Edith Piaf completo

Transcrição

Edith Piaf completo
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Instituto de Psicologia
Disciplina: Tópicos Especiais em Psicometria E – Método
Semiológico em Pesquisa Qualitativa Aplicado às Toxicomanias
Professor Victor Eduardo Silva Bento
Edith
Piaf:
um
sofrimento
melancólico transformado em arte de
cantar a dor ou uma paixão tóxica?
Uma reflexão a partir do filme “Piaf - Um Hino ao
Amor”.
Eduarda Naidel Barboza e Barbosa DRE: 1073781170
Gabriela Pires da Silva DRE: 109078514
Junho 2011
Sumário
Edith Piaf: um sofrimento melancólico transformado em arte de cantar a dor ou uma
paixão tóxica?
INTRODUÇÃO ______________________________________________________ 2
METODOLOGIA ___________________________________________________ 2-3
UMA ANÁLISE INTRODUTÓRIA DA TEORIA DA PAIXÃO TÓXICA ____ 3-4
RESUMO DO FILME _______________________________________________ 5-8
CONSIDERAÇÕES ACERCA DO FILME _____________________________ 9-11
1. Teria Marcel o papel de completar uma falta de Piaf?
2. Teriam chegado a ocupar aquela perda inicial?
3. Seria a música de Piaf uma maneira de fugir de um sofrimento
melancólico?
CONCLUSÃO ____________________________________________________ 11-14
BIBLIOGRAFIA ____________________________________________________ 15
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INTRODUÇÃO
Como o título indica, o objetivo do presente trabalho é, através do filme Piaf Um Hino ao Amor, fazer uma análise da vida e carreira de uma das maiores cantoras
francesas de todos os tempos, Edith Piaf, segundo as teorias da psicologia da
toxicomania vistas em aula e discutidas através da bibliografia indicada, verificando se
a cantora transformou seu sofrimento melancólico em arte ao cantar ou se seria então
uma paixão tóxica. A melancolia é vista como algo patológico, apesar de todos nós já
termos passado por ela algum dia, pois já passamos por momentos de perda, porém ao
não dar-se uma elaboração dessa perda, essa melancolia permanece podendo chegar a
desencadear uma depressão. Na paixão, o casal se torna uno, há uma fusão entre os dois,
podendo ser definida como “uma loucura curta” e na paixão tóxica há uma dependência
em um sentido mais geral (incluindo desde substâncias químicas à “paixão amorosa”).
A motivação para o seguinte trabalho surgiu a partir da disciplina “Tópicos
Especiais em Psicometria E”, cursada no Instituto de Psicologia da UFRJ, com o
professor doutor Victor Eduardo Silva Bento.
Durante as aulas desta matéria, Bento apresentou os conteúdos dos seus
trabalhos relacionados ao tema da “paixão tóxica” como uma forma de toxicomania. A
partir dos textos indicados, e das idéias e questionamentos feitas acerca deles, as autoras
do trabalho pensaram então na vida da ilustre Edith Piaf, que teve grande parte da sua
história retratada em um filme lançado recentemente.
A partir do filme, e de algumas críticas feitas à sua música e trajetória de vida,
propôs-se uma associação desse material com as teorias apresentadas pelo professor em
sala de aula, visando responder ao questionamento já exposto.
METODOLOGIA
O trabalho foi desenvolvido baseando-se no filme “Piaf - Um Hino ao Amor”,
lançado em 2007. Este filme conta a história da cantora francesa Edith Piaf desde a sua
infância até os seus últimos momentos em vida. Além de utilizar o filme como recurso,
também foi buscada a biografia da cantora em diversas páginas da internet relacionadas
à ela, além de artigos indicados no decorrer da disciplina, buscados especialmente para
o desenvolvimento da presente pesquisa. No desenrolar do trabalho, faremos uma
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análise de diversos pontos envolvendo as questões mais importantes da trajetória da
cantora, mencionando a história dessa mulher sofrida que saiu de um cenário de extrema
pobreza e conflitos familiares para o glamour e reconhecimento profissional. Com uma
vida pessoal conturbada, muitos amantes e decepções amorosas, Edith foi uma das
artistas que melhor soube cantar o amor; e são essas as questões que serão abordadas
mais adiante.
UMA ANÁLISE INTRODUTÓRIA DA TEORIA DA PAIXÃO TÓXICA
Uma das maiores queixas e provocadores de angústia nas mulheres é o amor. Na
clínica, muitas se queixam da falta e do excesso dele, da impossibilidade de
comunicação entre o casal e dos casos onde há uma separação entre as partes, sendo esta
última com um efeito catastrófico para a mulher (LIGEIRO & BARROS, 2008). Muitas
vezes o amor é confundido com a paixão, o que pode até ser explicado devido a
etimologia da palavra: desde Aristóteles, “paixão associa-se à “sofrer uma ação” ou
“sofrer passivamente uma ação” e “pathos” seria "sofrimento", sendo assim, essas duas
palavras seriam consideradas como sinônimos e estariam ligados a um sentido de sofrer
uma ação dolorosa (BENTO, 2008).
O medo de perder o amor, para a menina, segundo Freud, equivale ao complexo
de castração sofrido pelo menino ao dar-se conta da diferença sexual. Ela deposita no
amor a expectativa de resolução das questões do seu ser, chegando, muitas vezes, a se
colocar como a mulher de outro para assim conseguir obter um lugar de destaque. Essa
é uma das razões pelas quais as mulheres dão maior importância ao amor do que os
homens, nota-se que elas associam a sua feminilidade ao relacionamento com o homem
e a necessidade de ser amada por ele, e havendo então um abandono ou uma perda desse
amor, há também uma perda de si mesma, na medida em que o amor a identifica como
mulher (LIGEIRO & BARROS, 2008). A superioridade masculina faz com que a
mulher sinta-se protegida, segura e necessitada de atenção. A lógica da toxina do amor é
a mulher ser a "louca" e o homem ser seu porto seguro, aquele à quem ela irá recorrer
para ser cuidada.
O desejo do Outro é algo que se relaciona à angústia da mulher, pois esta não
sabe o que o Outro quer e/ou espera dela. Ela sabe que o Outro tem uma falta, mas não
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sabe preenchê-la (LIGEIRO & BARROS, 2008). Há uma idealização do outro, mas na
verdade, não se sabe ao certo quem ele é e o que ele deseja.
Para a mulher, o desejo do Outro é o meio para que seu gozo tenha
um objeto, digamos, conveniente. Sua angústia se dá apenas diante
do desejo do Outro, que, afinal de contas, ela não sabe muito bem o
que encobre. Para ir mais longe em minhas formulações, direi que,
no reino do homem, há sempre a presença de alguma impostura.
No da mulher, se existe algo correspondente a isso, trata-se de uma
farsa (...) (LIGEIRO & BARROS apud LACAN, 1962-63: 21011).
Ao escolher um objeto exclusivo, o sujeito começa a amar o outro de tal maneira
a abandonar a si próprio. Há uma relação de submissão e extrema devoção e obediência
ao ser amado, caracterizando a paixão amorosa (BENTO, 2007). Qualquer investimento
libidinal no Outro é, na verdade, em mim, pois eu sou o Outro que é uma projeção de
mim. Na paixão há apenas a projeção, porém no amor, além dessa projeção, há o
reconhecimento de diferenças.
O artigo de Bento (2007), busca fazer uma relação de semelhança entre o
conceito de paixão e a toxicomania para se chegar a concepção de "paixão tóxica", esta
tendo como figura comum o excesso de narcisismo auto-erótico. Esse narcisismo autoerótico é aquele onde o corpo é visto como pedaços de áreas erógenas e o prazer é
buscado em si mesmo. Ele é a função psíquica comum na base das paixões tóxicas e das
sexualidades adictivas como um todo. Entendemos como "paixão tóxica" as
dependências de um modo em geral (de substâncias químicas, álcool, sexo, etc) e
"paixão amorosa tóxica" como uma dependência específica quando se dá o investimento
afetivo de uma pessoa em outra, de maneira excessiva e obsessiva. A toxicomania pode
se dar com ou sem substância.
Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, toxicomania diz respeito
a "Hábitos mórbidos de absorver doses crescentes de substâncias tóxicas ou
estupefacientes por amor às sensações anômalas que eles produzem (éter, morfina,
cocaína, ópio)". Nota-se que Freud não propõe uma noção geral desse conceito, mas nos
oferece algumas referências a esses "hábitos".
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RESUMO DO FILME
“Piaf - Um Hino ao Amor” é um filme francês, lançado em 2007 e dirigido por
Olivier Dahan. Este drama conta a história de Edith Piaf, uma das maiores artistas
francesas do século XX, que mostrava claramente nas músicas que cantava, sua trágica
história de vida.
A menina Edith Giovanna Gassion nasceu no dia 19 de dezembro de 1915, em
Belleville, um bairro situado em Paris. De acordo com o filme, seus pais eram artistas
de rua. A mãe, Annetta Giovanna Maillard, cantava na cidade tentando ganhar uns
“trocados” para sobreviver, assim como seu pai, Louis-Alphonse Gassion, que era
acrobata. Edith vivia com a mãe, até certo dia em que Annetta resolveu tentar seguir sua
carreira de cantora em outra cidade e deixou sua filha aos cuidados da avó materna. A
criança passou cerca de 18 meses com a avó, que a deixava em um pequeno quarto e
não cuidava adequadamente da menina, que vivia em condições de higiene e saúde
deploráveis. Notando a situação em que se encontrava a filha, o pai de Edith pegou-a de
volta e levou-a para morar com a avó paterna, que era dona de um bordel na Normandia.
A avó não se agradou muito com a idéia da menina de três anos ir morar com ela, mas
Edith logo foi “adotada” pelas prostitutas que lá trabalhavam e estas passaram a cuidar
da criança. É importante citar que a avó não demonstrava afeto por Edith, ao contrário
das prostitutas, que eram carinhosas e davam muita atenção à menina, principalmente
uma delas, conhecida como Titine, que tratava a garota como se fosse sua própria filha.
O filme retrata também o momento em que Edith fica supostamente cega. A
menina perde a visão por cerca de quatro anos, acometida por uma inflamação na
córnea, chamada pelo médico de queratite. Deve-se dizer que uma das prostitutas levoua para orar no túmulo de Santa Teresinha, e pouco tempo depois a menina voltou a
enxergar. Acredita-se que Edith atribuiu essa cura repentina a um milagre da santa e por
isso passou a ser devota durante o resto de sua vida. No ano de 1922, a criança foi
levada do bordel pelo pai, e isso trouxe grande dor, tanto para a garota quanto para
Titine (a prostituta), que tinham construído laços muitos fortes. A partir de então, Edith
passa a acompanhar seu pai nas viagens que ele fazia com o circo.
Uma determinada cena do filme mostra Louis-Alphonse (pai de Edith) se
desentendendo com o dono do circo e por isso ele resolve então sair da companhia. Para
ganhar dinheiro faz uma apresentação na rua e neste dia Edith canta pela primeira vez
em público ganhando muitos aplausos daqueles que assistiam.
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Com 15 anos, a jovem deixa seu pai autoritário e passa a viver em um quarto de
hotel. Neste período ela conhece Simone, e elas se tornam grandes amigas. Enquanto
Edith cantava nas ruas do subúrbio de Paris, Simone recolhia o dinheiro que era dado
por aqueles que passavam e gostavam da música. O filme não retrata os acontecimentos
em uma ordem cronológica, mas percebe-se no desenrolar da trama que a jovem Edith
teve uma filha, que se chamava Marcelle. Edith negligenciava muito a filha, assim como
sua mãe fazia com ela, já que a moça também saia para cantar nas ruas. O pai da criança
mostrava-se muito cuidadoso com a menina e muitas vezes até brigava com a mãe para
que fosse mais zelosa. Porém, a menina é acometida por uma meningite e falece com
cerca de dois anos de idade.
A jovem Edith foi uma mulher que teve relacionamentos amorosos conturbados,
além disso, bebia muito e quase diariamente. Depois de romper com o pai de sua filha,
Edith namora um cafetão chamado Albert que, para que ela pudesse morar no hotel e
não precisasse se prostituir, cobrava uma comissão sobre o dinheiro que ela ganhava
cantando nas ruas. O homem era explorador, grosseiro e muitas vezes mostrava-se
violento.
Em 1935, Edith foi surpreendida enquanto cantava na rua, por um homem que se
chamava Louis Leplée. Ele era dono de um conhecido cabaré parisiense, e se encantou
imediatamente pela voz da moça. Pode-se dizer então, que Louis iniciou a jovem na
carreira de cantora, além de batizá-la como "la Môme Piaf", uma expressão francesa
que significa "pequeno pardal" ou "pardalzinho" (devido a sua baixa estatura). Este
homem incentivou Piaf a ensaiar cada vez mais e ajudou a jovem a aprender o modo
que deveria se portar nos palcos e até como se vestir (vindo daí a sua marca registrada:
os vestidos pretos em suas apresentações). A estréia de Piaf no cabaré foi um sucesso, e
através de Louis, a garota conheceu pessoas que foram importantes ao longo de sua
carreira e de sua vida pessoal como os compositores Marguerite Monnot e Raymond
Asso.
Cerca de um ano depois de Piaf ter sido “descoberta” nas ruas de Paris, a jovem
gravou seu primeiro disco. Neste mesmo ano, seu amigo Leplée é assassinado em casa e
muitas suspeitas recaem sobre Edith. A moça fica arrasada com o acontecimento, e
diante de graves acusações, sua carreira é abalada. Para recuperar a boa imagem ela
retoma contato com Raymond Asso, com quem, mais tarde, ela também viria a se
envolver romanticamente. Raymond passou a ser seu novo mentor e foi ele quem
mudou o nome artístico dela de "La Môme Piaf" para "Edith Piaf". Além disso,
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começou a fazer Piaf trabalhar incessantemente para que se tornasse uma cantora
profissional de Music Hall.
A partir de então, a carreira da artista começa a deslanchar e suas músicas
passam a ser conhecidas internacionalmente. Viaja para diversos países do mundo,
dentre eles os Estados Unidos, onde conhece o grande amor de sua vida, o boxeador
francês Marcel Cerdan. Pouco tempo depois de Piaf e Marcel se conhecerem, o lutador
torna-se campeão mundial de boxe. Logo após a luta, que Piaf foi assistir, ela faz uma
homenagem para ele colocando muitas rosas em um tapete vermelho em que ele
passava, e neste local faz juras de amor eterno a este homem. É interessante destacar
que Piaf diz várias vezes que precisa dele para viver, porém, nunca pediu a ele que
largasse de sua família para viver com ela.
Edith Piaf mostra-se uma mulher com um temperamento forte e explosivo,
decidida, intensa, que se embriaga e faz uso de drogas constantemente. Estas
características são notáveis durante todo o filme, mas principalmente na cena em que
Piaf recebe a notícia de que seu amor, Marcel, morreu em um acidente de avião num
vôo de Paris para os Estados Unidos, onde iria reencontrá-la. Arrebatada por um
sofrimento enlouquecedor devido à perda do seu amado, e também por uma doença
(poliartrite aguda), Edith começa a se aplicar fortes doses de morfina.
Em 1952, Piaf casa-se com o conhecido cantor francês Jacques Pills, que chega a
levá-la a um médico com o interesse de que a esposa seja desintoxicada. Piaf diz ao
médico que desde que Marcel morreu (acontecimento que já fazia cinco anos) ela
utilizava cerca de dez injeções de morfina diariamente e que fazia isso para que seu
corpo se calasse. O próprio médico disse que isso caracterizaria uma dependência, que
poderia se falar de toxicomania. A cantora também diz que deseja se recuperar, diz que
ela vai conseguir. No ano de 1956, Edith se divorcia do cantor francês.
Depois do seu divórcio Piaf teve outros romances e até um novo casamento, que
não é claramente mostrado no filme. Em sua última apresentação, Piaf mostra-se bem
debilitada, com dificuldades para se locomover sozinha. Ela utiliza todas as suas forças
para realizar esse espetáculo, entra no palco amparada por seus amigos e canta "Je Ne
Regrette Rien", música que, segundo ela, retrata exatamente a sua vida. O público
assiste embriagado com tanta beleza, força e dor. Edith cai no palco.
Pouco tempo depois desta última apresentação, no dia 10 de outubro de 1963,
aos 47 anos, com a saúde abalada pelos excessos, pela morfina e todo o sofrimento de
uma vida, morre Edith Piaf. As cenas finais do filme retratam uma cantora com
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aparência de cerca de 80 anos, que deita em sua cama para dormir, e ao perceber que a
morte está chegando, pensa em vários momentos de diferentes fases de sua vida. Chama
pelos amigos, pelo marido e morre com lágrimas nos olhos ao relembrar toda a sua
história.
CONSIDERAÇÕES ACERCA DO FILME
Através de um filme, emoções, realidade, sonhos e questionamentos são
aflorados no público a partir de uma visão particular do diretor. Por mais diferentes e
distantes da nossa realidade, uma história pode muito bem promover uma identificação
por parte da platéia com seus anseios, desejos e vontades inconscientes. Todo o
encadeamento de idéias, imagens e estrutura do filme correspondem a um propósito
cujo significado nem sempre é claro.
No caso de Piaf - Um Hino Ao Amor, a história não segue uma ordem
cronológica, começa então com sua última apresentação para posteriormente mostrar
sua infância e na seqüência dar pinceladas em diferentes etapas de sua vida, mostrando
o quanto as vivências presentes são repetições do passado (STEFFEN, 2009). A partir
disso, alguns questionamentos surgiram:
Teria Marcel o papel de completar uma falta de Piaf?
No texto “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância: considerações
sobre o narcisismo em Freud e sobre a paixão amorosa 'tóxica' a partir de Freud”, o
autor Victor Bento (1994) cita o texto de Assoun (1992; 40-1):
“(...) Têm-se aí a fórmula extremamente paradoxal do amor
em sua dimensão inconsciente; dando ao outro o que ele não
tem (“o phallus), cada um dos membros do casal obtém
(imaginariamente) aquilo que ele supõe detido pelo outro (o
gozo fálico)”
A partir daí percebe-se que o falo passa a ser um símbolo de falta e também de
gozo. Bento faz uma comparação entre “o objeto fálico da paixão” descrito por Assoun
e o “objeto” entre aspas indicado por Julia Kristeva (1983:36). De acordo com Kristeva
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“o falo é compreendido como um “objeto” metafórico que possui o sentido de
completude”. Ele é o símbolo daquilo que falta na mulher, porém, mais do que isso, é a
representação na mulher, do ideal, de algo que seja completo (como a idéia do homem e
da mulher serem um só), não precisando de nada além para satisfazer.
Desta forma, pode-se relacionar o caso de Piaf com a análise feita pelos autores.
Logo após ter iniciado o romance com o boxeador Marcel, Edith fez juras de amor
eterno a esse homem, e a todo o momento falava dele para as pessoas que estavam a sua
volta. Disse inúmeras vezes ao seu amado que para ela nada existiu antes dele, e que ela
precisava dele para conseguir viver. Utilizando-se destes trechos do filme, não se pode
dizer que Marcel dava a Piaf o gozo fálico que ela não possuía? Era um objeto
significante do desejo, visto como algo de fora, mas que representava algo de dentro,
caracterizando um narcisismo secundário.
A partir dessa paixão por Marcel, um homem também solitário, percebe-se uma
compensação: ganhar um amor após perder outro amor, sua filha Marcelle (STEFFEN,
2009). Através do filme, fica perceptível que Marcel foi o grande “amor” da vida de
Edith. Mas poderíamos chamar de amor uma relação onde o Outro tem esse lugar de
tamanho destaque na vida do sujeito? Com a morte de Marcel, Edith começa a fazer
aplicações de morfina para suportar a dor de perder o “homem de sua vida”, aquele do
qual ela necessita para viver. Temos, nesse caso, um exemplo de uma paixão amorosa,
onde ao escolher um objeto exclusivo, o sujeito começa a amar o outro de tal maneira a
abandonar a si próprio. Há uma relação de submissão e extrema devoção e obediência
ao ser amado, caracterizando a paixão amorosa (BENTO, 2007).
Teriam chegado a ocupar aquela perda inicial?
Louis Leepléé, como já foi dito, foi a primeira pessoa a acreditar em seu talento
e a dá-la uma oportunidade, transformando sua vida e começando uma ligação forte
entre os dois, pois naquele mesmo ano ele perdera sua mãe e ela a sua filha. Ela viu um
investimento da parte dele sentindo-se querida e não mais abandonada e rejeitada como
experienciou durante toda a sua vida por sua mãe e pela avó materna que chegava a
dizer que ela era "uma filha de ninguém" (STEFFEN, 2009).
Durante sua estadia no bordel de sua avó paterna, Edith relaciona-se com Titine,
descobrindo, pela primeira vez, a existência de um afeto verdadeiro, uma troca de
investimentos ao invés de apenas perder. Essa condição não teve continuação devido a
sua separação para viajar com o circo de seu pai, essa relação é uma repetição daquela
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com sua mãe, seu pai, suas avós e, posteriormente, é vista em seus vários casamentos.
Não havia uma perspectiva de futuro, uma constância de sentimentos e afetos
(STEFFEN, 2009).
A partir do processo de identificação é que constitui-se o ego e com sua mãe,
podemos falar que houve uma constituição de um objeto de identificação (BENTO,
1994), podemos falar em "identificação melancólica" devido aos maltratos sofridos
quando criança estarem presentes na vida adulta, mas desta vez feitos por ela mesma,
não cuidando de sua saúde. Sua mãe não foi sentida como sua, não podendo libertar-se
de algo que nunca foi seu. Diante de um dos vários simbolismos presentes no filme,
Edith carrega uma cruz, sua melancolia, a qual representa o objeto materno vivenciado
como algo perdido desde sua infância, remetendo-se a uma queixa inicial de sua mãe, de
que Edith seria um peso carregado por ela (assim como se carrega uma cruz)
(STEFFEN, 2009).
Seria a música de Piaf uma maneira de fugir de um sofrimento melancólico?
Com o intuito de demonstrar uma possível ligação entre a música de Edth Piaf, e
uma defesa contra um estado melancólico, utilizou-se o texto “Para uma semiologia
psicanalítica das toxicomanias: adicções e paixões tóxicas no Freud pré-psicanalítico”.
A partir dos estudos de Freud, Bento (2007) fala que através do excesso de narcisismo
auto-erótico, haveria uma certa perda do ego, que estaria ligada a um quadro
melancólico. Uma maneira de se lidar com a perda narcísica é buscar uma elaboração,
seja através do trabalho, em alguma atividade ou simplesmente dar um tempo de tudo o
que consome demais a pessoa, no caso de Piaf, ela mergulhou, cada vez mais, em seu
trabalho, fazendo incessantes apresentações, e viajando por várias cidades e países. Esse
processo permite que a pessoa possa chegar a um estado "saudável", infelizmente não
conseguido pela cantora, que se entregou aos vícios da bebida, drogas e medicamentos.
A toxicomania pode ser caracterizada como uma masturbação, um investimento
em um objeto de substituição, já que se perdeu a satisfação sexual pelo contato com o
objeto da realidade por onde descarga-se a tensão. Segundo Bento (1994), citando
Ingold (1982), a droga aparece para "criar um corpo idealizado" que trará
satisfação/gozo ao mesmo tempo em que ela ameniza a dor da perda desse corpo.
“Abandonado a si mesmo, o masturbador se acostuma, sempre que
acontece alguma coisa que o deprime, a retornar à sua cômoda
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forma de satisfação. O tratamento médico, nesse caso, não pode ter
nenhum outro objetivo que o de levar o neurastênico, que agora
recobrou sua força, de volta ao intercurso normal. Pois a
necessidade sexual, uma vez que tenha sido despertada e satisfeita
por um longo período, não pode mais ser silenciada; pode apenas
ser deslocada por outro caminho” (Freud apud Bento 2007, p.107)
Em toda sua vida, Edith Piaf buscou ser amada, reconhecida e aplaudida por sua
arte. Tanto sua vida pessoal, quanto profissional viveram altos e baixos, mas ela
conseguiu criar condições para que suas frustrações e fracassos fossem ponte para uma
superação, muitas vezes em forma de música. Uma mulher de aparência frágil, vinda de
uma família pobre e com uma história de vida difícil, conseguia dar a volta por cima.
Esse fato é percebido quando, ao final do filme, após desistir de sua apresentação,
resolve voltar e canta aquela que considera a música de sua vida: "Je Ne Regrette Rien"
(STEFFEN, 2009).
Para ela o cantar transformou-se de um meio de ganhar a vida para algo que a
mantinha viva. Seu desmaio no palco e sua morte mostram que, em algum momento, a
castração chegou ao seu limite e, fazendo uma analogia com o gozo, a sua morte foi
uma descarga de toda a tensão vivida todos aqueles anos.
CONCLUSÃO
No presente trabalho as autoras buscaram responder à seguinte pergunta: Teria
Edith Piaf transformado seu sofrimento melancólico em arte de cantar a dor ou seria
uma paixão tóxica? Com o intuito de iniciar uma discussão buscou-se fazer uma análise
introdutória da teoria da paixão tóxica. A partir dos textos de Ligeiro e Barros e de
Bento, pôde-se ter uma visão mais ampla da teoria que serviria de base para as análises
posteriores.
Apresentou-se também uma descrição detalhada do filme “Piaf - Um Hino ao
Amor” que foi utilizado pelas autoras como um estudo de caso, e a partir dela a história
de vida da cantora francesa Edith Piaf pôde ser conhecida. Posteriormente foi feita uma
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análise deste filme, à luz da teoria das paixões tóxicas, a partir dos textos indicados e
aulas ministradas pelo professor Victor Bento.
Edith Piaf tem como grande característica profissional contar sua vida através de
sua música, ou seja, cantá-la. Desde o início de carreira, com o então empresário
Raymond Asso, suas músicas retratavam suas dificuldades, seus amores e suas
decepções. Sua vida, com seus altos e baixos, foi escancarada por elas e se tornaram
hinos cantados por todas as mulheres.
Ao seu grande amor, Marcel, dedicou-lhe uma música onde declarava seu amor
eterno, onde o "eu te amo" foi capaz de dizer tudo. Com sua morte, algo faltou a ela. A
paixão que havia se instaurado perde seu objeto (de quem Piaf era dependente,
funcionando como uma droga, um "tóxico") e leva o sujeito a "adicção" de outra
substância, morfina e bebida, para suprir a falta daquele que antes cumpria esse papel
(BENTO, 1994).
"Si un jour, la vie t'arrache à moi,
Se um dia a vida te arrancar de mim
Si tu meurs, que tu sois loin de moi,
Se tu morreres, se estiveres longe de mim
Peu m'importe si tu m'aimes,
Pouco me importa, se tu me amas,
Car moi je mourrais aussi"
Porque eu morrerei também
(Hymne a L'amour)
Ela vivia em pleno gozo ao seu lado, até o momento em que houve uma
separação forçada e aquele que a completava e a satisfazia simplesmente se vai. Somado
a isso, surge a culpa pela morte do seu amado, provocando um choque com tamanha
brutalidade que este se apresenta em seu corpo, como uma reação orgânica (inflamação
nas articulações). Como ela mesma diz no filme, o vício da morfina chega para calar seu
corpo que gritava de dor e de culpa, de amor e saudade. Bento (2007) fala da perda do
ego ao haver um investimento narcísico da paixão, intimamente relacionado a um
quadro melancólico. A perda do objeto (Marcel, assim como tantos outros objetos de
amor: seus pais, Titine, sua filha etc) permitiu uma passagem ao ato que foi a
substituição dele para a droga, com a justificativa de combater os efeitos causados pela
poliartrite aguda, tornando-se um ciclo vicioso.
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Um de seus grandes sucessos em toda sua carreira não teve lugar de destaque no
filme em questão, possivelmente por exaltar o amor da amante pelo seu homem de
forma a ver o mundo cor de rosa, ou seja, de maneira mais suave e delicada, não estando
de acordo com a atmosfera mais pesada do filme. Mas "La Vie em Rose" traz uma nova
filosofia de vida e surge dentro de um contexto pós-guerra. Sua letra é inspiradora e nos
apresenta uma Piaf mais confiante e positiva, mas mesmo assim, depositando no Outro
todo o seu ideal de responsável por sua felicidade. Ingold (1982) citado por Bento
(1994) compara esse drogado com o apaixonado, que por sua vez buscaria também no
outro amado a eliminação de uma falta e, dessa forma, idealizaria seu amor como um
ser completo e perfeito.
Il est entré dans mon coeur
Entrou no meu coração
Une part de bonheur
Um pouco de felicidade
Dont je connais la cause.
Da qual eu conheço a causa
C'est lui pour moi, moi pour lui dans la vie,
É ele para mim, eu para ele
Il me l'a dit, m'a juré pour la vie.
Na vida, ele me disse, jurou pela vida
(La Vie em Rose)
Como já mencionado, considera "Je Ne Regrette Rien" a música que define sua
vida: dificuldades superadas, problemas resolvidos e começar de novo. Nessa música
fala-se de "não arrepender-se de nada e não importar-se mais com o passado", porém
nessa fala fica evidente negação perversa de uma melancolia de base onde existem dois
julgamentos contraditórios no eu: dizer que não se arrepende, querendo dizer que sim,
arrepende-se de tudo. Um recurso de defesa contra a melancolia seria a toxicomania,
onde, como já citado, há a idealização de um Outro para anestesiar a dor de falta deste.
Non! Rien de rien,
Não! Nada de nada
Non! Je ne regrette rien.
Não! Eu não lamento nada
Ni le bien, qu'on m'a fait,
Nem o bem que me fizeram
Ni le mal, tout ça m'est bien égal!
Nem o mal, isso tudo me é igual!
Non! Rien de rien,
Não, nada de nada
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Non! Je ne regrette rien.
Não! Eu não lamento nada...
C'est payé, balayé, oublié,
Está pago, varrido, esquecido
Je m'en fous du passé.
Não me importa o passado!
(Je Ne Regrette Rien)
Sendo assim, podemos pensar a questão da toxicomania como paixão e não
apenas como degenerescência e imoralidade ou somente relevar a substância química.
Vimos, a partir da análise do filme Piaf - Um Hino ao Amor, que pode-se haver uma
relação de dependência sem a substância química, tendo um olhar mais atento àquela
substância interna ao sujeito, pensando numa dependência emocional, seja numa relação
entre "hipnotizador-hipnotizado (questão da transferência)", do filho com os pais ou da
paixão amorosa.
"Se não pudesse mais cantar?
Eu não viveria.
Tem medo da morte?
Menos que da solidão.
Costuma rezar?
Sim, pois acredito no amor.
Se você pudesse dar um conselho a uma mulher, qual seria?
Ame.
E a uma jovem?
Ame.
E a uma criança?
Ame."
(Entrevista realizada ao final do filme)
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BIBLIOGRAFIA
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