argumentação jurídica nas catilinárias, de cícero: as orações

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argumentação jurídica nas catilinárias, de cícero: as orações
ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA NAS CATILINÁRIAS, DE CÍCERO: AS
ORAÇÕES CONDICIONAIS COMO FUNDAMENTO PARA O DISCURSO DE
ACUSAÇÃO
Juliana Carla Barbieri STEFFLER (UNESPAR)
Introdução
O trabalho apresenta uma análise funcionalista das construções condicionais nas
Catilinárias, de Cícero, um dos mais representativos discursos de acusação, cuja
influência tem atravessado os séculos, dados seus efeitos argumentativos/persuasivos.
Dividida em quatro partes ou orationes, a obra se define por apresentar objetivos
bastante específicos em cada uma delas: na primeira, apresenta os planos nefastos de
Catilina que, após ser derrotado nas eleições, se dispunha não apenas a implantar a
anarquia, como também a incendiar a cidade de Roma. Na segunda, Cícero manifesta-se
em público, jubiloso por ter conseguido, por meio de seu discurso, a retirada do inimigo
e de seus comparsas. Na terceira, reclama o apoio popular afirmando que, embora tenha
alcançado seu objetivo, a situação ainda inspira temor. Finalmente, na última oratio, o
orador procura convencer o público a deliberar pela sentença mais severa, a morte aos
acusados.
A forma como a obra se organiza sugere que há uma estratégia argumentativa
própria para cada uma delas, o que, por extensão, implicaria diferentes
condicionamentos para as cláusulas condicionais que, aliás, apresentam significativo
número de ocorrências em relação às demais construções de natureza adverbial.
Tal fato suscitou a investigação das relações sintáticas, semânticas e pragmáticas
que se estabelecem de modo a fundamentar um discurso argumentativo dotado de alto
grau de convencimento/persuasão.
Para tanto, a pesquisa tomou como referencial a tradução de D’Azevedo (1953)
em razão de sua fidelidade ao léxico e à sintaxe do original latino. O aparato teórico
fundamenta-se nas considerações de Perelman (1999), Dik (1989;1997), Neves (2000),
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em conjunto, permite uma análise exaustiva do fenômeno em questão, ao mesmo tempo
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Hirata-Vale (2001), Perelman e Olbrechts-Titeca (2005), tendo em vista que, tomado
em que revela uma importante estratégia argumentativa/persuasiva empregada pelo
orador romano.
1.1. Fundamentação teórica
As condicionais podem ser entendidas, segundo Neves (2000), como
construções que se apoiam, basicamente, numa hipótese. As antepostas, em particular,
constituem a maioria das ocorrências no português brasileiro, tanto na modalidade
escrita quanto na falada, e apresentam, em geral, informações dadas ou partilhadas.
Além disso, trazem consigo a função de tópico discursivo, pois segundo a autora, “são
verdadeiros pontos de apoio para a oração nuclear, condicionada” (NEVES, 2000, p.
829). Distinguem-se em: factuais, contrafactuais e eventuais.
Em outras palavras, o primeiro grupo, o das factuais, codifica a base necessária
para que um determinado fato possa se realizar ou não. Ademais, justamente por
apresentar os fatos como verificados, podem vir acompanhadas de um elemento
conclusivo/resumidor, como ocorre com o fragmento a seguir, extraído da I Catilinária:
“Sai de Roma, Catilina. Liberta o Estado dessas apreensões (...) Não
dás conta do silêncio dos presentes? Se estão calados, é porque
consentem.” (D’azevedo, 1953, p. 12)
O segundo grupo, por conseguinte, também cofidifica, via de regra, informações
verificadas, mas à noção de conclusão pode suceder a de contraste, ou ainda, a de
alternância de polaridade. Assim, a oração condicional afirmativa pode implicar a
nuclear negativa, bem como o inverso, conforme o excerto a seguir:
“Um homem, pois (a dizer o que sinto, romanos), tão acre, tão pronto,
tão atrevido, tão sagaz, tão esperto para o mal, tão diligente em
distúrbios, se não o obrigassem a sair das traições caseiras para o
bélico latrocínio, mal poderia impedir que viesse sobre vós tão
horrível tempestade.” (D’azevedo, 1953, p. 43)
Por fim, as eventuais, segundo Neves (2000), são construções relativas a
determinado evento cuja realização depende da condição por si. O grupo diz respeito às
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hipóteses em sentido estrito:
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orações que, antes de representarem um fato verificável ou não, indicam possibilidades,
“Se os meus escravos me temessem da maneira que todos os teus
concidadãos te receiam, eu, por Hércules!, sentir-me-ia compelido a
deixar a minha casa; e tu, a esta cidade, não pensas que é teu dever
abandoná-la? (D’azevedo, 1953, p. 14)
Essa classificação estanque, no entanto, apresenta-se deveras limitada quando
aplicada a ocorrências reais e, com o corpus em análise, não é diferente. Os exemplos
supracitados constituem casos clássicos, prototípicos, mas, ao mesmo tempo, indicam a
minoria. Ocorre, pois, que as orações condicionais em estudo estabelecem relações de
sentido que se interceptam, se esbarram delineando um fluxo de gradação entre a
codificação de enunciados que veiculam a possibilidade, a hipótese absoluta até aqueles
facilmente verificáveis.
A par dessas considerações, Hirata-Vale (2001) sugere que essa classificação
não seja tomada de forma estanque, mas como um continuum que vai do polo positivo
para o negativo, ou, em outras palavras, do maior para o menor grau de hipoteticidade.
Assim, enquanto as orações eventuais estariam no ponto inicial, as factuais e
contrafactuais sinalizariam o outro extremo, conforme a figura abaixo:
Figura 1: graus de hipoteticidade e classificação tradicional
A esse respeito, Dik (1989;1997) explica que as cláusulas condicionais podem
funcionar como satélites e atuar no nível da predicação, da proposição e/ou do ato-defala. Tal fato indica, por um lado, diferentes graus de interdependência sintáticosemântica e, por outro, certa aproximação com as considerações de Hirata-Vale (2001),
pois que se reconhecem diferentes relações estabelecidas entre a condicional e a
principal de modo a estabelecer conexões mais ou menos hipotéticas: enquanto as que
atuam ao nível do ato-de-fala tendem a apresentar maior grau de hipótese, as atuantes na
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camada da proposição e da predicação, respectivamente, indicam o contrário.
Figura 2: Graus de hipoteticidade e camadas de Dik (1989; 1997)
As relações estabelecidas entre a classificação das condicionais proposta por
Neves (2000) e o continuum sugerido por Hirata-Vale (2001), bem como entre este e as
camadas apresentadas por Dik (1989; 1997) subsidiam e suscitam o estudo dos
condicionamentos dessas orações no que diz respeito à teoria da argumentação de
Perelman e Olbrechets-Titeca (2005), segundo a qual as condicionais podem codificar
argumentos de reciprocidade e/ou presunção.
Em termos gerais, os autores explicam que os argumentos de reciprocidade
constituem um mecanismo por meio do qual o orador aplica o mesmo tratamento a duas
situações correspondentes, simétricas (quando a mesma relação de sentido pode ser
conversa ou invertida). É o que ocorre, por exemplo, no trecho a seguir extraído da II
Catilinária:
“Desta guerra, romanos, me declaro por general; sobre mim tomo a
raiva de homens perdidos; o que de algum modo se pode curar, o
curarei; o que se houver de cortar, não consentirei se difunda em
prejuízo da cidade. Portanto, ou saiam ou se aquietem. Se persistem na
cidade com a mesma intenção, bem podem esperar o que merecem”
(D’azevedo, 1953, p. 32).
A argumentação via presunção, por conseguinte, está, normalmente, relacionada
ao que se toma como referência do que é normal, comum, recorrente. Os autores
explicam que, no âmbito da argumentação jurídica de acusação, deslocam-se as
presunções relativas ao comportamento, normal e esperado a um determinado grupo,
em direção àqueles que sempre se portaram como o réu, conforme exemplificação
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“E se me visse, ainda que injustamente, tão gravemente suspeito e
detestado pelos meus concidadãos, preferiria ficar privado da sua vista
a ser alvo do olhar hostil de toda a gente (...). Se teus pais te temessem
e odiassem e tu não os pudesses apaziguar de modo nenhum, retirar-
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extraída da I Catilinária:
te-ias para, penso eu, do seu olhar para outra parte qualquer”
(D’azevedo, 1953, p. 21).
Assim, os pressupostos teóricos não apenas fundamentam a análise das
ocorrências do corpus selecionado como se complementam à medida que se relacionam
entre si. Ademais, tal fato permite a identificação das estratégias argumentativas
empregadas no texto por meio das construções condicionais.
1.2. Metodologia
Após o levantamento do corpus, bem como das fontes supracitadas, as
condicionais foram analisadas mediante os seguintes critérios, a partir das relações que
estabelecem com seu escopo de incidência:

A classificação proposta por Neves (2000) para as condicionais: factuais,
contrafactuais e eventuais;

Os diferentes graus de hipoteticidade (HIRATA-VALE, 2001): do mais para
o menos hipotético;

A posição da condicional e, por extensão, seu estatuto informacional:
anteposta/dada, posposta/nova;

As diferentes camadas (DIK, 1989; 1997) nas quais as condicionais podem
atuar: atos-de-fala, proposição e predicação;

Os argumentos apresentados por Perelman (1999) e Olbrechts-Tyteca (2005):
argumentos recíprocos e argumentos via presunção.
1.3. Resultados
Primeiramente, a análise do corpus apresentou significativa predominância das
condicionais em relação às demais construções de natureza adverbial, o que suscitou a
investigação desse tipo de relação sintático-semântica na construção do discurso, bem
Condicionais / Total de ocorrências
20 / 57
25 / 48
09 / 49
17 / 43
71 / 197
Percentual
35%
52%
18%
40%
35%
Página
Catilinárias
1ª
2ª
3ª
4ª
Total
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como do teor argumentativo/persuasivo nas Catilinárias, de Cícero.
Quadro 1: Ocorrências das condicionais em relação ao total de cláusulas adverbiais
Num segundo momento, analisou-se as ocorrências dessas construções em
relação à classificação apresentada por Neves (2000). A maioria (45%) situa-se no
âmbito da factualidade, seguida pelo grupo das eventuais (40%) e das contrafactuais
(15%), respectivamente1.
Dos 4 (quatro) discursos que compõem a obra, apenas o último não apresenta a
maioria em factuais. Os três primeiros discorrem, de fato, sobre eventos verificáveis,
comprováveis, uma vez que tratam da acusação contra Calitina, bem como das
providências tomadas em função dos crimes cometidos. O último, no entanto, objetiva
influenciar, convencer o interlocutor a tomar uma decisão futura, a optar por uma dentre
duas opções de represália: a mais rigorosa, que previa a execução. Por isso, o maior
número de orações eventuais, ou daquelas cujos traços as aproximam desse grupo.
O seguinte quadro ilustra os dados analisados:
Catilinárias / ocorrências
1ª (20)
2ª (25)
3ª (09)
4ª (17)
Total
Factuais Contrafactuais Eventuais
11 (55%)
01 (5%)
08 (40%)
12 (50%)
03 (15%)
10 (25%)
05 (55%)
01 (10%)
3 (25%)
05 (30%)
04 (25%)
11 (45%)
33 (45%)
09 (15%)
29 (40%)
Quadro 2: Relações sintático-semânticas (número de ocorrências e percentual correspondente)
Os primeiros resultados, por conseguinte, determinam os sucedâneos: 60%
apresentam baixo grau de hipoteticidade, já que codificam orações factuais e
contrafactuais. Tal fato confirma a preferência do orador por empregar contruções
condicionais a partir de fatos comprováveis, o que, aliás, aumenta o valor
Conforme posicionamento apresentada na fundamental teórica deste trabalho, toma-se a classificação de
Neves (200) como pontos prototípicos. Os resultados, assim, abrangem não apenas os casos clássicos,
mas aqueles que deles se aproximam.
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argumentativo/persuasivo, conforme indicação da figura a seguir:
Figura 3: Graus de hipoteticidade
O número de condicionais relacionadas à factualidade e à contrafactualidade,
além do baixo grau de hipoteticidade verificado, implica também o condicionamento
das orações no que diz respeito às camadas em que podem atuar. Os resultados, no
geral, indicam que quanto menos hipotética for a oração condicional mais elas atuarão
nas camadas do predicado e da proposição. Ao mesmo tempo, a eventualidade aliada às
menos hipotéticas codificam atos-de-fala, conforme o quadro 3:
Catilinárias Predicado Proposição Ato-de-fala
1ª
0 (0%)
11 (55%)
9 (45%)
2ª
5 (20%)
11 (45%)
9 (35%)
3ª
1 (10%)
5 (55%)
3 (35%)
4ª
4 (25%)
7 (40%)
6 (35%)
Total
10 (15%) 34 (50%) 27 (35%)
Quadro 3: Camada (Dik, 1989; 1997) na qual as ocorrências atuam
Quanto à posição e ao estatuto informacional, as ocorrências confirmam a
preferência, já apontada por Neves (2000) e Hirata-Vale (2001), pela anteposição e, por
conseguinte, pela informação dada, ou compartilhada para a noção condicional. Os
casos de posposição sinalizam, por vezes, um adendo, um comentário, conforme excerto
da II Catilinária:
“Mas, ainda há, romanos, alguns que dizem que Catilina fora por mim
desterrado; os que semelhante coisa dizem, os desterraria eu, se o
pudesse conseguir com minhas palavras”. (D’azevedo, 1953, p. 15)
Catilina e seus cúmplices) não apresentam posposição. Tal fato sugere, por um lado, um
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traço característico num momento em que o objetivo do orador está voltado para a
Página
As ocorrências do terceiro discurso (sobre as medidas tomadas acerca de
explicação,
apresentação
dos
fatos;
por
outro,
indica
a
importância
do
adendo/comentário quando a intenção é convencer, persuadir.
Observe-se o quadro a seguir:
Catilinárias
1ª
2ª
3ª
4ª
Anteposta / inf. dada
16 (75%)
17 (65%)
9 (100%)
18 (90%)
Posposta / inf. nova
5 (25%)
4 (35%)
0 (0%)
2 (10%)
Quadro 4: Posição e estatuto informacional
No que diz respeito ao argumento codificado, do total de 71 ocorrências, foram
encontradas apenas 2 (I e II Catilinárias) condicionais (3%), codificando argumentos
recíprocos; as presunções, ao contrário, correspondem a 31 orações (45%) e tendem a
codificar proposições e atos-de-fala, respectivamente, o que também indica o emprego
desses argumentos por meio de orações com grau mais alto de hipoteticidade.
Considerações finais
A pesquisa aponta, a priori, para uma perspectiva bifronte: por um lado, os
empregos das orações condicionais indicam a existência de traços característicos em
cada uma das Catilinárias em função das intenções comunicativas nelas subjacentes: (I:
indignação; II: tom irônico e consolidação de seu favorecimento; III: esclarecimento
sobre as medidas tomadas; IV: adesão pela sentença mais rigorosa) que norteiam e
funcionam como importante força motriz para o processo de argumentação/persuasão;
por outro, esses traços apresentam estreita relação entre si num movimento de
codeterminação (orações eventuais > alto grau de hipoteticidade > nível da proposição /
ato-de-fala > anteposição / informação dada ou compartilhada > argumento de
pressuposição, por exemplo).
A maioria encontra-se, de modo particular, no âmbito da factualidade e da
eventualidade, enquanto as contrafactuais representam um número menor de
ocorrências. Ademais, embora funcionem como pontos prototípicos para a análise das
Página
de forma estanque, mas num continuum, confome Hirata-Vale (2001).
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condicionais, sua classificação em factuais, contrafactuais e eventuais não se evidencia
As cláusulas factuais e contrafactuais atuam no nível da proposição e da
predicação; ao passo que as eventuais também o fazem no nível da proposição, mas há
certa tendência para que ocorram numa camada superior, nos atos-de-fala. Tal fato
sugere que graus mais altos de hipoteticidade parecem associar-se ao uso do argumento
via pressuposição como recurso argumentativo.
A análise evidenciou uma das principais estratégias empregadas no corpus em
questão: o uso das condicionais (estejam elas mais próximas das factuais/contrafactuais,
ou das eventuais) codificando, em grande parte, conteúdos proposicionais e atos-de-fala
que, por sua vez, se convertem em argumentos de pressuposição.
Referências
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Cícero contra Catilina anotados e comentados. Ed: Saraiva, São Paulo, 1953.
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HIRATA-VALE, Flávia. Articulação de orações no português escrito do Brasil: as
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PERELMAN, Chaim; Olbrechts-Tyteca, Lucie. Tratado da argumentação: a nova
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