainda agora pode sentir as unhas dela cravadas em seu ombro. E com que alegria comeram o primeiro pão de trigo, duro como uma pedra, por falta de fermento. Ângelo era então recém-nascido. Rosa fez com que ele também provasse o pão, como augúrio de que nunca passaria fome. Esperando já a Dosolina, Rosa o ajudava a rachar as toras de pinheiro para a sua primeira casa de verdade. Foi então que a pobrezinha esmagou um dedo, e nunca mais lhe nasceu a unha. Grande signora Aurélio estava fazendo. Ainda agora vê o sangue e tem que encher de novo a caneca de vinho e esvaziá-la de um trago. Aurélio Gardone olha as paredes do paiol. São estas as tábuas que fizeram juntos. Esta foi a casa em que nasceram quase todos os seus filhos. Ali, onde estava sentado, Rosa o abraçou chorando quando ele lhe trouxe o primeiro presente de verdade: um corte de chita com flores vermelhas. Como a sua Rosa ficava linda naquele vestido! Parecia que os olhos e os cabelos dela ficavam mais pretos, mais brilhantes. As lágrimas correm pelo rosto de Aurélio Gardone. Parece-lhe que Rosa se aproxima por trás dele, passa-lhe a mão pelos cabelos, pede-lhe que não chore, que ela está contente, é finalmente uma signora. Se ele não acredita, olhe então para ver como está vestida, e tem brincos de ouro, e a unha voltou a nascer. Aurélio Gardone não tem coragem de olhar para trás. Ela está mentindo para o consolar. Toma outra caneca de vinho e sente que o vinho lhe escorre pelo peito. A cabeça está pesada, e Teresa está na sua frente, sorrindo. Dá-lhe dois beijos no rosto. Aurélio Gardone estende a mão para tocar os cabelos negros de Teresa, uma bela signora. Seus dedos não tocam em nada, Teresa desaparece, e ele cai pesadamente sobre as palhas. Acorda com o canto do galo. Não há mais ruído de festa. Levanta-se, o corpo dolorido, e vai para a cozinha, onde acende o fogo e põe água para aquecer. No clarão das chamas, localiza a cuia do chimarrão e a erva e se acomoda no seu canto. Tem muitas coisas ainda a lembrar da sua Rosa. Comentários ao capítulo 4 de O quatrilho. O romance O quatrilho representa exitosa participação temática da colonização italiana na serra gaúcha, no âmbito da arte literária produzida no Rio Grande do Sul. Costumeiramente, a temática da literatura gaúcha focava o campo aberto, o gaúcho a cavalo. Sobre a colonização alemã, no estado, já se conhecia importante contribuição literária, em prosa e verso. Também a crítica, especialmente pela imprensa, iniciada, no Rio Grande do Sul, por alemães imigrados, representou as primeiras experiências de que se tem notícia. Ao lado de outras contribuições, de outras etnias e nacionalidades, essas obras diversificaram a proposta temática e até a estilística, na literatura produzida no estado gaúcho. 453 Não apenas de pontos típicos se alimentam o capítulo e o romance observado. Os personagens, como se percebe no trecho escolhido, têm personalidades fortes, de teor humano e artístico. O que se leu aqui é o começo de um casamento. Apesar do início bonito, algo mais forte que o costume e a necessidade havia de sobrevoar o ambiente narrativo. Dentro dos personagens, que definitivamente alçam o texto a romance de estrutura caraterística desse tipo narrativo, brotam e se desenvolvem potências humanas que haverão de unir uns e desunir outros; alegrar alguns e punir aleatoriamente outros. JOÃO UBALDO Ribeiro Nasceu em 1941 em Itaparica (BA). Faleceu no Rio de Janeiro, em 2014. Foi jornalista e professor. Participou de algumas coletâneas antes de publicar o primeiro livro, intitulado Setembro não tem sentido, em 1968. Com o segundo livro, Sargento Getúlio (1971) começou a conquistar renome. Morou nos EUA, em Portugal e na Alemanha. Participou de adaptações de textos seus e de terceiros para televisão e cinema. Atualmente assina textos semanais nos jornais brasileiros. É autor de obras reconhecidas nacionalmente, como Livro de histórias e Viva o povo brasileiro. Foi autor de contos, crônicas e romances. Livro de histórias (excerto do conto Já podeis da pátria filhos) Mesmo assim estamos perdendo, e Honorino já vai dando sinal de que não aguenta mais correr, e na defesa temos grande pressão japonesa, no mesmo jeito, tudo de bolo. Felizmente, Cremildo já tinha tido permissão do juiz para jogar sem chuteira, e cada pontapé que ele dava com aqueles cascos que Deus lhe deu espalhava diversos japoneses e descontrolava o ataque estrangeiro. Poroba também aprendeu a escorar as bicudas dos americanos. De vez em quando, o americano acertava a bicuda em cheio, e Poroba calçava e subia com bola e tudo. Mas escorava, e esse é o heroísmo do atleta brasileiro, porque, depois do jogo, Poroba passou muito tempo com zumbido nos ouvidos, dos solavancos que ele levava, toda vez que escorava uma bicuda. Está se vendo que a situação não era boa, mas podia ser notado que o japonês do gol estava cada vez mais aporrinhado com as dedadas de Jonga, inclusive porque Delegado também tirava suas lasquinhas de vez em quando. O japonês fez diversas caretas e foi piorando depois do gol mais sensacional da tarde, que foi Digaí, que até agora não tinha pegado na bola. Digaí pegou a bola solto na ponta esquerda, porque um beque americano foi rebater de primeira e ela espirrou para o lado, e o americano ficou carrapateado sem entender nada. Digaí ficou até meio sem graça e começou a dar com o canto do pé na bola, doido para aparecer alguém para receber o passe, mas – é por isso que eu digo, 454 torcida vale muito – todo mundo começou a gritar “digaí, louro, digaí, louro!” e Digaí ficou mais do que emputecido. Até hoje eu fico pensando se Digaí, que o nome cristão é Juvenal mas só a mãe dele chama ele de Juvenal, acha que aquela gritaria toda vem do goleiro, porque ele parte para cima do goleiro. Quem já quis segurar um maluco atacado sabe como é para segurar Digaí, precisa um destacamento de homens dobrados e mesmo assim com uns porretes. Então seu Digaí faz uma diagonal pelo bico da área e um japonês que cercou ele tomou uma peitada que até hoje aquele japonês não compreendeu e, quando chega bem no bico da área, seu Digaí me dá um cacete que quase a bola fica encaixada no ânglio superior direito da trave do japonês, mas não ficou: bateu no ânglio, voltou, bateu na cabeça do japonês e entrou e sacudiu o véu da noiva, só que não tinha véu, mas também não tinha noiva e gol do Brasil! Carlito Bofe, que estava tomando conta do foguete da vitória, não aguentou e soltou a pamonha, catapriutabum! Marcador igualado e Digaí abraçadíssimo e perguntando cadê meu papagaio, cadê o papagaio, me dê meu papagaio. Esqueci de dizer que o papagaio de Digaí é finado, porque ele enchia a boca de água e barrufava o papagaio para ele aprender a falar, de sorte que deve ter afogado o bicho numa certa feita dessas, ou então matado de defluxo. Mas o empate não serve a quem defende o seu país, mesmo quando ele empata a gente. Honorino já está botando os bofes pela boca, mesmo porque, agora, além do americano está um japonês marcando ele. Não pegam, mas chateiam, inclusive japonês não cansa, todo mundo sabe disso. Mas como ninguém marcava João Baguinha, que até agora não tinha feito nada a não ser reclamar do juiz e correr para abraçar quem fazia gol, a redonda acabou sobrando para ele na intermediária dos gringos e ele aí deu um esticão para dentro da área, uma coisa linda, que só se acredita que foi João Baguinha porque se viu. O goleiro deles sai e arma o bote, mas nisso Delegado vem de lá e enfia o dedo na bunda do japonês e o japonês não quis acordo. Revirou o corpo e deu uma pezada na cara de Delegado que Delegado nem catou a ficha. Caiu inteiro no meio da área. Temos aí um pênalti claro, mas o japonês avançou para o juiz e disse ele mete dedo no meu trazezo, ele mete no meu trazezo, isto seu Delegado todo estatelado no gramado, com um lado da cara inchado e fazendo careta com o outro. João Baguinha, que era especialista nisso, veio logo esticar as pernas de Delegado, mas ele só se levantou quando disseram que iam aplicar uma injeção e assim mesmo estava meio bambo. Então o juiz botou Delegado para se perfilar assim com as mãos nas costas e disse seu Delegado, o senhor dá a sua palavra de honra de esportista? Dou sim senhor, disse Delegado. O senhor, disse o juiz, dá sua palavra de honra de esportista como não meteu o dedo no traseiro do goleiro adversário? E Delegado não era besta de dizer que não dava, senão depois do jogo ele ia ver onde a gente socava a honra de esportista dele, honra é a da pátria amada que ali a gente está defendendo, eles levam o metal mas não levam a flâmula. Aí o juiz apontou para a marca do pênalti e o japonês quase vira um baiacu de tanto inchar as bochechas, sabe-se que o 455 japonês e o chinês são povos de maior capacidade de inchar as bochechas. Eu adentrei o tapete verde, com a finalidade de declarar que o São Lourenço não aprovava o tumulto e que ou respeitavam o juiz ou eu tirava o time do campo e considerava o jogo ganho e aí não me responsabilizava pela conduta dos meus atletas, que era tudo rapazes de sangue quente. Eu sei que acabou Cremildo se dirigindo para a marca penal e a última coisa que o japonês viu foi o pé de Cremildo se levantando, porque se tem uma coisa que Cremildo sabe fazer, essa coisa é dar um porrete fixe, desses que a bola entorta. Tive que dar um esporro em Carlito Bofe, porque ele já tinha gasto nosso foguete no gol de empate e o jogo terminando e o time todo se fechando na defesa. Didi aprendeu que, se batesse os pés na frente do gringo que estava com a bola, o gringo se assustava pensando que Didi ia dar um chute nele e soltava o esférico. Vitória do Brasil, ninguém envergonhou a pátria. Muita gente pergunta se, em vez de ganhar no futebol, não era melhor a gente viver bem, igual aos gringos vivem? Isso demonstra ignorância, porque se sabe que ao gringo interessa mostrar que a raça deles é a melhor, por isso que Hitler mandou matar todos os alemães que não ganharam nas olimpíadas, para não envergonhar a raça. Daí se vê que, ganhando no futebol, a melhor raça somos nós. Comentários ao excerto de Já podeis da pátria filhos O título do conto é tomado do primeiro verso do hino da Independência (poema de Evaristo da Veiga e música de Dom Pedro I), ou seja, aponta a certo (estranho) modo cívico de valorizar a pátria independente. O excerto procura mostrar técnica a fonte temática. O discurso observável reelabora formas orais urbanas. Mostra a ambiência de superficialidade do narrador e, pois, dos personagens, dada a circunstância. Sem fundamento reflexivo, o narrador se faz opiniático e ridículo. Embora talvez o plano da obra não pretenda isso, é isso que se constata. A explanação foca a narração duma partida de futebol, envolvida em invenção e parcialidade, olhar de único observador. Talvez mais importante que tudo seja conclusão a que o texto pode levar o leitor: os mitos enganadores decolam de ambientes hipoteticamente insuspeitos para isso, ou o falso se justifica para existir. A camada social focada é a população urbana de poucos horizontes, o que certamente não é novidade na literatura brasileira. O estilo e a proposta ideológica da obra, pelo que ficou anotado, sim, aparecem como importantes contribuições. DARCY RIBEIRO Darcy Ribeiro nasceu em Montes Claros (MG) em 1922 e faleceu em 1997, em Brasília. Foi antropólogo. Dedicou os primeiros dez anos de vida profissional ao estudo dos índios do Pantanal, do Brasil Central e da Amazônia. Nesse 456 período, fundou o Museu do Índio e estabeleceu os princípios ecológicos da criação do Parque Indígena do Xingu. Escreveu vasta obra etnográfica e de defesa da causa indígena. Elaborou para a Unesco estudo do impacto da civilização sobre os grupos indígenas brasileiros no século 20 e colaborou com a Organização Internacional do Trabalho na preparação de um manual sobre os povos aborígenes de todo o mundo. Produziu literatura em Maíra (1976), O mulo (1981), Utopia selvagem (1982) e Migo (1988) – romances. Culturas e línguas indígenas do Brasil (1957); Os índios e a civilização (1970); O Brasil como problema (1995) – ensaio. Maíra (excerto do capítulo Retorno) Aqui estou, afinal, em Santa Cruz, esperando para ir adiante, voltando atrás. Ó Deus de Roma que não me iluminou Ó Deus do céu que não me viu Meu Deus, que invoquei em vão Meu Deus que recusou a dádiva de mim Ó Deus, Senhor, todo poderoso Me dê meu ser perdido no que seria Me dê a dignidade de uma cara mairum Me dê a tranquilidade de uma alma mairum. Só Deus, onipotente, me pode socorrer. Se é que Deus, onisciente, quer se ocupar de mim ou de quem quer que seja. Não sou o soldado que regressa vitorioso ou derrotado. Não sou o exilado que retorna com saudades da raiz. Sou o outro em busca do um. Sou o que resulto ser, ainda, nesta luta por refazer os caminhos que me desfizeram. Saí menino, volto homem feito. Mas estou cheio de desgosto com o gosto de minha boca. Só me consola pensar que a aldeia redonda lá está à minha espera. Rominha minha... Talvez não esteja no mesmo lugar, mas estará certamente dentro do grande cerco do Iparanã. A gente de cada clã, dentro de cada casa, já não será a mesma. Muitos estarão velhos. Alguns haverão morrido nesses anos e só serão visíveis ao velho aroe. Muitos, nascidos depois, serão homens e mulheres. Quantos filhos eu tenho de minha irmã? O velho tuxaua Anacã, meu tio clânico, estará vivo? Quem atará, agora, o nó da vergonha nos membros dos homens? Estará vivo o velho aroe Remui, meu pai verdadeiro, que me gerou no ventre de Moitá? Meu velho pai continuará cumprindo a sua sina de aroe, vendo e conversando com os vivos e com os mortos? Remui, guia místico de duas comunidades, sacerdote verdadeiro de Maíra-Coraci, o Sol, como te quero rever. Minhas irmãs e meus irmãos, tantos, da banda jubamarela do nascente, que será deles? Meus cunhados, meus sogros, meus enteados da banda azul-ouí, como serão? Quem estará a minha espera para ser a minha 457 mulher? Quem há de levar no ventre para a banda de lá a minha semente de aroe? Para eles volto, regresso, no desejo de retornar a um convívio que eu nunca deveria ter rompido. Com que olhos eles me olharão? Que ao menos seja com a mesma entranhada ternura com que eu olharei para eles. Vendo, com doçura, a velhice nos que conheci maduros. Vendo, com gosto, nos meninos de ontem, os homens feitos de hoje. Vendo, com amor, toda a gente nova que nada sabe de mim. Como saí muito menino, mas fornido de ossos e coberto de carnes firmes, eles buscarão em mim a estatura que houvera tido se não fossem tantas pestes e asmas desses ásperos invernos romanos. Se não estivesse aí a minha memória para dizer–me que eu sou eu; se não estivesse aí tanta lembrança me vinculando ao que fui, eu mesmo não me reconheceria no homem esquálido, vergado, que volta para a casa. Excetuando a memória que nos ata aos dois, que temos nós de comum? Meus idos podiam ser de outro. Eu realizo a mais improvável das minhas possibilidades. Nada tenho com o menino de então, ou quase nada. Com o homem que eu seria menos ainda. Sou apenas o desejo ardente de vir a ser um pouco do que poderia ter sido, se não fossem tantos desencontros. Meu Deus pai, criador do céu e da terra Meu Deus filho, Jesus Cristo, Nosso Senhor Morto na Cruz, por vontade do Pai, para nos salvar (Salvar quem se houvera salvo sem o Teu santo sangue) Meu pobre Anjo das Trevas, servo rebelde do Senhor Minha Nossa Senhora: útero de Deus. Meu Deus-Pai, mairum: Maíra-Monan (Com seu membro imenso crescendo debaixo da terra, como uma raiz para todas a mulheres) Meu Deus Filho: Maíra-Coraci, Sol luminoso. Micura, Teu irmão fétido: gambá sariguê Mosaingar, homem-mulher, ventre de Deus Deus Pai, Deus Filho, Arcanjo Decaído Maria Santíssima, Açucena do Senhor Maíra-Manon, Maíra-Coraci, Micura Mosaingar: parida dos gêmeos de Deus Meu Deus de tantas caras, eu que tanto creio como descreio, peço a cada um e a todos; rezo e peço humildemente; Que eu não chegue lá, se não for de Tua vontade Que eu só chegue lá, se essa é Tua vontade Mas, se chegar, que eu possa ser um entre todos Indistinguível. Indiferenciável. Inconfundível Um índio mairum dentro do povo mairum. Sei bem que estou variando outra vez, com essas minhas rezas entreveradas. Dói pensar na dor que elas provocavam no velho padre Ceschiatti, sempre cheio de horror e de tristeza quando eu lhe repetia uma dessas minhas 458 loucas invocações. A mim também me doía com um sentimento fundo de pecado, de fracasso e de frustração. Hoje, não me importa. Sei, afinal, que hoje e sempre rezarei assim. Eu sou dois. Dois estão em mim. Eu não sou eu, dentro de mim está ele. Ele sou eu. Eu sou ele, sou nós e assim havemos de viver. O velho confessor não estará jamais no futuro, esperando por mim, antes da missa para me esvaziar outra vez de mim. Eu também não estarei jamais tremendo de medo dessa hora da verdade, da antiga verdade, da verdade dos outros. Agora viverei com a minha verdade, a minha verdade entreverada. Deus do céu, meu pai e meu tio. Deus é Deus e Maíra. Maíra é Deus. Este é meu caminho de volta a Mairum, o povo de Maíra. Lá tenho o meu posto, o meu lugar. Lá sou um homem da banda do nascente: dos que veem, de madrugada, o nascer do Sol, sentados no fundo das suas casas. Sou dos que seguem com respeito o grande rodeio d’Ele pela enormidade do céu. Sou dos que se sentam juntos, todas as tardes, ali no pátio, do outro lado do baíto, para ver o pôr do Sol. Sou um Jaguar, do clã que dá os tuxauas, dos que jamais matam um jaguar-onça, mas que cobram uma pele de onça de cada homem que queira ser muito homem. Principalmente daquele que queira se deitar com uma das minhas irmãs, com uma jaguar. Sou o recíproco dos carcarás, que estão do outro lado da aldeia, atrás do baíto. Da nossa casa é impossível ver a casa deles. Da casa deles é impossível ver a nossa casa. Mas eles e nós formamos uma unidade, um verdadeiro nós, aquele nós mais profundo, de quem sabe que não pode viver nem morrer sem o outro. Lá, eu, o Avá, sou irmão, o tio, o cunhado, o genro de muitos e muitos homens, de muitas e muitas mulheres. Com eles viverei, sabendo, só de olhálos, quem é quem, de onde vem, que espera de mim, o que posso e devo fazer em relação a eles. Andando na aldeia entre as mulheres ou sentado no baíto, embolado com os outros homens, verei e distinguirei em cada qual sua natureza de pacu, de tapir, de tracajá, de quati, sabendo só por isso, de cada um, se é casável ou não comigo ou com os outros, ou se são impedidos, proibidos, incestuosos. Cada um deles também me reconhecerá como o tuxauarã Avá, da casa do Jaguar, o uruantãremu que reencarna Uruantã, o antigo tuxaua, irmão de minha avó Putir que será reencarnado no neto de minha irmã Pinu, que há de nascer. Tudo isso vou reviver. Tudo isso que eu me esforcei tanto para que não morresse dentro de mim, mas que não podia viver, senão na lembrança, agora vai reviver. Tudo isso, amanhã estará pulsando como a vida lá na aldeia pra mim e para todos. Lá a verei, a ela, aquela gaviã azul que será minha mulher. Verei também e quem sabe até conhecerei, na escuridão da noite do pátio, uma daquelas mirixorãs. Como eu gostaria, hoje, de ter uma daquelas mirixorãs aqui deitada comigo, me bolinando, surucucando. Elas vêm dos clãs novos, dos que chegaram mais tarde. Por isso vivem no lado de cima, no espaço que a roda 459 da aldeia abriu para eles, sabe-se lá há quantos séculos. São de certa forma inferiores. Não, talvez não sejam inferiores. Melhor é dizer que são bravos. Ainda estão sendo amansados. Dizem que eles entraram para o mundo dos Mairuns como cativos de guerra. Mas sendo gente muito bruta e covarde, não podiam ser comidos. Foram ficando ali, foram vivendo ali e foram se misturando conosco. Um dia aprenderam a fazer clãs como os nossos. Depois, não se sabe quando terá sido, se integraram na aldeia. Mas a situação dos clãs novos é muito particular. O aroe, dono da fala, que conversa com os mortos, nunca fala com os mortos deles. É como se eles morressem definitivamente, aqui na terra, quando morrem. Há uma cerimônia importante que eles não podem ver. Esperam que termine, acampados na mata. Só à noite entram na aldeia e ficam por ali para ver o final da cerimônia, mas andam e olham com discriminação, como se não estivessem presentes. Nós passamos por eles e não os vemos. Só de manhã eles tomam sua vingança, vencendo nossos melhores campeões na luta de corpo-a-corpo. Para isso treinam e retreinam o ano inteiro. São os melhores lutadores. Mas eu me lembrava era das mirixorãs que saem desses clãs novos. São escolhidas, entre as meninas mais bonitas, para participarem das cerimônias da iniciação dos jovens mairuns: dos clãs antigos e se recluem com elas. São duas ou três para cada geração. Declaradas mirixorãs, não podem nunca tomar marido. Quando terminam as cerimônias, elas são as mais bonitas, as mais enfeitadas, porque sua beleza é orgulho de todos os mairuns. Permanecem por muitos anos com o cabelo da testa crescido até o queixo, que elas jogam para trás com faceirice. As outras mulheres usam franja. De fato, são mais mulheres que as mulheres comuns e talvez até mais mairuns. Não podendo ser tomadas como esposas, ficam como que suspensas no ar. São mulheres de todos. São mulheres de ninguém. São mulheres de si mesmas, porque se fazem desejadas de todos os homens. Foder com elas não provoca ciúme em nenhuma mulher mairuna. Ao contrário, muitas dão ao marido uma faca ou um adorno dizendo: – Vá buscar Medá que é linda, ela há de ser carinhosa com você. Talvez uma noite eu cubra Medá. Medá não será mais. Ela era mais velha que eu, hoje estará velhuscona. Comentários ao capítulo Retorno do romance Maíra O romance Maíra obtém o título de nome de deus do povo mairum, etnia brasileira. A narrativa executa cruzamento de um corpo que perdeu a alma, o índio Isaías, enviado à Europa a tornar-se religioso: perde a condição de ser índio, embora, retorne ao espaço da tribo, mas consegue o mesmo com a alma que lhe fugiu. Cruza-se com ele Alma, moça branca de muitas experiências humanas. Ela procura a floresta, o recanto mais interno do coração do Brasil. Ela também quer a alma índia do povo mairum. O hipotético casamento do índio (Isaías) com a moça urbana não se realiza, porque ambos não mais são o que foram nem conseguem ser o que pretendem. Já não são inteiros nem naturais. 460 Padecem da falta do caráter, do sinete, do que deve estar dentro, mas diluiu-se no não-ser. Perde-se, pois, a vida de ambos, que o tempo leva. A experiência estilística também é marcante. Do léxico à sintaxe, da fala despretensiosa do dia-a-dia às orações e ritos sagrados da tribo mairum, esse largo espaço cultural se mescla ao idioma oficial, que é de origem europeia, brasileiro. Antes dessas experiências assaz densas, apenas os românticos tinham-se dedicado a reconstruir a alma ameríndia do Brasil. Naturalmente, porém, com outros recursos, certamente bem menores, pelo conhecimento pequeno que podiam ter poetas e romancistas do século 19. O avião e o barco equipado levaram estudiosos, entre os quais o autor de Maíra, a regiões desconhecidas dos brasileiros de origem europeia até pelo menos até meados do século 20. Desse modo, o índio, essa metonímia imprecisa, começou a ser foi visto pelos urbanos brasileiros como múltiplo, dono de multíplices culturas. Do choque provocado por esse conhecimento, ainda que, apesar de tudo, precário, foi possível a elaboração de obra com as dimensões que o romance Maíra pode ostentar. Marcelino TABAJARA Gutierrez RUAS Nasceu em Uruguaiana (RS) em 1942. Cursou Arquitetura em Porto Alegre. No início dos anos 70, perseguido pela polícia política, abandonou os estudos e partiu para o exílio: Chile, Argentina, Dinamarca, São Tomé e Príncipe e Portugal. Deu início à carreira de romancista com a publicação de A região submersa em Portugal (1978) e na Dinamarca (1980). Em 1981 retornou ao Brasil, fixando-se em Florianópolis. Diversificou suas atividades como ficcionista, tradutor, publicitário, o cineasta e jornalista. Principais obras dele: O amor de Pedro por João (1982); Os varões assinalados (1985); Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez (1990); Netto perde sua alma (1995). Os varões assinalados (excerto do capítulo 31) São mil cavaleiros e dois canhões marchando sob o vento e a chuva. Marcham vergados sobre o pescoço dos cavalos. Os chapéus desabam nas cabeças, dobrados pela força da água. Os ponchos estão encharcados e pesam. Colam-se ao corpo dos homens e às ancas dos animais. Avançam pesadamente. As patas afundam na água, prendem-se ao terreno arenoso, os animais tropeçam. Avançam sem pausa, escolhendo o caminho entre tremedais e charcos. Na frente, os estandartes pendem, vergados como os homens. Bento Gonçalves sufoca a tosse. Tem uma manta enrolada ao pescoço e uma banda de lã vermelha atada na cabeça. O chapéu está descido até os olhos, sobre a banda de lã. Ela protege-lhe a nuca do vento. O vento é o minuano. Assobia, faz 461 a chuva mudar a direção, torna-a quase horizontal, penetra entre as dobras do abrigo, enregela o nariz e os dedos dos que não têm luvas – a maioria. Ao lado direito de Bento Gonçalves vai Crescêncio. Quase não se vê seu rosto de índio duro, seu bigode negro amarrado nas pontas debaixo do queixo, as sobrancelhas que se unem num torvelinho escuro acima do nariz, os pequenos olhos negros que não se espantam nunca e parecem adormecidos. Crescêncio não tem luvas. Crescêncio nunca usou luvas e devota inconsciente desprezo a quem as usa, como Bento Gonçalves e os italianos. Logo atrás deles vão Garibaldi e Rossetti, lado a lado. Garibaldi usa um gorro de pelego de ovelha que pediu para Anita fazer, sob sua orientação. E também um colete feito por ela, amarrado na frente por tentos de couro cru. Sobre isso veste um poncho pesado, com franjas, presente de Teixeira. O poncho é de lã, grosso, sólido, quente, mas a água contínua e as rajadas de vento que os acometem desde o dia da partida já o trespassou, e ele sente as costelas enregeladas e os dedos endurecidos, apesar das luvas de couro. Vai de cabeça baixa, abrigando os olhos do vento cortante e da água fria. Vê o pasto queimado pelo frio e devastado pela água, os sulcos das patas dos cavalos que vão na dianteira. Quando ergue os olhos, apenas vê uma paisagem cinzenta e árida, um céu invisível e uma vegetação moribunda, descolorida, sem pássaros nem animais, como se o mundo estivesse acabando, e eles fossem uma raça de retirantes escapando a um flagelo universal. É impossível fumar, e Bento Gonçalves foi rigoroso quanto a levar bebidas alcoólicas. Não têm vontade sequer de falar. Rossetti, a seu lado, também marcha de cabeça baixa, protegendo-se. Rossetti não articulou frase nenhuma desde que saíram. Garibaldi desconfia de que o metódico Luigi está guardando as preciosas energias para as duras tarefas que os esperam ao fim da marcha. Esta marcha é uma das suas obsessões. Ele instigou Domingos, argumentou com Netto, persuadiu Gonçalves, insistiu com todo o Estado-Maior. Rossetti marcha com as duas mãos escondidas dentro do poncho, curvado sobre o cavalo, e de olhos cerrados, permitindo-se ver apenas sombras ao seu redor. Talvez a única coluna dorsal ereta em todo o contingente seja a de Teixeira. Ele recuperou um pouco de seu penacho, os ombros voltaram a endurecer-se, o rosto tomou cores, mas a água impiedosa que cai fez seus bigodes – novamente encerados – murcharem e colarem-se ao rosto emagrecido. A seu lado, Antunes da Porciúncula, com uma manta cobrindo o rosto e o chapéu descido sobre os olhos. Apenas se veem os olhos, semicerrados. Sua parte vulnerável ao frio é o nariz – esse nariz fino, pontudo de aletas largas, que lhe dá melancólica aura de profundidade e incita a imaginação das mocinhas a considerá-lo poeta. Antunes anda sempre anotando num pequeno diário de capa de couro que guarda dentro do dólmã, num bolso que pediu a sua mulher para costurar. Antunes usa luvas de lã, inúteis. Estão encharcadas e não impedem que as mãos estejam tão molhadas como a testa estrelada do cavalo. Às vezes, Antunes olha para os lados e estremece. A paisagem é escorregadia, nebulosa, vegetal, bicho cinzento muito grande, invertebrado, sobre o dorso do qual aquele fantasmagórico grupo de homens cavalga curvado em silêncio, com uma 462 vontade estranha, destinados a um sortilégio infernal. A chuva desaba sobre eles, desaba sobre o lombo recurvo e pantanoso do bicho: Antunes pensa que ele está se desfazendo, que a paisagem – o bicho lancinante e movediço – está se desfazendo sob a chuva e o vento, o bicho os obriga – insetos – a caminhar no dorso que se desfaz; e eles caminham. As patas cansadas dos cavalos afundam na pele do bicho, enredam-se nos pelos do bicho, encharcam-se no líquido gelado que segrega da pele do bicho. Mil homens. Não têm nome, com exceção de seis. Marcham sobre o lombo da paisagem viva que se desfaz e os engolirá adiante, onde está a cabeça do bicho e suas fauces abertas, a língua ofegante. Garibaldi cochila. Abre o olho, sentindo coceira na mão. Examina-a. Dá um grito que faz Rossetti voltar para ele a cabeça. Garibaldi não diz nada. Rossetti torna a baixar a cabeça. Pensa que ouviu Garibaldi gritar. É impossível saber. O vento zune. Esse vento só existe aqui. Os continentinos demonstram um orgulho meio tolo em relação a ele – ao Minuano – como se fosse alguma vantagem suportar o flagelo. É vento perverso, insidioso, que arremete como obedecendo impulsos pré-estabelecidos, que investiga a vítima e joga-se sobre ela como puma, buscando a parte vital. O minuano é vento polar: vem do sul mais fundo, das geleiras da Patagônia, atravessando as vastidões do pampa argentino onde não encontra obstáculo algum e vem semeando devastações, minúsculas mortes, assobiando sua música lúgubre, arrancando lágrimas dos olhos mais duros, inchando, crescendo, aumentando a força com os lamentos e gemidos recolhidos no caminho, chegando ao pampa rio-grandense gordo, pesado, mau. Outras vezes o Minuano é andino: desprende-se das alturas geladas da cordilheira, desce rodopiando entre avalanches de neve, joga-se vertiginosamente através de abismos de rocha e penhascos molhados, arrastando condores e tribos guerreiras, precipita-se feroz, com um uivo mais agudo, mais humano, mais dolorido e instala-se no pampa e o percorre faminto e deslizante, fazendo estremecer os rebanhos, tiritar as choupanas, vacilar os fogos nos galpões, vergar os angicos e cambarás, encrespar-se o lombo das sangas. O Minuano os acomete. Na tarde cinzenta o Minuano cerca a expedição. O Minuano a sitia, a torna encolhida, desmoralizada, indefesa. A expedição luta contra um inimigo invisível, que zomba, que ri, que dá gargalhadas desvairadas e que não se cansa, não recua, não dá folga, não esgota seus recursos. Um inimigo que tem aliado poderoso: a chuva ininterrupta desde a partida, a chuva metódica, nem grossa nem fina, que cai numa harmonia enlouquecedora e que obedece aos caprichos do Minuano, mudando a direção em arremetidas inesperadas, vindo de flanco, de frente, vertical, às vezes redemoinhando diante de seus olhos como alucinação. Rossetti olha as bandeirolas tricolores na ponta das lanças. Estão em tiras e se agitam para todos os lados, como possuídas. Eram bandeirolas novas, feitas pelas mulheres dos republicanos, com muito sacrifício e certo desperdício, já que era mais importante nesse inverno maldito roupas mais grossas para a tropa. A metade dos mil homens não usa botas. Enrolam os pés em mantas, em pedaços de pelego, improvisam sapatos de couro. Alguns, para espanto de Rossetti, não usam nada nos pés e parecem não 463 sentir o calamitoso frio que o vento aumenta. Na terceira noite não comeram nada. Foi servido um caldo quente, água fervida com ossos, que beberam com sofreguidão, protegendo os pratos de lata da chuva imperturbável. Fizeram alto de quatro horas. Dois homens não levantaram na hora de partir. Garibaldi sacudiu-os com energia, mas Crescêncio segurou o braço do italiano. Podia deixá-los. Estavam mortos. O frio já fizera as primeiras baixas da batalha e tinham ainda cinco dias pela frente. O destino era o sonho acalentado por Domingos de Almeida e Rossetti, o ponto luminoso no fim do horrendo caminho – para Antunes e seus devaneios as fauces sanguinolentas do longo e tortuoso monstro que palmilhavam com suicida paciência. Rumavam para tomar um porto do mar. A república continuava estrangulada. O porto de Laguna era miragem distante. Agora, mil cavaleiros e dois canhões marcham sob vento e chuva para sitiar, submeter e ocupar São José do Norte. É preciso esse porto: é a vida. Comentários ao excerto do capítulo 31 de Os varões assinalados O título do romance descende da estirpe camoniana, em referência ao poema Os lusíadas. Narra o mais citado movimento revolucionário promovido e sustentado pelos gaúchos no século 19 (1835-1945): a Revolução Farroupilha, também conhecido como Guerra dos Farrapos. Apesar de movido contra o governo central brasileiro, foi por esse movimento, ao ser a paz assinada com o império, que o Rio Grande do Sul se integrou definitivamente ao Brasil, para sempre. Ruas narra o deslocamento de guerreiros, na tentativa de dominar um porto, já que Porto Alegre e Rio Grande não estavam com os “republicanos” em luta contra o império do Brasil. O fragmento transcrito mostra homens decididos no enfrentamento contra a natureza quase insuportável, em território quase desabitado. Cita nomes tidos como líderes do movimento político-guerreiro. Expõe origens e inclemências do vento hibernal mais famoso no estado. No confronto entre o minuano e a natureza humana, só os mais capazes o suportam. Esses homens calados aparecem no trecho como “angicos e cambarás”, árvores de madeiras resistentes e troncos fartos. O minuano aparece como uma frente inimiga, mas, de certo, não é o inimigo que a guerra indigita, porque esse é constituído de outros homens, que devem ser, parece, de condições análogas. Resistir, não desistir são as inscrições que o texto carrega na frente do grupo dos “mil homens” focalizados no excerto. Os varões assinalados, pelo tema, participa da sequência de narrativas longas sul-rio-grandenses que tematizam a Revolução Farroupilha. Antecederam-no, p. ex., A divina pastora (1847) e O corsário (Caldre e Fião, 1849), Farrapo (Rodrigues, 1935), A prole do corvo (Assis Brasil, 1978). Sucedeu-o, p. ex., A Guerra dos Farrapos (Cheuiche, 2003). 464 CHARLES KIEFER Charles Kiefer nasceu em Três de Maio (RS), em 1958. Vive em Porto Alegre. É professor, doutor em Letras e autor de romances, novelas, contos, poemas e ensaios. Parte da produção literária dele: Valsa para Bruno Stein (1986), A face do abismo (1988), Quem faz gemer a terra (1991), O elo perdido (1996) e O guardião da floresta (1997). Algumas narrativas dele foram adaptadas ao teatro e ao cinema, como Quem faz gemer a terra (teatro, 2002) e A valsa de Bruno Stein (cinema, 2007). Quem faz gemer a terra (excerto) Uma história tem começo? A Bíblia sei que tem, mas começa no começo dos começos. Eu não tenho tanta pretensão, bazófia é pra pascácio, a mim me basta a história miúda, o rés do chão. O ar alto é pra montanha, eu sou parte da canhada. Você, no meu lugar, contava o fim no início? O início no fim? Começava a história com o fio da foice, o baque surdo da lâmina no pescoço do soldado, a correria dos colonos pela praça, as bombas de gás e as pedradas? Ou vinha de longe, sestroso, e principiava pelo meu grito, dor de bicho nenhum conhecida, que eles já nascem plantados sobre as quatro patas, listos pro caminhar e viver? E então? Vai querer a história reta, redonda, ou em vaivém? Desde eu-menino sou bom nisso, tido e havido por loroteiro, língua-de-trapo, mentiroso e outras pechas, só por nunca eu levar o arado pela mesma verga. Minto? Não, mentir não minto, eu melhoro a verdade, ajeito ela, faço igual o barbeiro, corto as pontas. Mentira era dizer que matei o soldado sem querer, que essa minha mão direita levantou a foice sem comando, e outra mentira o alardear que estava o acontecido em mim planeado, com querência e fanfarrice. Se um sempre fazia tudo nos rompantes da vontade, a vida era um guerrear sem fim; se sempre se podia fazer as coisas pensadas, desgraceira não havia. A hora da raiva é a da cegueira; só o tempo faz a clarez. Sim, eu levantei a foice, não nego, a foice que eu tinha usado tantas vezes para fazer roça nova, e o sol bateu no aço, o sol bateu no aço limpo, o sol bateu no sangue. “Corre!”, alguém gritou. E eu corri, desci a lomba e me escondi na prefeitura, com os outros acampados que estavam escapando da guerra na praça. Os soldados cercaram o prédio, ameaçavam invadir pra tirar à força os colonos lá de dentro. Eu me sentei num degrau da escadaria e não consegui segurar os olhos abertos, apesar da zoeira, do medo e do arrependimento. Na viagem até Porto 465 Alegre eu fiquei ouvindo as rodas do ônibus comendo estrada, vendo o caminho dos satélites e a luz das estrelas no céu, como eu fazia com meu avô, na tapera, e com o Pedro, depois, na casa nova. Os outros dormiam e eu assuntava sobre a vida minha de acampado. Ah! Se bastava olhar pra trás e tudo se resolvia! Lembrei de outra noite indormida, cinco anos antes, a última que eu passei na casa construída pelo pai, o Pedro e eu depois da morte de meu avô. Lembrei da tapera, das caçadas, das pescarias, da mania de procurar ouro que deu no fata, dos terços que a gente rezava. As lembranças vinham de cambulhada, feito linha de anzol quando se enrola. Nestes três anos, trancado aqui, tive tempo pra botar ordem em tudo. De primeiro, nem conseguia pensar, olhava pra essa minha mão direita e chorava: eu tinha matado um homem. Depois, fui calmando. Agora, já posso falar. Cada vez que conto a minha história, vejo ela melhor. Contar clareia. E eu, quando conto, me vejo fora de mim: eu não sou eu, sou outro. Gosto do outro que eu me sou. Quem conta é o outro? Eu me sou no que ele conta? Comentários ao excerto de Quem faz gemer a terra O breve romance Quem faz gemer a terra retoma vários aspectos centrais da literatura produzida no Rio Grande do Sul. A construção do texto e a constituição dos personagens, apesar da extensão da narrativa, não configuram texto novelesco, mas romanesco. O título parece ter sido tomado da primeira estrofe do poema O lunar de Sepé. O poema foi dado a conhecer no Cancioneiro guasca (1910) de João Simões Lopes Neto (Pré-modernismo). Esse poema foi coletado da cultura popular gaúcha. Eis a estrofe: “Eram armas de Castela / Que vinham do mar de além; / De Portugal também vinham, / Dizendo, por nosso bem; / Mas quem faz gemer a terra... / Em nome da paz não vem!” Sepé é o nome de um guarani que combateu os possessores armados na luta pela posse das terras sul-rio-grandenses. O lunar citado é marca míticosimbólica de poder e liderança. Quem faz gemer a terra retoma a questão da estrutura fundiária. Vale dizer: focaliza o veio que foi aprofundado durante a vigência do romance de trinta, especialmente com Cyro Martins e Ivan Pedro de Martins. O veio temático é amplo, já que a literatura o tem utilizado de diversas maneias, em várias regiões geográficas brasileiras. Assim, Quem faz gemer a terra rediscute o problema, a partir de fato ocorrido em Porto Alegre, durante manifestações de grupos de sem-terras, em movimento pela reforma agrária. A técnica empregada por Kiefer no romance em análise tinha já sido experienciada por Sinval Medina em Memorial de Santa Cruz (1983), que a introduziu no romance gaúcho. Valeram-se ambos de imaginários relatos de prisioneiros ao gravador de quem o teria ido ouvir na prisão. 466 Bibliografia crítico-teórica e de referência AMORA, Antônio S. O Romantismo. São Paulo: Cultrix, 1967. ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. _. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. _. O Pré-modernismo. São Paulo: Cultrix, 1967. CESAR, Guilhermino. 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