Ripe 43 - Instituição Toledo de Ensino

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ISSN 1413-7100
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maio a agosto de 2005
REVISTA DO INSTITUTO
DE PESQUISAS E ESTUDOS
Divisão Jurídica
Esta edição contém produções científicas desenvolvidas
no Centro de Pós-Graduação da ITE – Bauru.
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REVISTA DO INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS (DIVISÃO JURÍDICA)
Faculdade de Direito de Bauru,
Mantida pela Instituição Toledo de Ensino (ITE).
Edição – Nº 43 – maio a agosto de 2005
EDITE – EDITORA DA ITE
Praça 9 de Julho, 1-51 – Vila Falcão – 17050-790 – Bauru – SP – Tel. (14) 3108-5000
CONSELHO EDITORIAL
Carlos Maria Cárcova, Cláudia Aparecida de Toledo Soares Cintra, Flávio Luís de Oliveira, Giselda Maria Fernandes
Novaes Hironaka, Iara de Toledo Fernandes, José Roberto Martins Segalla, Jussara Susi Assis Borges Nasser Ferreira,
Luiz Alberto David Araujo, Luiz Antônio Rizzato Nunes, Luiz Otavio de Oliveira Rocha, Lydia Neves Bastos Telles
Nunes, Maria Isabel Jesus Costa Canellas, Maria Luiza Siqueira De Pretto, Pedro Walter De Pretto, Pietro de Jesús
Lora Alarcón, Roberto Francisco Daniel, Rogelio Barba Alvarez, Thomas Bohrmann.
SUPERVISÃO EDITORIAL
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
COORDENAÇÃO
Bento Barbosa Cintra Neto
Solicita-se permuta
Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos : Divisão Jurídica.
Instituição Toledo de Ensino de Bauru. -- n. 1 (1966) – . Bauru
(SP) : a Instituição, 1966 v.
Quadrimestral
ISSN 1413-7100
1. Direito – periódico I. Instituto de Pesquisas e Estudos. II.
Instituição Toledo de Ensino de Bauru
CDD 340
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos
n. 43 p. 1-583 2005
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ÍNDICE
Apresentação
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
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COLABORAÇÃO DE AUTOR ESTRANGEIRO
Derecho Constitucional e Integración.
Reflexiones en el escenario de América Latina
Pietro de Jesús Lora Alarcón
17
DOUTRINA NACIONAL
Democracia para o século XXI e Poder Judiciário
José Augusto Delgado
33
O Tribunal Penal Internacional: integração ao direito brasileiro e sua importância para a justiça penal internacional
Valerio de Oliveira Mazzuoli
47
Direito Penal e outros ramos do Direito. Interdependência, comunicação, encontros e desencontros. Uma visita holística aos diversos planos do Direito a
partir do Direito Penal
Roberto Luis Luchi Demo
77
A penhora on line: instrumento de efetividade da tutela jurisdicional nas execuções por quantia certa
Vanderlei Ferreira de Lima
105
A penhora de bens imóveis – Alguns apontamentos sobre a atual sistemática, e
os projetos de reforma do Código de Processo Civil
Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior
119
A competência por prerrogativa de função
Rômulo de Andrade Moreira
143
Prorrogação ou modificação da competência absoluta
Gelson Amaro de Souza
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A Carta de Herédia (Regras mínimas para a difusão de informação judicial
em internet)
179
Mário Antônio Lobato de Paiva
INCLUSÃO SOCIAL
DIREITO DAS MINORIAS
Da ausência de vedação à adoção por homossexuais, segundo o ordenamento
jurídico pátrio
Pesquisadora: Paula Tathiana Pinheiro
189
Orientador: Prof. Ms. Doutorando Lucas Pimentel de Oliveira
A inviolabilidade do sigilo de dados e a atuação do fisco
Renato Bernardi
219
PARECER
A integração do mercosul através do imposto do valor agregado. VI Colóquio
Internacional de Direito Tributário
227
Ives Gandra da Silva Martins
NÚCLEO DE PESQUISA DOCENTE
A concepção filosófico-jurídica de liberdade
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
245
NÚCLEOS DE INICIAÇÃO À PESQUISA CIENTÍFICA
NIPEC, PIC E CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO
2.º Congresso Iteano de Iniciação Científica – 09 a 11 de maio de 2005
Ambiência: gestão responsabilidade social (ISSN 1806-745X)
Primeira parte dos projetos de iniciação científica dos acadêmicos pesquisadores do
curso de bacharelado em Direito que compõem o NIPEC (Núcleo de Iniciação à
Pesquisa Científica da Faculdade de Direito de Bauru-ITE), inscritos e aprovados
pela comissão organizadora do congresso. A segunda parte dos trabalhos deverá ser
publicada no próximo número da RIPE.
O sentido da fenomenologia na ciência do Direito
Pesquisadora: Aline Panhozzi
Orientadores: Prof. Ms. Cláudio José Amaral Bahia &
Prof. Ms. Conrado Rodrigues Segalla
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Direitos do consumidor: o princípio da informação e seus resultados
Pesquisadora: Anna Carolina de Miranda
Orientador: Professor Dr. José Luiz Ragazzi
271
A garantia do acesso à justiça na execução penal
Pesquisadora: Ana Carolina De Paula Nobre
Orientador: Professor Ms. Francisco Bento
281
Do cabimento da execução de pré-executividade na ação de execução fiscal
Pesquisador: Assis Moreira Silva Junior
Orientador: Professora Daniela Nunes Veríssimo Gimenes
295
Tribunal penal internacional
Pesquisador: Eduardo Luiz de Oliveira Filho
Orientadora: Professora Dra. Camila Leal Calais
303
A teoria da imprevisão e a revisão judicial dos contratos
Pesquisadora: Jacqueline Machuca
Orientadora: Professora Ms. Dra. Lydia Bastos Telles Nunes
315
Controle dos preços de transferência: aspectos positivos e negativos à integração regional
Pesquisador: Guilherme Henrique Ayub
329
Orientadora: Professora Josiane de Campos S. Giacovoni
A interrupção da gestação na hipótese de anomalia fetal incompatível com a
vida e a exclusão de sua antijuridicidade
Pesquisadora: Litiene Rodrigues de Oliveira
337
Orientador: Professor Ms. Lucas Pimentel
Meios de proteção ambiental preventivos e repressivos
Pesquisadora: Luísa Adélia Brollo Martins
Orientadora: Professora Ms. Daniela Aparecida Rodrigueiro
347
Crime passional
Pesquisadora: Luciana Sabóia Cremonezi
Orientador: Professor Ms. Daniel Pegoraro
361
Recursos trabalhistas
Pesquisadora: Lucélia Marques de Almeida Prado
Orientador: Professor Ms. Fábio Alexandre Coelho
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Direitos humanos e inclusão do idoso
Pesquisadora: Maria Carolina Nogueira Ribeiro
Orientador: Professor Ms. Lister Porto Amaral Franco
387
Contribuição de iluminação pública – CIP: um desvio de finalidade do ato
legislativo
Pesquisadora: Mariana Augusta Mercadante Velloso
393
Orientador: Professor Luiz Nunes Pegoraro
O exercício da cidadania para o combate à improbidade administrativa
Pesquisadora: Mariel Rodrigues de Freitas
Orientador: Professor Ms. Carlos Alberto Rufatto
405
Os meios alternativos para a solução dos conflitos de natureza jurídica em geral
Pesquisadora: Michelle Domingues Albertini
415
Orientador: Professor Ms. José Roberto Martins Segalla
A educação ambiental voltada ao ensino fundamental
Pesquisadora: Sabrina de Oliveira Magalhães
Orientadora: Professora Ms. Rossana Teresa Curioni
423
A prostituição infantil, seus aspectos e a realidade bauruense
Pesquisadora: Olívia Eulália Cenchi
Orientador: Professor Ms. Sílvio Carlos Álvares
427
Responsabilidade civil do médico na cirurgia plástica
Pesquisadora: Priscila Fernanda Xavier
Orientadora: Professora Ms. Magali Ribeiro Collega
439
Oportunidades de trabalho aos portadores de deficiência
Pesquisadora: Renata Figueiredo
Orientador: Professor Ms. Rodrigo Takano
445
A importância histórica da Faculdade de Direito de Bauru e do seu fundador,
Dr. Antônio Eufrásio de Toledo
Pesquisadora: Taís Nader Marta
453
Orientador: Pedro Walter De Pretto
A prescrição penal como causa da impunidade. Críticas e soluções para os
casos de crimes prescritíveis no prazo mínimo
Pesquisador: Tiago Perezin Piffer
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Orientador: Professor Ms. Luis Gabos Alvares
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Conflitos de consumo e seus reflexos nos órgãos de defesa do consumidor
existentes na cidade de Bauru
Pesquisador: Victor Hugo M. R. Canuto
Orientador: Professor Ms. Paulo Henrique Silva Godoy
483
Responsabilidade civil pela guarda de animais
Pesquisador: José Otávio de Almeida Barros
Orientador: Professor Ms. Paulo Afonso Marno Leite
493
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO
Resumos de dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Direito (Área de Concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos), em nível de Mestrado, Instituição Toledo de Ensino
A constitucionalização do direito à jurisdição eficiente
Wilson Roberto Penharbel
503
Tráfico internacional de entorpecentes. Competência exclusiva da Justiça
Federal
Anizio Inácio
505
Inviolabilidade de correspondência: aspectos constitucionais
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
507
O controle de constitucionalidade federal de lei e ato normativo municipal no
bojo da ação civil pública
Carlos Eduardo Imauizumi
509
Mandado de segurança individual contra preceito em tese de eficácia diferida
Celso Luiz Rodrigues Catonio
511
Meio ambiente e competência municipal
Idomeu Alves de Oliveira Junior
513
A contribuição sobre serviços de iluminação pública
Marcelo Bueno Elias
515
Violação ao princípio da impessoalidade e ao princípio da moralidade e o Impeachment do prefeito municipal
Paulo Cesar Gonçalves Valle
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A proteção constitucional do trabalhador
Rogério Rodrigues de Freitas
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Políticas públicas: uma resposta de efetividade sob a ótica da constitucionalização dos princípios
Daniela Reis Pastorello
521
Direito à saúde: previsão constitucional e a efetividade das suas normas
Carla Vasconcelos Dalio
523
A evolução da união estável no direito brasileiro
Maurício José Ercole
525
Da responsabilidade civil do estado brasileiro por danos causados à saúde e ao
meio ambiente, decorrentes da produção de alimentos trangênicos
Francisco José de Souza Freitas
529
O dano moral nas relações do trabalho: reflexos na competência e na prescrição
Rosa Maria Fernandes de Andrade
531
A inviolabilidade do sigilo de dados e a atuação do fisco
Renato Bernardi
535
Aplicabilidade dos princípios do acesso à justiça ao processo administrativo
Eduardo Cury
539
Ação afirmativa como instrumento constitucional de igualdade da raça negra
no ensino superior brasileiro
Henrique Morgado Casseb
541
Ação afirmativa e efetivação de direitos das comunidades indígenas
Eliara Bianospino Ferreira do Vale
543
A constitucionalidade da clonagem como terapia celular
Cristian de Sales Von Rondow
545
Controle de constitucionalidade pela via de exceção ou defesa
Gilson Pereira Braga
547
A comissão parlamentar de inquérito: funções e limites constitucionais
Cristovam Lages Canela
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O prefeito e o impeachment
Eduardo Antonio Ribeiro
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O closed caption, a legenda animada, como direito fundamental de informação de terceira geração
553
Sérgio Tibiriçá Amaral
O reconhecimento jurídico da união entre pessoas do mesmo sexo, questão de
dignidade humana
557
Fabio Francisco Ferreira Bento
A proteção dos direitos fundamentais nas comissões parlamentares de inquérito: a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
559
Claudia Akemi Okoda Oshiro Kato
CONTRIBUIÇÃO ACADÊMICA
TRABALHO EMBASADO EM MONOGRAFIA DE CONCLUSÃO DO CURSO DE DIREITO, COMO EXIGÊNCIA PARCIAL PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE BACHAREL
A responsabilidade penal da pessoa jurídica nos crimes ambientais
Bacharel em Direito: Guilherme Oliveira Catanho da Silva
Orientador: Professor Ms. Haroldo Cesar Bianchi
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INFORMAÇÕES AOS COLABORADORES
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APRESENTAÇão
Com a convicção de que a Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos – Divisão Jurídica da ITE – RIPE – pode falar por si mesma, temos feito deste espaço reservado à apresentação, um ponto de encontro, um ponto de reflexão.
Se, nas últimas edições publicadas, assinalamos sua apaixonante trajetória, sua acolhida nos meios acadêmicos nacionais e internacionais constitui o
reconhecimento de seu papel, tão bem atestado pelo interesse e dedicação que
juristas, doutrinadores e aplicadores do Direito têm demonstrado ao enviar
seus trabalhos, pesquisas, estudos e reflexões para serem veiculados neste periódico.
Reverberando, ainda, a alegria e a profunda satisfação da honrosa conquista, que consolidou um ciclo de amadurecimento da RIPE, tendo merecido o grau
máximo de excelência nacional pela CAPES (“QUALIS A” – Portaria Capes 68);
neste novo volume, n.º 43, agradecemos, homenageando, de modo especial, a
colaboração inestimável de seus leitores e colaboradores, bem como a importância da simbiose científica entre a Diretoria e corpo docente da Faculdade de Direito com a Coordenadoria Acadêmica e corpo docente do Centro de Pós-Graduação e Mestrado, e do Conselho Editorial da Revista, com a singeleza da palavra “SUCESSO”.
Sucesso. Sm. 1. Aquilo que sucede, acontecimento, sucedimento 2.
Resultado, conclusão 3. Parto (2) 4. Bom êxito, resultado feliz 5. Livro, espetáculo, filme, etc. que alcança grande êxito; cartaz 6. Autor, artista, etc. de grande prestígio e/ou popularidade; cartaz.
(Novo dicionário básico da língua portuguesa – Aurélio Buarque
de Holanda Ferreira e J.E.M.M., 1988)
A concepção semântica insere diferentes matizes reveladores que o sucesso, em todos os seus significados, têm em comum o traço de continuidade, de sucedimento, de resultado por algo em que se investiu, em que se acreditou.
Muitos autores, muitos cineastas, novelistas, professores, dentre outros, já
tentaram ensinar o segredo do sucesso. Há inúmeros livros, uma infinidade de artigos abordando esse tema, propondo fórmulas e sugerindo experiências. Não
obstante, todos sabemos que não é assim tão fácil.
O sucesso não deve ser medido apenas pela popularidade de uma pessoa ou
pela mídia que um fato alcança porque há muitas outras formas de sucesso. O sucesso é algo subjetivo... ele quase sempre surge do inesperado, do simples, das idéias
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puras e despretensiosas; às vezes, de projetos simples ou até mesmo acidentais.
Sucesso pode ser: alcançar o resultado almejado, pode ser sentir o prazer
em se fazer algo a que se propôs. Sucesso é dedicar-se, investir, trabalhar duro,
cometer erros e depois corrigi-los. É aprimorar idéias, aprender com experiências passadas e sentir a satisfação do dever cumprido.
O sucesso não deve ser escravizante ou uma obsessão. Não deve ser algo
que vá trazer infelicidade, angústia, tristeza ou frustração. Deve ser algo que nos
dê prazer, que nos encoraje a ousar, a perseguir algo maior... O sucesso é a conseqüência. Ele nunca é a causa, a alavanca ou a inspiração.
Para nós, da RIPE, sucesso é ter orgulho de trabalhar com pessoas tão especiais, competentes e inteligentes... cada qual a sua maneira, mas todas dedicadas a um mesmo projeto e identidade, como se fosse um filho que precisa de
atenção e muita dedicação – o tempo todo – seja ele muito pequeno ou já bem
grandinho – precisa de um amor incondicional e irrestrito, sem medidas.
Nas palavras de Harold Kushner (Quando tudo não é o bastante. Trad. Elizabeth e Djalmir Mello. Nobel, 1999, p. 11): “Nossas almas não estão sedentas de
fama, conforto, propriedades ou poder. Estes valores criam muitos problemas
quando alcançados. Nossas almas têm fome do significado da vida, ou de aprendermos a viver de tal forma que nossa existência tenha importância, capaz de modificar o mundo ao menos um pouquinho, pela nossa passagem por ele... O que
nos frustra e rouba a alegria de nossas vidas é esta ausência de significado”.
Para nós, da RIPE, sucesso é ter inúmeros colaboradores, vibrantes e participativos, que tornam a nossa dura jornada, uma convivência de harmonia e
aprendizado diários. E é exatamente por essas razões que a consecução dos objetivos de nossa Revista se plenifica a cada volume, na medida em que podemos
contar com o partilhar de pontos de vista diferenciados, enriquecidos com as
múltiplas visões de nossos colaboradores, retratando a diversidade de excelentes
opiniões das grandes inteligências jurídicas de nosso País.
Somando-se à nova versão, a integração efetiva da atuação discente do Curso de Bacharelado em Direito, motivada pelos orientadores do corpo docente,
com atuação participativa de seu Diretor, Professor Doutor José Roberto Martins
Segalla, por meio e sob a liderança dos coordenadores do NÚCLEO DE INICIAÇÃO À PESQUISA CIENTÍFICA – NIPEC, com destaque especial ao fantástico trabalho de atuação direta com os alunos, da Professora Ms. Daniela Aparecida Rodrigueiro, que consagram, com enfoque especial, o caráter social do conteúdo e
dos objetivos perquiridos por nossa Revista desde a sua criação: repensar o Direito – desde os primeiros anos de estudo na Academia.
Na verdade, foi essa vigorosa plêiade de acadêmicos da graduação das Faculdades da ITE – PIC – e também de outras instituições de ensino superior, públicas ou particulares, ligados ao desenvolvimento de trabalhos de pesquisa em
iniciação científica, sob orientação docente, nas mais diversas áreas do conheci-
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mento humano que, somando seus esforços, fizeram nascer, recentemente, o II
CONGRESSO ITEANO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, no período de 9 a 11 de maio
de 2005, sob a coordenação geral do Professor Doutor Ângelo Cataneo.
Belíssimos temas desses alunos pesquisadores serão oferecidos à leitura e
análise de nossos leitores e colaboradores, por meio de gradual e contínua
publicação em nossa Revista.
O nosso dia a dia tem confirmado que o dicionário é o único lugar onde
Sucesso se insere anteriormente a Trabalho.
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Maria Isabel Jesus Costa Canellas
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Colaboração de
Autor Estrangeiro
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DERECHO CONSTITUCIONAL E INTEGRACIÓN.
Reflexiones en el escenario de América Latina
Pietro de Jesús Lora Alarcón
Colombiano. Abogado graduado por la Universidad Libre de Colombia.
Doctor en Derecho por la Pontificia Universidad Católica de Sao Paulo/ Brasil.
Especializado en Ciencia Política por la Escuela Julio Antonio Mella de La Habana-Cuba.
Profesor de la Facultad de Derecho de la Pontificia Universidad Católica de Sao Paulo/ Brasil y del
Curso de Maestría en Derecho Constitucional de la Facultad de Derecho de Bauru/ Brasil.
INTRODUCCIÓN
La siempre intrincada relación entre la Política, como expresión de la contienda que se gesta entre los diversos sectores de las sociedades nacionales de América
Latina por el poder del Estado, y el Derecho Constitucional que se construye en este
segmento del mundo, como disciplina que interpreta sistemática y creativamente las
normas que regulan las prácticas, con sus límites y posibilidades, del ejercicio del
poder, emerge en la actual coyuntura con características singulares.
Es evidente que en los últimos quince años, aunque constituyen rasgos importantes de nuestra época las nuevas formas de acumulación del capital -que tienen
como elemento central la inversión especulativa y el predominio del capital financiero – el fin de la guerra fría, la superioridad militar de un Estado de política externa en extremo agresiva, las guerras de conquista emprendidas sin el consentimiento de las Naciones Unidas, tales elementos no consiguen ocultar la respuesta de una
inmensa gama de sectores de la población del planeta que se pronuncia a favor de
la generación de una nueva realidad, más equilibrada en el terreno de la distribución
de la riqueza social, más respetuosa de las identidades regionales y nacionales, sig-
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nada por la paz y la concordia y no por la guerra y la destrucción, jurídicamente sustentada en el respeto al principio de la dignidad de las personas, en el derecho a la
vida y en el fortalecimiento de las libertades ciudadanas.
Estando así la situación, es inevitable que el mundo jurídico no reciba un impacto importante. Se producen, entonces, debates intensos sobre la propia concepción del Derecho como manifestación histórico-cultural. El centro de la polémica
consiste en definir si el Derecho debe ser considerado un baluarte de transformación social al servicio de un proyecto inspirado en el diseño de un paisaje substancialmente diferente al actual en el concierto de Estados del mundo, o si, por el contrario, el Derecho debe ser, apenas, un amontonado normativo, el reflejo de estructuras montadas con finalidades predefinidas en términos económicos, que pueden
o no consultar la voluntad colectiva de los pueblos.
Consideramos, entonces, que es necesario, particularmente en nuestra época,
observar el grado de tensión existente entre la Constitución real y la Constitución
formal de los Estados de América Latina y, en esa mirada, auscultar el momento evolutivo del constitucionalismo como proceso histórico. Solo de esa forma estaremos
interpretando adecuadamente el complejo cuarto de hora jurídico que vivimos y entonces será posible asumir una posición en la singular discusión sobre la razón de
ser actual del Derecho Constitucional.
Motivados por el debate, nuestra intención es proponer una reflexión jurídica, con fundamento en algunas constantes históricas, sobre las opciones de integración actualmente en pauta en el escenario de este segmento del mundo.
1.
PREMISAS DE ANÁLISIS
Para dar inicio al tratamiento del asunto, creemos importante reconocer que
un análisis de la realidad jurídica contemporánea de América Latina debe identificar
dos elementos históricos importantes: el primero de ellos consiste en advertir que
el arsenal jurídico de los Estados-Nación que surgen después del triunfo de la revolución bolivariana en los Andes y de la gesta de San Martín en el sur del continente,
no fue el fruto de un lento y progresivo movimiento evolutivo, sino que emanó de
un proceso de trasmigración de un modelo,1 que tiene su origen esencialmente en
el paradigma liberal francés, cuya fuente principal se encuentra en las doctrinas filosóficas que florecieron en el siglo XVIII de, entre otros, Rousseau e Montesquieu, de
separación de órganos independientes como referente funcional para el ejercicio
del poder, de un ideal de república, de respeto por valores como la libertad y la
igualdad, de afirmación de la propiedad individual, y finalmente, con soporte en una
constitución escrita. También es cierto que al final del siglo XIX, y a pesar de haber1
Santi Romano. Principios de Direito Constitucional Geral. Traducción al portugués de Maria Helena Diniz. Pá-
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se adoptado en principio un control político de defensa de la constitución, el control de constitucionalidad que termina imponiéndose es de naturaleza difusa, de origen estadounidense y consubstanciado en la célebre sentencia de Marshall2.
El segundo elemento consiste en que la aplicación del modelo transplantado va
a ser, naturalmente, mediatizada y condicionada en perspectiva histórica por realidades completamente diferentes de aquellas que constituyen su fuente material original.
En otras palabras, que el conjunto de condiciones internas del proceso de construcción de los jóvenes Estados, desde entonces y hasta hoy, es el que, a la larga, determina la fuerza y consistencia práctica de los postulados teóricamente impuestos.
Mas allá de opciones diversas de organización político-administrativa, lo que
determinó la formación de repúblicas centralizadas como la de Colombia o federativas, como la de Venezuela, es frecuente observar en el contexto interno controvertidos y permanentes problemas de eficacia de la normatividad constitucional, especialmente en el plano de los derechos fundamentales.
En el terreno económico, la fragilidad estructural, las presiones del panamericanismo impulsado por los Estados Unidos al final del siglo XIX, y la formación de
oligarquías ligadas al interés nacional foráneo, impidieron la afirmación de un proyecto de planeación económica independiente y la definición de un legítimo interés
nacional, al tiempo que eliminó la participación popular y redujo los espacios de ciudadanía, apelándose, ordinariamente, desde el Estado, al uso de la violencia y del
terror.
En ese sentido, Alain Joxe señala que los proyectos económicos de los Estados de América y en particular de los del norte andino:
Fracasan por razones políticas y sociales que influyen en la economía: porque sus estructuras oligárquicas se reproducen desde el siglo XIX adaptándose en cada ocasión a las exigencias del mercado mundial, bajo la forma no de una acumulación local sino de
una depredación hábil, de una represión brutal de las capas populares y de una fuga de capitales ‘a Miami’ y otros lugares. La
Gran Colombia es un grupo de ‘países ricos en recursos y hombres’.
Pero los disturbios, más o menos violentos, que allí se propagan
provocados por la pauperización pueden considerarse como el
momento de una forma de combate antioligárquico que es el equivalente de una lucha anticolonial, prolongada más allá de la independencia formal, y bien diferenciada de la guerra fría.3
2
El texto constitucional de 1826 de la República de Bolivia señalaba, entre las atribuciones de la Cámara de Censores, la de acusar ante el Senado las infracciones que el Ejecutivo hiciera de la Constitución. Véase el artículo
de Jorge Asbun “El control de constitucionalidad en Bolivia: evolución y perspectivas”. In Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional Nº 7. 2003. Páginas. 7-28.
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La reiterada exclusión política, sumada a la violencia estatal, generó una democracia representativa formal, con debilidades de origen, insuficiente y unidimensional, pautada, la mayor parte de las veces, por el bipartidismo de alternancia en el
poder; una democracia para pocos, aquellos interesados e identificados con el régimen político restringido, sin aliento para proponer programas de reestructuración
del modelo económico y apenas preocupados con la disputa de espacios en la institucionalidad.
Obviamente, el régimen político tuvo contestaciones a lo largo del siglo XX, lo
que generó una superposición de conflictos importantes. Con todo, la combinación
de, por un lado, intolerancia y terrorismo contra la oposición y, por el otro, de elecciones que otorgan visos de legalidad, creó un escenario cada vez más complejo,
donde se entrecruzaron intereses de oligarquías tradicionales y la acción de las Fuerzas Armadas y grupos para-estatales.
Por cierto que, recientemente, el Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo, en Informe sobre La Democracia en América Latina, manifiesta claramente que la democracia no puede reducirse solamente al acto electoral, sino que requiere eficiencia, transparencia y equidad en las instituciones públicas y también
una cultura que acepte la legitimidad de la oposición política, reconozca los derechos de todos e abogue por ellos.4 Refiriéndose al descrédito de los partidos políticos fundados en el siglo XIX, representantes de intereses sectoriales que asumieron
el control del Estado desde aquella época, el PNUD asegura que atraviesan una severa crisis, que se traduce en la desconfianza, porque las personas se sienten distantes, como un actor indiferente y profesionalizado que no encarna un proyecto de futuro compartido.5
Con perspicacia, Caicedo Turriago anota que los Andes septentrionales de
América son el punto de confluencia de problemáticas que ponen de relieve el contenido radical de algunas manifestaciones de una crisis de dirección política internacional profunda. Segundo el antropólogo de la Universidad Nacional de Colombia,
las burguesías oligárquicas que se afianzaron con la bendición de
los Estados Unidos en la segunda mitad del siglo XX experimentan
un deterioro irrefrenable de su capacidad de persuasión hegemónica y, consecuentemente, de su liderazgo político y cultural.6
De esa forma, el modelo de Estado constitucional en América Latina requiere
con urgencia de una efectividad integral de la democracia, acorde con los tiempos
4
5
6
La Democracia em América Latina. Informe del PNUD. 2004. P. 25.
Ibid. P. 27.
Jacobinismo, Terrorismo y Liberación. Una reflexión desde la Experiencia Independentista Bolivariana. Bo-
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nuevos, lo que supone la creación de mecanismos para una ciudadanía completa,
que implica el acceso a los derechos políticos, sociales, económicos y culturales, de
manera indivisible y complementar, al servicio de una institucionalidad actuante,
que no cede delante de la presión de sectores que alimentan la satisfacción de su
particular interés, sino dispuesto al respeto de la vida humana.
En armonía con esta interpretación, Ferrajoli sostiene un redefinición jurídica
de la democracia constituida por cuatro vertientes de derechos fundamentales: los
derechos políticos, los civiles, los de libertad y los sociales que dan lugar, respectivamente, a la democracia política, civil, liberal y social. Tomadas en conjunto son la
condición necesaria y suficiente para el fortalecimiento de la sociedad política.7
Las observaciones más recientes muestran un robustecimiento de la organización y movilización de diversos actores sociales, que ocasiona una renovación institucional desde la década del 90, inaugurada con el proceso jurídico de impeachment presidencial en 1992 en Brasil, que genera mutaciones presidenciales vertiginosas en Argentina, el derrocamiento de varios presidentes en Ecuador, y la dinámica que adquiere la denominada Revolución Bolivariana en Venezuela.
El caso boliviano es importante: por ahora pocos hablan de la deuda de Estados Unidos con el país en función de la duplicación de la producción de estaño para
atender las necesidades de la potencia hegemónica durante la Segunda Guerra Mundial. Deuda que se aproxima a los 10 billones de dólares. A pesar de eso, el primer
plebiscito de la historia constitucional de país sobre la política de hidrocarburos,
realizado el 18 de julio de 2004 definió que el Estado debe tener un mayor control
sobre los recursos naturales de gas y petróleo, cedidos desde 1997 a compañías
transnacionales, aunque hubo un 60% de abstención y de votos anulados.
La experiencia histórica de fortalecimiento de un poder constituyente difuso,
que actúa permanentemente y no tolera la falencia de mecanismos de participación
debe ser convenientemente evaluada en términos constitucionales. Junto a ella, la
superación de las emergencias humanitarias, la construcción de salidas políticas a
los conflictos internos y la represión al tráfico de narcóticos son algunos de los desafíos más apremiantes, los que indudablemente requieren mecanismos jurídicos innovadores y eficaces.
2
INTEGRACIÓN Y CONSTITUCIONALISMO
2.1. Constitución y economía
El tratamiento, desde una perspectiva constitucional, de la alternativa de integración o unidad de América Latina como intento de generar nuevos instrumentos
de solución a problemas comunes, que se desprenden de fenómenos históricos li7
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gados a la imposibilidad de construir un modelo productivo independiente y que
naturalmente afectan el régimen político, obliga a una reflexión sobre la relación entre Constitución y economía.
Hay que añadir, desde luego, que un punto neurálgico del asunto es el tema de
la soberanía. Este, como sabemos, es más un concepto de combate que un concepto
científico; constituye una especie de título que se esgrime como sinónimo de independencia y de autoridad en la sociedad política y que simboliza el rechazo a obedecer a una autoridad exterior. Desde ese punto de vista, François Borella advierte que
la noción de soberanía es la más unificadora en el mundo contemporáneo,
(...) mas aún que en concepto de derechos humanos o el de relaciones pacíficas entre entidades políticas. Estas últimas nociones
son, ciertamente, el objetivo de virtuosos y a menudo mentirosos
acuerdos que se celebran en el seno de los que falsamente se denomina comunidad internacional; pero la primera, criticada, vilipendiada, declarada obsoleta, sigue estructurando la realidad de
la sociedad de los Estados, y el poder de cada uno de ellos.8
Por eso, nos parece que aunque es verdad que existe una discusión sobre el
contenido actual de la soberanía como elemento esencial de la sociedad política, la
autodeterminación popular para asumir opciones económicas en el marco de la reconstrucción de los Estados de América Latina continúa siendo decisiva para sintetizar los intereses nacionales y exactamente por eso es posible concluir que cualquier propuesta de unidad de Estados, para ser considerada legítima, debe ser el fruto de un acuerdo con plena disposición y consentimiento de los pueblos, y no viciada desde su proceso de formación por imposiciones que reflejan intereses de grupos transnacionales hegemónicos en termos financieros. La soberanía formal, que,
en las palabras de François Borella, camufla un dominio neocolonial, insidioso y
patente,9 y debe ceder delante de una soberanía real y efectiva.
En ese marco, la aproximación que se registra entre la cuestión económica y
la Constitución se evidencia porque la fórmula de la redacción constitucional en materia económica reproduce la situación en que se encuentra, en momento histórico
determinado, las relaciones que se verifican en el proceso productivo. Y además, jurídicamente, no hay como negar que las exigencias económicas son limitaciones implícitas á la capacidad del poder constituyente para crear el Estado e trazarle un rumbo definido.
Debe comprenderse, entonces, a la luz del pensamiento de Engels, que existe una relación sensible entre la base económica y el Derecho, considerado este úl8
Soberania, supremacia y reparto de poderes In Estado Nación y Soberania. Pág. 25.
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timo como parte de la superestructura de la sociedad. Para Engels el Derecho está
en continua dependencia de la base económica. Aunque, como afirma también, la
significación determinante de la base económica no descarta, sino que presupone la
influencia activa de la superestructura. De manera que la situación económica es la
base, pero los diversos factores de la superestructura que sobre ella se levanta, entre ellos las Constituciones, que después de ganada una batalla redacta la clase triunfante, así como todas las formas jurídicas en general, ejercen también su influencia
sobre el curso de las luchas históricas y determinan, en muchos casos, su forma.10
Se puede concluir, entonces, que la relación Constitución – Economía es dialéctica. En tiempos de globalización económica y ronda financiera, como identifica
Jorge Horacio Gentile,
las Constituciones, en la medida que ordenan, integran y regulan
el ordenamiento social que fundan, que constituyen, se han convertido en el punto de conexión, en la bisagra, que permite unir y
dar preeminencia a este nuevo orden normativo internacional y
universal ‘globalizado’, con las normas del Derecho interno11
Normalmente, el camino para consolidar una política económica parte de la
consagración de un capítulo constitucional que trate exactamente del punto, y que
imprime en lo sucesivo fuerza jurídica a una agenda legislativa que contiene un plan
de metas macroeconómicas con las cuales se compromete el Ejecutivo. Así, la institucionalidad reproduce la economía y la impulsa desde el Estado, y entonces el aparato estatal adquiere una determinada forma económica. Aunque también la fuerza
normativa de la Constitución interfiere en la Economía, nos parece que cuando el
confronto es inevitable, la Constitución escrita, de hecho, cede delante del avance
de los grupos económicos que imponen una revisión o un proceso informal de modificaciones del postulado constitucional básico.
Delante de las emergencias económicas, que a menudo atraviesan los Estados
de América Latina, no hay como enfrentarse a lo accesorio sin identificar lo sustancial del problema. La tarea de proyectar el interés nacional de forma soberana en el
plano económico exige un modelo político-institucional inédito en nuestros países,
que en el mundo jurídico significa pensar en una normatividad que reduzca la vulnerabilidad y de manera soberana genere nuevas alternativas de integración, al margen de propuestas tradicionales de anexión.
En las condiciones actuales, de transformaciones capitalistas que conducen a
una nueva etapa de la transnacionalización, esta vez de dimensiones planetarias, el
10 C. Marx e F. Engels. Obras Escogidas. Tomo 37. Págs. 394-395.
11 La guerra “globalizada” y la paz In Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional nº 7. Páginas209-
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constitucionalismo latinoamericano debe ser alimentado de conceptos económicos
que establezcan un nuevo y dinámico paradigma de desarrollo para las sociedades
nacionales, que tenga como presupuesto el fortalecimiento endógeno de la economía y que se contraponga a la exclusión de sectores no contemplados en la distribución de la riqueza social.
2.2. La Integración
2.1.1. Globalización e integración
En el campo de las opiniones jurídicas, la aceptación automática y hasta cierto punto irresponsable de un supuesto proceso de interdependencia económica de
las sociedades caracterizado por la coexistencia de los Estados en igualdad de condiciones y donde estos se comprometen libremente al juego del mercado, conduce
a la reproducción de un esquema de poder con fórmulas jurídicas como tratados de
libre comercio y normas supranacionales que reconocen lo que ya existe, un permanente choque de intereses nacionales con el predominio del más fuerte.
Es verdad que hay quien defienda que la globalización neoliberal favorece el
crecimiento económico. Jagdish Bhagwati, por ejemplo, manifiesta que es, en si misma, favorable, y que sus desventajas pueden enfrentarse mediante políticas específicas diseñadas especialmente para tal efecto. Nada nos parece, con todo respeto,
más lejano a la realidad de los Estados de América Latina.
De todos modos, si algo ha que reconocer es que en el continente, con la nueva geoeconomía mundial y el surgimiento de bloques económicos, especialmente
del Mercosur, motivados por la proximidad, la reducción de aranceles de importación, la eliminación de barreras de inversión y la creación de zonas de libre comercio, se constata un incremento de esfuerzos teóricos, cuya finalidad es detectar la
naturaleza real de la globalización, que observa críticamente los logros y fracasos de
los Estados de América Latina en el curso de años de neoliberalismo, y que finalmente, con razones y fundamentos importantes, ofrece diversas opciones de integración. Es fácil corroborar esta afirmación si llevamos en cuenta las contribuciones en
el terreno del llamado Derecho Constitucional Internacional o del Derecho Constitucional Económico, por ejemplo.
En realidad, globalización e integración se entrelazan de tal forma que algunos
modelos integracionistas favorecen la gigantesca red global, supranacional y transnacional de agentes de política (gobiernos, think tanks, intelectuales, tecnócratas, empresarios, asesores, consultores) que actúan bajo la orientación de una tríada, conformada por la Organización Mundial del Comercio, el Banco Mundial y el Fondo Mone12 Jairo Estrada Alvarez. Instituciones del orden neoliberal y tratados de libre comercio. In Revista Taller. Abril-Ju-
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tario Internacional.12 Otros proyectos se sobreponen a esa lógica y promueven avances ordenados coherentemente, a procura de caminos que incluyan competencias de
nuevo tipo, con respeto a un intercambio equivalente de bienes y servicios.
Ciertamente, una mejor comprensión del tema debe alcanzarse si analizamos
algunos elementos históricos, que hacen parte del propósito, como ya señalado, de
nuestra propuesta por encontrar la raíz de las contradicciones de la integración. Por
eso en el siguiente y último segmento de nuestro trabajo, tocamos algunos elementos importantes en ese sentido.
2.2.1. La integración como proyecto histórico
No es posible descuidar, como ya afirmamos, la justificación histórica de la integración. En ese tópico, pertinente examinar las remotas contradicciones entre los
Estados nación de esta parte del Mundo, los Estados Unidos y Europa. Se distingue,
así, que la integración es un antiguo proyecto político en América Latina, que ha
constituido siempre una preocupación, porque no se busca la unidad aleatoria o coyuntural, sino algo más estratégico, con bases programáticas e intencionalidades definidas en términos de planos e propuestas de desarrollo sostenido.
Un prudente acercamiento al tema permite detectar algunas particularidades
que marcan significativamente la forma, el contenido y las finalidades del proceso
integracional. Hay que recordar que, si bien en Europa el proceso revolucionario
francés originó un nuevo régimen económico, que ganó un status en el concierto
de los Estados del Mundo, y donde el capitalismo tuvo, en general, plenas condiciones de desarrollo, en América Latina se derrumbó la superestructura política de la
monarquía colonialista y fue reemplazada por una pluralidad de superestructuras republicanas, que pasan a ser la principal herramienta de dirección y hegemonía de
las burguesías latinoamericanas en la conformación de los Estados nacionales.13 De
esa manera, en lugar de iniciar una progresiva evolución capitalista, la nueva conformación social y política se deforma, tornándose compatible con las nuevas formas
de colonialismo, especialmente con las modalidades económicas que sujetan a los
nuevos Estados, especialmente, en el siglo XIX, a Inglaterra.
En oposición a la célebre Doctrina Monroe, planteada en el Congreso de los
Estados Unidos el 2 de diciembre de 1823 para dirigir una política externa aislacionista con relación a Europa, pero al mismo tiempo agresiva con relación a América
Latina, a quien consideran su zona natural de influencia en el contexto geopolítico,
la posibilidad de un proyecto alternativo de unidad económica y política tiene como
eje el pensamiento bolivariano.
En efecto, Bolívar concebía la posibilidad de convivir soberanamente con las
potencias que disputaban la hegemonía en el esquema multipolar de la época. La in13 Caicedo Turriago. Ob. Cit. P. 6.
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tención era mantener a raya a Inglaterra y Estados Unidos para buscar identidad y
desarrollo, consolidando el proceso de independencia y simultáneamente contribuyendo para la seguridad hemisférica. La condición para el proceso era la unidad y la
integración hispanoamericana y caribeña.
Debemos señalar, entretanto, que el imperio brasileño no estaba en ese cálculo, pues mantenía la esclavitud como factor para la intensificación de la producción
y vigorosos contactos diplomáticos con Portugal e Inglaterra.
Como resalta Caicedo Turriago,
Las alianzas europeas, dominadas por Inglaterra, llevaban a Bolívar a proclamar una distancia pero a la vez un juego con esa Europa múltiple, pero esa distancia era también, y sobre todo, frente
a Estados Unidos y su concepción monroista. La idea de una unión
o confederación no intentaba desconocer la formación nacionalestatal surgida de la guerra liberadora sino mas bien la creación
de una superestructura multinacional resultado de un pacto consensual. Esta unión era el contrapeso, de contenido anticolonialista, republicano y de justicia social, cuyo núcleo político tenía la
misión de interactuar con los amigos y desarrollar una modalidad de alianzas que concediera privilegios sólo a los amigos, es decir, a quienes respetaban la autodeterminación y los derechos de
los nuevos Estados. Sin duda lo esencial de esta visión conserva actualidad y debe tener una perspectiva para la integración de América Latina y el Caribe.14
Durante el siglo XX, el rompimiento de la multipolaridad y el resultado de la
Segunda Guerra Mundial propició la busca de acuerdos puntuales, los que resultaron en un grado de subordinación de las economías del área con respecto a la norteamericana. En 1945, por ejemplo, se expidió la “Carta Económica para las Américas” que estipulaba la imposibilidad del crecimiento “excesivo” que pudiera competir con los ingresos de productos de los Estados Unidos en los mercados.15
No es nuestra intención hacer una recopilación de los diversos tratados,
acuerdos y protocolos firmados por los Estados latinoamericanos. Distinguidos autores del Derecho Internacional Público han incursionado en la caracterización de
la Alianza para el Progreso, la ALALC, ALADI, Pacto Andino, y otras modalidades integracionales parciales, algunas con poco o ningún efecto práctico.
Lo que nos preocupa realmente es un tema actual y pulsante, cuyo debate jurídico es imprescindible. Es que concluido el periodo histórico conocido como
14 Ibidem. P. 6.
15 Alfredo Holguín Marriaga. Ob. Cit. P. 9.
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Guerra Fría, la política externa de los Estados Unidos planteó a América Latina, en
1994, la propuesta de un “Pacto para el Desarrollo y la Prosperidad de las Américas”
y en ese molde, la creación de una Área de Libre Comercio – ALCA.
Teniendo en cuenta el panorama histórico con que nos deparamos en el transcurso de nuestro breve ensayo, así como la consideración de asimetrías económicas
de porte significativo entre los Estados que estarían comprometidos en el acuerdo,
pensamos ser conveniente tejer algunas consideraciones esenciales.
Parece apropiado recordar que las integraciones económicas y sociales,
como apunta Garay Salamanca, pretenden construir un amplio mercado regional.
Confluyen para ese objetivo factores productivos, grupos poblacionales y países
tanto miembros como terceros, no homogéneos en cuanto a niveles de desarrollo, condiciones competitivas, esquemas institucionales y regulatorios, grados de
avance en implantación del modelo económico marco y compactibilización de políticas macro.16 Es evidente que un proceso de integración adecuado y con ventajas para todos los participantes deberá organizar un sistema de inversiones y cooperación, con plena aplicación del principio de igualdad substancial, que señala el
tratamiento equivalente entre iguales, pero que favorece a los Estados que más requieran de recursos inmediatos para solucionar problemas graves de efectividad
de derechos sociales.
La cuestión es compleja. Llevaremos en cuenta que la dinámica de integración
implica examinar el espacio geopolítico talvez más importante del planeta, que incluye la región Amazónica y la región Andina. Decir que, por un lado, como manifiesta Holguín Marriaga, se debe partir del hecho de que
(...) es en este hemisferio donde se encuentra el país más desarrollado del mundo (EE.UU.), más integrado productivamente, que posee las mejores condiciones para aprovechar la ampliación de los
mercados a partir de la desregulación arancelaria, la apertura de
los sectores financieros y de servicios, la liberación y desregulación
de capitales y la inversión entre países.17
Y que, por el otro, en el mismo hemisferio encontramos Estados en situación
de desventaja, dependientes exclusivamente del comercio con Estados Unidos (Bolivia, Nicaragua, Ecuador, Paraguay), Estados intermedios como Colombia y Venezuela y Estados con estructuras productivas más amplias como Méjico y Brasil.
Abonaremos que paralelamente al proyecto de integración que presentan los
Estados Unidos, a lo que parece en clara política reproductiva de su interés nacional, otros Estados, entre ellos la República Federativa del Brasil, con un ejercicio di16 Economía Política de la Integración. A propósito de las normas que de origen del Alca. Páginas IX-XIV.
17 ALCA y TLC. Integración o Anexión Económica. Página 25.
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plomático creciente y renovado, propone una Comunidad Latinoamérica de Naciones, con soporte en el mandato expreso de su pueblo consagrado en el parágrafo
único del artículo 4º de su Constitución, promulgada en 1988.
Dice el texto de la norma constitucional brasileña que “La República Federativa del Brasil buscará la integración económica, política, social y cultural de los
pueblos de América Latina, visando la formación de una comunidad latinoamericana de naciones”. Con esa finalidad el Brasil desarrolla el proyecto MERCOSUR
desde la firma del Tratado de Asunción el 26 de marzo de 1991, y promueve actualmente la Comunidad Suramericana de Naciones.
En igual sentido, la República Bolivariana de Venezuela, con soporte también
en la Constitución de 1999, en su artículo 153, promueve una propuesta de integración latinoamericana y caribeña.
El texto del artículo 153 manifiesta que tal integración será favorecida por la
República
“en aras de avanzar hacia la creación de una comunidad de naciones, defendiendo los intereses económicos, sociales, culturales,
políticos y ambientales de la región”. De la norma constitucional venezolana se desprende también que “Dentro de las políticas de integración y unión con Latinoamérica y el Caribe, la República privilegiará relaciones con Iberoamérica, procurando sea una política común de toda nuestra América Latina”.
El Ejecutivo venezolano, en función de los compromisos adquiridos, realiza
propuestas audaces, como la creación del Banco del Sur para la centralización de
reservas, que permitiría un acceso menos costoso a recursos y aliviaría el peso de
las políticas del Fondo Monetario Internacional y del Banco Mundial, o sea, una
nueva arquitectura del sistema financiero; el comercio de compensación y la creación del Foro de Deudores que permitiría negociar las condiciones del pago de la
deuda externa.18
En el sur del continente, Argentina, en esta etapa de su vida económica, después de atravesar una de las crisis sociales más aguda de su historia, lanzó la idea de
una nueva ronda de negociaciones comerciales en el ámbito del Sistema Global de
Preferencias Comerciales entre países en desarrollo.
Estamos convencidos que para hablar de una integración positiva, que promueva el interés de los pueblos de América Latina hay que partir del diseño de un
mercado regional justo que contemple para las naciones más desaventajadas una
mayor inversión, cooperación y asistencia, financiamiento preferencial y condicio18 Discurso del Sr. Ministro de Relaciones Exteriores de Venezuela em la Primera Conferencia de las Naciones Unidas para el Comercio y el Desarrollo. San Pablo, Brasil, 14 de junio de 2004.
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nes de desarrollo.
La relación de la Economía y el Derecho nunca fue tan intensa, especialmente ocasionada por la dinámica de los procesos de integración. El desafío del Derecho Constitucional consiste en interpretar creativamente el conjunto de fórmulas,
principios, reglas y valores que inseridos en los textos constitucionales pueden convertirse en importantes instrumentos de transformación de la realidad. Esta es, apenas, una exigencia de nuestro tiempo, a que nos obliga a ratificar el compromiso con
el derecho a vida y la autodeterminación popular.
REFERÊNCIAS
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CAICEDO TURRIAGO, Jaime. Jacobinismo, Terrorismo y Liberación. Una reflexión desde la
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ESTRADA ÁLVAREZ, Jairo. Instituciones del orden neoliberal y tratados de libre comercio In
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FERRAJOLI, Luigi.Teoria de la Democracia, dos perspectivas comparadas. Traducción de Lorenzo Córdoba. México: Instituto Federal Electoral. 2002.
HOLGUÍN MARRIAGA, Alfredo. ALCA y TLC. Integración o Anexión Económica. Bogotá: Factoría. 2004.
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MARX, C. e ENGELS, F. Obras Escogidas. Tomo 37. Moscu. Editorial Progreso.
PNUD. La Democracia em América Latina. New York: 2004.
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E PODER JUDICIÁRIO
José Augusto Delgado
Ministro do Superior Tribunal de Justiça.
Professor de Direito Público (Administrativo, Tributário e Processual Civil).
Professor UFRN (aposentado).
Ex-professor da Universidade Católica de Pernambuco.
Sócio Honorário da Academia Brasileira de Direito Tributário.
Sócio Benemérito do Instituto Nacional de Direito Público.
Conselheiro Consultivo do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem.
Integrante do Grupo Brasileiro da Sociedade Internacional do
Direito Penal Militar e Direito Humanitário.
Sócio Honorário do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos.
1.
INTRODUÇÃO
O ambiente onde o mundo jurídico desenvolve as suas idéias permite ser
comparado com o mundo natural, por ambos vivenciarem constante e imprevisíveis
transformações.
O aspecto diferencial existente entre ambos está, apenas, nos objetivos que
procuram alcançar. O primeiro busca impor regras que facilitem a convivência dos
seres humanos entre si e com circunstâncias ambientais que os cercam. O segundo,
não obstante tentar sempre a harmonia, tal ocorre por processo desenvolvido e
exercitado pela própria natureza.
Esse contraste existente entre os meios trabalhados pelos dois mundos suprareferidos quando buscam igual objetivo, especifamente, a paz por eles perseguida,
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reflete, neste final de século, no campo da Ciência Jurídica, na questão voltada para
se estruturar um regime democrático para o Século XXI, e para se criar pilares que
sustentem um Poder Judiciário atuando de modo compatível com as linhas definidas por tal forma de Governo.
Essa comparação tem por finalidade demonstrar que a Ciência Jurídica, em relacionamento com outros ramos científicos (Ciência Política, Sociologia, Axiologia,
etc.,), tem por obrigação estudar o fenômeno referente à formação de uma Democracia para o século XXI sem imposições legais, porém, adotando preceitos que,
consigam obrigar e sensibilizar os dirigentes dos Poderes da Nação, e, também, os
cidadãos de que uma nova era envolvida por graves questionamentos no campo das
liberdades, das mudanças institucionais, dos anseios do homem individual e grupal
e da tecnologia aproxima-se, pelo que necessita receber, por antecipação, princípios
que os regulem, sob pena do caos instalar-se no contexto social.
De há muito persiste a afirmação de que o conceito fundamental de Democracia se assenta na real participação do povo no exercício do poder, sob a forma de
que esse poder é exercido por alguém em nome de quem o elegeu.
Na verdade, em retrato teórico, nada mais perfeito do que o povo participando do poder e por via dele, atingindo a concretização das suas necessidades de segurança, saúde, educação, amparo à criança, à velhice, ao adolescente, ao deficiente físico, ao meio ambiente, consumando-se com o respeito à sua dignidade, à sua
liberdade e ao seu direito de ser cidadão.
Ocorre que, como é plenamente sabido, em nenhuma Nação os aspectos jurídicos e políticos formadores de conceito de democracia convivem em harmonia
com a realidade administrativa exercida pelos Poderes Constituídos, pelo que os séculos já vivenciados de culto a esse regime político de governo demonstram a ilusão das idéias construídas e defendidas para tão importante entidade política.
A democracia experimentada pelo povo durante o século XX espelhou um regime político longe de se pautar na soberania popular, na liberdade eleitoral, na divisão e autonomia dos poderes, na legalidade, na moralidade e no controle dos atos
administrativos praticados pelas autoridades.
Desnecessária a revisão e exame dos fatos acontecidos durante o período secular que se encerra para a comprovação do afirmado, tendo em vista que todos os
agentes da comunidade sentem os efeitos da não obediência à realização dos seus
anseios e à concretização das suas necessidades vitais.
A doutrina política da democracia cristã, por exemplo, não se transformou em
realidade, haja vista que não foram conciliados os imperativos da fé com o da moral, vistos como sendo verdadeiros princípios democráticos, ao nível dos que pregam a igualdade, a fraternidade, a liberdade e a dignificação do ser humano.
Os postulados das diversas formas de Democracia não se transformaram em
realidades. O resultado apresentado neste final de Século é que, não obstante os
aplausos oferecidos ao regime Democrático, por exemplo, no Brasil, sem se falar
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nos pontos negros dos momentos ditatoriais vividos pela Nação, nos últimos 100
(cem) anos, a cidadania convive com o mais alto grau de insegurança, com a ausência quase total de proteção à saúde, à velhice, aos adolescentes, às crianças, à educação e sem a entrega de uma prestação jurisdicional adequada.
O exame do panorama social da era contemporânea identifica a sociedade
atravessando uma tensão pré-milênio.
Esse estado emocional inédito está afetando as relações entre as pessoas e foi
identificada, recentemente, em trabalho elaborado por Sérgio Villas Boas, sob o título “Tensão pré-milênio”, publicado no jornal “Gazeta Mercantil”, de 12 e 13 de junho de 1999, pg. 2. Caderno – Leitura de Fim de Semana. Extraio trecho de tal ensaio para meditação:
O mundo está atravessando um período de tensão pré-milênio, com
todos os desconfortos, irritabilidades, fadigas, tormentas, mau humor e, acima de tudo, medo. Terrores geralmente infundados. Profecias e noticiários de TV formam um coro que reforça a nova TPM
e produz uma repetição estafante: fome, miséria, guerras, assaltos,
assassinatos hediondos, tráfico de drogas e de influências, corrupção; impunidade, protecionismos, sonegações (48% do que o governo arrecada vem do trabalho assalariado; calcula-se que US$ 825
bilhões circulam no país sem pagar impostos); precária sociabilização (taxa de desemprego em São Paulo superou 20% em maio),
maior exigência por escolaridade, conhecimento e aparências, deflação (ambiente talvez pior para fazer funcionar o capitalismo do
que o regime de inflação), instabilidade financeira, solidão.
O medo nunca escolheu seu objeto de terror, tampouco pode ser delimitado em fronteiras geográficas. Nos Estados Unidos, adolescentes armados exterminam colegas no pátio da escola e se suicidam
em seguida; na Europa, grupos de extrema-direita atentam contra
minorias étnicas, renutrindo o ideal da purificação pelo extermínio. A desinformação (ou seria desentendimento?) está levando as
pessoas a viver um filme real permanente. É como se, a qualquer
momento, um sujeito infectado por um vírus que corrói os ossos humanos arrancasse o cidadão de seu BMW adquirido por leasing e
dirigisse a máquina roubada até um aeroporto, onde uma adolescente grávida, sob efeito de cocaína, acabara de seqüestrar um
avião levando para a Flórida velhinhos aposentados, dispostos a
realizar o sonho da casa de praia civilizada. Mas o avião seqüestrado pela viciada e pelo delinqüente, “representantes das minorias”, se
esborracha no asfalto reverberante do aeroporto.
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Não é positivo, portanto, a apresentação de um balanço positivo no balanço
que se faz da aplicação da democracia neste final de século, porque a realidade demonstra que as suas linhas tradicionais foram, aparentemente, seguidas.
Urge, portanto, ser pensada uma forma de regime democrático que seja capaz
de inverter esse quadro catastrófico para a humanidade. Para tanto, torna-se primordial que a Ciência Jurídica e a Ciência Política renovem os seus postulados e os seus
propósitos voltem-se para a criação de novos degraus e de novos princípios, atentas
para a força cogente e imperativa que eles devem ter, colocando o cidadão com todas as suas aspirações e necessidades como sendo o centro das preocupações.
2.
MODELO DE DEMOCRACIA PARA O SÉCULO XXI
O fato de o regime democrático adotado no Brasil, pela maioria dos anos, durante o século XX, não ter produzido resultados administrativos desejados e necessitados pela Nação, não deve servir de suporte para a defesa da volta ao autoritarismo ou de qualquer outra forma de regime.
Há de se reconhecer que as dificuldades vividas pela Nação não podem ser
tributadas, apenas, ao mau uso do regime democrático. Negativas, em grande escala, foram os modelos das eras de 1937 a 1946 e de 1964 a 1988, especialmente,
para o campo das liberdades, dos direitos humanos e da valorização da dignidade dos homens.
Filio-me à corrente daqueles que pregam ser a Democracia, com todos os
seus defeitos, um regime muito melhor do que a mais perfeita das ditaduras.
A Democracia, mesmo ferida, ela homenageia, pelo menos, a esperança de
um povo e simboliza o modelo de liberdade, de segurança e de desenvolvimento
cultural e econômico pretendido pelo cidadão, diferente do que acontece com qualquer outro tipo de regime.
Aperfeiçoar a atuação do regime democrático para o século XXI não é tarefa
das mais fáceis. Uma série de obstáculos deve ser enfrentada e regulada, sem se falar nas resistências que serão impostas por clones conservadores e privilegiados às
mudanças.
O certo é que algo precisa ser feito e com ousadia. Necessário enfrentar os
problemas e sugerir soluções com posições que se integrem no atuar do homem encarregado de pensar e de fazer ciência, o que deve ser exercido sem temor. Pelo contrário. Da exposição e publicidade das idéias surgem os modelos para a construção
do futuro. Se os objetivos forem alcançados, contribuições essenciais foram dadas
para se evitar a mais temida revolução que pode ser feita pelo ser humano, que é a
da revolta interna e silenciosa contra as instituições, com força até de extinguir, caso
se realize, a entidade tradicional do Estado.
O exame dos aspectos a serem trabalhados para a remodelação da estrutura
da Democracia atual, há, primeiramente, de se conceber que o mundo inclina-se
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para aceitar uma sociedade plural conforme foi visualizado por Marcos Vinicius Vilaça, in “Democracia – Vigência e Vivência”,1 no trecho seguinte:
Caminhamos para sociedade plural. Tanto para o pluralismo econômico – que, reconheça-se, ainda é excludente de muitos – quanto para o social, que ainda se encontra fragilmente estruturado. E
tanto para o pluralismo político – que carece de melhor institucionalidade quanto o cultural que precisa consolidar a adesão aos
valores comuns como fulcro da unidade e coesão nacionais e
como norma a pautar a diversidade necessária e a divergência legitima de aspirações e interesses coletivos.
Dir-se-ia que buscamos, no pluralismo, organizar a liberdade.
Não a idéia, ou o ideal, do ser livre, que é pura transcendência
Mas, sim, sua práxis, concreta, compartilhada, que, como toda
construção humana, é historicamente contingente. Ou seja, queremos a democracia como vivência e vigência, sempre incompletas,
porem sempre incompletas, porém sempre perfectíveis.
Sabemos todos que organizar a liberdade de modo que ela seja socialmente bem distribuída envolve aparente paradoxo: entre a necessidade de criar as condições materiais imprescindíveis ao seu
exercício e a de impor-lhe, ao mesmo tempo, limites bem precisos.
Eles se explicitam sob a forma de restrições ao uso do poder na
vida em comum dos homens, através de diversas e complexas formas de controle societário. O fundamento axiológico desses mecanismos de controle espelha os valores de harmonia e bem-estar, solidariedade e eqüidade, consubstanciados no ordenamento jurídico e nos usos e costumes que os conduzem como Povo e Nação.
É nesse sentido que, no plano das relações de poder entre o público e o privado, a eficiência econômica, de que decorrem a estabilidade, o crescimento, embora essencial à ampliação, individual e
coletiva, da liberdade, deve cingir-se a seu caráter instrumental.
Assim cabe submeter as forças de mercado a correções e condicionamentos determinados e exercidos pelo Estado, em especial para
favorecer melhor repartição da renda e da riqueza e para assegurar o uso ecoambientalmente prudente dos recursos naturais. Estado e mercado, porém, não se opõem, complementam-se. Liberdade, eqüidade e eficiência não devem conflitar, mas viabilizarem-se
multiplamente. Na incessante busca de objetivos nacionais com1
Marcos Vinícios Vilaça, escritor, Ministro do Tribunal de Contas da União. Trecho de discurso na abertura dos
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partidos, que constituem nossa utopia possível: edificar “a civilização do ser, na partilha equilibrada do ter”, como falou o padre Joseph Lebret, fundador do grupo Economia e Humanismo.
O segundo ponto que não pode ficar sem meditação é que o século XXI, além
de ser o século voltado para fortalecer os valores da cidadania, será todo voltado
para momentos de inovação.
E no regime democrático não se pode desprezar esse aspecto de tão forte influência nas relações do homem entre si e com o Estado.
Jacques Marcovitch2, em artigo sobre o assunto, chamou a atenção para o fato
de que:
Estudo da revista “The Economist” mostra-a como melhor alternativa para expansão dos negócios. O inovador despreza o investimento especulativo e não faz isso só porque é um bom sujeito. Além de gesto construtivo, é opção inteligente: as inovações
geram muito mais lucro do que meras especulações comerciais.
A taxa média de retorno de retorno de 17 inovações de sucesso
nos EUA, em uma década, foi de 56%, enquanto a de todos os investimentos da economia norte-americana nos últimos 30 anos
ficou em 16%.
Os inovadores japoneses, de olho no consumo doméstico, diminuíram o tamanho do vídeocassete, lançado em 1974. Eles encolheram tudo: o preço, a embalagem e a fita, que se reduziu a três
quartos de polegada. Esse video-cassete compacto entrou para a
história do mercado. É, com o telefone celular, o produto mais
comprado no mundo. Os EUA vivem um extraordinário momento
de prosperidade, e a inovação terá papel decisivo no prolongamento dessa fase. Mais de 50% do crescimento do país vem de indústrias novas, com pouco mais de dez anos de existência, que reformularam seus processos.
Embora a inovação possa verificar-se em qualquer área, ela está
mais acentuadamente vinculada à dimensão tecnológica. Nos
países em desenvolvimento, não havendo prioridade estratégica
para programas de ciência e tecnologia, o retrocesso é inevitável.
SE o Brasil não agir hoje para construir o seu futuro, simplesmente não haverá futuro. Não me refiro ao futuro só como o tempo que
2
Jacques Maracovitch, 52, reitor da USP Universidade de São Paulo, é autor de “A Universidade (Im)possível”
(Editora Futura/Sibilino). Trecho extraído do artigo “O século da inovação”, publicado na Folha de S. Paulo, Ca-
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sucede ao presente, mas como o tempo em que a ciência de hoje
vai, finalmente, produzir seus frutos.
A América Latina e o Brasil foram atingidos pelos vendavais que
abalam quase todas as economias do mundo. O governo central
empenha-se numa inadiável tarefa de ajustar as contas públicas.
Percebe-se, porém, que essa iniciativa, embora justa, comete dois
desvios perigosos: corta recursos de programas sociais já limitados
e diminui drasticamente verbas já escassas em ciência e tecnologia. Uma exceção (e um paradigma de consciência estratégica) é
a Fapesp, em São Paulo, que, apesar de todas as crises, vem zelando exemplarmente pelo progresso da ciência.
Há, portanto, do regime democrático do século XXI, ficar atento a tal fenômeno, para que, por ser ele produzido pela atuação da indústria tecnológica, não se
transforme em patamar de absoluta ganância financeira pelos detentores das técnicas inovadoras, em prejuízo das necessidades e dos direitos da cidadania.
O terceiro ponto a influenciar o novo conceito da democracia é o de que
há de tal tipo de regime emprestar, na atualidade, maior respeito aos direitos humanos. Para tanto, há de ser imposta uma conduta aos responsáveis pelo exercício dos Poderes e aos integrantes da sociedade plural que não priorizem o desenvolvimento econômico em detrimento da adequação dos meios necessários para
combater as violações aos direitos do homem que estão consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Violações que quanto mais a sociedade alcança progresso material mais elas aumentam, sem que o Estado apresente político razoável de combate.
A Democracia para o século XXI há de romper com a tradição de que a
A declaração Universal, em si mesma, não apresenta força jurídica obrigatória e vinculante. E assumindo forma de declaração, e
não de tratado, confirma o reconhecimento universal de direitos
humanos fundamentais, afirmando um código comum a ser seguido por todos os Estados. Representa o amplo consenso alcançado acerca dos requisitos mínimos necessários para uma vida com
dignidade. É uma visão moral da natureza humana, tratando seres humanos como cidadãos autônomos e iguais e que merecem
igual consideração e respeito.3
3
Artigo da autoria do Juiz Benedito Silvério Ribeiro, do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, sob
o título “O Poder Judiciário e os Deveres Humanos”, publicado na Revista de EMERJ (Escola da Magistratura do
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No artigo em referência, o autor registra, ainda, que:
A natureza dos deveres humanos decorre dos direitos naturais
e inatos ou direitos positivos e históricos, ou, ainda, direitos que
derivam de determinado sistema moral. No dizer de Norberto
Bobbio (A era dos direitos, RJ. Campus. 1992), a questão dos direitos humanos não é mais o de fundamentá-los, mas o de protegê-los.
Após diversas considerações envolvendo o tema Pessoa Humana e o Poder Judiciário, o autor supracitado sugere várias proposições que merecem ser investigadas e transformadas em regras de natureza absoluta, imperativa e cogente a qualquer forma de regime democrático.
As formulações em questão são as seguintes:
a) – Os deveres relativos aos direitos de primeira geração implicam obrigações cujo descumprimento pode acarretar conseqüências civis e sobretudo penais.
b) – O dever do Estado com a educação e o trabalho da mulher
deve ser efetivado mediante garantias das normas constitucionais
ou infraconstitucionais.
c) Os deveres decorrentes dos interesses difusos ou coletivos devem estar amparados por procedimentos capazes de proteger o patrimônio público contra atos lesivos e a proteção do meio ambiente e do consumidor.
d) O Estado tem o dever de manter ascendência sobre as experiências científicas relativa à engenharia genética e clonagem, garantindo o direito à vida das gerações futuras.4
No campo específico da atuação do Poder Judiciário em harmonia com as novas estruturas que devem ser fixadas para a Democracia ser exercida no Século XXI, há de se ter a consideração. também, os postulados sugeridos por Antônio Rulli Júnior,
em trabalho publicado na Revista EMERJ(Revista da Escola da
Magistratura do Rio de Janeiro, V. 1, n. 4, Edição Especial, ps. 31
e segs.),5 cujo teor dos mesmos passo a transcrever:
a) É dever do Juiz-Estado a participação democrática no processo, no interesse das partes e efetivação da Justiça.
4
5
As proposições anunciadas estão todas no trabalho citado na nota anterior.
O título do trabalho é : “O Poder Judiciário e os Deveres Humanos. Antônio Rulli Júnior, o autor, é Juiz do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de S. Paulo.
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b) É dever do Juiz-Estado dar ao processo o procedimento animado pela relação processual que persegue a realização do direito
material, meio de efetivação da justiça.
c) O dever de acesso à justiça deve estar caracterizado pela assistência judiciária aos necessitados e na implantação dos juizados
especiais de pequenas causas permitindo que um número maior
de pessoas traga ao Judiciário os seus casos.
d) O Processo exige do Juiz-Estado o dever de consciência jurídica, fundamento de legitimação e de legitimidade do procedimento, através do contraditório e da ampla defesa.
Por fim, na linha da defesa que se faz de ser adotado um regime democrático
que sublime a proteção dos direitos humanos no mais alto grau, apresento a parte
final do trabalho intitulado “O Poder Judiciário e os Poderes do Homem, de autoria
do Des. Cristovan Daiello Moreira, do Estado do Rio de Janeiro, publicado na Rev.
da EMERJ, já citada, p. 52:
Urge retirar os deveres humanos da sombra do ostracismo com o
prévio, científico, investigar, pesquisar, estudar metódico e sistematizar da Teoria e Princípio. E, depois, evangelizar através de seminários, cursos, currículos, conferências, debates dialogais coordenados pelas Escolas de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados e Agentes do Ministério Público, Faculdade de Direito, institutos culturais da Ordem dos Advogados do Brasil, com o clarificar
e contínuo divulgar inciso pelos meios de comunicação social.
Se agir não houver, os deveres humanos figurarão em mais uma
simples declaração, inócua, vazia, ineficaz e ineficiente.
Há um quinto aspecto que há de chamar a atenção dos cientistas jurídicos e
políticos na elaboração de um novo modelo de democracia para o século XXI. É o
relativo ao problema criado com o avanço das comunicações, e consequentemente,
da velocidade e da variedade da informação.
Esse tema é abordado por Cláudio Lachini, em artigo intitulado “Sobre-Circuito da informação”6, de onde destaco o trecho seguinte: (doc. 06)
A leitura tardia de Gracián, um autor restrito em sua época (Século XVII) pelo temor a sua própria ordem religiosa, leva-nos a algumas reflexões sobre o conhecimento e as formas de o transmitir,
6
Trabalho publicado na Gazeta Mercantil, de 11, 12 e 13 junho de 1999, página A-3.
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pois é com ele que o homem sempre evoluiu, na escola clássica, no
ensino secular, na escola da vida, no escritos cuneiformes, nos pergaminhos, nos livros, nos jornais, nas revistas e nos meios criaturas do Século XX: o rádio, a televisão e, nos dias de hoje, nas embalagens eletrônicas associadas às telecomunicações.
O desenvolvimento da telemática dissemina o conhecimento em
escala global. Perdida na Babel e na balbúrdia, a mídia impressa
está derrapando na subtração do leitor. A Internet é uma desculpa
esfarrapada para publicações que estão perdendo seus leitores,
não porque está decretada a morte da palavra impressa sobre o
papel, mas sim porque os meios estão perdendo conteúdo e se tornam repetitivos da informação que foi ofertada ao cidadão em velocidades instantâneas.
Ora, se não for imposta uma disciplina rígida ao sistema evoluído da informação a ser adotado no próximo século XXI, sem prejuízo da prática do direito de liberdade da imprensa, haverá, evidentemente, insuperáveis prejuízos à cidadania pelos males que serão causadas às diversas formas dos relacionamentos econômicos,
sociais, familiares e jurídicos a serem exercidos.
O outro aspecto a ser enfrentado pela Democracia do século XXI é o efeito a
ser produzido na estrutura patrimonial e financeira das Nações, especialmente, da
Nação brasileira, pelo fenômeno que está sendo denominado de “Nova Economia”,
em razão do sucesso que está experimentando os EE.UU. com o seu crescimento
econômico.
O mundo enfrenta e analisa o que está acontecendo nos EE.UU. e procura soluções de sobrevivência para as outras Nações.
É conveniente registrar, para ser fiel aos fatos como apresentados, a análise
que Marcelo Rezende fez sobre o assunto, em artigo intitulado “Em busca da nossa
Economia”7:
“Nouvelle Economie” é a literal tradução francesa para um fenômeno de expansão constante mostrado há quase oito anos nos indicadores econômicos dos Estados Unidos. Alta taxa de criação de
empregos, crescimento contínuo e inflação estável resumem o cenário. Antes um fenômeno local, motivo de espanto no resto do
mundo e discutido, muitas vezes publicitariamente, nos semanários sobre finanças em língua inglesa, a “nova economia”, o significado desse possível novo modelo de desenvolvimento, interessa
também à Europa e, após mensagem dada pelo ministro da Eco7
Trabalho publicado no jornal Gazeta Mercantil, de 7,8 e 9 de maio de 1999, p. 4, Caderno Atualidades.
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nomia do país, especialmente a França.
Em um pronunciamento sobre os rumos da economia francesa,
Dominique Strauss-Kahn afirmou estar o país caminhando rumo
“a um novo regime de crescimento. Mais durável porque garantido pelas novas tecnologias, como acontece na América. Nós estamos ainda atrasados em relação aquele país. Apenas 15% do nosso crescimento é devido as novas tecnologias, mas nós estamos inventando, também, o novo crescimento do século XXI”. Apesar de
o ministro ter comparecido para mais uma vez revisar as expectativas de crescimento em 1999 (anunciando queda) houve a sinalização de uma alteração de “modelo” e a preocupação da academia e profissionais franceses em entender o “milagre dos EUA” passou a interessar bem mais do que seu costumeiro público.
Há no país, e no continente, uma indisfarçável decepção com o
primeiro semestre do euro, a moeda única de onze países membros da União Europ6ia. Após um início comemorado nos primeiros dias de janeiro com champanhe e declarações entusiasmadas
de presidentes e primeiro-ministros, o euro vem sofrendo constantes desvalorizações. As principais razões, na visão dos analistas locais, têm sido a série interminável de “acidentes” sofridos. ‘A política imposta pelo Banco Central Europeu (BCE), as denúncias de
desvios administrativos na Comissão Européia, os desacertos políticos em cada nação e, por fim, os conflitos raciais e bélicos em Kosovo. Procura-se, claro, um crescimento “durável e garantido”)
..................................................................................................................................
..................
Ao menos não para todos, segundo Robert Boyer, economista e diretor do Cepremap (órgão de estudo das estratégias econômicas do
Centro Nacional de Pesquisas Científicas – CNRS). Boyer falou a
este jornal na terça-feira e, em sua visão, não se trata apenas de
uma discussão técnica, mas, sobretudo, política: “Claro que essa é
também uma discussão política, porque o celebrado crescimento
americano é fundamentado na desigualdade. Em um crescimento
de riqueza, em essência, na classe média, ocasionando então o aumento da população mais pobre. Trata-se de política, mas também
de ideologia, pois a ‘nova economia’ ultrapassa o fordismo”, diz.
Boyer acaba de publicar um estudo sobre o tema: “Innovation et
Croissance”, em parceria com Michel Didier, editado pelo Conselho
Nacional de Análise Econômica.
O debate sobre o resultado menos grandioso da “Nova Economia” –
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a mesma discussão na qual a Europa está obrigada a escolher entre
o perfil “humanista” ou “comercial” – não impediu o governo francês de anunciar uma primeira medida para a mudança de rota. O
Ministério da Economia e das Finanças fará uso de um “indicador
de inovação”, onde será medido o papel representado pelas novas
tecnológicas no crescimento da economia francesa. Um relatório
será publicado duas vezes ao ano. Em março e em setembro. Os itens
a serem avaliados são: novos capitais, criados a partir de fundos de
novas tecnologias, novo empresariado e novos empregos, novas tecnologias e novos usuários das recentes invenções. Outra ação foi passar a medir também a atividade das empresas de tecnologia.
Não se pode esquecer que o fortalecimento econômico de uma Nação, de
modo desproporcional às demais, gera intranqüilidade para a permanência da paz
mundial e para se garantir o respeito integral dos direitos e garantias da cidadania.
O sétimo ponto que merece ser abordado é o de que uma democracia plena
só existirá se as leis do País protegerem o “fim da censura de qualquer tipo, sutil ou
agressiva, tácita ou explícita, política ou econômica, social ou individual”, conforme
anota Jorge Wenthein, in “Democracia e liberdade de expressão”8 porque
Somente em uma sociedade de cultura democrática, o que envolve tempo e boa vontade, é possível falar em liberdade de expressão
em geral e liberdade de imprensa em particular. Leis democráticas
por si só não garantem o livre exercício da expressão do pensamento. É imprescindível que essas leis, cada vez mais claras e
transparentes, venham seguidas de perto por uma práxis democrática, por um exercício diário de reeducação intelectual, de governantes e sociedade civil, de forma que todos passem a compreender as manifestações de pensamento e as divulgações de fatos
Como peças fundamentais do jogo democrático.9
Há, ainda, variados aspectos que devem ser considerados para a adoção de
um modelo democrático apto a preencher os anseios da cidadania durante o século. Passo a enumerá-los, sem nenhum comentário, em face da vinculação ao espaço
dedicado ao presente trabalho. Ei-los:
a) as questões oriundas dos lobbies econômicos ameaçando por em xeque
as evidências científicas;
b) a necessidade de, sem ferimento ao direito das liberdades humanas, ser
8
9
Artigo publicado na Folha de S. Paulo, de 3 de maio de 1999, no Caderno Tendências/Debates, 1-3.
Idem.
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protegido o patrimônio;
c) a desavença existente entre as propostas dos cientistas de combater, ao
custo de milhões de dólares, os resultados falsos apresentados pela chamada “ciência oficial” com relação à influência do desenvolvimento industrial sobre o aquecimento global;
d) a necessidade de, em um regime democrático, existir educação para todos e como forma de investimento;
e) a garantia dos direitos fundamentais em um processo de globalização provocador de complexos problemas econômicos e sociais;
f ) a preocupação atual dos doutrinadores com o desenvolvimento do processo
de globalização com crueldade, haja vista que, conforme tudo está a indicar, “Por mais otimista que alguém seja, torna-se difícil imaginar um processo suave de globalização ancorado em regras desiguais de mobilidade de capital e de mão-de-obra; num mundo onde
se abrem fronteiras para o capital e as empresas, mas onde se apertam fronteiras para a
mão-de-obra; onde capitais entram e saem sem um mínimo de regras; onde a riqueza se
concentra e a pobreza se expande cada vez mais, e sobretudo num quadro geopolítico
mundial onde conflitos se repetem num vai e vem de guerras étnicas e religiosas”;10
g) há de ser enfrentado pela Democracia do Século XXI os desafios com que
se defronta o capitalismo na atualidade, conforme destacado por Miguel Reale em
três artigos: “O Capitalismo na encruzilhada (Estadão, 17104199);” “Ainda a crise do
Capitalismo” (idem, 115199) e “Capitalismo Selvagem” (ibidem, 2915199);
h) o fenômeno da chamada judicionalização da economia quando a crise
econômica defronta-se, ao elencar soluções, com o formalismo do Direito e da Justiça, chegando, as vezes, a ser considerado como uma forma agravadora de criar
mais dificuldades para o País;
i) a preocupação em recentes pesquisas que atestaram haver, em determinados segmentos da sociedade brasileira, no momento, preferência pela ditadura no
lugar da democracia.
3.
CONCLUSÕES
Ultimo as meditações desenvolvidas no presente trabalho, lembrando estudo
da autoria de Roque Spencer Maciel de Barros, sob o título “Que espaço restará para
a cidadania no mundo atual? “( Jornal da Tarde, 5 Paulo, 5 de junho de 1999)
Após definir e rever os conceitos de cidadania moderna e analisá-la sob os perigos de sua função nos regimes totalitários e nas demais formas de regime, conclui
com as seguintes observações:
“Hoje, quem se lembra do sonho de um “estado estacionário” de John Stuart
10 Armand F. Pereira é membro da Academia Nacional do Direito do Trabalho, em artigo intitulado “Direitos Fundamentais”, publicado no Correio Braziliense, de 10.05.1999.
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Mill, cuja impossibilidade, aliás, Ludwig von Mises demonstrou brilhantemente em
um capítulo de sua Ação Humana (4ª. Parte, capítulo XIV, 5 e 6) ou das mais que
previsões, quase profecias, de Herman Kahn para o ano 2000 ou mesmo da visão generosa, assim mesmo ainda viável, quem sabe, como possibilidade, de John Kenneth
Galbraith acerca da “sociedade da abundância”, para não citar outras tentativas de
rasgar o véu do futuro?
Dessa forma, não é, de maneira alguma, nosso propósito o fazer previsões sobre o que se irá verificar no mundo globalizado e informatizado Não, não pretendemos prever, mas apenas registrar nossos temores e perplexidades O que irá de fato
acontecer, considerando os imprevistos e os acasos da História, confessemo-lo sinceramente, pertence ao terreno do ignoto e provavelmente contrariará todas as previsões globais, ainda que confirme algo, ocasionalmente, aqui e ali”
Não comungo com as desesperanças do autor porque creio na força do Direito
e na conscientização dos homens que assumirão os Poderes Governamentais durante
o século XXI que o cidadão passará a ser considerado o centro de suas atenções.
Ocorre, apenas, que ao meu espírito chega determinado temor, por mais que
tente dissipá-lo, pelos exemplos oferecidos pela atual geração dirigente dos nossos destinos políticos, econômicos e sociais, cujos atos e exemplos não se apresentam confiáveis pra os que são defensores da existência de uma Democracia plena e efetiva.
O futuro dirá o que irá acontecer. As gerações de hoje e de amanhã serão testemunhas da evangelIzação dos cientistas políticos e jurídicos para a consolidação
de uma nova Democracia para o século XXI. SE a Nação brasileira não conseguir, que
Deus tenha piedade de nós e de nossas instituições.
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O Tribunal Penal Internacional: integração
ao direito brasileiro e sua importância para a
justiça penal internacional
Valerio de Oliveira Mazzuoli
Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de
Direito da Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Professor de Direito Internacional Público e Direitos Humanos no Instituto de Ensino Jurídico
Professor Luiz Flávio Gomes (IELF), em São Paulo. Professor de Direito Internacional Público e
Direitos Humanos nas Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo, em Presidente Prudente-SP.
Membro da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (SBDI) e
da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas (ABCD).
Coordenador jurídico da Revista de Derecho Internacional y del Mercosur (Buenos Aires).
Advogado no Estado de São Paulo.
1.
INTRODUÇÃO
O estudo do Tribunal Penal Internacional (TPI) está intimamente ligado à própria história da humanidade e às inúmeras violações de direitos humanos ocorridas
no período sombrio do Holocausto, que foi o grande marco de desrespeito e ruptura para com a dignidade da pessoa humana, em virtude das barbáries e das atrocidades cometidas a milhares de pessoas (principalmente contra os judeus) durante a Segunda Guerra Mundial.
Portanto, qualquer análise que se queira empreender em relação ao TPI deve
ser precedida de uma investigação (ainda que breve) sobre as origens históricas da
moderna sistemática de proteção dos direitos humanos, nascida dos horrores da
chamada “Era Hitler”.
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Este período histórico, que ensangüentou a Europa entre 1939 a 1945, ficou marcado na consciência coletiva mundial pelo fato de apresentar o ser humano como algo descartável e totalmente destituído de dignidade e direitos. A
chamada “Era Hitler”, portanto, condicionava a titularidade de direitos à condição de pertencer o indivíduo a determinada raça, qual seja, a “raça pura” ariana.
Atingia-se, com isto, de forma erga omnes, todas aquelas pessoas destituídas da
referida condição, passando as mesmas a se tornar (de fato e de direito) indesejáveis, não encontrando outra saída senão a própria morte nos campos de concentração.1
O legado do Holocausto, para a internacionalização dos direitos humanos,
consistiu na preocupação que gerou no mundo pós-Segunda Guerra, acerca da falta que fazia uma arquitetura internacional de proteção de direitos, com vistas a impedir que atrocidades daquela monta viessem a ocorrer novamente no planeta. Daí
porque o período pós-guerra significou o resgate da cidadania mundial, ou a reconstrução dos direitos humanos, baseada no princípio do “direito a ter direitos”, para
se falar como Hannah Arendt.2
A partir desse momento, que representou o início da humanização do Direito Internacional, é que são elaborados os grandes tratados internacionais de
proteção dos direitos humanos, que deram causa ao nascimento da moderna arquitetura internacional de proteção dos direitos humanos. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da Segunda Guerra, bem como à crença de que parte dessas violações poderia ser evitada se um efetivo sistema de proteção internacional desses direitos existisse.
Como respostas às atrocidades cometidas pelos nazistas no Holocausto, criase, por meio do Acordo de Londres (1945/46), o famoso Tribunal de Nuremberg,
que significou um poderoso impulso ao movimento de internacionalização dos direitos humanos. Este Tribunal surgiu, como uma grande reação à violência do Holocausto, para processar e julgar os maiores acusados de colaboração para com o re-
1
2
Nas palavras do Prof. Celso Lafer: “Um dos meios de que se valeu o totalitarismo para obter esta descartabilidade dos seres humanos foi o de gerar refugiados e apátridas. Estes, ao se verem destituídos, com a perda da
cidadania, dos benefícios do princípio da legalidade, não se puderam valer dos direitos humanos. Assim, por
falta de um vínculo com uma ordem jurídica nacional, acabaram não encontrando lugar – qualquer lugar –
num mundo como o do século XX, totalmente organizado e ocupado politicamente. Consequentemente, tornaram-se de facto e de jure desnecessários porque indesejáveis ‘erga omnes’, e acabariam encontrando o seu
destino e lugar nos campos de concentração” (Trecho da mensagem do Min. das Relações Exteriores, Celso Lafer, por ocasião da abertura da exposição “Visto para a vida: diplomatas que salvaram judeus”, no Centro
Cultural Maria Antonia da USP. São Paulo, maio de 2001).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a esse respeito, assim estabelece em seu Art. 1º: “Todas
as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em
relação umas às outras com espírito de fraternidade”. Para Hannah Arendt, a participação dos indivíduos em
uma comunidade igualitária construída é a condição sine qua non para que se possa aspirar ao gozo dos direi-
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gime nazista.
O art. 6º do Acordo de Londres (Nuremberg) tipificou os crimes de competência do Tribunal, a saber:
a) crimes contra a paz – planejar, preparar, incitar ou contribuir para a guerra, ou participar de um plano comum ou conspiração para a guerra.
b) crimes de guerra – violação ao direito costumeiro de guerra, tais como,
assassinato, tratamento cruel, deportação de população civil que esteja ou não em
territórios ocupados, para trabalho escravo ou para qualquer outro propósito, assassinato cruel de prisioneiro de guerra ou de pessoas em alto-mar, assassinato de reféns, saques a propriedades públicas ou privadas, destruição de cidades ou vilas, ou
devastação injustificada por ordem militar.
c) crimes contra a humanidade – assassinato, extermínio, escravidão, deportação ou outro ato desumano contra a população civil antes ou durante a guerra, ou
perseguições baseadas em critérios raciais, políticos e religiosos, independentemente
se, em violação ou não do direito doméstico do país em que foi perpetrado.
No seu art. 7º, o Estatuto do Tribunal de Nuremberg deixou assente que a posição oficial dos acusados, como os Chefes de Estado ou funcionários responsáveis
em departamentos governamentais, não os livraria e nem os mitigaria de responsabilidade. O art. 8º do mesmo Estatuto, por seu turno, procurou deixar claro que o
fato de “um acusado ter agido por ordem de seu governo ou de um superior” não
o livraria de responsabilidade, o que reforça a concepção de que os indivíduos também são passíveis de responsabilização no âmbito internacional.3
Destaca-se também, como decorrência dos atentados hediondos praticados
contra a dignidade do ser humano durante a Segunda Guerra, a criação do Tribunal
Militar Internacional de Tóquio, instituído para julgar os crimes de guerra e crimes
contra a humanidade, perpetrados pelas antigas autoridades políticas e militares do
Japão imperial. Já mais recentemente, por deliberação do Conselho de Segurança
das Nações Unidas, com a participação e voto favorável do Brasil, também foram
criados outros dois tribunais internacionais de caráter temporário: um instituído
para julgar as atrocidades praticadas no território da antiga Iugoslávia4 desde 1991,
e outro para julgar as inúmeras violações de direitos de idêntica gravidade perpetra3
4
5
Cf. por tudo, The Charter and Julgament of the Nurenberg Tribunal [U.N.], doc. A/CN, 4/5, de 03.03.1949, pp.
87-88. Vide, também, RAMELLA, Pablo A., Crimes contra a humanidade, Trad. Fernando Pinto, Rio de Janeiro: Forense, 1987, pp. 06-08.
O texto do “Estatuto da Iugoslávia” pode ser encontrado no documento das Nações Unidas (NU) S/25704, de
03.05.93, par. 32 e ss.
Resolução do Conselho de Segurança da ONU n.º 955 (1994), NU-Doc. S/Res/955 (1994), de 8
de novembro de 1994. As regras de procedimento e prova foram adotadas em 29.06.95 (ITR/3/Rev. 1), tendo sido
uma segunda revisão realizada em meados de 1996. Sobre o assunto, vide ainda MELLO, Celso D. de Albuquerque, Curso de direito internacional público, 2º vol., 13ª ed. rev. e aum., Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp.
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dos em Ruanda.5
Não obstante o entendimento da consciência coletiva mundial de que aqueles
que perpetram atos bárbaros e monstruosos contra a dignidade humana devam ser
punidos internacionalmente, os tribunais ad hoc acima mencionados não passaram
imunes a críticas, dentre elas a de que tais tribunais (que têm caráter temporário e
não-permanente) foram criados por resoluções do Conselho de Segurança da ONU
(sob o amparo do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas), e não por tratados internacionais multilaterais, como foi o caso do Tribunal Penal Internacional, o que
prejudica (pelo menos em parte) o estabelecimento concreto de uma Justiça Penal
Internacional. Estabelecer tribunais ad hoc por meio de resoluções significa tornálos órgãos subsidiários do Conselho de Segurança da ONU, para cuja aprovação não
se requer mais do que nove votos de seus quinze membros, incluídos os cinco permanentes (art. 27, § 3º, da Carta das Nações Unidas). Este era, aliás, um argumento
importante, no caso da antiga Iugoslávia, a favor do modelo do Conselho de Segurança, na medida em que o modelo de tratado seria muito moroso ou incerto, podendo levar anos para sua conclusão.6
Ainda que existam dúvidas acerca do alcance da Carta das Nações Unidas em
relação à legitimação do Conselho de Segurança da ONU para a criação de instâncias judiciárias internacionais, as atrocidades e os horrores cometidos são de tal ordem e de tal dimensão que parece justificável chegar-se a esse tipo de exercício, ainda mais quando se têm como certas algumas contribuições desses tribunais para a
teoria da responsabilidade penal internacional dos indivíduos, a exemplo do não-reconhecimento das imunidades de jurisdição para crimes definidos pelo Direito Internacional e do não-reconhecimento de ordens superiores como excludente de
responsabilidade internacional. Entretanto, a grande mácula da Carta da ONU, neste ponto, ainda é a de que jamais o Conselho de Segurança poderá criar tribunais
com competência para julgar e punir eventuais crimes cometidos por nacionais dos
seus Estados-membros com assento permanente.
Daí o motivo pelo qual avultava de importância a criação e o estabelecimento
efetivo de uma corte penal internacional permanente, universal e imparcial, instituída para processar e julgar os acusados de cometer os crimes mais graves que ultrajam a consciência da humanidade e que constituem infrações ao próprio Direito Internacional Público, a exemplo do genocídio, dos crimes contra a humanidade, dos
crimes de guerra e do crime de agressão.7
O Direito Internacional Público positivo, na letra dos arts. 53 e 64 da Conven6
7
Cf., a respeito, AMBOS, Kai, “Hacia el establecimiento de un Tribunal Penal Internacional permanente y un código penal internacional: observaciones desde el punto de vista del derecho penal internacional”, in Revista de
la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica, año 7, n.º 13, ago./1997, nota n.º 14.
Cf. CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo. “O Tribunal Penal Internacional e a Constituição brasileira”, in
O que é o Tribunal Penal Internacional, Brasília: Câmara dos Deputados/Coordenação de Publicações, 2000,
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ção de Viena sobre Direitos dos Tratados, de 1969, adotou uma regra importantíssima, a do jus cogens, que talvez possa ter servido de base (antes de sua positivação
em norma convencional) para o julgamento do Tribunal de Nuremberg, segundo a
qual há certos tipos de crimes tão abruptos e hediondos que existem independentemente de estarem regulados por norma jurídica positiva.8
A instituição de tribunais internacionais é conseqüência da tendência jurisdicionalizante do Direito Internacional contemporâneo. Neste momento em que se
presencia a fase da jurisdicionalização do direito das gentes, a sociedade internacional fomenta a criação de tribunais internacionais de variada natureza, para resolver
questões das mais diversas, apresentadas no contexto das relações internacionais. A
partir daqui é que pode ser compreendido o anseio generalizado pela a criação de
uma Justiça Penal Internacional, que dignifique e fortaleça a proteção internacional
dos direitos humanos em plano global.
A sociedade internacional, contudo, tem pretendido consagrar a responsabilidade penal internacional desde o final da Primeira Guerra Mundial, quando o
Tratado de Versalhes clamou, sem sucesso, pelo julgamento do ex-Kaiser Guilherme II por ofensa à moralidade internacional e à autoridade dos tratados,
bem como quando o Tratado de Sèvres, jamais ratificado, pretendeu responsabilizar o Governo Otomano pelo massacre dos armênios. Não obstante algumas
críticas formuladas em relação às razões de tais pretensões, no sentido de que
as mesmas não seriam imparciais ou universais, posto que fundadas no princípio
segundo o qual somente o vencido pode ser julgado, bem como de que estaria
sendo desrespeitado o princípio da não-seletividade na condução de julgamentos internacionais, o fato concreto é que tais critérios foram sim utilizados, de
maneira preliminar, pelo Acordo de Londres e pelo Control Council Law n.º 10
(instrumento da Cúpula dos Aliados), ao estabelecerem o Tribunal de Nuremberg, bem como pelo Tribunal Militar Internacional de Tóquio, instituído para
julgar as violências cometidas pelas autoridades políticas e militares japonesas,
já no período do pós-Segunda Guerra.9
Todas essas tensões internacionais, advindas desde a Primeira Guerra Mundial, tornavam, portanto, ainda mais premente a criação de uma Justiça Penal Internacional de caráter permanente, notadamente após a celebração da Convenção para
a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, das quatro Convenções
de Genebra sobre o Direito Humanitário, de 1949, e de seus dois Protocolos Adicionais, de 1977, da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos
8
9
Sobre as normas de jus cogens na Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados, vide MAZZUOLI, Valerio
de Oliveira, Tratados internacionais: com comentários à Convenção de Viena de 1969, 2ª ed., São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004, pp. 162-182.
Cf. JARDIM, Tarciso Dal Maso. “O Tribunal Penal Internacional e sua importância para os direitos humanos”, in
O que é o Tribunal Penal Internacional, Brasília: Câmara dos Deputados/Coordenação de Publicações, 2000,
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Crimes de Lesa Humanidade, de 1968 e dos Princípios de Cooperação Internacional
para Identificação, Detenção, Extradição e Castigo dos Culpáveis de Crimes de Guerra ou de Crimes de Lesa Humanidade, de 1973.
A criação de um tribunal penal internacional instituído para julgar as violações
de direitos humanos, presentes no planeta, foi também reafirmada pelo parágrafo
92 da Declaração e Programa de Ação de Viena, de 1993, nestes termos: “A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos recomenda que a Comissão de Direitos Humanos examine a possibilidade de melhorar a aplicação de instrumentos de direitos
humanos existentes em níveis internacional e regional e encoraja a Comissão de Direito Internacional a continuar seus trabalhos visando ao estabelecimento de um tribunal penal internacional”.
Como resposta a este antigo anseio da sociedade internacional, no sentido de
estabelecer uma corte criminal internacional de caráter permanente, nasce o Tribunal Penal Internacional, pelo Estatuto de Roma de 1998, que é a primeira instituição
permanente de justiça penal internacional e tem, entre outras vantagens, a de evitar
que somente os vencidos ou os menos poderosos sejam julgados e condenados, garantindo-se, assim, uma maior imparcialidade ao julgamento.10
2.
O “ESTATUTO DE ROMA” E A CRIAÇÃO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
Aprovado em julho de 1998, em Roma, na Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional teve por finalidade constituir um tribunal internacional com jurisdição criminal
permanente, dotado de personalidade jurídica própria, com sede na Haia, na Holanda.11 Foi aprovado por 120 Estados, contra apenas 7 votos contrários – China, Estados Unidos, Iêmen, Iraque, Israel, Líbia e Quatar – e 21 abstenções.12 Não obstante
a sua posição original, os Estados Unidos e Israel, levando em conta a má repercussão internacional ocasionada pelos votos em contrário, acabaram assinando o Estatuto em 31 de dezembro de 2000.13 Todavia, a ratificação do Estatuto, por essas mesmas potências, tornou-se praticamente fora de cogitação após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova York e Washington, bem como após as ope10 Cf. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público, 2º vol., cit., p. 913.
11 Para um estudo dos fundamentos jurídicos do TPI, vide AMBOS, Kai, “Les fondements juridiques de la Cour
penale internationale”, in Revue Trimestrielle des Droits de l’Homme, n.º 10, (1999) pp. 739 e ss.
12 Cf., a propósito, LEE, Roy S. (ed.), The International Criminal Court. The making of the Rome Statute: issues,
negotiations, results. The Hague: Kluwer Law International, 1999, 639p.
13 Países como os Estados Unidos, de postura absolutamente contrária à criação do Tribunal, tiveram, contudo, a
oportunidade de oferecer suas propostas para o alcance material do crime de genocídio ao grupo de trabalho
sobre os elementos do crime. Vide, sobre o assunto, HALL, Christopher Keith, “Las Primeras cinco sesiones de
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rações de guerra subsequentes no Afeganistão e Palestina, em flagrante violação à
normativa internacional. Assim foi que em 6 de maio de 2002 e em 28 de agosto do
mesmo ano, Estados Unidos e Israel, respectivamente, notificaram o Secretário-Geral das Nações Unidas de que não tinham a intenção de tornarem-se partes no respectivo tratado.14
O Estatuto do TPI entrou em vigor internacional em 1º de julho de 2002, correspondente ao primeiro dia do mês seguinte ao termo do período de 60 dias após
a data do depósito do sexagésimo instrumento de ratificação, de aceitação, de aprovação ou de adesão junto do Secretário-Geral das Nações Unidas, nos termos do seu
art. 126, § 1º.
O corpo diplomático brasileiro, que já participava mesmo antes da Conferência de Roma de 1998 de uma Comissão Preparatória para o estabelecimento de um
Tribunal Penal Internacional, teve destacada atuação em todo o processo de criação
deste Tribunal. E isto foi devido, em grande parte, em virtude do mandamento do
art. 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição brasileira de 1988, que assim preceitua: “O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos”.
Em 7 de fevereiro de 2000, o governo brasileiro assinou o tratado internacional referente ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional,15 tendo sido o
mesmo posteriormente aprovado pelo Parlamento brasileiro por meio do Decreto
Legislativo n.º 112, de 06.06.2002, e promulgado pelo Decreto n.º 4.388, de
25.09.2002.16 O depósito da carta de ratificação brasileira foi feito em 20.06.2002, momento a partir do qual o Brasil já se tornou parte no respectivo tratado. A partir desse momento, por força da norma do art. 5.º, § 2.º da Constituição brasileira de 1988
(verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”), o Estatuto de Roma do
Tribunal Penal Internacional integrou-se ao direito brasileiro com status de norma
constitucional, não podendo quaisquer dos direitos e garantias nele constantes serem abolidos por qualquer meio no Brasil, inclusive por emenda constitucional.17
O Tribunal Penal Internacional, que tem competência subsidiária em relação
14 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, cit., p. 448.
15 A assinatura do Brasil ao Estatuto de Roma do TPI foi precedida de belo Parecer da lavra do Prof. Dr. Antônio
Paulo Cachapuz de Medeiros, digníssimo Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
16 A versão integral brasileira do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (bem como a quase totalidade dos outros instrumentos internacionais citados no decorrer deste estudo) pode ser encontrada em MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Coletânea de Direito Internacional, 2º ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, pp. 691-745.
17 Sobre essa interpretação, relativa à incorporação dos tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico
brasileiro, vide MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Direitos humanos, Constituição e os tratados internacionais:
estudo analítico da situação e aplicação do tratado na ordem jurídica brasileira, São Paulo: Editora Juarez
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às jurisdições nacionais, é composto por um total de 128 artigos com um preâmbulo e treze partes (capítulos), quais sejam: I – criação do Tribunal; II – competência,
admissibilidade e direito aplicável; III – princípios gerais de direito penal; IV – composição e administração do Tribunal; V – inquérito e procedimento criminal; VI – o
julgamento; VII – as penas; VIII – recurso e revisão; IX – cooperação internacional
e auxílio judiciário; X – execução da pena; XI – Assembléia dos Estados-partes; XII
– financiamento; e XIII – cláusulas finais.
O preâmbulo do Estatuto proclama a determinação dos Estados em criar um Tribunal Penal Internacional, com caráter permanente e independente, complementar
das jurisdições penais nacionais,18 que exerça competência sobre os indivíduos, no que
respeita àqueles crimes de extrema gravidade que afetam a comunidade internacional
como um todo. O “regime de consentimento” proposto pela França e a proposta de jurisdição universal e direta do Tribunal, defendida bravamente pela Alemanha, não encontraram respaldo durante os trabalhos da Conferência Diplomática em Roma, tendo
sido a partir da proposta intermediária da Coréia do Sul, que se conseguiu chegar à elaboração do sistema de jurisdição restrita e complementar do Tribunal.19
Os crimes referidos pelo preâmbulo do Estatuto de Roma, são imprescritíveis
e podem ser catalogados em quatro categorias: crime de genocídio, crimes contra a
humanidade, crimes de guerra e crime de agressão. O Tribunal somente tem competência relativamente aos crimes cometidos após a sua instituição, ou seja, depois
de 1º de julho de 2002, data em que o seu Estatuto entrou em vigor internacional
(art. 11, § 1º). Ainda assim, nos termos do art. 11, § 2º do Estatuto de Roma, caso
um Estado se torne parte do Estatuto depois da sua entrada em vigor, o Tribunal somente poderá exercer sua competência para o processo e julgamento dos crimes
cometidos depois da entrada em vigor do Estatuto nesse Estado, a menos que este
tenha feito uma declaração específica em sentido contrário, nos termos do § 3° do
art. 12 do mesmo Estatuto, segundo o qual:
Se a aceitação da competência do Tribunal por um Estado que não
seja Parte no presente Estatuto for necessária nos termos do parágrafo 2º, pode o referido Estado, mediante declaração depositada
junto do Secretário, consentir em que o Tribunal exerça a sua competência em relação ao crime em questão. O Estado que tiver aceito a competência do Tribunal colaborará com este, sem qualquer
18 Consagrou-se, aqui, o princípio da complementaridade, segundo o qual o TPI não pode interferir indevidamente nos sistemas judiciais nacionais, que continuam tendo a responsabilidade primária de investigar e processar
os crimes cometidos pelos seus nacionais, salvo nos casos em que os Estados se mostrem incapazes ou não demonstrem efetiva vontade de punir os seus criminosos. Isto não ocorre, frise-se, com os tribunais internacionais ad hoc, que são concorrentes e têm primazia sobre os tribunais nacionais.
19 Cf. CHOUKR, Fauzi Hassan & AMBOS, Kai (orgs.). Tribunal penal internacional. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2000, pp. 07-08 (prefácio dos organizadores); e COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação his-
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demora ou exceção, de acordo com o disposto no Capítulo IX.
A jurisdição do Tribunal não é estrangeira, mas sim internacional, podendo afetar todo e qualquer Estado-parte da Organização das Nações Unidas. Ela também não
se confunde com a chamada jurisdição universal, que consiste na possibilidade de a
jurisdição interna de determinado Estado poder julgar crimes de guerra ou crimes
contra a humanidade cometidos em territórios alheios, a exemplo dos casos de extraterritorialidade admitidos pelo art. 7º, e seus incisos, do Código Penal brasileiro.
Segundo o Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional é uma pessoa jurídica de Direito Internacional com capacidade necessária para o desempenho de
suas funções e de seus objetivos. O Tribunal poderá exercer os seus poderes e funções nos termos do seu Estatuto, no território de qualquer Estado-parte e, por acordo especial, no território de qualquer outro Estado (art. 4º, §§ 1º e 2º). Sua jurisdição, obviamente, incidirá apenas em casos raros, quando as medidas internas dos
países se mostrarem insuficientes ou omissas no que respeita ao processo e julgamento dos acusados, bem como quando desrespeitarem as legislações penal e processual internas.
O Tribunal será inicialmente composto por 18 juízes, numero que poderá ser
aumentado por proposta de sua Presidência, que fundamentará as razões pelas
quais considera necessária e apropriada tal medida. A proposta será seguidamente
apreciada em sessão da Assembléia dos Estados-partes e deverá ser considerada
adotada se for aprovada na sessão, por maioria de dois terços dos membros da Assembléia dos Estados-partes, entrando em vigor na data fixada pela mesma Assembléia (cf. art. 36, §§ 1º e 2º).
Os juízes serão eleitos dentre pessoas de elevada idoneidade moral, imparcialidade e integridade, que reúnam os requisitos para o exercício das mais altas funções judiciais nos seus respectivos países. No caso brasileiro, portanto, a candidatura para uma vaga de juiz no TPI exige que a pessoa reúna as condições necessárias
para o exercício do cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal, inclusive a relativa à idade mínima de 35 e máxima de 65 anos, além do notável saber jurídico e da
reputação ilibada (CF, art. 101).20
Os referidos juízes serão eleitos por um mandato máximo de nove anos e não
poderão ser reeleitos. Na primeira eleição, um terço dos juízes eleitos será selecionado por sorteio para exercer um mandato de três anos; outro terço será selecionado,
também por sorteio, para exercer um mandato de seis anos; e os restantes exercerão
um mandato de nove anos. Um juiz selecionado para exercer um mandato de três
anos poderá, contudo, ser reeleito para um mandato completo (art. 36, § 9º, alínea c).
O Tribunal é composto pelos seguintes órgãos, nos termos do art. 34 do Esta20 O Brasil foi um dos países que conseguiu eleger representante para o cargo de juiz do TPI, tendo sido eleita a
Dra. Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, Desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, para o
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tuto: a) a Presidência (responsável pela administração da Corte); b) uma Seção de
Recursos, uma Seção de Julgamento em Primeira Instância e uma Seção de Instrução; c) o Gabinete do Promotor (chamado pelo Estatuto de “Procurador”, constituindo-se em órgão autônomo do Tribunal); e d) a Secretaria (competente para assuntos não judiciais da administração do Tribunal).
No que tange à composição do Tribunal, merece destaque a figura do Promotor. Este será eleito por escrutínio secreto e por maioria absoluta de votos dos membros da Assembléia dos Estados-partes, para um mandato de nove anos, sendo vedada a reeleição. O Gabinete do Promotor atuará de forma independente, enquanto órgão autônomo do Tribunal, cabendo-lhe recolher comunicações e quaisquer
outros tipos de informações, devidamente fundamentadas, sobre crimes da competência do Tribunal, a fim de as examinar e investigar e de exercer a ação penal junto
ao Tribunal (art. 42, § 1º). Da mesma forma que os juízes, o Promotor cumprirá suas
funções com plena liberdade de consciência e imparcialidade.
Os Estados-partes deverão, em conformidade com o disposto no Estatuto,
cooperar plenamente com o Tribunal no inquérito e no procedimento contra crimes
da competência deste. O Tribunal estará habilitado a dirigir pedidos de cooperação
aos Estados-partes. Estes pedidos serão transmitidos pela via diplomática ou por
qualquer outra via apropriada escolhida pelo Estado-parte no momento da ratificação, aceitação, aprovação ou adesão ao Estatuto (arts. 86 e 87, § 1º).
É interessante notar que, nos termos do art. 88 do Estatuto, os Estados-partes
deverão assegurar-se de que o seu direito interno prevê procedimentos que permitam responder a todas as formas de cooperação especificadas no Capítulo IX do Estatuto (relativo à cooperação internacional e auxílio judiciário).
Outro ponto importante a ser destacado, diz respeito às questões relativas à
admissibilidade de um caso perante o Tribunal. Nos termos do art. 17 do Estatuto,
o Tribunal poderá decidir sobre a não-admissibilidade de um caso se: a) o caso for
objeto de inquérito ou de procedimento criminal por parte de um Estado que tenha
jurisdição sobre o mesmo, salvo se este não tiver vontade de levar a cabo o inquérito ou o procedimento ou não tenha capacidade para o fazer; b) o caso tiver sido objeto de inquérito por um Estado com jurisdição sobre ele e tal Estado tenha decidido não dar seguimento ao procedimento criminal contra a pessoa em causa, a menos que esta decisão resulte do fato de esse Estado não ter vontade de proceder criminalmente ou da sua incapacidade real para o fazer; c) a pessoa em causa já tiver
sido julgada pela conduta a que se refere a denúncia, e não puder ser julgada pelo
Tribunal em virtude do disposto no § 3° do art. 20; ou d) o caso não for suficientemente grave para justificar a ulterior intervenção do Tribunal.
Nos termos do § 2º do mesmo art. 17, a fim de determinar se há ou não
vontade de agir num determinado caso, o Tribunal, tendo em consideração as
garantias de um processo eqüitativo reconhecidas pelo Direito Internacional, verificará a existência de uma ou mais das seguintes circunstâncias: a) o processo
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ter sido instaurado ou estar pendente ou a decisão ter sido proferida no Estado
com o propósito de subtrair a pessoa em causa à sua responsabilidade criminal
por crimes da competência do Tribunal, nos termos do disposto no art. 5º; b) ter
havido demora injustificada no processamento, a qual, dadas as circunstâncias,
se mostra incompatível com a intenção de fazer responder a pessoa em causa
perante a justiça; ou c) o processo não ter sido ou não estar sendo conduzido
de maneira independente ou imparcial, e ter estado ou estar sendo conduzido
de uma maneira que, dadas as circunstâncias, seja incompatível com a intenção
de levar a pessoa em causa perante a justiça.
Além do mais, a fim de determinar se há incapacidade de agir num determinado caso, o Tribunal verificará se o Estado, por colapso total ou substancial da respectiva administração da justiça ou por indisponibilidade desta, não está em condições de fazer comparecer o acusado, de reunir os meios de prova e depoimentos
necessários ou não está, por outros motivos, em condições de concluir o processo
(art. 17, § 3º).
O Estatuto atribui ao conselho de Segurança da ONU a faculdade de solicitar
ao Tribunal, por meio de resolução aprovada nos termos do disposto no Capítulo
VII da Carta das Nações Unidas, que não seja iniciado ou que seja suspenso o inquérito ou procedimento crime que tiver sido iniciado.
Nos termos do art. 16 do Estatuto, nenhum inquérito ou procedimento
crime poderá ter início ou prosseguir os seus termos por um período de doze
meses a contar da data em que o Conselho de Segurança assim o tiver solicitado em resolução aprovada nos termos do disposto no Capítulo VII da Carta das
Nações Unidas. O pedido poderá ser renovado pelo Conselho de Segurança nas
mesmas condições, ficando o Tribunal impedido de iniciar o inquérito ou de dar
andamento ao procedimento já iniciado.
As despesas do Tribunal e da Assembléia dos Estados-partes, incluindo a
sua Mesa e os seus órgãos subsidiários, inscritas no orçamento aprovado pela Assembléia, serão financiadas: a) pelas quotas dos Estados-partes; e b) pelos fundos provenientes da Organização das Nações Unidas, sujeitos à aprovação da Assembléia Geral, nomeadamente no que diz respeito às despesas relativas a questões remetidas para o Tribunal pelo Conselho de Segurança (art. 115).
O Estatuto veda expressamente a possibilidade de sua ratificação ou adesão
com reservas, nos termos do seu art. 120. Isto evita os eventuais conflitos de interpretação existentes, sobre quais reservas são e quais não são admitidas pelo direito
internacional, retirando dos países cépticos a possibilidade de escusa para o cumprimentos de suas obrigações.21 Caso fossem admitidas reservas ao Estatuto, países menos desejosos de cumprir os seus termos poderiam pretender excluir (por meio de
21 Cf., nesse sentido, CHOUKR, Fauzi Hassan & AMBOS, Kai (orgs.), Tribunal penal internacional, cit., p. 10
(prefácio dos organizadores).
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reserva) a entrega de seus nacionais ao Tribunal, alegando que tal ato violaria a proibição constitucional de extradição de nacionais,22 não obstante o Estatuto ter distinguido a “entrega” da “extradição” no seu art. 102, alíneas a e b. O impedimento da
ratificação com reservas, portanto, é uma ferramenta eficaz para a perfeita atividade
e funcionamento do Tribunal.
Nos termos do art. 121 e parágrafos do Estatuto, depois de sete anos de sua
entrada em vigor, qualquer Estado-parte poderá propor-lhe alterações, submetendo
o texto das propostas de alterações ao Secretário-Geral da Organização das Nações
Unidas, que convocará uma Conferência de Revisão, a fim de examinar as eventuais
alterações no texto. A adoção de uma alteração numa reunião da Assembléia dos Estados-partes ou numa Conferência de Revisão exigirá a maioria de dois terços dos
Estados-partes, quando não for possível chegar a um consenso. O Tribunal, contudo, não exercerá a sua competência relativamente a um crime abrangido pela alteração sempre que este tiver sido cometido por nacionais de um Estado-parte que
não tenha aceitado a alteração, ou cometido no território desse Estado-parte.
3.
COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
O Tribunal Penal Internacional, como já se noticiou, é competente para julgar,
com caráter permanente e independente, os crimes mais graves que afetam todo o
conjunto da sociedade internacional dos Estados e que ultrajam a consciência da humanidade. Tais crimes, que não prescrevem, são os seguintes: crime de genocídio,
crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão.23 A competência do Tribunal em relação aos referidos crimes, deve-se frisar mais uma vez, só vigora em relação àquelas violações praticadas depois da entrada em vigor do Estatuto. Caso um Estado se torne parte no Estatuto depois de sua entrada em vigor, o Tribunal Penal Internacional só poderá exercer a sua competência em relação aos crimes cometidos depois da entrada em vigor do Estatuto nesse Estado.
3.1. Crime de genocídio
22 Veja-se algumas das dificuldades envolvendo a aplicação dos tratados multilaterais que definem os crimes internacionais, no que tange à questão da impossibilidade de extradição, em SOARES, Guido Fernando Silva, “O
terrorismo internacional e a Corte Internacional de Justiça”, in BRANT, Leonardo Nemer Caldeira, Terrorismo
e direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no Brasil – perspectivas político-jurídicas, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 224-225.
23 Vide, sobre o assunto, BOOT, Machteld, Genocide, Crimes against Humanity, War Crimes: nullum crimen
sine lege and the subject matter jurisdiction of the International Criminal Court. Antwerp: Intersentia, 2002;
REED, Brody, “International crimes, peace and human rights: the role of the International Criminal Court/The
Rome Statute of the International Criminal Court: a challenge to impunity”, in The American Journal of Na-
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O crime de genocídio foi, sem sombra de dúvida, uma das principais preocupações do pós-Segunda Guerra, que levou à adoção, pela Resolução 260-A (III), da
Assembléia Geral das Nações Unidas, da Convenção sobre a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, em 9 de dezembro de 1948.24 Nos termos do art. 2º desta Convenção, entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos
com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial
ou religioso, tais como: a) assassinato de membros do grupo; b) dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submissão intencional do grupo
a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; d)
medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e e) transferência
forçada de menores do grupo para outro grupo.
Nos termos da Convenção (art. 3º), serão punidos os seguintes atos: a) o genocídio; b) o conluio para cometer o genocídio; c) a incitação direta e pública a cometer o genocídio; d) a tentativa de genocídio; e e) a cumplicidade no genocídio.
Nos termos de seu art. 5º, as partes contratantes da Convenção assumem o
compromisso de tomar, de acordo com as respectivas Constituições, as medidas legislativas necessárias a assegurar a aplicação de suas disposições e, sobretudo, a estabelecer sanções penais eficazes aplicáveis às pessoas culpadas de genocídio ou de
qualquer dos outros atos enumerados no art. 3º.
O seu art. 6º, é interessante observar, já propugnava pela criação de uma corte internacional criminal, nestes termos: “As pessoas acusadas de genocídio ou de
qualquer dos outros atos enumerados no art. 3º serão julgadas pelos tribunais competentes do Estado em cujo território foi o ato cometido ou pela corte penal internacional competente com relação às Partes Contratantes que lhe tiverem reconhecido a jurisdição” [grifo nosso].
De lá para cá, afirmou-se, cada vez mais, no seio da sociedade internacional,
o caráter de norma costumeira do crime de genocídio, posição também consolidada na Corte Internacional de Justiça, na Opinião Consultiva emitida em 28 de maio
de 1951, sobre as “Reservas à Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime
de Genocídio”, onde tal ilícito foi reconhecido como sendo um “crime do direito internacional”.25
O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, acompanhando esta evolução do direito internacional dos direitos humanos e do direito humanitário, defi24 Tal Convenção foi aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n.º 2, de 11 de abril de 1951, e promulgada pelo
Decreto n.º 30.822, de 6 de maio de 1952. Esta Convenção integra o direito interno brasileiro com status de
norma constitucional, nos termos do art. 5º, § 2º, da Constituição de 1988, que recepciona os direitos humanos provenientes de tratados com hierarquia igual a das normas constitucionais e com aplicação imediata. Sobre o assunto, vide MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Direitos humanos, Constituição e os tratados internacionais…, cit., pp. 233-252. No Brasil, a Lei n.º 2.889, de 1º de outubro de 1956, define e pune o crime de genocídio.
25 Cf. JARDIM, Tarciso Dal Maso. “O Tribunal Penal Internacional e sua importância para os direitos humanos”,
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niu o crime de genocídio no seu art. 6º. Para os efeitos do Estatuto de Roma, entende-se por “genocídio” qualquer um dos atos a seguir enumerados, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal, a saber: a) homicídio de membros do grupo; b) ofensas graves
à integridade física ou mental de membros do grupo; c) sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial;
d) imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e e)
transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.
A consagração do crime de genocídio, pelo Estatuto de Roma, é bom que se
frise, se deu a exatos 50 anos da proclamação, pelas Nações Unidas, da Convenção
sobre a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Trata-se, portanto, de um
dos maiores e mais importantes presentes, já entregues à humanidade, pelo cinqüentenário da Convenção de 1948.
3.2. Crimes contra a humanidade
Os crimes contra a humanidade têm sua origem histórica no massacre provocado pelos turcos contra os armênios, na Primeira Guerra Mundial, qualificado pela
Declaração do Império Otomano (feita pelos governos russo, francês e britânico, em
maio de 1915, em Petrogrado) como um crime da Turquia contra a humanidade e a
civilização.
Nos termos do art. 7º, § 1.º, do Estatuto de Roma, entende-se por “crime contra a humanidade” (crime against humanity), qualquer um dos atos seguintes,
quando cometidos no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra
qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque, a saber: a) homicídio; b) extermínio; c) escravidão; d) deportação ou transferência forçada de uma
população; e) prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; f) tortura; g) agressão sexual,
escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou
qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; h)
perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos
políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, ou em função
de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste mesmo parágrafo ou com
qualquer crime da competência do Tribunal; i) desaparecimento forçado de pessoas; j) crime de apartheid; e ainda k) outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.26
26 Sobre o assunto, vide GUZMAN, Margaret McAuliffe de. “The Road from Rome: the developing law of crimes
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O § 2º, do mesmo art. 7º, explica os significados de cada um dos termos inseridos no § 1º. Por “ataque contra uma população civil” entende-se qualquer conduta que envolva a prática múltipla de atos contra uma população civil, de acordo com
a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em
vista a prossecução dessa política.
O “extermínio” compreende a sujeição intencional a condições de vida, tais
como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição de uma parte da população.
Por “escravidão” entende-se o exercício, relativamente a uma pessoa, de um
poder ou de um conjunto de poderes que traduzam um direito de propriedade sobre uma pessoa, incluindo o exercício desse poder no âmbito do tráfico de pessoas,
em particular mulheres e crianças.
A “deportação ou transferência à força de uma população” é entendida como
o deslocamento forçado de pessoas, através da expulsão ou outro ato coercivo, da
zona em que se encontram legalmente, sem qualquer motivo reconhecido no direito internacional.
Por “tortura” entende-se o ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa que esteja sob
a custódia ou o controle do acusado. Este termo, entretanto, não compreende a dor
ou os sofrimentos resultantes unicamente de sanções legais, inerentes a essas sanções ou por elas ocasionadas.
Por “gravidez à força” entende-se a privação ilegal de liberdade de uma mulher que foi engravidada à força, com o propósito de alterar a composição étnica de
uma população ou de cometer outras violações graves do direito internacional. Mas
esta definição não pode, de modo algum, ser interpretada como afetando as disposições do direito interno relativas à gravidez.
A “perseguição’’ é entendida como a privação intencional e grave de direitos
fundamentais em violação do direito internacional, por motivos relacionados com a
identidade do grupo ou da coletividade em causa.
Por “crime de apartheid” entende-se qualquer ato desumano praticado no
contexto de um regime institucionalizado de opressão e domínio sistemático de um
grupo racial sobre um ou outros grupos nacionais e com a intenção de manter esse
regime.
Por fim, por “desaparecimento forçado de pessoas” entende-se a detenção, a
prisão ou o seqüestro de pessoas por um Estado ou uma organização política ou
com a autorização, o apoio ou a concordância destes, seguidos de recusa a reconhecer tal estado de privação de liberdade ou a prestar qualquer informação sobre a situação ou localização dessas pessoas, com o propósito de lhes negar a proteção da
lei por um prolongado período de tempo.
O § 3º do art. 7º, deixa claro que, para efeitos do Estatuto, entende-se que o
termo “gênero” abrange os sexos masculino e feminino, dentro do contexto da so-
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ciedade, não lhe devendo ser atribuído qualquer outro significado.
3.3. Crimes de guerra
Os crimes de guerra, também conhecidos como “crimes contra as leis e costumes aplicáveis em conflitos armados”, são fruto de uma longa evolução do direito internacional humanitário, desde o século passado, tendo sido impulsionado
pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, ganhando foros de juridicidade com
as quatro Convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949, e com as bases teóricas do direito costumeiro de guerra.27
Dos crimes de guerra, cuida o art. 8º do Estatuto de Roma. Segundo o § 1º,
desse dispositivo, o Tribunal terá competência para julgar os crimes de guerra, em
particular quando cometidos como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala desse tipo de crimes.
Nos termos do longo § 2º do mesmo artigo, são exemplos de crimes de guerra, entre outros, as violações graves às Convenções de Genebra, de 12 de agosto de
1949, a exemplo de qualquer um dos seguintes atos, dirigidos contra pessoas ou
bens protegidos nos termos da Convenção de Genebra que for pertinente, a saber:
a) homicídio doloso; b) tortura ou outros tratamentos desumanos, incluindo as experiências biológicas; c) o ato de causar intencionalmente grande sofrimento ou
ofensas graves à integridade física ou à saúde; d) destruição ou apropriação de bens
em larga escala, quando não justificadas por quaisquer necessidades militares e executadas de forma ilegal e arbitrária; e) o ato de compelir um prisioneiro de guerra
ou outra pessoa sob proteção a servir nas forças armadas de uma potência inimiga;
f) privação intencional de um prisioneiro de guerra ou de outra pessoa sob proteção do seu direito a um julgamento justo e imparcial; g) deportação ou transferência ilegais, ou a privação ilegal de liberdade; e h) tomada de reféns.
São também exemplos de crimes de guerra, nos termos do Estatuto, outras
violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais
no âmbito do Direito Internacional, a exemplo dos seguintes atos: a) dirigir intencionalmente ataques à população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades; b) dirigir intencionalmente ataques a bens civis, ou seja,
bens que não sejam objetivos militares; c) dirigir intencionalmente ataques ao pessoal, instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção da paz ou de assistência humanitária, de acordo com a Carta das Nações
Unidas, sempre que estes tenham direito à proteção conferida aos civis ou aos bens
civis pelo direito internacional aplicável aos conflitos armados; d) lançar intencionalmente um ataque, sabendo que o mesmo causará perdas acidentais de vidas huma27 Vide, sobre o assunto, DÖRMANN, Knut, Elements of war crimes under the Rome Statute of the International
Criminal Court: sources and commentary, Cambridge: Cambridge University Press, 2003, 498p.
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nas ou ferimentos na população civil, danos em bens de caráter civil ou prejuízos extensos, duradouros e graves no meio ambiente que se revelem claramente excessivos em relação à vantagem militar global concreta e direta que se previa; e) atacar
ou bombardear, por qualquer meio, cidades, vilarejos, habitações ou edifícios que
não estejam defendidos e que não sejam objetivos militares; f) matar ou ferir um
combatente que tenha deposto armas ou que, não tendo mais meios para se defender, se tenha incondicionalmente rendido; g) submeter pessoas que se encontrem
sob o domínio de uma parte beligerante a mutilações físicas ou a qualquer tipo de
experiências médicas ou científicas que não sejam motivadas por um tratamento
médico, dentário ou hospitalar, nem sejam efetuadas no interesse dessas pessoas, e
que causem a morte ou coloquem seriamente em perigo a sua saúde; h) matar ou
ferir à traição pessoas pertencentes à nação ou ao exército inimigo etc.
O Estatuto de Roma também traz várias novidades no campo dos crimes de
guerra, como por exemplo, ao incluir, no rol dos crimes dessa espécie, os conflitos
armados não internacionais, que são a maioria dos conflitos existentes na atualidade, a exemplo daqueles ocorridos na Ex-Iugoslávia e em Ruanda, que representaram
uma séria ameaça à segurança e à paz internacionais. Isto não se confunde, entretanto, com as situações de distúrbio e de tensão internas, tais como motins, atos de
violência esporádicos ou isolados ou outros de caráter semelhante (art. 8º, § 2º, alíneas d e f).
Enfim, este rol exemplificativo dos crimes de guerra previstos pelo Estatuto de
Roma já basta para justificar a criação de uma corte penal internacional de caráter
permanente, com competência para processar e julgar os maiores responsáveis pela
violação do direito internacional humanitário.
3.4. Crime de agressão
O crime de agressão sempre causou polêmica na doutrina, desde as primeiras
questões envolvendo a licitude ou ilicitude da guerra, sabendo-se que, no plano internacional, a guerra foi declarada um meio ilícito de solução de controvérsias internacionais (art. 2º, § 4º, da Carta das Nações Unidas), mas já anteriormente afirmado
pelo Pacto de Renúncia à Guerra de 1928 (Pacto Briand-Kellog), que assim dispõe
no seu art. 1º: “As Altas Partes Contratantes declaram, solenemente, em nome de
seus respectivos povos, que condenam o recurso à guerra para a solução das controvérsias internacionais, e a isso renunciam, como instrumento de política nacional, em suas relações recíprocas”.
Como acertadamente leciona Tarciso Dal Maso Jardim, a discussão
da abrangência de recorrer à ameaça e ao uso da força, estabelecida pelo referido artigo, rendeu várias correntes doutrinárias,
como a do direito de ingerência por razões humanitárias. A con-
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fusão se dá porque essa abstenção deve ser, segundo o art. 2º, § 4º
[da Carta da ONU], contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado ou outro modo incompatível com os
objetivos das Nações Unidas.28
A não-existência de uma definição precisa de agressão, suficientemente
abrangente para servir como elemento constitutivo do “crime de agressão” e, consequentemente, para fundamentar a responsabilidade penal internacional dos indivíduos, dificultou, portanto, a inclusão dessa espécie de crime no Estatuto de Roma
de 1998.
Por esses e outros motivos igualmente relevantes, foi que, dos quatro crimes incluídos na competência do TPI, a definição do crime de agressão foi propositadamente relegada a uma etapa posterior, nos termos do art. 5º, § 2º (c/c os arts. 121 e 123) do
Estatuto, segundo o qual o Tribunal poderá exercer a sua competência em relação ao
crime de agressão desde que seja aprovada uma disposição em que se defina o crime
e se enunciem as condições em que o Tribunal terá competência relativamente a tal crime. Essa nova disposição poderá ser por emenda (art. 121) ou por revisão (art. 123),
pois durante a Conferência de Roma não houve consenso sobre a tipificação dessa espécie de ilícito internacional. O Estatuto esclarece ainda que tal disposição deve ser
compatível com as disposições pertinentes da Carta das Nações Unidas.
A tipificação jurídica do crime de agressão será resultado dos trabalhos da Comissão Preparatória do TPI (PrepCom), que está entabulando negociações no sentido de
se chegar a um consenso sobre os elementos constitutivos de tal crime internacional.
Como leciona Fábio Konder Comparato, a idéia
de qualificar os atos de agressão bélica como crimes contra a paz
internacional surgiu, pela primeira vez, na Conferência de Versalhes, de 1919, que criou a Sociedade das Nações. O art. 227 do tratado então assinado instituiu um tribunal especial incumbido de
julgar o ex-Kaiser Guilherme II, ‘culpado de ofensa suprema à moral internacional e à autoridade dos tratados’. Sucede que a Holanda, país no qual se asilou o antigo monarca, recusou-se a extraditá-lo, alegando a sua imunidade internacional de Chefe de
28 Cf. JARDIM, Tarciso Dal Maso. “O Tribunal Penal Internacional e sua importância para os direitos humanos”,
cit., p. 28.
29 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, cit., p. 453. A recusa da Holanda em extraditar o Kaiser, constituiu violação do disposto no próprio Tratado de Versailles de 1919. Adotou-se,
à época, o velho a arraigado entendimento de que os indivíduos não podem ser tidos como sujeitos de Direito Internacional, pois são os Estados que atuam no cenário político externo, sendo os indivíduos meros representantes seus. Desde a instituição do Tribunal de Nuremberg esta doutrina foi afastada e não pode mais, sob
quaisquer aspectos, ser reafirmada para livrar de punição aqueles que cometem genocídio, crimes de guerra,
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Estado, à época em que praticou os atos de que era acusado.29
Este entendimento manifestado à época, relativo à imunidade de jurisdição
dos chefes de Estado, como veremos mais à frente, foi hoje abolido pela regra do
art. 27, §§ 1º e 2º do Estatuto de Roma de 1998, que não o admite em quaisquer
hipóteses.
4.
O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E OS (APARENTES) CONFLITOS COM A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988
Uma das principais virtudes do Estatuto de Roma reside na consagração do
princípio segundo o qual a responsabilidade penal por atos violadores do Direito Internacional deve recair sobre os indivíduos que os perpetraram, deixando de ter
efeito as eventuais imunidades e privilégios ou mesmo a posição ou os cargos oficiais que os mesmos porventura ostentem.30
Nos termos do art. 25, e parágrafos, do Estatuto, o Tribunal tem competência
para julgar e punir pessoas físicas, sendo considerado individualmente responsável
quem cometer um crime da competência do Tribunal. Nos termos do Estatuto, será
considerado criminalmente responsável e poderá ser punido pela prática de um crime da competência do Tribunal quem: a) cometer esse crime individualmente ou
em conjunto ou por intermédio de outrem, quer essa pessoa seja, ou não, criminalmente responsável; b) ordenar, solicitar ou instigar a prática desse crime, sob forma
consumada ou sob a forma de tentativa; c) com o propósito de facilitar a prática desse crime, for cúmplice ou encobridor, ou colaborar de algum modo na prática ou na
tentativa de prática do crime, nomeadamente pelo fornecimento dos meios para a
sua prática; e d) contribuir de alguma outra forma para a prática ou tentativa de prática do crime por um grupo de pessoas que tenha um objetivo comum.
O Estatuto de Roma repete a conquista do Estatuto do Tribunal de Nuremberg
em relação aos cargos oficiais daqueles que praticaram crimes contra o Direito Internacional. Nos termos do art. 27, §§ 1º e 2º, do Estatuto de Roma, a competência
do Tribunal aplica-se de forma igual a todas as pessoas, sem distinção alguma baseada na sua qualidade oficial.31 Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou
de Governo, de membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou
de funcionário público, em caso algum poderá eximir a pessoa em causa de responsabilidade criminal nos termos do Estatuto, nem constituirá de per se motivo para a
30 Cf., a propósito, HORTATOS, Constantine P. Individual criminal responsibility for human rights atrocities in
international criminal law and the creation of a permanent International Criminal Court. Athens: Ant.
N.Sakkoulas Publishers, 1999.
31 A respeito do assunto, vide PAULUS, Andreas L., “Legalist groundwork for the International Criminal Court:
commentaries on the Statute of the International Criminal Court”, in European Journal of International Law,
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redução da pena. Diz ainda o Estatuto que as imunidades ou normas de procedimentos especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa, nos termos do direito interno ou do direito internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa.
A consagração do princípio da responsabilidade penal internacional dos indivíduos é, sem dúvida, uma conquista da humanidade. E esta idéia vem sendo sedimentada desde os tempos em que Hugo Grotius lançou as bases do moderno Direito Internacional Público. Este grande jurista holandês divergiu, ao seu tempo, da noção corrente àquela época – e que ainda mantém alguns seguidores na atualidade
– de que o Direito Internacional está circunscrito tão-somente às relações entre Estados, não podendo dizer respeito diretamente aos indivíduos.32
O chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos, que emerge finda a
Segunda Guerra Mundial, vem sepultar de vez esta antiga doutrina, que não atribuía
aos indivíduos personalidade jurídica de direito das gentes. A idéia crescente de que
os indivíduos devem ser responsabilizados no cenário internacional, em decorrência dos crimes cometidos contra o Direito Internacional, vem bastante reforçada no
Estatuto de Roma que, além de ensejar a punição dos indivíduos como tais, positivou, no bojo de suas normas, ineditamente, os princípios gerais de direito penal internacional (arts. 22 a 33), bem como trouxe regras claras e bem estabelecidas sobre o procedimento criminal perante o Tribunal (arts. 53 a 61). Tal acréscimo vem
suprir as lacunas deixadas pelas Convenções de Genebra de 1949, que sempre foram criticadas pelo fato de terem dado pouca ou quase nenhuma importância às regras materiais e processuais da ciência jurídica criminal.33
Tais regras penais e procedimentais, estabelecidas pelo Estatuto de Roma,
com uma leitura apressada do texto convencional, podem pressupor certa incompatibilidade com o direito constitucional brasileiro, mais especificamente em relação a
três assuntos de fundamental importância disciplinados pelo Estatuto: a) a entrega
de nacionais ao Tribunal; b) a pena de prisão perpétua, e; c) a questão das imunidades em geral e as relativas ao foro por prerrogativa de função.
Segundo o art. 58, § 1º, alíneas a e b, do Estatuto, a todo o momento após a abertura do inquérito, o Juízo de Instrução poderá, a pedido do Promotor, emitir um mandado de detenção contra uma pessoa se, após examinar o pedido e as provas ou outras
informações submetidas pelo Promotor, considerar que existem motivos suficientes
para crer que essa pessoa cometeu um crime da competência do Tribunal e a detenção
dessa pessoa se mostra necessária para garantir o seu comparecimento no Tribunal, assim como garantir que a mesma não obstruirá, nem porá em perigo, o inquérito ou a
ação do Tribunal. O mandado de detenção também poderá ser emitido, se for o caso,
32 CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo. “O Tribunal Penal Internacional e a Constituição brasileira”, cit., pp.
12-13.
33 Cf. CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo. Idem, p. 15.
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para impedir que a pessoa continue a cometer esse crime ou um crime conexo que seja
da competência do Tribunal e tenha a sua origem nas mesmas circunstâncias.
Como leciona Cachapuz de Medeiros, é essencial
para que se garanta a efetiva administração da Justiça Penal Internacional que esta tenha a faculdade de determinar que os acusados da prática dos crimes reprimidos pelo Estatuto sejam colocados à disposição do Tribunal. Seria inútil o esforço de criar o Tribunal Penal Internacional caso não se conferisse ao mesmo o poder de determinar que os acusados sejam compelidos a comparecer em juízo.34
Para o êxito dessas finalidades, o Estatuto prevê um regime de cooperação entre os seus Estados-partes. Nos termos do art. 86 do Estatuto, os Estados-partes deverão cooperar plenamente com o Tribunal, no inquérito e no procedimento criminal, em relação aos crimes de sua competência. Tais Estados, diz o art. 88, deverão
assegurar-se de que o seu direito interno prevê procedimentos que permitam responder a todas as formas de cooperação especificadas no Estatuto.
A colaboração dos Estados, portanto, é fundamental para o êxito do inquérito e
do procedimento criminal perante o Tribunal. Tais Estados devem cooperar com o Tribunal da forma menos burocrática possível, atendendo ao princípio da celeridade.
4.1. A entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional
O primeiro conflito aparente entre uma disposição do Estatuto de Roma e a
Constituição brasileira de 1988 advém do teor do art. 89, § 1º, do Estatuto, segundo
o qual o Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega (surrender) de
uma pessoa a qualquer Estado em cujo território essa pessoa possa se encontrar, e
solicitar a cooperação desse Estado na detenção e entrega da pessoa em causa, tendo os Estados-partes o dever de dar satisfação ao Tribunal aos pedidos de detenção
e de entrega de tais pessoas, em conformidade com o Estatuto e com os procedimentos previstos nos seus respectivos direitos internos.
Não obstante os procedimentos nacionais para prisão continuarem sendo
aplicados, eventuais normas internas sobre privilégios e imunidades referentes a
cargos oficiais, bem como regras sobre não-extradição de nacionais, não serão causas válidas de escusa para a falta de cooperação por parte dos Estados-membros do
Tribunal.35
A Constituição brasileira de 1988, no seu art. 5º, incisos LI e LII, dispõe, res34 CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo. Idem, p. 13.
35 Cf. CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo. Idem, p. 14.
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pectivamente, que “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em
caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”; e também que “não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de
opinião”. Tais incisos do art. 5.º da Constituição, pertencendo ao rol dos direitos
fundamentais, estão cobertos pelo art. 60, § 4º, inc. IV, da mesma Carta, segundo o
qual “não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”.
Por este motivo é que o Estatuto de Roma, levando em consideração disposições semelhantes de vários textos constitucionais modernos, distingue claramente
o que entende por “entrega” e por “extradição”. Nos termos do seu art. 102, alíneas
a e b, para os fins do Estatuto entende-se por “entrega”, o ato de o Estado entregar
uma pessoa ao Tribunal “nos termos do presente Estatuto”, e por “extradição”, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado “conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno de determinado Estado”.36 Portanto, se a entrega de uma pessoa, feita pelo Estado ao Tribunal, se der nos
termos do Estatuto de Roma, tal ato caracteriza-se como “entrega”, mas caso o ato
seja concluído, por um Estado em relação a outro, com base no previsto em tratado ou convenção ou no direito interno de determinado Estado, neste caso tratase de “extradição”.
O art. 91, § 2.º, alínea c, do Estatuto, impõe uma regra clara de cooperação
dos Estados com o Tribunal, no sentido de que as exigências para a entrega de alguém ao Tribunal não podem ser mais rigorosas do que as que devem ser observadas pelo país em caso de um pedido de extradição.
Como corretamente destaca Cachapuz de Medeiros, a diferença fundamental
consiste em ser o Tribunal uma instituição criada para processar e
julgar os crimes mais atrozes contra a dignidade humana de uma
forma justa, independente e imparcial. Na condição de órgão internacional, que visa realizar o bem-estar da sociedade mundial, porque reprime crimes contra o próprio Direito Internacional, a entrega do Tribunal não pode ser comparada à extradição.37
Portanto, não se trata de entregar alguém para outro sujeito de Direito Internacional Público, de categoria igual a do Estado-parte, também dotado de soberania
na ordem internacional, mas sim a um organismo internacional de que fazem par-
36 No plano da legislação infraconstitucional brasileira, a Lei n.º 6.815, de 19 de agosto de 1980 (Estatuto do Estrangeiro), estabelece, no seu art. 76, que: “A extradição poderá ser concedida quando o governo requerente
se fundamentar em tratado, ou quando prometer ao Brasil a reciprocidade”.
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te vários Estados. Daí entendermos que o ato de entrega é feito pelo Estado a um
tribunal internacional de jurisdição permanente, diferentemente da extradição,
que é feita por um Estado a outro, a pedido deste, em plano de absoluta igualdade,
em relação a indivíduo neste último processado ou condenado e lá refugiado. A extradição envolve sempre dois Estados soberanos, sendo ato de cooperação entre
ambos na repressão internacional de crimes,38 diferentemente do que o Estatuto de
Roma chamou de entrega, onde a relação de cooperação se processa entre um Estado e o próprio Tribunal.
O fundamento que existe para que as Constituições contemporâneas prevejam a não-extradição de nacionais, está ligado ao fato de a justiça estrangeira poder
ser injusta e julgar o nacional do outro Estado sem imparcialidade, o que evidentemente não se aplica ao caso do Tribunal Penal Internacional, cujos crimes já estão
definidos no Estatuto de Roma, e cujas normas processuais são das mais avançadas
do mundo no que tange às garantias da justiça e da imparcialidade dos julgamentos.
Portanto, a entrega de nacionais do Estado ao Tribunal Penal Internacional, estabelecida pelo Estatuto de Roma, não fere o direito individual da não-extradição de
nacionais, insculpido no art. 5º, inc. LI da Constituição brasileira de 1988, bem como
o direito de não-extradição de estrangeiros por motivos de crime político ou de opinião, constante do inc. LII do mesmo art. 5º da Carta de 1988.
Parece clara, assim, a distinção entre a entrega de um nacional brasileiro a
uma corte com jurisdição internacional, da qual o Brasil faz parte, por meio de tratado que ratificou e se obrigou a fielmente cumprir, e a entrega de um nacional nosso (esta sim proibida pela Constituição) a um tribunal estrangeiro, cuja jurisdição
está afeta à soberania de uma outra potência estrangeira, que não a nossa e de cuja
construção nós não participamos com o produto da nossa vontade.
Não bastasse essa diferença técnica, uma outra ainda se apresenta. Embora,
nos termos do Estatuto de Roma, as regras internas dos Estados continuem tendo
validade, não serão aceitas determinadas escusas – dentre elas a de que não se pode
entregar nacionais do Estado ao Tribunal – para a não-cooperação desses Estados
com o Tribunal. Um Estado-parte no Estatuto que não entrega um nacional seu
quando emitida ordem de prisão contra o mesmo, será tido como um não-colaborador, o que lhe poderá causar enormes prejuízos, tendo em vista existir no Estatuto de Roma todo um processo que pode ser levado à Assembléia dos Estados-partes
do TPI e até mesmo ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, para que possam ser tomadas medidas de enquadramento de conduta em relação a estes Estados não-colaboradores.
4.2. A pena de prisão perpétua
38 Cf. FRAGA, Mirtô. O novo estatuto do estrangeiro comentado. Rio de Janeiro: Forense, 1985, pp. 286-287.
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Outro ponto delicado, que pode causar um aparente conflito entre as disposições do Estatuto de Roma e a Constituição brasileira de 1988, diz respeito à previsão do art. 77, § 1º, alínea b, do Estatuto, segundo o qual o Tribunal pode impor à
pessoa condenada por um dos crimes previstos no seu art. 5º, dentre outras medidas, a pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições
pessoais do condenado a justificarem.
O art. 80 do Estatuto traz uma regra de interpretação no sentido de que as
suas disposições em nada prejudicarão a aplicação, pelos Estados, das penas previstas nos seus respectivos direitos internos, ou a aplicação da legislação de Estados
que não preveja as penas por ele referidas.
A Constituição brasileira, por seu turno, permite até mesmo a pena de morte “em caso de guerra declarada” (art. 5º, inc. XLVII, alínea a), mas proíbe terminantemente as penas de caráter perpétuo (alínea b do mesmo inciso). Contudo,
é bom fique nítido que o Supremo Tribunal Federal não tem tido nenhum problema em autorizar extradições para países onde existe a pena de prisão perpétua,
em relação aos crimes imputados aos extraditandos, mesmo quando o réu corre
o risco efetivo de ser preso por esta modalidade de pena. Como destaca Cachapuz de Medeiros, entende “o pretório excelso que a esfera da nossa lei penal é
interna. Se somos benevolentes com ‘nossos delinqüentes’, isso só diz bem com
os sentimentos dos brasileiros. Não podemos impor o mesmo tipo de ‘benevolência’ aos Países estrangeiros”.39
O Supremo Tribunal Federal, também, em mais de uma ocasião, autorizou a
extradição para Estados que adotam a pena de morte, com a condição de que houvesse a comutação desta pena pela de prisão perpétua.
A título de exemplo, pode ser citado o entendimento do Ministro Francisco
Rezek, no processo de extradição n.º 426, onde o STF deferiu extradição de estrangeiro a Estado requerente que aplicaria, sem condições, a pena de prisão perpétua.
Apesar de o referido processo ter se desenvolvido sob a égide da Carta Política anterior, a lição nos serve perfeitamente, tendo em vista a similitude dos enunciados
da Carta de 1967 com a atual Carta de 1988. A Carta de 1967 também previa, no § 11
do seu art. 153, a proibição da aplicação da pena de caráter perpétuo. O então Ministro Francisco Rezek (hoje juiz da Corte Internacional de Justiça), em seu voto,
deixou expresso, à época, que
no que concerne ao parágrafo 11 do rol constitucional de garantias ele estabelece um padrão processual no que se refere a
este país, no âmbito especial da jurisdição desta República. A lei
extradicional brasileira, em absoluto, não faz outra restrição
39 CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo. “O Tribunal Penal Internacional e a Constituição brasileira”, cit., pp.
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salvo aquela que tange à pena de morte. (…) O que a Procuradoria Geral da República propõe é uma extensão transnacional
do princípio inscrito no parágrafo 11 do rol de garantias” (cf.
RTJ n.º 115/969).40
Este tipo de medida encontra sua justificativa na Lei n.º 6.815/80 (Estatuto do
Estrangeiro), por força do seu art. 91, que não restringe, em nenhuma das hipóteses que elenca, a extradição em função da pena prisão perpétua. Portanto, no Brasil, ainda que internamente não se admita a pena de prisão perpétua, isso não constitui restrição para efeitos de extradição.
Portanto, a interpretação mais correta a ser dada para o caso em comento é a
de que a Constituição, quando prevê a vedação de pena de caráter perpétuo, está
direcionando o seu comando tão-somente para o legislador interno brasileiro, não
alcançando os legisladores estrangeiros e tampouco os legisladores internacionais
que, a exemplo da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, trabalham
rumo à construção do sistema jurídico internacional.41
A pena de prisão perpétua – que não recebe a mesma ressalva constitucional
conferida à pena de morte – não pode ser instituída dentro do Brasil, quer por meio
de tratados internacionais, quer mediante emendas constitucionais, por se tratar de
cláusula pétrea constitucional. Mas isso não obsta, de forma alguma, que a mesma
pena possa ser instituída fora do nosso país, em tribunal permanente com jurisdição internacional, de que o Brasil é parte e em relação ao qual deve obediência, em
prol do bem estar da humanidade.42
A Constituição brasileira de 1988, como já falamos, preceitua, no art. 7º do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias, que o Brasil “propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos”. E isto reforça a tese de que
o conflito entre as disposições do Estatuto de Roma e a Constituição brasileira é apenas aparente, não somente pelo fato de que a criação de um tribunal internacional
de direitos humanos reforça o princípio da dignidade da pessoa humana (também
insculpido pela Constituição, no seu art. 1º, inc. III), mas também pelo fato de que
o comando do texto constitucional brasileiro é dirigido ao legislador doméstico, não
alcançando os crimes cometidos contra o Direito Internacional e reprimidos pela jurisdição do Tribunal Penal Internacional.
40 O Ministro Sidney Sanches afirmou, ainda, no mesmo julgamento, que a referida lei constitucional, “visou impedir apenas a imposição das penas ali previstas (inclusive a perpétua) para os que aqui tenham de ser julgados. Não há de ter pretendido eficácia fora do País” (RTJ n.º 115/969).
41 Cf. CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo. “O Tribunal Penal Internacional e a Constituição brasileira”, cit.,
p. 15.
42 No mesmo sentido, vide STEINER, Sylvia Helena F., “O Tribunal Penal Internacional, a pena de prisão perpétua
e a Constituição brasileira”, in O que é o Tribunal Penal Internacional. Brasília: Câmara dos Deputados/Coor-
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Portanto, não obstante a vedação das penas de caráter perpétuo ser uma tradição constitucional entre nós, o Estatuto de Roma de forma alguma afronta a nossa Constituição (como se poderia pensar numa leitura descompromissada de seu
texto); mas ao contrário, contribui para coibir os abusos e as inúmeras violações de
direitos que se fazem presentes no planeta, princípio esse que sustenta corretamente a tese de que a dignidade da sociedade internacional não pode ficar à margem do
universo das regras jurídicas.
De outra banda, o condenado que se mostrar merecedor dos benefícios estabelecidos pelo Estatuto poderá ter sua pena reduzida, inclusive a de prisão perpétua. Nos termos do art. 110, § § 3.º e 4.º, do Estatuto, quando a pessoa já tiver cumprido dois terços da pena, ou 25 anos de prisão, em caso de pena de prisão perpétua, o Tribunal reexaminará a pena para determinar se haverá lugar a sua redução,
se constatar que se verificam uma ou várias das condições seguintes: a) a pessoa tiver manifestado, desde o início e de forma contínua, a sua vontade em cooperar
com o Tribunal no inquérito e no procedimento; b) a pessoa tiver, voluntariamente,
facilitado a execução das decisões e despachos do Tribunal em outros casos, nomeadamente ajudando-o a localizar bens sobre os quais recaíam decisões de perda, de
multa ou de reparação que poderão ser usados em benefício das vítimas; ou c)
quando presentes outros fatores que conduzam a uma clara e significativa alteração
das circunstâncias, suficiente para justificar a redução da pena, conforme previsto
no Regulamento Processual do Tribunal.
4.3. A questão das imunidades: o foro por prerrogativa de função
Por fim, pode surgir ainda o conflito (também aparente) entre as regras brasileiras relativas às imunidades em geral e às prerrogativas de foro por exercício de
função e aquelas atinentes à jurisdição do TPI. Tais regras são aplicáveis, por exemplo, ao Presidente da República, seus Ministros de Estados, Deputados, Senadores
etc. Essas imunidades e privilégios, contudo, são de ordem interna e podem variar
de um Estado para o outro. Também existem outras limitações de ordem internacional, a exemplo da regra sobre imunidade dos agentes diplomáticos à jurisdição penal do Estado acreditado, determinada pelo art. 31 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 1961, que é norma interna brasileira. Os embaixadores têm
imunidade plena na jurisdição penal dentro dessa sistemática.
Os crimes de competência do TPI – crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão –, por sua vez, são quase sempre
perpetrados por indivíduos que se escondem atrás dos privilégios e imunidades que
lhes conferem os seus ordenamentos jurídicos internos.
Levando em conta tais circunstâncias, o Estatuto de Roma pretendeu estabelecer
regra clara a esse respeito, e assim o fez no seu art. 27, que trata da irrelevância da qualidade oficial daqueles que cometem os crimes por ele definidos, segundo o qual:
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1. O presente Estatuto será aplicável de forma igual a todas as pessoas sem distinção alguma baseada na qualidade oficial. Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de
membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou
de funcionário público, em caso algum eximirá a pessoa em causa de responsabilidade criminal nos termos do presente Estatuto,
nem constituirá de per se motivo de redução da pena.
2. As imunidades ou normas de procedimentos especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa, nos termos do direito interno ou do direito internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa.
Portanto, as imunidades ou privilégios especiais que possam ser concedidas aos
indivíduos em função de sua condição como ocupantes de cargos ou funções estatais,
seja segundo o seu direito interno, seja segundo o Direito Internacional, não constituem motivos que impeçam o Tribunal de exercer a sua jurisdição em relação a tais assuntos. O Estatuto elide qualquer possibilidade de invocação da imunidade de jurisdição por parte daqueles que cometeram crimes contra a humanidade, genocídio, crimes de guerra ou de agressão. Assim, de acordo com a sistemática do Direito Internacional Penal, não podem os genocidas e os responsáveis pelos piores crimes cometidos contra a humanidade acobertar-se pela prerrogativa de foro, pelo fato de que exerciam uma função pública ou de liderança à época do delito.
O Estado brasileiro, doravante, terá um papel importante no que tange à compatibilização das normas do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional – respeitando o dever consuetudinário insculpido com todas as letras no art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, segundo o qual um Estadoparte em um tratado internacional tem a obrigação de cumpri-lo de boa-fé –, no
sentido de fazer editar a normatividade interna infraconstitucional necessária para
que o Estatuto possa ser implementado e não se transforme em letra morta, sob
pena de responsabilização internacional.
Quanto à nossa Constituição, ela está perfeitamente apta a operar com o direito
internacional dos direitos humanos e com o direito internacional humanitário, não havendo que se falar em conflito entre as disposições do Estatuto de Roma e o texto constitucional brasileiro, consoante a cláusula de recepção imediata dos tratados internacionais de direitos humanos insculpida no § 2º de seu art. 5º, bem como os princípios de
direitos humanos consagrados pela Constituição brasileira, em especial o princípio da
43 Para um estudo específico do problema da inconstitucionalidade intrínseca dos tratados internacionais, vide
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Tratados internacionais: com comentários à Convenção de Viena de 1969,
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“prevalência dos direitos humanos”, constante de seu art. 4º, inc. II.
Não há de se cogitar, portanto, de eventual inconstitucionalidade intrínseca
do Estatuto de Roma de 1998 em relação à Constituição brasileira de 1988.43
5.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: PERSPECTIVAS PARA UMA JUSTIÇA PENAL INTERNACIONAL
Terminado este estudo, resta-nos dizer ainda algumas palavras finais, relativas
à importância do TPI para a Justiça Penal Internacional.
Sem qualquer dúvida, a instituição do Tribunal Penal Internacional é um dos
fatores principais que marcarão as ciências criminais no século XXI. Primeiro, porque desde os Tribunais de Nuremberg e Tóquio, um sistema internacional de justiça pretende acabar com a impunidade daqueles que violam o Direito Internacional,
em termos repressivos (condenando os culpados) e preventivos (inibindo a tentativa de repetição dos crimes cometidos).44 Segundo, porque visa sanar as eventuais falhas e insucessos dos tribunais nacionais, que deixam impunes seus criminosos,
principalmente quando estes são autoridades estatais, que gozam de imunidade,
nos termos das suas respectivas legislações internas. Terceiro, porque evita a criação
de tribunais ad hoc, instituídos à livre escolha do Conselho de Segurança da ONU,
dignificando o respeito à garantia do princípio do juiz natural, ou seja, do juiz competente, em suas duas vertentes: a de um juiz previamente estabelecido e a ligada à
proibição de juízos ou tribunais de exceção. Quarto, porque cria instrumentos jurídico-processuais capazes de responsabilizar individualmente as pessoas condenadas
pelo Tribunal. E, finalmente, em quinto lugar, porque institui uma Justiça Penal Internacional que contribui, quer interna quer internacionalmente, para a eficácia da
proteção dos direitos humanos e do direito internacional humanitário.45
A consagração do princípio da complementaridade, segundo o qual a jurisdição do TPI é subsidiária às jurisdições nacionais (salvo o caso de os Estados se mostrarem incapazes ou sem disposição em processar e julgar os responsáveis pelos crimes cometidos), contribui sobremaneira para fomentar os sistemas jurídicos nacionais a desenvolver mecanismos processuais eficazes, capazes de efetivamente aplicar a justiça em relação aos crimes tipificados no Estatuto de Roma, que passam também a ser crimes integrantes do direito interno dos Estados-partes que o ratificaram.
Não existe restrição ou diminuição da soberania para os países que já aderiram, ou aos que ainda irão aderir, ao Estatuto de Roma. Ao contrário: na medida em
que em Estado ratifica uma convenção multilateral como esta, que visa trazer um
bem estar que a sociedade internacional reivindica há séculos, ele não está fazendo
mais do que, efetivamente, praticando um ato de soberania, e o faz de acordo com
44 Cf. Human Rights Watch world report 1994: events of 1993, Human Rights Watch, New York, 1994, p. XX.
45 Cf. JARDIM, Tarciso Dal Maso. “O Tribunal Penal Internacional e sua importância para os direitos humanos”,
cit., pp. 17-18.
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sua Constituição, que prevê a participação do Executivo e do Legislativo (no caso
brasileiro: CF, arts. 84, inc. VIII e 49, inc. I, respectivamente) no processo de celebração de tratados.
A Justiça Penal Internacional, portanto, chega ao mundo em boa hora, para
processar e julgar os piores e mais cruéis violadores dos direitos humanos que possam vir a existir, reprimindo aqueles crimes contra o Direito Internacional de que
nos queremos livrar, em todas as suas vertentes. Será esta Justiça Penal Internacional a responsável pela construção de uma sociedade internacional justa e digna, calcada nos princípios da igualdade e da não discriminação, que são o fundamento da
tutela internacional dos direitos humanos.
O papel do Tribunal Penal Internacional para o futuro da humanidade, portanto, é importantíssimo, no sentido de punir e retirar do convívio coletivo mundial os
responsáveis pela prática dos piores e mais bárbaros crimes cometidos no planeta,
em relação aos quais não se admite esquecimento.
6.
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Direito Penal e outros ramos do Direito.
Interdependência, comunicação,
encontros e desencontros.
Uma visita holística aos diversos planos do
Direito a partir do Direito Penal.
Roberto Luis Luchi Demo
Procurador Federal.
Especialista em Direito Penal.
Especialista em Processo Civil.
Procurador-Chefe Substituto do Contencioso Judicial da
Procuradoria Federal Especializada no INSS em Curitiba/PR.
1
vide páginas 858 a 861 da 2ª edição, publicada pela Editora RT em 1999.
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1.
PROLEGÔMENOS
O propósito deste trabalho é trazer à ribalta um tema constante na vida prática do foro, embora (ou talvez por isso mesmo) artigo raro e lacônico na historiografia jurídica: o diálogo jurídico, a comunicação entre os diversos ramos do Direito. Para ficar num único exemplo paradigmático, de se citar o “Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral”, escrito em co-autoria por Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, que trata da questão, no último subitem do último capítulo do último título, em apenas 4 páginas1!
E a doutrina tem afastado esse cálice por dois motivos bastante singelos. Primeiro, quase tautológico, porque o Direito é uno: sua divisão em ramos autônomos (mas não estanques ou sectários) tem finalidade apenas didática, ao passo que
sua positivação em códigos e leis especializadas se arrima em conveniências de ordem prática. Desse modo, o foco na zona de transição mesma entre os diversos ramos fica deferido de um a outro ramo: o penalista o defere ao administrativista ou
ao civilista que, por sua vez, o transferem ao penalista... Segundo, porque neste
tema prevalecem as chamadas opções de política legislativa, dificultando e até
mesmo inviabilizando a formação de uma ontologia pertinente, máxime quando certas escolhas políticas em muito se afastam do chamado “espírito do Direito”, como
se verá adiante.
Como proposta metodológica, toma-se o Direito Penal à montante, percorrendo os diversos rincões do sistema de normas postas no nosso ordenamento jurídico, pontuando aqui e acolá algumas situações emblemáticas desse diálogo jurídico, tão rico e com tantas nuanças que não se esgota nas poucas considerações
seguintes, especialmente alvissareiras e benfazejas.
2.
ILÍCITO CIVIL, ILÍCITO ADMINISTRATIVO, ILÍCITO POLÍTICO E ILÍCITO PENAL
Para tornar a vida em sociedade possível, o Estado regula a conduta dos cidadãos por meio de normas objetivas, que visam a proteger determinados bens jurídicos cuja tutela seja importante em um determinado momento histórico. O direito objetivo (norma agendi) determina o que pode ser feito e o que é proibido.
Esse direito objetivo bitola, nessa compreensão, as ações das pessoas em um maniqueísmo: atividades lícitas, consoante o direito objetivo, e atividades ilícitas, que
agridem o ordenamento jurídico.
À conduta ilícita corresponde uma sanção. Aqui cabe ponderar que uma conduta pode ser qualificada, num só tempo, como ilícito civil, ilícito administrativo ou
político e ilícito penal, implicando responsabilidades civil, administrativa ou política
e penal, respectivamente. Neste caso, serão impostas sanções civil, administrativa ou
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política e penal, sem ofensa a qualquer princípio que veda a punição do mesmo
fato mais de uma vez (bis in idem), que tem seu âmbito de incidência restrito a
cada esfera determinada. Trata-se de sanções de natureza diversa e, por isso
mesmo, não se compensam.
Nessa toada, surge a questão: qual a diferença entre ilícito civil, administrativo, político e penal?
O ato ilícito é uma conduta contrária ao Direito que traz para o seu agente
uma determinada sanção jurídica, necessariamente institucionalizada. Especifica-se
o ilícito conforme a natureza do interesse lesado que, por sua vez, é determinada pela natureza da respectiva sanção abstratamente prevista no ordenamento jurídico. O ilícito civil viola interesses particulares de particulares ou do Estado, que
estão legitimados a agir para que a sanção civil seja realizada, amigável ou litigiosamente (hipótese que não prescinde da atuação do Poder Judiciário). O ilícito administrativo viola regras de Direito Administrativo e legitima o Estado a impor sanções
administrativas pelo poder de polícia (ao extraneus)2 ou pelo poder disciplinar (ao
servidor público), independe de atuação do poder judiciário (auto-executoriedade).
O ilícito político viola o dever de realizar o bem comum. O ilícito penal é o mais grave, porque viola regras de comportamento de transcendência social e até política,
sendo a última ratio, porque, exemplificadamente, o crime de desobediência não se
configura quando a lei cominar penalidade civil ou administrativa, sem ressalvar expressamente a aplicação da pena prevista no art. 330, CP3.
É certo que há algumas zonas cinzentas e que nem Freud explica. É o caso
da Lei 9.605/98, que reprime as infrações ao meio-ambiente. Depois de estadear que
“as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei” (art. 3º), prevê como sanção penal à pessoa jurídica a
suspensão parcial ou total de atividades (art. 22, I), que, também, é prevista ipsis litteris como sanção administrativa (art. 72, IX). Nessa ordem de considerações e
como a sanção penal somente pode ser aplicada após o trânsito em julgado da condenação penal, essa espécie de pena restritiva de direitos mostra-se ineficiente, deixando lugar para sua aplicação enquanto sanção administrativa, dotada de auto-executoriedade que é. Para não ficar num único exemplo, cite-se, também, a Lei
8.429/92, que regula materialmente a improbidade administrativa e, após registrar
no seu art. 12, caput, que “independente das sanções penais, civis e administrativas,
previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações”, arrola como uma das sanções o ressarcimento integral
do dano, nos incs. I e III do mesmo artigo, sanção esta de caráter nitidamente civil,
2
3
A regra não é absoluta, podendo-se citar como exceções a desapropriação e a cobrança de multa, que hão de
ser realizadas, necessariamente, por meio de processo judicial.
STJ, RHC 12.321, FERNANDO GONÇALVES, 6ª T, DJ 29.9.03; TRF4, HC 2002.04.01.044900-8, ANTONIO BONAT,
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mas que está destacada como sanção por ato de improbidade administrativa, por
força de expressa norma constitucional nesse sentido (art. 37, §4º, CF).
3.
CUMULAÇÃO DE SANÇÕES DE NATUREZAS DIVERSAS
Em linha de princípio, que decorre naturalmente da independência das diversas
instâncias do Direito, vedada é a compensação das sanções na perspectiva da intervenção do Estado sancionador em relação ao particular, agente do ilícito, por isso
que não se pode considerar o Estado, nos diferentes planos jurídicos em que atua,
como idêntico beneficiário da sanção. Isto é, não há compensar eventual sanção política ou administrativa com a sanção penal, salvo regra expressa nesse sentido, a exemplo do art. 9º, Lei 10.684/03, que instituiu o REFIS II ou PAES, adiante analisado.
Ou seja, de regra, há independência entre as esferas penal, cível, política e administrativa, como dito anteriormente, por isso que o objeto de cada esfera está no
equacionamento de infringências a regras ontologicamente diversas: penal, civil,
política e administrativa. É dizer, as finalidades de cada esfera são disformes, de
modo que a valoração da conduta em uma órbita sustenta-se em pilares muitas vezes próprios e dicótomos. Esse o sentido do art. 1.525, CC/16, primeira parte, e
do atual art. 935, primeira parte, Lei 10.406/02 – novo Código Civil: “A responsabilidade civil é independente da criminal”.
Mas essa independência não é absoluta, por isso que relativa no tocante à
atuação das respectivas esferas, bem assim ao resultado obtido em cada uma.
Nem poderia ser de outra forma, na compreensão de que o Direito é uno, considerado um sistema de prescrições jurídicas interligadas e harmônicas, e seria um contra-senso que a realidade material não repercutisse juridicamente de maneira uniforme. Mas, urge enfatizar: o diálogo jurídico entre uma instância e outra é bitolado pelo ordenamento jurídico, “by the law of the land”, e obedece às formalidades nesse positivadas.
Estabelecidas estas premissas metodológicas, na relação do sancionado com
eventual beneficiário da sanção, quando diversas sanções tiverem o mesmo beneficiário e forem da mesma espécie na perspectiva deste, cabível a compensação
das sanções. É o caso da indenização paga à vítima em virtude de condenação penal
a pena restritiva de direitos de prestação pecuniária (art. 43, I, CP, redação da Lei
9.714/98) e a indenização decorrente de condenação em ação de reparação civil
pelo mesmo fato, por isso que a indenização penal necessariamente há de ser diminuída do montante de eventual indenização civil, nos termos do art. 45, §2º, segunda parte, CP, redação da Lei 9.714/98: “O valor pago será deduzido do montante de
eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários”.
Nesse mesmo sentido, o art. 297, Lei 9.503/97 – Código de Trânsito Brasileiro:
A penalidade de multa reparatória consiste no pagamento, median-
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te depósito judicial em favor da vítima, ou seus sucessores, de quantia calculada com base no disposto no §1º do Código Penal, sempre
que houver prejuízo material resultante do crime. §3º Na indenização civil do dano, o valor da multa reparatória será descontado.
É bom lembrar que a conduta do particular (extraneus), que agride um determinado bem jurídico tutelado pelo direito posto, não pode ser, concomitante, ilícito penal e ilícito administrativo, é dizer, o Estado não pode sancionar duplamente o extraneus no exercício do jus puniendi e do poder de polícia, pena de bis
in idem, por isso que o particular está nessa mesma qualidade, tanto na relação de
direito administrativo assim na relação de direito penal, ambas com uma finalidade
retributiva (de acordo com a conhecida distinção aristotélica).
E, neste passo, registro que não é menos verdadeira essa premissa quando
se lembra que o não-recolhimento de tributo é ilícito tributário sempre, implicando
juros de mora e multa (punitiva ou moratória), e, às vezes, é também ilícito penal.
E não é menos verdadeira porque o bem protegido pela norma penal não é o recolhimento em si mesmo (tutelado pela norma tributária e que é irrelevante de per si
para o direito penal, tanto assim que há crimes formais, a exemplo do art. 2º, Lei
8.137/90), mas a regular administração tributária.
Outro exemplo de um mesmo fato singular repercutindo em mais de uma órbita do Direito, dá-se na perspectiva da pena de perdimento de veículo apreendido com mercadoria irregularmente importada, prevista no Regulamento Aduaneiro4: a aplicação desta sanção administrativa não elide nem condiciona eventual sanção penal por crime de contrabando. E na perspectiva dos atos ao meio-ambiente, por isso que “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independente da obrigação de reparar os danos causados” (CF, art. 225, §3º).
Nessa mesma compreensão, é de ser interpretado, exemplificadamente, o
art. 19, Lei 8.884/90, que dispõe sobre o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE e as infrações contra a ordem econômica: “A repressão das infrações
da ordem econômica não exclui a punição de outros ilícitos previstos em lei”. Assim,
a caracterização de infração à ordem econômica (arts. 20 e 21, Lei 8.884/94) dá ensejo à repressão de natureza administrativa, para a qual é competente o Conselho
Administrativo de Defesa Econômica – CADE, autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça. Já na órbita penal, além da Lei 8.137/90, que tipifica crimes contra a
ordem econômica, há repressão penal também prevista no art. 195 da Lei 9.279/96
(Lei da Propriedade Industrial), que tipifica os “crimes de concorrência desleal”. Há,
também, a responsabilidade civil do concorrente desleal, que deve indenizar o co4
Súmula 138/ex-TFR: “A pena de perdimento de veículo, utilizado em contrabando ou descaminho, somente se
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merciante prejudicado, ainda que o ato não esteja tipificado como crime de concorrência desleal (art. 209, Lei 9.279/96), e com maior razão se o tiver.
Também há de ser assim interpretado o art. 15 da Lei 4.717/65, que regula a
ação popular:
Se, no curso da ação, ficar provada a infringência da lei penal,
ou a prática de falta disciplinar a que a lei comine a pena de demissão ou a de rescisão do contrato de trabalho, o juiz, ex officio, determinará a remessa de cópia autenticada das peças necessárias às autoridades ou aos administradores a quem competir aplicar a sanção.
Já com relação ao servidor público e equiparados (art. 327, CP), o raciocínio
é diverso: sua conduta pode ser caracterizada, concomitantemente, como ilícito
penal e ilícito administrativo, por isso que mesmo quando cometem um dos crimes
contra a própria Administração (arts. 312 a 326, do CP), os servidores públicos são
tidos como indivíduos comuns que infringem a norma penal. Concomitantemente,
porém, estarão infringindo também uma norma administrativa e, aqui sim, a apenação tem caráter tipicamente funcional5, implicando sanções penais e administrativas.
E pode caracterizar também ilícito civil e responsabilidade civil, a exemplo do peculato (art. 312, CP), em que o agente deve indenizar o Estado-Administração pelo prejuízo material causado. O mesmo se diga em relação à conduta de congressista,
que pode ser caracterizada, concomitantemente, como ilícito penal e ilícito político
(art. 55, II, CF). Exemplo derradeiro está no art. 37, §4º, CF: “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspe0nsão dos direitos políticos, a perda da função
pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.
4.
OS CRIMES FISCAIS
Em relação aos crimes fiscais, o STF entendia que a interposição de recursos administrativos ou judiciais na esfera cível não tinha o condão de impedir a regular tramitação da ação penal, seja porque não havia obrigação de esgotamento da
via administrativa para o exercício do jus puniendi, bem assim porque a ação penal
5
6
7
8
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 8ª edição, 2001, p. 47.
Exemplo paradigmático desse entendimento, seguido por todos os tribunais pátrios, está na STF, HC 7.771 MC,
CELSO DE MELLO, DECISÃO MONOCRÁTICA, DJ 17.8.98.
STJ, RHC 8.335, VICENTE LEAL, 6ª T, DJ 14.6.99.
TRF2, HC 2000.02.01.066483-6, ANDRE FONTES, 6ª T, DJ 24.7.01.
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nesses crimes era pública e incondicionada6.
Entendia-se, nesse contexto kafkiano que, havendo condenação penal definitiva por crime de sonegação fiscal, a posterior conclusão do processo administrativo-fiscal pela inexistência do débito implicava a extinção da punibilidade, a ser
pleiteada mediante revisão criminal. Se o processo-crime ainda se encontrava em
curso, a subseqüente decisão administrativa, de caráter definitivo, que julgava improcedente o lançamento, fazia desaparecer a justa causa para o curso da ação7,
questão que podia ser agitada em sede de habeas corpus. Mas o processo administrativo-fiscal havia de ter decisão definitiva, cuja ausência (o processo administrativo, apesar de conter decisão favorável ao contribuinte, não foi encerrado) não justificaria a comunicação das instâncias8.
Mas aqui, o STF mudou (para melhor) e, no julgamento do HC 81.6119, o Plenário decidiu que, nos crimes do art. 1º, Lei 8.137/90, considerados crimes materiais
ou de resultado, a decisão definitiva do processo administrativo-tributário, figurando como elemento essencial da exigibilidade da obrigação tributária, consubstancia
uma condição objetiva de punibilidade, até porque esses crimes tributários materiais somente se consideram consumados com a constituição definitiva do lançamento, ficando por isso mesmo suspensa a prescrição penal nesse interregno. E,
quando do julgamento da ADI 1.571, que versava a constitucionalidade do art. 83,
Lei 9.430/96, o STF, ao julgar improcedente o pedido dando pela legitimidade da
norma, registrou que essa decisão não era incompatível com a decisão tomada no
HC 81.611, na medida em que o Ministério Público pode denunciar se tomar conhecimento do fim do processo administrativo-tributário por outros meios, mesmo sem
a comunicação da autoridade fazendária (que tem, outrossim, o dever de fazê-lo).
Convém trazer à ribalta que, esporadicamente, são editadas leis de índole tributária, por isso que arrecadatórias, que suspendem a pretensão penal punitiva
do Estado ou até extinguem a punibilidade, o que mostra às escâncaras a utilização
do Direito Penal como um instrumento de arrecadação tributária, em seu desaforado desvirtuamento10. Pode-se citar o art. 34, Lei 9.249/95, por que se extingue a
punibilidade do agente de crime fiscal se houver o pagamento antes do recebi10 Desvirtuamento também presente na Lei 9.099/95, que versa os juizados especiais cíveis e criminais: “Art. 74.
A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentença irrecorrível,
terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente. Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de
iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação.” (g.n.). E vale registrar esse vezo patológico também em outros
artigos do próprio Código Penal, o mais novo deles o §4º do art. 33, incluído pela Lei 10.763/03: “O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais”. (g.n.)
11 Impõe-se o registro de que essa norma, por ser especial, não se aplica ao descaminho/contrabando, como já
tive a oportunidade de escrever: “Descaminho. Pagamento posterior do tributo. Extinção da punibilidade. Ana-
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mento da denúncia11 (e pagamento não é sinônimo de parcelamento, por isso
que o Plenário do STF, a 4.10.1995, ao julgar a Questão de Ordem no Inquérito nº
1028-6/RS, assentou que o simples parcelamento do débito não significava o pagamento do tributo, para efeito de extinção da punibilidade). Posteriomente, veio å
lume a Lei 9.964/00, que instituiu o REFIS e permitiu aos agentes do crime cuja pessoa jurídica optasse pelo parcelamento antes do recebimento da denúncia, ter
a pretensão punitiva do Estado suspensa (art. 15).
De mais a mais, se não bastassem essas leis, atualmente vigora a Lei
10.684/03, que instituiu o REFIS II ou PAES e determina no seu art. 9º, caput, que
é suspensa a pretensão punitiva do Estado, referentes aos crimes
previstos nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137/90, e nos arts. 168-A e 337 do
Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime
de parcelamento,
sem exigir que o parcelamento seja efetuado antes do recebimento da denúncia, de
modo que o parcelamento efetuado após o recebimento da denúncia implica a suspensão da ação penal. É de bom alvitre registrar que a suspensão do processo relativa ao crime de sonegação fiscal, não implica ausência de justa causa para a
persecução penal quanto a outros delitos não compreendidos no rol taxativo do art.
9º, Lei 10.684/03, a exemplo de formação de quadrilha ou bando12.
Outrossim, a Lei 10.684/03, não se aplica ao crime de apropriação indébita de
contribuições descontadas dos segurados e não repassadas ao INSS (apropriação indébita previdenciária – art. 168-A, CP), porquanto o dispositivo que previa o parcelamento desses débitos fora objeto de veto presidencial (art. 5º, §2º), de modo que a
referência que o art. 9º da mencionada lei faz ao art. 168-A teria se tornado inócua13.
Nessa ordem de idéia, a regra do art. 9º, §2º, Lei 10.684/03, segundo a qual o pagamento a qualquer tempo extingue a punibilidade, não se aplica aos crimes de apropriação indébita previdenciária, cujo agente só pode ter extinta sua punibilidade pela
regra especial do art. 168-A, §2º, CP, é dizer, pagamento antes da ação fiscal.
A suspensão da pretensão punitiva pelo parcelamento ou a extinção da punibilidade pelo pagamento não têm cabimento quando já existente condenação definitiva, que representa um óbice instransponível à retroatividade penal destas espécies normativas14.
Finalmente, de se enfatizar que somente a extinção do crédito tributário pelo
12 STF, HC 84.223, EROS GRAU, 1ª T, DJ 27.8.04.
13 STF, HC 81134 QO, SEPÚLVEDA PERTENCE, PLENO, J 3.8.04.
14 à semelhança do que ocorreu com o art. 89 da Lei 9.099: vide STF, HC 74.305, MOREIRA ALVES, PLENO, DJ
5.5.00.
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pagamento (art. 156, I, CTN) implica a extinção da punibilidade (art. 34, Lei 9.249/95
e art. 9º, §2º, Lei 10.684/03). Noutra banda, a extinção do crédito pela prescrição
(art. 156, V, CTN) não implica a extinção da punibilidade, por isso que as normas
mencionadas são restritas à extinção do crédito pelo pagamento.
5.
AS QUESTÕES PREJUDICIAIS
Atinente às questões prejudiciais (aquelas logicamente anteriores ao mérito da ação penal e ligadas ao crime – e nisso se diferenciam das preliminares),
se a decisão sobre a existência da infração depender da solução de
controvérsia, que o juiz repute séria e fundada, sobre o estado civil das pessoas, o curso da ação penal ficará suspenso até que no
juízo cível seja a controvérsia dirimida por sentença passada em
julgado, sem prejuízo, entretanto, da inquirição das testemunhas
e de outras provas de natureza urgente (art. 92, caput, CPP):
trata-se de suspensão obrigatória da ação penal, ocorrendo, exemplificadamente,
no crime de bigamia.
Mas,
se o reconhecimento da existência da infração penal depender de
decisão sobre questão diversa da prevista no artigo anterior, da
competência do juízo cível, e se neste houver sido proposta ação
para resolvê-la, o juiz criminal poderá, desde que essa questão seja
de difícil solução e não verse sobre direito cuja prova a lei civil limite, suspender o curso do processo, após a inquirição das testemunhas e realização das outras provas de natureza urgente” (art.
93, caput, CPP):
trata-se de suspensão facultativa da ação penal. Neste caso,
o juiz marcará o prazo da suspensão, que poderá ser razoavelmente prorrogado, se a demora não for imputável à parte. Expirado o prazo, sem que o juiz cível tenha proferido decisão, o juiz criminal fará prosseguir o processo, retomando sua competência
para resolver, de fato e de direito, toda a matéria da acusação ou
da defesa” (art. 93, §1º, CPP).
Não havendo a suspensão do processo penal e ocorrendo sentença condenatória no juízo criminal, a posterior sentença no cível favorável ao réu, tratando-
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se de questão prejudicial facultativa, dá ensejo a habeas corpus ou revisão criminal
(se já houver trânsito em julgado da condenação).
“A suspensão do curso da ação penal, nos casos dos artigos anteriores, será decretada pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes” (art. 94, CPP). Em ambas
as situações, a prescrição fica suspensa (art. 116, I, CP).
Por outro lado, também a ação penal pode funcionar como prejudicial nas
ações cíveis, a exemplo da ação para responsabilização dos administradores de sociedades anônimas que prescreve em 3 anos, contados da data da publicação da ata
da assembléia geral que votar o balanço (art. 287, II, b, 2, Lei 6.404/76, que regula a
sociedade por ações), mas se se tratar de fato criminoso, o termo inicial dessa prescrição se dá com a prescrição da ação penal ou da sentença definitiva (art. 288, Lei
6.404/76). O mesmo raciocínio é válido, considerada a prescrição qüinqüenal para a
responsabilidade objetiva do Estado oriunda de ato ilícito:
RECURSO ESPECIAL. ALÍNEAS “A” E “C”. RESPONSABILIDADE CIVIL
DO ESTADO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL.
TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA CRIMINAL. ART. 1º DO DL
20.910/32. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO CONFIGURADA.
O prazo prescricional da ação de indenização proposta contra
pessoa jurídica de direito público é de cinco anos (art. 1º, Decreto
20.910/32). O termo inicial do qüinqüênio, na hipótese de ajuizamento de ação penal, será o trânsito em julgado da sentença nesta ação, e não a data do evento danoso, já que seu resultado poderá interferir na reparação civil do dano, caso constatada a inexistência do fato ou a negativa de sua autoria.
É curial observar que se mostra indiferente a circunstância de que
a sentença criminal transitada em julgado seja condenatória ou
absolutória, para fins de contagem do prazo.
Não faria o menor sentido defender que, após o curso da ação penal, se a conclusão for pela absolvição do servidor público, não seria esse o termo a quo do lapso qüinqüenal15.
15 STJ, RESP 442285, FRANCIULLI NETTO, 2ª T, DJ 13.5.03.
16 Está no art. 68, CPP: “Quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (art. 32, §§ 1º e 2º), a execução da sentença condenatória (art. 63) ou a ação civil (art. 64) será promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público”. No atual ordenamento jurídico, essa atribuição está com a Defensoria Pública (art. 134, CF).
Mas o art. 68, CPP continua válido, como já tive a oportunidade de manifestar: “a precariedade na implantação do órgão (Defensoria Pública) não justifica o descumprimento de suas funções institucionais. Também,
não há possibilidade jurídica de contratação temporária de Defensores Públicos, em caráter emergencial, posto que viola a CF/88, arts. 37, II e IX e 134, consoante entendimento do STF. Essa situação de precariedade operacional – espera-se transitória – justifica o entendimento do STF, interpretando o texto constitucional e acolhendo a tese de inconstitucionalidade progressiva, de subsistir a legitimidade do Ministério Público onde
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Aliás, essa orientação jurisprudencial específica foi positivada como regra
geral no art. 200 do novo Código Civil, mostrando mais uma vez o que sói acontecer: a legislação vem à reboque da boa jurisprudência.
6.
A AÇÃO CIVIL DE REPARAÇÃO DE DANO E A AÇÃO EXECUTIVA DA
SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA
No tocante à ação civil de reparação do dano (actio civillis ex delicto),
esta pode ser proposta antes, durante ou depois da ação penal pelo mesmo fato (art.
64, CPP)16. Neste caso de ações paralelas, o juiz da ação civil poderá suspender o curso desta até o julgamento definitivo da ação penal (art. 64, p.u., CP), sendo que essa
suspensão não pode exceder o prazo de um ano (art. 265, IV, ‘a’ e §5º, CPC). Tratase de mera faculdade do juiz, sem que exista uma obrigatoriedade de suspensão da
ação civil, salvo, no entanto, se presente a possibilidade de decisões contraditórias17. De se registrar que a simples existência de inquérito policial não autoriza a
suspensão da ação civil ex delicto, porquanto a investigação criminal não tem potencialidade alguma de gerar decisões contraditórias.
6.1. A absolvição penal
A absolvição criminal faz coisa julgada na perspectiva da ação civil ex delicto, quando a sentença penal reconhece ter sido o ato praticado em estado de necessidade, legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito (art. 65, CPP), até porque os atos praticados nessas situações não se
qualificam como ilícitos civis (art. 160, I, CC; art. 188, Lei 10.406/02 – novo Código
Civil). Duas observações inarredáveis aqui. Uma: só a legítima defesa real, que
exclui a antijuridicidade, faz coisa julgada no cível, de modo que a legítima defesa
putativa, ao operar no campo da culpabilidade, excluindo-a, não repercute e não exclui a responsabilidade civil nem a ação civil ex delicto. Outra: em dois casos a absolvição criminal em face da exclusão da antijuridicidade não exclui a ação civil ex
delicto: no estado de necessidade em que o agente sacrifica bem de terceiro inocente (art. 1.519, CC; art. 929, Lei 10.406/02 – novo Código Civil), tendo o agente ação
regressiva contra quem causou a situação de perigo, e na legítima defesa em que é
atingido terceiro inocente, tendo o agente ação regressiva contra seu agressor (art.
1.520, CC; art. 930, Lei 10.406/02 – novo Código Civil).
Não é sempre, portanto, que a absolvição no juízo criminal repercute obrigatoriamente na perspectiva da ação civil ex delicto. Com efeito, não obstante a sen17 STJ, RESP 216.657, SALVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, 4ª T, DJ 16.11.99.
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tença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato (art. 66,
CPP), nem negada a autoria do réu. É a regra posta na parte final do art. 1.525, CC/16
e do atual art. 935, Lei 10.406/02 – novo Código Civil: “não se podendo questionar
mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”. Assim, a absolvição com base no art.
386, I, CPP (estar provada a inexistência do fato) impede a ação civil reparatória.
Nessa toada, se na sentença criminal restar afirmada a culpa concorrente do autor e
da vítima pelo fato ilícito, tal conclusão deve ser transportada para o cível18. Mas, não
impede a ação civil reparatória a absolvição por: não haver prova da existência do
fato (art. 386, II, CPP), não constituir o fato ilícito penal (art. 386, III, e art. 67, III,
CPP – até porque residualmente o fato mesmo pode constituir ilícito civil, que tem
um conceito mais amplo), não existir prova de ter o réu concorrido para a infração
penal (art. 386, IV ), existir circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena
(art. 386, V, CPP) e não existir prova suficiente para a condenação (art. 386, VI, CPP).
Igualmente, o despacho de arquivamento do inquérito policial e a decisão que julgar extinta a punibilidade não impedem a ação civil (art. 67, I e II, CPP).
Desse contexto, surge uma questão interessante: pode o réu absolvido com
base num dos incisos do art. 386, CPP, que não impedem a ação civil reparatória,
apelar para alterar o fundamento da absolvição tão-somente para impedir essa ação
civil? A jurisprudência tem entendido que não, ao fundamento de que carece o réu
de interesse recursal diante de sentença absolutória, à míngua de sucumbência
(art. 577, p.u., CPP)19.
6.2. A condenação penal
Em caso de condenação penal, o Código Penal capitula, como efeito extrapenal genérico “tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime” (art.
91, I). Nessa alcatifa, a condenação penal faz coisa julgada no cível em relação ao an
debeatur, prevalecendo sobre eventual decisão em contrário nesta instância
mesma, em sede de ação civil ex delicto (art. 64, CPP), até porque a condenação penal, enquanto projeção da verdade real que, por definição, sempre é, repercute de
modo absoluto na esfera cível quando reconhece o fato e a autoria. Desse modo, se
a ação civil, não suspensa ou mandada prosseguir depois de escoado o prazo legal
de um ano, for julgada improcedente e a sentença transitar em julgado, a posterior
condenação criminal poderá funcionar, sim, como título executivo judicial na es19 STJ, RESP 294.696, VICENTE LEAL, 6ª T, DJ 6.5.02; TRF4, ACRIM 2002.04.01.024945-7, FÁBIO ROSA, 7ª T, J
29.10.02; “A extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva prejudica o exame do mérito da
apelação criminal” (Súmula 241/ex-TFR).
20 Nesse sentido: ZAVASCKI, Teori Albino, ‘Comentários ao Código de Processo Civil’, coord: Ovídio Baptista da
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Nessa mesma toada, se a ação civil estiver em andamento e sobrevier sentença criminal condenatória com trânsito em julgado, nenhum interesse processual
haverá em dar continuidade ao processo de conhecimento, que deve ser extinto por
carência de ação superveniente (art. 267, VI, CPC), pois o ofendido já passou a dispor de título executivo judicial. Outrossim, a sentença de pronúncia do réu não obsta a referida ação civil ex delicto, por isso que não há ainda condenação criminal.
A sentença penal condenatória funciona, portanto, como título executivo judicial na esfera cível (art. 63, CPP e art. 584, II, CPC), legitimando a ação executiva
nominada actio judicati. Eventual liquidação da sentença penal no juízo cível (liquidação essa necessária, pois a condenação penal determina o an debeatur, embora
sem estabelecer o quantum debeatur) faz-se na modalidade de liquidação por artigos (arts. 608 e 609, CPC). Esse processo de liquidação e posterior execução não
ficam obstados por eventual prescrição da pretensão penal executória ou outras hipóteses de extinção da punibilidade (que são irrelevantes na esfera civil), tampouco
pela revisão criminal posteriomente ajuizada, se e enquanto não houver decisão definitiva do Tribunal absolvendo o réu ou anulando o processo (art. 626, caput, CPP),
que implica, então, a retirada do título executivo do mundo jurídico. Nesse último
caso, importa registrar que a revisão criminal somente retira a força executiva da
condenação penal, se ajuizada em dois anos a contar do seu trânsito em julgado,
de modo a tratar igualmente o ofendido que optou por ajuizar ação civil de reparação do dano e o que, diversamente, preferiu esperar a sentença penal condenatória
para, posteriormente, executá-la21.
Aqui, cinco observações.
Uma, que a sentença concessiva de perdão judicial não pode embasar a actio judicati, por isso que “a sentença concessiva de perdão judicial é declaratória da
extinção de punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório” (Súmula
18/STJ).
Outra, que a sentença penal só pode ser executada em relação a quem figurou
e foi condenado no processo penal, alcançando, se for o caso, seu espólio ou herdeiros até o limite da herança, mas não açambarcando o responsável civil pelo dano que
não participou daquela relação processual, ou mesmo co-autor que foi excluído da denúncia ou queixa. Nessa compreensão e exemplificadamente, a sentença penal condenatória do empregado não pode ser executada contra o patrão. Em relação a esse
patrão, que não figura no título como devedor (art. 568, I, CPC), deverá ser proposta
ação civil de reparação do dano (actio civillis ex delicto), na qual pode ser rediscutido amplamente o fato e o seu autor, a ilicitude da conduta, bem assim a culpa con-
21 Nesse sentido: CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, v
II, 2001, 5ª edição, p. 151.
22 STF, RE 92.648, DJACI FALCÃO, 2ª T, DJ 13.3.81 e HC 71.453, PAULO BROSSARD, 2ª T, DJ 6.9.94.
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corrente da vítima com vistas a reduzir o valor da indenização.
Terceira, que o ofendido pode habilitar-se como assistente do Ministério Público na ação penal, não só a fim de defender um seu interesse na reparação do
dano, com a condenação e consequente formação do título executivo judicial, mas,
também e consoante o entendimento do STF, como auxiliar da acusação na exata
aplicação da justiça penal, por isso que pode o assistente recorrer, na ausência
de recurso do Ministério Público, visando a aumentar a pena aplicada ao réu22.
Quarta, a liquidação e execução do título executivo penal ou a actio civillis ex delicto podem ser propostas no juízo cível do domicílio do autor ou do local do fato (art. 100, p.u., CPC) ou, ainda e pela regra geral, do domicílio do réu
(art. 94, CPC).
Última, a sentença penal condenatória estrangeira também pode ser executada no Brasil, depois de homologada pelo STF. Outrossim, para efeitos civis da
sentença condenatória, o STF não pode atuar de ofício, precisando de requerimento do interessado (art. 9º, p.u., “a”, CP e art. 790, CPP). A execução civil far-se-á por
carta de sentença extraída dos autos da homologação, que obedecerá às regras do
CPC, sendo de competência dos juízes federais processá-la (art. 109, X, CF).
7.
OS PLANOS DO DIREITO E AS NORMAS DE ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA
Outra conseqüência da interdependência entre as esferas civil e penal está no
desenho da competência funcional, com vistas a otimizar a eficiência da prestação
jurisdicional e a credibilidade do Poder Judiciário. Exemplo disso é o deslocamento de competência no juízo penal para processar e julgar demanda cível que tenha
potencialidade para resultar em ação penal. Nesse sentido, o art. 61, Lei 5.010/66
(que organiza a Justiça Federal de primeira instância):
na Seção em que houver Varas da Justiça Federal especializada em
matéria criminal, a estas caberá o processo e julgamento dos mandados de segurança e de quaisquer ações ou incidentes relativos a
apreensão de mercadorias entradas ou saídas irregularmente do
país, ficando o Juiz prevento para o procedimento penal do crime
de contrabando ou descaminho.
A respeito:
‘PROCESSUAL CIVIL E PENAL – COMPETÊNCIA – CAUTELAR INOMINADA E AÇÃO PRINCIPAL DE REPARAÇÃO DE DANOS – APREENSÃO
DE MERCADORIAS ESTRANGEIRAS – EXISTÊNCIA DE INQUÉRITO
POLICIAL OU AÇÃO PENAL – CONFLITO IMPROCEDENTE.
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1 – Por força do disposto no art.61 da lei n.5010/66, qualquer
ação civil que decorra de apreensão de mercadorias entradas
ou saídas irregularmente do país deverá ser processada e julgada no juízo criminal por onde tramitam os autos do inquérito
ou processo penal.
2 – Ratio legis que objetiva evitar decisões conflitantes, não importando a espécie de ação civil, porquanto a lei não distingue
nem restringe.
3 – Tanto a ação cautelar inominada para restituição das mercadorias estrangeiras, como a ação principal de reparação de danos
contra a União, devem ser julgadas perante a vara criminal onde
tramitam os autos da persecução penal.
4 – Considerando o princípio da perpetuatio jurisdictionis, consagrado no art. 87 do CPC, eventual arquivamento do inquérito ou
término da ação penal não retiram a competência da vara criminal para apreciar a ação civil relacionada com o fato.
5 – Conflito negativo de competência improcedente23.
Cai a talho, neste passo, o magistério de JOSÉ FREDERICO MARQUES:
Não conhece e decide a jurisdição penal apenas de causas penais.
Assuntos que, por sua natureza, caberiam à jurisdição civil caem
na esfera da atividade funcional da jurisdição penal, por força da
conexão com a matéria estritamente penal.
Em alguns códigos, as atribuições do juiz penal possuem tal amplitude, que este processa todas as pretensões civis derivadas das infrações penais, tais como as restituições e os pedidos de indenização ex delicto. É o que se verifica com “o instituto da parte civil no
processo penal, isto é, o exercício da ação civil em conjunto com a
ação penal”, que nosso código não adotou.
Na legislação brasileira, o que se atribui ao juízo penal é o conhecimento e julgamento de medidas cautelares tendentes a garantir
a indenização, como o seqüestro de bens adquiridos com proventos da infração (arts. 125 e 132), e a hipoteca legal sobre imóveis
do indiciado (art. 134), e também a decisão sobre a restituição de
coisas apreendidas que não envolva questões de alta indagação
sobre o jus in re (art. 120).
Além disso, a jurisdição penal tem atribuições jurisdicionais ci23 TRF3, CC 97.03.0476503, CASEM MAZLOUM, 1ª SEÇÃO, DJ 5.5.98.
24 in Elementos de Direito Processual Penal, v. I, Campinas: Bookseller, 1997, 1ª edição p. 185.
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vis, contidas implicitamente na função de apreciar e julgar o
conflito entre o jus puniendi e os direitos de liberdade. É o que se
deduz do disposto nos arts. 63 usque 68, do Código de Processo
Penal, e da própria natureza do litígio que o juiz penal decide.
Daí ser assegurado, por via de conseqüência, no processo penal,
“o direito de indenização do dano ex delicto”, com a participação do ofendido como assistente, para auxiliar a acusação ou
pleitear a condenação24.
O inverso também se dá. No Tribunal de Justiça do Paraná, o habeas corpus
tirado contra ordem de prisão civil (de depositário infiel ou de devedor de alimentos), muito embora consubstancie verdadeira ação penal ainda quando, como na
hipótese, a questão subjacente é cível, não vai para uma das Câmaras Penais, e sim
para um das Câmaras Cíveis (art. 87, I, Regimento Interno do TJPR).
Por fim, cabe mencionar, em relação à restituição de bens, que em se tratando de coisas apreendidas em poder de terceiro de boa-fé, a decisão cabe ao juiz criminal (art. 120, §2º, CPP). Mas, se houver dúvida sobre quem seja o verdadeiro
dono, por versar questão de alta indagação em matéria cível, o juiz criminal remeterá as partes ao juízo cível (art. 120, §4º, CPP).
8.
A RESPONSABILIDADE FUNCIONAL DO SERVIDOR PÚBLICO E NAS
PROFISSÕES REGULAMENTADAS
No que respeita aos procedimentos administrativos para apurar falta funcional de servidor público, a existência de investigação policial ou de ação penal não
condiciona a instauração de sindicância ou processo administrativo disciplinar, bem
assim a sua continuidade. Por identidade de razões, o inverso também é verdadeiro: a sindicância ou processo administrativo disciplinar não condiciona a investigação policial ou a ação penal.
Quanto à interdependência dos resultados das esferas criminal e administrativa, particularmente em relação ao servidor público, se houver condenação na
esfera criminal por crime funcional (arts. 312 a 326, CP), haverá repercussão obrigatória na esfera administrativa:
Se o juiz reconheceu que o servidor praticou crime e este é conexo
à função pública, a Administração não tem outra alternativa senão a de considerar a conduta como ilícito também administrativo. Exemplo: se o servidor é condenado pelo crime de corrupção
25 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 8ª edição, 2001, p. 549.
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passiva (art. 317, CP), terá implicitamente praticado um ilícito administrativo. No caso da Lei 8.112/90, o servidor terá violado o art.
117, XII, que o proíbe de receber propina ou vantagem de qualquer
espécie em razão de suas atribuições. A instância penal, então,
obriga a administrativa25.
Essa repercussão da condenação criminal na esfera administrativa pode
ocorrer, ainda, através do efeito extrapenal da condenação posto no art. 92, I, “a”,
CP, que determina a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a administração
pública (crimes funcionais). Mas, se a condenação penal for por crime diverso (leiase: não-funcional, exemplo, tráfico ilícito de entorpecentes), a repercussão da esfera penal na administrativa se dá, eventualmente, por intermédio do efeito extrapenal específico da condenação posto no art. 92, I, “b”, CP, que veicula a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a quatro anos.
Se a decisão penal for absolutória, de se distinguir três situações. A primeira
cuida da absolvição que reconhece categoricamente a inexistência material do fato
(arts. 66 e 386, I, CPP) ou nega a autoria do réu. Neste caso, a decisão impede a responsabilização funcional do servidor público, a exemplo do disposto no art. 126, Lei
8.112/9026. Mas se a absolvição for pelas alíneas II, IV, V e VI do art. 386, CPP, tal circunstância não impede a posterior responsabilização funcional do servidor. Finalmente, se a absolvição for com arrimo no inc. III do art. 386, deve-se então e novamente observar duas hipóteses: se o crime constitui ou não infração administrativa.
Se não constituir, a absolvição criminal repercute na esfera administrativa, de
modo que não poderá o servidor ser punido administrativamente por aquele fato.
Mas, se o crime constitui infração administrativa, de se observar que a instância penal não repercute na administrativa em relação à falta administrativa residual: “Pela
26 ‘RMS. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DEMISSÃO. FATO INEXISTENTE. SENTENÇA CRIMINAL. ART.
386, I – CPP. 1 – A absolvição na forma do art. 386, I, do Código de Processo Penal, através de sentença criminal transitada em julgado, impede tome a instância administrativa por base aqueles mesmos fatos, reputados
inexistentes, para sancionar pretensa falta residual, ainda que estejam eles tipificados na legislação local como
aptos a ensejar a pena de demissão. Incide a letra do art. 1.525 do Código Civil. 2 – RMS provido.’ (STJ, RMS
10.654, FERNANDO GONÇALVES, 6ª T, DJ 15.10.01).
27 ‘MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO DEMITIDO POR ILÍCITO ADMINISTRATIVO. SIMULTANEIDADE DE PROCESSOS ADMINISTRATIVO E PENAL. INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS. PRECEDENTES. Esta
Corte tem reconhecido a autonomia das instâncias penal e administrativa, ressalvando as hipóteses de inexistência material do fato, de negativa de sua autoria e de fundamento lançado na instância administrativa referente a crime contra a administração pública. Precedentes: MS 21.029, CELSO DE MELLO, DJ 23.9.94; MS
21.332, NERI DA SILVEIRA, DJ 7.5.93; e MS 21.294, SEPÚVEDA PERTENCE, J 23.10.91. Segurança denegada’
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falta residual, não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público” (Súmula 18/STF)27.
Nos raciocínios acima deduzidos, partiu-se da decisão penal para se concluir
sobre a esfera administrativa. Isso não quer dizer, entretanto, que se deva aguardar
a decisão penal:
O exercício do poder disciplinar pelo Estado não está sujeito ao
prévio encerramento da persecutio criminis que venha a ser instaurada perante órgão competente do Poder Judiciário. As sanções
penais e administrativas, qualificando-se como respostas autônomas do Estado à prática de atos ilícitos cometidos pelos servidores
públicos, não se condicionam reciprocamente, tornando-se possível, em conseqüência, a imposição da punição disciplinar independentemente de prévia decisão na instância penal28.
De se observar, outrossim, que a esfera administrativa não tem força de coisa julgada: não se tratando de atividade jurisdicional, a absolvição em processo administrativo disciplinar não impede a apuração dos mesmos fatos em processo criminal, uma vez que as instâncias penal e administrativa são independentes. Com
esse entendimento, o STF já indeferiu habeas corpus na parte em se que pleiteava
a nulidade do recebimento da denúncia oferecida contra juiz de direito sob a alegação de que o paciente não poderia ser novamente julgado com base nas mesmas
provas já apreciadas no procedimento administrativo disciplinar29.
Outro exemplo que guarda pertinência: a jurisdição disciplinar da Ordem dos
Advogados do Brasil não exclui a jurisdição comum, quando o fato constituir crime
ou contravenção30, valendo o mesmo raciocínio para a jurisdição disciplinar dos
demais conselhos de fiscalização e disciplina das profissões liberais regulamentadas
(Conselho Regional de Medicina, Conselho Regional de Química e outros).
9.
A RESPONSABILIDADE POLÍTICA E O PROCESSO DE IMPEACHMENT
Em relação às investigações promovidas pelas Comissões de Sindicância ou
Comissões de Ética das Casas Legislativas, tendo por objeto a conduta dos parlamentares para apurar-lhe a falta de decoro parlamentar31, com vistas à sua desqualificação (perda do mandato – art. 55, II, CF), não são condicionadas à existência de investigação policial ou de ação penal. Importa ressaltar que esse procedimento disciplinar para apurar a responsabilidade política do congressista não é ex29 STF, HC 77.784, ILMAR GALVÃO, J. 10.11.98, INFORMATIVO STF 131.
30 STF, RHC 49.630, HELOY DA ROCHA, 2ª T, DJ 31.5.72.
31 E aqui importa dizer que a ética na política toma cores mais forte, em termos de controle social, após o impeachment do Presidente da República Collor de Melo.
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tinto com a eventual renúncia deste ao cargo (art. 55, §4º, CF). Andante, se houver
renúncia antes da instauração do processo disciplinar, entende-se que este fica prejudicado (é lembrar o caso do Senador Antônio Carlos Magalhães quando da violação do painel do Senado em 2001), o que não impede, outrossim, a investigação policial nem a ação penal.
Não se pode esquecer que a desqualificação do parlamentar posta no art. 55, II,
CF, tem natureza política, implicando uma interdependência entre as esferas política e criminal. A qualificação do ato praticado pelo parlamentar como falta de decoro
parlamentar é deliberação interna corporis da Casa Legislativa, não podendo ser sindicada pelo Poder Judiciário32. Assim, só haverá repercussão da esfera criminal na esfera
política se naquela ficar comprovada a inexistência material do fato ou que o parlamentar não foi o seu autor. Eventual reconhecimento de causas de justificação penal (ex: legítima defesa) não interfere necessariamente no juízo político. A seu turno, a condenação penal não implica necessariamente a falta de decoro parlamentar.
Também urge estadear que o conteúdo desta sanção, a par de guardar ligeira
semelhança com aquela posta no art. 52, p.u., CF, é ontologicamente diverso, por
isso que a prevista no art. 52, p.u., CF tem natureza de sanção penal e a prevista no
art. 55, II, CF, de sanção política33.
O processo de impeachment é meio de responsabilização do agente por crime de responsabilidade (Lei 1.079/50 e DL 201/67), cuja sanção tem conteúdo penal, na esteira do atual entendimento do STF34. De se registrar, neste passo, que não
se admite a responsabilização penal do Presidente da República por atos estranhos
ao exercício de sua função, enquanto ele estiver no exercício do mandato, cf. art. 86,
§ 4º, CF. Mas essa imunidade temporária não abrange a responsabilidade cível (é
lembrar o caso do ex-Presidente Fernando Collor de Mello, contra quem foi ajuizado execução fiscal pela Fazenda Nacional).
Finalmente, a circunstância de ter sido julgada improcedente ação de impugnação de mandato eletivo, não constitui obstáculo à condenação criminal acerca dos
mesmos fatos, desde que fundada no que apurado no curso da instrução do processo crime35.
33 sobre a natureza política desse tipo de sanção do congressista por falta contra a ética e o decoro parlamentar,
bem assim um estudo sobre esse tipo de sanção no direito comparado, vide PINTO FERREIRA, Comentários à
Constituição Brasileira, São Paulo: Saraiva, 1992, v. III, p. 28.
34 “CRIME DE RESPONSABILIDADE. DEFINIÇÃO. RESERVA DE LEI. Entenda-se que a definição de crimes de responsabilidade, imputáveis embora a autoridades estaduais, é matéria de Direito Penal, da competência privativa da União – como tem prevalecido no Tribunal – ou, ao contrário, que sendo matéria de responsabilidade
política de mandatários locais, sobre ela possa legislar o Estado-membro – como sustentam autores de tomo
– o certo é que estão todos acordes em tratar-se de questão submetida à reserva de lei formal, não podendo
ser versada em decreto-legislativo da Assembléia Legislativa.” (STF, ADI 834, SEPÚLVEDA PERTENCE, PLENO,
DJ 9.4.99).
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10. O CONTROLE EXTERNO EXERCIDO PELO TRIBUNAL DE CONTAS
E PELAS CASAS LEGISLATIVAS
O controle externo exercido pelo Tribunal de Contas e pelas Casas Legislativas (arts. 31, §§ 1º e 2º, 49, IX, e 71, CF) não é condicionado pela existência de investigação policial ou de ação penal. A recíproca é verdadeira: a investigação policial
ou a ação penal não são condicionadas à prévia deflagração do controle externo no
Tribunal de Contas. Aqui, não é demais ressaltar, para evitar equívocos, o Ministério
Público que atua perante o Tribunal de Contas (art. 130, CF) formar um quadro especial, diverso do Ministério Público comum36 e sem atribuição de dominus litis de
ação penal, por isso que, encontrados indícios de crimes nos processos daquele tribunal, há de se extraírem cópias e remetê-las ao Ministério Público comum, como
notitia criminis. Nessa compreensão, se o Tribunal de Contas realiza procedimento
administrativo apuratório e verifica indícios de crime, encaminhando o procedimento ao Ministério Público, válida é a denúncia baseada tão-somente nesta auditoria
do Tribunal de Contas37, sendo prescindível o inquérito policial (que, assim como a
auditoria técnica, tem natureza eminentemente inquisitiva).
O resultado do controle externo exercido pelo Tribunal de Contas (órgão
auxiliar do Poder Legislativo) não repercute necessariamente na esfera penal, por
isso que as decisões do Tribunal de Contas, quando julgam
as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao
erário público
(art. 71, I, CF) não são de natureza jurisdicional, mas meramente administrativa.
O mesmo se diga quando o Tribunal de Contas “apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento” (art. 71, II, CF), sendo esse parecer prévio julgado pela respectiva Casa Legislativa38. Assim e, por exemplo, a procedência de denúncia no Tribunal de Contas, resultando a imputação de débito e
37 STF, RHC 49.204, AMARAL SANTOS, 1ª T, DJ 10.3.72.
38 De regra, os Tribunais de Contas aprovam as contas dos Chefes do Executivo. O Tribunal de Contas do Rio de
Janeiro, em iniciativa inédita, recusou as contas de 2002 do então Governador Anthony Garotinho e da então
Prefeita Benedita da Silva, que foram responsabilizados por um deficit de R$ 2 bilhões. Entretanto, a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, cedendo a pressões políticas, aprovou as contas dos dois (contra o parecer
do Tribunal de Contas), livrando-os de sanções pertinentes (que poderiam levar à inelegibilidade).
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multa a administrador público e o encaminhamento de cópias do processo administrativo apuratório ao Ministério Público, como notitia criminis, não implica a necessária procedência da ação penal respectiva, que pode ser julgada improcedente
ainda que a Casa Legislativa respectiva aprove o parecer contrário ao administrador.
Essa improcedência da ação penal, entretanto, não repercute automaticamente para
tirar a liquidez e exigibilidade do título executivo produzido pela decisão do Tribunal de Contas (art. 71, §3º, CF). Também, a aprovação das contas do Prefeito pela
Câmara Municipal não impede por si só a ação penal, até porque a atuação do Poder Judiciário não fica cerceada pela do Poder Legislativo, que só opera no plano político-administrativo, e não no plano penal39.
O reconhecimento de causas de justificação penal ou a condenação penal não
repercutem no controle do Tribunal de Contas. A decisão penal somente repercute na decisão do Tribunal de Contas se ficar comprovada a inexistência material do
fato ou que o administrador público não foi o seu autor:
A rejeição de denúncia por insuficiência de provas não impede a
responsabilização pelos mesmos fatos em instância administrativa, uma vez que as instâncias penal e administrativa são independentes. Com esse entendimento, o Tribunal indeferiu mandado de
segurança impetrado por ex-prefeito, que teve rejeitada a denúncia contra ele apresentada por crime de peculato, mediante o qual
se pretendia o arquivamento da tomada de contas especial do TCU
sobre os mesmos fatos.40
11. AS COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO
Quanto à investigação procedida pelas Comissões Parlamentares de Inquérito – CPI das Casas Legislativas, que é um dos instrumentos de controle político-administrativo de que dispõe o Poder Legislativo (art. 58, §3º, CF), o inquérito
parlamentar, dotado de finalidade própria, permite à Comissão legislativa – sempre
respeitados os limites inerentes à competência material do Poder Legislativo e observados os fatos determinados que ditaram a sua constituição – promover a pertinente investigação, ainda que os atos investigatórios possam incidir, eventualmente, sobre aspectos referentes a acontecimentos sujeitos a inquéritos policiais ou a
processos judiciais que guardem conexão com o evento principal objeto da apuração congressual41.
O relatório final da CPI, se for o caso, é encaminhado ao Ministério Público
para promover a responsabilidade civil e penal referente ao fato que determinou a
40 STF, MS 23.625, MAURÍCIO CORREA, J. 8.11.01.
41 STF, MS 24.458, CELSO DE MELLO, DECISÃO MONOCRÁTICA, DJ 18.2.03.
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sua criação, bem assim aos fatos conexos a esse. Para se legitimar a extensão do relatório final a outros fatos, inicialmente desconhecidos e que surgiram durante a investigação parlamentar, basta que haja um aditamento ao objeto inicial da CPI. Outrossim, de se mencionar que as CPIs estaduais não têm competência para investigar autoridades que estão submetidas a foro privilegiado federal42.
12. PROVA EMPRESTADA ENTRE AS DIVERSAS INSTÂNCIAS DO DIREITO
Questão interessante está em saber se as provas obtidas em investigação criminal ou instrução processual penal podem ser emprestadas às searas cível e administrativa, e vice-versa. Aqui e por pertinência, enfatizo o que disse anteriormente: a comunicação de uma instância a outra é bitolada pelo ordenamento jurídico.
Assim e de regra, em se tratando de prova técnica (exames, avaliações e perícias),
prova material, pode-se responder à questão no sentido afirmativo43, mas a prova
testemunhal há de sempre ser repetida na nova instância, não podendo ser aproveitada.
Nessa compreensão, as provas contábeis produzidas em processos administrativos fiscais apuratórios podem servir de base ao oferecimento da denúncia (art.
12, CPP, a contrario sensu, por isso que o inquérito policial não é imprescindível)44,
bem assim e na perspectiva das infrações ao meio ambiente, “a perícia produzida no
inquérito civil ou no juízo cível poderá ser aproveitada no processo penal, instaurando-se o contraditório” (art. 10, p.u., Lei 9.605/98). Noutra banda e sem entrar na polêmica questão se o Ministério Público pode proceder à investigação criminal, ele
pode definitivamente promover o inquérito civil público (art. 129, III, CF) que, por
sua vez e sendo o caso, é bastante para embasar uma persecução penal em juízo.
Mas, se se tratar de prova coligida mediante quebra de sigilo (bancário, fiscal
ou telefônico), a resposta é negativa: a prova assim produzida, por seu caráter excepcional na perspectiva do direito à privacidade (art. 5º, X, CF), fica com sua legitimidade relativizada e vinculada ao inquérito, procedimento administrativo
apuratório, processo penal ou processo civil em que foi produzida, por força do ordenamento jurídico posto: art. 5º, XII, CF. Desse modo, a prova obtida em procedi43 “A prova emprestada tem existência reconhecida na doutrina e na jurisprudência pátrias, valendo como tal a
que foi produzida no processo-crime a que responde o servidor, e que foi juntada nos autos do processo administrativo disciplinar” (STJ, ROMS 7.685, HAMILTON CARVALHIDO, 6ª T, DJ 4.8.03),
44 STJ, HC 14.274, VICENTE LEAL, 6ª T, DJ 4.6.01,
45 TRF4, MS 2003.04.01.020230-5, ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO, DECISÃO LIMINAR, J 21.5.03,
46 TRF4, MS 2002.04.01.023849-6, VLADIMIR FREITAS, 4ª SEÇÃO, J. 16.6.03, INFORMATIVO TRF4 161.
47 Nessa compreensão, o STF indeferiu pedido de autoridade fiscal formulado em inquérito policial em que se
apuravam fatos relacionados com o chamado “Escândalo do Orçamento”, no sentido de que fosse autorizada
a extração de cópia de documentos que chegaram aos autos em virtude de quebra de sigilo bancário do indiciado e que poderiam ser úteis à fiscalização tributária (INQ 923, MOREIRA ALVES, PLENO, J 18.4.96). Outros-
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mento criminal referente à interceptação telefônica envolvendo servidores públicos
não pode ser utilizada para instrução de processo cível ou administrativo/disciplinar45, e os dados obtidos por quebra de sigilo bancário em inquérito policial que investiga possível ocorrência de crimes tipificados na Lei 9.613/98 não podem ser utilizados em processo administrativo-tributário para sustentar eventual lançamento46.
Do mesmo modo, a prova produzida por Comissão Parlamentar de Inquérito
– CPI, que tem poderes investigatórios próprios das autoridades judiciais, ainda que
oriunda de quebra de sigilo (bancário, fiscal ou telefônico), pode ser utilizada pelo Ministério Público em ação penal ou ação de improbidade administrativa relacionado
com o fato mesmo que motivou a criação da CPI, por expressa autorização finalística posta no art. 58, §3º, CF, mas não poderia como não pode realmente ser utilizada pela Fazenda Pública para cobrança de tributos eventualmente devidos47.
Outrossim, havendo procedimento cautelar em que fora autorizada interceptação telefônica para investigar eventual crime de tráfico internacional de drogas no
Juízo Federal, descaracterizada a internacionalidade, o procedimento cautelar
pode ser encaminhado ao Juízo Estadual (então competente para julgamento da
ação principal), para persecução penal em relação ao tráfico interno de drogas48.
13. PRISÃO DE NATUREZA PENAL DECRETADA POR JUIZ CÍVEL
Outra questão corriqueira: o juiz cível só pode decretar a prisão de natureza civil49, ou seja, nas hipóteses de depositário infiel (ex: devedor em alienação
fiduciária, que é considerado assim por ficção legal, tida como legítima pelo STF50;
ação de depósito de tributos, prevista na Lei 8.866/94 e bastante utilizada pelo INSS
para coagir o empregador a repassar contribuições sociais retidas do empregado; e
a prisão do sacado ou aceitante de título de crédito que o retém indevidamente, cf.
previsto no art. 885, CPC) ou de devedor de alimentos (ex: art. 733, §1º, CPC –
valendo aqui ressaltar que a pensão decorrente de ato ilícito não permite a prisão
civil, pois não tem natureza eminentemente alimentar). Desse modo, o juiz cível,
que não tem jurisdição criminal, não tem competência para decretar prisão penal,
48 Em sentido contrário: “4. Mostra-se regular o arquivamento dos autos de procedimento cautelar em que autorizada interceptação telefônica, diante da não confirmação dos indícios referentes ao tráfico internacional de
drogas, os quais – a princípio – observado o critério da competência – motivaram a persecutio criminis no
âmbito federal. 5. Observados os princípios da necessidade e da proporcionalidade, à míngua de prova contrária, descabe impor reparos ao Juízo Federal que indeferiu a remessa dos autos da medida arquivada à órbita Estadual, mormente quando autorizou a manutenção dos dados obtidos para eventual aproveitamento nas investigações. 6. Em obediência à mencionada regra contida na 2ª parte do inc. XII do art. 5º da CF/88, a prova sigilosa, mantida no âmbito da Polícia Federal, deverá ficar formalmente vinculada a procedimento criminal, sob
controle do Juízo apelado” (TRF4, CORREIÇÃO PARCIAL 2002.04.01.047768-5, LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO, 8ª T, DJ 7.5.03).
49 STJ, HC 18.610, GILSON DIPP, 5ª T, DJ 4.11.02.
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ainda que por desobediência a ordem sua51.
A diferença entre prisão penal e prisão civil está em que a primeira consubstancia um meio de expiação ou repressão do ilícito (prisão penal stricto sensu,
que ocorre após o trânsito em julgado da condenação), bem assim um meio de prevenção (prisão processual, cautelar ou provisória, que inclui a prisão em flagrante, cf.
arts. 301 a 310, CPP, a prisão preventiva, cf. arts. 311 a 316, CPP, a prisão resultante de
pronúncia, cf. arts. 282 e 408, §1º, CPP, a prisão resultante de sentença penal condenatória não transitada em julgado, cf. art. 393, I, CPP, e a prisão temporária, cf. Lei
7.960/89), enquanto a segunda é um meio de coação, por isso que não admite a
concessão de fiança (art. 324, II, CPP), bem assim “o cumprimento da pena não exime
o devedor do pagamento das prestações vencidas e vincendas” (art. 733, §2º, CPC), é
dizer, o seu cumprimento não extingue a obrigação nem a responsabilidade.
Neste passo, importa destacar, novamente invocando a Lei 8.866/94, que em
virtude de sua natureza civil mesma, essa lei não implicou a revogação do tipo penal então previsto no art. 95, “a”, Lei 8.212/91 e, a partir da Lei 9.983/00, no art. 168A, CP, por isso a diversidade de natureza das sanções impede a repercussão e a compensação entre elas52.
Se o juiz criminal competente rejeita a denúncia pelo crime de desobediência,
é desarrazoado que o juiz do cível, aquele que emitiu a ordem descumprida, determine a prisão do insubmisso, porque inconciliáveis as idéias de que o juiz natural
declare a inexistência do crime e de que outro reconheça sua prática em flagrante,
prevalecendo o ato judicial exarado no âmbito da competência própria53.
Nessa senda, registre-se ainda que
Não há prisão em flagrante por meio de mandado judicial. Somase a isso o fato do mandado de prisão ter sido expedido por um Juízo Cível e, ainda mais, sem o devido processo legal. A desobediência a ordem judicial, mesmo que importe na submissão do agente
a processo criminal, antecedido inclusive de prisão em flagrante,
não comporta prisão por mandado, expedido pela própria autoridade judiciária que expediu a ordem54.
Enfim, também é conveniente registrar que o Juiz do Trabalho pode decretar
a prisão civil de depositário infiel, ex: empregado que assume a responsabilidade
52
53
54
55
56
STJ, RHC 14.691, FRANCIULLI NETTO, 2ª T, DJ 24.11.03.
TRF4, HC 920410058-3, ARI PARGENDLER, 1ª T, DJ 20.5.92.
TRF4, HC 2000.04.01.139688-0, AMIR SARTI, 1ª T, DJ 18.4.01.
STF, CC 6.979, ILMAR GALVÃO, PLENO, DJ 4.10.91.
neste passo interessante notar a correta utilização do mandado de segurança, e não do habeas corpus, para
trancar ação penal contra a pessoa jurídica por crimes ambientais (TRF4, MS 2002.04.01.013843-0, FÁBIO BIT-
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por um bem no processo de execução de sentença proferida em reclamação trabalhista. E, nesses casos, o habeas corpus tirado contra essa ordem de prisão compete ao Tribunal Regional Federal, e não ao Tribunal Regional do Trabalho55. É que o
habeas corpus é sempre ação de natureza penal, ainda que versando uma questão cível, é dizer, utilizada no curso de um processo cível (em contrapartida, o mandado de segurança é sempre uma ação de natureza cível, ainda que versando
uma questão penal ou utilizada no curso de um processo-crime56), e a Justiça do Trabalho não tem jurisdição penal, subsumindo por isso mesmo a espécie ao art. 108,
I, d, CF.
14. EFEITOS EXTRAPENAIS DA CONDENAÇÃO
Oportuno, neste passo, analisar os efeitos extrapenais da condenação penal,
por isso que, consoante a nomenclatura mesma deste instituto sugere, tem-se aqui
a repercussão da esfera penal em outras esferas que dividem ontologicamente o ordenamento jurídico.
14.1. Efeitos extrapenais genéricos
Os efeitos extrapenais genéricos da condenação estão positivados no art. 91,
CP, art. 15, III, CF e legislação não-penal. O que os caracteriza e distingue dos efeitos extrapenais específicos é o fato de não precisarem ser expressamente declarados na sentença penal.
O primeiro é tornar certa a obrigação de reparar o dano causado pelo crime
(art. 91, I, CP), por isso que, em caso de condenação, os autos de eventual procedimento incidental de seqüestro, arresto e especialização em hipoteca legal são encaminhados ao juiz cível, para os fins do art. 63, CPP. A esse respeito já se falou no item “6. A
ação civil de reparação de dano e a ação executiva da sentença penal condenatória”
Confisco pela União dos instrumentos do crime, desde que seu uso, porte, detenção, alienação ou fabrico constituam fato ilícito (art. 91, II, “a”, CP). No caso
de crime da Lei de Tóxicos, Lei 6.368/76, a condenação provoca a perda em favor da
União de qualquer meio de transporte, maquinismo ou instrumento para a prática
do crime, ainda que seu porte, alienação ou fabrico não constituam fato ilícito (art.
34, §2º). Serão confiscadas todas as glebas utilizadas para cultura ilegal de plantas
psicotrópicas (art. 243, caput, CF) e todo e qualquer bem de valor econômico
apreendido em decorrência do tráfico (art. 243, p.u., CF). De se ressaltar que o confisco somente atinge os bens do autor do ilícito, não podendo terceiro, estranho à
lide, ser prejudicado pela medida.
57 TRF4, Embargos Infringentes e de Nulidade em Apelação Criminal nº 2000.04.01.027653-1/PR, JOSÉ GERMANO DA SILVA, 4ª SEÇÃO, J. 18.12.02.
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Confisco pela União do produto e do proveito do crime (art. 91, II, “b”,
CP). Produto é a vantagem direta auferida pela prática do crime (ex: relógio furtado); proveito é a vantagem decorrente do produto (ex: dinheiro obtido com a venda do relógio furtado). Na realidade, o produto do crime deverá ser restituído ao lesado ou ao terceiro de boa-fé, somente se realizando o confisco pela União se permanecer ignorada a identidade do dono ou não for reclamado o bem. No crime tentado de evasão de divisas, o produto da ação delitiva – a quantia apreendida – confunde-se com o seu próprio objeto e, por isso, deve-se aplicar às importâncias retidas a pena de perdimento57.
Importa aqui registrar que a perda dos instrumentos do crime e a formação
do título executivo é automática, decorrendo do trânsito em julgado da sentença
condenatória (= efeito da condenação criminal), disso resultando que é incabível
no caso de transação penal (art. 76, §6º, Lei 9.099/95) ou extinção da punibilidade
pela prescrição da pretensão executória.
Outro efeito extrapenal genérico da condenação criminal transitada em julgado
é a suspensão dos direitos políticos, enquanto durar a execução da pena (art. 15, III,
CF). Importante registrar, aqui e agora, que os presos provisórios têm assegurados seus
direitos políticos, muito embora pouquíssimos estabelecimentos prisionais viabilizem,
por exemplo, o exercício do direito de voto a eles. A suspensão dos direitos políticos não
se limita às hipóteses em que o cumprimento da sanção definitiva torne inviável o seu
exercício ou quando houver limitações que impliquem horários de recolhimento ao cárcere. Portanto, se aplica ao sursis e ao livramento condicional, de modo que só há o restabelecimento dos direitos políticos depois de extinta a pena ou terminar sua execução,
computando-se o período de prova do sursis e do livramento condicional58.
A suspensão dos direitos políticos engloba a perda do mandato eletivo, implicando a imediata cessação do seu exercício (ex: cargo de Governador, Prefeito, Vereador), exceto em se tratando de parlamentar federal, por isso que, nessa hipótese, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado
Federal, por voto secreto e maioria absoluta (art. 55, §2º, CF), ou seja, depende de
um plus que consubstancia um juízo político, estendido também aos parlamentares estaduais (art. 27, §1º, CF).
Além desses efeitos extrapenais genéricos da condenação criminal transitada
em julgado, de tradicional citação, ainda que, en passant, nos manuais de Direito Penal, há outros positivados na legislação não-penal, valendo citar alguns.
58 Nesse sentido: “RECURSO ESPECIAL. RECURSO CONTRA EXPEDIÇÃO DE DIPLOMA. CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO. SURSIS. CF, ART. 15, III. AUTO-APLICABILIDADE. INELEGIBILIDADE. 1. A CF,
art. 15, III, possui eficácia plena (STF, RE 179.502, MOREIRA ALVES, DE 08.09.95). 2. Deve-se cassar o diploma
de candidato condenado por sentença transitada em julgado, independentemente da natureza do crime e mesmo que esteja em curso a suspensão condicional da pena. Precedentes” (TSE, RESPE 15.338, EDSON CARVALHO VIDIGAL, DJ 13.8.99). Também: TSE, RESPE 15.726, EDUARDO ANDRADE RIBEIRO DE OLIVEIRA, DJ
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O primeiro exemplo está no art. 8º, I, Lei 9.961/00, que cria a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e dá outras providências: “Após os primeiros quatro meses de exercício, os dirigentes da ANS somente perderão o mandato em virtude de: I – condenação penal transitada em julgado”.
Outro exemplo é dado pelo art. 38, §1º, VII, Lei 8.987/95, que dispõe sobre o
regime de concessão e permissão no serviço público: “A caducidade da concessão
poderá ser declarada pelo poder concedente quando: VII – a concessionária for
condenada em sentença transitada em julgado por sonegação de tributos, inclusive
contribuições sociais”.
Finalmente, é também efeito extrapenal genérico da condenação criminal a
pena privativa de liberdade superior a 2 anos, em relação ao oficial militar das Forças Armadas, ser submetido a julgamento perante tribunal militar permanente para que se verifique se sua conduta é indigna do oficialato ou com ele incompatível, hipótese em que perderá o posto e a patente (art. 142, §3º, VI e VII, CF).
14.2. Efeitos extrapenais específicos
Os efeitos extrapenais específicos da sentença penal condenatória estão no
art. 92, CP. “Os efeitos de que tratam este artigo não são automáticos, devendo ser
motivadamente declarados na sentença” (art. 92, p.u., CP).
O primeiro é a perda do cargo ou função pública (art. 92, I, CP). Decorre
da prática de crimes funcionais, desde que seja imposta pena igual ou superior a um
ano (art. 92, I, “a”, CP). Mas, não se justifica a decretação da perda de cargo público
por condenação a pena inferior a quatro anos, de servidor que por toda sua vida funcional teve conduta irrepreensível e, que, em incidente isolado, vem a cometer crime que por suas características não revela incompatibilidade com a função pública59.
Decorre também da prática de qualquer crime (ainda que não seja funcional), se a
pena imposta for superior a quatro anos (art. 92, I, “b”, CP). No caso de crime de
preconceito de raça ou cor praticado por servidor público, também ocorrerá esse
efeito, se o juiz o declarar na sentença (art. 18, Lei 7.716/89). A condenação do agente pela prática de crime de tortura igualmente enseja a perda do cargo, função ou
emprego público e a interdição para o seu exercício pelo dobro do prazo da pena
aplicada, independente da sua quantidade (art. 1º, §5º, Lei 9.455/97).
Outro efeito é a incapacidade para o exercício do pátrio poder, tutela
ou curatela, nos crimes dolosos, sujeitos a pena de reclusão, cometidos contra filho, tutelado ou curatelado (art. 92, II, CP).
Por último, é também efeito extrapenal específico a inabilitação para dirigir
veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso (art. 92, III, CP).
Aqui, importa enfatizar que a reabilitação implica a suspensão dos efeitos extrapenais específicos, vedando, contudo, o CP a recondução ao cargo anterior e a
recuperação do poder familiar em relação ao filho, tutelado ou curatelado ofendido
pelo crime anterior, ficando a conseqüência na reabilitação limitada à volta da habi-
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litação para dirigir veículo (art. 93, p.u).
15. EPÍLOGO
O alcance deste trabalho devia ser e realmente foi glosar uma ciência e uma
consciência do intercâmbio entre os diversos ramos do Direito, fato este que, em boa
verdade, é visceral e telúrico aos operadores do Direito. Assim, definem-se os contornos positivados desse diálogo jurídico, enfatizando uma visão holística (contrapondo-se a uma visão cartesiana) desse fenômeno cultural e locus artificiallis apodítico
que é o Direito. E nesse diálogo entre mundos (pode-se chamar assim os diversos ramos do Direito, com sua legislação, jurisprudência, doutrina, prática forense, atualidades, tendências e outras idiossincrasias) de um mesmo mundo, promove-se o encontro do Direito consigo mesmo, estreitando ainda mais os lindes dos diversos ramos do Direito, o que convém na medida em que o Direito é uno.
Longe de pretender sintetizar uma ontologia sobre o diálogo jurídico entre os
ramos do Direito, mesmo porque inexistente, esse trabalho simplesmente traz algumas respostas (nem sempre tautológicas em face da legislação vigente e, às vezes,
até pitorescas ou desaforadas, se comparadas aos princípios mais comezinhos do Direito) a questões diuturnas da realidade, onde e quando se faz necessário esse conhecimento casuístico e tópico. É que, como ficou registrado logo no início,
esse é um tema em que prevalecem, antes de uma lógica jurídica pura com critérios científicos, as opções de política legislativa (à semelhança da romântica e bizantina questão do cabimento das leis complementares na Constituição). Mas, nem por
isso, passa a ser um tema inefável, como se vê neste trabalho, que não pretende ter
a gordura literária de um baile da Ilha Fiscal, e o que tem está aí: prêt-à-porter.
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A PENHORA ON LINE: INSTRUMENTO DE EFETIVIDADE
DA TUTELA JURISDICIONAL NAS EXECUÇÕES POR
QUANTIA CERTA
Vanderlei Ferreira de Lima
Procurador do Estado de São Paulo.
Ex-Delegado de Polícia.
Mestre em Direito Constitucional pela ITE-Bauru, onde atualmente cursa
especialização lato sensu em Direito Público.
1.
FUNÇÃO JURISDICIONAL DO ESTADO
Um dos fins fundamentais do Estado é a preservação da ordem na sociedade,
realizada através de suas funções jurídicas, a legislativa e a jurisdicional, ou simplesmente jurisdição.1
A primeira delas consiste no estabelecimento do direito material (objetivo),
isto é, na fixação de normas gerais às quais todos os componentes da sociedade, inclusive, e principalmente o próprio Estado, devem ajustar suas condutas. Quando
no exercício desta função, se diz Estado-Legislador.
A par da atividade legislativa, também com fito de preservação da ordem, temse a função jurisdicional, que consiste na aplicação do direito legislado ao caso concreto. Quando no exercício da função jurisdicional, se diz Estado-Juiz.
1
ARAUJO, L. A. D. e NUNES JÚNIOR, V. S. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.
227-228. Ao lado das funções legislativa e jurisdicional, “a função executiva tem por objeto a administração da
coisa pública. Nesse sentido, ela se realiza por meio de atos e decisões produzidos com a finalidade de dar cum-
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Enquanto a função legislativa estabelece preceitos normativos genéricos e
abstratos, a função jurisdicional pratica atos de conteúdo concreto, posto que, em
vista do Estado-Juiz, delineia-se uma controvérsia a ser dirimida. Neste caso, o Estado-Juiz deverá dizer qual das pretensões em conflito está amparada pelo direito material; daí afirmar-se que a expressão jurisdição significa ação de dizer o direito, do
latim jurisdictio.
Mediante sua função jurisdicional, o Estado chamou para si o monopólio de
distribuir a justiça, substituindo a atividade das partes que ficaram tolhidas de exercer seus direitos, de modo coativo, pelas próprias forças. Proibiu-se, desta forma, a
“autotutela” ou a “justiça privada”.
A propósito da proibição da autodefesa, estas são as palavras do renomado jurista italiano CALAMANDREI:
No momento, pode-se afirmar este princípio elementar: que se o direito subjetivo significa preferência dada pela lei ao interesse individual, isto não quer dizer que quem está investido daquele possa colocar em prática a própria força privada para fazer valer, a cargo
do obrigado, tal preferência. Formando a base dos conceitos de jurisdição e de ação se encontram, no Estado moderno a premissa
fundamental da proibição da autodefesa: direito subjetivo significa
interesse individual protegido pela força do Estado, não direito de
empregar a força privada em defesa do interesse individual.2
De certo modo, ainda existem, no ordenamento jurídico pátrio, alguns resquícios da autotutela: auto-executoriedade dos atos administrativos,3 legítima defesa da
posse,4 direito de retenção de bens,5 apossamento de bens no penhor legal,6 legítima
defesa,7 etc. Mas são casos excepcionais e expressamente previstos na lei, pois a regra
é a proibição da autotutela, já que o Código Penal Brasileiro define como crime “fazer
justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a
lei o permite”.8 É o chamado delito de exercício arbitrário das próprias razões. Logo, se
o Estado proíbe o exercício arbitrário das próprias razões, assume a função jurisdicio-
2
3
4
5
6
CALAMANDREI, P. Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, vol. 1, 1999, p. 180.
MEIRELLES, H. L. Direito Administrativo Brasileiro. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 144. “A auto-executoriedade consiste na possibilidade que certos atos administrativos ensejam de imediata e direta execução pela
própria administração, independentemente de ordem judicial”.
Art. 502 do CC – Lei 3.071/16; art.1.210, § 1º CC novo – Lei 10.406/02.
Direito assegurado ao possuidor de boa-fé que não está obrigado a entregar a coisa enquanto não for indenizado pelas benfeitorias que tiver realizado na coisa (arts. 516, 1199 e outros, do CC –Lei 3.071/16; arts.1.219 e
outros do CC novo – Lei 10.406/02).
Arts. 776, 778 e 779 do CC – Lei 3.071/16.
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nal não somente como poder, mas, e principalmente, como dever.
Portanto, assim entendida, a função jurisdicional do Estado trata de instrumento de garantia da legalidade, um dos pilares em que se assenta o Estado Democrático de Direito, uma vez que a legalidade evita o arbítrio e a insegurança jurídica
que venham a ser praticados pelos membros da sociedade, inclusive pelo próprio
Estado, que também se submete à jurisdição.9
Assim, ao Poder Judiciário, através de seus órgãos, tribunais e juízes, foi atribuída a elevada missão de exercer a função jurisdicional do Estado.
2.
CRISE DA JURISDIÇÃO NAS EXECUÇÕES POR QUANTIA CERTA
Inicialmente, é oportuno esclarecer que ao jurisdicionado não interessa a existência de um título executivo extrajudicial ou judicial, ainda que estes documentos
constituam em belíssimas obras literárias com citações de autores diversos, colações
de direito comparado etc. O direito consubstanciado nestes títulos ainda se restringe a um plano meramente teórico, distanciado da realidade social e de pouca valia,
se visualizado sob a óptica do jurisdicionado, para a qual não importa o reconhecimento teórico de seu direito, senão a sua concretização no mundo empírico. Portanto, o processo enquanto instrumento desprovido de meios executivos chega a
ser dotado de uma certa ineficácia na composição dos litígios.
Na verdade, ao cidadão, cliente da prestação do serviço público essencial denominado jurisdição, o que importa é a concretização de seu direito, o recebimento de seu crédito.
Nesse contexto, pode-se afirmar que atualmente é mais confortável ser devedor do que ser credor, quer pelo novo contexto social – direitos fundamentais estendidos em demasia ao devedor -, quer pelo contexto econômico que a realidade
social apresenta, em que há dificuldade na identificação de patrimônio do devedor,
visto que contas bancárias, ações, fundos de comércio, marcas, patentes, direitos autorais passaram a representar um valor substancialmente relevante e muitas vezes
único do devedor, sendo que técnicas comerciais modernas favorecem o anonimato, tais como holdings, sociedades por ações ao portador em paraísos fiscais etc:
é hoje extremamente difícil aceitar a penhora de certos bens sem
parecer um ato de extrema maldade do credor que ousa atentar
contra a liberdade para satisfazer apenas seus interesses privados.
(...)
Por isso, se se deseja tornar a atividade executiva efetiva, impõe-se
uma mudança de mentalidade, admitindo-se a penhora de parte
9
O controle judicial dos atos da Administração Pública recai nos aspectos dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 5º., XXXV, c/c 37 da CF/88).
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do salário e daqueles bens que guarnecem o domicílio, sem serem
considerados efetivamente bens de família, ou ainda a alienação
de certos bens de família com a reserva de valor suficiente para a
aquisição de outros com a mesma finalidade.10
Efetivamente, ao se conceder eficácia absoluta à Lei 8009/90 – que considera
bem de família qualquer imóvel no qual o devedor resida –, e, portanto, impenhorável ainda que seu valor atinja a casa dos milhões, atentando-se contra o postulado
da razoabilidade, uma vez que não é razoável permitir que o devedor mantenha o
domínio de imóvel de luxo, descumprindo ordem judicial e violando o fundamental direito do credor à efetividade da prestação jurisdicional.
Assim, cabe ao Juiz, afastar a eficácia absoluta da impenhorabilidade do bem
de família, considerando-a relativa, permitindo a penhora de imóvel de alto valor,
reservando-se valor razoável para que o devedor adquira outro imóvel, menos luxuoso, para cumprir a finalidade protetiva da lei, que a de conceder moradia com
dignidade.
Com o intuito de se positivar a aplicação do postulado da razoabilidade à penhora do bem de família, o Anteprojeto de Lei sobre o cumprimento de sentenças
judiciais que condena ao pagamento de quantia certa, de autoria dos professores
CARNEIRO e TEIXEIRA, prevê a modificação do Código de Processo Civil nos seguintes termos:
ART. 650. Podem ser penhorados, à falta de outros bens, as quotas
de sociedade de responsabilidade limitada, bem como os frutos e
rendimentos dos bens inalienáveis, salvo se destinados estes ao pagamento de pensão alimentícia.
Parágrafo único. Também pode ser penhorado o imóvel considerado bem de família, se de valor superior a mil (1.000) salários mínimos, caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até
aquele limite será reservada para a aquisição, pelo devedor de outro imóvel residencial.11
A nova redação sugerida no Anteprojeto de Lei impede que o executado fique
residindo em imóvel luxuoso, sem pagar seus débitos em afronta a seus credores. É
uma forma de coagi-lo a quitar o débito, sob pena de perder seu imóvel, atualmente protegido sob o instituto do bem de família, qualquer que seja o valor.
Esse exemplo demonstra necessidade de mudança de mentalidade no que
10 LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Eficácia das Decisões e Execução Provisória. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2000, p. 424-425.
11 Athos Gusmão Carneiro e Sálvio Figueiredo Teixeira.
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tange à execução, bem como a importância de dotar o processo de instrumentos de
efetividade da jurisdição capazes de acompanhar a evolução social, econômica e tecnológica de forma concomitante.
Quanto à insuficiência da regulação normativa para acompanhar a evolução
complexa das relações jurídicas, MEDINA esclarece que
... (a) a participação do juiz na elaboração da solução jurídica
dos litígios passa a ser mais intensa, ante o abrandamento da tendência – veemente no Estado Liberal de outrora – de se reduzir ao
máximo os poderes do juiz; (b) a atividade jurisdicional deve proporcionar aos demandantes respostas capazes de propiciar uma
tutela mais aproximada possível da pretensão violada (cf. art. 461,
do CPC, que alude à “execução específica” e a “resultado prático
equivalente”), bem como de impedir que a violação ocorra, o que
impõe sejam criados instrumentos capazes de proporcionar à Jurisdição o alcance de tal desiderato; (c) ante a multiplicidade e a
complexidade das situações litigiosas que podem ser levados a juízo, tais mecanismos não podem ser previstos num rol taxativo, numerus clausus, ante o risco de se excluir direitos igualmente merecedores de tutela; (c) as medidas executivas que podem ser postas
em prática podem não ser aquelas requeridas pelas partes, necessariamente, porque o juiz pode constatar a viabilidade de um
meio executivo mais adequado à satisfação da pretensão do exequente (fim)12
Nesse ínterim, a efetividade da tutela jurisdicional fica sob a responsabilidade
do Juiz, que deve adotar medidas executivas para alcançar a elevada missão da adequada prestação da tutela jurisdicional.
O direito fundamental à tutela executiva efetiva foi bem ilustrado por GUERRA, quando ensina:
O direito fundamental à tutela executiva autoriza o juiz a adotar
as medidas que se revelarem mais adequadas a proporcionar
pronta e integral tutela executiva, ainda, e sobretudo, que não previstas em lei: a) qualquer que seja a modalidade da obrigação a
ser tutela in executivis, de dar dinheiro ou coisa diversa, fazer u
não fazer; (b) qualquer que seja o título executivo, judicial ou extrajudicial, que fundamenta a execução; (c) qualquer que seja o
12 MEDINA, José Miguel Garcia Medina. Execução civil: princípios fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002, p.297.
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modelo estrutural adotado pelo legislador para o módulo processual executivo, seja disciplinando-o como processo de execução autônomo, seja disciplinando-o como mera fase executiva de um
“processo sincrético”. Além disso, por força do mesmo direito fundamental o juiz deve também, repita-se, interpretar as normas
existentes de modo a delas extrair um sentido que mais assegure a
eficácia dos meios executivos disciplinados. Tudo isso, insista-se,
feito com observância do quadro completo dos direitos fundamentais, respeitando os limites impostos a cada um pelos demais e realizando, sempre que necessário, a concordância prática entre os
direitos em colisão.13
Logo, oportuna é a máxima de Chiovenda, segundo a qual “o processo deve dar
à parte vitoriosa tudo aquilo e exatamente aquilo que corresponde a seu direito reconhecido..”, que vem recebendo diversas denominações, dentre as quais, pelos processualistas: “garantia da efetividade do processo”, “princípio da inafastabilidiade do controle jurisdicional”, “garantia (ou princípio) do direito de ação”, “garantia do acesso à
justiça” e “garantia de acesso à ordem jurídica justa”, enquanto os constitucionalistas
preferem as expressões: “direito (fundamental) à tutela efetiva”, “direito ao processo
devido” e “direito fundamental de acesso aos tribunais”, GUERRA denomina de “direito fundamental à tutela executiva” a exigência de um sistema completo de tutela executiva, no qual existam meios executivos capazes de proporcionar pronta e integral satisfação a qualquer direito merecedor de tutela executiva.14
Segundo MARINONI, o princípio que agora vigora é o da concentração dos
poderes de execução do juiz, não sendo mais possível falar em princípio da tipicidade dos meios de execução,
que, se tinha por escopo garantir a segurança jurídica, evitando
que a esfera jurídica do demandado fosse invadida por modalidade executiva diversa da prevista na lei, não conferia ao juiz poder
suficiente para tutelar de forma adequada e efetiva os direitos.15
O poder de suprimir a omissão do legislador em instituir técnica necessária
para a efetividade da tutela de um direito funda-se no direito fundamental à tutela
jurisdicional efetiva e implica, como contrapartida, dotar o juiz de poderes e instrumentos para ingresso na seara patrimonial do devedor
13 GUERRA, M L. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2003, p. 104-105.
14 Ibid., p. 101-102.
15 MARINONI, Luiz Guilherme. A tutela específica: arts. 461, CPC e 84, CDC. São Paulo: Editora Revista dos Tri-
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DIREITO FUNDAMENTAL À EFETIVIDADE DA TUTELA JURISDICIONAL
Dispõe o artigo 5º, XXXV da Constituição da República que “A lei não excluirá
da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Trata-se do direito fundamental a uma prestação jurisdicional efetiva, implicando, na visão de MARINONI16,
“direito ao provimento e aos meios executivos capazes de dar efetividade ao direito
substancial, o que significa direito à efetividade em sentido estrito.”17
Embora a teoria da autonomia do direito de ação tenha significado um avanço na doutrina processual, hoje é cediço de que a ação deve se voltar à sua finalidade, qual seja, a de concretizar o direito substantivo a que se refere, servindo de instrumento para tanto.
Com o intuito de alcançar essa efetividade da tutela jurisdicional tão almejada
pela comunidade jurídica, bem como pelo maior interessado na prestação jurisdicional – o cidadão, desde 1994, o legislador vêm-se implementando a várias reformas processuais, buscando o aperfeiçoamento do sistema processual:
Na reforma do Código de Processo Civil ocorrida nos anos de 1994 e 1995 introduziu-se: a audiência preliminar (art. 331), a tutela jurisdicional antecipada (art.
273), um novo modo de execução de sentenças relativas às obrigações de fazer ou
de não fazer, e de dar (art. 461 e 461 A), uma nova sistemática para o agravo de instrumento interposto contra decisões de primeiro grau (art. 523 e ss.), a eliminação
da liquidação por cálculo do contador (art. 604) e o procedimento monitório (art.
1.102-A, 1.102-B e 1102-C).18
A reforma de 2001: aprimorou a sistemática dada ao agravo de instrumento,
reduzindo sua admissibilidade em processo de qualquer natureza, mandando que o
recurso fique retido nos autos sempre que interposto contra decisões proferidas em
audiência ou depois de proferida a sentença (com algumas ressalvas) (art. 523, §4º,
red. Lei n. 10.352, de 26.12.2001); estipulou multa pesada para os atos atentatórios
ao exercício da jurisdição, neles incluindo os atos de desobediência ou resistência
às sentenças mandamentais, inovação que “reforçou o sistema de tutela antecipada
e da execução por obrigação de fazer ou de não-fazer e de dar (arts. 273, 461 e 461
A) a bem da celeridade e efetividade da tutela jurisdicional”19; alterou o art. 273 e
seus parágrafos “para autorizar a tutela antecipada em relação à parcela, ou parcelas
do pedido com base em fatos incontroversos (...) (art. 273, §6) para instituir expressamente a fungibilidade entre medidas antecipatórias e cautelares, podendo a pro16 MARINONI, Luiz Guilherme. “O direito à efetividade da tutela jurisdicional na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais”. In GENESIS – Revista de Direito Processual Civil, Curitiba, (28), abril/junho de 2003), p.
303.
17 Ibid., p.303.
18 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma da reforma. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2002, p.18.
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vidência ser outorgada pelo juiz a um desses títulos ainda quando haja sido pedida
com denominação inadequada (art. 273, §7) e para mandar que a efetivação dos
efeitos das medidas antecipatórias de tutela jurisdicional se reja também pelo que é
disposto quanto à execução por obrigações de fazer ou de não-fazer (art. 273§ 3º,
com alusão ao disposto no art. 461, §§ 4º e 5º).”20 Outra alteração foi a permissão de
julgar o mérito da causa, desde que o processo esteja em condições para tanto,
quando o tribunal reformar uma sentença terminativa (art. 515 §3º, red. Lei n.
10.352/2001).
Destacam-se, também, como leis que importam em modificação no processo
civil a que dispõe sobre petições transmitidas por meios eletrônicos (lei n. 9.800, de
26.5.1999 – lei do Fax) e o estatuto dos Idosos (lei n. 10.173/01) – destinada a oferecer prioridade de julgamento às causas de interesse de pessoas com idade a partir de sessenta e cinco anos (arts. 1211-A a 1.211-C).
Todas essas alterações processuais visam a obter maior efetividade na concretização do direito material. Novas reformas, com a mesma finalidade, estão por vir, a exemplo dos anteprojetos de lei elaborados pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual
que tratam da mediação paraprocessual no processo civil; das tutelas de urgência – medidas cautelares e antecipatórias; do cumprimento da sentença que condena ao pagamento de quantia certa e da execução de título executivo extrajudicial, esses últimos alterando a sistemática da execução de títulos judiciais, deixando de ser a mesma um processo autônomo, invocando-se o princípio do sincretismo entre cognição e execução,
em prol da celeridade e efetividade processual, remanescendo o processo autônomo
de execução exclusivamente para títulos executivos extrajudiciais.
Cabe fazer menção ao projeto de lei 7.077/02, em face final de tramitação na
Câmara Federal, tendo já sido aprovada pelo Senado, que institui a certidão negativa de débitos trabalhistas, como fórmula de “incentivo” ao adimplemento voluntário das obrigações trabalhistas reconhecidas em Juízo, implicando, portanto, em mudança de comportamento – mudança cultural.
Imperioso ressaltar que muitos dos institutos trazidos pelas reformas processuais já existiam no Direito Processual do Trabalho, a exemplo da tentativa de conciliação (arts.764, 846 e 850 da CLT); da tutela antecipada para tornar sem efeito
transferência ilegal de empregado e também para reintegração de dirigente sindical
– em face da estabilidade (art. 659, IX e X da CLT), bem como do processo sincrético, sendo a execução processada nos próprios autos do processo de cognição, sem
intervalo, ou seja, sem necessidade da propositura de um processo de execução.
4.
A PENHORA ON-LINE E SUA LEGALIDADE
Na busca de instrumentos eficazes de concretização dos direitos, notadamen-
20 Ibid., p.19.
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te aqueles consistentes na satisfação de quantia certa representada por título executivo judicial ou extrajudicial, tem-se a penhora on-line, podendo ser adotada no processo civil sem a necessidade de modificação legislativa. Trata-se de um meio tecnológico operacional, que efetiva a penhora de numerário – que é o primeiro na ordem preferencial estabelecida no art.655, I, do Código de Processo Civil e art. 11 da
Lei 6.830/1980 – de forma célere e menos onerosa para as partes, uma vez que o
cumprimento da ordem judicial de penhora é efetuado através do Sistema BACEN
JUD, eletronicamente, sem necessidade quer da expedição de ofício aos Bancos, da
expedição de Carta Precatória, quer da intervenção de Oficial de Justiça, significando um verdadeiro avanço como implementação de meio para o exercício do direito
fundamental à efetiva tutela jurisdicional.
Esta forma satisfatória de prestação da jurisdição celebrizou-se com o Tribunal
Superior do Trabalho firmando, em 05 de maio de 2002, um “Convênio de cooperação técnico-institucional com o Banco Central do Brasil, para fins de acesso ao Sistema BACEN JUD”. Este convênio permitiu ao Tribunal Superior do Trabalho e os
Tribunais Regionais do Trabalho o acesso, via Internet, através do Sistema de Solicitações do Poder Judiciário ao Banco Central do Brasil à contas correntes e demais
aplicações financeiras depositadas em nome de executados
CLAÚSULA PRIMEIRA (...)
PARÁGRAFO ÚNICO – Por intermédio do Sistema BACEN JUD, o TST
e os Tribunais signatários de Termo de Adesão, poderão, dentro de
suas áreas de competência, encaminhar às instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo BACEN ofícios eletrônicos contendo solicitações de informações sobre a existência de contas correntes e aplicações financeiras, determinações
de bloqueio e desbloqueio de contas envolvendo pessoas físicas e
jurídicas clientes do Sistema Financeiro Nacional, bem como outras solicitações que vierem a ser definidas pelas partes.
Tratando-se de uma inovação tecnológica, que alcançou resultados práticos
efetivos, o sistema da penhora on-line tem sido atacado processualmente sob o fundamento de sua inconstitucionalidade, por ausência de previsão legal e a invocação
do princípio da tipicidade dos atos executivos.
A constitucionalidade da medida tem sido bem fundamentada pelos Tribunais,
conforme ementas a seguir transcritas, extraídas do site www.tst.gov.br :
EMENTA
1. PENHORA ON LINE - LEGALIDADE.
A penhora em dinheiro obedece à gradação estabelecida no Código
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de Processo Civil (art. 655, I), de aplicação subsidiária no Processo do
Trabalho, podendo atingir depósitos bancários, e o sistema on line
apenas substitui demorados ofícios às agências bancárias, sendo que
o gravame imposto ao devedor, nessa hipótese, é o mínimo possível.
2. ATO ATENTATÓRIO À DIGNIDADE DA JUSTIÇA. EXECUÇÃO.
Comete ato atentatório à dignidade da Justiça a executada que tumultua o processo, com objetivos claros de procrastinar a execução que, no presente caso, se estende por quase vinte anos sem solução definitiva, relevando-se que as verbas trabalhistas têm cunho salarial. Condena-se a executada ao pagamento da multa de
20% do valor do débito, a ser revertida em favor do credor, na forma do art. 601 do CPC.
Processo TRT/15ª Região n. 236-1998-047-15-00-9 (10.325/2003-Agravo de Petição -1, originário da Vara do Trabalho de Itapeva/SP)
EMENTA
MANDADO DE SEGURANÇA. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. LEGITIMIDADE
DA PENHORA ON-LINE SOBRE CONTA-CORRENTE DA EXECUTADA.
SEGURANÇA CONCEDIDA. Fere direito líquido e certo do impetrante
o ato praticado pela D. Autoridade impetrada que indefere o prosseguimento da execução com a penhora on-line sobre os créditos existentes na conta bancária da executada, ao fundamento de ser incabível a penhora em dinheiro em execução provisória. E isso porque o
próprio Magistrado havia reconhecido que tanto a nomeação de bens
pela reclamada como a penhora efetivada nos autos pelo Sr. Oficial
de Justiça foram feitas mediante transgressão do artigo 655 do diploma processual civil, pelo que o exeqüente, ora impetrante, encontrase em situação de difícil solução pois, se de um lado enfrenta determinação da D. Autoridade impetrada de que indique “bens livres, desembaraçados e de fácil aceitação comercial, em dez dias, sob pena
de remessa ao arquivo”, providência essa que aliás nem o Sr. Oficial
de Justiça logrou desincumbir de forma satisfatória, ante o comprometimento dos bens existentes com penhoras anteriores, por outro
lado, depara-se, ainda, com a r. decisão ora atacada impedindo-o de
prosseguir a execução sobre numerário constante da conta bancária
por ele indicada, não obstante a determinação anteriormente feita
pela própria D. Autoridade impetrada de que fosse efetuada a constrição de numerário. Nem se cogite que tal excussão deva ser obstada,
por se tratar de execução provisória ou que deva se fazer pelo modo
menos gravoso para o devedor, nos termos do que dispõe o artigo 620
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do Código de Processo Civil. E isto porque não foram encontrados outros bens de propriedade da executada aptos para garantir a execução, além do que, o exeqüente, caso não logre êxito na sua busca, corre o risco de ver os autos serem arquivados, sendo certo que a empresa é que deve correr os riscos de seu empreendimento, pois os créditos
trabalhistas são superprivilegiados, preferindo a quaisquer outros, a
teor do que dispõe o artigo 186 do Código Tributário Nacional (exceção feita apenas aos créditos advindos de acidente de trabalho). Nessa conformidade, outra não pode ser a conclusão senão a de que o
ato ora atacado violou direito líquido e certo do impetrante, uma vez
que obstou o regular curso da execução sem que houvesse qualquer
fundamento legal para tanto, sobretudo considerando que as penhoras efetivas foram ineficazes, como declara o artigo 656, inciso I, do
referido Código. Segurança concedida.
DECISÃO
Por maioria de votos, vencidos os Exmos. Juízes Floriano Vaz da
Silva e Delvio Buffulin, rejeitar a preliminar argüida pelo D. Representante do Ministério Público do Trabalho e, no mérito, conceder a segurança definitiva para que o MM. Juízo impetrado determine o regular prosseguimento da execução, autorizando a penhora de créditos bancários “on-line”, nos termos da fundamentação supra. Custas nihil. Do Agravo Regimental: por unanimidade
de votos, não conhecer do agravo regimental, por incabível, nos
termos da fundamentação.
DOE SP, PJ, TRT 2ª Data: 21/11/2003, sendo as Exmas. Juízas do Trabalho Vania Paranhos e Anelia Li Chum relatora e revisora, respectivamente. Impetrante: Jurandi Costa de Mesquita. Impetrado: ato
do Exmo. Juiz da 57ª Vara de São Paulo. Litisconsorte: Sociedade
Esportiva Palmeiras....
EMENTA
RECURSO DE REVISTA.
EXECUÇÃO. PENHORA. LEGITIMIDADE DO BLOQUEIO DE CONTA
PELO BANCO CENTRAL.
A ordem dada ao Banco Central para o bloqueio de contas de sócios
da executada emana de juízo trabalhista competente e, pois, não viola diretamente a literalidade do artigo 5º, LIV, da Constituição Federal. Não obstante tratar-se de matéria de lege ferenda, a situação
apresenta analogia com a da incipiente penhora on-line, no sentido
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de que, mediante ordem de rastreamento de contas e bloqueio preventivo pelo órgão federal tecnicamente aparelhado para executá-lo,
o Juízo culmina por inserir-se em jurisdição virtual, que não admite
fronteiras. Além do mais, há o privilégio desbravador do crédito trabalhista, assegurado na legislação (Lei nº. 6.830/80 e art. 186 do Código Tributário Nacional) e particularmente pelo art. 449 da CLT. Incidência do art. 896, § 2º, da CLT. Recurso de revista não conhecido.
DECISÃO
Por unanimidade, não conhecer do recurso de revista.
DJ DATA: 03-10-2003. Recorrente: Eduardo Badra. Recorridos: Carlos Henrique Rodrigues Badra S/A. Relatora: Juíza convocada,
Exma. Dra. Wilma Nogueira de A. Vaz da Silva.
O desenvolvimento do convênio que permite a denominada penhora on-line
decorreu de uma necessidade para solucionar um problema cultural, infelizmente
constatado e exposto na própria fundamentação do Prov. 1/2003 da Corregedoria
do E. Tribunal Superior do Trabalho, nas diretrizes para aplicação do sistema. O problema cultural refere-se ao descumprimento de mandados e ofícios para bloqueio
de conta, apurado em correições, consubstanciado na prática, adotada por alguns
gerentes de agências bancárias, de alertar o correntista, exortando-o a retirar os valores da conta corrente a ser bloqueada, hipótese que configura delito contra a administração da justiça e fraude à execução (art. 179 do Código Penal).
No II Seminário Ítalo-brasileiro de Direito do Trabalho, promovido pela Escola da
Magistratura da Justiça do Trabalho da 15ª Região, em parceria com a Faculdade de
Campinas (FACAMP), a Escola Superior do Ministério Público da União e a Università
Deglhi Studi Di Roma La Sapienza, realizado no dia 25 de março de 2004, ao ser indagado sobre a existência de sistema semelhante ao da penhora on line na Itália e qual a
sua opinião a respeito, o expositor Silvano Piccininno – Professor de Direito de Trabalho na Libera Università deglhi Studi Maria SS. Assunta di Roma – mostrou-se estarrecido, justificando sua surpresa pelo fato de desconhecer casos de descumprimento de
mandados de penhora por parte de gerentes de instituições financeiras em seu país.
Ou seja, no Brasil, o descumprimento de ordens judiciais é cultural.
Para solucionar alguns problemas de operacionalização do sistema, a exemplo
dos bloqueios múltiplos, caso em que o devedor possuir várias contas bancárias e
sofrer o bloqueio em cada uma delas, até o valor do crédito exeqüendo, o Tribunal
Superior do Trabalho emitiu o Provimento 3/2003, que:
permite às empresas que possuem contas bancárias em diversas
agências do país o cadastramento de conta bancária apta a sofrer
bloqueio on-line realizado pelo sistema BACEN JUD. Na hipótese de
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impossibilidade de constrição sobre a conta indicada por insuficiência de fundo, o Juiz da causa deve expedir ordem para que o
bloqueio recaia em qualquer conta da empresa devedora e comunicar o fato, imediatamente, à Corregedoria-Geral da Justiça do
Trabalho para descadastramento da conta bancária.
O presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministro Vantuil Abdala afirmou,
durante cerimônia de abertura do 12º Congresso Nacional dos Magistrados do Trabalho (Conamat), realizado nos dias 05 a 07 de maio de 2004, que o programa de penhora on-line está sendo aprimorado, com o fim de possibilitar o bloqueio direto na conta corrente do devedor, sem intermédio do gerente da respectiva agência, uma vez que
até então a ordem de bloqueio é enviada eletronicamente ao gerente das agências, dando ensejo ao problema cultural e a fraude já mencionados, que, infelizmente são constatados na prática jurídica, constituindo em verdadeiro ato atentatório à dignidade da
justiça, nos termos dos artigos 14, V e 600 do Código de Processo Civil.
A repercussão da penhora on-line é tamanha e tão benéfica ao processo de
execução que, atualmente, ela é prevista no art. 185 – A, do Código Tributário Nacional, introduzida pela Lei Complementar 118/05, art. 2º, nos seguintes termos:
Na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promovem
registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercados bancários e do mercados de capitais, a fim de que, no âmbito de suas
atribuições, façam cumprir a ordem judicial
5.
CONCLUSÃO
Diante da nova ordem constitucional que assegura ao jurisdicionado o acesso
à ordem jurídica justa consistente concretização efetiva dos direitos, conclui-se que
o instrumento da penhora on-line, que possibilita a troca de informações bancárias
e o envio de determinações judiciais via sistema de dados BACEN JUD, para bloqueio de contas bancárias, em substituição aos ofícios e cartas precatórias, é meio
adequado, idôneo e necessário, e que não causa qualquer restrição ao direito do devedor, uma vez que torna menos onerosa a execução – despesas de ofícios, cartas
precatórias, oficiais de justiça, além de possibilitar-lhe o embargo à execução para
eventualmente desconstituir o título executivo judicial ou extrajudicial.
A penhora on-line contribui, sobremaneira, para a celeridade processual, pos-
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sibilitando o cumprimento imediato das ordens expedidas pelos magistrados, estando, portanto, está em total consonância com o princípio do devido processo legal
tão aclamado na Constituição da República Federativa do Brasil.
Nesse cenário, incontestável, pois, o papel dos operadores do direito: advogados, procuradores Públicos, membros do Ministério Público, que devem requer; e,
principalmente, dos magistrados, que devem deferir a penhora on-line para a efetivação da tutela jurisdicional nas execuções por quantia certa. Afinal, como bem expressou IHERING: “Todos aqueles que fruem os benefícios do direito devem também contribuir com sua parte para sustentar o poder e a autoridade da lei”.21
6.
REFERÊNCIAS
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ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999.
CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, vol. 1, 1999
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma da reforma. São Paulo: Malheiros Editores Ltda,
2002.
GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. 19. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Eficácia das Decisões e Execução Provisória. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
MARINONI, Luiz Guilherme. A tutela específica: arts. 461, CPC e 84, CDC. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
_______, “O direito à efetividade da tutela jurisdicional na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais”. In GENESIS – Revista de Direito Processual Civil, Curitiba, (28), abril/junho de 2003).
MEDINA, José Miguel Garcia Medina. Execução civil: princípios fundamentais. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002.
MEIRELLES, Helly. Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
O ESTADO DE SÃO PAULO. “Maioria dos juízes não aderiu ao sistema”. Seção: Cidades,
13.10.2004.
21 IHERING, Rudºlf Vºn. ª lutª pelº direitº. 19. Ed. Riº de Jªneirº: Fºrense, 2000, p. 44.
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A PENHORA DE BENS IMÓVEIS – ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A ATUAL SISTEMÁTICA, E OS PROJETOS DE
REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Mestrando: Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior
Professor na Associação Educacional Toledo/Presidente Prudente e da FEMA-IMESA, de Assis/SP.
Pós-Graduando em Direito Comercial e Direito das Relações Sociais.
RESUMO
A penhora de bens imóveis, dada a natureza do bem que agride, detém particularidades que exigem do legislador garantias adicionais, como, por exemplo, a intimação do cônjuge e o registro da penhora. Abordar-se-á, então, qual o atual estágio da penhora destes bens, e a proposta de modificação trazida nos “projetos de
reforma” do Código de Processo Civil.
Palavras-chave: Penhora, Bens Imóveis, Limites, Atual Situação, Alterações Segundo
os Projetos de Reforma do Código de Processo Civil.
1.
INTRODUÇÃO
A penhora de bens imóveis, também chamados de bens de raiz, traz atrelada
a si questões bastante complexas, como os limites desta penhora, a necessidade de
intimação do cônjuge, a imperiosidade ou não do registro público da constrição,
bem como a impenhorabilidade de alguns destes imóveis, em face de limitações legais e voluntárias.
Ademais, o movimento reformista do Código de Processo Civil, que teve início em 1994, cujo segundo momento deu-se com as leis 10352, de 26-12-2001,
10358, de 27-12-2001, e 10444, de 07-05-2002, acena com novas mudanças, na medida em que foram apresentados “projetos de lei” propondo alterações na execução
de títulos extrajudiciais, no cumprimento das sentenças e das medidas cautelares,
1
2
3
4
In Cadernos IBDP : propostas legislativas. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Processual, 2003, V. III, p.
8 à 70.
GOMES, Orlando. Obrigações. 16ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 207.
MENDONÇA, Manoel Inácio Carvalho de. Doutrina e prática das obrigações. 4ª. ed., Rio de Janeiro: Forense,
1956, V. I, p. 76.
Op. cit., p. 77.
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além da instituição da mediação no processo civil1. E essas reformas trazem modificações significativas que afetam as penhoras incidentes sobre os bens imóveis, como
abaixo se verá.
2.
BREVES APONTAMENTOS HISTÓRICOS
Quando um devedor não cumpre espontaneamente uma obrigação, quer representada por um título extrajudicial, quer reproduzida por uma sentença condenatória,
“pode o credor obter a satisfação do crédito através de medidas coativas que, a seu requerimento, são aplicadas pelo Estado no exercício do poder jurisdicional.”2
Assim, o inadimplemento de uma obrigação gera a possibilidade de o credor
promover a execução coativa ou forçada, judicialmente.
Os romanos definiam as obrigações como um vínculo jurídico, sendo que a
garantia do seu cumprimento era exclusivamente pessoal, “daí decorrendo as crueldades com que os devedores eram obrigados a satisfazer seus compromissos”.3
Essa postura jurídica derivava do fato de que os bens, notadamente as terras,
não eram encarados como patrimônio pessoal, mas sim familiar. E para esse povo,
os bens da gens (família romana) eram destinados ao culto dos deuses. Neste sentido, são as lições de Manoel Inácio de Carvalho Mendonça4:
Nesse período, o devedor respondia com sua própria pessoa, porque nas origens da civilização ariana greco-romana, seu patrimônio essencial – a terra – pertencia à família e era intimamente ligado à religião, ao culto dos deuses lares e dos mortos e, portanto,
sempre inalienável e indivisível.
Álvaro Villaça Azevedo5 argumenta adicionalmente que nesse período havia
proibição de alienar patrimônio da família, dados os rígidos princípios de perpetuação dos bens dos antepassados, que se consideravam sagrados.
A famosa lei Romana das “XII Tábuas”, de 450 a.C., era vigorosamente impiedosa com os devedores, impondo-lhes flagelos pessoais, e paradoxalmente não permitindo que seu patrimônio fosse atingido. A propósito eis o teor da “Tábua Terceira”6, que exatamente dispunha sobre os direitos de crédito:
4. Aquele que confessa dívida perante o magistrado é condenado e
terá 30 dias para pagar;
5. Esgotados os trinta dias e não tendo pago, que seja agarrado e
levado à presença do magistrado;
6
7
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. Parte geral. 3ª. ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 63.
Comentários ao Código de Processo Civil. 6ª. ed., Rio, Forense, 1990, v. VI, p. 601.
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6. Se não paga e ninguém se apresenta como fiador, que o devedor
seja levado pelo seu credor e amarrado pelo pescoço e pés com cadeias com peso até o máximo de 15 libras; ou menos, se assim quiser o credor;
7. O devedor preso viverá à sua custa, se quiser; se não quiser, o
credor que mantém preso dar-lhe-á por dia uma libra de pão ou
mais, a seu critério;
8. se não há conciliação, que o devedor fique preso por 60 dias, durante os quais será conduzido em 03 dias de feira ao comitium,
onde se proclamará, em altas vozes, o valor da dívida;
9. se são muitos os credores, é permitido, depois do terceiro dia de
feira, dividir o corpo do devedor em tantos pedaços quantos sejam
os credores, não importando mais ou menos; se os credores preferirem, poderá vender o devedor a um estrangeiro, além do Tibre.
Deste modo, os romanos inadimplentes respondiam pessoalmente por
suas dívidas, podendo ser presos, vendidos como escravos e até mesmo mortos
e esquartejados.
Contudo, já nos últimos períodos da civilização romana, a pessoa foi lentamente substituída pelo patrimônio, que passou a suportar a garantia das obrigações.
Anota Alcides de Mendonça Lima7 que
historicamente, a execução evoluiu dos atos contra a pessoa do devedor para o seu patrimônio. A prisão do devedor e, até, o seu esquartejamento cederam lugar a providências contra seus bens.
Gradativamente, à medida que as instituições processuais progrediam, menos drásticos se tornavam os meios executivos, tanto os
de coação como os de sub-rogação.
Essa tendência é mantida ao longo do tempo, e chegando à França; com o Código Napoleônico, positiva-se com a proibição de que o corpo do réu fosse objeto
da execução. Surge, então, novo momento histórico em que a execução limitava-se
em atingir exclusivamente o patrimônio do devedor.
Assim, descumprindo o devedor sua obrigação, tornando-se, pois, inadim8
Insta consignar que a Constituição Federal, no art. 5º, LXVII, faz a ressalva de que “não haverá prisão civil por
dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do
depositário infiel”.
9 LIEBMAN, Enrico Túlio. Processo de execução. 4ª. ed., São Paulo: Saraiva, 1980, p. 63.
10 Processo civil e comercial brasileiro. Porto Alegre: Of. Gráf. da Livraria do Globo, 1942, p. 15.
11 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 21ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 205.
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plente, não poderia ser pessoalmente compelido a quitá-la, sendo a única forma de
sanção possível aquela que recaísse sobre o seu patrimônio.
Atualmente, basicamente em todas as legislações, a responsabilidade pelas dívidas é eminentemente patrimonial8.
E, hoje, a medida jurídica de que se pode valer um credor para agredir o patrimônio do devedor, com vistas a satisfazer seu crédito, é a execução civil, assim definida por Liebman9: “A execução civil é aquela que tem por finalidade conseguir por
meio do processo, e sem o concurso da vontade do obrigado, o resultado prático a
que tendia a regra jurídica que não foi obedecida.”
No mesmo diapasão, o magistério de Inocêncio Borges da Rosa, que, comentando o Código de Processo Civil de 1939, referiu-se à execução como “conjunto de
meios coercitivos estabelecido pela lei para reintegração do direito reconhecido por
sentença, ou por títulos de igual força jurídica.”10
Portanto, a responsabilidade do devedor é eminentemente patrimonial! Aliás,
essa é a lição que se extrai do art. 591, do Código de Processo Civil: “o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes
e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei.”
Nesta esteira, o art. 646, do mesmo Código, aponta que “a execução por quantia certa tem por objeto expropriar bens do devedor, a fim de satisfazer o direito do
credor”, sendo que a penhora é um ato neste desiderato por excelência.
3.
DA PENHORA
Nesse contexto, a penhora destaca-se como principal fonte para garantir o crédito de um exeqüente, pois é típica medida processual, havida num processo de
execução, configurando-se em “ato pelo qual se apreendem bens do devedor para
empregá-los de maneira direta ou indireta, na satisfação do crédito exeqüendo.”11
Pontes de Miranda12 também destaca a importância da penhora no cenário da
execução forçada:
A penhora, que é medida constritiva típica, apanha o bem, em início de execução (elemento que, por certo, não surge a despeito do
que pretenderam alguns juristas, no arresto e no seqüestro, decisões cautelares mandamentais). Se a penhora acautela é somente
porque prende, cuja constrição é de finalidade já decidida: execução forçada de uma obrigação.
13 ASSIS, Araken de. Manual do processo de execução. 3ª. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 299.
14 Curso de processo civil. Execução obrigacional, execução real, ações mandamentais. 5ª. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 29.
15 Derecho procesal civil. México, D.F.: Editorial Porrua, S.A., 1968, p. 555.
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Portanto, a penhora mostra-se como uma intromissão necessária do Estado
no patrimônio do devedor, com o consentimento da lei. É um meio coercitivo pelo
qual se vale o exeqüente para vencer a resistência do devedor inadimplente e renitente, empregando meios legais para satisfazer o crédito, os quais recairão, de ordinário, sobre o patrimônio do executado.13 Não é outra a lição de Ovídio Araújo Baptista da Silva14:
O processo de execução cuida de submeter o patrimônio do condenado à sanção executória, de modo que dele se extraiam os bens e
valores idôneos a satisfazer o direito do credor (...) A penhora é
uma das muitas medidas constritivas, é o ato específico da intromissão do Estado na esfera jurídica do executado quando a execução precisa de expropriação de eficácia do poder de dispor.
Contudo, o direito moderno se vê cada vez mais humanizado, impondo-se
princípios norteadores a todos os procedimentos, inclusive os executivos. Todavia,
como lembra Eduardo Pallares15, essa humanização não pode impedir o cumprimento da justiça de maneira expedita e eficaz. Há, por óbvio, de se conjugar a humanização com a aplicação da justiça:
princípio da economía social, según la cual la ejecución deberá
llevarse a cabo en forma de que no se ciegue una fuente de riquezas; principio de eficacia procesa, que previene que la ejecución se
realice de manera que el ejcutante obtenga plena satisfacción de
sus derechos; principios de humanidad, que exige que no se embarguem los bienes que sean necesarios para el sostenimiento del deudor y de su familia; principio del espeto a los derechos de terceros.
Assim, destaca-se que a execução tem de ser eficiente, a fim de plenamente
garantir a satisfação do crédito exeqüendo, sem, entretanto, expor o devedor a situações vexatórias. Ao juiz, impõe-se, caso a caso, a busca da linha de equilíbrio entre essas duas balizas, para não frustrar o direito do credor nem sacrificar o patrimônio do devedor além do razoável e necessário16.
Conquanto pareça simples, a verdade é que no caso prático a dificuldade em
conjugar esses princípios é muito grande.
16 DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do processo civil. 1ª. ed., São Paulo: Malheiros, 204, p. 291.
17 A impenhorabilidade absoluta tem suporte em causas sociais; já os bens relativamente impenhoráveis a princípio são impassíveis de constrição. Contudo, na falta de outros bens, poderão ser penhorados, como aqueles
previstos no artigo 650, do CPC.
18 ROSA, Inocêncio Borges da. Op. cit., p. 152.
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GRADAÇÃO LEGAL DA PENHORA
Buscando estabelecer uma ordem de bens que podem ser penhorados, a legislação apresenta o patrimônio do devedor de maneira hierarquizada, impondo
que os primeiros bens desta hierarquia sejam penhorados, e, apenas na falta destes,
os previstos nas demais classes poderão ser constritados.
Sim, existe uma ordem de gradação legal dos bens passíveis de penhora, sendo
que a lei, inclusive, dispõe que alguns são absolutamente impenhoráveis, e outros relativamente impenhoráveis17. Essa ordem ou gradação tem em vista tornar mais fácil,
pronta e segura a execução, a fim de que o pagamento se faça com a maior brevidade
possível e com o menor incômodo para o exeqüente, e também para que a execução
seja o menos dispendiosa e onerosa possível para o executado.18
O Código de Processo Civil de 1939 dispunha, no seu artigo 930, a seguinte ordem: 1. dinheiro, pedras e metais preciosos; 2. títulos da dívida pública e papéis de crédito que tenham cotação em bolsa; 3. móveis e semoventes; 4. imóveis ou navios.
Pontes de Miranda entendia que essa norma era de direito cogente, não admitindo inversão em nenhuma hipótese19.
O Código de Processo Civil, de 1973 – portanto o atual Código processual –
traz outra ordem, qual seja, aquela prevista no art. 655:
Art. 655. Incumbe ao devedor, ao fazer a nomeação de bens, observar a seguinte ordem:
I – dinheiro;
II – pedras e metais preciosos;
III – títulos da dívida pública da União ou dos Estados;
IV – títulos de crédito, que tenham cotação em bolsa;
V – móveis;
VI – veículos;
VII – semoventes;
VIII – imóveis;
IX – navios e aeronaves;
X – direitos e ações.
20 Código de Processo Civil, art. 656. Ter-se-á por ineficaz a nomeação, salvo convindo o credor: I – se não obedecer à ordem legal;
21 Código de Processo Civil, art. 620. Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor.
22 Código de Processo Civil, art. 612. Art. 612. Ressalvado o caso de insolvência do devedor, em que tem lugar o
concurso universal (artigo 751, III), realiza-se a execução no interesse do credor, que adquire, pela penhora,
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Destarte, citado o executado, esse terá um prazo de 24 (vinte e quatro) horas
para pagar ou nomear bens à penhora, de acordo com a seqüência acima estabelecida.
Ferindo essa seqüência, a indicação dos bens somente será tomada por termo
se com isso concordar o credor.20
Argumenta-se que essa gradação legal estaria atendendo ao princípio da menor onerosidade possível do executado21, conjugando-o ao princípio segundo o qual
a execução se realiza no interesse do credor22.
Todavia, não obstante o teor destes textos legais, entendemos que a melhor
exegese centra-se no fato de que o juiz e o exeqüente não estão obrigados a aceitar
a nomeação realizada pelo executado, mormente em se tratando de bens de difícil
alienação, mesmo que atendida a ordem de gradação. Por conseguinte, a nomeação
de bem à penhora deve ser indeferida sempre que se revele provável a ineficácia de
tal nomeação.
Deste modo, justificar-se-ia a recusa dos bens indicados à penhora quando,
por exemplo, estes se revelem de difícil alienação e sejam dependentes de mercado
especialíssimo, havendo outros que ensejariam execução de forma mais eficaz.
Sendo assim, acreditamos ser possível a penhora de um imóvel mesmo ante
a existência de outros bens móveis, desde que demonstrado que essa penhora seja
mais conveniente para a execução, não obstante o teor do 655, do CPC.
É evidente, contudo, que entre a penhora de um numerário em dinheiro e a
penhora de um imóvel, há de prevalecer a penhora daquele por questões óbvias.
Havendo dinheiro, sobre ele a penhora deverá recair, excluindo-se os demais bens,
uma vez que a execução deve ser realizada pela forma mais célere e menos dispendiosa possível.
Destarte, em princípio, a observância da gradação legal é condição de validade da nomeação. Mas, justamente, para harmonizar o art. 655, do Código de Processo Civil, com as regras-princípios dos artigos 612 e 620, do mesmo diploma, vale dizer, com a necessidade de realizar a execução pelo modo menos gravoso para o devedor, mas no interesse do credor,
a gradação legal estabelecida para efetivação da penhora não tem
caráter rígido, podendo, pois, ser alterada por força de circunstâncias e atendidas as peculiaridades de cada caso concreto, bem
como o interesse das partes litigantes23.
23 PAULA, Alexandre de. O Processo Civil à Luz da Jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 1990, v. XVI, n.
32.254, p. 347.
24 Op. cit., Art. 475-J, § 3º.
25 Insta salientar que por esse projeto haverá dois procedimentos executivos: um fundado em título judicial, e
outro fundado em título extrajudicial.
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Entendemos, ademais, que cabe ao exeqüente indicar os bens que lhe são mais
pertinentes, respeitados apenas os limites da impenhorabilidade previstos em lei.
Nesta esteira, é o “anteprojeto de lei que trata do cumprimento da sentença
que condena ao pagamento de quantia certa”. Pela proposta apresentada, sequer haverá citação para nomeação de bens à penhora, cabendo ao exeqüente “indicar desde logo os bens a serem penhorados”24.25
Pelo “Projeto de Reforma da Execução Extrajudicial26”, a gradação passa a ser
a seguinte:
Art. 655. A penhora observará preferencialmente a seguinte ordem:
I – dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira;
II – títulos da dívida pública da união, Estados e Distrito Federal,
salvo se de validade controvertida;
III – títulos com cotação em bolsa de valores;
IV – veículos de via terrestre;
V – bens móveis em geral;
VI – bens imóveis;
VII – navios e aeronaves;
VIII – pedras e metais preciosos;
IX – direitos e ações.
Há significativa mudança na ordem. Contudo, o que mais se destaca é que
essa ordem tornar-se-á meramente “preferencial”, e não obrigatória!
Deste modo, cremos que o principal interessado na penhora é o credor, e
desde que respeite a impenhorabilidade de bens previstas em lei, poderá sugerir a constrição judicial de quaisquer bens, ainda que em descompasso com a ordem legal.
Sendo assim, a penhora de bens imóveis pode ocorrer independentemente
de existirem outros bens penhoráveis.
5.
27
28
29
30
O QUE SÃO IMÓVEIS?
Código Civil, art. 79.
Código Civil, art. 80, I.
Código Civil, art. 80, II.
Código Civil (Lei 3071, de 01-01-1916), art. 43, II – Tudo quanto o homem incorporar permanentemente ao
solo, como a semente lançada à terra, os edifícios e construções, de modo que se não possa retirar sem destruição, modificação, fratura ou dano.
31 Código Civil (Lei 3071, de 01-01-1916), art. 43, III – Tudo quanto no imóvel o proprietário mantiver intencionalmente empregado em sua exploração industrial, aformoseamento ou comodidade.
32 Decreto-lei 1608, de 18-09-1939.
33 Código Civil, 1659. Excluem-se da comunhão: (...) IV – as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo rever-
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Resta, então, saber o que são os bens imóveis. Pelo Código Civil brasileiro,
“são bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.”27 A tais se dá o nome acadêmico de imóveis pela sua própria natureza. A par destes, existem os bens que a lei diz serem imóveis, a saber: os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram28 e o direito à sucessão aberta29.”
Sob a égide do antigo Código Civil (Lei 3071, de 01-01-1916), a doutrina ainda perfilhava o entendimento de existirem os imóveis por acessão física30, e aqueles
por acessão intelectual31.
A redação do artigo 79, do novo Código Civil, não deixa dúvidas: “são bens
imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.” Logo,
continuam a existir os imóveis pela sua própria natureza, os imóveis por determinação legal, bem como os imóveis por acessão física ou intelectual.
E são esses, então, os bens imóveis que podem ser penhorados.
6.
DA NECESSIDADE DA INTIMAÇÃO DO CÔNJUGE
O artigo 948, do antigo Código de Processo Civil32, exigia que se a penhora recaísse em bens imóveis a mulher também deveria ser intimada, sob pena de nulidade insanável.
O atual Código de Processo Civil também contempla medida semelhante, pois
a teor do art. 669, § único, “recaindo a penhora em bens imóveis, será intimado também o cônjuge do devedor.”
A finalidade precípua deste dispositivo é proteger a meação do cônjuge das dívidas do seu parceiro que não lhe digam respeito, pois o art. 1659, do Código Civil brasileiro, reza que a meação só responde pelos atos ilícitos praticados pelo outro cônjuge, mediante prova que todos foram beneficiados com o produto da infração.33
A propósito, conforme pacificado na jurisprudência, “embora intimado da penhora em imóvel do casal, o cônjuge do executado pode opor embargos de terceiro para defesa de sua meação”34. Neste passo, o cônjuge intimado da penhora poderá promover embargos do devedor, para defender-se do título, da dívida e da regularidade do procedimento executivo, ou promover embargos de terceiro para defen35 Código de Processo Civil, art. 669. Feita a penhora, intimar-se-á o devedor para embargar a execução no prazo
de dez dias.
36 Código de Processo Civil, art. 1048.
37 TAMG – AC 0344168-1 – (42550) – 1ª C.Cív. – Rel. Juiz Alvim Soares – J. 18.09.2001, in Porto Alegre: Síntese
Publicações, 2002, CD-Rom n. 37. Produzida por Sonopress Rimo Indústria e Comércio Fonográfico Ltda.
38 STJ – RESP 148719 – SP – 3ª T. – Rel. Min. Ari Pargendler – DJU 30.04.2001 – p. 00130, in Porto Alegre: Síntese Publicações, 2002, CD-Rom n. 37. Produzida por Sonopress Rimo Indústria e Comércio Fonográfico Ltda.
39 STJ – REsp 304562 – SP – 4ª T. – Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior – DJU 25.06.2001 – p. 00196, in Porto Alegre: Síntese Publicações, 2002, CD-Rom n. 37. Produzida por Sonopress Rimo Indústria e Comércio Fonográ-
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der sua meação.
Se intimado da penhora e não promovido os embargos do devedor no prazo
legal de 10 (dez) dias35, o cônjuge poderá propor, mesmo assim, os embargos de terceiro até 05 (cinco) dias depois da arrematação, adjudicação ou remição, mas sempre antes da assinatura da respectiva carta.36 Contudo, perderá a oportunidade de
discutir a dívida em si.
Quanto às regras sobre o ônus da prova, caberá ao interessado, na exclusão da
meação, o seu ônus, no sentido de demonstrar que a dívida não beneficiou a família.37
A mesma regra se aplicará no caso de aval prestado pelo marido em garantia
de dívida de sociedade de que faz parte, cabendo, então, à mulher que opõe embargos de terceiro o ônus da prova de que disso não resultou benefício para a família38.
Mas, se o cônjuge é mero avalista ou devedor solidário, a meação da mulher
casada não responde por aval de seu cônjuge, por ausência de presunção de que a
entidade familiar dele se houvesse beneficiado, já que constitui ato gratuito dado em
favor de terceiro, cabendo, então, o ônus da prova ao credor de que houve benefício da família39.
Questão interessante é saber se a companheira ou o companheiro também
deve ser intimado no caso de penhora de bens imóveis.
Para alguns, a união estável não torna exigível que da penhora seja intimado
o companheiro da executada. Para nós, no entanto, muito embora o Código de Processo Civil fale somente em cônjuge, o fato é que a(o) companheira(o) também
deve ser intimada(o). Quando da entrada em vigor do Código de Processo Civil, em
01-01-1974, a “união estável” não gozava de status familiar. Aliás, nesse período, era
vista como mera sociedade de fato.
Com a Constituição Federal de 1988, “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” Logo, a “união estável” fora guindada em nível de entidade familiar, gozando de toda a proteção estatal.
Salta iniludível que o propósito do legislador, ao prever a intimação do cônjuge quando da penhora, era preservar sua meação, bem como a residência do casal. Ora, o companheiro também tem sua meação assegurada. Tanto é assim que
“na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.”40 Por
conseguinte, é imperioso que seja intimado da constrição, a fim de fazer valer a
defesa de sua meação.
Mesmo porque, repita-se, conforme o texto constitucional, “para efeito de
40 Código Civil brasileiro, art. 1725.
41 Op. cit., p. 42.
42 Op. cit., p. 42.
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proteção do Estado” reconheceu-se a união estável como entidade familiar. Logo, levando-se em conta que a intimação da penhora sobre bem imóvel é uma forma de
proteção que o Estado dá ao cônjuge, tal prerrogativa deve ser entendida ao(à) companheiro(a).
Pelo “Esboço de Anteprojeto de Lei sobre a Execução de Título Extrajudicial”,
o art. 655, § 3º41, manterá a exigência de intimação do cônjuge, estendendo-a, agora, também para o companheiro do executado.
Ademais, o art. 655-B, traz importante inovação: “tratando-se de penhora em
bem indivisível, a meação do cônjuge alheio à execução recairá sobre o produto da
alienação do bem”.42
Assim, os embargos de terceiro promovido pelo cônjuge não teriam mais o
condão de suspender a execução, mas apenas de ver preservada a meação quando
do praceamento. Destarte, levar-se-ia o bem à hasta pública, e do fruto desta hasta
seriam pagos a meação do cônjuge, e o restante entregue ao credor.
Entretanto, o projeto peca por não inserir expressamente, neste contexto,
também o companheiro ou a companheira. Por conseguinte, recomendável que a
redação proposta ao art. 655-B dê-se nos seguintes termos: “tratando-se de penhora em bem indivisível, a meação do cônjuge ou do companheiro alheio à execução
recairá sobre o produto da alienação do bem.”
7.
REGISTRO DA PENHORA
Sob a égide do Código de Processo Civil de 1939, e por indicação do art. 178,
do Dec. 4857, de 9-11-1939, a fim de que valesse contra terceiros, a penhora de bens
imóveis deveria ser inscrita no Registro de Imóveis.
Dessa forma, a exigência, à época, era tão-somente para que se desse garantia
ao exeqüente sobre qualquer ato fraudulento do executado. Neste desiderato as lições de De Plácido e Silva43:
Dessa forma, a necessidade da inscrição da penhora resulta numa
garantia do próprio exeqüente, para que por ela possa argüir
qualquer fraude do executado em relação ao bem penhorado.
Sendo assim, a falta de inscrição não acarreta nulidade ao ato,
mas o apresenta enfraquecido pela omissão.
44 FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. O novo procedimento sumário. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1996, p.45.
45 Faziam parte desta comissão o então ministro Athos Gusmão Carneiro, Fátima Nancu Andrigui, kazuo Watanabe, Sidnei Beneti, Donaldo Armelin, Arruda Alvim, Walter Ceneviva e Mauro Ferras, atuando ainda Thereza Alvim, José Carlos Bigi, Humberto Martins e Marcelo Lavenère. Concluídos os trabalhos, foram eles entregues à
uma comissão revisora, formada por Sálvio Teixeira, Fátima Andrigui, Athos Gusmão Carneiro, Celso Agrícola
Barbi, Humbertho Theodoro Júnior, José Carlos Barbosa Moreira, José Eduardo Carreira Alvim, Kazuo Watanabe e Sérgio Sahione.
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A inscrição é que lhe dá força para valer contra terceiros.
E por ela também se anotará a preferência assinada ao primeiro
exeqüente em relação aos primeiros bens penhorados.
Sobreveio o Código de Processo Civil de 1973 (Lei 5869, de 11-01-1973) e,
num primeiro, momento, quedou-se silente sobre a obrigatoriedade do registro da
penhora. Meses após, contudo, editou-se a 6015, de 31-12-1973, que tratou dos Registros Públicos, exigindo, no art. 167, I, “5”, que houvesse o registro das penhoras
nas matrículas dos imóveis.
Passados quase vinte anos da edição do Código de Processo Civil, ‘há muito se
afirmava, sobretudo nos conclaves de processualistas, que o processo civil estava em
crise.”44 Assim, formou-se uma “comissão de notáveis processualistas”, coordenados
por Sálvio de Figueiredo Teixeira, encarregados da reforma do Código de Processo Civil45. Sucedeu-se, então, o primeiro movimento reformista processual, em 1984, e com
a edição da Lei 8.953, de 13.12.1994, introduziu-se o parágrafo 4º, ao art. 659, do CPC:
Art.659..........................................................
§ 4º A penhora de bens imóveis realizar-se-á mediante auto ou termo de penhora, e inscrição no respectivo registro.” (Parágrafo
acrescentado pela Lei nº 8.953, de 13.12.1994)
Assim, a inscrição da penhora no Serviço Imobiliário tornou-se obrigatória,
nos termos do próprio Código de Processo Civil. Destarte, dada esta redação, alguns
logo sustentaram que a penhora do bem imóvel somente se perfaria a partir do momento do registro da penhora junto ao Serviço de Registro Imobiliário. Ponderavase que a Lei, ao exigir a averbação e o registro de todas e quaisquer benfeitorias,
construções e onerações que se façam no imóvel, bem como de sua alienação, tem
por escopo constituir malha firme e completa de informações, gerando segurança
para a sociedade no que tange transações imobiliárias relativa ao imóvel a que se reporta. Deveras, Walter Ceneviva46, apresenta o registro imobiliário como elemento
constitutivo do direito:
1ª. – CONSTITUTIVOS – sem o registro o direito não nasce;
2ª. – COMPROBATÓRIOS – o registro prova a existência e veracidade do ato ao qual se reporta;
3ª. – PUBLICITÁRIOS – o ato registrado, com raras exceções, é acessível ao conhecimento de todos, interessados ou não.
47 Direito Civil. 5ª. ed., São Paulo: Saraiva, 1993, V. I., p. 152.
48 12ª. ed., Rio de Janeiro: editora Freitas Bastos.
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De modo que, argumentava-se, quando exigível em lei, somente com a averbação ou registro em Cartório competente é que nasce o direito real de alguém e o
mesmo é provado. Sem o preenchimento deste requisito, o direito não nasce e, por
conseguinte, não se adquire, haja vista a patente inobservância da prescrição legal.
Os atos que a lei reputa formais devem compulsoriamente ser realizados desta forma, sob pena de nulidade. Neste passo, a lição de Sílvio Rodrigues47:
Se a lei só permite que se prove um ato jurídico através de uma forma determinada, tal forma é da substância do ato, porque sem tal
solenidade o mesmo não se admite como existente. Ou, como propõe Orlando Gomes:
...a forma é livre ou determinada. Se a lei exige forma especial, é
necessariamente ad solemnitatem.
J.M. Carvalho de Santos48, em sua obra “Código Civil Brasileiro Interpretado”,
comentando o art. 130, do então Código Civil, lecionava:
Sempre que o ato não revestir a forma especial determinada em
lei, a conseqüência será a nulidade do ato. Porque nestes casos a
forma é necessária à sua existência, fazendo parte integrante de
sua substância.
Em vista disso, se não houvesse o registro da penhora do bem imóvel, sequer
haveria que se falar em penhora, na medida em que faltaria um dos elementos constitutivos desta constrição. Esta a lição de Ovídio Batista49:
No direito contemporâneo há uma tendência muito nítida no sentido de proteção jurídica da aparência, e não seria possível, por
exemplo, ignorar a legitimidade da tutela de quem, de boa-fé, houvesse adquirido o imóvel daquele que, anteriormente mas depois
da penhora não inscrita, o adquirira do executado.
Tal posição tinha inegável influência do direito italiano, onde se faz obrigatório o registro da penhora. No entanto, como pondera Humberto Theodoro Júnior50,
naquele ordenamento “o registro é parte integrando do próprio ato processual da
penhora”, diferentemente do nosso. Portanto, para Humberto Theodoro Júnior51, o
registro da penhora seria mera “superfectação evidente”.
50 Curso de direito processual civil. 14ª. ed., Rio de Janeiro : Forense, 1995, V. II, p. 190.
51 Loc. cit.
52 In Revista dos Tribunais, V. 776, p. 33.
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Aliás, a breve exposição de motivos do Projeto de Lei 3.810-A, da Câmara dos
Deputados, que ulteriormente foi convertido na Lei 8.953, de 13.12.1994, declarou
expressamente o escopo do legislador com a exigência do registro: “prevenir futuras demandas com alegações de fraude de execução, como tão freqüentemente
ocorre na prática forense atual”.
Assim, advogou-se que, se de um lado o registro da penhora não é ato constitutivo da constrição sobre bens imóveis, somente haveria que se falar em fraude à
execução a partir deste registro. Neste diapasão:
Não havendo registro da penhora, não há falar em fraude à
execução, salvo se aquele que alegar fraude provar que o terceiro adquiriu o imóvel sabendo que estava penhorado (STJ, 3.ª T.,
REsp 113.666-DF, rel. Min. Menezes Direito, ac. 13.05.1997, p.
31.031)52.
Esse posicionamento é escudado pelo art. 240, da Lei de Registros Públicos
(Lei 6015, de 31-12-1973), que prega: “O registro da penhora faz prova quanto à
fraude de qualquer transação posterior.”
Deste modo, o registro imobiliário tem dois únicos objetivos: I) a constituição de direito real; II) dar publicidade ao ato. Para a fraude de execução, interessa apenas o segundo objetivo, já que o registro não é medida necessária à
constituição da penhora, contrariamente ao que ocorre em outros países, como
na Itália.
Em outros termos: “
A penhora de bem imóvel, antes de registrada (Lei 6.015/73, arts.
167, I, n. 5, 169 e 240), vale e é eficaz perante o executado, mas
só é eficaz perante terceiros provando-se que estes conheciam
ou deviam conhecer a constrição judicial’ (STJ, 4.ª T., REsp
9.789, rel. Min. Athos Gusmão Carneiro, ac. 09.06.1992, RT
691/190).53
Desta forma, passou-se a esposar a tese de que somente com o registro de penhora se tem a presunção de fraude contra o terceiro adquirente. Dorival Renato Pavan e Cristiane Costa Carvalho54 comentam:
Logo, após a sistemática adotada pelo art. 659, § 4.o, do CPC, vem
a doutrina entendendo que, em ocorrendo a penhora de bem imó54 Da necessidade do registro da penhora como condição para se operar a fraude à execução. in Revista dos
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vel, sua alienação, ipso facto, não induzirá na ocorrência de fraude à execução, como vinha sendo até presentemente entendido
(inclusive com desprezo à norma do art. 240 da Lei 6.015/73), uma
vez que será apenas com o registro da penhora que haverá eficácia erga omnes e sem tal registro a aquisição do imóvel por terceiro “o tornará adquirente de boa-fé, sem que a ele se possam opor
os efeitos da penhora.
Ainda, segundo o Enunciado 40, do Tribunal de Justiça de São Paulo “o registro de que trata o art. 659, § 4º, do CPC, não constitui requisito de validade, mas da
eficácia do ato, para oponibilidade contra terceiros de boa-fé.”
O próprio STJ, pela sua Primeira Turma, assim decidiu:
FRAUDE À EXECUÇÃO – Descaracterização – Bem alienado na
pendência de ação de execução fiscal – Inexistência do registro da
penhora nos termos do art. 7.o, IV, da Lei 6.830/80 – Necessidade de
se demonstrar a ciência pelo terceiro adquirente da existência da
demanda ou da constrição.
Ementa da Redação: A alienação do bem na pendência de ação
de execução fiscal, por si só, não caracteriza fraude à execução, mormente quando não registrada a penhora, nos termos
do art. 7.°, IV, da Lei 6.830/80; eis que para configuração da
fraude é necessária a demonstração do consilium fraudis que
pressupõe o conhecimento, pelo terceiro adquirente, da existência da demanda ou da constrição ao tempo do negócio. (REsp
122.550/SP – 1.ª T. – j. 12.03.1998 – rel. Min. Milton Luiz Pereira
– DJU 25.05.1998.).55
A tese de que o registro da penhora não é condição de sua validade, mas
sim de oponibilidade perante terceiros ganha mais fôlego com a atual redação
do art. 659, § 4º, modificado pela Lei nº 10.444, de 07.05.2002, que dispõe, in
verbis:
“Art. 659.
......
§ 4º A penhora de bens imóveis realizar-se-á mediante auto ou termo de penhora, cabendo ao exeqüente, sem prejuízo da imediata
55 In Revista dos Tribunais, V. 755, p. 220.
56 Breves comentários à 2ª. fase da reforma do código de processo civil. 2ª. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 242.
57 Projeto de Lei que Dispõe sobre o Processo de Execução dos Títulos Extrajudiciais, art. 617-A, § 2º.
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intimação do executado (art. 669), providenciar, para presunção
absoluta de conhecimento por terceiros, o respectivo registro no
ofício imobiliário, mediante apresentação de certidão de inteiro
teor do ato e independentemente de mandado judicial.
O texto de lei é de solar clareza: o registro é para gerar “presunção absoluta de conhecimento de terceiros”. Via de conseqüência, o registro da penhora de
bens imóveis não é condição de sua validade, mas sim meramente de sua publicidade. Neste diapasão, as lições de Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier:56
Com a alteração fica resolvida, por assim dizer, toda a polêmica surgida em função da redação do § 4º, restando claro que
não se trata de ato integrativo da penhora, mas tão-somente de
ato destinado a criar presunção absoluta de publicidade quanto à vinculação do bem ao processo de execução.
Quer-nos parecer que a grande preocupação do legislador é com a famigerada fraude a execução, visando a preservar tanto o credor, como também eventual terceiro que adquira os bens do devedor. Tanto é assim que o “Projeto de Lei
sobre o processo de Execução de Títulos Extrajudiciais” prevê, pela redação proposta ao art. 617-A, que “o exeqüente poderá, no ato, obter certidão comprobatória do ajuizamento da execução (...) para fins de averbação junto ao registro de
imóveis, de veículos ou de outros bens sujeitos à penhora”, a fim de que “feita a
averbação, os terceiros que venham a adquirir o bem presumem-se cientes da
propositura da demanda”.57
Aliás, os projetos de reforma silenciam quanto à modificação da sistemática do
registro da penhora. Logo, o texto de lei, tal como agora está, será mantido.
A novidade trazida é da proposta de redação do art. 659, § 6º: “obedecidas
as normas de segurança que forem instituídas, sob critérios uniformes pelos Tri-
59 Art. 593. Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens: I – quando sobre eles pender
ação fundada em direito real; II – quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência; III – nos demais casos expressos em lei.
60 LIEBMAN, Enrico Túlio. Op. cit., p. 85.
61 Não nos esquecemos da posição majoritária da doutrina que aponta que, na fraude à execução, sequer há de
se cogitar em possível boa-fé do adquirente comprador. A propósito, colaciona-se as lições de Humberto Theodoro Júnior: “Não se requer, por isso, a presença do elemento subjetivo da fraude (consilium fraudis) para
que o negócio incida no conceito de fraude à execução (...) É irrelevante, finalmente, que o ato seja real ou simulado, de boa ou má-fé. In op. cit., p. 108/109.
62 Fraude à execução – alienação do bem pelo devedor quando em curso ação de conhecimento – boa-fé do
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bunais, os registros de penhoras de bens imóveis podem ser realizados por meios
eletrônicos”.58
Porém, perfilhamos entendimento de que a fraude à execução continua sendo regida pelo art. 59359, do Código de Processo Civil. A jurisprudência e a doutrina
têm atacado com veemência tais práticas escusas, repelindo-as com pujança:
A fraude toma aspectos mais graves quando praticados depois de iniciado o processo condenatório ou executório contra o devedor. É que
não só é mais patente do que nunca o interesse de lesar os credores,
como também a alienação dos bens do vendedor vem constituir verdadeiro atentado contra o desenvolvimento jurisdicional já em curso.
Assim, o ato de alienação, embora válido entre as partes, não subtrai os bens à responsabilidade executória; eles continuam respondendo pelas dívidas do alienante, como se não tivessem saído de
seu patrimônio.60
Neste desiderato, entendemos que o registro da penhora do bem imóvel geraria a presunção absoluta da fraude, ao passo que a alienação do imóvel, enquanto
pendente ação judicial capaz de reduzir o devedor à insolvência, geraria presunção
relativa de fraude, podendo ser ilidia no caso concreto por argumentos críveis,
como, por exemplo e notadamente, a boa-fé61.
Respeitante especificamente sobre fraude à execução, Humberto Theodoro
Júnior62, mudando posição assumida anteriormente, leciona que a óptica de que o
elemento subjetivo do adquirente (boa-fé) é dispensável, caiu por terra:
As primeiras vozes a se rebelarem contra o tratamento puramente
objetivo da fraude à execução foram as de ALVINO LIMA e MÁRIO
AGUIAR MOURA, que demonstraram o equívoco da teoria de BUZAID e acentuaram que a sanção à fraude de execução, de acordo com as mais atualizadas concepções doutrinárias e jurisprudenciais, operaria de forma igual à da fraude contra credores.
Dessa forma, devem ser vistas como requisitos comuns de ambas as
variantes da fraude:
a fraude da alienação por parte do devedor;
a eventualidade de consilium fraudis pela ciência da fraude por
parte do adquirente;
63 A fraude de execução e o devido processo legal, in: Revista Gênesis de Direito Processual Civil. Curitiba: Gênesis, v. XVI, p. 265.
64 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit, p. 17.
65 A fraude de execução e o regime de sua declaração em juízo, in: Porto Alegre: Síntese Publicações, 2002, CD-
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prejuízo do credor”
É, pois, indispensável, ainda que se tratando de fraude à execução, do elemento subjetivo da má-fé por parte do adquirente. Gelson Amaro de Souza, é ainda mais
enfático:63
O equívoco ao que se pensa é saliente, pois a própria expressão
fraude já está contida no elemento subjetivo e deste é necessariamente integrante. Cumpre, então, demonstrar tanto o seu elemento objetivo, como o subjetivo. A fraude de execução, pelas conseqüências jurídicas que produz a ponto de autorizar a constrição
de bens de quem não é devedor e nem executado, jamais poderá
ser presumida, senão devidamente provada.
Repita-se: a fraude não pode ser presumida. Deve ser provada, demonstrando-se inequivocadamente o elemento subjetivo do comprador, qual seja, a má-fé,
em casos onde a penhora do imóvel não estiver registrada.
O Superior Tribunal de Justiça já se direciona para pacificar que, mesmo na
fraude à execução, “além do elemento objetivo representado pelo dano suportado
pelo credor, em razão da insolvência provocada ou agravada pelo ato de disposição,
é necessário que o terceiro adquirente tenha concorrido conscientemente para o
ato danoso. Incumbe, portanto, àquele que invoca o artigo 793 do CPC, demonstrar
ambos os elementos da fraude, de maneira que, estando o terceiro de boa-fé, não
haverá como sujeitá-lo à responsabilidade executiva pelo débito do alienante. É necessário sempre que o terceiro tenha ciência efetiva ou presumida da existência da
demanda contra o alienante e do seu estado de insolvência.”64
Ainda e cônsono o mesmo Humberto Theodoro Júnior65, na busca da repreensão à fraude, criam-se remédios jurídicos com duplo objetivo de: a) valorizar a boafé; b) e condenar a má-fé. Na Revista dos Tribunais, V. 776, p. 31, lê-se:
A fraude de execução a que se refere o CPC, art. 593, I, não se contenta apenas com a existência de ação real pendente sobre o bem alienado. É preciso, também, o elemento subjetivo – conhecimento da
ação pelo adquirente – que se presume no caso de inscrição da causa no Registro Público. “Não registrada a ação..., a fraude de execu66 Op. cit., p. 158.
67 “Art. 1º – O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por
qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou
pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei”.
68 O art. 3º, da Lei 8.009, traz várias exceções dessa inoponibilidade, como: I) em razão dos créditos de trabalha-
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ção somente poderá ficar caracterizada se demonstrado o conhecimento daquele fato pelo adquirente” (STJ, 4.ª T., REsp 193.048/PR, rel.
Min. Ruy Rosado de Aguiar, ac. 02.02.1999, DJU 15.03.1999, p. 257).
Imperioso decidir-se que a má-fé do adquirente deve ser suficientemente provada, ainda que se falando de fraude à execução. Tal prova seria dispensável apenas
se houvesse o anterior registro da penhora do bem imóvel no Serviço Imobiliário.
8.
BEM DE FAMÍLIA
O bem de família foi pela primeira vez previsto no nosso ordenamento jurídico pelo Código Civil de 1916 (Lei 3071, de 01-01-1916), que, no art. 70, dispôs: “É
permitido aos chefes de família destinar um prédio para domicílio desta, com a cláusula de ficar isento de execução por dívidas, salvo as que provierem de impostos relativos ao mesmo prédio.”
Essa legislação foi influenciada sobremaneira pela homestead do Direito americano, que estabelecia que o imóvel domiciliar era isento de penhora.
Pelo Código Civil de 1916, somente haveria o bem de família se o chefe desta entidade o erigisse em nível de cláusula contratual, registrada no Serviço Imobiliário.
Todavia, a lei 8009, de 29-03-1990 (advinda da Medida Provisória 143/90), dispôs sobre a impenhorabilidade do bem de família, certificando que o imóvel residencial, urbano ou rural, próprio do casal ou entidade familiar, e/ou móveis da residência, impenhoráveis por determinação legal. Explicando-o, assim se posiciona Álvaro Villaça Azevedo66:
Como resta evidente, nesse conceito, o instituidor é o próprio Estado, que impõe o bem de família, por norma de ordem pública, em
defesa da célula familiar. Nessa lei emergencial, não fica a família à mercê da proteção, por seus integrantes, mas é defendida pelo
próprio Estado, de que é fundamento.
dores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; II) pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos
constituídos em função do respectivo contrato; III) pelo credor de pensão alimentícia;
IV ) para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V ) para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; VI) por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória e ressarcimento, indenização ou perdimento de bens; VII) por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
69 THEODORO JR, Huberto. Tutela jurisdicional dos direitos em matéria de responsabilidade civil – execução
– penhora e questões polêmica. in Porto Alegre: Síntese Publicações, 2002, CD-Rom n. 37. Produzida por Sonopress Rimo Indústria e Comércio Fonográfico Ltda.
70 LACERDA, Natanael Lima, e DIAB, Walter. Fiança – Locação – Função social da propriedade e impenhora-
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bilidade do bem de família, in Síntese Jornal, dez/99, p. 10.
71 O processo de execução e a reforma do código de processo civil. in Porto Alegre: Síntese Publicações, 2002,
CD-Rom n. 37. Produzida por Sonopress Rimo Indústria e Comércio Fonográfico Ltda.
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Assim, a Lei nº 8009, de 29-03-199067, que instituiu o bem de família, retirou
da área da penhorabilidade imóveis em que residem os devedores, além dos móveis
que guarneçam essa residência, observadas as condições nela estatuídas68.
Já se ergueram vozes contra a constitucionalidade formal e material desta Lei,
que, todavia, não encontraram ressonância nas Cortes Superiores e muito menos no
Supremo Tribunal Federal. Pretendeu-se até mesmo sua inaplicabilidade aos créditos trabalhistas, sem embargo da textual referência que lhe faz o art. 1º, caput, da lei
Aliás, se a Constituição impõe à propriedade uma função social (art. 5º, XXIII),
não há dificuldade alguma em ver na medida da Lei nº 8.009 uma preocupação voltada para essa mesma função. De fato, quando se nota o Estado envolvido com enormes dificuldades para conceber e implementar planos habitacionais, para tentar resolver o gravíssimo problema das famílias que não dispõem de casa própria, seria até
um contra-senso que ficasse indiferente à perda da moradia, por razões econômicas,
daqueles que já haviam resolvido o problema da casa própria.69
É corolário inegável que a Lei nº 8.009/90 se inseriu no princípio teleológico
valorizado pela Constituição, qual seja “a garantia da função social da propriedade”70,
muito embora alguns argumentem que a proteção pela lei brasileira é tão generosa
que não encontra similar mundo afora. José Raimundo Gomes da Cruz é um desses
críticos71:
A idéia da impenhorabilidade do bem de família pode até ser generosa, quanto aos devedores de escasso patrimônio. Mas também
não existe tão genérico benefício nos ordenamentos jurídicos contemporâneos. Na França, por exemplo, todos os imóveis são penhoráveis, sendo as exceções apontadas, na verdade, aquilo que aqui
se considera excesso de penhora (CPC, artigos 659, caput, e 685, inciso I): se apenas um ou alguns dos imóveis do devedor são suficientes para a satisfação do credor, não são penhorados além do
necessário. Segundo a doutrina italiana, no capítulo relativo à expropriação de bens móveis, há tópico sobre impenhorabilidade, o
mesmo correndo no tocante aos créditos, não assim no capítulo
sobre a expropriação imobiliária.
O artigo 553.2 do CPC da Província de Québec dispõe: “É também
impenhorável um imóvel que sirva de residência principal ao devedor, quando o crédito for inferior a 10.000 dólares canadenses,
salvo nos casos seguintes: 1. tratando-se de crédito garantido por
um privilégio ou uma hipoteca legal ou convencional sobre tal
imóvel, excluída a hipoteca legal que garanta crédito resultante de
sentença; 2. tratando-se de crédito alimentar; 3. achando-se o imóvel já penhorado. Para os fins do presente artigo, o montante do
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crédito é aquele do julgamento em virtude do qual o imóvel poderia ser penhorado, incluídos os juros até à data da sentença, mas
não as despesas.
Todavia, o “Projeto de Reforma do Código de Processo Civil” acena com mudanças. Pelo art. 649, II, do “Esboço de Anteprojeto de Lei sobre a Execução de Título Extrajudicial”72, “são impenhoráveis os móveis, pertences e utilidades domésticas que guarneçam a residência do executado, salvo se de elevador valor ou que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida.”.
Sendo assim, em aprovado esse projeto, os móveis que guarneçam a residência são, a princípio, impenhoráveis. Se, contudo, forem de elevados valores ou desnecessários para o padrão médio de vida de uma pessoa, poderão ser constritados.
Ademais, pela redação do § único, do mesmo art., “a impenhorabilidade não
é oponível ao crédito decorrente da alienação do próprio bem ao executado”. Se,
portanto, o indivíduo comprou o bem de um vendedor, perante esse vendedor não
haverá a oponibilidade da impenhorabilidade deste bem em específico.
Talvez, a mais interessante das inovações está no proposto art. 650, § único,
que dispõe que
também pode ser penhorado o imóvel considerado bem de família,
se de valor superior a 1.000 (mil) salários mínimos, caso em que,
apurado o valor em dinheiro, a quantia até aquele limite será reservada para a aquisição, pelo devedor de outro imóvel residencial.
Por conseguinte, se o imóvel “bem de família” é de valor superior a 1.000 (mil)
salários mínimos, esse se tornará penhorável. Levado à hasta pública, deverá ser preservada a parte cabível ao executado, no valor de 1.000 (mil) salários, e o remanescente entregue ao credor.
Interessante essa inovação. Contudo, um valor de 1.000 (mil) salários ainda é
muito alto. São poucas as casas que ultrapassam esse valor, notadamente nas Comarcas do interior do país. Preferível que o valor fosse, inclusive menor, ou criasse-se
um parâmetro como, por exemplo: em cidades até 50.000 habitantes, o bem de família é até o valor de 400 salários mínimos. Em cidade de 50.000 a 500.000 habitantes, até o valor de 800 salários mínimos. Em cidades acima de 500.000 habitantes,
em valores até 1000 salários mínimos
9.
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Sobre a distinção entre função, cargo e emprego público conferir Di Pietro, Maria Sylvia Zanella, Direito Admi-
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A COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
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Rômulo de Andrade Moreira
Promotor de Justiça e Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça.
Ex-Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias
Criminais do Ministério Público do Estado da Bahia.
Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS na graduação e na
pós-graduação, da Fundação Escola Superior do Ministério Público da Bahia, da Escola Superior da
Magistratura – EMAB e do Curso PODIUM – Preparatório para Concursos.
Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal).
Especialista em Processo pela UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor Calmon de Passos).
Membro da Association Internationale de Droit Penal, do Instituto Brasileiro de Direito Processual
e da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais – ABPCP.
Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao
Movimento Ministério Público Democrático.
Autor da obra “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
1.
INTRODUÇÃO
Um dos critérios determinadores da competência estabelecidos em nosso Código de Processo Penal é exatamente o da prerrogativa de função, conforme está estabelecido nos seus arts. 69, VII, 84, 85, 86 e 87. É a chamada competência originária ratione personae.
Evidentemente que estas disposições contidas no código processual têm que
ser complementadas com as normas constitucionais (seja pela Constituição Federal,
seja pelas Constituições dos Estados) e pela jurisprudência, especialmente a do Supremo Tribunal Federal.
Desde logo, observa-se que a competência por prerrogativa de função é estabelecida, não em razão da pessoa, mas em virtude do cargo ou da função2 que ela
exerce, razão pela qual não fere qualquer princípio constitucional, como o da igualdade (art. 5º., caput ) ou o que proíbe os juízos ou tribunais de exceção (art. 5º.,
XXXVII). Aqui, ninguém é julgado em razão do que é, mas tendo em vista a função
que executa na sociedade. Como diz Tourinho Filho, enquanto
o privilégio decorre de benefício à pessoa, a prerrogativa envolve
2
3
Processo Penal, Vol. II, Saraiva: São Paulo, 24ª. ed., 2002, p. 126.
Derecho Procesal Penal, Tomo I, Buenos Aires: Editorial Guillermo Kraft Ltda., 1945, pp. 222/223.
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a função. Quando a Constituição proíbe o ‘foro privilegiado’, ela
está vedando o privilégio em razão das qualidades pessoais, atributos de nascimento... Não é pelo fato de alguém ser filho ou neto
de Barão que deva ser julgado por um juízo especial, como acontece na Espanha, em que se leva em conta, muitas vezes, a posição
social do agente.3
Efetivamente, a Constituição espanhola estabelece expressamente que “la
persona del Rey es inviolable y no está sujeta a responsabilidad.” (art. 56-3)
Alcalá-Zamora explica que
cuando esas leyes o esos enjuiciamentos se instauran no en atención a la persona en si, sino al cargo o función que desempene,
pueden satisfacer una doble finalidad de justicia: poner a los enjuiciables amparados por el privilegio a cubierto de persecuciones
deducidas a la ligera o impulsadas por móviles bastardos, y, a la
par, rodear de especiales garantias su juzgamiento, para protegerlo contra las presiones que los supuestos responsables pudiesen
ejercer sobre los órganos jurisdiccionales ordinarios. No se trata,
pues, de un privilegio odioso, sino de una elemental precaución
para amparar a un tiempo al justiciable y la justicia: si en manos
de cualquiera estuviese llevar las más altas magistraturas, sin cortapisa alguna, ante los peldaños inferiores de la organización judicial, colocándolas, de momento al menos, en una situación desairada y difícil, bien cabe imaginar el partido que de esa facilidad excesiva sacarían las malas pasiones.4
Pois bem. Neste trabalho, procuraremos fazer uma análise da evolução da matéria, desde a redação original do Código de Processo Penal, passando pela Súmula
394 do Supremo Tribunal Federal e, naturalmente, analisando as disposições da
Constituição Federal, além, é claro e principalmente, da nova Lei nº. 10.628/2002.
2.
O CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E A COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
Diz o art. 69 deste código que uma das causas determinadoras da competência penal será a prerrogativa de função. Este dispositivo foi complementado pelos
arts. 84 a 87 do mesmo diploma processual.
5
Luiz Flávio Gomes, Juizados Criminais Federais e Outros Estudos, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002, p. 147.
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Como se disse anteriormente, é natural que exista este critério determinador
da competência, pois a pessoa que exerce determinado cargo ou função pública,
evidentemente, deve ser preservada ao responder a um processo criminal, evitando-se, inclusive, ilegítimas injunções políticas que poderiam gerar injustiças e perseguições nos respectivos julgamentos.
É razoável, portanto, que um Juiz de Direito, um Deputado Estadual ou um
Promotor de Justiça seja julgado pelo Tribunal de Justiça do respectivo Estado, e não
por um Magistrado de primeira instância, em razão da
necessidade de resguardar a dignidade e a importância para o Estado de determinados cargos públicos”, na lição de Maria Lúcia Karam.
Para ela, não há “propriamente uma prerrogativa, operando o exercício da função decorrente do cargo ocupado pela parte como o fator
determinante da atribuição da competência aos órgãos jurisdicionais
superiores, não em consideração à pessoa, mas ao cargo ocupado.5
Os arts. 86 e 87 do Código de Processo Penal estabelecem as pessoas que, em
razão do cargo, devem ser julgadas por órgãos superiores da Justiça, disposições estas
que precisam ser relidas à luz da Constituição Federal e das constituições estaduais.
3.
A CONSTITUIÇÃO FEDERAL
O art. 29, X da Constituição Federal determina o julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça. Se o Prefeito, porém, vier a cometer um delito da alçada da Justiça Comum Federal (por exemplo, desvio de recursos federais sujeitos à fiscalização da União) a competência será do respectivo Tribunal Regional
Federal, segundo entendimento firmado na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal (RT 745/479 e JSTF 177/340). A propósito, há duas súmulas do Superior
Tribunal de Justiça:
Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal
por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal. (Súmula 208).
Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio
de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal.
(Súmula 209).
O art. 96, III estabelece a competência dos Tribunais de Justiça para processar
e julgar os Juízes de Direito e os membros do Ministério Público estadual, ressalvando-se a competência da Justiça Eleitoral (leia-se: dos Tribunais Regionais Eleitorais).
Neste caso, ainda segundo entendimento jurisprudencial respaldado principalmen-
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te pelo art. 108, I, “a” da Constituição Federal, mesmo que o delito seja, em tese, da
competência da Justiça Comum Federal, a competência continua a ser do Tribunal
de Justiça do Estado onde atue o autor do fato ( JSTJ 46/532), ainda que a infração
penal tenha sido praticada em outro Estado da Federação, pois, a competência pela
prerrogativa de função sobrepõe-se à territorial.
Por sua vez, a competência para julgar os Juízes Federais, do Trabalho e Militares e os membros do Ministério Público da União (salvo os que oficiem perante
Tribunais, que serão julgados pelo STJ) é do Tribunal Regional Federal da área da
respectiva jurisdição ou atribuições, ressalvando-se também a competência da Justiça Eleitoral (art. 108, I, “a” da Constituição Federal).
Nos arts. 102, I, “b” e “c” e 105, I, “a”, vem estabelecida a competência criminal,
respectivamente, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
4.
A CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DA BAHIA
No Estado da Bahia, a Constituição estabelece a competência ratione personae no art. 123, I, “a”, determinando ser do Tribunal de Justiça a competência para
julgar o Vice-Governador, Secretários de Estado, Deputados Estaduais, o Procurador-Geral do Estado, dentre outras autoridades públicas. Neste aspecto, a diferença
entre os diversos Estados da Federação, pode-se afirmar, é mínima.
5.
O CÓDIGO ELEITORAL
A Lei nº. 4.737/65 – Código Eleitoral, recepcionada pela Constituição Federal
de 1988 como lei complementar (art. 121, CF/88), estabelece a competência da Justiça Eleitoral para o julgamento dos crimes eleitorais e daqueles a eles conexos (art.
35, II do Código Eleitoral).
É bem verdade que em face da Constituição Federal, algumas de suas disposições caíram no vazio, tornaram-se inaplicáveis. Assim, o Tribunal Superior Eleitoral
não tem mais competência criminal originária, em que pese a redação do art. 22, I “d”,
pois os seus Ministros e os Juízes dos Tribunais Regionais Eleitorais são julgados, respectivamente, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça (arts.
102, I, “c” e 105, I, “a”). Os Juízes Eleitorais, nos crimes eleitorais e conexos, continuam
a ser julgados pelo respectivo Tribunal Regional Eleitoral, como estabelece o art. 29, I,
“d” do referido código. Da mesma forma, ainda que não esteja assim estabelecido expressamente, os membros do Ministério Público, Estadual ou da União, quando cometerem delitos desta natureza, também serão julgados pelo respectivo Tribunal Regional Eleitoral (salvo os membros do Ministério Público da União que atuem perante Tribunais – art. 105, I, “a”, in fine da Constituição Federal).
6.
A JUSTIÇA MILITAR
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A Lei nº. 8.457/92, que organiza a Justiça Militar da União, estabelece que compete ao Superior Tribunal Militar processar e julgar originariamente os oficiais-generais das Forças Armadas, nos crimes militares definidos em lei (redação dada pela Lei
nº 8.719, de 19/10/93). Ao Conselho Especial de Justiça compete processar e julgar
oficiais, exceto oficiais-generais, nos delitos previstos na legislação penal militar e ao
Conselho Permanente de Justiça processar e julgar acusados que não sejam oficiais
naqueles mesmos crimes.
7.
AS SÚMULAS 394 E 451 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A respeito do assunto duas súmulas foram editadas pelo Supremo Tribunal Federal. A de nº. 451, ainda em vigor, estabelece que “a competência especial por
prerrogativa de função não se estende ao crime cometido após a cessação definitiva do exercício funcional.” Nada mais natural, tendo em vista o fato de que esta
competência legitima-se apenas quanto aos delitos praticados no exercício e em razão da função. Assim, verbi gratia, crimes cometidos por um Juiz de Direito ou um
membro do Ministério Público já aposentado não serão conhecidos pelo órgão superior (assim já decidiu reiteradamente o Supremo Tribunal Federal (RT 634/354 e
606/412; RTJ 79/742).
Exatamente por isso, não se sustentava a primeira súmula referida (nº. 394),
segundo a qual
“cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício.” Esta súmula, editada em 03 de abril do ano de 1964, “exigia
uma relação de contemporaneidade (crime cometido durante o
exercício funcional), resguardando, desse modo a perpetuatio jurisdicionis (processo iniciado numa Corte deveria nela continuar,
apesar da cessação da função).6
Este enunciado, absolutamente despropositado, finalmente, ainda que tardiamente, foi cancelado no dia 25 de agosto de 1999 em decisão unânime proferida no
Inquérito nº. 687-SP, tendo como relator o Ministro Sidney Sanches. Do voto do relator destacamos os seguintes trechos:
Observo que nem a Constituição de 1946, sob cuja égide foi elabo6
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rada a Súmula 394, nem a de 1967, com a Emenda Constitucional
nº. 1/69, atribuíram competência originária ao Supremo Tribunal
Federal, para o processo e julgamento de ex-exercentes de cargos
ou mandatos, que durante o exercício, sim, gozavam de prerrogativa de foro, para crimes praticados no período.(...) A jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é, realmente, instituída não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas
no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício
com o alto grau de independência que resulta da certeza de que
seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa
imparcialidade. Presume o legislador que os tribunais de maior
categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à
eventual influência do próprio acusado, seja às influências que
atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal de
superior hierarquia é, pois, uma garantia bilateral, garantia contra e a favor do acusado. Essa correção, sinceridade e independência moral com que a lei quer que sejam exercidos os cargos públicos ficaria comprometida, se o titular pudesse recear que, cessada a função, seria julgado, não pelo Tribunal que a lei considerou
o mais isento, a ponto de o investir de jurisdição especial para julgá-lo no exercício do cargo, e sim, por outros que, presumidamente, poderiam não ter o mesmo grau de isenção. Cessada a função,
pode muitas vezes desaparecer a influência que, antes, o titular do
cargo estaria em condições de exercer sobre o Tribunal que o houvesse de julgar; entretanto, em tais condições, ou surge, ou permanece, ou se alarga a possibilidade, para outrem, de tentar exercer
influência sobre quem vai julgar o ex-funcionário ou ex-titular de
posição política, reduzido então, freqüentemente, à condição de
adversário da situação dominante. É, pois, em razão do interesse
público do bom exercício do cargo, e não do interesse pessoal do
ocupante, que deve subsistir, que não pode deixar de subsistir a jurisdição especial, como prerrogativa da função mesmo depois de
cessado o exercício. (RTJ 22, págs. 50 e 51).
(...) Parece-me que é chegada a hora de uma revisão do tema, ao
menos para que se firme a orientação da Corte, daqui para frente, ou seja, sem sacrifício do que já decidiu com base na Súmula
394, seja ao tempo da Constituição de 1946, seja à época da E.C. nº
1/69, seja sob a égide da Constituição atual de 1988.
19. A tese consubstanciada na Súmula 394 não se refletiu na Cons
tituição de 1988, ao menos às expressas, pois, no art. 102, I, “b”, es-
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tabeleceu competência originária do Supremo Tribunal Federal,
para processar e julgar “os membros do Congresso Nacional”, nos
crimes comuns.
Continua a norma constitucional não contemplando, ao menos
expressamente, os ex-membros do Congresso Nacional, assim como
não contempla o ex-Presidente, o ex-Vice-Presidente, o ex-Procurador-Geral da República, nem os ex-Ministros de Estado (art. 102, I,
“b” e “c”). Em outras palavras, a Constituição não é explícita em
contemplar, com a prerrogativa de foro perante esta Corte, as autoridades e mandatários, que, por qualquer razão, deixaram o
exercício do cargo ou do mandato.
Dir-se-á que a tese da Súmula 394 permanece válida, pois, com
ela, ao menos de forma indireta, também se protege o exercício
do cargo ou do mandato, se durante ele o delito foi praticado e
o acusado não mais o exerce. Não se pode negar a relevância
dessa argumentação, que, por tantos anos, foi aceita nesta Corte. Mas também não se pode, por outro lado, deixar de admitir
que a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo
ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda
quem deixa de exercê-lo. Aliás, a prerrogativa de foro perante a
Corte Suprema, como expressa na Constituição brasileira, mesmo para os que se encontram no exercício do cargo ou mandato, não é encontradiça no Direito Constitucional Comparado.
Menos, ainda, para ex-exercentes de cargos ou mandatos. Ademais, as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente,
numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos
comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou
mandatos.
Além disso, quando a Súmula foi aprovada, eram raros os casos de
exercício de prerrogativa de foro perante esta Corte.
Mas os tempos são outros. Já não são tão raras as hipóteses de Inquéritos, Queixas ou Denúncias contra ex-Parlamentares, ex-Ministros de Estado e até ex-Presidente da República. E a Corte, como
vem acentuando seu Presidente, o eminente Ministro SEPÚLVEDA
PERTENCE, em reiterados pronunciamentos, já está praticamente
se inviabilizando com o exercício das competências que realmente tem, expressas na Constituição, enquanto se aguardam as decantadas reformas constitucionais do Poder Judiciário, que, ou
encontram fortíssimas resistências dos segmentos interessados, ou
não contam com o interesse maior dos responsáveis por elas. E
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não se pode prever até quando perdurarão essas resistências ou
esse desinteresse.
É de se perguntar, então: deve o Supremo Tribunal Federal continuar dando interpretação ampliativa a suas competências, quando nem pela interpretação estrita, tem conseguido exercitá-las a
tempo e a hora?
Não se trata, é verdade, de uma cogitação estritamente jurídica,
mas de conteúdo político, relevante, porque concernente à própria
subsistência da Corte, em seu papel de guarda maior da Constituição Federal e de cúpula do Poder Judiciário Nacional. Objetar-seá, ainda, que os processos envolvendo ex-titulares de cargos ou
mandatos, com prerrogativa de foro perante esta Corte, não são,
assim, tão numerosos, de sorte que possam agravar a sobrecarga
já existente sem eles.
Mas não se pode negar, por outro lado, que são eles trabalhosíssimos, exigindo dos Relatores que atuem como verdadeiros Juízes de
1º grau, à busca de uma instrução que propicie as garantias que
justificaram a súmula. Penso que, a esta altura, se deva chegar a
uma solução oposta a ela, ao menos como um primeiro passo da
Corte para se aliviar das competências não expressas na Constituição, mas que ela própria se atribuiu, ao interpretá-la ampliativamente e, às vezes, até, generosamente, sem paralelo expressivo no
Direito Comparado.
Se não se chegar a esse entendimento, dia virá em que o Tribunal
não terá condições de cuidar das competências explícitas, com o
mínimo de eficiência, de eficácia e de celeridade, que se deve exigir das decisões de uma Suprema Corte.
Os riscos, para a Nação, disso decorrentes, não podem ser subestimados e, a meu ver, hão de ser levados em grande conta, no presente julgamento.
Aliás, diga-se de passagem, se nem a própria Câmara dos Deputados quis continuar permitindo o exercício do mandato, pelo acusado, tanto que o cassou, ao menos em hipótese como essa parece
flagrantemente injustificada a preocupação desta Corte em preservar a prerrogativa de foro.
Nem se deve presumir que o ex-titular de cargo ou mandato, despojado da prerrogativa de foro, fique sempre exposto à falta de
isenção dos Juízes e Tribunais a que tiver de se submeter. E, de certa forma, sua defesa até será mais ampla, com as quatro instâncias que a Constituição Federal lhe reserva, seja no processo e julgamento da denúncia, seja em eventual execução de sentença
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condenatória. E sempre restará a esta Corte o controle difuso de
constitucionalidade das decisões de graus inferiores. E ao Superior
Tribunal de Justiça o controle de legalidade. Além do que já se faz
nas instâncias ordinárias, em ambos os campos.
Por todas essas razões, proponho o cancelamento da Súmula 394.
(...)
Nesse sentido é meu voto, com a ressalva de que continuam válidos todos os atos praticados e decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, com base na Súmula 394.
A partir deste julgamento histórico e louvável sob todos os aspectos, o Supremo Tribunal Federal passou a entender que a competência por prerrogativa de função só se mantinha na hipótese do autor do fato delituoso ainda se encontrar exercendo a sua função. Finda esta circunstância, o ex-titular, por conseguinte, não mais
contaria com o julgamento pelo órgão superior. Inúmeros foram os processos e inquéritos devolvidos à inferior instância.
8.
A LEI Nº. 10.628/2002
Ocorre que, ao apagar das luzes do governo Fernando Henrique Cardoso, foi
promulgada a Lei nº. 10.628/02 (publicada no Diário Oficial da União do dia 26 de
dezembro do ano de 2002), restaurando a Súmula nº. 394, a partir de uma modificação estabelecida no art. 84 do Código de Processo Penal, acrescentando-lhe dois
parágrafos. O primeiro deles estabelece que a “competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o
inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.”
Esta lei representou um lamentável retrocesso em nossa ordem jurídica, que
havia recebido com entusiasmo o cancelamento da referida súmula.
Ademais, ampliando a competência dos Tribunais Superiores, a referida lei incidiu em flagrante inconstitucionalidade, pois “a competência expressa determinada pela Constituição Federal não pode ser ampliada ou estendida, uma vez que
o poder constituinte originário assim o pretendia”, como bem afirma Luiz Flávio
Gomes.7
É bem verdade que o próprio STF aceita a sua competência para julgar outras
pessoas além daquelas estabelecidas na Constituição Federal, como ocorreu no fa-
7
8
Fernando da Costa Tourinho Filho, Código de Processo Penal Comentado, Vol. 01, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed.,
2001, p. 209.
Fernando da Costa Tourinho Filho, Código de Processo Penal comentado, Vol. I, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed.,
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moso caso “que envolveu o ex-Presidente Collor e PC Farias, quando este também
foi julgado pela Suprema Corte, não obstante a ausência de permissivo constitucional.”8 Neste sentido, também conferir RTJ, 84/713 e Inquérito nº. 184-8/DF. Observe-se, porém, que, nestes casos, além da evidente continência que obrigaria ao
simultaneus processus (art. 77, I, Código de Processo Penal), o próprio STF admitiu processar e julgar os demais acusados, interpretando ampliativamente os dispositivos constitucionais.
Atenta, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP
interpôs Ação Direta de Inconstitucionalidade para tentar retirar a eficácia dos dois
parágrafos acrescentados pela lei. Da petição inicial, vejamos alguns trechos:
Com esses dispositivos, o legislador ordinário arvorou-se em Poder
Constituinte e acrescentou mais uma competência originária ao
rol exaustivo de competências de cada tribunal, além de se arvorar, desastradamente, em intérprete maior da Constituição. Com
efeito, é cediço que constitui tradição vetusta do ordenamento jurídico pátrio que a repartição da competência jurisdicional, máxime da competência originária para processo e julgamento de
crimes comuns e de responsabilidade, é fixada na Constituição da
República, de forma expressa e exaustiva, vedada qualquer interpretação extensiva. Se assim é com relação ao Supremo Tribunal
Federal, aos tribunais superiores, aos tribunais regionais federais
e aos juízes federais, também o é com relação aos tribunais estaduais, cuja competência também há de ser fixada em sede constitucional estadual, segundo expresso mandamento da Constituição
Federal (...). Ora, definir é pôr limites e, se os limites da competência dos tribunais estão no texto constitucional, quer federal, quer
estadual, não pode o legislador ordinário ultrapassá-los, acrescentando nova competência ao rol exaustivo posto na Constituição,
como se poder constituinte fosse. (...) Não pode, pois, a lei ordinária, como o Código de Processo Penal, regular matéria que só pode
ter sede constitucional. O que já se expôs é bastante para demonstrar a inconstitucionalidade de ambos os parágrafos, aqui questionados. Especificamente quanto ao § 1º, ora impugnado, o legislador ordinário se arvora em intérprete do texto constitucional, no
que diz respeito à própria competência dos tribunais, inclusive
dessa Suprema Corte, dando-lhe interpretação divergente daquela
já firmada por esse Tribunal Maior, consubstanciada no cancelamento da Súmula 394 (...). Ora, se o intérprete maior da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, já decidiu, há quase um lustro,
que o texto constitucional não contempla a hipótese de prorroga-
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ção do foro por prerrogativa de função, quando cessado o exercício desta, não pode o legislador ordinário editar norma de natureza constitucional, como se esta tivesse o condão de compelir a
Suprema Corte a voltar à interpretação, já abandonada, de uma
norma da Constituição (ARISTIDES JUNQUEIRA ALVARENGA –
OAB/DF 12.500).
Nesta ação, o parecer exarado pelo Ministério Público Federal, subscrito pelo
Procurador-Geral da República, também concluiu pela inconstitucionalidade (formal) da lei, em que pese sob diferente fundamento. Eis um trecho:
Contudo, vislumbra-se sério obstáculo que redunda na inconstitucionalidade formal a macular a norma inserta no § 1.º do art. 84
do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei n.º
10.628/02, pois somente o próprio Supremo Tribunal Federal é que
teria que adotar tal exegese da norma constitucional sobre sua
própria competência originária e não o legislador ordinário. Há,
assim, a nosso ver, violação do disposto no art. 2.º, da Constituição
da República. O § 1º viola o princípio da independência e harmonia dos poderes e usurpa a competência do Supremo Tribunal Federal enquanto guardião máximo da Constituição, segundo o caput do art. 102. A lei neste ponto interpreta a Constituição, na verdade, revogando a exegese mais recente do Supremo Tribunal Federal e lembra o caso emblemático Marbury v. Madison da Suprema Corte Americana. Aliás, como se sabe, toda a teoria judicial review começa com a inconstitucionalidade formal naquele caso,
sob inspiração do Chief Justice MARSHALL, quando o Congresso
Americano pretendeu, por lei, criar competência originária para
a Suprema Corte relativa ao writ of mandamus. A competência originária daquela corte é somente a definida no próprio texto da
Constituição e não em leis (“Statutes”) do Congresso. A situação
aqui não é exatamente a mesma, porque havia jurisprudência
consolidada em Súmula do Supremo Tribunal Federal interpretando a Constituição de 1946 e leis federais, convivendo com a vigência da Constituição Federal de 1988 durante mais de dez anos. E,
além disso, a lei não criou competência originária propriamente,
mas, na verdade, a recriou, após abolida por interpretação da CF
88 pelo próprio Supremo Tribunal Federal. A decisão majoritária
proferida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal na Questão
de Ordem no Inquérito n.º 687-4, de que foi relator o eminente Ministro SYDNEY SANCHES, estabeleceu que “A tese substanciada nes-
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sa Súmula [394] não se refletiu na Constituição de 1988”, acompanhando o relator os eminentes Ministros MOREIRA ALVES, OCTAVIO
GALLOTTI, CELSO DE MELLO, MARCO AURÉLIO e, o então Presidente, CARLOS VELLOSO. Não vejo, pois, como deixar de considerar
que o § 1.º do art. 84, do Código de Processo Penal, introduzido
pela recentíssima Lei n.º 10.628, de 24 de dezembro de 2002, tenha
afrontado a decisão do Supremo Tribunal Federal, que cancelou a
Súmula 394, por maioria de votos, ainda que entenda, como entendo, ser correta a posição minoritária da Corte. É verdade que,
como acentua o ilustre constitucionalista de Harvard Professor
LAURENCE TRIBE, podem existir “competing interpretations” da
Constituição pelos três Poderes. “And it is clear that, despite the
growth of federal judicial power, the Constitution remains in significant degree a democratic document – not only written, ratified
and amended through essentially democratic processes but indeed
open at any given time to competing interpretations limited only by
the values which inform the Constitution´s provisions themselves,
and by the complex political processes that the Constituition creates – processes which on various occasions give the Supreme Court,
Congress, the President, or the states, the last word in constitutional
debate.” (Vide American Constitutional Law, 2nd. ed.; The Foundation Press, New York, 1988, p. 41-42). Mas é da essência do controle
jurisdicional de constitucionalidade, em caso de confronto, que a
última palavra sobre a Constituição (ainda mais quando se trata
de definição de sua competência originária) seja da Suprema Corte, como reconhece TRIBE, sendo obrigatória para os demais Poderes suas interpretações da Constituição (“The Court´s interpretations of the Constitution are binding on other government actors”)
(ibid. p. 35). (Vide ainda LAURENCE H. TRIBE, Constitutional Choices, Harvard University Press, Cambridge and London, 1995; e On
Reading the Constitution, id., 1991). Há ainda inúmeras decisões
da Suprema Corte dos EUA – a despeito de ser competência do Congresso Americano definir em lei a jurisdição das cortes federais inferiores – tendo como inconstitucionais normas legais restringindo o âmbito da competência em razão de decisões judiciais sobre
matérias politicamente controvertidas (como aborto, ação afirmativa e outros) cujo mérito contrariam interesses e posições de
facções eventualmente majoritárias no Congresso Americano
(Vide Tinsley E. Yarbrough, The Rehnquist Court and The Constitution, Oxford University Press, 2000). Assim, é que deve ser declarado inconstitucional o § 1.º, do art. 84, do CPP, introduzido pela Lei
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n.º 10.628/02, bem como a expressão “observado o disposto no §
1.º“, constante do § 2.º, in fine, por violar o art. 2.º e o caput, do art.
102, da Constituição da República, na medida em que constituem
afronta à exegese da norma constitucional (art. 102, I, b e c) adotada pelo Supremo Tribunal Federal ao cancelar a Súmula 394 e
expressamente estabelecer que a tese nela substanciada não se refletiu na Constituição de 1988. É possível que o Supremo Tribunal
Federal novamente reveja sua posição, com a nova composição da
Corte (com os votos da eminente Ministra ELLEN GRACIE e do eminente Ministro GILMAR MENDES), inclusive no julgamento desta
ação, restabelecendo em parte o entendimento anterior mediante
a adoção de nova Súmula nos termos do voto do eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE na citada Questão de Ordem. Se isso
ocorrer, já serão os votos de cinco Ministros restando apenas um
dos Ministros que já votaram na referida Questão de Ordem reconsiderar sua posição para aderir à proposta de nova Súmula. Nesta hipótese, inexistindo incompatibilidade entre a norma legal e a
interpretação do Supremo Tribunal Federal não se poderá considerá-la formalmente inconstitucional, por não mais se configurar
confronto com o Judiciário, podendo ser convalidada pelo próprio
Supremo Tribunal Federal (Dr. Geraldo Brindeiro).
A jurisprudência já vem se posicionando contra a lei. No Tribunal de Justiça do
Paraná, por exemplo, decidiu-se:
PRERROGATIVA DE FORO – LEI 10.628/02 – EX-AGENTES – INCONSTITUCIONALIDADE – COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE 1º GRAU. - Se a Constituição Federal prescreve que
a competência dos tribunais estaduais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa
do Tribunal de Justiça [art. 125, § 1º], é manifesta a inconstitucionalidade da lei 10.628/02, que concedeu prerrogativa de foro a exagentes, ampliando o rol de competência dos tribunais, o que só
poderia ser feito pelo poder constituinte derivado, e nunca pelo legislador ordinário. Trata-se de habeas corpus impetrado em favor
do ex-secretário de Estado da Fazenda do Paraná, contra decisão
do juiz da Central de Inquéritos, que decretou a prisão preventiva
do paciente e de outros. Os impetrantes sustentam que, estando em
vigor a lei 10.628/02, que alterou o art. 84 do CPP, o juízo de 1º grau
é incompetente, pois a investigação diz respeito a fatos ocorridos
quando o paciente exercia o cargo de secretário de Estado da Fa-
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zenda. Salientam, ainda, que o decreto de prisão preventiva carece de fundamentação, sendo, ademais, desnecessária a custódia.
(...) A Procuradoria Geral de Justiça opinou pela inconstitucionalidade do § 1º do art. 84, com redação dada pela Lei 10.628/02 e,
ainda, pela revogação da liminar concedida. (...) Cumpre, de início, salientar que não está em discussão a conveniência e necessidade ou não da prerrogativa de foro – a qual diz respeito à função exercida pelo agente e não tem conotação pessoal, sendo, portanto, equivocado o uso da expressão “privilégio”, mas apenas o
aspecto formal de constitucionalidade da lei 10.628/02. Referida lei
alterou a redação do art. 84 do CPP, acrescentando-lhe, ainda,
dois parágrafos, ao estabelecer que a ação relativa a atos administrativos do agente e de improbidade deverão ser propostas perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o
funcionário ou autoridade, na hipótese de prerrogativa de foro em
razão do exercício de função pública, ainda que o inquérito ou a
ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública. (...) No entanto, cabe à Constituição Federal e à
Constituição Estadual a definição a respeito da competência, bem
como as circunstâncias e pessoas que estão sujeitas à prerrogativa
de foro. A lei 10.628/02, ao conceder prerrogativa de foro a exagentes, ampliou o rol de competências dos tribunais, o que só poderia ser feito pelo poder constituinte derivado, e nunca pelo legislador ordinário. Houve, dessa forma, violação aos arts. 102, I; 105,
I; 108, I e 125, § 1º, todos da Constituição Federal e que regulamentam a competência do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça,
respectivamente. Especificamente em relação à competência dos
Tribunais de Justiça, diz o § 1º do art. 125 da Constituição Federal
que “será definida na Constituição do Estado”, de modo que não
pode ser ampliada pelo legislador ordinário. (...)
ALEXANDRE DE MORAES salienta que:
A citada lei [referindo-se à de nº 10.628/02] estabeleceu, ainda,
que essa competência especial por prerrogativa de função deverá
prevalecer ainda que o inquérito ou a ação judicial se iniciem
após a cessação do exercício da função pública, revigorando, no
campo civil, a antiga regra da contemporaneidade fato/mandato
prevista na Súmula 394 do STF, hoje cancelada. Essa perpetuação
de competência, igualmente, fere a interpretação dada pelo STF à
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questão dos foros especiais e, conseqüentemente, deverá ser declarada inconstitucional. Ressalte-se, ademais, que a alteração
promovida pela lei 10.628/2002 incide sobre o conteúdo de norma
constitucional. Com efeito, o art. 102 da CF estabelece que compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição. Dessa forma,
exercendo sua função jurisdicional, o STF interpreta a Carta
Maior e estabelece seu alcance. O resultado da interpretação de
norma constitucional tem, por óbvio, força normativa de Constituição, pelo que não pode ser alterado pelas vias ordinárias. (...)
Ao cancelar a Súmula 394, o Excelso Pretório fixou nova interpretação ao art. 102 da CF, segundo a qual cessado o exercício da função ensejadora da prerrogativa de foro, esta também desaparece.
Sendo tal interpretação parte da Constituição, fadada à inconstitucionalidade está a norma de lei ordinária que dispuser o contrário, como pretendeu a Lei 10.628/2002. Ademais, o procedimento do legislador que, descontente com a alteração de posicionamento do STF relativamente à matéria ventilada, pretende impor
sua noção de justiça por meio de edição de nova norma de hierarquia inferior, afronta o disposto no art. 2º da CF [relativo ao princípio da harmonia e independência entre os poderes], pois visa a
embaraçar o livre exercício da função jurisdicional de nossa Corte Constitucional. (...) Dessa forma, são inconstitucionais as normas dos §§ 1º e 2º do art. 84 do CPP, na redação dada pela Lei
10.628/2002, quando estendem a ex-agentes públicos prerrogativa
de foro. Portanto, competente para processar e julgar o paciente é
o juízo de primeiro grau. (...) Diante do exposto, ACORDAM os integrantes do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Paraná, preliminarmente, por maioria, em reconhecer a inconstitucionalidade da lei nº 10.628/02, bem como a competência do Juízo de 1º
grau para o julgamento da ação penal e determinar a devolução
dos autos à colenda 2ª Câmara Criminal (...).
De toda maneira, atente-se que a lei refere-se expressamente “a atos administrativos do agente”, de forma que caso a infração penal não diga respeito diretamente às suas funções, não prevalecerá a competência por prerrogativa de função se ele
não mais ocupar a função pública respectiva. O crime, portanto, haverá de ter estreita e indissociável ligação com ato administrativo do agente, isto é, deverá ter a natureza de delito tipicamente funcional.
9
Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, Vol. II, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 5ª. ed., 1959, p. 220.
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O ART. 85 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
A respeito do tema, merece destaque o art. 85 do Código de Processo Penal,
intimamente ligado à questão da competência por prerrogativa de função.
Como se sabe, dos crimes contra a honra tipificados em nosso Código Penal,
apenas a injúria não admite a exceptio veritatis. Já a difamação a aceita, tão-somente, quando o “ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de
suas funções” (parágrafo único do art. 139 do Código Penal), pois, neste caso, “a
Administração tem interesse em saber a verdade, pois o funcionário deve ser digno do cargo que ocupa.”9 Na calúnia, por sua vez, a possibilidade da fides veri é a
regra, sendo inadmissível apenas nos casos do art. 138, § 3º. do Código Penal.
Dispõe o art. 85 do Código de Processo Penal que nos processos por crime
contra a honra, em que forem querelantes as pessoas que a Constituição sujeita à jurisdição dos Tribunais de Justiça, a estes caberá o julgamento, quando oposta e admitida a exceção da verdade.
Este dispositivo comporta alguns esclarecimentos já enfrentados pelos nossos
doutrinadores e, principalmente, pelo Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, ainda que o referido artigo use da expressão querelante, é evidente a possibilidade de sua aplicação quando o processo por crime contra a honra iniciar-se mediante denúncia e não queixa. Outro entendimento, aliás, não seria possível, senão este: o art. 85 do Código de Processo Penal aplica-se nas ações penais de
iniciativa privada e nas ações penais públicas.
É de Espínola Filho a seguinte opinião:
A despeito de usada, no artigo, a expressão – querelante -, a regra
não poderá ser afastada, se a ação penal tiver sido promovida por
denúncia, mediante representação de pessoa sujeita à jurisdição
do STF ou do Tribunal de Justiça, a qual haja sido vítima de crime
contra a honra, opondo-lhe o agente a exceção da verdade, que tenha sido admitida.10
A propósito, Guilherme Nucci afirma que o termo querelante deve ser entendido
como a vítima do crime contra a honra. Nem sempre, no entanto,
o crime contra a honra terá, no pólo ativo, o ofendido. Pode ocorrer de o Ministério Público assumir a titularidade da causa, nos
casos em que haja representação da vítima, funcionário público
10 Código de Processo Penal Comentado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 223.
11 Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, pp. 269/270.
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ofendido no exercício de suas funções (art. 145, parágrafo único,
do Código Penal).11
Uma outra questão, no entanto, impõe-se: o art. 85 aplica-se às ações penais
pelos crimes de difamação e calúnia (excluída, por força de lei, a injúria), ou apenas
quanto ao segundo delito? Em outras palavras: é possível em um processo-crime por
difamação, sendo oposta à demonstratio veri, invocar-se o art. 85, deslocando-se a
competência do seu julgamento para a Superior Instância, ou isto só será juridicamente viável tratando-se de calúnia? Qual teria sido a verdadeira intenção do legislador ao estabelecer esta prorrogação obrigatória da competência?
Respondendo a tais indagações, observa-se, desde logo, ser posição tranqüila
atualmente no Supremo Tribunal Federal que este dispositivo do Código de Processo Penal só é aplicável quando a fides veri referir-se ao delito de calúnia, não à difamação, entendimento, aliás, compartilhado por dois dos nossos maiores processualistas, senão vejamos.
É de Frederico Marques esta lição:
Em se tratando, porém, do art. 85 do CPP, apresenta-se como relevante, para deslocar a competência penal do juízo de primeiro
grau para o foro privilegiado das jurisdições superiores, exclusivamente a exceção da verdade oposta e admitida em processo por
crime de calúnia. Quando a acusação tiver por objeto crime de difamação, inaplicável é a norma contida no citado preceito legal.
Certo é que o art. 85, citado, não faz distinção de espécie alguma.
Todavia, não se pode olvidar da ratio essendi da regra ali contida.
A exceptio veritatis, na calúnia, torna competente, por força daquele preceito legal, a jurisdição superior, porque, admitida que
seja essa defesa, pode ocorrer, secundum eventum litis, que a justiça penal profira uma decisão de natureza declaratória, em que se
reconheça que o sujeito passivo do crime não praticou o delito que
lhe é imputado pelo autor da ofensa caluniosa. Essa decisão negativa, de caráter declaratório, constitui pronunciamento jurisdicional definitivo, com a imutabilidade resultante da res judicata, a
respeito da relação jurídico-penal contida no jus puniendi que surgiria, para o Estado, se a vítima da calúnia não estivesse sendo,
realmente, caluniada, visto ter cometido, de fato, a infração penal
que lhe foi atribuída.
Ora, se determinadas pessoas não podem ser julgadas, em matéria
12 Tourinho Filho, obra citada, pp. 243/244.
13 Tourinho Filho, idem, p. 244.
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acusatório-penal, a não ser pelos tribunais superiores, só esses órgãos judiciários, também, é que lhes podem dar a imunidade resultante da declaração de inexistência do ‘direito de punir’, por
acolhimento da exceptio veritatis.
Na difamação, o art. 85 do CPP é inaplicável, porque a exceptio veritatis não tem por objetivo provar a existência de crime, e por isso
a réplica do acusador não dará origem a julgamento penal de caráter declaratório-negativo em que se afirme não existir crime.
Isto significa que o excepto não irá ser julgado por infração penal
alguma, em decisão apenas declaratória, ao contrário do que sucede quando essa forma de defesa é oposta por excipiente acusado
de ter praticado o crime de calúnia.12
Outra não é a lição de Tourinho Filho:
Registre-se, ainda, que não obstante o parágrafo único do art. 139 do
CP permita a exceção da verdade quando o ofendido for funcionário
público e a ofensa diga respeito ao exercício da função, o direito pretoriano só admite a aplicação do art. 85 na exclusiva hipótese de calúnia. E a razão é esta: se o excipiente demonstrar que a pretensa vítima realmente cometeu o crime que lhe foi imputado, o julgamento
desse crime caberá ao órgão superior sob cuja jurisdição ele estiver.
É certo que na difamação também é possível a argüição da exceptio veritatis, na exclusiva hipótese tratada no parágrafo único do
art. 139 do CPP. Mas, nesse caso, como se cuida de imputação de
fato que não constitui infração penal, a doutrina dominante, inclusive o direito pretoriano, não permite a aplicação do art. 85.13
No STF, como se frisou, esta é posição pacífica, bastando citar, por todos, este
julgado:
É inaplicável ao crime de difamação o art. 85 do CPP, ainda que
haja exceção da verdade, uma vez que neste crime não é imputado à vítima a prática de fato definido como ‘crime’, mas apenas
um fato ofensivo à reputação (RTJ 68/316).
Ainda que se admitisse, contrariamente à doutrina e à jurisprudência do Supremo Tribunal, a aplicação do art. 85 nos crimes de difamação, mesmo assim, caberia ao Tribunal de Justiça, tão-somente, o julgamento da exceção da verdade, pois
“tanto o fato principal, objeto da denúncia ou queixa, como a demonstratio veri
devem ser apreciados conglutinadamente. O Magistrado, na instrução, colhe in-
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formações sobre o fato principal e sobre a sua veracidade ou não.
Concluída a instrução criminal, os autos (se foi oposta e admitida
a exceção da verdade), segundo entendimento pacífico e remansoso do STF, devem ser encaminhados ao Tribunal sob cuja jurisdição
estiver o ofendido para o julgamento apenas da ‘exceção’. Todas as
provas já foram colhidas. Se o Tribunal considerar que a exceção
é procedente, cumprir-lhe-á não só determinar a extração de peças do processo, nos termos e para os fins do art. 40 do CPP, como
também devolver os autos à instância de origem com a informação de que a exceção foi julgada procedente (...).14
Vê-se, portanto, que mesmo contrariando a posição da Excelsa Corte, ainda
assim caberia ao juízo de origem, e não à Corte Superior, julgar admissível a exceção e instruí-la, remetendo-se, somente então, os autos à Superior Instância para o
julgamento apenas da exceção (no caso de difamação). Assim, após a colheita das
provas é que se deslocaria a competência para o Tribunal de Justiça, julgando-se
procedente ou não a demonstratio veri. Este entendimento também é pacífico no
STF, bastando conferir, por todos, os votos dos Ministros Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio (RT 698/432-433). No mesmo sentido, STF, Ação Penal 305, DF, Pleno,
Rel. Min. Celso de Mello, 12/08/93, v.u. e tantos outros (Exceção da Verdade 601,
Mato Grosso, Pleno, Rel. Min. Paulo Brossard, 26/08/93, DJ 08/04/94, p. 7.223 e a
de nº. 522, Rio de Janeiro, Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 04/08/93, v.u., DJ
03/09/93, p. 17.742).
Apenas a título de ilustração, transcrevemos este julgado do STF, reafirmando
que retrata uma posição tranqüila desta Corte em relação ao assunto:
Nos processos por crime contra a honra, em que forem querelantes
pessoas que a Constituição sujeita à jurisdição dos Tribunais de Justiça, compete a estes o julgamento da exceção da verdade, quando
oposta é admitida. A esse julgamento, porém, limita-se tal competência, consoante jurisprudência reiterada do STF (RTJ 73/984).
10. OS ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
Como se disse, a lei em questão também acrescentou um segundo parágrafo
ao art. 84 do Código de Processo Penal, para estabelecer que a ação de improbidade administrativa (Lei nº. 8.429/92) será proposta perante o tribunal competente
para processar e julgar criminalmente o funcionário.
15 Comentários ao Código Penal, Vol. I, Tomo II, Rio de Janeiro: Forense, 4ª ed., p. 39.
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Inicialmente, atente-se para a impropriedade da disposição encontrar-se em
um código processual penal, quando se sabe que os atos de improbidade administrativa não são ilícitos penais, mas infrações de outra natureza. Logo, a previsão deveria estar contida em outro diploma, jamais no Código de Processo Penal, diploma
reservado à disciplina da persecutio criminis e de seus consectários.
Maria Sylvia Zanella di Pietro esclarece que
a natureza das medidas previstas no dispositivo constitucional está
a indicar que a improbidade administrativa, embora possa ter conseqüência na esfera criminal, com a concomitante instauração de
processo criminal (se for o caso) e na esfera administrativa (com a
perda da função pública e a instauração de processo administrativo concomitante) caracteriza um ilícito de natureza civil e política,
porque pode implicar a suspensão dos direitos políticos, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento dos danos causados ao erário.15
Aliás, o conceito de infração penal (crime e contravenção) é dado pela Lei de
Introdução ao Código Penal que define crime como sendo
a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção,
quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a
pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina,
isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente. (art. 1º. do Decreto-Lei n. 3.914/41).
Estas definições, por se encontrarem na Lei de Introdução ao Código Penal,
evidentemente regem e são válidas para todo o sistema jurídico–penal brasileiro, ou
seja, do ponto de vista do nosso Direito Positivo quando se quer saber o que seja
crime ou contravenção, deve-se ler o disposto no art. 1º. da Lei de Introdução ao
Código Penal.
O mestre Hungria já se perguntava e ele próprio respondia:
Como se pode, então, identificar o crime ou a contravenção, quando se trate de ilícito penal encontradiço em legislação esparsa, isto é,
não contemplado no Código Penal (reservado aos crimes) ou na Lei
das Contravenções Penais? O critério prático adotado pelo legislador
16 Processo penal, Vol. 4, São Paulo: Saraiva, 20ª. ed., p.p. 212-213.
17 Manual das Contravenções Penais, São Paulo: Saraiva, 1962, p. 03.
18 Eduardo Reale Ferrari e Christiano Jorge Santos, “As Infrações Penais Previstas na Lei Pelé”, Boletim do Institu-
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brasileiro é o da “distinctio delictorum ex poena” (segundo o sistema
dos direitos francês e italiano): a reclusão e a detenção são as penas privativas de liberdade correspondentes ao crime, e a prisão simples a correspondente à contravenção, enquanto a pena de multa
não é jamais cominada isoladamente ao crime.16
Por sua vez, Tourinho Filho afirma:
Não cremos, data venia, que o art. 1º. da Lei de Introdução ao Código Penal seja uma lex specialis. Trata-se, no nosso entendimento,
de regra elucidativa sobre o critério adotado pelo sistema jurídico
brasileiro e que tem sido preferido pelas mais avançadas legislações; (...) Veja-se, no particular, Marcelo Jardim Linhares, Contravenções penais, Saraiva, 1980, v. 3, p. 781: ´Assim, quando a infração eleitoral é apenada com multa, estamos em face de uma contravenção´.17
Manoel Carlos da Costa Leite também trilha na mesma linha, afirmando:
No Direito brasileiro, as penas cominadas separam as duas espécies
de infração. Pena de reclusão ou detenção: crime. Pena de prisão
simples ou de multa ou ambas cumulativamente: contravenção.18
Eis outro ensinamento doutrinário:
Como é sabido, o Brasil adotou o sistema dicotômico de distinção
das infrações penais, ou seja, dividem-se elas em crimes e contravenções penais. No Direito pátrio o método diferenciador das duas
categorias de infrações é o normativo e não o ontológico, valendo
dizer, não se questiona a essência da infração ou a quantidade da
sanção cominada, mas sim a espécie de punição.19
Luiz Flávio Gomes afirma: “Por força do art. 1º. da Lei de Introdução ao Código Penal, infração punida tão-somente com multa é contravenção penal (não
19
20
21
22
Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, n. 110, janeiro/2002.
Ob. cit., p. 162.
STJ, Reclamação591-SP, Rel. Min. Nilson Naves, DJ 15/05/2000, p. 00112.
Segundo José Afonso da Silva, entre nós, este “sistema foi originariamente instituído com a Constituição de
1891 que, sob a influência do constitucionalismo norte-americano, acolhera o critério de controle difuso
por via de exceção, que perdurou nas constituições sucessivas até a vigente.” (Curso de Direito Constitucio-
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delito).”20
Vê-se, às escâncaras, que aqueles tipos elencados na Lei de Improbidade Administrativa, decididamente, não são infrações penais, mas infrações político-administrativas. Logo, sequer sistematicamente seria cabível delas tratar em sede processual penal.
Mas, não só por este equívoco legislativo-formal peca a nova lei. Com efeito,
e ainda segundo a lição de Luiz Flávio Gomes, “a competência por prerrogativa de
função versa exclusivamente sobre atividades criminais. Não se estende à investigação de natureza civil.”21
A respeito, o Superior Tribunal de Justiça já deixou assentado que
conquanto caiba ao STJ processar e julgar, nos crimes comuns e
nos de responsabilidade, os membros dos Tribunais Regionais do
Trabalho (art. 105, I, a), não lhe compete, porém, explicitamente,
processá-los e julgá-los por atos de improbidade administrativa.
Implicitamente, sequer, admite-se tal competência, porquanto,
aqui, trata-se de ação civil, em virtude de investigação de natureza civil. Competência, portanto, de juiz de primeiro grau.22
Naquela referida Ação Direta de Inconstitucionalidade interposta pela CONAMP, ficou também consignado na petição inicial que “o rol de competência dos
tribunais é de direito estrito e tem fundamento constitucional trata-se de entendimento reiteradamente proclamado por essa excelsa Corte, como se extrai, a título
exemplificativo, da ementa do v. acórdão relativo à Petição 693 AgR/SP, Relator o
eminente Ministro Ilmar Galvão, assim redigida: ‘COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA CONTRA PRESIDENTE DA REPÚBLICA. LEI
N. 7.347/85. A competência do Supremo Tribunal Federal é de direito estrito e decorre da Constituição, que a restringe aos casos enumerados no art. 102 e incisos. A
circunstância de o Presidente da República estar sujeito à jurisdição da Corte, para
os feitos criminais e mandados de segurança, não desloca para esta o exercício da
competência originária em relação às demais ações propostas contra ato da referida
autoridade. Agravo regimental improvido.
Inúmeros são, também, os julgados desse colendo Supremo Tribunal Federal, relativamente à falta de sua competência originária
para processo e julgamento de ação popular contra o Presidente
da República, por se tratar de matéria não contemplada no exaustivo rol de competência fixado em sede constitucional.
23 Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 17ª. ed., 1989, p. 34.
24 Pinto Ferreira, Direito Constitucional Moderno, Vol. 01, São Paulo: Saraiva, 4ª. ed., 1962, p. 91.
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A respeito especificamente deste § 2º., informamos que a 9ª. Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, unanimemente, tendo
como relator o Desembargador Antônio Rulli, decidiu pela inconstitucionalidade da
referida lei, reconhecendo expressamente que o processo por ato de improbidade
administrativa deveria permanecer na primeira instância.
11. CONCLUSÕES
Diante do exposto, entendemos ser inconstitucional a referida lei e, por conseguinte, os dispositivos por ela acrescentados ao Código de Processo Penal, razão pela
qual não devem ser aplicados pelo Juiz, pois, como se sabe, o controle de constitucionalidade judiciário no Brasil tem o caráter difuso23, podendo “perante qualquer juiz ser
levantada a alegação de inconstitucionalidade e qualquer magistrado pode reconhecer essa inconstitucionalidade e em conseqüência deixar de aplicar o ato inquinado”, na lição do constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho.24
Assim, as ações penais e as de improbidade administrativa devem ser aforadas
na 1ª. Instância ou nelas prosseguir, sempre que o réu não mais ocupar a função pública que lhe permitia ser julgado pelo órgão colegiado. Ao Juiz cabe negar aplicação ao novo texto legal, pois neste sistema de controle de constitucionalidade das
leis pelo órgão jurisdicional
a justiça transmuda-se em guarda da constituição, pois é um juiz
quem verifica a correspondência do ato diante do texto básico da
nação, criando-se assim um novo modelo de controle da constitucionalidade das leis por um órgão jurisdicional. É o chamado poder de revisão judicial (judicial review) ou controle judicial, cuja
definição é formulável nesses termos: é o poder dos tribunais de
apreciar a conformidade das leis ou atos do executivo frente à
constituição e negar-lhes execução.25
No Superior Tribunal de Justiça já se decidiu que
o controle jurisdicional da constitucionalidade, no regime da
constituição vigente, pode ser exercitado via de defesa (difuso), incidentur tantum, por todos os juízes, com efeitos inter partes. (STJ,
1ª. T., ROMS nº. 746/RJ, Rel. Min. Milton Luiz Pereira, Diário da Justiça, Seção I, 05/10/93, p. 22.451. RSTJ 63/137).
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Giorgis, José Carlos Teixeira, A Lide como categoria comum do processo, p. 11, Lejur, Porto Alegre, 1.991;
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PRORROGAÇÃO OU MODIFICAÇÃO DA
COMPETÊNCIA ABSOLUTA
Gelson Amaro de Souza
Mestre em direito e doutorando pela PUC em Direito Processual Civil.
Ex-diretor da Faculdade de Direito (Toledo).
Professor de Direito Processual Civil nos cursos de Graduação da AET – Pres. Prudente e
Pós-graduação da Faculdade de Direito da FIO (Ourinhos e Advogado em Presidente Prudente-SP.
Procurador do Estado de São Paulo (aposentado).
RESUMO
A presente pesquisa destina-se ao estudo da prorrogação competência. Sabe-se
que de regra somente se prorroga a competência relativa. Sabendo-se que em matéria
de direito sempre há de existir exceção, buscou-se pesquisar a possibilidade de prorrogação da competência absoluta frente ao nosso sistema processual positivo.
Palavras-chave: Competência, Prorrogação, Modificação, Competência absoluta.
1.
NOÇÕES PRELIMINARES
O Estado, desde os primórdios da civilização, preocupou-se com as lides,
que existiram entre as civilizações e, por isso, não demorou muito para atrair
para si o poder de solucionar os conflitos de interesses, que mais tarde passaram a ser conhecidos como lide, categoria processual,1 consistente no conflito
de interesse qualificado por uma pretensão resistida, na conhecida frase de Carnelutti.
Para a solução desses conflitos, criou-se a jurisdição e, como meio de garantir
o acesso a esta, apareceu o direito de ação. O direito de ação, atualmente, é reconhecido como realidade inegável. Sem se pretender estudar aqui a natureza do direito de ação, certo é que esse direito existe e se apresenta com força total em todas as nações civilizadas e juridicamente evoluídas. Trata-se de um direito constitu-
2
3
4
ARRUDA ALVIM, J,M., Competência… Revista de Processo-Repro, 24/21
O assunto foi desenvolvido mais amplamente em nosso “Curso de Direito Processual Civil”, 2ª edição. Pres.
Prudente: Datajuris, 1998.
SANTOS, Moacyr Amaral, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, Volume, I, p.198. Editora Saraiva, São
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cionalmente assegurado no Brasil, através do artigo 5.º XXXV, da CF.
Na impossibilidade de que todas as causas fossem julgadas por um só juiz, o
Estado moderno se viu na contingência de distribuir a prestação jurisdicional entre
vários órgãos. Cada um desses órgãos passou a ter a sua esfera de atribuições que se
convencionou chamá-la de competência.
No sentir de ARRUDA ALVIM (1.981), “… no Poder Judiciário cada órgão jurisdicional é significativo de uma individualidade, sendo, portanto, um poder (rectius. função) realmente subdividido em órgãos. Cada órgão fala por si e, enquanto
a um dado órgão está afeta determinada causa”.2
2.
CONCEITO DE COMPETÊNCIA
Conceitua-se a competência como sendo a forma de estabelecer a medida
da jurisdição, ou simplesmente, medida da jurisdição. Os mais renovados doutrinadores apregoam que competência é a forma de limitar a jurisdição ou, em
outros termos, é o limite da jurisdição. No entanto, existe entendimento de que
a jurisdição é una e, por assim ser, não comporta divisão e nem limitação. Assim,
a competência é apenas a forma de distribuição das atribuições para o exercício
da função jurisdicional.3
Pensa-se que, neste particular, tem razão MOACYR AMARAL SANTOS
(1.997)4, ao afirmar, tratar-se de distribuição de causas por vários órgãos, conforme as suas atribuições. Pensa-se que a jurisdição não pode sofrer limites e nem
divisão, o que se limita e se divide são as atribuições dos órgãos que vão exercer
a jurisdição.
Preferimos conceituar competência como limite e repartição das atribuições ao exercício da jurisdição. A jurisdição é una e não se divide, apenas o seu
exercício é limitado, dividido e distribuído segundo as normas da competência.
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3.
n.
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FONTES DA COMPETÊNCIA
Enquanto a fonte principal da jurisdição é a investidura no cargo de julgador ou
na função jurisdicional, a competência, por sua vez, tem como fonte a norma jurídica.
Somente a norma jurídica poderá atribuir competência aos órgãos jurisdicionais. Estas
normas poderão ser constitucionais, especiais ou ordinárias, sendo que estas últimas
poderão ser codificadas ou esparsas. A fonte da competência somente poderá ser a
norma jurídica, jamais a vontade ou escolha das partes. Estas quando autorizadas a elegerem o “foro” competente, o fazem com amparo na norma jurídica. As partes não
criam competência, apenas elege entre aquelas autorizadas pela norma.
3.1. Norma constitucional
A principal fonte de competência é a norma constitucional, visto que as demais normas a ela devem estar adstritas e com ela concordantes. A Constituição Federal é norma subordinante, enquanto as demais são subordinadas.
A competência prevista na Constituição federal não pode ser alterada por lei
infraconstitucional, seja ela ordinária ou especial, qualquer seja esta, codificada ou
esparsa. Em regra, a norma constitucional traça apenas as diretrizes e a norma infraconstitucional seguindo estas diretrizes estabelece e define a competência de cada
órgão jurisdicional. Todavia, mais casos existem em que a Carta Maior vai além das
diretrizes e ela mesma já estabelece e define a competência. Exemplos desta competência encontram-se nos artigos 102, 105, 108, 109, 114, 118, 124 e 125 da CF.
3.2. Norma codificada
A segunda principal e geral fonte da competência é o nosso Código de Processo
Civil. Trata-se de uma lei ordinária e codificada e que, por isso, a chamamos de Código.
É no Código de Processo Civil que se encontra o tratamento geral da competência como
pode ser visto de forma mais abrangente nos artigos 86 até 124 e depois no artigo 575.
3.3. Normas esparsas
Restam ainda algumas previsões através de leis esparsas e que se encontram
5
6
Em nosso livro “DO VALOR DA CAUSA” sustentamos com apoio em boa doutrina que a competência que tem
por base o valor da causa é absoluta, nada obstante a dicção da lei. Cf. Do Valor da causa, p. 23 e seguintes. Em
se entendendo que a competência em razão do valor da causa é absoluta, já se depara com a primeira possibilidade de prorrogação no artigo 111, do CPC.
O eminente prof. Humberto Theodoro Junior, aponta em seu livro Curso de processo civil, 35ª edição, vol. I,
págs. 163-164, n° 174, outros casos de prorrogação legal, mas não deixou expresso se nestes poderia incluir ca-
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fora do âmbito do Código de Processo Civil regulando a competência em casos específicos.
4.
CLASSIFICAÇÃO DA COMPETÊNCIA
A competência tem recebido da doutrina as mais variadas classificações, como
competência interna e internacional, competência concorrente ou subsidiária, relativa ou absoluta entre outras. Para o presente estudo, analisar-se-á somente essa última classificação.
4.1. Competência absoluta e relativa
Quanto à alterabilidade da competência, os autores costumam classificá-la
como absoluta e relativa. É generalizado o entendimento de que somente se prorroga a competência relativa e que a competência absoluta não se prorroga. Mas
como em direito sempre aparece exceção, pensa-se que para essa afirmação também existe exceção. Parece que o Código de Processo Civil, mesmo sem ser expresso nesse sentido, acaba por permitir a prorrogação ou a modificação da competência absoluta, como será visto mais abaixo.
Dizem que é absoluta a competência que não pode ser alterada ou prorrogada por vontade das partes e nem o será por vontade de qualquer outra pessoa, como
o juiz, o Ministério Público quando atua como fiscal da lei etc. É aquela definida em
lei como improrrogável pela vontade das partes ou que pela natureza da causa ou
de função não permite alteração. A competência, em razão da matéria e da hierarquia, é improrrogável por convenção das partes, diz o art. 111, CPC. A lei, neste ponto, afirma que não se prorroga por convenção das partes, mas a verdade é que, de
regra, não se prorroga por nenhum outro expediente, quer pela vontade das partes,
quer por iniciativa do juiz ou de terceiros. Todavia, em outros casos excepcionais poderá prorrogar-se, como será visto mais à frente.
7
8
A Professora Teresa Arruda Alvim Wambier, em 09/10/2002, durante aula ministrada no curso de pós graduação
em Direito Processual Civil II, na PUC-SP, em seu excelente magistério ensinou que o julgamento proferido por
juizo ou foro incompetente é caso nulidade e que todos as espécies que comportam ação rescisória previstos
nos artigos 485 do CPC, são casos de nulidade ou anulabilidade. Admite que ficam fora do alcance dessa norma somente os casos de julgamento inexistente que poderão ser atacados por via de ação anulatória prevista
no artigo 486, do CPC. Em outro local assim expressou: “A ação rescisória, a seu turno, objetiva atingir, por meio
da desconstituição da coisa julgada, a nulidade da sentença”. In Nulidades do processo e da sentença, p. 355,
4ª edição. São Paulo: RT. 1998.
FIDELIS DOS SANTOS, Ernane. Manual de direito processual civil. 4ª edição. Vol. 1°, pág. 147-148. No mesmo sentido é a lição de WAMBIER, Luiz Rodrigues, ALMEIDA, Flávio Renato Correia de, e TALAMINI, Eduardo,
in Curso avançado de processo civil. Vol. 1. pág. 92. São Paulo: RT. 1998.
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MODIFICAÇÃO OU PRORROGAÇÃO DA COMPETÊNCIA
Os artigos 102 a 111 do CPC tratam da modificação da competência. Nesse local, não se encontra previsão expressa para a prorrogação da competência absoluta.
Cuida a norma processual apenas da prorrogação da competência relativa.
O artigo 102 faz referência à modificação da competência em razão do valor e
do território e a doutrina entende tratar-se de causas de competência relativa.5
Já o artigo 111, do CPC, afirma que a competência, em razão da matéria e da hierarquia, é inderrogável (improrrogável, imodificável etc.) por convenção das partes. A lei
proíbe a convenção (acordo) entre as partes, deixando em aberto a questão para outras
hipóteses que não seja a convenção das partes. Melhor dizendo, não se permite a modificação por convenção das partes, mas não a proíbe por disposição da própria lei.6
Como a lei restringe a proibição da prorrogação ou modificação apenas à convenção das partes, deixa em aberto a possibilidade de haver prorrogação ou modificação em situação diferente que não seja a simples convenção das partes.
6.
VALIDADE DA SENTENÇA DO JUÍZO ABSOLUTAMENTE INCOMPETENTE
O julgamento proferido no juízo absolutamente incompetente não é só por
isso nulo ou anulável.7 É julgamento que produz efeitos e será apenas rescindível, na
forma do art. 485 e seguintes, por ação rescisória, no prazo de dois anos (art. 495,
CPC) e, passado esse prazo, nem rescisão será mais possível.
Expressiva, nesse particular, é a lição de FIDELIS DOS SANTOS e que merece
transcrição como segue:
A sentença não sujeita a recurso se acoberta pela coisa julgada,
tornando-se imutável e indiscutível (art. 467).
A coisa julgada faz, portanto, definitiva a decisão, com plena força de nos limites da lide e das questões decididas (art. 468). Isto
quer significar que a ocorrência de coisa julgada sana todas as
nulidades processuais, inclusive a que decorre de incompetência
absoluta. Daí, se a decisão for proferida por órgão jurisdicional,
mas absolutamente incompetente, ter ela plena eficácia, podendo
adquirir imutabilidade definitiva, só rescindível pela ação rescisória (art. 485, II) no exíguo prazo de dois anos (art. 495).8
10 FIDELIS DOS SANTOS, Ernane. Manual de direito processual civil. 4ª edição. vol. 1°, pág. 145.
11 THEODORO JUNIOR Humberto. Curso de direito processual civil. 35ª edição. Vol. I, pág. 159. Rio: Forense,
2000 e também número 5 acima.
12 GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel e ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos. Teoria geral do
processo. 11ª edição, p. 239.
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Em verdade, em se tratando de matéria tipicamente processual, não existe vício de nulidade e nem anulabilidade em sentido estrito, podendo a sentença ser
apenas rescindível no prazo previsto no artigo 495 que é de dois anos e, após o decurso desse prazo, nem ação rescisória será mais possível.9
Tanto isso é verdade que a sentença rescindível poderá ser executada e nem
a ação rescisória terá força para impedir tal execução conforme ressoa a norma expressa do artigo 489, do CPC. Assim, a sentença, ainda que rescindível, poderá ser
executada normalmente.
Em sendo a sentença proferida por juízo absolutamente incompetente, passível de execução, a questão da competência se desloca para o processo de execução
e quem será o juízo competente para a execução da sentença proferida no juízo absolutamente incompetente para o processo de conhecimento? Essa questão será
analisada no item seguinte.
7.
PRORROGAÇÃO DA COMPETÊNCIA ABSOLUTA
Essa afirmação, por certo, causará estranheza à primeira vista, em razão de que
de formas genérica sempre se ensinou, se falou e se escreveu que a incompetência
absoluta não pode ser prorrogada, mas uma análise mais cuidadosa da legislação
processual indicará essa possibilidade sem maiores dificuldades.
Uma análise mais pormenorizada da sistemática processual leva à conclusão de
ser possível haver a prorrogação ou mesmo a modificação da incompetência absoluta.
A lei não foi explícita em relação à prorrogação ou modificação da competência absoluta, fazendo referência expressa somente em relação à competência relativa.
Analisando a questão, FIDELIS DOS SANTOS,10 diz que a competência é absoluta, quando não pode ser modificada nem por vontade das partes, nem por conexão ou continência. Vê-se que o esse eminente professor não fecha as portas para a
possibilidade de modificação ou prorrogação em outras hipóteses; diz que a competência não pode ser modificada apenas nos casos mencionados.
Já THEODORO JUNIOR,11 diferentemente, afirma que absoluta é a competência insuscetível de sofrer modificação, seja pela vontade das partes, seja pelos motivos legais de prorrogação (conexão ou continência de causa). Nota-se que esse reverenciado autor separa a prorrogação ou modificação da competência em duas hipóteses bem diferentes, sendo uma por vontade das partes e outra pela via legal. No
entanto, não limitou a segunda hipótese aos casos dos artigos 102, 104, do CPC
apontando outras hipóteses de prorrogação legal.
13 FIDELIS DOS SANTOS. Ernane, obra citada, págs. 147-148. Contra: entendendo que a coisa julgada não sana a
nulidade absoluta, Teresa Arruda Wambier, aula proferida em 09-10-2002, no curso de pós-graduação na PUCSP.
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Entendem que a competência absoluta não pode jamais ser modificada, GRINOVER, DINAMARCO E ARAÚJO CINTRA.12 O que parece a lei proibir é a prorrogação ou modificação da competência pela vontade das partes, não quando por disposição de lei. Ora, se é a lei que indica a competência absoluta, ela poderá indicar também casos de prorrogação ou modificação desta mesma competência, quer de forma direta ou mesmo de forma indireta.
Como foi visto acima, a sentença, proferida por juízo absolutamente incompetente, poderá ser executada normalmente (art. 489, CPC), apesar de ser rescindível. Quer isto dizer que, enquanto não rescindida a sentença, ela poderá ser executada normalmente como qualquer outra (art. 489, do CPC).
Em se podendo executar tal sentença, vem à tona a questão da competência
para essa execução. O art. 575, II, do CPC, aponta que essa competência é do juízo
que proferiu a sentença.
Diz a norma processual estampada no artigo 575, do CPC.
Art. 575. A execução, fundada em título judicial, processar-se-á
perante:
I – os tribunais superiores, nas causas de sua competência originária;
II – o juízo que decidiu a causa no primeiro grau de jurisdição;.
Pela disposição da lei, é possível concluir que a competência para o processo
de execução é do juízo que proferiu a sentença exeqüenda, muito embora fosse ele
até então absolutamente incompetente. Mesmo no caso de ser ele absolutamente
incompetente para o processo de conhecimento, uma vez proferida a sentença, e
ocorrendo o seu trânsito em julgado, sana todos os vícios processuais como ensina
FIDÉLIS DOS SANTOS13 e, com isso. o juízo que era incompetente para o processo
de conhecimento passa agora a ser competente para o processo de execução ou
mesmo a execução lato sensu.
Em sendo considerado agora absolutamente competente14 para a execução da
sentença na forma do artigo 575, II, do CPC, aquele mesmo juízo que antes era absolutamente incompetente para o processo de conhecimento, parece não mais poder haver dúvida de que se trata de prorrogação da competência absoluta.
Aquele juízo que era absolutamente incompetente até a prolação da sentença,
tornou-se absolutamente competente para a execução da mesma sentença que proferiu. Só pode ter ocorrido o fenômeno da prorrogação da competência absoluta.
Interessante notar que o juízo que antes era absolutamente competente, deixou de sê-lo para executar a sentença. Como não foi nesse juízo que se proferiu a
sentença, nele esta não poderá ser executada. Para o processo de conhecimento, era
o juízo absolutamente competente, como ali não se proferiu a sentença, tornou-se
absolutamente incompetente. O outro que era absolutamente incompetente para o
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processo de conhecimento; agora, em razão da sentença proferida, tornou-se absolutamente competente para o processo de execução.
Nem se pode dizer que, por se tratar de processo de execução, é outro processo e que por isso se estaria afastado do processo de conhecimento. Por primeiro, porque o artigo 575, II, do CPC vincula a competência para a execução ao mesmo juízo que proferira a sentença. Por último, porque nem toda execução exige processo executivo próprio, como acontece nos casos de sentenças executivas lato sensu. Nos casos de sentenças mandamentais e executivas lato sensu, a execução é considerada uma fase do mesmo processo de conhecimento e para o cumprimento dessa sentença, não se pode ter dúvida de que a competência será do juízo que a proferiu, ainda que este juízo fosse até então absolutamente incompetente. Tem-se, por
isso, que se trata de caso especial de prorrogação da competência absoluta para execução da sentença de juízo até então incompetente para proferi-la.
8.
MODIFICAÇÃO DA COMPETÊNCIA ABSOLUTA
Além da prorrogação da incompetência vista até agora, pode ocorrer também
a modificação da competência absoluta. Consoante a norma expressa do artigo 87
do CPC, a competência é determinada e se fixa no momento em que a ação é proposta. É o que se convencionou chamar de perpetuation jurisdicion. No entanto, a
parte final do mesmo artigo abre exceção para os casos em que se suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou hierarquia, exatamente situações essas que indicam tratar de competência absoluta.
O art. 87 do CPC, em sua parte final, está autorizando a modificação da competência quando ocorrer a supressão do órgão judiciário e, nesse caso, a modificação se dá seja caso de competência relativa, seja de competência absoluta. Havendo
supressão do órgão judicante, não se vê como negar a possibilidade de modificação
porque do contrário o processo jamais seria julgado.
Ainda, o mesmo artigo, em sua última parte, fala em modificação da competência quando essa for alterada em razão da matéria ou da hierarquia. É permissão
expressa de modificação da competência quando se alterar a competência do órgão
julgador em razão da matéria ou da hierarquia, exatamente quando essas circunstâncias são indicativas de competência absoluta. Apenas é de se esclarecer que essa alteração da competência absoluta em razão da matéria ou da hierarquia autorizada
pelo art. 87, parte final, deve ser por lei e não por vontade das partes ou do juiz. Mas
que se trata de modificação de competência absoluta, se trata.
CONCLUSÕES
15 o assunto foi tratado pormenorizadamente em nosso Curso de Direito Processual Civil, págs. 275 e seguintes.
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Feitas estas colocações, podem-se extrair algumas conclusões:
1. Para o perfeito exercício da atividade jurisdicional, a pronta resposta à pretensão do jurisdicionado, o Estado necessita de organização e distribuição
das atividades jurisdicionais através da competência:
2. A vida contemporânea cada vez mais exige rapidez na solução jurisdicional e, por isso, cada vez mais, amplia-se a divisão da competência:
3. A competência, quando qualificada de relativa, somente a parte interessada poderá argüi-la e por exceção, ficando sujeita à preclusão:
4. No caso de não haver a propositura de exceção de incompetência e em se
tratando de incompetência relativa, ocorrerá a prorrogação da competência, não se podendo depois o interessado apresentar reclamação alguma:
5. Qualificada que seja a competência, de absoluta, qualquer das partes poderá alegá-la e o juiz deve reconhecê-la de ofício:
6. Reconhecida a incompetência durante o processo, o juiz determinará a remessa dos autos ao foro ou juízo reconhecido como competente e somente os atos decisórios poderão ser anulados. Poderão ser anulados os
atos que se encontram entre os decisórios e não necessariamente anulados A nulidade atinge alguns atos decisórios, mas não todos os atos decisórios.
Ainda que se entenda que, em sua maioria, os atos decisórios devem ser
anulados, pelo menos um ato haverá de prevalecer, que é aquele ato decisório que reconhece a incompetência. Pelo menos este ato deve prevalecer.15
7. No caso de incompetência absoluta. Não sendo esta alegada e nem reconhecida pelo juiz, havendo julgamento com o trânsito em julgado da sentença, esta será válida e eficaz, sendo tão-somente rescindível:
8. Enquanto não rescindida a sentença, ela poderá ser executada e, para essa
execução, torna-se absolutamente competente (competência funcional) o
juízo que a proferiu em primeiro grau (art. 575, II, CPC):
9. Em sendo absolutamente competente para a execução, o juízo que era até
então absolutamente incompetente para o processo de conhecimento,
tem-se por prorrogada a competência absoluta. Isto é, o juízo antes absolutamente incompetente, após proferir sentença, tornou-se agora absolutamente competente para executá-la por força do artigo 575, II, do CPC.
10. Nos casos em que houver supressão do órgão judiciário até então competente, a competência sofrerá modificação, seja ela absoluta ou relativa, e o processo deve ser remetido ao novo órgão, agora, reconhecido competente.
11. Também nos casos em que se alterar a lei da competência sobre a matéria
ou sobre a hierarquia, haverá modificação da competência absoluta na forma do art. 87 do CPC, parte final.
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Praticamente nenhum site do Poder Judicial em Internet definiu a finalidade de acumulação e difusão da informação. As Leis de Transparência de Michoacán e Sinaloa (México) obrigam a fazer essa definição. A referência
mais relevante é a Recomendação n. R(95)11 do Comitê de Ministros da União Européia:
- facilitar o trabalho para as profissões jurídicas, proporcionando-lhes dados rapidamente, completos e atualizados;
- informar a toda pessoa interessada em uma questão de jurisprudência;
- fazer públicas mais rapidamente as novas resoluções, particularmente nas matérias de direito em evolução;
- fazer público um número maior de decisões que afetem tanto ao aspecto normativo como ao fático (quantum das indenizações, das pensões alimentícias, das penas etc);.
- contribuir para a coerência da jurisprudência (segurança jurídica – “Rechtssicherheit”) mas sem introduzir rigidez;
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A Carta de Herédia
(Regras mínimas para a difusão
de informação judicial em internet)
Mário Antônio Lobato de Paiva
Assessor da Organização Mundial de Direito e Informática.
Membro da Federação Iberoamericana de Associações de Direito e Informática.
Membro da Associação de Direito e Informática do Chile.
Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática.
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico.
E-mail: [email protected]
Em julho de 2003, o Instituto de Investigación para la Justicia Argentina com
o apoio da Corte Suprema de Justiça da Costa Rica e patrocínio da International Development Research Centre do Canadá reuniu, em Heredia, na Costa Rica, representantes de diversos países da América Latina para discutir o tema “Sistema Judicial e
Internet” com fulcro de analisar as vantagens e dificuldades dos sites dos poderes judiciais na rede, os programas de transparência e a proteção dos dados pessoais.
Nessa reunião, que contou com a participação de diversos ministros e magistrados de cortes superiores de vários países da América do Sul e Central, foram desenvolvidas diversas teses e exposições que culminaram na formulação do mais importante documento já elaborado sobre a difusão de informação judicial em internet, estabelecendo-se regras mínimas a serem adotadas pelos órgãos responsáveis
por esta divulgação.
Referidas regras têm o fulcro de servir como modelo a ser adotado pelos tribunais e instituições responsáveis pela difusão de jurisprudência de todos os países
da América Latina. Suas premissas auxiliarão os tribunais no trato de dados veiculados em sentenças e despachos judiciais em internet sem que haja prejuízos à transparência de suas decisões.
Como palestrante do evento e um dos elaboradores das regras juntamente
com os demais, fomos autorizados a propalar a Carta de Herédia no Brasil, entendendo ser extremamente útil para evolução das relações estabelecidas pela informática e sistema judicial o debate e a utilização destas regras para o aprimoramento da
Justiça eletrônica que deve ser corretamente usufruída sob pena de causar sérios
prejuízos aos jurisdicionados.
Segue abaixo a Carta de Herédia com alguns comentários de nossa autoria:
Regras de Herédia
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[Finalidade]
Regra 1. A finalidade da difusão em Internet das sentenças e despachos judiciais será:1
(a) o conhecimento da informação jurisprudencial e a garantia da igualdade
diante da lei;
(b) para procurar alcançar a transparência da administração da justiça.
Comentário: A regra acima deixa clara a necessidade da permanência da publicidade e transparência das decisões judiciais estabelecidas pelas legislações da grande
maioria dos Estados latino americanos. No Brasil, o artigo 5º. da Constituição Federal de
1988 estatui regra específica quanto à propagação de seus atos, assegurando que:
IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes;
Regra 2. A finalidade da difusão em Internet da informação processual será
garantir o imediato acesso das partes, ou dos que tenham interesse legítimo na causa, a seus andamentos, citações ou notificações.
Comentário: A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, dá
ênfase ao princípio da publicidade dos atos judiciais quando diz que:
Art. 5º - XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações do seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou
geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (grifado);
2
3
4
O fundamento desta regra é a Lei relativa ao limite jurídico das tecnologias da informação (de Québec, Canadá), artigo 24. “A utilização de funções de investigação extensiva em um documento tecnológico que contém
informações pessoais e que, por uma finalidade particular, se torna público, deve ser restrita a essa finalidade”.
A regra é inspirada no artigo 8.1 da Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho da Europa assim
como nas leis que definem dados sensíveis na Argentina (art. 2), Chile (art.2.g.), Panamá (art. 1.5.), Paraguai
(art. 4), e nos projetos de Costa Rica, Equador, México e Uruguai. Ver também a Recomendação 01-057 de 29
de novembro de 2001, da Comissão Nacional da Informática e das Liberdades:
(1) os editores de bases de dados e decisões judiciais, livremente acessíveis em sítios de Internet, se abstenham
de fazer figurar os nomes e os domicílios das partes e das testemunhas.
(2) os editores de bases de dados de decisões judiciais acessíveis em Internet, mediante pagamento por assinatura, se abstenham de fazer figurar os domicílios das partes e das testemunhas.
A proteção das crianças e dos adolescentes é unânime em todas as legislações da América Latina. Muitos países da região têm suas próprias categorias de dados sensíveis, outros os estão desenvolvendo em novos pro-
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Verifica-se que a publicidade das informações processuais em internet tem
uma serventia sem precedentes para todos aqueles que fazem parte do contexto jurídico. Para advogados as informações são necessárias para fundamentação de petições com jurisprudência dos tribunais, consulta de processos sem que haja necessidade de se dirigir à vara, opção pelo peticionamento eletrônico, informações institucionais que permitam saber quem são os julgadores, dentre outras. Para as partes
que, independentemente de qualquer ajuda, possam consultar seus processos para
saber o andamento ou tirar dúvidas, e para o judiciário, que expor de uma forma clara e transparente o teor de suas decisões e de seu próprio trabalho institucional.
[Direito de oposição do interessado]
Regra 3. Será reconhecido ao interessado o direito de se opor, mediante petição prévia e sem gastos, em qualquer momento e por razões legítimas próprias de
sua situação particular, a que os dados que lhe sejam concernentes sejam objeto de
difusão, salvo quando a legislação nacional disponha de modo diverso. Em caso de
se decidir, de ofício ou a requerimento da parte, que dados de pessoas físicas ou jurídicas estejam ilegitimamente sendo difundidos, deverá ser efetuada a exclusão ou
retificação correspondente.
Comentário: O tratamento de dados pessoais deve ser feito de forma segura, respeitando os direitos à intimidade e privacidade do cidadão. No Brasil ainda
não temos leis de proteção de dados e, por isso, devemos nos utilizar, por enquan5
6
Por exemplo, a Lei sobre a Síndrome de Imunodeficiência Aquirida – SIDA (AIDS) (Argentina) – Artigo 2 (d) e (e)
– restringe a publicação dos nomes de portadores de HIV; a Lei sobre Expressão e Difusão do Pensamento (República Dominicana), “Artigo 41. Fica proibido publicar textualmente a denúncia e as demais atas de pronúncia criminal ou correcional antes que tenham sido lidas em audiência pública”e outras Leis de Imprensa restringem a publicação de acusações penais (por exemplo, México (art. 9) que inclui divórcios e investigação de paternidade.
Ver Acórdão do Pleno da Suprema Corte de Justiça da Nação 9/2003 (27 de maio de 2003) que estabelece os órgãos,
critérios e procedimentos para a transparência e acesso à informação pública desse alto tribunal:
Artigo 41. As sentenças executórias da Corte Suprema têm caráter de informação pública e serão difundidas através
de qualquer meio, seja impresso ou eletrônico, ou por qualquer outro que seja permitido por inovação tecnológica.
Artigo 42. Com o fim de respeitar o direito à intimidade das partes, ao se fazerem públicas as sentenças, omitir-se-ão seus dados pessoais quando constituam informação reservada em termos do disposto nas diretrizes
que a Comissão expeça sobre o caso, sem prejuízo de que aquelas possam, dentro da instância seguinte à desta Corte e até antes de proferir-se a sentença, opor-se à publicação de referidos dados, em relação a terceiros,
o que provocará que adquiram eles o caráter de confidenciais.
Em todo caso, durante o prazo de doze anos contado a partir da entrada em vigor deste Acórdão, nos termos
do previsto nos artigos 13, inciso IV, e 15 da Lei, os autos relativos a assuntos de natureza penal ou familiar
constituem informação reservada, em razão do que nos meios em que se façam públicas as sentenças respectivas deverão ser suprimidos todos os dados pessoais das partes.
Nos assuntos da competência deste Alto Tribunal, cuja natureza seja diversa da penal e da familiar, o primeiro
acórdão que neles se profira deverá esclarecer às partes o direito que lhes assiste de opor-se, em relação a terceiros, à publicação de seus dados pessoais, com o entendimento de que a falta de oposição configura seu consentimento para que a sentença respectiva se publique sem supressão de dados.
As referidas restrições à difusão das sentenças emitidas por este Alto Tribunal não operam conseqüências a
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to, de mecanismos constitucionais para viabilizar a proteção desses direitos. Como,
por exemplo, o instituto do habeas data assegurado no artigo 5º. Inciso LXII que
permite ao indivíduo mecanismo:
a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;
b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo
sigiloso, judicial ou administrativo;
Além disso, a Carta Magna também assegura o direito de petição a todos os
que dele necessitam para defesa de seus direitos:
7
quem, nos termos da legislação processual aplicável, esteja legitimado para solicitar-lhes cópia.
A Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
da OEA utiliza o conceito de “pessoas voluntariamente públicas”: “10. As leis de privacidade não devem inibir
nem restringir a investigação e difusão de informação de interesse público. A proteção da reputação deve estar garantida somente através de sanções civis, nos casos em que a pessoa ofendida seja um funcionário público ou pessoa pública ou particular que se tenha envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público.
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Ademais, nestes casos, deve provar-se que na difusão das notícias o comunicador teve intenção de causar dano
ou pleno conhecimento de que se estava difundindo notícias falsas ou se conduziu com manifesta negligência
na busca da verdade ou falsidade das mesmas”.
Praticamente coincide com o Artigo 8.5 da Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e é coerente com a maioria das leis nacionais sobre registros penais e com a jurisprudência constitucional.
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Art. 5 XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou
contra ilegalidade ou abuso de poder;
[Adequação ao fim]
Regra 4. Em cada caso, os motores de busca se ajustarão ao alcance e finalidades com que se difunde a informação judicial.2
Comentário: Através das palestras realizadas no Seminário e de nossa própria exposição, entendemos que a busca livre realizada nos sites de tribunais, apesar
de trazer uma publicidade profunda dos processos e julgamentos acaba também trazendo sérios prejuízos à intimidade e privacidade daqueles que procuram as cortes
judiciais. Na oportunidade, demonstramos um desses prejuízos ocorridos na Justiça
do Trabalho brasileira; justamente na hora da admissão do empregado na empresa
o empregador se valia da pesquisa livre disposta no site do tribunal do trabalho para
vetar o acesso ao emprego entendendo que o empregado já tivesse ajuizado ação na
justiça do trabalho não poderia fazer parte de seu quadro de empregados por já estar “viciado”. Por isso, a necessidade da adequação dos motores de busca vedando
em alguns casos os tipos de busca que trazem prejuízo à intimidade e privacidade
do cidadão e, em outros, resguardando o anonimato dos litigantes.
[Equilíbrio entre transparência e privacidade]
Regra 5. Prevalecem os direitos de privacidade e intimidade, quando tratados dados pessoais que se refiram a crianças, adolescentes (menores) ou incapazes; ou assuntos familiares; ou que revelem a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a participação em sindicatos; assim como o tratamento dos dados relativos à saúde ou à sexualidade;3 ou
vítimas de violência sexual ou doméstica; ou quando se trate de dados sensíveis
ou de publicação restrita segundo cada legislação nacional aplicável4 ou tenham
sido considerados na jurisprudência emanada dos órgãos encarregados da tutela jurisdicional dos direitos fundamentais.5
Neste caso, se considera conveniente que os dados pessoais das partes, coadjuvantes, aderentes, terceiros e testemunhas intervenientes sejam suprimidos, anonimizados ou inicializados6, salvo se o interessado expressamente o solicite e seja
pertinente de acordo com a legislação.
Comentário: Equilíbrio foi a palavra-chave do evento. A busca de uma forma
9
Poderiam também considerar-se os editais (por exemplo, são comuns os editais em que se cita a um dos pais
para autorizar a crianças ou adolescentes a viajar ao exterior do país, os editais contêm os dados pessoais das
crianças e dos pais, e ademais estão Internet, nos sites de internet de jornais, com facilidade de busca.
10 Para o caso das pessoas jurídicas (morais) busca-se evitar difundir informação sobre propriedade industrial ou
segredos comerciais. No caso dos modi operandi, o fundamento está em comentários realizados em relação
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de harmonizar os institutos da intimidade e privacidade com a publicidade das decisões judiciais foi o desafio principal do evento. Daí a recomendação de anonimato e supressão do nome das partes envolvidas em litígios, dentre outras medida que
tendam a resguardar direitos constitucionalmente protegidos como o da intimidade
estatuído no artigo 5º. Inciso X que dispõe:
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação;
Regra 6. Prevalecem a transparência e o direito de acesso à informação pública quando a pessoa concernente tenha alcançado voluntariamente o caráter de
pública e o processo esteja relacionado com as razões de sua notoriedade.7 Sem embargo, consideram-se excluídas as questões de família ou aquelas em que exista uma
proteção legal específica.
Nestes casos, poderão manter-se os nomes das partes na difusão da informação judicial, mas se evitarão os domicílios ou outros dados identificatórios.
Comentário: O artigo ressalta a importância da transparência judicial que
deve ser mantida de acordo com as necessidades coletivas dos jurisdicionados,
sendo regida pelo interesse público em detrimento do particular desde que respeite a intimidade do afetado. No caso específico diz respeito a pessoa notória e
pública onde o interesse público na divulgação dos fatos relacionados é necessário, evitando, no entanto, a publicidade de dados irrelevantes como o domicílio dos litigantes.
Regra 7. Em todos os demais casos, se buscará um equilíbrio que garanta ambos os direitos. Este equilíbrio poderá instrumentalizar-se:
(a) nas bases de dados de sentenças, utilizando motores de busca capazes de
ignorar nomes e dados pessoais;
(b) nas bases de dados de informação processual, utilizando como critério de
busca e identificação o número único do caso.
Comentário: A regra especifica as medidas a serem adotadas pelo tribunais
no sentido de assegurar a publicidade e resguardar os direitos de intimidade dos litigantes através de procedimentos que deixem no anonimato o nome das partes
bem como seus dados pessoais. A criação de número que identifique a lide, podendo, então, a parte interessada ter informações sobre o processo desde que conheça
a numeração, evitando, assim, exposição indiscriminada dos litigantes para fins abusivos e contrários ao direito do país
Regra 8. O tratamento dos dados relativos a infrações, condenações penais
ou medidas de segurança somente poderá efetuar-se sob controle da autoridade pública. Somente poderá ser realizado um registro completo de condenações penais
sob o controle dos poderes públicos.8
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Comentário: Referidos casos foram também amplamente discutidos no
seminário por trazerem todo tipo de segregação social quando descobertos ou
dispostos de forma pública a todos. Por isso, a necessidade de ser mantido um
controle por autoridades públicas para que o controle, manuseio e armazenamento desse dados são sejam utilizados de forma indevida e prejudicial ao afetado.
Regra 9. Os juízes, quando redijam suas sentenças, despachos e atos,9 farão
seus melhores esforços para evitar mencionar fatos inócuos ou relativos a terceiros;
buscarão somente mencionar os fatos ou dados pessoais estritamente necessários
para os fundamentos de sua decisão, tratando de não invadir a esfera íntima das pessoas mencionadas. Excetua-se da regra anterior a possibilidade de consignar alguns
dados necessários para fins meramente estatísticos, sempre que sejam respeitadas
as regras sobre privacidade contidas nesta declaração. Igualmente se recomenda evitar os detalhes que possam prejudicar pessoas jurídicas (morais) ou dar excessivos
detalhes sobre os modi operandi que possam incentivar alguns delitos.10 Esta regra
se aplica, no pertinente, aos editais judiciais.
Comentário: A regra traz consigo recomendação aos prolatores das decisões
para que tenham maior zelo no ato de redigir decisões, evitando a inserção de dados
dos litigantes que não tenham necessariamente importância para o deslinde da questão.
Regra 10. Na celebração de convênios, com editoriais jurídicos, deverão ser
observadas as regras precedentes.
Comentário: Como a difusão da jurisprudência não é propagada apenas pelos tribunais estendendo-se também a revistas e outros periódicos, recomendamos
a revisão por parte das cortes das autorizações concedidas às editoras no sentido de
que suas publicações sejam adequadas às regras estabelecidas na Carta de Herédia.
[Definições]
Dados pessoais: Os dados concernentes a uma pessoa física ou moral, identificada ou identificável, capaz de revelar informação sobre sua personalidade, suas relações afetivas, sua origem étnica ou racial, ou que se refiram às características físicas, morais ou emocionais, à sua vida afetiva e familiar, domicílio físico e eletrônico,
número nacional de identificação de pessoas, número telefônico, patrimônio, ideologia e opiniões políticas, crenças ou convicções religiosas ou filosóficas, estados de
saúde físicos ou mentais, preferências sexuais ou outras análogas que afetem sua intimidade ou sua autodeterminação informativa. Esta definição se interpretará no
contexto da legislação local sobre a matéria.
Motor de busca: são as funções de busca incluídas nos sites de Internet, dos
Poderes Judiciais, que facilitam a localização e recuperação de todos os documentos
no banco de dados, que satisfaçam as características lógicas definidas pelo usuário,
que possam consistir na inclusão ou exclusão de determinadas palavras ou família
de palavras; datas; e tamanho de arquivos, e todas suas possíveis combinações com
conectores booleanos.
inclusão social
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Pessoas voluntariamente públicas: o conceito se refere a funcionários públicos
(cargos efetivos ou hierárquicos) ou particulares que tenham se envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público (neste caso, se julga necessária a manifestação clara de renúncia a uma área determinada de sua intimidade).
Anonimizar: Todo tratamento de dados pessoais que implique a informação
que se obtenha não poder se associar a pessoa determinada ou determinável.
[Alcances]
Alcance 1. Estas regras são recomendações que se limitam à difusão em Internet ou em qualquer outro formato eletrônico de sentenças e informação processual.
Portanto, não se referem ao acesso a documentos nos cartórios judiciais nem a edições em papel.
Alcance 2. São regras mínimas no sentido da proteção dos direitos de intimidade e privacidade; por isso, as autoridades judiciais, ou os particulares, as organizações ou as empresas que difundam informação judicial em Internet poderão utilizar procedimentos mais rigorosos de proteção.
Alcance 3. Embora estas regras estejam dirigidas aos sites em Internet dos Poderes Judiciais, também são extensivas –em razão da fonte de informação – aos provedores comerciais de jurisprudência ou informação judicial.
Alcance 4. Estas regras não incluem nenhum procedimento formal de adesão
pessoal nem institucional e seu valor se limita à autoridade de seus fundamentos e
sucessos.
Alcance 5. Estas regras pretendem ser hoje a melhor alternativa ou ponto de
partida para obter um equilíbrio entre transparência, acesso à informação pública e
direitos de privacidade e intimidade. Sua vigência e autoridade no futuro podem estar condicionadas a novos desenvolvimentos tecnológicos ou a novos marcos regulatórios.
Herédia, 9 de julho de 2003
Recomendações aprovadas durante o seminário Internet e Sistema Judicial
realizado na cidade de Herédia (Costa Rica), nos dias 8 e 9 de julho de 2003, com a
participação de Poderes Judiciais, organizações da sociedade civil e acadêmicos de
Argentina, Brasil, Canadá, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, México, República Dominicana e Uruguai.
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Da ausência de vedação à adoção por
homossexuais, segundo o ordenamento
jurídico pátrio
Paula Tathiana Pinheiro
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru- ITE.
Orientador: Professor Mestre Doutorando Lucas Pimentel de Oliveira
1.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho é resultado de pesquisa de conclusão de curso, apresentada à banca examinadora da Faculdade de Direito da Instituição Toledo de Ensino
de Bauru, como exigência parcial para a obtenção do grau de bacharel em Direito,
sob a orientação do Professor Lucas Pimentel de Oliveira, o qual, generosamente,
conferiu preciosa colaboração, com pesquisas, críticas e sugestões.
Até pouco tempo, a família era entendida como a união matrimonial entre o
homem e a mulher, com o objetivo essencial de constituir uma prole e educá-la,
concentrando e transmitindo patrimônio. Os filhos havidos fora do casamento, assim como os adotivos, eram discriminados, a ponto de serem denominados de “ilegítimos” e sofrerem uma série de restrições no que se refere ao direito sucessório.
Somente com o advento da Constituição Federal de 1988 é que uma grande
transformação no ordenamento jurídico brasileiro ganhou contorno, alargando-se,
doravante, o conceito de família e sua proteção, consagrando-se a igualdade entre
os cônjuges e as formas de filiação, embora a ignorância popular e o preconceito
continuem presentes no nosso cotidiano.
A sociedade não aceita qualquer comportamento que fuja de seus padrões preestabelecidos, de modo que as relações homoafetivas têm sido colocadas como grupo à
margem da sociedade, com o estereótipo de algo imoral, feio e pecaminoso.
Neste diapasão, buscou-se enfocar um tema que há muito vem integrando discussões no âmbito do Direito de Família, precipuamente frente ao entendimento de
que o legislador se omitiu a respeito.
A homossexualidade é uma realidade, merecendo acolhida pelo Direito, a
quem cabe o exame da questão, bem como a provocação do Estado para a elaboração de mecanismos de proteção e manutenção do núcleo familiar.
Analisando-se o ordenamento jurídico brasileiro, infere-se a existência de direitos de forma igualitária a todos os cidadãos, inclusive com a possibilidade de
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constituição de família, não sendo adequada a redução, ao nível primário de discussão, sobre os “direitos dos homossexuais”, que somente enfatizariam o estabelecimento de diferenciações.
Dentro das limitações necessárias, buscou-se evidenciar os aspectos legais peculiares à medida, de forma a contribuir para o entendimento do instituto que visa
atender, aprioristicamente, aos interesses dos menores, de modo que a preferência
sexual de seus pretendentes se mostre totalmente prescindível.
Que este artigo possa contribuir, de alguma forma, para a melhoria da situação daqueles que aguardam a abolição do preconceito e o reconhecimento estatal
para a formação de suas famílias, bem como para a divulgação e incentivo à medida
da adoção.
2.
A FAMÍLIA NO DIREITO BRASILEIRO VIGENTE
2.1. A família e a Constituição Federal de 1988
A organização da sociedade dá-se em torno da estrutura familiar, e não em torno de outros grupos ou dos indivíduos em si mesmos. Os elementos primordiais da
sociedade não são os indivíduos isoladamente considerados, nem a coletividade
como um todo exclusivo, mas sim, os grupos naturais, como a família.
A família não é uma criação da lei, no sentido jurídico, mas uma revelação do
direito natural, cumprindo ao Estado encará-la como unidade de direito público, legitimá-la e prestigiá-la.
As relações jurídicas entre pessoas consideradas pela lei como parentes, decorrem de laços, vínculos e efeitos apreendidos pelo próprio ordenamento legal.
Supõem direitos e deveres recíprocos, decalcados da fonte normativa, edificando
feixe de vínculos jurídicos que se projetam para todo o ordenamento (FACHIN,
2003, v. 18, p. 03).
Assim, a família pode ser compreendida, genericamente, como o grupo formado
por todas as pessoas enredadas pelo parentesco consangüíneo, de afinidade, ou civil.
Contudo, os aplicadores do Direito não devem se limitar ao reconhecimento
do ordenamento positivado, mas também, a apreciação do conteúdo ético e social
da família, pois nem sempre aquele coincide com este, sendo, muitas vezes, inadequado e injusto.
Outrossim, a evolução social fez com que a família deixasse de ser um núcleo
econômico e de reprodução para ser um espaço de amor, de afeto e de companhei1
A condição do homossexual é regulada, no Brasil, por um processo de discriminação que vai desde o extermínio direto com requintes de crueldade, até manifestações de intolerância no trabalho, na família, na religião,
no atendimento médico, na mídia, nas escolas e universidades. Este processo é ratificado por preconceitos que
ainda hoje mostram os homossexuais como doentes, desviados, pecadores e fora-da-lei (Secretaria de Estado
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rismo. E essa mudança está além das modificações de valores e concepções morais,
associando-se, ainda, a cidadania, no sentido de inclusão de todas as formas de
constituição de família na ordem social e jurídica.
Acompanhando este raciocínio, a Constituição Federal de 1988 introduziu inúmeras modificações no Direito de Família, refletindo as idéias que serviram de base
às Declarações Internacionais de Direitos do Homem, enfatizando o princípio da
isonomia, ao reconhecer a igualdade entre o homem e a mulher, entre os cônjuges
no casamento e entre os filhos, proibindo expressamente as discriminações.
Da mesma forma, o legislador constituinte deu especial e efetiva proteção à
entidade familiar, apontando a íntima relação entre família e sociedade, ao prever,
em seu artigo 226, caput, que esta se sustenta naquela.
Assim, podemos afirmar que, hodiernamente, possuímos um Direito Constitucional de Família, onde a matéria disciplinada no Código Civil de 1916 foi substancialmente alterada, tendo inclusive, muitos de seus dispositivos não recepcionados
pela nova ordem constitucional, redirecionando a jurisprudência, a doutrina e a legislação, em diversos aspectos fundamentais.
As entidades familiares explicitamente referidas, portanto, não podem ser encaradas como se encerrassem numerus clausus. Os conflitos decorrentes das entidades familiares – tanto pessoais, quanto patrimoniais e tutelares – devem ser resolvidos à luz do Direito de família, e não ao direito das obrigações (LÔBO, 2003, v.
26, p. 50).
A principal característica do Direito moderno é a racionalização (prova científica), rompendo com a religião e a ciência, passando a funcionar como grade padrão. É com o Estado Moderno (liberal) que se observa a separação das demais ordens normativas sociais (religiosa, moral, etc.) (FIGUEIR DO, 2002, p. 51).
A legitimação de todos os filhos e o reconhecimento de outras formas de
constituição de família, além do casamento, proporcionaram uma verdadeira revolução, pela qual passamos a vislumbrar as formações das famílias de maneiras diversas, não só pelas contingências da vida, mas também pela própria vontade de seus
componentes.
Atualmente, ao lado do núcleo familiar tradicional, composto pelo pai e pela
mãe, casados entre si e seus filhos, reconhecemos outros modelos, como por exemplo, o de família constituída pela união estável, o da família formada por órfãos, o da
família formada somente pelos cônjuges, o da família formada pelos avós e netos, o
da família monoparental, todas merecendo resguardo pelo Estado.
Pode-se dizer, portanto, que para a configuração de uma entidade familiar, não
mais se exige, como elemento constitutivo, a existência de um casal heterossexual,
com capacidade reprodutiva, pois dela não dispõe a família monoparental. Mesmo
2
A título de demonstração: TJRS, 8ªCC, AI 599075496, rel. Des. Breno Mussi, j. em 17.6.1999 apud PEREIRA,
2003, v. 20, p. 69.
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que se reconheça que o escopo do matrimônio é a união legal entre o homem e a
mulher, para a prática de relações sexuais e a procriação, a ausência de relações não
desconfigura o casamento nem afeta sua higidez, a exemplo do casamento in extremis. A falta de filhos também não enseja a desconstituição do vínculo. Tanto a impotência generandi quanto a concipiendi jamais foram causa de desfazimento do vínculo matrimonial (DIAS, 2000, p. 55).
Ademais, cabe à pessoa natural a livre decisão sobre o planejamento familiar,
fundando-se no princípio da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, competindo ao Estado o fornecimento de recursos educacionais e científicos
para operacionalizar a norma, proibindo-se a atividade coercitiva de qualquer instituição oficial ou privada (CF, art. 226, §7°).
Nesse sentido, salienta Luiz Edson Fachin que:
[...] a tarefa hermenêutica é construtiva, e por isso mesmo crítica.
Nesse patamar da interpretação prospectiva soa relevante eleger
premissas que obstem qualquer possibilidade de retrocesso em relação ao nível de conquistas alcançado pela nova cultura jurídica do Direito Civil. (FACHIN, 2003, v. 18, p. 07).
Dentro desta perspectiva, passemos a analisar o tratamento conferido às
uniões homoeróticas, mormente na questão afeta à capacidade de constituição
de família, dentro da ótica jurídico-interpretativa do ordenamento jurídico pátrio
vigente.
2.2. União homoafetiva
Se havia discriminação sobre as relações heterossexuais sem o selo do casamento, muito mais se pode falar das relações homoafetivas, que têm sido colocadas
como grupo à margem da sociedade1 (PEREIRA, 2003, v. 20, p. 65).
O artigo 226, §3º da Constituição Federal, reconhece como entidade familiar
à união estável, se formada entre um homem e uma mulher, ignorando, assim, a
existência de uniões homoafetivas, o que contraria seus próprios princípios fundamentais, e encobre dissimulada discriminação por orientação sexual.
A referida norma somente poderia ser excluída, entretanto, se houvesse outra
3
4
Sinteticamente, pode ser entendido como o núcleo essencial de que a pessoa humana é “um fim em si mesma, não podendo ser instrumentalizada ou descartada em função das características que lhe conferem individualidade e imprimem sua dinâmica pessoal”. (RIOS, 2002a, p. 484).
Nem se pode olvidar que a vedação à discriminação por orientação sexual está surgindo explicitamente nas
constituições estaduais e leis orgânicas municipais. As Constituições dos Estados do Mato Grosso e de Sergipe,
bem como a Lei Orgânica do Município de Porto Alegre e de 74 outros municípios gaúchos, já a tem expressa-
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norma de exclusão explícita de tutela dessas uniões, haja vista que se trata de dispositivo auto-aplicável, que independe de regulamentação (LÔBO, 2002, v. 26, p. 53).
Todavia, não há necessidade de equipará-las à união estável, que é entidade familiar completamente distinta, somente admissível quando constituída por homem
e mulher (§3° do art. 226). Os argumentos que têm sido utilizados neste sentido são
dispensáveis, uma vez que as uniões homossexuais são constitucionalmente protegidas enquanto tais, com natureza própria (LÔBO, 2002, v. 26, p. 54).
Por outro lado, a diversidade sexual para a configuração da união estável pode
ter sua concepção ampliada, havendo, inclusive, decisões do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, neste sentido.2
Nem se pode deslembrar da recente decisão do Egrégio Tribunal Superior
Eleitoral que, pretendendo restringir direitos de um casal homoafetivo feminino,
acabou reconhecendo a união como entidade familiar, abrindo precedente histórico, na medida em que, se se entende que a união homossexual deve ter os mesmos
impedimentos de um casal hétero, a contrario sensu deverá ter os mesmos direitos
destes, sob pena de criar-se uma aberração jurídica. A propósito, confira-se o ementário assentado no caso:
Registro de candidato. Candidata ao Cargo de Prefeito. Relação Estável Homossexual com a Prefeita Reeleita do Município. Inelegibilidade. Art. 14, §7°, da Constituição Federal. Os sujeitos de uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os de
relação estável e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art. 14, §7°, da Constituição Federal. Recurso a
que se dá provimento (TSE, REsp n. 24.564/PA, rel. Min. Gilmar
Mendes, j. em 1°. 10.2004.
Roger Raupp Rios leciona que, por intermédio de uma interpretação extensiva dos direitos fundamentais (principalmente o de igualdade), e mediante o recurso da analogia, devem-se evitar eventuais interpretações contraditórias, já que, muito embora a união homoerótica não se confunda com a união estável, é possível se
constatar semelhanças nos institutos, mormente pela ausência de vínculos formais,
e a presença substancial de uma comunidade de vida afetiva e sexual duradoura e
permanente entre os companheiros (RIOS, 2002a, p. 511 e ss.).
Entretanto, filiamo-nos ao entendimento de que se for tomado como ponto de
partida para a resolução deste problema jurídico-constitucional a tarefa de concretização
da Constituição, pode-se prescindir do recurso analógico para o reconhecimento da na5
A Organização das Nações Unidas considera ilegítima qualquer interferência na vida privada de homossexuais
adultos, seja com base no princípio de respeito à dignidade da pessoa humana, seja pelo princípio da igualdade (DIAS, 2000, p. 68).
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tureza familiar das uniões homossexuais, pois estas em si mesmas atendem aos princípios da dignidade humana, da igualdade e aqueles pertinentes à evolução geral do Direito de Família, também presentes na Constituição (RIOS, 2002a, p. 513).
Deste modo, pode-se dizer que todas as espécies de vínculos que tenham por
base o afeto são merecedoras da proteção do Estado e encontram respaldo constitucional.
De outro vértice, quando se discute a união homoafetiva, busca-se uma perspectiva maior do que a simples possibilidade de se casar, de modo que seja efetivamente reconhecido como entidade familiar o círculo afetivo que o cidadão homossexual venha a constituir, pouco importando a nomenclatura posteriormente ofertada a este instituto (BAHIA, 2002, p. 117).
A sexualidade integra a própria personalidade humana, não podendo sofrer
nenhuma restrição. Ademais, a espécie humana já separou psíquica e fisicamente o
ato sexual prazeroso e sua função procriativa.
Dessa separação, nasceu à liberdade de orientação sexual, que se tornou inerente a espécie humana, já que os indivíduos de ambos os sexos passaram a ter a opção de tecer e suster uma relação sexual além da simples necessidade de reprodução, inclusive com pessoa do mesmo sexo (DIAS, 2000, p. 131).
Embora corriqueiramente denegada até pelos próprios operadores do Direito, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso III, consagra, em cláusula pétrea, o respeito à dignidade da pessoa humana, que orienta a construção e interpretação de todo o sistema jurídico brasileiro, o qual teria a amplitude insuficientemente demonstrada neste artigo.3
Pode-se dizer, entretanto, que a afirmação da dignidade da pessoa humana no
ordenamento jurídico brasileiro tem o condão de repelir quaisquer ações ou omissões que se mostrem contrárias a esta noção.
Ademais, embora no plano constitucional não exista proibição expressa de
discriminação por orientação sexual, infere-se do artigo 3° da Lex Fundamentalis,
que “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação” constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, de modo que deva existir uma política legislativa e administrativa que minimize os efeitos díspares de interpretação.4
As relações sexuais encontram amparo, ainda, no princípio fundamental da isonomia, cujo corolário é a proibição de discriminações injustas. Assim, imperiosa sua inclusão no rol dos direitos humanos fundamentais, como expressão de um direito subje6
7
Revogaram-se conceitos ideológicos e anticientíficos de situação irregular e o termo estigmatizador de menor,
previstos no antigo Código de Menores, onde o infante e juvenil eram considerados objetos da relação jurídica (GUIMARÃES, 2003, p. 03).
Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20.11.89, e assinada pelo Governo brasileiro em 26.1.90, cujo texto foi aprovado pelo Decreto Legislativo 28, de 14.9.90, e
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tivo, ao mesmo tempo individual, categorial e difuso. Também sob o teto da liberdade
de expressão, como garantia ao exercício da liberdade individual, cabendo incluí-las, da
mesma forma entre os direitos de personalidade, precipuamente no que diz com a identidade pessoal e a integridade física e psíquica (DIAS, 2000, p. 64).
Conforme bem destacado por Luiz Alberto David Araujo,
Ao arrolar e assegurar princípios como o do Estado Democrático de
Direito, o da dignidade da pessoa humana e o da necessidade da promoção do bem de todos, sem qualquer preconceito, o constituinte garantiu o direito à felicidade. Não o escreveu expressamente, mas deixou claro que o Estado, dentro do sistema nacional, tem a função de
promover a felicidade, pois a dignidade, o bem de todos, pressupõe o
direito de ser feliz (ARAUJO, 2000, p. 74).
Sempre que inexistir uma justificação racional plausível para a imposição de um
tratamento diferenciado, é obrigatório igual tratamento para as situações ocorrentes,
sob pena de violação à norma do direito fundamental de igualdade (RIOS, 2002, p. 94).
Observe-se, por oportuno, que o direito constitucional brasileiro insere-se na
tradição do reconhecimento explícito dos aspectos formais (igualdade perante a lei)
e materiais (igualdade na lei) do princípio da igualdade, representados como obrigações ao Poder Público.
Do ponto de vista formal, o imperativo da igualdade exige igual aplicação da
mesma lei a todos endereçada. Abrange tanto a ação do legislador ordinário, quanto do aplicador do direito. Noutro giro, a igualdade material exige a equiparação de
tratamento pelo direito vigente dos casos iguais, bem como a diferenciação no regime normativo em face de hipóteses distintas, quando constatadas razões suficientes
para tal estabelecimento (RIOS, 2002, p. 32 e ss.).
Assim, quaisquer diferenciações, que não tenham vigor para tal, revelam-se arbitrárias, já que, conforme ressaltado, a aplicação dos princípios da igualdade e da
dignidade da pessoa humana são proibidores gerais de diferenciação.
8
Diz-se criança a pessoa até 12 (doze) anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 (doze) e 18
(dezoito) anos de idade (ECA, art. 2°), embora o desenvolvimento psíquico e físico da pessoa não possa ser
definido em faixas etárias rígidas. Importante se faz tal distinção, pois o tratamento dispensado às crianças é diferente do relativo ao adolescente, como por exemplo, nos processos de adoção, onde se busca, também, o
consentimento deste último (ECA, art. 45, §2º).
Excepcionalmente, aplicar-se-á o Estatuto da Criança e do Adolescente às pessoas entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos de idade (art. 2º, parágrafo único).
9 Os artigos 33 a 35 do Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelecem que a guarda obriga a prestação de
assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo ao seu detentor o direito de
opor-se a terceiros, inclusive aos pais biológicos.
10 “[...] a tutela é um instituto de caráter assistencial, que tem por escopo substituir o poder familiar. Protege o
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Nem se pode olvidar que a Convenção Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto de San José, dos quais
o Brasil é signatário, impedem a prática de atos discriminatórios.5
Deste modo, se duas pessoas passam a viver em comunhão, cumprindo os deveres de assistência mútua, em verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor
e pelo respeito mútuo, com o objetivo de construir um lar, tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, gera direitos e obrigações que não podem
ficar à margem da lei (DIAS, 2000, p. 80).
Destarte, a intolerância social deve sucumbir à higidez dos conceitos jurídicos,
uma vez que um Estado Democrático de Direito não pode desrespeitar os princípios
de sua lei maior, que, cada vez mais, comportam desdobramentos frente à ampliativa visão dos direitos humanos.
Se grande parte da doutrina tem dificuldade em reconhecer a união homoerótica como entidade familiar, nem se diga quanto à questão da possibilidade de
adoção por homossexuais, geradora de acesa (e infundada) discussão.
Contudo, antes de ingressarmos ao thema central do presente estudo, mister
se faz uma análise, ainda que sucinta, acerca dos institutos de Direito de família e,
especificamente, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que permitem a inserção
de infantes e juvenis em famílias substitutas, demonstrando-se os requisitos essenciais para tal, de modo que, partindo-se da premissa de que os pares ou indivíduos
homossexuais atendem a todas as peculiaridades necessárias à sua efetivação, quais
seriam os óbices, se é que existem, ao seu deferimento.
3.
DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA
3.1. Do Estatuto da Criança e do Adolescente. Generalidades
O Estatuto da Criança e do Adolescente nasceu após muitos debates no legislativo, contando com a participação de parcela da sociedade. Decorrente do projeto do Senador Ronan Tito, sustenta-se em dois pilares, segundo o próprio parlamentar: a concepção de criança e do adolescente como sujeitos de direitos, e a afirmação de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.6
Muito mais de que inovações marcantes, o ECA sintetizou um movimento de
edificação de normas jurídicas, à luz da premissa da prevalência dos interesses de
seus destinatários principais (PAULA, 2004, p. 404).
Isso porque a Lei nº 8.069/90 adotou a teoria da proteção integral, em conso11 As normas do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código Civil devem ser interpretadas em consonância ao disposto na norma constitucional, apagando-se, com a adoção, a origem do adotado, tornando-o defini-
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nância com a Convenção sobre direitos da criança, da qual o Brasil é signatário desde 19907 (art. 1º), bem como ao imperativo constitucional disposto no artigo 227,
caput, que determina o resguardo aos menores como dever da família, da sociedade e do Estado.
Toda criança ou adolescente8 tem direito de ser criado e educado no seio de
sua família, e excepcionalmente em família substituta (ECA, art. 19), sendo o abrigamento uma medida excepcional e provisória (ECA, art. 101, § 1º).
Como orientação na tarefa de cotejo entre o Estatuto da Criança e da Adolescência e o novo Código Civil como diplomas legais integrantes de um mesmo ordenamento jurídico, Paulo Afonso Garrido de Paula concluiu, em síntese, que, sendo
o novo Código uma codificação de caráter geral, permanece a lei especial- ECA, ainda que cronologicamente anterior, em vigor e com eficácia plena, em razão da importância do critério da especialidade sobre o cronológico, devendo prevalecer, inclusive, quando fizer referência a institutos próprios de direito civil no caso de evidente vantagem para a criança ou adolescente (PAULA, 2004, p. 414 e ss.).
3.2. Família natural e família substituta. Conceitos
Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou quaisquer
deles e seus ascendentes (ECA, art. 25).
Noutro vértice, como o próprio nome já diz, família substituta é aquela que faz
as vezes da natural, que é aquela na qual a criança ou adolescente tem o direito de,
prioritariamente, ser criada, educada e mantida. Assim, a família substituta surgirá
quando se tornar impossível à manutenção na família natural, e evitará o abrigamento (ECA, art. 101).
A colocação de infante em família substituta é medida de proteção que se faz
mediante guarda,9 tutela10 ou adoção (ECA, art.28).
Para apreciação do pedido, levar-se-á em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as conseqüências decorrentes da medida (ECA, art. 28, §2º).
Ademais, e sempre que possível, a criança ou adolescente deverá ser previamente ouvido e a sua opinião devidamente considerada (ECA, art. 28, §1º), sendo
requisito específico da adoção de adolescente, a obtenção de sua concordância
(ECA, art. 45, §2º).
Contudo, prevê a legislação especializada, em seu artigo 29 que havendo in12 O Código Civil não estipula a idade máxima da pessoa passível de adoção, mas apenas estabelece que o “adotante há de ser, pelo menos, 16 (dezesseis) anos mais velhos que o adotado” (art.1.619), requisito igualmente
presente na adoção estatutária (art. 42, § 3º, do ECA).
13 Mesmo nos casos em que seja menor de 12 (doze) anos, mas apresente condições de se expressar, deverá o
magistrado proceder a oitiva do adotando antes de decidir o pedido, nos termos do disposto nos artigos 28,
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compatibilidade com a natureza da medida, ou ambiente inadequado, não será deferida a colocação do menor em família substituta.
Impende observar que, em consonância com o artigo 227, §6° do texto constitucional, dispõe o referido estatuto que os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação (art. 20).
4.
A ADOÇÃO REGIDA PELO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
4.1. Noções gerais e conceito
Terceira modalidade de colocação de criança e adolescente em família substituta, não se olvidando que é medida também aplicável aos maiores de idade, a adoção se funda em liame socioafetivo, e revela o sentido maior das relações familiares
parentais.
Através dela se estabelece relação de ascendência e descendência independentemente da consangüinidade, instaurando-se o chamado parentesco civil (FACHIN, 2003, v. 18, p. 150).
Assim, segundo Maria Helena Diniz (2003, v. 5, p. 345)
[...] a adoção vem a ser o ato jurídico solene pelo qual, observados
os requisitos legais, alguém estabelece, independente de qualquer
relação de parentesco consangüíneo ou afim, um vínculo fictício
de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha.
A partir do momento em que a adoção se conclui, com a sentença judicial e o
registro de nascimento, o adotando se converte integralmente em filho, não perdurando mais os princípios da desigualdade e a nítida distinção entre filho legítimo e
filho adotivo, que não chegava a integrar à família adotante por completo, nos 488
anos anteriores da história brasileira (LÔBO, 2003, v. 26, p. 144).
Com efeito, a adoção constitui um espaço em que a verdade socioafetiva da
filiação se manifesta com grande ênfase. Mais do que laços sangüíneos, o que une
adotante e adotado são os laços de afeto, construídos no espaço de convivência
familiar.11
4.2. Requisitos
4.2.1. Quem pode ser adotado?
Como já consignado, para que se proceda a adoção estatutária é preciso que
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o adotando seja menor de 18 (dezoito) anos de idade à data do pedido. Assim, restará para a pessoa com mais de 18 (dezoito) anos de idade apenas a adoção do Código Civil.12
Se uma criança ou adolescente só poderia ser adotado com a intervenção
do judiciário, que analisaria cada caso, possibilitando um controle rígido sobre
o tráfico de crianças, que foi uma das razões que levou o legislador a limitar os
casos em que se permite a adoção internacional, não haveria qualquer fundamento para que se admitisse a adoção de nascituro, ou seja, de uma criança, antes de nascer, pelas regras da adoção do então vigente Código Civil de 1916 (revogado pelo NCC), ferindo completamente o espírito da lei (GUIMARÃES, 2003,
p. 36).
Sendo o adotando maior de 12 (doze) anos de idade, mister se faz à obtenção de seu consentimento para a adoção,13 requisito expressamente contido no
§2 º, do artigo 45 do referido estatuto, devendo o juiz inquiri-lo pessoalmente,
não sendo admitida a supressão de tal providência pela oitiva de seus pais ou responsáveis legais.
Consagrando-se a tendência da adoção como medida social, a qual visa conferir uma família à criança ou adolescente, preceitua o artigo 43 do estatuto especial
que a medida “apenas será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos”.
Tal requisito será aferível a partir da análise dos elementos de convicção carreados para os autos do processo, em especial os dados constantes dos relatórios
social e psicológico, além de outras informações sobre os adotantes e a adaptação
do adotando ao novo lar durante o estágio de convivência.
A título de ilustração, existem 200.000 (duzentas mil) crianças sem família no
Brasil, segundo dados do IBGE. Por outro lado, existem 6.100 (seis mil e cem) famílias, em São Paulo, na fila à espera de um filho. Isso se explica facilmente, haja vista
que, em pesquisa realizada pela Universidade Católica de Pernambuco, ficou demonstrado que 98% dos candidatos a pais querem crianças brancas (FERNANDES;
MENDONÇA, 2004, p. 100).
O Centro de Capacitação e Incentivo à Formação de Profissionais (CECIF) fez
um levantamento e constatou que existem 36 (trinta e seis) interessados em cada
criança de zero a dois anos. Lamentavelmente, com mais de dez anos, a proporção
se inverte: são sessenta e seis crianças para cada pretendente a pai (FERNANDES;
MENDONÇA, 2004, p. 100 e ss.). A propósito, confira-se o quadro abaixo:
14 Interpretando-se o silêncio legislativo à luz da ordem constitucional, em virtude de um indevido tratamento diferenciado entre casamento e união estável, certo é que se impõe a autorização da adoção por duas pessoas
que tenham vivido em união estável, ainda que à época da constituição do vínculo parental já estejam separa-
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A BARREIRA DA IDADE
Como fica cada vez mais difícil encontrar um pai adotivo
De 0 a 2 anos
36 pretendentes para cada criança
De 2 a 5 anos
05 pretendentes para cada criança
De 5 a 7 anos
02 crianças para cada pretendente
De 7 a 10 anos
13 crianças para cada pretendente
Mais de 10 anos
66 crianças para cada pretendente
Fonte: Centro de Capacitação e Incentivo à Formação de Profissionais (Cecif)
4.2.2. Quem pode adotar?
De acordo com o Estatuto, podem requerer a adoção os maiores de 21 (vinte
e um anos), independentemente do estado civil (art. 42, caput). Contudo, o Código Civil de 2002, levando em conta a maioridade que assumiu, permite a adoção por
pessoa maior de 18 (dezoito) anos, quando esta adquire a capacidade absoluta para
gerir os atos da vida civil (artigos 5° e 1.618, caput). Assim, em conformidade com a
referida atualização legislativa, o requisito objetivo da idade mínima do adotante de
infante e juvenil passa a ser, doravante, de 18 anos.
Por outro lado, o pretendente há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho que o adotado (ECA, art. 42, §3º), requisito também presente na adoção regida
pelo Código Civil (art. 1.619).
Não obstante, elide-se a diferença mínima de idade em caso de adoção postulada por ambos os cônjuges, ou companheiros, desde que um dos consortes tenha
completado 18 (dezoito) anos, nos termos do artigo 1.618, parágrafo único, do Código Civil vigente, c.c. artigo 42, § 2° do Estatuto da Criança e do Adolescente, demonstrando-se a estabilidade familiar.
A exigência da diferença etária é justificada pelo fato de que se objetiva assegurar que ninguém possa adotar antes de completar o que seria a idade núbil, buscando-se, assim, uma maior proximidade do status da filiação biológica, propiciando autoridade e respeito.
Podem adotar, ainda, os solteiros, os separados judicialmente, os divorciados,
os viúvos e os conviventes ou concubinos, havendo disposição expressa quanto a estes no § 2º, do artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
A lei admite até que a adoção seja postulada conjuntamente pelos divorciados, judicialmente separados, assim como na hipótese de dissolução da união
estável,14 contanto que acordem sobre a guarda e o regime de visitas, e desde
que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância da sociedade
conjugal (ECA, art. 42, § 4º e CC, artigo 1.622).
Nem se pode olvidar da possibilidade do cônjuge ou companheiro adotar o filho de sua esposa ou companheira, e vice-versa (ECA, art. 41, §1° e CC, artigo 1.626,
parágrafo único), exigindo-se a concordância do genitor do menor, salvo se o ado-
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tando estiver registrado somente no nome do cônjuge ou companheiro do adotante, quando basta o seu assentimento.
Trata-se, pois, da hipótese denominada adoção unilateral, onde se verifica o
“escopo de facilitar a constituição para o adotando de uma situação jurídica de biparentalidade que envolva o ascendente natural e aquele com quem este mantém vínculo de conjugalidade” (FACHIN, 2003, v. 18, p. 203).
Neste caso, por óbvio, excepciona-se a regra da extinção do vínculo parental,
persistindo os laços de parentesco entre o adotado e o cônjuge ou companheiro do
adotante, que não é substituído.
E a adoção pode também ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada
a sentença, espécie esta denominada adoção postmortem, ou póstuma, introduzida
pelo ECA, em seu artigo 42, §5°.
Neste caso, não se deve admitir a adoção sem que o interessado tenha iniciado o processo, por não se tratar de adoção nuncupativa, que o legislador não
contemplou. Ademais, há peculiaridade quanto à produção dos efeitos da sentença, que deverão retroagir à data do óbito (ECA, artigo 47, § 6° e CC, artigo 1.628),
coincidindo com a abertura da sucessão a este referente, figurando o adotado
como herdeiro.
Efetivando-se a adoção, igualar-se-ão os direitos sucessórios dos filhos
adotivos, estabelecendo-se a reciprocidade do direito hereditário entre o adotado, seus descendentes, o adotante, seus ascendentes, descendentes, e colaterais
até o 4° grau (ECA, art. 41, §2°), estando superados quaisquer resquícios de discriminação na adoção, existente até a Magna Carta de 1988 ( VENOSA, 2004, v. 6,
p. 346).
Além dos requisitos acima, outros também deverão preencher os adotantes,
pois implícita ou explicitamente exigidos pela legislação.
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção é ato que requer a
iniciativa e presença dos adotantes, sendo proibida expressamente a adoção por
procuração (artigo 39). Essa exigência é mantida para a adoção de maiores, na forma do novo Código Civil.
Pessoas com inequívoca atividade criminosa, em especial os traficantes e os
usuários de substâncias entorpecentes não poderão adotar, nos termos do artigo 19,
do estatuto especial.
Assim, as pessoas que pelos antecedentes revelarem formação deturpada e
voltada para a criminalidade não poderão adotar, pois não terão condições de oferecer um desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
Por outro lado, e conforme já destacado, não se deferirá a colocação em família substituta à pessoa que revele, por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado (art. 29).
Ademais, os adotantes, além de não registrarem antecedentes criminais reve-
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ladores de uma formação deturpada e nociva, deverão ter prestado contas da administração de tutor ou curador do adotando, nos termos do artigo 44 do Estatuto da
Criança e do Adolescente, e artigo 1.620 do Código Civil.
Nesses casos, não se pode subordinar o direito a ter pai, pela adoção, ao direito de receber contas ou de receber um crédito, sendo essa inversão atentatória
ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Impende observar, ainda, que a pobreza não é empecilho à adoção, pois tal
motivo não acarreta a destituição do poder familiar, nos termos do artigo 23, do estatuto em comento. Quanto à situação financeira, é evidente que os adotantes deverão demonstrar condições de criar e educar o adotando.
Por disposição expressa não podem adotar os ascendentes e os irmãos do
adotando (art. 42, §1º do ECA). Impede o legislador que a adoção seja postulada pelos avós e irmãos da criança ou adolescente, restando-lhes apenas obter a guarda ou
a tutela dos netos e irmãos.
Assim, a adoção por avós, não vedada pelo Código de Menores e até então admitida pela jurisprudência, é expressamente proibida pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente.
As pessoas interessadas em adotar devem requerer em juízo a respectiva inscrição no cadastro apropriado, nos termos do artigo 50 do ECA. No requerimento
de inscrição, os interessados são qualificados e indicam as características da pessoa
que pretendem adotar, anexando, ainda, cópias dos documentos pessoais.
Ato contínuo, proceder-se-á a avaliação social e psicológica do interessado
pelo setor técnico do Fórum, composto de assistentes sociais e psicólogas, que
elaborarão um relatório conclusivo (ECA, art. 151). Deverão ser anexados aos autos, ainda, certidões criminais do interessado, tudo com o objetivo de analisar se
estão ou não presentes os requisitos genéricos para que possa adotar, conforme
acima estudado.
Realizados os estudos e instruído o procedimento com os documentos necessários, caberá ao órgão do Ministério Público se manifestar fundamentadamente nos
autos, concordando ou não com a inscrição do pretendente no livro de pessoas aptas à adoção, decidindo o magistrado, em seguida.
Registre-se que o cadastro prévio não constitui requisito legal à adoção, sen15 O vocábulo homossexualidade foi criado pelo médico húngaro Benkert, no ano de 1869, e, etimologicamente
é formado pela junção dos vocábulos homo e sexu. Homo, do grego hómos, que significa semelhante, o mesmo, e sexual, do latim sexu, que é relativo ou pertencente ao sexo. Exprime tanto a idéia de semelhança, igual,
análogo, ou seja, homólogo ou semelhante ao sexo que a pessoa almeja ter, como também significa a sexualidade exercida com uma pessoa do mesmo sexo. (DIAS, 2000, p. 31).
16 Todas as religiões monoteístas rejeitam o sexo homossexual. Islamismo, judaísmo e cristianismo consideramna “antinatural”. No Levítico, a Bíblia afirma que “se um homem dormir com outro homem como se fosse uma
mulher, ambos cometeram uma coisa abominável. Serão punidos de morte...” (GWERCMAN, 2002, p. 50).
17 “A concepção bíblica vem do preceito judaico de busca e preservação do grupo étnico, e toda relação sexual
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do, todavia, um importante mecanismo de avaliação das pessoas interessadas na medida em estudo.
A lei estabelece, ainda, que a adoção dependa do consentimento dos pais ou
do representante legal do adotando, referindo-se, neste último caso, as hipóteses de
estar sob guarda, tutela ou curatela de pessoa que não seja a adotante (CC, artigo
1.621 e ECA, artigo 45). Contudo, admite-se a retratação do consentimento até a publicação da sentença, nos termos do § 2°, do artigo 1.621 do Código Civil, não havendo disposição similar no estatuto especial.
E a referida concordância deve ser manifestada na presença do juiz e do promotor de justiça, nos termos do parágrafo único, do artigo 166 do ECA, tendo em
vista as conseqüências que a mesma produz.
Não raras vezes se constata que os genitores concordam com a adoção por impossibilidade material de criar os filhos, ou por outro motivo qualquer que não uma
opção consciente. Em tais casos, com fundamento nos artigos 19 e 23 do estatuto
especial, não deve o magistrado colher a concordância.
Ademais, uma adoção deferida com vício de consentimento pode, no futuro, ser
questionada judicialmente, com resultados jurídicos e psicológicos imprevisíveis para todas as pessoas envolvidas no processo, especialmente a criança ou adolescente.
Insta salientar que, nos termos do artigo 45, §1º do ECA e artigo 1.621, §1° do Código Civil, o consentimento dos genitores para a adoção será dispensável, quando os genitores forem desconhecidos, ou tiverem sido destituídos do poder familiar.
Na primeira hipótese, mostra-se evidente o motivo da dispensa, pois totalmente
inviável e ilógica a exigência do consentimento de pessoa incerta e desconhecida.
Contudo, não se pode olvidar que, em tal hipótese, o que parece, em princípio, de simples compreensão, pode ensejar problemas no cotidiano, pois não raras
vezes o genitor é conhecido no plano fático e até cria o filho, porém, não tendo reconhecido a paternidade, não é considerado juridicamente genitor. Por outras palavras, para efeitos legais a paternidade, neste caso, é desconhecida, pois do assento
de nascimento não consta o nome do genitor.
Também será dispensado o consentimento dos genitores para a adoção
quando estes tiverem sido destituídos do poder familiar, por sentença transitada em julgado.
Sem o trânsito em julgado, a adoção não se consuma, pois a sentença judicial
que decretou a destituição pode, à evidência, ser reformada. Mas até que a destitui-
18 Desde 1991, a Anistia Internacional considera como violação aos direitos humanos a proibição de o indivíduo
seguir a orientação sexual almejada (BAHIA, 2002, p. 106).
19 “No máximo, especialistas definiram que é gay: não os que provaram desse relacionamento, mas os que sentem atração homossexual. No Brasil, segundo pesquisa do projeto “Sexualidade”, são cerca de 6 milhões de
pessoas nessa situação. Entre homo e bissexuais, 7,9% dos homens e 3,3% das mulheres se declaram gays. O
mais provável é que eles desejem o mesmo sexo pela combinação de fatores biológicos e experiências de vida.
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ção seja decidida definitivamente, poderá a criança ou adolescente permanecer sob
a guarda dos adotantes, nos termos do artigo 33, §1º do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
No mesmo sentido, o novo Código Civil instituiu a hipótese de, em se tratando
de infante exposto, ou de menor cujos pais sejam desconhecidos, estejam desaparecidos, ou tenham sido destituídos do poder familiar, sem que haja a nomeação de tutor, ou de órfão não reclamado por qualquer parente por período superior a um ano,
admite-se a dispensa do consentimento do seu representante legal (art. 1.624).
São situações típicas de abandono, para as quais a adoção poderá ser o caminho de convivência familiar, que deve ser franqueada pelo Poder Judiciário. Em todos os casos, a adoção é presumida como realizando o princípio do melhor interesse da criança, permitindo-lhe a integração definitiva em família substituta; na maioria dos casos, a primeira e verdadeira família (LÔBO, 2003, v. 26, p. 167).
5.
HOMOSSEXUALIDADE
5.1. Conceito
A homossexualidade15 é uma das nuanças da sexualidade humana, que existe
desde que o mundo é mundo. Em algumas culturas são mais rechaçadas, em outras
menos. Desde a Grécia antiga, os registros são vários e apontam, naquela civilização,
um comportamento em padrões de normalidade (PEREIRA, 1999, p. 55).
Conforme bem delineado por Roger Raupp Rios, é possível se traçar um quadro a respeito das diversas visões sobre a homossexualidade, por meio de quatro
concepções: a homossexualidade como pecado, a homossexualidade como doença,
a homossexualidade como critério neutro de diferenciação, e a homossexualidade
como construção social (RIOS, 2002, p. 99).
Sem ingressarmos a fundo na questão, a concepção da homossexualidade
como pecado qualifica a prática de atos homossexuais como moralmente reprovável e, no plano religioso, pecaminosa,16 tendendo-se a condenação de todas as manifestações sexuais extraconjugais, bem como aquelas práticas sexuais não produtivas (inclusive dentro do matrimônio). Fundamenta-se no contexto histórico ocidental, na interpretação prevalente da doutrina cristã, para qual, todo ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, mas corrompido pelo pecado original, deve
praticar seus atos em conformidade aos desígnios divinos mediante uma prática ascética dirigida à reconciliação com o Criador17 (RIOS, 2002, p. 100).
Assim, no plano sexual, os prazeres carnais são vistos como tentação, que obstam à salvação do homem.
Por outro lado, para muitos a homossexualidade demonstra uma verdadeira
doença, que contrapõe o indivíduo homossexual da condição “normal”, denominada heterossexualidade (RIOS, 2002, p. 105).
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Segundo Maria Berenice Dias (2000, p. 35), ainda sob a influência das concepções religiosas, na Idade Média a Medicina considerou a homossexualidade uma
doença, uma enfermidade que acarretava a diminuição das faculdades mentais, além
de um mal contagioso decorrente de um defeito genético.
Contudo, e ainda segundo seus ensinamentos, durante anos pesquisou-se o
sistema nervoso central, os hormônios, o funcionamento do aparelho genital, sem
que nada fosse encontrado a ponto de diferenciar os homo dos heterossexuais.
(DIAS, 2000, p. 35).
A maioria esmagadora dos homossexuais não á facilmente identificável na sociedade, exatamente porque se distinguem dos héteros, em geral, somente por seus
aspectos afetivos.
Assim, abandonou-se a idéia de que a homossexualidade era doença, passando-se a encará-la como uma forma de se diferenciar da maioria, no tocante ao relacionamento amoroso e sexual.
Em 1993, a Organização Mundial da Saúde inseriu o então denominado homossexualismo no capítulo “Dos sintomas decorrentes de circunstâncias psicossociais”. Na décima revisão do CID-10, em 1995, porém, foi denominado como transtorno da preferência sexual (F65). O sufixo ismo, que quer dizer doença, foi substituído por dade, que significa o mesmo que modo de ser18 (DIAS, 2000, p. 36).
As principais obras que servem de referência nas ciências médicas e psicológicas revelam que a homossexualidade não mais é considerada doença (RIOS, 2002,
p. 112).
Pode-se afirmar, portanto, que, hodiernamente, as idéias negativas sobre a homossexualidade não mais se sustentam. Porém, a sociedade persiste em reprimir,
julgar e condenar sem procurar, contudo, compreender o que leva uma pessoa a ser
homossexual.19
Em entrevista ao Jornal do Psicólogo, publicado na cidade de Belo Horizonte
pelo Conselho Regional de Psicologia, o psicanalista Jurandir Freire nos propõe:
[...] que deixemos de identificar socialmente pessoas por suas preferências sexuais [...]. Porque nos interessamos tanto pela preferência sexual das pessoas, a ponto de julgarmos muito importante
identificá-las sociomoralmente por este predicado? Quem disse que
este mau hábito cultural tem de ser eterno? É isto que, a meu ver,
importa. Quando e de que maneira poderemos ensinar, convencer, persuadir as novas gerações de que classificar sociomoralmente pessoas por suas inclinações sociais é uma estupidez que teve,
historicamente, péssimas conseqüências éticas. Muitos sofreram
por isto; muitos mataram e morreram por esta crença inconseqüente e humanamente perniciosa (JORNAL DO PSICÓLOGO, 1995,
p. 03 apud PEREIRA, 1999, p. 55).
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A discriminação decorrente do simples desejo de um indivíduo por outro do
mesmo sexo evidencia uma clara discriminação à própria pessoa, de modo que merece ser rechaçada pelo Estado, garantindo a busca pela felicidade de todos os seus
membros, através da liberdade de identidade sexual.
A terceira concepção da homossexualidade decorre das mudanças sociais e
econômicas que possibilitaram a formação de uma consciência coletiva por parte
dos homossexuais, enquanto específico grupo social.
E isso se deve a inúmeros fatores, simultaneamente gestados pelas transformações advindas da ascensão do capitalismo industrial e do surgimento das grandes
cidades, no final do século XIX, como, por exemplo, a formação de comunidades
homossexuais, a organização de movimentos socais lutando pelo reconhecimento
de direitos aos homossexuais, o impacto do movimento feminista na estrutura social urbana, a crise do modelo familiar, etc. (RIOS, 2002, p. 115).
Assim, a homossexualidade como critério neutro de diferenciação demonstra não haver suporte válido para as discriminações dela decorrentes.
A dimensão desta mudança pode ser aquilatada, inclusive, pelo
advento do conceito de ‘homofobia’, designando o distúrbio psíquico revelado por aqueles que experimentam medo ou ódio irracionais diante da homossexualidade (RIOS, 2002, p. 120).
Ao derradeiro, conceber a homossexualidade como construção social significa:
[...] postular que a identificação de alguém ou a qualificação de
seus atos sob uma ou outra orientação sexual só tem sentido na
medida em que, num contexto histórico cultural, houver a institucionalização de papéis e de práticas próprias para cada um dos
sexos, onde a atração pelo sexo oposto ou pelo mesmo sexo seja
considerada um elemento relevante, capaz, inclusive, de impor diferenças de tratamento entre os indivíduos (RIOS, 2002, p. 120).
Os moldes dos relacionamentos homossexuais, assim como dos heteros, são
diversos. Podem ou não envolver a vida sob o mesmo teto; podem ou não envolver
exclusividade; podem ou não ser exclusivos de envolvimento homossexual formal
ou informal. A característica de definição é que os indivíduos se identifiquem como
casal.
Destarte, impende observar que se pretende garantir o direito de adoção
àqueles que demonstrem estabilidade familiar, e que psicossocialmente avaliados,
tenham obtido parecer favorável, de modo que se mostre induvidosa a habilidade
de criar um infante ou juvenil – os quais, noutro giro, ostentam o direito de serem
adotados – independentemente do eventual preconceito que venham a sofrer, já
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que tal possibilidade é externa as suas responsabilidades, e pode estar presente, inclusive, nas adoções por heterossexuais, ou ainda, nas famílias naturais, exemplificativamente, nos casos de crianças negras, deficientes, gordas, baixas, ou que possuam
quaisquer características diferenciadoras dos infantes e juvenis – e porque não incluirmos os adultos – (mal)criados em famílias preconceituosas, sobre as quais o direito não deixa de atuar.
6.
AUSÊNCIA DE IMPEDIMENTOS À ADOÇÃO POR HOMOSSEXUAIS,
SEGUNDO O ORDENAMENTO JURIDICO PÁTRIO
6.1. A adoção por homossexual individualmente
O começo da análise da questão, portanto, deve partir da premissa de que o
homossexual, conjunta ou separadamente, atende a todos os requisitos já mencionados, de forma que esteja em absoluta igualdade com os indivíduos heteros ao proceder o pedido.
Contudo, como salientado anteriormente, a matéria em estudo carrega uma
carga preconceituosa de grande monta, constituindo-se em um verdadeiro “tabu”
jurídico, mormente frente à míngua doutrinária e jurisprudencial, e as dificuldades
enfrentadas pelos operadores do Direito, de modo que, não raras vezes, são levados
a decisões despidas de justiça e funcionalidade, desprezando-se os interesses do
menor que se encontra sem família e sem perspectivas de sobrevivência social, em
prol de uma falsa defesa da moralidade e dos bons costumes (BAHIA, 2002, p. 126).
Não obstante, não podemos nos basear no “mal menor” representado pela inserção de infante ou juvenil em família substituta constituída por homossexuais, em
contraposição à mantença em entidade assistencial, para defendermos a adoção por
homossexual.
Mais intenso do que isto, defendemos a união homossexual como entidade familiar, passível, portanto, de proteção do Estado e, precipuamente, de igualdade de
direitos, de modo que as restrições devam ser as mesmas de um indivíduo heterossexual que pretenda, conjunta ou separadamente, exercer seus direitos, até porque,
como já enfatizado, os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da
pessoa humana proíbem qualquer desigualdade de tratamento em razão da orientação sexual.
Ademais, consoante anteriormente ressaltado, o artigo 1.618 do Código Civil,
e o artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente autorizam a adoção por pessoa solteira, sem qualquer restrição, desde que atendido o melhor interesse do adotando.
Como bem observa Luiz Edson Fachin (2003, v. 18, p. 155):
[...] não se cogita, aqui, portanto, qualquer distinção ‘a priori’ que
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venha a dizer respeito ao sexo ou opção sexual do adotante: atendendo o melhor interesse da criança, será possível a adoção, sem
que haja espaço, aqui, para juízos discriminatórios fundados em
preconceitos juridicamente e eticamente intoleráveis.
A capacidade para a adoção, nada tem a ver com a sexualidade do adotante,
bastando que preencha os requisitos legais.
Destarte, assim como é para os casais heterossexuais, a legislação de regência
não permite que a colocação em famílias substitutas seja levada a efeito sem critérios ou análises pertinentes (BAHIA, 2002, p. 128).
Contudo, havendo incompatibilidade com a natureza da medida ou ambiente
familiar inadequado, indeferir-se-á a colocação em família substituta (ECA, art. 29),
independentemente da preferência sexual de seus pretendentes.
De outro vértice, e a título de demonstração, não se pode deixar de mencionar
o caso vivenciado pelo professor Marcelo Gosling, de 36 (trinta e seis) anos, publicado pelo Jornal do Brasil, com circulação na cidade do Rio de Janeiro, RJ, que se declarando homossexual, ajuizou ação de adoção perante a 1ª (primeira) Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, pela qual, através da decisão inédita proferida pelo juiz Siro
Darlan, teve seu direito de adotar uma criança de 09 (nove) anos, reconhecido.
Inconformado, o Ministério Público do Estado, fundando-se na hipótese do
convívio com homossexuais ser prejudicial à formação da personalidade e do caráter da criança, recorreu da decisão lato sensu, que, não obstante, foi confirmada
pela 17ª (décima sétima) Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ
-Ap. Cível n° 14.979/98. Rel. Des. Severiano Aragão, j. 20 jan.1999).
Isso porque
O professor foi submetido a todos os requisitos e foi considerado
apto para a adoção. Segundo o juiz, ao se inscrever o professor fez
questão de informar sua opção sexual.‘Ele não é uma pessoa afetada. Se ele não se declarasse como tal, ninguém saberia de sua
opção homossexual e o Ministério Público não teria entrado com
o recurso. Isso demonstra honestidade, caráter. Ele quis enfrentar
o preconceito. Quantos pais biológicos existem que são homossexuais. E alguém quer tirar os filhos deles por isso?’, argumentou
Siro Darlan (DARLAN apud BITTENCOURT, 1999).
A família foi, é, e continuará sendo o núcleo básico de qualquer sociedade.
Sem família não é possível nenhum tipo de organização social ou jurídica.
Assim, presentes os requisitos, não há razão jurídica, tampouco lógica, para a
improcedência do pleito de um homossexual, que efetivamente demonstre condições de amparar e educar uma criança ou adolescente, ainda que reste a dúvida
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quanto ao preconceito que enfrentariam pela sociedade, que não pode ser a eles
atribuídos. No máximo, seria admissível a determinação de um acompanhamento
psicoterápico, por tempo determinado, haja vista que o estágio de convivência é suficiente para a demonstração da aptidão do adotante, bem como da adaptação do
adotando no lar substituto.
6.2. Adoção por casal homossexual
O Código Civil de 1916, em sua concepção exclusivamente matrimonializada
acerca da família, não cogitava a possibilidade de adoção conjunta por duas pessoas
que não fossem casadas. Mais que isso, exigia a legislação revogada que os cônjuges
estivessem casados há, no mínimo, cinco anos (FACHIN, 2003, v. 18, p. 155).
Assim, não se admitia a união estável como entidade familiar, circunstância
que somente se consolidou com o advento da Constituição Federal de 1988, buscando a proteção dos conviventes, quanto aos seus direitos patrimoniais. O Código Civil vigente absorveu a referida disposição em seu artigo 1.618, não restando dúvidas
acerca da possibilidade de adoção em conjunto, já comentada anteriormente.
Não obstante, insere-se aí o debate e questionamento sobre a possibilidade de
adoção por casais homossexuais.
Como as relações sociais são marcadas precipuamente pela heterossexualidade, é enorme a resistência à adoção por casais homoafetivos, mormente em razão
da idéia de que haverá um dano no desenvolvimento do adotando, face à ausência
de referências comportamentais, que poderiam gerar-lhe problemas psicológicos,
inclusive influenciando sua preferência sexual.
Admitindo-se, todavia, a possibilidade de adoção por homossexual solteiro,
incoerente seria a vedação da adoção pelo casal, haja vista que os eventuais direitos
materiais do adotado, como de alimentos e sucessórios, sofreriam infundadas restrições, na medida em que somente poderiam ser postulados em relação ao adotante,
gerando-lhe injustificável prejuízo.
Conforme destacado por Luiz Edson Fachin, os tribunais devem rejeitar prontamente quaisquer argumentos contrários ou a favor da adoção, embasados na opção sexual do adotante, haja vista que o interesse fundamental deve ser o da criança, e não se pode permitir que a sua inserção no meio social seja afastada com base
no preconceito sexual. (FACHIN, 2003, v. 18, p.161).
Neste sentido, como síntese do preconceito sofrido pelos homossexuais,
20 Desde 2001, na Holanda, os direitos de casamento valem para todos os cidadãos – as palavras homo e heterossexual nem são citadas pela lei. É impossível saber quantos casamentos gays aconteceram no país: os registros não dão conta se os noivos eram do mesmo sexo, assim como desconhecem se eram negros, judeus ou
canhotos. Na Bélgica, Canadá e no estado americano de Massachusetts, onde se realizou o primeiro casamento gay religioso no mês de maio p.p., a situação é semelhante. França, escandinavos e Buenos Aires, entre ou-
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transcrevemos um trecho do artigo “Meu pai é gay”, extraído do Jornal do Commércio, com circulação pela cidade de Recife, Pernambuco, onde um ex-menino de rua,
adotado por um homossexual, conta que se orgulha do pai, mas ainda sofre com o
preconceito, valendo-se, por essa razão, de nomes fictícios:
Abandonado pela mãe aos cinco anos, junto com mais dois irmãos, não demorou muito para que Edmilson se drogasse e passasse a praticar pequenos furtos, até ser recolhido da rua por Jurandir e colocado num centro de reabilitação.‘Não agüentava
mais sofrer, e ele foi a minha salvação. Para mim, ele é pai, mãe,
irmão, amigo e protetor, porque foi ele que me deu a dignidade e
a cidadania que eu não tinha’, conta o estudante, que, atualmente, além de estar na 6ª série do ensino fundamental, faz cursos técnicos, trabalha para ajudar a manter a casa em que mora e sonha
em prestar vestibular para Agronomia.
A homossexualidade dos pais, admite, em alguns momentos se traduz
em problemas, que, no entanto, têm sido contornados sem maiores
conseqüências. ‘No colégio, os meus colegas diziam em coro: “ei, teu
pai é gay”, mas hoje já aprenderam a nos aceitar e respeitar’, diz. ‘Ele
assume publicamente que o pai é homossexual, conta a nossa história e desafia qualquer um a discutir sobre o assunto, porque o que
realmente importa para ele é saber que tem um lar e um responsável
com quem contar. Se cada gay adotasse um menor abandonado
como eu fiz, não tinha tanta criança se acabando por aí’, completa
Jurandir, orgulhoso (JORNAL DO COMMÉRCIO, 2000).
Como bem pondera Luiz Carlos de Barros Figueirêdo,
[...] existe a homossexualidade. Existem pais e mães homossexuais
com filhos biológicos ou adotivos. Não se trata de seres de outros
planetas ou de um problema distante, e sim, de algo presente em
cada cidade, em cada esquina, em cada família, É uma crueldade contra a espécie humana tentar retirar o tema da agenda de
discussão e deixar de se buscar soluções que atendam a todas as
partes envolvidas. Não se trata de ‘lixo’, e muito menos de se varrer para debaixo do tapete, mas de vidas humanas que merecem
respeito e dignidade (FIGUEIR DO, 2002, p. 25).
Quanto à barreira para a adoção conjunta, o impedimento previsto no artigo
1.622 do Código Civil é utilizado com a argumentação de que a filiação adotiva deve
imitar o padrão natural de família nuclear, com figuras bem claras de pai e mãe, que
seriam imprescindíveis para a formação da criança (LÔBO, 2003, v. 26, p. 162).
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Questiona-se, assim, por meros “achismos”, se a ausência de referenciais de
uma dupla postura sexual poderia, eventualmente, confundir a identidade de gênero, de modo que o menor poderia tornar-se igualmente homossexual.
Neste diapasão, e ainda segundo os ensinamentos do referido autor,
[...] não há fundamentação científica para esse argumento, pois
pesquisas e estudos nos campos da psicologia infantil e da psicanálise demonstraram que as crianças que foram criadas na convivência familiar de casais homossexuais apresentaram o mesmo
desenvolvimento psicológico, mental e afetivo das que foram adotadas por homem e mulher casados (LÔBO, 2003, v. 26, p. 162).
Ademais, os problemas enfrentados pelos homossexuais são os mesmos
dos héteros. São inúmeras as variáveis na criação da criança ou adolescente, que
podem influenciar no seu desenvolvimento, que não o papel materno e paterno.
Independentemente da sexualidade, os papéis são bem definidos, de modo que
a condição ideológica do homoerotismo não pode prevalecer sobre a capacidade
de ser pai e mãe.
Segundo Maria Berenice Dias, na Califórnia20, desde meados de 1970, vem
sendo estudada a prole de famílias não convencionais, tais como os filhos de hippies
e de quem vive em comunidade ou descende de casamentos abertos, bem como
crianças cuidadas por mães lésbicas ou pais gays. Concluíram os pesquisadores que
filhos com pais do mesmo sexo demonstram o mesmo nível de ajustamento encontrado entre crianças que convivem com pais dos dois sexos, não sendo detectada
qualquer tendência importante no sentido de que os filhos venham igualmente a se
tornar homossexuais (DIAS, 2000, p. 99).
Ainda segundo seus ensinamentos, estudos que datam de 1976 constaram
que as mães lésbicas são tão aptas nos papéis maternos quanto as heterossexuais, as
quais, com a devida estimulação, por meios de brinquedos típicos de cada sexo, procuram fazer com que os filhos convivam com figuras masculinas com as quais possam se identificar. “Todas as crianças pesquisadas relataram que estavam satisfeitas
por serem do sexo que eram, e nenhuma preferia ser do sexo oposto” (Melvin, Levis, Fred e Wolkmar, 1993, p. 99 apud DIAS, 2000, p. 99).
No mesmo sentido, Luiz Carlos de Barros Figueirêdo (2002, p. 24) destaca que,
[...] aqueles mais reacionários sustentam que os adotados tenderão a ser homossexuais também, embora não consigam contrapor
este suposto determinismo de opção sexual pela repetição daquela
dos pais ao fato de que todos nós (exceto raríssimos casos de fertilização in vitro) advimos de relações heterossexuais, o que, como
conseqüência de tese desarrazoada, levaria à que não existisse ne-
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nhum homossexual no mundo.
Deveras, conforme ressaltado pela psicóloga Maria Alves de Toledo Bruns, no
site www.sexualidadevida.psc.br:
[...] deveríamos como pais contribuir para que, cada filho desenvolvesse a capacidade para eleger um projeto de vida, cuja premissa básica fosse sua realização como pessoa em todas suas dimensões. Assim, estaríamos abolindo os preconceitos, as discriminações, os estigmas que tanto dificultam nosso aprendizado e nossa
convivência fraterna com àqueles que não atendem nossas idealizações (BRUNS, 2002).
Outrossim, a Magna Carta não impede a adoção por duas pessoas que não sejam casadas ou vivam em união estável, o que torna problemática e discriminatória
a proibição, de modo que não se mostra possível a exclusão do direito individual de
guarda, tutela e adoção face a preferência sexual do cidadão, sob pena de infringirlhe os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, dentre os demais
já expostos.
Do mesmo modo, o Estatuto da Criança e do Adolescente não traz qualquer restrição à possibilidade de adotar e tampouco faz referência à orientação sexual do adotante. Em seu artigo 42, limita-se a dispor que podem adotar os maiores de 21 anos, independentemente do estado civil, não se olvidando que, conforme ressaltado anteriormente, o limite etário sofreu alteração com o advento do Código Civil de 2002.
Assim, pode-se afirmar que
[...] a faculdade de adotar é outorgada tanto ao homem, quanto à
mulher, bem como a ambos conjunta ou isoladamente. A capacidade para a adoção nada tem a ver com a opção de vida de quem
quer adotar, bastando que sejam preenchidos os requisitos legais
(DIAS, 2000, p. 94).
Nem se pode deslembrar que a adoção retrata o direito do adotado de ser
criado e mantido em convivência familiar e comunitária, haja vista que, frente à sua
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, depende da estrutura familiar
para o atendimento de suas necessidades.
Ademais, infere-se do artigo 28 do referido estatuto especial que a colocação
em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos da Lei, não definindo,
contudo, qual seria formação desta família.
Impende recordar, aqui, que a família substituta surge quando se torna impossível à manutenção na família natural, e evita o abrigamento (ECA, art. 101). Assim,
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não se pode exigir que esta possua a mesma estrutura da família natural.
Neste particular, Maria Berenice Dias enfatiza que a medida é um instituto
com forte caráter de ficção jurídica, pelo qual se cria uma relação de parentesco não
existente na realidade. O distanciamento da verdade também ocorre no próprio assento de nascimento, quando o registro é levado a efeito somente pela mãe. Dentro dessa linha, nenhum óbice existe para que alguém seja registrado por duas pessoas do mesmo sexo (DIAS, 2000, p. 95).
Na ausência de impedimento, portanto, devem prevalecer os princípios insculpidos nos artigos 1° e 43 do estatuto especial, deferindo-se a adoção quando
apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivo legítimo, atendendo-se o seu melhor interesse.
Isso porque, ainda segundo os ensinamentos da autora,
[...] cumprindo os parceiros – ainda que do mesmo sexo – os deveres de lealdade, fidelidade e assistência recíproca numa verdadeira comunhão de vida, legítimo o interesse na adoção não se podendo deixar de ver reais vantagens ao menor (DIAS, 2000, p. 94).
Outrossim, o artigo 227 da Constituição Federal atribui ao Estado o dever de
assegurar ao infante e juvenil, além de outros, o direito à dignidade, ao respeito e à
liberdade, o que, normalmente, não se encontra nas ruas e entidades assistenciais,
e sim em uma convivência harmoniosa em família, independentemente da preferência sexual de seus membros.
Embora injustificada a limitação, não se tem notícia do cadastramento de casais homoeróticos à justiça brasileira, tampouco de seu deferimento e posterior efetivação da medida de adoção.
Entrementes, embora este trabalho se destine à proteção do direito material
do homossexual, impende observar que, frente aos argumentos, mormente constitucionais, os pares ou indivíduos homoerótico que vierem a sofrer qualquer restrição aos seus direitos, dentre eles o de postular a guarda, tutela, ou adoção, desde o
seu cadastramento, em simples decorrência de sua preferência sexual, poderá (deverá) ajuizar, dentre outras providências, inclusive disciplinares (se o caso), ação de
mandado de segurança, com vistas a assegurar os direitos que a ele foram concebidos, em pé de igualdade, como cidadão brasileiro comum, tão sofredor, batalhador,
e pagador de impostos quanto cada um de nós (ou até em maior proporção, já que
não pode abater despesas familiares no Imposto de Renda, além de não receber os
mesmos benefícios, já que não raras vezes é impedido de incluir seu parceiro no plano de saúde, por exemplo), merecedor, portanto, de igual proteção e pleno exercício dos direitos.
Não se pode confundir meras vitórias na Justiça, com a efetivação da igualda-
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de almejada, bem como da dignidade a todos garantida, independentemente da manifestação judicial, que, como é cediço, muitas vezes se mostra morosa e ineficaz.
Lutamos pelo reconhecimento geral das uniões homoafetivas como entidades familiares, e suas decorrentes implicações jurídico-sociais, assim como pelo atendimento do princípio da proteção integral das crianças e dos adolescentes, conferindolhes um desenvolvimento intelectual, moral e psicossocialmente esperado, como
pessoas em condição peculiar, que representam o futuro e a esperança da nação.
Pode-se concluir, assim, que a impossibilidade de um cidadão ou um casal homossexual vir a adotar uma criança não encontra limitação válida, de modo que,
com a máxima vênia, as visões contrárias ao seu reconhecimento demonstram despicienda e discriminatória restrição aos próprios primados constitucionais, que jamais poderiam ser aceitas.
7.
CONCLUSÃO
Após muito reflexionar, ainda que com as limitações necessárias, sobre a questão da necessidade de efetivação dos direitos aos cidadãos homoafetivos, a pretensão do presente artigo foi conferir-lhes todo o respeito da sociedade e, precipuamente, a atenção e proteção do Estado, proporcionando-lhes uma maior segurança
jurídica, de modo que os direitos outorgados a todos os cidadãos sejam a eles deferidos sem qualquer distinção.
Dentro dessa perspectiva, e deixando de postular pela criação de “direitos homossexuais”, o que somente agravaria a diferenciação existente, analisou-se, ainda
que sucintamente, o ordenamento jurídico vigente no Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil, o qual tem como um de seus fundamentos a
vedação do estabelecimento de quaisquer formas de discriminação, bem como, em
consagração aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, sem perder de vista o direito à intimidade e ao livre planejamento familiar, torna-se despiciendo frisar que esses valores são agregáveis aos indivíduos homoeróticos, os quais
representam significativa parcela da população.
De outro vértice, e em igual necessidade de proteção, temos os direitos dos
infantes e juvenis de serem inseridos em famílias substitutas, em casos, evidentemente, de impossibilidade da manutenção em suas famílias naturais, com vistas ao
atendimento do princípio da proteção integral, insculpido no artigo 1º, do Estatuto
da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), de onde se infere que os interesses
destes devem prevalecer a quaisquer outros.
Assim, observando-se a legislação de regência, em comento, restou evidente
a ausência de impedimentos à efetivação da medida estudada pela simples orientação sexual de seus pretendentes, mormente frente à carência de restrições (que se
existissem, seriam notoriamente inconstitucionais) e ao direito à convivência familiar e comunitária conferida aos menores, como pessoas em condição peculiar de
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desenvolvimento, de modo que o eventual preconceito que venham a enfrentar não
deve servir de empecilho à concretização da medida (sob pena de perpetuação desta irracionalidade), que é irrevogável, mas que conta com critérios absolutos para a
aferição de sua conveniência, mediante a realização de estudos, desde o cadastramento, assim como para aquilatação da adaptação dos envolvidos.
As uniões homoafetivas configuram verdadeiras comunidades familiares, já
que seus membros podem ostentar, igualmente, as características dos laços afetivos
e sexuais, duradouros e estáveis, com a comunhão de esforços e aspirações nos afazeres cotidianos, não havendo que se afastar, nestes casos, a qualificação jurídica de
família, tampouco a apreciação das relações dela decorrentes, neste âmbito.
Ainda que os homossexuais sejam estigmatizados, vêm os Tribunais reconhecendo-lhes alguns direitos de cidadania. Todavia, não se pode confundir as implicações do princípio da igualdade com meras vitórias na Justiça.
Mais do que isto, lutando por uma sociedade livre, justa e solidária, é mister
que a orientação sexual adotada seja prescindível à elaboração de mecanismos protetivos aos indivíduos, deixando florescer uma retratação dos preconceitos enfrentados pelos homossexuais na sociedade civil e na legislação de forma geral, alcançando-se a igualdade almejada, já que não se encontra limitação válida para o estabelecimento de critérios de diferenciação.
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A INVIOLABILIDADE DO SIGILO DE DADOS
E A ATUAÇÃO DO FISCO
Renato Bernardi
Procurador do Estado de São Paulo.
Mestre em Direito Constitucional.
Professor das Faculdades Integradas de Ourinhos.
Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná – Núcleo de Jacarezinho –
Pós-Graduação em Direito Aplicado – nível de especialização.
Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Tributário da Faculdade
de Direito da Alta Paulista – Tupã/SP – nível de especialização.
Dentre os elementos constantes da Constituição Federal, há aqueles denominados pela doutrina de elementos limitativos, assim denominados porque o seu objetivo regulamentar consiste na restrição da atividade do Estado, traçando linhas divisórias entre o seu âmbito de atuação e a esfera do indivíduo. O mais significativo
exemplo de tal categoria de elementos constitucionais é o rol dos direitos fundamentais, previstos, em sua maioria, no artigo 5º do Texto Constitucional.
Em meio aos direitos e às garantias fundamentais, encontra-se o direito
conferido aos brasileiros e aos estrangeiros presentes no país, expresso no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, de inviolabilidade da intimidade, espécie de direito da personalidade. Como corolário do direito à intimidade, o inciso XII do mesmo artigo da Carta Magna prevê a inviolabilidade do sigilo da
correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na
forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
A questão referente à inviolabilidade do sigilo de dados carece de compreensão quanto à sua estrutura e quanto à sua extensão, sempre se levando em consideração que, conforme pacífica doutrina, embasada em remansosa jurisprudência, o
direito brasileiro não contempla direitos absolutos.
Argumentam aqueles que pretendem incutir caráter absoluto à inviolabilidade
do sigilo de dados que os meios eletrônicos de armazenamento de dados encontram-se sob o manto de proteção inabalável do artigo 5º, incisos X e XII da Constituição Federal, que garantem, respectivamente, a inviolabilidade da intimidade e da
vida privada e a inviolabilidade do sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, rotulando de inconstitucional
e ilegal a realização de qualquer procedimento de avaliação do conteúdo dos com-
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putadores e demais meios de armazenamento eletrônico e magnético de dados.
Os adeptos dessa corrente fundamentam seu entendimento no Acórdão proferido pelo Colendo Supremo Tribunal Federal na Ação Penal 307-3, do Distrito Federal, cujos réus foram, entre outros, o ex-presidente da República Fernando Collor
de Mello e seu assessor Paulo César Farias. Nessa ação penal, foi considerada ilícita
a prova produzida a partir do laudo de degravação do conteúdo de um computador,
que havia sido apreendido pela Polícia Federal sem as devidas formalidades legais.
Todavia, o julgamento da referida ação penal teve por fundamento a ofensa à
inviolabilidade da intimidade do possuidor do computador apreendido, ante a invasão de domicílio para a sua apreensão e a ausência de prévia autorização judicial
para tal procedimento, considerada a possibilidade de nele estarem armazenados
dados de caráter pessoal.
É fato público e notório que as pessoas físicas e jurídicas atualmente se utilizam dos meios eletrônicos e magnéticos para a administração e o armazenamento
dos dados relativos a suas atividades comerciais e fiscais, o que significa dizer que as
eventuais provas de qualquer conduta delitiva sonegatória praticada, em tese, por
qualquer contribuinte, estarão arquivadas em meio eletrônico ou magnético.
A questão põe, frente a frente, a compatibilização entre o respeito aos direitos
e garantias individuais e a preservação do interesse público ou do bem comum, consignando-se que a supremacia do interesse público sobre o privado é prevista de forma implícita nos ditames de nossa Constituição Federal, assim como em grande parte dos países que se organizam sob a égide de um Estado Democrático de Direito.
Os direitos e garantias fundamentais não podem ser utilizados como escudo
protetivo da prática de atividades ilícitas, tampouco como argumento para o afastamento ou a redução da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob
pena de consagração do desrespeito ao Estado de Direito.
Considerando-se um exemplo de direito penal, uma agenda eletrônica – acervo de informações (dados) registradas até o momento da apreensão e parte integrante do conjunto de objetos utilizados para o empreendimento criminoso – que
contivesse o nome de fornecedores e adquirentes de substância entorpecente não
poderia ser considerada prova ilícita para a condenação do criminoso pelo tráfico ilícito de entorpecentes, ainda que se considerasse o direito à intimidade e ao sigilo
dos dados do traficante.
Mutatis mutandis, não se justifica a pretensão eventual do contribuinte de
acobertar-se nas garantias da intimidade e da privacidade documental e de dados,
considerando-se que os computadores e meios magnéticos que venham a ser
apreendidos no curso de qualquer investigação da prática de crimes contra a ordem
tributária ostentam potencial e inequívoca condição de prova não apenas da defraudação, mas também da dimensão temporal da atividade sonegadora.
Reconhece-se que atualmente a tecnologia oferece um sem número de benefícios às pessoas físicas e jurídicas em suas tarefas cotidianas. Por outro lado, é de ri-
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gor o reconhecimento de que a tecnologia da informática não pode produzir impunidade. O armazenamento de dados fiscais e tributários em meio eletrônico ou magnético, incentivado pelo próprio fisco, no interesse da fiscalização e da arrecadação
de tributos, não é imune ao controle estatal, nem causa impeditiva ou excludente
de infrações penais. Os modernamente denominados “cybercrimes” não estão acima da lei e da ordem.
Como já adiantado, nenhuma liberdade individual é absoluta, sendo possível,
respeitados certos parâmetros, a interceptação das correspondências e comunicações telegráficas e de dados, sempre que os direitos ou as garantias fundamentais
estiverem sendo utilizadas como instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas.
A quebra do sigilo garantidor da intimidade do indivíduo, todavia, somente
será lícita após o seu deferimento pela autoridade judiciária.
Determinada e executada a medida independentemente de ordem judicial,
resta garantido à pessoa jurídica ou física devassada em sua intimidade o direito de
recorrer ao mesmo Poder Judiciário em busca da repressão ao abuso de poder praticado pela autoridade pública, traduzida na competente tutela reparatória – caso a
devassa já esteja perpetrada – ou na tutela preventiva – para que se evite devassa
ilegal e inconstitucional – sem prejuízo das sanções penais cabíveis à espécie.
Ao Poder Judiciário, como norte para resolver a intricada lide que põe em confronto o direito fundamental à intimidade e o poder de polícia administrativo, cabe
analisar as características do caso concreto que lhe é apresentado e o objeto jurídico tutelado pela norma garantidora do sigilo de dados, distribuindo o direito de forma proporcional, ou seja, garantindo-se a máxima efetividade do direito fundamental, sem erigi-lo a direito absoluto e privilegiando o interesse público sobre o interesse privado, postulado orientador em todo Estado Democrático de Direito.
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Coordenei o XXII Simpósio Nacional de Direito Tributário do Centro de Extensão Universitária – CEU, subordinado
ao título “Tributação no Mercosul” (2ª. Ed. atualizada, 2002, ed. Revista dos Tribunais/Centro de Extensão Universitária), com a participação dos seguintes autores: Angela Teresa Gobbi Estrelia, Antonio Carlos Rodrigues do Amaral,
Cecília Maria Marcondes Hamati, Celso Ribeiro Bastos, Cláudio Finkelstein, Diva Malerbi, Edison Carlos Fernandes,
Fernando de Oliveira Marques, Halley Henares Neto, Helenilson Cunha Pontes, Hugo de Brito Machado, Ives Gandra da Silva Martins, José Augusto Delgado, José Eduardo Soares de Melo, Kiyoshi Harada, Luis Cesar Ramos Pereira, Marco Aurélio Greco, Marcos da Costa, Maria Helena Tavares de Pinho Tinoco Soares, Maria Tereza de Almeida
Rosa Cárcomo Lobo, Marilene Talarico Martins Rodrigues, Maristela Basso, Moisés Akselrad, Monica Cabral da Silveira de Moura, Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho, Paulo Lucena de Menezes, Plínio José Marafon, Ricardo Abdul
Nour, Valdir de Oliveira Rocha, Vinicius T. Campanile, Vittorio Cassone, Yoshiaki Ichihara e- Wagner Balera.
Os artigos 95 e 96 do Tratado de Maastrich (Amsterdã) estão assim redigidos: “Artigo 95. Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares.
Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições
internas de modo a proteger indirectamente outras produções.
Os Estados-Membros eliminarão ou corrigirão, o mais tardar no início da segunda fase, as disposições existentes à data da entrada em vigor do presente Tratado que sejam contrárias às disposições precedentes.
Artigo 96. Os produtos exportados para o território de um dos Estados-Membros não podem beneficiar de
qualquer reembolso de imposições internas, superior às imposições que sobre eles tenham incidido, directa
ou indírectamente”.
Os artigos 98 e 99 do Tratado de Maastrich (Amsterdã) têm a seguinte redação: “Artigo 98. Relativamente às
imposições que não sejam os impostos sobre o volume de negócios, sobre consumos específicos e outros impostos indirectos, só podem ser concedidas exonerações e reembolsos à exportação para outros EstadosMembros, ou lançados direitos de compensação às importações provenientes de Estados-Membros, desde
que as medidas projectadas tenham sido previamente aprovadas pelo Conselho, deliberando por maioria
qualificada, sob proposta da Comissão, para vigorarem por um período de tempo limitado.
Artigo 99. O Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão e após consulta do Parla-
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A INTEGRAÇÃO DO MERCOSUL ATRAVÉS
DO IMPOSTO DO VALOR AGREGADO.
VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE DIREITO TRIBUTÁRIO
Ives Gandra de Silva Martins
Professor Emérito das Universidades Mackenzie, Paulista e
Escola de Comando e Estado Maior do Exército.
Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado
de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária – CEU.
TEMA I: EFEITOS DA IMPOSIÇÃO DIRETA E INDIRETA
ICMS/IVA
1) A legislação brasileira, na parte em que regionalizou o imposto
de valor agregado, impede a adoção de um regime jurídico único
entre países, como ocorre na União Européia?
2) O fato de a jurisprudência brasileira ter ofertado aos tratados
internacionais o nível de legislação ordinária, nada obstante o ar4
5
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O acordo do Nafta é ainda uma zona de livre comércio.
Adoto a inteligência de Celso Bastos sobre a matéria: “Conceitua, ainda, as regras aplicáveis de direito internacional como sendo direitos consagrados no direito internacional geral ou comum, ou no direito convencional, designadamente os pactos internacionais referentes aos direitos do homem e ratificados pelo Estado português.
No Texto brasileiro não podemos notar aquela perspectiva aberta de que fala Canotilho, uma vez que a referência não é feita ao direito internacional geral, mas sim aos tratados internacionais de que faça parte o Brasil.
De qualquer sorte, essa referência é de grande importância, porque o Texto Constitucional está a permitir a
inovação, pelos interessados, a partir dos tratados internacionais, o que não se admitia, então, no Brasil. A doutrina dominante exigia a intermediação de um ato de força legislativa para tornar obrigatório à ordem interna
um tratado internacional.
A menção do parágrafo em questão ao direito internacional como fonte possível de direitos e garantias deverá trazer mudanças sensíveis em alguns aspectos do nosso direito.
Não será mais possível a sustentação da tese dualista, é dizer, a de que os tratados obrigam diretamente aos Estados, mas não geram direitos subjetivos para os particulares, que ficariam na dependência da referida intermediação legislativa. Doravante será, pois, possível a invocação de tratados e convenções, dos quais o Brasil seja signatário, sem a necessidade de edição pelo Legislativo de ato com força de lei voltado à outorga de vigência interna
aos acordos internacionais” (Comentários à Constituição do Brasil, 2º vol., Ed. Saraiva, 2004, p. 425/6).
Escrevi, inclusive, que a proibição do aborto é cláusula pétrea no país, por força deste dispositivo e do Pacto
de São José: “ABORTO: UMA QUESTÃO CONSTITUCIONAL: Neste artigo, pretendo examinar a questão do
aborto pelo estrito prisma da Constituição, o que vale dizer, sem conotações de natureza religiosa, pessoal, so-
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tigo 98 do CTN, poderá dificultar a integração tributária do Brasil
com outros grupos de países, inclusive o Mercosul, em que os participantes hospedam o princípio da prevalência do tratado internacional sobre o direito interno?
3) A vedação constitucional de a União conceder isenções sobre
7
ciológica ou de qualquer outra espécie.
A Constituição Brasileira proíbe o aborto. O art. 5º claramente cita, entre os 5 direitos mais relevantes, considerados fundamentais, o direito à vida. Se se interpretar que a ordem de sua enunciação pressupõe a sinalização de importância, dos cinco é o mais relevante.
Está o artigo 5º “caput” assim redigido: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:...” (grifos meus).
O texto é de muito maior clareza que aquele da Constituição pretérita, que garantia apenas os “direitos concernentes à vida”, permitindo interpretações, muitas vezes convenientes, de que direitos que diriam respeito
à vida estariam assegurados, mas não necessariamente o próprio direito à vida. Tanto assim é que foi considerado recepcionado o Código Penal de 1940, que admitia, em duas hipóteses, o aborto, e editado um ato institucional, adotando pena de morte –nunca aplicada— para crimes contra as instituições e o Estado.
A atual Constituição, claramente, assegura “o próprio direito à vida”, reiterando, no bojo do artigo 5º, ser vedada a pena de morte no país. Assim, mesmo nos crimes mais hediondos, o criminoso não pode ser punido
com a morte.
Por outro lado, o § 2º do art. 5º da Carta da República declara que os tratados internacionais sobre direitos individuais são considerados incorporados ao texto supremo, significando que, tais tratados passam a ter “status” de
norma constitucional —e não ordinária, como ocorre com os demais tratados internacionais. Está assim redigido:
“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios
por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Ora, o Brasil assinou o Pacto de São José da Costa Rica, tratado internacional sobre direitos humanos. No referido tratado, há expressa declaração que a vida principia na concepção, o que vale dizer: do ponto de vista
estritamente jurídico, o Brasil adotou, ao firmá-lo, que a vida de qualquer ser humano tem origem na concepção. O artigo 4º do referido Tratado tem a seguinte dicção: “Toda a pessoa tem direito a que se respeite sua
vida. Este direito está protegido pela lei e, em geral, a partir do momento da concepção”.
Desta forma, duplamente, o legislador supremo assegurou o direito à vida (art. 5º, “caput” e § 2º) e definiu que
a vida existe desde a concepção.
Tanto o § 2º quanto o “caput” do art. 5º, por outro lado, são cláusulas pétreas e não podem ser modificados
nem por emenda constitucional, como declara o § 4º inciso IV do art. 60 da lei suprema, assim redigido: “§ 4º
Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: ... IV. os direitos e garantias individuais” (Folha de São Paulo, 05/12/03, p. a-3).
Interpretei-o: “Os direitos e garantias individuais conformam uma norma pétrea. Não são eles apenas os que
estão no artigo 5º, mas como determina o § 2º do mesmo artigo, incluem outros que se espalham pelo texto
constitucional e outros que decorrem de uma implicitude inequívoca. Trata-se, portanto, de um elenco cuja extensão não se encontra em textos constitucionais anteriores.
Tem-se discutido se, de rigor, toda a Constituição não seria um feixe de direitos e garantias individuais, na medida em que o próprio Estado deve assegurá-lo e sua preservação, de rigor, é um direito e uma garantia individual. Toda a Constituição não faz senão garantir direitos individuais, que decorrem, necessariamente, da existência do poder assecuratório ( Judiciário), Legislativo (produção de leis), Executivo (executá-las a favor do cidadão).
Por esta teoria, a Constituição seria imodificável, visto que direta ou indiretamente tudo estaria voltado aos di-
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reitos e garantias individuais.
Tal formulação, todavia, peca pela própria formulação do artigo, visto que se os organismos produtores, executores e assecuratórios do Direito representassem forma indireta de permanência dos direitos e garantias individuais, à evidência, todo o resto do artigo 60 seria desnecessário em face da imodificabilidade da lei suprema. O conflito fala por si só para eliminar a procedência dos argumentos dos que assim pensam.
Em posição diversa, entendo que os direitos e garantias individuais são aqueles direitos fundamentais plasmados no texto constitucional —e apenas nele— afastando-se, de um lado, da implicitude dos direitos não expressos ou de veiculação infraconstitucional, assim como restringindo, por outro lado, aqueles direitos que são assim considerados pelo próprio texto e exclusivamente por ele” (Comentários à Constituição do Brasil, 4º vol.,
tomo I, Ed. Saraiva, 3ª. ed., 2002, p. 417/419).
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tributos estaduais e municipais, no Brasil, estende-se à celebração
de tratados internacionais – em que a União representa toda a Federação e não apenas o poder federal – tendo por objetivo isenções no âmbito dessas competências?
O Tratado de Assunção, que criou União Aduaneira para os quatro países signatários, de rigor, ainda carece de um instrumental jurídico capaz de viabilizar a efetiva integração desses países, via único tributo realmente comunitário, que é de valor agregado1.
A União Européia tem sistema tributário semelhante e um acordo tarifário único –o Mercosul dele se aproxima, através da tarifa externa comum (artigo 12 a 29 do
Tratado de Maastrich – Amsterdã)—, distinguindo-se, todavia, do Mercosul por ter
apenas um regime jurídico para o imposto sobre valor agregado nas relações entre
os países que a compõem, o qual recai sobre a prestação de serviços e a circulação
de mercadorias, que é o IVA2.
Em nível interno, todos os países adotam o sistema que lhes parecer adequado, para as operações realizadas exclusivamente dentro de seu território, sendo que
a necessidade de buscar novos mercados é, de rigor, a maior barreira ao aumento
indiscriminado da tributação3.
As relações comunitárias, todavia, dependem de um tributo de perfil integrativo, que é o IVA, razão pela qual seu regime jurídico, embora variável no plano interno, é único nas relações comunitárias e acordado entre os países.
É evidente que o estágio integrativo da União Européia já superou –de há
muito— as meras relações de um sistema centrado na união aduaneira como o Mercosul, que embora mais avançado que o de singela zona de livre comércio, sinaliza,
ainda, um longo caminho a trilhar até chegar ao estágio europeu4.
E é, neste particular, que hão de se enfrentar alguns problemas estruturais,
para a adoção de um regime jurídico único para o IVA.
Os problemas da legislação brasileira são de tríplice natureza.
O primeiro diz respeito à natureza que se oferta aos tratados internacionais no
direito pátrio.
Tenho para mim que os tratados internacionais sobre direitos e garantias individuais são cláusulas pétreas e valem com eficácia de norma constitucional5.
Dois dispositivos permitiram-me tal exegese, que, todavia, não é pacífica, nas
escassas formulações pretorianas, nos Tribunais Superiores, e na doutrina.
Entendo, por força do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, que os tratados
internacionais sobre direitos e garantias humanos foram incorporados em 5 de outubro de 1988, como cláusulas imodificáveis da lei suprema, estando assim redigido,
o princípio da lei suprema:
Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou
dos tratados internacionais em que a República Federativa do
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Brasil seja parte6.
Por outro lado, a imodificabilidade dos textos acordados pelo Brasil, no Plano
Internacional é assegurada pelo § 4º, inciso IV, do artigo 60, com a seguinte dicção:
Art. 60... § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:... IV. Os direitos e garantias individuais7.
Em relação aos demais tratados, todavia, a tendência jurisprudencial é tê-los
como lei ordinária, ou seja, com eficácia de lei ordinária.
O Ministro Moreira Alves, em palestra ministrada no CEU, em Simpósio sobre
o Mercosul, assim se manifestou sobre esta eficácia:
No STF há pouco tempo tivemos um debate em que essa questão se
colocou, e foi justamente a ADIN 1.480, que tratou do problema da
Convenção da OIT, no que diz respeito principalmente ao problema das dispensas injustificadas. E um dos nossos colegas, o Ministro Carlos Velloso, sustentou que o Tratado ingressa na ordem jurídica interna ora como lei complementar ora como lei ordinária:
quando se exige lei complementar e a matéria é disciplinada em
8
Imunidades Tributárias, Pesquisas Tributárias – Nova Série 4, Ed. Revista dos Tribunais/Centro de Extensão Universitária, p. 20/22.
9 “Na Extradição 662-2/República do Peru, o STF-Pleno, em decisão majoritária de 28.11.1996, o relator, Ministro
Celso de Mello, consignou na ementa : “O Código Bustamante – que constitui obra fundamental de codificação do direito internacional privado – não mais prevalece, no plano do direito positivo interno brasileiro, no
ponto em que exige que o pedido extradicional venha instruído com peças do processo penal que comprovem, ainda. que mediante indícios razoáveis, a culpabilidade do súdito estrangeiro reclamado (art. 365, 1, in
fine) ...Tratados e convenções internacionais -tendo-se presente o sistema jurídico existente no Brasil (RE
80.004-SE, STF-Pleno -RTJ 83/809) -guardam estrita relação de paridade normativa com as leis ordinárias editadas pelo Estado brasileiro. A normatividade emergente dos tratados internacionais, dentro do sistema jurídico
brasileiro, permite situar esses atos de direito internacional público, no que concerne à hierarquia das fontes,
no mesmo plano e no mesmo grau de eficácia em que se posicionam as leis internas do Brasil. A eventual precedência dos atos internacionais sobre as normas infraconstitucionais de direito interno brasileiro somente
ocorrerá -presente o contexto de eventual situação de antinomia com o ordenamento doméstico-, não em virtude de uma inexistente primazia hierárquica, mas, sempre, em face da aplicação do critério cronológico (lex
posterior derogat priori) ou, quando cabível, do critério da especialidade, precedentes. (...)” (in RJIOB
1/11/92)” (Pesquisas Tributárias – Nova Série 4, ob. Cit. p. 21).
10 Escrevi sobre o artigo 2º da lei de Introdução ao Código Civil (D.L. 4657/42): “”Está o referido comando e estão seus 3 parágrafos assim redigidos: “Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra
a modifique ou revogue.
§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível
ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
§ 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”.
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Tratado, esse Tratado entraria na ordem interna como lei complementar; quando se exige lei ordinária, entraria como lei ordinária. Essa opinião, no entanto, ficou praticamente isolada. E a objeção capital que se fez é esta: não é possível que nós tenhamos o
Tratado como uma norma jurídica que, ao ingressar na ordem jurídica interna, ele seja bifonte: ora seja uma coisa, ora seja outra.
Ou ele entra como lei complementar ou ele entra como norma
constitucional, ou ele entra como lei ordinária.
E a maioria do STF entendeu que o Tratado ingressa na ordem jurídica interna como lei ordinária, seguindo aliás a orientação
que já é antiga no STF. (grifos meus)
.........
Eu me lembro que, logo que ingressei na Corte, na década de 1970,
houve uma discussão de que eu não participei — porque havia dado
A clareza dos dispositivos oferta pouca margem de dúvidas a respeito da intenção legislativa sobre o sistema
hospedado para questões exegéticas —dedicado ao intérprete— e sobre a racionalidade dos princípios que regem a lei positiva no tempo.
Em junho de 1979, quando fomos convidados a proferir palestra em Belo Horizonte e, simultaneamente, servir de debatedor na conferência do professor Haroldo Valadão, um dos responsáveis pelo D.L. 4.657/42 —no
mesmo dia, tendo ele servido de nosso debatedor—, discutíamos no intervalo entre ambas —e durante o almoço— a perenidade da Lei de Introdução ao Código Civil, pela excelência de seus dispositivos, tendo o eminente jurista se referido ao art. 2º como daqueles mais estáveis no ordenamento jurídico nacional.
De rigor, o art. 2º permite ao intérprete a adoção dos critérios maiores para conhecimento da permanência
normativa.
Assim é que a cabeça do artigo delimita o aspecto temporal, informando que uma lei vigora até que seja revogada ou modificada por outra.
Se se pode discutir eventual redundância dos verbos utilizados “modificar” e “revogar”, posto que a explicação
do § 1º demonstra que a revogação, por sua extensão vernacular, abrange qualquer forma de afastamento do
direito anterior, inclusive a derrogação, ou seja, a alteração parcial, tal redundância, em se admitindo já que há
autores que defendem a explicitação, não prejudica a clareza do comando legislativo, o qual esclarece que em
três hipóteses ocorre a revogação, a saber: de forma expressa, pela incompatibilidade das disposições, prevalecendo a nova conformação legislativa, e pela inteira regulação da lei anterior.
As três hipóteses, portanto, estalajam as gamas possíveis de modificação total ou parcial (ab-rogação ou derrogação), ressaltando-se a importância do § 2º que retira abrangência das duas hipóteses finais do § 1º (incompatibilidade e regulação completa) e do § 3º que evita a repristinação.
Ora, o § 2º explicita a possibilidade convivencial de normas não conflitantes que se coloquem em regência paralela, vigendo lei nova e lei pretérita, seja no concernente às disposições gerais, seja no concernente às disposições especiais” (Direito Econômico e Empresarial, Co-edição IASP/CEJUP, 1986, p. 60/61).
11 É a posição de Antonio Carlos Rodrigues do Amaral: “É importante ainda destacar, relativamente ao alcance do
citado art. 98 do CTN, que ele também se pode aplicar aos tributos estaduais e municipais, na órbita das imposições de sua competência, embora não seja esta uma interpretação pacífica na doutrina. E que quando os tratados internacionais são firmados pelo Presidente da República e ratificados pelo Congresso Nacional, eles
atuam expressando a personalidade jurídica internacional detida pela República Federativa do Brasil. Assim
sendo, o decreto legislativo pelo qual se manifesta a ratificação do acordo ou convenção internacional, se dá
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pelo exercício de uma atividade de nível nacional (congregando todas as esferas componentes da federação:
União, Estados, Distrito Federal e Municípios), e não apenas federal. Da mesma forma, o CTN, com eficácia de
lei complementai é uma lei de âmbito nacional’.
Em resumo, o art. 98 do CTN, disciplinando normas gerais em matéria tributária e regulando as limitações ao
poder de tributar dos entes impositivos pátrios (cf. art. 146, II e III, da CF), é plenamente eficaz e juridicamente conforme à Constituição Federal de 1988, e se aplica aos tributos federais e, em linha de princípio — sujeito à interpretação definitiva que vier a ser construída no âmbito do Poder Judiciário —, também ao disciplínamento de tributos estaduais e municipais, no que se refere a tratados tributários que venham a ser firmados
pela República Federativa do Brasil” (Comentários ao Código Tributário Nacional, ed. 2002, Ed. Saraiva, 3ª. Ed.,
vol. 2, p. 43/44).
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parecer como Procurador-Geral da República —, com referência a
um problema não tributário, mas um problema de Direito Comercial, que era saber da possibilidade de um Decreto-lei estabelecer um
requisito para título de crédito que não havia na Convenção de Genebra, que era justamente de um registro fiscal que se fazia necessário para que o título tivesse validade. Nessa discussão a majorja assentou que os Tratados ingressam na ordem jurídica interna como
lei ordinária. E o argumento que naquela ocasião foi decisivo foi justamente de que, em face da Constituição da época, que era a EC 1/69,
se estabelecia na competência do STFo julgamento de recurso extraordinário onde houvesse negativa de vigência de Tratado ou Lei
Federal. Concebeu-se que essa equivalência considerava que os Tratados estavam abaixo da Constituição, portanto hierarquicamente
inferiores às normas constitucionais. E essa colocação paritária com
as leis em geral lhe dava a natureza de lei ordinária.
12 O XXII Simpósio Nacional de Direito Tributário do CEU concluiu: “4) O Tratado de Assunção, bem como os
acordos posteriores e ao menos complementares, podem disciplinar tributos estaduais e municipais, inclusive
concedendo isenções nessas esferas (art. 151, III)?”
Proposta da Comissão de Redação aprovada em Plenário: O Tratado de Assunção, bem como acordos posteriores de que o Brasil foi signatário, não podem disciplinar tributos estaduais e municipais, inclusive concedendo
isenções nas esferas estaduais e municipais.
(Unânime — Não 59, Sim 41).
Comissão 1: (22 votos)
A resposta é não. Excetuadas as hipóteses do art. 155, § 2.°, XII, e, e 156, § 3.°, II, os arts. 151, III, e 150, § 6.°,
a Constituição Federal proíbe a União de decretar isenções de tributos estaduais e municipais. Portanto, não
está o Presidente da República autorizado a desconsiderar dispositivo constitucional para firmar Tratados veiculadores de isenções que só as entidades federais com competência impositiva poderiam conceder.
(14 votos)
Na consecução do interesse do Estado Federal brasileiro, a União, enquanto órgão de representação perante
os Estados estrangeiros (art. 21, I, da Constituição Federal), pode firmar Tratados e Convenções disciplinando
tributos estaduais e municipais, inclusive concedendo isenções.
Comissão 2:
(27 votos)
O Tratado de Assunção, bem com os acordos posteriores e complementares, podem disciplinar tributos estaduais e municipais.
(6 votos)
O Tratado de Assunção, bem com os acordos posteriores e complementares, não podem disciplinar tributos
estaduais e municipais.
Comissão 3:
(31 votos)
Tratados em que o Brasil for signatário não podem disciplinar nem ao menos conceder isenções, nas esferas
estaduais e municjpais, a não ser que as entidades federativas envolvidas reconheçam em suas ordens jurídicas
as inovações pretendidas.
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Essa posição foi a que prevaleceu quando se examinou a liminar
nessa ADIN 14808.
A meu ver, tem S. Exa. razão, apenas lhe dando eu uma característica de lei
especial9.
Admite-se, por exemplo, nos tratados contra dupla tributação, o tratamento
diferencial na incidência do imposto sobre a renda, de país para país, no concernente à remessa de lucros, dividendos ou pagamentos de royalties para o exterior.
À evidência, as leis que veiculam o tratado ganham caráter de lei especial, convivendo com a lei geral sobre remessas de dividendos, lucros ou pagamento de royalties para países com os quais não há tratados firmados.
Desta forma, apenas por lei especial —ou por lei geral com expressa menção
à revogação— poderiam seus dispositivos ser alterados, assim como a disciplina legal ofertada para as referidas remessas.
Tem, portanto, a meu ver, eficácia de lei ordinária especial, não prevalecendo,
à luz da jurisprudência do STF, os princípios incorporados nas demais Constituições
da Argentina, Paraguai e Uruguai, de que o tratado internacional prevalece sobre o
direito interno10.
Alega-se, no Brasil, que tal prevalência decorre, em matéria tributária, do artigo 98 do CTN, com a seguinte dicção:
Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que
lhes sobrevenha11.
13 Escrevi sobre o inciso VIII do artigo 84, em inteligência não majoritária, que: “Cabe ao Presidente da República, a celebração de tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional. O
referendo exterioriza o princípio da legalidade, pelo qual ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.
É o que dispõe o art. 5.°, II.
Sendo o Congresso Nacional o Poder que representa a totalidade do povo, pois a ele todas as correntes de pensamento político têm acesso, à evidência é o referendo que oferta validade ao tratado internacional, às convenções ou atos, visto que a iniciativa presidencial apenas sinaliza a intenção do governo, que poderá ou não obter a concordância do Poder Legislativo.
Até serem referendados, todavia, as normas de direito internacional prevalecem, mormente no que diz respeito àquelas de aplicação imediata.
Se apenas quando aprovados pelo Congresso entrassem em vigor os tratados assinados, à evidência, a dicção
do Texto deveria ser “sujeitos à aprovação do Congresso Nacional”.
Tenho para mim que a interpretação adequada é a da imediata vigência do ato internacional assinado sujeito à
confirmação futura, deixando de ter validade ex nunc apenas se não referendado.
Embora muitos divirjam dessa interpretação, parece-me a mais adequada “ (Comentários à Constituição do Bra-
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Tal exegese, todavia, perdeu força, à luz da Constituição de 1988, que retirou
da União o direito de instituir isenções de tributos da competência dos Estados, Distrito Federal e Municípios, estando, o artigo 151, inciso III, assim redigido:
Art. 151 É vedado à União:... III. Instituir isenções de tributos da
competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios.
Alega-se que, no Tratado Internacional, o Estado Brasileiro, como um todo, é
que aparece representado, e não a União, razão pela qual prevaleceria o princípio da
lei infraconstitucional (art. 98 do CTN) sobre o texto constitucional vedatório (151,
inc. III, da C.F.).
Não me parece, todavia, que a tese seja sustentável, visto que não houve qualquer ressalva do constituinte –poderia tê-la feito, visto que pormenorizou, como nenhum outro texto constitucional conhecido o fez, o sistema tributário—, razão pela
qual, é difícil sustentar que onde a lei maior não distinguiu exercício da competência impositiva, para garantir às unidades federativas o direito à tributação e às desonerações, possa o intérprete distinguir, tirando-lhes tal poder-dever e transferindoo para a União ainda que representando o Estado brasileiro12.
É de se lembrar, por outro lado, que, nas competências do Presidente da República –unicamente na dele—, está o poder de assinar os tratados (art. 84 inciso
VIII) e, no do Congresso Nacional (art. 49, inciso I), a de resolvê-los definitivamente, ambos os dispositivos assim redigidos:
Art. 84 Compete privativamente ao Presidente da República:
....
VIII. celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a
referendo do Congresso Nacional;
Art. 49 É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
I. resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional13.
Por esta interpretação, entendo que os Tratados Internacionais, que avançam
sobre a autonomia impositiva outorgada a Estados e Municípios, só podem ser assi15 Escrevi: “Não é também demais lembrar que o antigo ICM tinha já um perfil doutrinário e jurisprudencial conformado, talvez valendo para sua definição aquela aprovada pelo 1º Congresso Brasileiro de Direito Tributário,
à luz do relatório baseado no texto também sugerido pelo 3º Simpósio Nacional de Direito Tributário, em 1978,
a saber: “A hipótese de incidência do ICM tem como aspecto material fato decorrente de iniciativa do contribuinte, que implique movimentação ficta, física ou econômica, de bens identificados como mercadorias, da
fonte de produção até o consumo”.
Parece-me que para efeitos do espectro que foi mantido, ou seja, no concernente às operações relativas à circulação de mercadorias não houve alteração no novo texto, prevalecendo, pois, o critério acima exposto” (Sis-
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nados, se com a autorização das entidades federativas mencionadas.
Nesta perspectiva, em matéria tributária, para o Mercosul, nos tributos de
competência de Estados e Municípios, só pode, a meu ver, a União comprometer o
Estado Brasileiro, se com a concordância e o aval das referidas entidades. E é de se
lembrar que o Senado não as representa todas, visto que só os Estados nele têm representantes e não os Municípios14.
Ora, no Brasil, ao contrário de seus parceiros do Mercosul, o imposto de valor agregado, com a denominação de imposto sobre operações relativas a circulação
de mercadorias e prestação de serviços de comunicação e transportes interestadual
e intermunicipal, foi outorgado à competência dos Estados por força do artigo 155,
inciso II, da Constituição Federal, assim redigido:
Art. 155 Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:.... II. operações relativas à circulação de mercadorias e
sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações
se iniciem no exterior15.
É, portanto, um imposto de vocação nacional ofertado pelo constituinte à imposição regional, acarretando inúmeros problemas, no plano interno, sendo o
maior deles a denominada “guerra fiscal”, que consiste na outorga de incentivos não
acordados entre as diversas unidades federativas.
Tal regionalização de um tributo de vocação nacional é, a meu ver, o maior
obstáculo para adoção de um sistema único nas relações entre países, como existe
na Europa. Principalmente, porque no momento em que todas as exceções à tarifa
externa comum caírem, por decurso de prazo ou por acordo quadrilateral, e houver
necessidade, como na Europa, de um sistema do IVA único para as relações internacionais, o sistema brasileiro gerará considerável impasse.
Além da questão já atrás tratada, um outro problema, apenas para exemplificar, vale a pena abordar. Foi, de resto, discutido no XXIII Simpósio Nacional de Direito Tributário, parecendo-me conveniente trazer à consideração deste VI Colóquio
para debate.
Consiste na questão, à época formulada pela Comissão Organizadora dos Simpósios Nacionais de Direito Tributário do Centro de Extensão Universitária, nos seguintes termos:
3) Considerando os artigos 1º, 5º e 7º do Tratado de Assunção,
como devem ser tratadas, à luz do ICMS, as operações com mercadorias oriundas dos demais países do Mercosul? Serão operações
de “importação” (sujeitas à alíquota interna) ou terão tratamento
equiparado a operações “interestaduais” (sujeitas à mesma alí-
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quota aplicável às operações interestaduais ou apenas a uma
complementação de alíquota, se for o caso?)”,
e por mim assim respondida:
Está, o artigo 1º, do Tratado de Assunção, assim redigido:
Art. 1º Os Estados-partes decidem constituir um Mercado Comum,
que deverá ser estabelecido a 31 de dezembro de 1994, e que se denominará “Mercado Comum do Sul” (Mercosul).
Este mercado comum implica:
- a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os
países, através, entre outros, da eliminação dos direitos alfandegários e restrições não tarifárias à circulação de mercadorias e de
qualquer outra medida de efeito equivalente;
- o estabelecimento de uma tarifa externa comum e a adoção de
uma política comercial comum em relação a terceiros Estados ou
agrupamentos de Estados e a coordenação de posições em foros
econômico-comerciais regionais e internacionais;
- a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os
Estados-partes —de comércio-exterior, agrícola, industrial, fiscal,
monetária, cambial e de capitais, de serviços alfandegários, de
transportes e comunicações e outras que se acordem, a fim de assegurar condições adequadas de concorrência entre os Estadospartes, e o compromisso dos Estados-partes de harmonizar suas legislações, nas partes pertinentes, para lograr o fortalecimento do
processo de integração”,
os artigos 5º e 7º já tendo reproduzido na resposta à primeira
questão.
O artigo 1º cuida da implantação de um mercado comum dos países do Sul, segunda etapa para a criação de uma comunidade de
nações.
Os três objetivos são, de rigor, a eliminação de entraves aduaneiros de qualquer espécie, o estabelecimento de uma tarifa externa
comum e a coordenação de uma política integratória de natureza fiscal com especificação de condições.
O artigo 5º reitera, por outro lado, o programa de liberação comercial pela redução dos entraves alfandegários, assim como a
instrumentalização da TEC e as políticas macroeconômicas de integração comercial.
16 Pesquisas Tributárias – Nova Série 3, Tributação no Mercosul, Ed. Revista dos Tribunais, 1997, p. 30/33.
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E o artigo 7º pede, apenas, tratamento tributário interno, para produtos e serviços do Mercosul, idêntico ao dos produtos nacionais.
Não há, pois, qualquer indicação de que o tratamento, nesta primeira fase, implique mais do que aquilo que as cláusulas pretendem dizer.
Nem mesmo expressões como eliminação de “restrições não tarifárias” ou “harmonização de suas legislações” em matéria fiscal, podem ser entendidas como aplicáveis apenas ao regime jurídico interno, prevalecendo para os produtos nacionais e estrangeiros.
Entendo, pois, que os produtos ou serviços originários do Mercosul
terão tratamento equiparável aos produtos importados, aplicando-se-lhes a alíquota interna e não as interestaduais, que a própria Constituição apenas permite sejam adotadas entre os Estados
que compõem a Federação.
Em outras palavras, a Constituição Federal, no seu artigo 155, § 2º,
incisos IV, V, VI e VII, oferta o regime jurídico para o ICMS tanto nas
operações internas, dentro dos Estados, como nas interestaduais,
entre os Estados da Federação, não abrindo qualquer espaço para
tratamento diferencial de produtos que venham de outros países,
mesmo em regime tarifário mais adequado e privilegiado.
Tenho mesmo dúvidas de que, se houvesse previsão no Tratado, este
poderia prevalecer sobre o expresso texto constitucional.
Nem mesmo a lei complementar —e a nº 87/96 não cuida da matéria— poderia, a meu ver, ao explicitar a Constituição, dar tratamento diferenciado aos produtos estrangeiros, ofertando-lhe o regime de operações interestaduais, quando o regime jurídico previsto na Constituição cuida apenas dos Estados federados.
Só mesmo por emenda constitucional, haveria a possibilidade de
adoção de regime diferenciado, visto que, nesta matéria, não se
pode falar em cláusulas pétreas.
A resposta, portanto, é que a alíquota aplicável é aquela de qualquer importação, ou seja, a alíquota interna16.
O Simpósio realizado em 2001, assim se posicionou a respeito:
3) Considerando os arts. 5. e 7.° do Tratado de Assunção, como devem ser tratadas, à luz do ICMS, as operações com mercadorias
oriundas dos demais países do Mercosul? Serão operações de ‘importação’ (sujeitas à alíquota interna) ou terão tratamento equi17 Pesquisas Tributárias Nova Série 4, ob., cit. p. 775/776.
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parado a operações ‘interestaduais’ (sujeitas à mesma alíquota
aplicável às operações interestaduais ou apenas a uma complementação de alíquota, se for o caso)?”
Proposta da Comissão de Redação aprovada em Plenário:
O tratamento das operações com mercadorias oriundas dos países
do Mercosul, para efeitos de ICMS, é o de operações de importação,
sujeitas a alíquotas internas.
(98 votos).
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Comissão 1:
(40 votos)
A entrada de produtos e serviços originários do Mercosul constitui
importação, aplicando-se-lhe a alíquota interna para efeito de
ICMS.
(1 voto)
A alíquota do ICMS nas operações intra-Mercosul deve variar de
zero até o índice daquela praticada internamente, O que determinaria o efetivo montante seria o imposto praticado no outro país.
Por se tratar de união aduaneira, não se pode falar em comércio
exterior; portanto, não há importação.
Comissão 2:
(14 votos)
As operações com mercadorias oriundas dos países do Mercosul
são operações de importação e sujeitam-se a alíquotas internas até
que se equalize a carga tributária.
(28 votos)
As operações com mercadorias oriundas de países do Mercosul são
operações de importação e, à luz do art. 7.° do Tratado de Assunção, para fins de equalização de carga tributária, sujeitam-se ao
regime de alíquotas de operações interestaduais.
(8 votos)
Em face do que dispõe a Constituição Federal de 1988 a respeito do
ICMS, as operações com mercadorias oriundas dos demais países
do Mercosul deverão sujeitar-se à alíquota interna. Entretanto, em
se considerando que, de acordo com jurisprudência da Corte Permanente de Justiça Internacional, se um país obrigar-se validamente no âmbito internacional (o que ocorre no art. 7.° do Tratado de Assunção), deve, mediante alteração da legislação interna,
possibilitar que se cumpra tal obrigação, encontra-se o Brasil em
estado de mora legislativa.
Comissão 3:
(Maioria de votos 44, Divergência 2 = Total 46)
O tratamento das operações com mercadorias oriundas dos países
do Mercosul, para efeito do ICMS, é o de operações de importação,
sujeitas a alíquotas internas17.
Lembro, finalmente, que a respeito da questão retro-abordada, da não prevalência do artigo 98 do CTN, sustentei, no referido Simpósio, que:
18 Pesquisas Tributárias Nova Série 4, ob., cit. p. 34 a 37.
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A resposta é não.
Reza o artigo 151, inciso III, que à União é vedada a instituição de
isenções de tributos de competências de outras entidades federativas. Sua dicção é a seguinte:
“É vedado à União:... III. instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios”.
Ora, a celebração de tratados internacionais é da competência da
União e privativa do Presidente da República, estando o artigo 84,
inciso VIII, assim redigido: “Compete privativamente ao Presidente
da República:... VIII. celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional”, razão pela
qual, o Congresso Nacional é o órgão competente para referendar
os tratados assinados pelo Presidente.
É a União, portanto, quem, através do Presidente da República e
aval do Congresso, obriga a Nação nos tratados, que, todavia, não
podem afrontar a Constituição.
Em outras palavras, pode o Presidente, com o referendo do Congresso Nacional, assinar os tratados que desejar e considerar úteis
para o país, desde que nenhum dispositivo constitucional seja afetado, pois, nesta hipótese, o tratado seria inconstitucional e não
surtiria efeitos no país.
Ora, se o artigo 151, inciso III, proíbe a União de decretar isenções de tributos estaduais e municipais, à nitidez, não está o
Presidente da República autorizado a desconsiderar dispositivo
constitucional para firmar tratados veiculadores de isenções
que só as entidades federativas com competência impositiva poderiam conceder.
Estou convencido de que um dos problemas tributários mais sérios
da homologação fiscal do Mercosul, no que concerne ao país, é
que o Brasil é a única Federação dos países desenvolvidos que oferta ao município competência impositiva constitucional e o considera entidade federativa.
Dentre os sistemas tributários dos países signatários do Tratado de
Assunção, a competência impositiva dada pelo novo ordenamento às entidades federativas brasileiras, supera a que é dada pela
Argentina, que é uma Federação, e não encontra paralelo em países como Uruguay, Paraguay, Chile e Bolívia.
De rigor, os tributos reais ou indiretos, nestes países, estão na competência do poder central e, no Brasil, o principal tributo indireto,
que é o ICMS, pertence aos Estados. Os Municípios têm a competência sobre o ISS, lembrando-se que há um indiscutível crescimento
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da participação, na economia mundial, do segmento representado pela prestação de serviços.
Desta forma, no que concerne à tributação interna, não pode o
Governo brasileiro dispor das competências estaduais e municipais —que se repartem entre 5.000 entidades federativas— para definir isenções, pois só o pode fazer no que concerne a seus próprios
tributos.
Cabe, pois, ao Governo Federal, se quiser retomar o direito a estabelecer isenções, proceder a reforma constitucional, lembrando-se que
seu projeto de reforma tributária, ora em tramitação pelo Congresso, objetiva, no que concerne ao ICMS, alargar o IPI (tributo federal)
transformando-o em ICMS federal, e transferir ponderável poder impositivo dos Estados para o Senado Federal, no que concerne à definição de alíquotas, regimes jurídicos, principalmente no que diz respeito à disciplina da origem e do destino, às operações interestaduais
e à política de isenções, hoje decididas no CONFAZ.
Um dos argumentos do governo é que o projeto objetiva adaptar a
legislação tributária brasileira para a era do Mercosul.
Até lá, todavia, a vedação constitucional do artigo 151, inciso III,
permanece, não dispondo a União, nem mesmo com a implantação do Mercosul, de poder desonerativo sobre as competências impositivas de Estados e Municípios18.
Núcleo de
pesquisa Docente
A questão permanece em aberto, mas estou convencido de que caberia ao Supremo Tribunal Federal posicionar-se adotando uma das duas teses, ou seja, de que a autonomia das unidades federativas, nesta matéria, é absoluta, estando, pois, impedida a
União de conceder isenção sem autorização delas, ou adotar o entendimento de que
não a União, mas o Estado Brasileiro é que firma o tratado, prevalecendo, em matéria tributária, nesta hipótese, o artigo 98 do CTN e não o artigo 151 inciso III da C.F.
Passo, pois, a responder, sucintamente, as três questões propostas pela Comissão Organizadora Brasileira para o VI Colóquio Internacional de Direito Tributário:
1) Sim.
2) Sim.
3) Sim.
SP., 01/03/2004.
e.mail: [email protected]
IGSM/mos/A2004-018 TRAB VI COLOQUIO
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*1 Texto baseado na palestra proferida na USC – Universidade do Sagrado Coração, no seminário promovido pelo
Prof. Cláudio Badaró, na disciplina, ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA, em 6 de novembro de 2004.
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Marilena Chauí, op. cit., p. 362 e 363.
Ensina a autora que (p. 330-336): “A primeira grande teoria filosófica da liberdade é exposta por Aristóteles
em sua obra, Ética a Nicômaco e, com variantes, permanece através dos séculos, chegando até o século
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A CONCEPÇÃO FILOSÓFICO-JURÍDICA DE LIBERDADE*
1
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
Advogada e Professora na Faculdade de Direito de Bauru/ITE.
Mestre em Direito pela Instituição Toledo de Ensino e em Letras pela USC/Bauru.
Supervisora Editorial da RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e
Estudos (DivisãoJurídica) da ITE/Bauru.
Presidente do núcleo regional do IBDFAM (Bauru/SP).
Pesquisadora membro do Núcleo de Pesquisa Docente da Faculdade de Direito de Bauru/ITE.
O homem é livre porque ele é um começo e, assim, foi criado depois que o universo passara a existir: [Initium] ut esset, creatus est
homo, ante quem nemo fuit. No nascimento de cada homem esse
começo inicial é reafirmado, pois em cada caso vem a um mundo
já existente alguma coisa nova que continuará a existir depois da
morte de cada indivíduo. Porque é um começo, o homem pode começar; ser humano e ser livre são uma única e mesma coisa. Deus
criou o homem para introduzir no mundo a liberdade.
(Hannah Arendt, O que é Liberdade. In: Entre o Passado e o Futuro).
No que concerne à concepção filosófico-jurídica de liberdade, há três grandes
teorias procurando defini-la, consoante afirma Marilena Chauí. A primeira é a concepção
aristotélica, levada ao extremo por Sartre, ao afirmar: “estamos condenados à liberda-
4
XX, quando foi retomada por Sartre. Nessa concepção, a liberdade se opõe ao que é condicionado externamente (necessidade) e ao que acontece sem escolha deliberada (contingência), (...). Sartre afirma que estamos condenados à liberdade. É ela que define a humanidade dos homens, sem escapatória. É essa
idéia que encontramos no poema de Carlos Drummond, quando afirma que somos maiores do que o ‘vasto mundo’. É ela também que se encontra no poema de Vicente de Carvalho, quando nos diz que a felicidade ‘está sempre apenas onde a pomos’ e ‘nunca a pomos onde nós estamos’. Somos agentes livres tanto
para ter como para perder a felicidade. A segunda concepção da liberdade foi, inicialmente, desenvolvida
por uma escola de Filosofia do período helenístico, o estoicismo, ressurgindo no século XVII, com Hegel e
Marx. Eles conservam a idéia aristotélica de que a liberdade é a autodeterminação ou ser causa de si.
Conservam também a idéia de que é livre aquele que age sem ser forçado (...) por uma força interna própria. No entanto, diferentemente de Aristóteles e Sartre, não colocam a liberdade no ato de escolha realizado pela vontade individual, mas na atividade do todo, do qual os indivíduos são partes (...), existe ainda
uma terceira concepção que procura unir elementos das duas anteriores [e] introduz a noção de possibilidade objetiva (...). A liberdade é a consciência simultânea das circunstâncias existentes e das
ações que, suscitadas por tais circunstâncias, nos permitem ultrapassá-las”. (Grifado pela autora).
Modernização das Relações Sociais, o Futuro da Amazônia e os Direitos Humanos – Em Tempo – Direitos
Humanos e Cidadania, Revista da Faculdade de Marília – Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha, p.
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55-62.
Crimes de racismo: crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. E-mail do autor: [email protected].
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de”, pois, para esse filósofo, é ela que define a humanidade dos homens. Daí, a denominação, aristotélica-sartreana. A segunda teoria é a do tipo estóico-hegeliano, para a qual
liberdade não mantém a oposição entre liberdade e necessidade (escolher e deliberar),
mas agir ou fazer alguma coisa em conformidade com a natureza do agente, o qual é denominado totalidade. A terceira, que procura unir elementos das duas anteriores, introduz a concepção de possibilidade objetiva, segundo a qual:
O possível não é o provável. Este é o previsível, isto é, algo que podemos calcular e antever, porque é uma probabilidade contida nos fatos e nos dados que analisamos. O possível, porém, é aquilo criado
pela nossa própria ação. É o que vem à existência graças ao nosso
agir. No entanto, não surge como ‘árvore milagrosa’ e sim como aquilo que as circunstâncias abriram para nossa ação. A liberdade é a
consciência simultânea das circunstâncias existentes e das ações que,
suscitadas por tais circunstâncias, nos permitem ultrapassá-las.2
Para expressar o conteúdo da idéia contida nessa concepção de liberdade, a
citada autora transcreve o poema de Carlos Drummond de Andrade, Mundo Grande, a significar que só tendo contato com as pessoas e com o mundo, conhecendo
suas dores, sofrimentos, conflitos, busca e guerras é que terá o homem o conhecimento racional para transformar sua vida em uma realidade nova, gerada por sua
ação, conforme reconhece o poeta na seguinte estrofe:
Outrora viajei
Países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas
[e convocando ao suicídio].
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
Trouxeram a notícia
De que o mundo, o grande mundo está
[crescendo todos os dias],
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode
6
7
Antonio Jeová Santos, Dano Moral Indenizável, p. 447.
Comentários à Constituição do Brasil, v. 1, p. 9 e 10.
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Ó vida futura! Nós te criaremos.3
Não obstante, a situação do direito de igualdade e liberdade encontra-se fragilizada nos dias atuais, pelo abandono das políticas sociais e a profunda mudança
que vêm enfrentando as grandes massas trabalhadoras, em face da moderna tecnologia e da forma de organização da divisão social do trabalho. Igualmente, o valor
dignidade da pessoa humana, como parâmetro de proteção contra toda forma de
tratamento degradante e discricionário lesivos ao homem, tem encontrado obstáculos em razão do autoritarismo social. Em decorrência, parafraseando Maria Angela
D’Incao4, a sociedade moderna apresenta uma cultura esfacelada e tudo o que poderia ser pensado como conseqüência positiva do desenvolvimento é uma farsa.
A esse respeito, exemplifica Leon Frejda Szklarowsky:5
O bárbaro assassinato do índio, em Brasília, por adolescentes da
classe média, as tentativas de assassinato de moças indefesas,
nesta mesma cidade, o trucidamento de um homem por um casal de pouco mais de quinze anos, em Nova York, a degola assustadora, na Argélia, por motivos religiosos, a monstruosa recrudescência da violência na antiga União Soviética, hoje Rússia,
as gangues organizadas em diversas partes, de norte a sul e de
leste a oeste do planeta, a ‘limpeza étnica’ na antiga Iugoslávia,
a execução de um membro da KKK, nos Estados Unidos, por haver cometido crime ligado ao racismo, projetam bem a imagem
do mundo convulsionado, em que vivemos, agravado, sobretudo
pela via sensível e rápida de comunicação, atingindo qualquer
lugar, em segundos. Tudo isto obriga o homem a repensar a sociedade e suas relações.
Acrescente-se à enumeração supra citada, o ressurgimento do nazismo na Europa, com graves repercussões nas Américas, notadamente, nos Estados Unidos da
América do Norte e no Brasil, como revelado no recente caso do homossexual que
foi morto por skinheads na Grande São Paulo; a discriminação econômica em relação aos dekasseguis, motivada pela crise financeira que assola os países da Ásia e o
desrespeito aos nordestinos miseráveis, que rumaram em massa para o Sudeste do
Brasil, principalmente para São Paulo; as políticas baseadas na superioridade racial
ou ódio, como a que fez surgir a Ku-Klux-Klan, nos Estados Unidos, a perseguição
dos judeus, na Segunda Guerra Mundial, proclamando a supremacia da raça branca
e a crença de que o ariano é superior, e as do apartheid, segregação ou separação.
8
Denis Huisman e André Vergez, Curso Moderno de Filosofia (Introdução à Filosofia das Ciências), traduzido
do francês por Lélia de Almeida Gonzalez, p. 316.
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Devem ainda ser ressaltados: o fanatismo religioso que tanto sofrimento tem
causado à humanidade, como, por exemplo: as guerras no Oriente Médio, os conflitos entre católicos e protestantes, na Irlanda, os muçulmanos e hindus, na Índia, ou
as testemunhas de Jeová, no Brasil, que nunca aceitam transfusão de sangue; a discriminação contra a mulher, em razão do machismo, e o menosprezo, principalmente pela mulher solteira grávida que não encontra emprego devido à sua condição, e
a do filho não reconhecido pelo pai; da mulher casada, considerada relativamente
incapaz pelo Código Civil, até o advento do Estatuto da Mulher Casada; o rechaço
social, não somente para com o homossexual, mas, igualmente, para com o transexual, índios, portadores de doenças e deficientes.
Enfim, em todas as situações apresentadas, “há um dever de não discriminar
pela condição social de alguém. Mas, é neste ponto em que mais avultam atos discriminadores”, a ensejar o pedido de indenização6, seja por dano moral, material,
ou ambos. Isto porque o fenômeno mundial da discriminação injusta que encerra o
preconceito nefasto, permanece arraigado nas diversas sociedades e, quando vem à
tona, é uma das principais causas de violação aos direitos humanos fundamentais,
que constituem um a priori da condição humana.
Retornando ao debate inicial sobre o problema da liberdade, segundo os estudiosos do assunto, a questão pode ainda ser examinada à luz de uma avaliação materialista ou espiritualista da História, que não pode ser desconhecida pelo intérprete do Direito Constitucional.
Em resumo, a compreensão das duas correntes de interpretação refletem a essência do constitucionalismo de cada país, explica Ives Gandra Martins.7 In verbis:
As correntes materialistas [portanto] examinam a história dos povos e sua convivência social, negando ao homem, mesmo quando
não o dizem, o seu principal dom, que é a liberdade, visto que,
com ou sem ela, a história fatalmente evoluiria de acordo com os
programas do ‘computador universal’ para a vida. Ao negarem
Deus e qualquer outra forma de conhecimento não-racional, negam também a liberdade do homem em escolher seu próprio destino e de ultrapassar o reduzido campo da percepção pela razão. As
correntes espiritualistas, ao contrário. Entendendo que a ordem
da criação não pressupõe, em relação à vida e ao seu principal
personagem, regras inteiramente preestabelecidas ofertam à ação
humana um grau de liberdade, que lhe é negada pelas correntes
materialistas. Aceitando a tese de que Deus, por não querer escravos, ofereça ao homem liberdade plena, inclusive de negá-lo, ali10 Ibid., p. 321.
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cerçam nesta liberdade absoluta, o maior Dom criador do ser humano (...). Em outras palavras, as correntes espiritualistas, por
acreditarem no livre-arbítrio do homem, ofertam-lhe uma dignidade de concepção e ação que as correntes materialistas não podem ofertar, visto que para estas últimas o homem é obrigatoriamente fruto de um atavismo evolutivo.
Repensando, entretanto, a tese esposada pelo consagrado jurista supra citado
e outros autores, indaga-se: afinal, qual a idéia de liberdade que melhor reflete a
época contemporânea e que se aplique a todas as formas de liberdade?
Seria o conceito de uma liberdade absoluta, assim entendida “como o poder
de agir independentemente, não só das coações exteriores, mas ainda
de toda determinação interior”8, ou seja, a teoria do livre arbítrio, conforme
entenderam os metafísicos? (Grifado no original).
Como é de cristalina evidência, a existência de uma liberdade assim definida
é um mito. Nesse sentido, é a posição esposada por Denis Huisman e André Vergez:9
Evidentemente, é impossível demonstrar a existência de uma liberdade assim definida. (...) todas as filosofias do livre-arbítrio partem de simples descrição da experiência psicológica ou moral.
Descartes asseverava que ‘a liberdade de nossa vontade se conhece sem provas; apenas pela experiência que dela temos’. Leibnitz
invocava o ‘vivo sentimento interno’ do livre-arbítrio. Bergson descobria a liberdade nos ‘dados imediatos da consciência’, ao passo
que Maine de Biran a encontrara nesse ‘fato primitivo’ que constituía experiência de esforço muscular. Deveremos adotar as soluções desses filósofos?
Para as filosofias, como o estoicismo e o spinosismo, a liberdade seria a aceitação da necessidade, ou seja, para ser livre, basta dizer sim, consentir na sucessão
de causa e efeitos, o que significa reduzir a liberdade à resignação. De acordo com
os autores supra citados: “Tal resignação, no século XX, não é mais suficiente. Ela
seria até um pouco anormal. Levada ao limite, ela desencorajaria toda ação
concreta. Qual a vantagem de tentar uma empresa se o resultado, qualquer que
seja, deve ser aceito – como inevitável”?10
Desse modo, para tornar mais claro o complexo problema da liberdade, relatam os referidos autores o seguinte episódio:11
12 Cf. afirmado no início da presente seção, segundo o entendimento de Marilena Chauí.
13 Op. cit., p. 322-325. Entendem os autores, acertadamente, que “a lei só é libertadora se emana de um estado
democrático, cujo governo reflete, efetivamente, a ‘vontade geral’ dos cidadãos. Sabemos suficientemente
do perigo com que ameaçam a liberdade individual os Estados totalitários, as tiranias e as ditaduras, qual-
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Num opúsculo, Gramática da liberdade, um filósofo contemporâneo nos convida a meditar sobre um desses fatos diversos. ‘Um homem foi esmagado pelo comboio 131, na linha 3 da estação do metropolitano de Saint Lazare (...). Esse homem tinha 29 anos. Ontem, Bernardo andava em uma das extremidades da plataforma,
de um lado para outro; afastou-se dos passageiros, inclinou-se
para avistar as luzes da máquina e foi lançado sobre os trilhos, de
pés juntos e os braços ao longo do corpo, como um mergulhador.
Com as duas pernas cortadas, o rosto queimado, morreu imediatamente. Ele não mais dobrará a esquina da rua Ordener, onde,
ainda criança, aprendera os jogos de bola de gude e de gato empoleirado; não mais subirá a escada estreita onde se sentia o mau
cheiro de frituras e da latrina; não mais lerá, apoiado sobre o fogão a gás, sob a fresta do telhado da cozinha, os anúncios de emprego do Parisien Libéré. Ele havia aprendido a profissão paterna:
alfaiate de casacas feitas; há cinco meses estava desempregado: pequenos anúncios, escadas, recusas duras (...) e, depois, suas roupas se tornaram de tal forma andrajosas que ele não ousava mais
sair. Algum de nós já ficou dias inteiros deitado na cama com a
impressão de não Ter mais aspecto de homem, num mundo que recusa seu trabalho? Bernardo ouvia as panelas de sua mãe, do outro lado do tabique: ele vive à custa da mãe; saiu ainda uma vez;
na fábrica recusaram-no para servente porque era muito fraco;
no escritório, um chefe de serviço olhou hostilmente seus sapatos
furados: não há vaga. Às sete horas da manhã, no dia seguinte, ele
se insinuou pela entrada do metrô Saint-Lazare, na hora de volta
ao trabalho. Todos estão presos ao relógio, preocupados com o trabalho. Ele está livre. É livre, pode ir ao museu ou ver as flores dos
parques, é livre para pensar na física de Einstein ou na Imaculada Conceição. No momento, ele se sente livre, sobretudo, para escolher entre o bico de gás e os carros do metrô. São sete horas da
manhã. Começa um dia de homem livre: Um homem foi esmagado pela composição 131, Bernardo, um homem livre entre homens
livres, foi esmagado por essa liberdade. Isso revela, com trágico brilho, a ambigüidade dessa palavra: ‘liberdade’. O desempregado é
livre, visto que não está sujeito aos horários da fábrica ou do escritório, ao peso da tarefa cotidiana. Ele é escravo porque está sujeito à opressão da miséria. É livre para procurar o trabalho que os
14 Ibid., mesma página.
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empregadores são livres para lhe recusar. E, em conseqüência, ele
nem é mais livre para viver. (Conforme o original).
Na era contemporânea, conforme se depreende do texto apresentado, a melhor idéia de liberdade parece ser a do racionalismo moderno, que introduz a
possibilidade objetiva, conforme afirmado no início da presente seção, isto é, a
que procura unir elementos das duas anteriores. Melhor dizendo, à visão do livre-arbítrio, deve ser acrescida à da realidade concreta, a significar que só tendo contato
com as pessoas e com o mundo, conhecendo suas dores, sofrimentos, conflitos,
busca e guerras, isto é, a partir do conhecimento racional da natureza e da sociedade12, é que o homem se liberta progressivamente e se torna apto a transformar sua
vida em uma realidade nova, gerada também por sua ação.
Corroborando essa assertiva, com lucidez e raro brilho, analisam os autores
franceses já referidos:13
Todavia, não podemos definir o ato livre unicamente em função
de nós mesmos, pois agimos em certa situação dada. A pergunta
dos metafísicos: ‘O homem é ou não livre?’ não tem, pois qualquer
sentido, porque é colocada em plano abstrato, É como se perguntássemos: ‘O homem é feliz ou infeliz?’ De fato, a liberdade não é
um estado que caracterizaria a natureza humana enquanto tal;
ela é o resultado de uma libertação, de uma conquista, e, como diz
muito bem Brunschvicg: ‘não é qualquer coisa, que é dada, mas
uma obra que se deve realizar’. Também o ato livre se apresenta
sob formas variadas (...). O homem, graças à sua inteligência, vai,
progressivamente, dominar todas as forças do universo, vai libertar-se submetendo o mundo (...) aprendendo a conhecer e a utilizar o determinismo do universo, as leis da natureza. O conhecimento e a utilização da necessidade serão o instrumento da libertação do homem. É preciso, com efeito, distinguir, com o maior
cuidado, o fatalismo que escraviza e o determinismo que liberta
(...). O caminho de nossa libertação passa pelo progresso das ciências do homem. E encontramos aqui uma idéia essencial, ainda
que muitas vezes desconhecida. A liberdade não é anarquia, mas,
ao contrário, supõe uma organização racional. Se o mundo físico
ignorasse o determinismo, se fosse teatro de perpétuos milagres, a
ação humana não encontraria aí nenhum ponto de apoio. Seríamos escravos de seus caprichos e nenhuma liberdade seria possível. Assim também a ausência de leis numa sociedade que assegu15 Denis Huisman e André Vergez, op. cit., passim.
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re abstratamente a liberdade de todos (cada um fará o que quiser)
terminaria com o esmagamento do mais fraco pelo mais forte.
(Grifado no original).
Do exposto, verifica-se que o intérprete tem que assumir uma postura crítica
diante da realidade, já que o Direito é uma ciência viva e dinâmica, aprimorando-se
sempre com a evolução social em contínua mutação.
Assim, continuando a trilhar o caminho dos objetivos, muitas vezes reiterado
neste trabalho, qual seja, o de trabalhar conteúdos que propiciem a experiência da
virtude da desconstituição dos preconceitos e discriminações estigmatizantes, formatados na memória das pessoas; a importância da crítica para a necessidade de um
direito civil renovado e o desenvolvimento de estudos direcionados à busca de mais
ricas investigações sobre os rótulos discriminatórios criados pela sociedade para racionalizar as diferenças entre pessoas, a possibilitar soluções efetivas em face de
uma nova forma de individualidade, realmente democrática e pluralista, vem-nos à
memória uma palestra do educador Júlio César de Mello e Souza, mais conhecido
pelo pseudônimo literário de Malba Tahan, cuja mensagem enfatiza existirem pessoas que transformam a realidade em sonho, enquanto outras transformam o sonho
na realidade, como no fato histórico que a seguir narramos:14
Roma, (...) ano de 1805, (...) uma ensolarada tarde de outono. Dois homens
galgam lentamente a colina do monte sagrado. Um deles é jovem, esguio, o cenho
carregado não esconde a beleza dos traços que revelam sua origem crioula. O outro, menos jovem, menos alto, ombros curvados, cabelos grisalhos ao vento. Caminham em silêncio (...) dir-se-ia que há, dentro de cada um, um vulcão preste a explodir. Não dizem palavra. Chegam ao cimo. Ambos contemplam a cidade dos Césares e dos deuses que se estende (...). Há no olhar do jovem um misto de mágoa e
desafio. Seus olhos procuram algo, pousam demoradamente no ocidente e, súbito,
ele cai de joelhos e brada solenemente: “Juro pelo Deus dos meus antepassados.
Juro pelo meu país natal, que não permitirei que minhas mãos permaneçam ociosas, nem minha mente em repouso, enquanto não livrar nossa pátria das algemas
que a prendem à Espanha”.
Este jovem era Simon Antonio José De La Santíssima Trinidad Bolivar Y Palacios, o libertador de cinco nações americanas. Tinha vinte e um anos de idade.
O outro, seu mestre, Simon Rodrigues.
Testemunharam aquele juramento apenas o céu que envolvia a Cidade Eterna
e um homem. Vinte anos mais tarde, o mundo assombrado testemunhava a realização daquele sonho e o cumprimento dessa promessa.
16 “Stopping by woods on a snowy evening”. In: Walter Blair, et al. (editors), The Literature of the United States,
v. II, p. 932. A estrofe citada do poema é a seguinte: “The woods are lovely, dark and deep. But I have promi-
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Quase duzentos anos se passaram. Presentemente, a América já comemora
mais de quinhentos anos de seu descobrimento, mas a questão da liberdade, do direito, da justiça, continua atual e clamando pela ação de uma sociedade consciente
e comprometida, conforme analisado anteriormente na presente seção. Por isso,
conclui-se do relato histórico, que:
Não é no sonho de uma ação independente das leis da natureza
que consiste a liberdade, mas no conhecimento dessas leis e na possibilidade assim dada de fazê-las agir sistematicamente, visando a
fins determinados. A liberdade consiste na soberania sobre nós
mesmos e sobre o mundo exterior, fundamentada no conhecimento das leis necessárias da natureza (...). Por que a ação? Porque ela
exprime a liberdade do homem. É esse testemunho de revolta e de
liberdade que constitui o prêmio da revolução, e não uma finalidade política qualquer. Certamente a revolução é obra da liberdade humana, mas está inserida nas necessidades da história (...).
Também os erros conduzem o mundo. Uma teoria do destino humano – no quadro de uma teologia ou de uma filosofia da história – exige um ato de fé, diz Merleau-Ponty: ‘englobe uma palavra
precisa o confuso discurso do mundo (...). O crente, o revolucionário imaginam que seu combate já está ganho – no Céu ou na História’. Reduzida a seus próprios recursos, a filosofia racionalista só
pode afirmar a dignidade do homem. Seu destino continua a ser,
para ela, um enigma.15
Igualmente, na criação do Direito, legislativa, interpretativa, ou doutrinária, a
obra do jurista é libertadora, pois está cristalizando o anseio social para uma estrutura mais racional e justa. O jurista reflete essa vontade livre que está além de sua
obra, porquanto, reescrevendo, de forma interpretativa, o poeta norte-americano,
Robert Frost:16
A busca das respostas é maravilhosa, embora obscura e profunda,
Mas o jurista ainda tem muitas metas a cumprir,
E milhas a caminhar antes de dormir,
E milhas a caminhar antes de morrer.
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O SENTIDO DA FENOMENOLOGIA NA
CIÊNCIA DO DIREITO
Aline Panhozzi
Bacharelanda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Instituição Toledo de Ensino,
4.º ano “A”, período diurno.
Orientadores: Professor Mestre Cláudio José Amaral Bahia.
Professor Mestre Conrado Rodrigues Segalla.
RESUMO
A presente pesquisa objetivou analisar as razões do Direito. Diante das alegações de insegurança e incerteza vivenciadas no mundo jurídico atual, tentou-se buscar a solução por intermédio do estudo do movimento fenomenológico, que se reflete no conhecimento amplo da origem do ser das coisas. Percebe-se que, num determinado momento, aquilo que é almejado pela sociedade, não mais encontra respaldo naquilo que vem disposto nas normas jurídicas existentes, não se podendo,
então, fazer tabula rasa as significativas transformações sociais ocorridas ao longo
do tempo, eis que estas estão a exigir uma nova regulamentação. No entanto, referida regulamentação não pode fugir aos valores básicos que nasceram com o próprio ser humano, devendo, com isso, dedicar-se ao estudo da essência, dos fundamentos, para que não se acabem ou modifiquem a base dos interesses primários do
ser humano.
Palavras-chave: Racionalidade, Segurança-Jurídica e Transformações.
INTRODUÇÃO
Conforme menciona Diané Collinson1, tem-se que Edmund Husserl nasceu em
08 de abril de 1859 em Prossnitz, Morávia, no então Império Austro-Húngaro (atual
Prostejov, na República Checa), falecendo em 27 de abril de 1938 em Freiburg im
Breisgau, na Alemanha. Husserl é o fundador da chamada ‘Fenomenologia’, tida como
1
2
3
COLLINSON, Diané. 50 Grandes Filósofos – Da Grécia Antiga ao Século XX, p. 221.
COLLINSON, Diané. 50 Grandes Filósofos – Da Grécia Antiga ao Século XX, p. 221.
BOCHENSKI, J. M. Edmund Husserl, p. 01, Tradução de Antônio Pinto de Carvalho na obra A Filosofia Contem-
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um método para a descrição e análise da consciência através do qual a Filosofia tenta
obter um caráter estritamente científico. Foi aluno do conhecido filósofo Franz Brentano na cidade de Viena, sendo certo que seus ensinamentos se direcionavam para um
treinamento, passo a passo, da visão fenomenológica, que demandava que se renunciasse ao uso de todo conhecimento filosófico não testado. Ainda em conformidade
com a autora mencionada no pórtico deste arrazoado, denota-se que
no século XIX e mesmo antes, o termo fenomenologia era utilizado
numa ampla gama de significações. A partir do início do século
XX, Husserl empregou esta terminologia para descrever tanto o
método fenomenológico de fazer filosofia quanto para qualquer
método descritivo de estudar um tópico dado2.
É sabido que Edmund Husserl iniciou sua carreira por intermédio de trabalhos matemáticos. Vale destacar que o tema de sua tese, visando, à habilitação para
a função de professor conferencista na Universidade de Halle, denominou-se “Sobre
o conceito de número: análise psicológica”, demonstrando, assim, sua transição da
pesquisa matemática propriamente dita para uma reflexão sobre a base psicológica
das definições básicas da referida ciência. Nesse sentido, convém mencionar a lição
de J. M. Bochenski, para quem
HUSSERL começou sua carreira com trabalhos matemáticos. Foi
então que publicou o primeiro volume de sua importante Philosophie der Arithmetik, obra que não prefigura por forma nenhuma
o caminho por onde sua filosofia iria enveredar (...) Globalmente
considerado o caminho seguido pelo pensamento de HUSSERL,
pode resumir-se da seguinte maneira: partindo do estudo filosófico da matemática, desenvolve primeiramente um método objetivista e intelectual e, na aplicação deste método à consciência, desemboca no idealismo3.
No que se refere às suas obras, pode-se fazer o seguinte roteiro:
• Contribuição à teoria do cálculo das variações (1883);
• Filosofia da aritmética (1891);
• Investigações lógicas (subdividido em Prolegômenos à lógica pura e Investigações – 1901/1902);
• A filosofia como ciência rigorosa (1911);
• Idéias diretrizes para uma fenomenologia e uma filosofia fenomenológica
puras (1913);
4
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia, p. 258.
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• Lógica formal e lógica transcendental (1930);
• Meditações cartesianas (1934); e,
• Experiência e juízo (1939).
Não se pode negar, obviamente, que a grande influência do pensamento de Husserl se encontra presente em toda filosofia contemporânea, haja vista que seu método
fenomenológico continua sendo aplicado por grande parte dos filósofos atuais. Em verdade, e enveredando-se pelo caminho trilhado por Danilo Marcondes, tem-se que
o método fenomenológico de Husserl serviu de inspiração e ponto
de partida para vários de seus seguidores, que procuraram desenvolver análises fenomenológicas do agir moral, da vida social, da
experiência religiosa, da estética e de várias outras esferas da experiência humana, sendo particularmente influente nesse sentido,
sobretudo entre as décadas de 50 e 70. Os arquivos de Husserl, na
Universidade de Louvain, na Bélgica, um dos principais centros de
estudo de fenomenologia, têm publicado muito desses estudos, bem
como textos inéditos do filósofo4.
O MOVIMENTO FENOMENOLÓGICO E A FENOMENOLOGIA
Antes de se iniciar a tentativa de demonstração e explicação do que vem a ser
a fenomenologia desenvolvida por Husserl, mister se faz localizar o espaço temporal e quais os acontecimentos se desenrolavam quando do surgimento do movimento fenomenológico idealizado e capitaneado pelo citado filósofo. Nessa tarefa, utilizar-se-á a descrição histórica elaborada por André Dartigues, a saber:
Pode-se dizer que toda a vida filosófica de Husserl, da Filosofia da
Aritmética (1891) às conferências sobre a Crise das ciências européias (1935), é dominada pelo sentimento de uma crise de cultura. É,
portanto, possível afirmar com Merleau-Ponty que a fenomenologia
nasceu de uma crise e sem dúvida que essa crise é ainda a nossa. ‘A
fenomenologia se apresentou desde o seu início como uma tentativa
para resolver um problema que não é o de uma seita: ele se colocava desde 1900 a todo o mundo, ele se coloca ainda hoje. O esforço filosófico de Husserl é, com efeito, destinado em seu espírito a resolver
simultaneamente uma crise da filosofia, uma crise das ciências do
homem e uma crise das ciências pura e simplesmente, da qual ain5
6
DARTIGUES, André. Q que é a Fenomenologia?, p. 08.
HUSSERL, Edmund. A Idéia da Fenomelogia, p. 46.
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da não saímos’. Os dez últimos anos do século XIX, períodos dos primeiros trabalhos de Husserl, se caracterizam na Alemanha pela derrocada dos grandes sistemas filosóficos tradicionais5.
Em resumo, e nos dizeres de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, tem-se que o movimento fenomenológico se apresenta como contraposto à filosofia positivista que imperava no século XIX, a qual se prendia em demasia à visão objetiva do mundo, ainda mais ao se levar em consideração que a fenomenologia se mostra na contramão da retomada de humanização da ciência, acabando por estabelecer, então, nova relação entre sujeito e objeto, tudo baseado na crença em relação a possibilidade de um conhecimento científico cada vez mais neutro
e livre de subjetividade.
De outra parte, Husserl, como matemático e lógico, acabou por conceber a fenomenologia como ponto de confrontação do psicologismo na lógica, pretendendo
a libertação da Filosofia de tal quadro, ampliando-a, posteriormente, à totalidade do
pensamento humano, criando, com o método fenomenológico, uma ‘filosofia fenomenológica’. Assim, a fenomenologia é uma ciência de objetos ideais; é uma ciência
a priori e muito importante, pois tem que existir a filosofia para dizer se é verdade
ou falsidade o que a ciência empírica, ou o cientista, estão dizendo sobre o mundo
físico. Noutro giro verbal, e valendo-se da conceituação utilizada e difundida pelo
próprio e insigne filósofo, tem-se que a
(...) Fenomenologia – designa uma ciência, uma conexão de disciplinas científicas; mas, ao mesmo tempo e acima de tudo, ´fenomenologia´ designa um método e uma atitude intelectual: a atitude intelectual especificamente filosófica, o método especificamente filosófico6.
Nesse sentido, observe-se o exemplo mencionado por Rubens Queiroz Cobra:
Quando o homem pensa um objeto, por exemplo, ‘mesa’, tem um
pensamento intencional, um pensamento voltado para uma coisa
específica que ele imagina e define, de modo que em sua consciência existe uma mesa, independentemente de que uma mesa exista
ou tenha existido no mundo real externo. As coisas existem em nossa consciência como ‘objetos ideais’ perpétuos. Os objetos ideais
têm realidade, são entes, contém um ‘ser’, e podem ser examinados e classificados. São como os universais de Platão, que existiam
apenas no ‘mundo inteligível’, fora do alcance do homem, mas
7
NUNES. Luiz Antonio Rizzatto. Manual de Filosofia do Direito, pp.41-42.
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que, para Husserl, estão na mente humana, como fenômenos mentais. Tudo que podemos saber do mundo resume-se a esses fenômenos, a esses objetos ideais, designados por uma palavra que representa a sua significação.
O conceituado professor Luiz Antonio Rizzatto Nunes pondera com propriedade, que
para o entendimento adequado do trabalho do fenomenólogo, é
importante examinar o sentido que o termo ‘fenomenologia’ é empregado. A palavra ‘fenômeno’, originalmente, tanto no sentido
científico quanto no filosófico comum, tem relação com ‘aparência’. Por isso o ‘fenômeno’ é um ‘relativo’, pois é aquilo que ‘aparece’ para o sujeito que o observa, ou seja, só existe na medida em
que é observado em relação ao sujeito. (...) Na perspectiva fenomenológica a relação é invertida: o fenômeno que é absoluto; as coisas, o mundo exterior, a árvore, a montanha, só têm existência relativa; relativa perante o fenômeno. Ao contrário da visão anterior, não é representação subjetiva ou o fenômeno que dependem
das coisas ou do sujeito; são as coisas ou os objetos que dependem
da representação ou do fenômeno. A consciência é a base essencial de todas as representações, quer sejam científicas, quer vulgares, da realidade conhecida como objetiva. A consciência é a condição necessária para a afirmação das coisas que são estranhas à
consciência. (...) Daí concluir que as coisas ou objetos só têm realidade a partir da consciência7.
Em síntese, e acompanhando o pensamento das professoras Maria Lúcia de
Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins,
a fenomenologia propõe a superação da dicotomia, afirmando
que toda consciência é intencional, o que significa que não há
pura consciência, separada do mundo, mas toda consciência tende para o mundo. Da mesma forma, não há objeto em si, independente da consciência que o percebe. Portanto, o objeto é um fenômeno, ou seja, etimologicamente, ‘algo que aparece’ para uma
consciência. Segundo Husserl, a palavra intencionalidade não significa outra coisa senão esta particularidade fundamental da
8
9
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; e, MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando – Introdução à Filosofia, p. 171.
COLLINSON, Diané. 50 Grandes Filósofos – Da Grécia Antiga ao Século XX, p. 261.
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consciência de ser a consciência de alguma coisa8.
De outro vértice, é consabido que Martin Heidegger foi aluno e discípulo de Husserl, não se olvidando que, em sua famosa e clássica obra “O ser e o tempo”, acabou por
utilizar o método fenomenológico para discutir e elaborar uma teoria do Ser. De fato,
em O ser e o tempo, Martin Heidegger fornece uma análise da existência humana. Ele considera essa análise como um caminho
para a compreensão do Ser-em-si. O método utilizado é a fenomenologia, aprendida com o mestre Edmund Husserl. A questão central consistia em indicar e descrever os dados da experiência imediata exatamente como eles são, sem sobrepor a organização conceitual e sem abstrações. De um ponto de vista fenomenológico, o
mundo é a condição com a qual nos comprometemos e habitamos;
ele constitui nossas vidas. Nós não devemos entender o mundo
simplesmente como um objeto físico, no qual nós estabelecemos sistemas de pensamentos individuais9.
Valendo-se, uma vez mais, da lição das professoras Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, tem-se que
por meio do conceito de intencionalidade a fenomenologia se contrapõe à filosofia positivista do século XIX, presa demais à visão objetiva do mundo. À crença na possibilidade de um conhecimento
científico cada vez mais neutro, mais despojado de subjetividade,
mais distante do homem, a fenomenologia contrapõe a retomada
da ‘humanização’ da ciência, estabelecendo uma nova relação
entre sujeito e objeto, homem e mundo, considerados pólos inseparáveis. É bom lembrar que a consciência que o homem tem do
mundo é mais ampla que o mero conhecimento intelectual, pois a
consciência é fonte de intencionalidades não só cognitivas mas
afetivas e práticas. O olhar do homem sobre o mundo é o ato pelo
qual o homem experiência o mundo, percebendo, imaginando,
julgando, amando, temendo etc. A fenomenologia critica a filosofia tradicional por desenvolver uma metafísica cuja noção de ser
vazia é abstrata, voltada para a explicação. Ao contrário, a fenomenologia tem como preocupação central a descrição da realida10 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; e, MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando – Introdução à Filosofia, p. 304.
11 Palavra grega que significa redução, ruptura.
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de, colocando como ponto de partida de reflexão o próprio homem, no esforço de encontrar o que realmente é dado na experiência, e descrevendo ‘o que passa’ efetivamente do ponto de vista daquele que vive determinada situação concreta. Nesse sentido,
a fenomenologia é uma filosofia de vivência10.
Em continuidade, não se pode negar que a realidade pode ser vista por dimensões externas e internas, segundo o entendimento fenomenológico de Husserl.
Para ele, o conhecimento e as coisas que envolvem o mundo são vistos por cada indivíduo de formas diferentes; a realidade externa é aquela que se conhece de forma
natural, de acordo com as experiências vividas por cada pessoa, conforme se observa pelas palavras de Wilson Hilário Borges: “espontaneamente vivemos em atitude
natural e nossa experiência é vivida como essa realidade exterior sem necessidade de consciência”. Esta realidade externa é o que leva as pessoas a aceitarem o
mundo natural sem fazer questionamento. Já a realidade interna, apresenta-se muito mais abrangente, pois busca na consciência o verdadeiro sentido que se tem das
coisas, que vai muito além do que ela aparenta ser.
Husserl utiliza do conhecimento da realidade externa para chegar à realidade
interna, valendo-se, para tanto, do método da redução, denominando-a de “epoche”11, valendo trazer à colação, novamente, os escorreitos dizeres de Wilson Hilário
Borges, que define aludida técnica como o ato de
aniquilar tudo que é exterior como sendo a condição primária
para se buscar o apodícto do mundo interno. Essa operação quer
dizer que é necessário partir-se de uma suspensão da relação entre esses mundos que não são postos como condições necessárias
no plano da vivência.12
O método fenomenológico, proposto por Husserl, procura avançar a partir da
descrição do fenômeno, não se preocupando em explicar os fatos por meio de leis
ou causas e conseqüências, e sim se preocupando com a observação e descrição objetiva dos fatos.
Desta feita, uma importante oposição que o movimento fenomenológico faz
em relação ao movimento positivista é que não existem fatos com a objetividade
pretendida, pois não se consegue perceber o mundo como um dado bruto, desprovido de significados, emergindo claramente daí a inequívoca importância dada ao
sentido, à rede de significações que envolvem os objetos percebidos.
13 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 153.
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FENOMENOLOGIA E DIREITO
A fenomenologia acabou por espraiar seus efeitos no Direito, tendo como
precursor o conhecido pensador alemão Adolf Reinach, como bem explica Karl Larenz em sua obra “Metodologia da Ciência do Direito”, a saber:
Quem primeiro aplicou o método fenomenológico a objectos do
mundo do Direito foi o filósofo ADOLF REINACH. Segundo REINACH, as figuras jurídicas (por exemplo, as pretensões, as obrigações, a propriedade e os demais direitos) têm, tal como os números, as árvores ou as casas, um ser. Este ser é independente de
que haja ou não quem o apreenda, e em especial independe de
todo o Direito positivo. O Direito positivo não produz em nada
os conceitos jurídicos a que dá acolhimento: depara com eles.
Esses conceitos têm estrutura própria, sobre a qual podemos
enunciar proposições apriorísticas; e se o Direito positivo é livre
de os acolher na sua esfera ou deles divergir, todavia não consegue afectar a sua existência específica. Pelo contrário, a estrutura do Direito positivo só se torna inteligível através da estrutura
da esfera exterior ao Direito positivo. Encontramos nessa esfera
objectos específicos, que não pertencem à natureza em sentido
próprio, que não são físicos nem psíquicos, e que igualmente se
distinguem, pela sua temporalidade, de todos os objectos ideais.
Com efeito, as pretensões e as obrigações nascem, duram algum
tempo e depois desaparecem de novo13.
Continuando a análise da obra em questão, tem-se que para o filósofo alemão
uma coisa é a propriedade enquanto tal – caracterizada pela relação da pessoa à coisa, uma relação de pertença – e outra a propriedade no sentido do Direito Civil, embora o consagrado pensador admita que a estrutura essencial de uma figura jurídica possa constituir a base dos correspondentes fenômenos jurídico-positivos, alertando, de maneira enérgica, que o Direito positivo tem plena liberdade para divergir discricionariamente daquela estrutura.
Nos tempos atuais, e voltando-se os olhos para o Direito Constitucional Brasileiro, tem-se a presença marcante de Lenio Luiz Streck, principalmente na festejada obra denominada “Jurisdição Constitucional e Hermenêutica”, onde afirma, com
inspiração manifestamente heidegariana, que adota como fio-condutor de suas reflexões o método fenomenológico. Neste sentido, coloca em uma de suas reflexões
14 STRECK, Lenio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, p. 2-4.
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que a crise do Direito deve ser confrontada “através do descobrimento de caminhos que conduzem à produção de justiça material”.14
Seguindo este raciocínio, tem-se que a atual insegurança jurídica do ordenamento se dá não por uma deficiência do Direito em si, mas sim pela fragilidade do
Estado, que mal-governado por seus representantes, propõe reformas ineficientes
para o efetivo deslinde do problema, preocupando-se apenas com a solução superficial e imediata deste. É neste sentido que se propõe o estudo fenomenológico no
Direito, que se utilizando do método de análise entre “a constituição fundamental
do objeto” e o “modo de ser do ente tematizado” faz-se possível o conhecimento interno da coisa, e não mais apenas de seu caráter externo, conhecido tradicionalmente por qualquer pessoa.
Fundamentam aqueles que defendem a certeza do direito como finalidade última das normas que, para se atingir a segurança jurídica, deve-se dificultar elaboração de alterações àqueles regramentos jurídicos já existentes. Entrementes, tal entendimento apresenta-se ultrapassado e tacanho, já que muitas transformações sociais ocorrem, devendo o Direito acompanhá-los, em resumo: “Tempora mutantur
et nos in illis mutamur” (“Os tempos mudam e nós mudamos com eles”); “Mutationes facti, jus mutatur” (“Mudados os fatos, o direito muda”). Ao se proceder a
análise dos adágios latinos acima declinados, entremostra-se fácil extrair a conclusão
de que as condições da convivência humana não são, de forma alguma, imutáveis,
pois inegavelmente, sofrem alterações por intermédio da influência que é exercida
pelas constantes modificações sociais, culturais, econômicas, religiosas etc. Noutro
giro verbal, e para que seja dotado de efetividade e de eficácia, o Direito deve, na
medida do possível, acompanhar os fenômenos evolutivos que o circundam, sob
pena de, em assim não agindo, tornar-se obsoleto e sem utilidade.
Assim, o que se deve defender, quanto à certeza do Direito, é a forma pela
qual se efetivam e se concretizam as mudanças verificadas e clamadas no seio social,
devendo estas observar, com clareza e honestidade, se o que está sendo objeto de
alteração é capaz de alcançar os ideais afetos à Justiça, que é o fim de toda e qualquer norma, mais especificamente, no caso brasileiro, aquela materializada pelos ditames insertos no artigo 3.°¨da Carta de Outubro, quando ali se reporta aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Neste sentido, Heidegguer, interpretado na obra de José Fabio Rodrigues Maciel, entende que:
(...) o fato de a sociedade preferir o ‘dogmatismo’ e a certeza das decisões, em detrimento da não-surpresa quanto ao conteúdo que será
prolatado, prejudica sobremaneira a conquista do valor Justiça e gera
instabilidade no sistema jurídico que terão reflexos diretos na tão al-
15 http://www.jus.com.br/doutrina/imprimir.asp?id=16.
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mejada segurança. Se em decorrência da angustia propiciada pela
perspectiva de mudanças, a comunidade como um todo não enfrentar a inospitalidade do mundo e deixar de transcender coletivamente,
adotando atitude conformista e voltando-se para o cotidiano, a insegurança jurídica estará instalada. Isso se dá porque, havendo a possibilidade de o homem transcender, fica demonstrado que ele não é um
ser acabado, e jamais o será. Mesmo que se volte ao cotidiano, mutações irão ocorrer, já que a angústia é inerente ao ser humano.
Por fim, e concordando com Lais Vieira Cardoso15, pode-se verificar no pensamento fenomenológico um início de raciocínio inclinado para a dialética, isto é, de
movimentação no que se refere à relação intencional do sujeito para o objeto, tal
qual ocorre na conhecida teoria tridimensional elaborada e difundida pelo conceituado jurista pátrio Miguel Reale, cujo postulado, como é sabido, pugna pelo somatório de fato, valor e norma para formar o Direito.
CONCLUSÃO
A fenomenologia possui grande importância na Ciência do Direito por estar
preocupada com as alterações que ocorrem naturalmente na essência do ser humano e de suas relações, buscando proteger a realidade social vivida e não aquela que
a sociedade, por simples comodidade, resolve acreditar presente e mais conveniente para a solução de seus problemas.
Para que essas mudanças sejam feitas sem que o indivíduo se sinta inseguro
diante dos ditames da sociedade em que vive, deve o tema discutido ser estudado
minuciosamente, de forma racional e prática.
Com isso, as novas normas elaboradas no ordenamento jurídico pátrio não serão colocadas no sistema sem que o jurisdicionado encontre o porquê do seu ser,
facilitando, assim, sua aceitação diante do parâmetro da justiça entendida individualmente por cada um destes.
A fenomenologia representa o movimento que, além de buscar a verdade real
da existência das coisas, busca a segurança jurídica e a justiça, pois se preocupa tanto com as verdadeiras soluções e razões que o Direito oferece, quanto com o processo filosófico que deve se seguir para a elaboração dessas mudanças, de forma que
não prejudique o ser com imposições muito mais políticas do que sociais.
REFERÊNCIAS
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ARANHA, Maria Lúcia de Arruda.; MARTINS, Maria Helena Pires. “Filosofando: introdução à
filosofia”. 3ª edição, revista. São Paulo: Moderna, 2003.
BOCHENSKI, J. M. Edmund Husserl. “A Filosofia Contemporânea Ocidental” . Herder, 1968.
in www.consciencia.org/contemporanra/husserlbochenski.shtml.
COLLISON, Diané. “50 Grandes Filósofos: da Grécia Antiga ao Século XX”.
CHAUI, Marilena. “Convite à Filosofia”. 13ª edição, São Paulo: Ática, 2004.
COELHO, Luiz Fernando. “Teoria Crítica do Direito”. 3ª edição, revista, atualizada e ampliada. Editora Del Rey.
DARTIGUES, André. “O que é fenomenologia”. 8ª edição, São Paulo: Centauro, 2002.
HUSSERL, Edmund. “A idéia da fenomenologia.” Lisboa: Ed. Edições 70 Ltda, 2000.
MACIEL, José Fabio Rodrigues. “Teoria Geral do Direito: segurança, valor, hermenêutica,
princípios, sistema”. São Paulo: Saraiva, 2004.
MAECONDES, Danilo. “Iniciação a História da Filosofia”.
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. “Manual de Filosofia do Direito” . São Paulo: Saraiva, 2004.
FILHO, Willis Santiago Guerra. “A Filosofia do Direito: aplicada ao direito processual e à
teoria da constituição”. 2ª edição. São Paulo: 2002.
LARENZ, Karl. “Metodologia da Ciência do Direito”. 3ª edição. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1997.
STRECK, Lenio Luiz. “Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma nova crítica do Direito”. 2ª edição, revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
WILSON, Hilário Borges. “Decisão Social e Decisão Jurídica: uma teoria crítico-historicista.” São Paulo: Germinal.
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DIREITOS DO CONSUMIDOR:
O PRINCÍPIO DA INFORMAÇÃO E SEUS RESULTADOS
Anna Carolina de Miranda
Aluna do Curso de Direito, 4º ano, Faculdade de Direito da Instituição Toledo de Ensino de Bauru.
Orientador: Professor Doutor José Luiz Ragazzi
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo destacar a referência relevante do Direito
do Consumidor, através da Lei 8.078/90, para a conscientização da população em
geral no tocante aos seus direitos de cidadão e seus reflexos para a formação de
mercado de consumo maduro, produtivo, competitivo e seguro, além de identificar os direitos básicos que o consumidor desconhece; alertá-los sobre direitos
que não sabem serem possuidores, dissertando e exemplificando cada um desses direitos para que seja de fácil entendimento a todos e útil à comunidade.
Que os esclarecimentos possam, de alguma forma, auxiliar, não somente os estudantes de direito, como também todas as pessoas que tomarem ciência dos
mesmos e que desperte nos consumidores o interesse em lutar pelo cumprimento eficaz de seus direitos.
Palavras-chave: Informação, Relação Consumerista, Código de Defesa do Consumidor.
1
2
BORTOLAI, EDSON COSAC . Da Defesa Do Consumidor em Juízo. p. 7.
NUNES, LUIZ ANTONIO RIZZATTO. Compre Bem; Manual de Compras e Garantias do Consumidor. P. 18.
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INTRODUÇÃO
O Código de Defesa do Consumidor estabelece que os consumidores devem
ser educados e informados sobre os seus direitos e deveres, com vistas à melhoria
do mercado de consumo.
Várias faculdades de Direito do País já inseriram em suas grades curriculares a
matéria de Direito do Consumidor.
Inúmeras prefeituras do País mantêm cursos sobre direitos e deveres do Consumidor, com o objetivo de informar, através da rede básica de ensino, seus direitos
e deveres.
O enquadramento constitucional da proteção ao consumidor, nos artigos. 5º,
XXXII e 170, V da Constituição Federal, trouxe à tona a necessidade imperiosa de intervenção do Estado em face ao desequilíbrio econômico, social e político nas relações de consumo, agora reconhecidas como tais.
O consumidor passou a ter sua cidadania reconhecida constitucionalmente,
assim como seu direito à vida, à dignidade, à saúde, à segurança, dentre outros.
O crescimento populacional e de consumo, ocorridos nas décadas de 80 e 90,
evidenciou o perfil de uma economia globalizada, na qual o fator qualidade vem obtendo reconhecimento social, considerando a segurança e a saúde do consumidor,
como segurança e saúde do próprio cidadão.
Fica evidenciado, ainda que tardiamente, que o caminho para o crescimento
econômico, assim como a conquista do mercado externo deve necessariamente passar pela via do respeito ao consumidor no mercado interno.
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Consumidor
Define o Código de Defesa do Consumidor, no art. 2º, que consumidor é toda
pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Então, o primeiro elemento que se deve ter em vista a fim de se verificar se
está ou não diante de um consumidor é se é ou não destinatário final do produto
ou serviço. Em caso afirmativo, independente de se tratar de pessoa física ou jurídica, adquirente ou usuário do produto ou serviço, será, o mesmo, consumidor.1
Tal utilização do produto pode se dar diretamente pelo consumidor, quando
ele janta em um restaurante, por exemplo. Também por seus parentes e amigos,
quando bebem os refrigerantes adquiridos para sua festa. Tratando-se de pessoa jurídica, tanto ela como seus funcionários, sócios e diretores são consumidores ao uti3
4
5
MELLO, SONIA MARIA VIEIRA DE. O Direito do Consumidor na era da Globalização. p. 25.
MELLO, SONIA MARIA VIEIRA DE. O Direito do Consumidor na era da Globalização. p. 25.
Idem ao 4.
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lizarem, por exemplo, um automóvel da empresa.2
Nas palavras de Sonia M. V. de Mello, consumidor é o detentor do direito que
deve ter legitimidade e interesse para agir.3
Há alguns “apelidos” dados ao consumidor dependendo da situação em que
se encontra, como, por exemplo, passageiro, usuário, comprador, cliente, emitente,
estudante, leitor, hóspede entre outros.
Fornecedor
O art. 3º do CDC, em seu caput, define fornecedor como sendo toda pessoa
física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes
despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação,
construção, transformação, importação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
A fim de otimizar a proteção ao consumidor, o CDC conceitua o fornecedor
da forma mais abrangente possível, incluindo pessoas físicas, jurídicas, nacionais ou
estrangeiras, públicas ou privadas, que ofereçam produtos e/ou serviços ao mercado de consumo. Esta abrangência é de suma importância, pois protege o consumidor brasileiro contra as práticas abusivas por parte dos prestadores de serviços públicos, e inclui com propriedade os importadores de produtos estrangeiros.
O que se faz necessário frisar é que a atividade prestada pelo fornecedor, seja ele
quem for, deve ser remunerada para caracterização da relação de consumo, ou seja, serviços e produtos fornecidos gratuitamente não estão sob o enfoque do CDC.4
Toda e qualquer pessoa que coloca direta ou indiretamente um produto ou
serviço no mercado, desenvolvendo atividade para esse fim, é considerada fornecedora, até mesmo a pessoa física que vende mercadorias de porta em porta e as empresas “de fato”, como os camelôs.
Produto
Para conceituar produto, traz o CDC a noção de que este é um bem circulante das mãos do fornecedor para o consumidor, sendo este o destinatário final do
produto, que deve ter determinada finalidade, ou fim a que se destina.
Poderá o produto ser móvel, imóvel, material, imaterial, durável ou não durável.5
São exemplos: alimentos em geral, produto de limpeza, medicamentos, eletrodomésticos, vestuário, móveis, automóveis, materiais de construção etc.
Todos os produtos têm uma finalidade específica; como um carro, por exemplo, que, necessariamente, deve conduzir o usuário até o seu destino.
Serviços
Define o CDC que serviço é uma atividade laborativa em favor de outra pessoa,
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no caso o consumidor, ofertada no mercado de consumo, mediante remuneração.
Assim, os serviços prestados por pessoa física, autônomo se enquadram perante o CDC desde que sob remuneração.
São exemplos de serviços: aulas particulares em geral, encanadores, chaveiros, buffets, limpeza, médico, pintura, vigilância etc.
DIREITOS BÁSICOS DO CONSUMIDOR
Esses direitos estão descritos no art. 6º do CDC, e dirigem-se especificamente à proteção da pessoa do consumidor de boa-fé, na relação de consumo.
Tais direitos básicos são fundamentados nos direitos e garantias fundamentais
da Constituição Federal, sendo que tais direitos são inalienáveis, intransferíveis e irrenunciáveis.
Art. 6º. “São direitos básicos do consumidor:
I – A proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;
Quaisquer produtos ou serviços que possam causar algum dano à saúde, ou
mesmo à vida de uma pessoa, se enquadram como perigosos ou nocivos.
A segurança também é protegida pelo inciso I, e como produtos ou serviços
perigosos ou nocivos à segurança, podemos citar, por exemplo, os automóveis, aparelhos eletrodomésticos, assim como serviços de transporte de pessoas, tais como
transporte aéreo e rodoviário.
Art. 6º. “São direitos básicos do consumidor:
II – A educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade
nas contratações”.
Os fornecedores de produtos ou serviços têm a obrigação legal de informar
corretamente o consumidor, sobre as características dos mesmos, assim como quanto aos riscos que estes possam apresentar. A educação e a divulgação se referem ao
princípio da boa-fé, ou seja, a necessidade de transparência nas negociações, para
que de forma consciente o consumidor saiba o que está adquirindo e a quais condições está obrigado.
6
MELLO, SONIA MARIA VIEIRA DE. O Direito do Consumidor na era da Globalização. p. 25.
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Art. 6º. “São direitos básicos do consumidor:
III – A informação adequada e clara sobre os diferentes produtos
e serviços, com especificação correta de quantidade, característica, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que
apresentem;”
Ainda preservando o princípio da boa-fé e da transparência nas relações de
consumo, o fornecedor deve informar ao consumidor sobre todas as características
ou serviços oferecidos.
Art. 6º. “São direitos básicos do consumidor:
IV – A proteção contra publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;”
Na sociedade atual, o papel da publicidade e propaganda é fundamental
como fator influenciador de comportamentos e necessidades perante o indivíduo. Assim, muitas vezes, nós não precisamos de determinado produto, mas acabamos por desejá-lo em função do papel influenciador da publicidade em nossas vidas.6
Art. 6º. “São direitos básicos do consumidor:
V – A modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;”
O fornecedor, nas práticas habituais em ditar as regras contratuais, se utiliza
muitas vezes de índices de reajustes incompreensíveis ao homem, ocasionando surpresas desagradáveis para o consumidor. Nesses casos, há a possibilidade de submeter tais cláusulas a uma revisão, para que a obrigação seja cumprida de forma equilibrada com a justiça social e a harmonia das relações de consumo.
Art. 6º. “São direitos básicos do consumidor:
VI – A efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;”
Ora, somente tendo a recuperação do patrimônio material, a reparação do
dano causado pelo fornecedor, é que o consumidor terá a devida tutela do Estado.
7
MELLO, SONIA MARIA VIEIRA DE. O Direito do Consumidor na era da Globalização. p. 25.
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Art. 6º. “São direitos básicos do consumidor:
VII – O acesso aos órgãos judiciários e administrativos, com vistas
à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;”
Tal sistema instituído no CDC refere-se a uma grande participação estatal nas
relações de consumo. Cabe ao Estado permitir ao consumidor individualmente considerado ou como ente coletivo o acesso ao judiciário e órgãos competentes para se
prevenir e buscar soluções para as questões.
Art. 6º. “São direitos básicos do consumidor:
VIII – A facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a
critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;”
Com a possibilidade da inversão do ônus probante, é o fornecedor quem deve
provar que não causou o dano material ou imaterial.
Inverte-se o ônus probante, para que se alcance a isonomia processual das
partes litigantes, assegurada pela CF no art. 5º, de onde se infere o tratamento desigual para partes desiguais, na proporção de suas desigualdades.
Art. 6º. “São direitos básicos do consumidor:
IX – Vetado;
X – A adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral”.
Tal inciso inclui expressamente os prestadores de serviços públicos como sendo sujeitos passivos de obrigações. Assim, serviços como loterias, transporte coletivo, telefonia, energia elétrica, entre outros, poderão ser objetos de ação civil ou penal, desde que enquadrada a relação como de consumo e exteriorizado o dano.7
PRÁTICAS COMERCIAIS ABUSIVAS
As práticas abusivas referem-se às praticas habituais utilizadas pelos fornecedores em suas técnicas de venda ou contratação, que prejudicam, lesionam os consumidores antes, durante ou após a conclusão negocial.
O art. 39 do CDC elenca inúmeras práticas hoje consideradas condutas abusivas, geradoras de infrações administrativas.
Art. 39 – É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços:
I – condicionar o fornecimento de produtos ou de serviços ao for-
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necimento de outro produto ou serviço bem como, sem justa causa, a limites quantitativos...
Tal situação se traduz por coação, na qual o fornecedor impõe ao consumidor
“obrigação de adquirir outro produto a fim de obter o produto inicialmente desejado, caracterizando-se, assim, a chamada venda casada”.
Art. 39 – É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços:
II – recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de duas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes;
Tal medida obriga o fornecedor a atender às necessidades do mercado até o
limite do seu estoque, proibidas assim a sonegação de produtos ao mercado.
Art. 39 – É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços:
III – enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia,
qualquer produto ou fornecer qualquer serviço;
Esse dispositivo proíbe a prática completamente abusiva por parte dos fornecedores que, muitas vezes, remetem para seus clientes produtos sem nenhuma solicitação e o consumidor, por sua vez, mal informado, recebe o produto e algum
tempo depois está com débito inesperado. O fornecedor só perde com esta prática,
pois não poderá receber pelo produto ou serviço, que passam a ser consideradas
amostras grátis.
Art. 39 – É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços:
IV – prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúda, conhecimento ou condição social,
para impingir-lhe seus produtos ou serviços;
Este dispositivo frisa que o despreparo e a fragilidade das pessoas não podem
ser utilizados para a imposição de produtos e serviços por parte do fornecedor; afinal, crianças, idosos, pessoas de nível cultural inferior não possuem mecanismos de
auto-proteção eficientes.
Art. 39 – É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços:
V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;
Vantagem manifestamente excessiva é aquela que torna flagrante o desequilíbrio entre o fornecedor e o consumidor numa relação de consumo. Uma das máxi-
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mas do direito do consumidor é a harmonia e o equilíbrio da relações que devem
ser pautadas pela boa-fé e transparência.
Art. 39 – É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços:
VI – executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização expressa do consumidor...
Complementando o disposto no inciso III, só poderá o fornecedor executar
serviços quando solicitado pelo consumidor e autorizada a execução do mesmo,
mediante orçamento apresentado previamente.
Art. 39 – É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços:
VII – repassar informação depreciativa referente ato praticado
pelo consumidor no exercício de seus direitos;
Fica evidenciado que não poderá o fornecedor praticar a difamação do consumidor, expondo-o a “listas negras” por ter o consumidor utilizado de seus direitos
como tal.
Art. 39 – É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços:
VIII – colocar no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas, expedidas pelos órgãos oficiais
competentes...
A responsabilidade do fornecedor perante a saúde do consumidor é total, de
modo genérico, tenha ou não causado danos ao consumidor; o fornecedor é obrigado a colocar no mercado somente produtos e serviços de comprovada qualidade.
Art. 39 – É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços:
IX – deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação
ou deixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério;
X – vetado
PRAZOS PARA RECLAMARÇÃO
O consumidor tem 30 dias para reclamar de vícios aparentes, tratando-se de
produtos e serviços não duráveis (alimentos, medicamentos etc). No caso de pro-
8 Vícios ocultos são aqueles que só aparecem algum, ou muito tempo após o uso.
9 NUNES, LUIZ ANTONIO RIZZATTO. Compre Bem; Manual de Compras e Garantias do Consumidor p. 47.
10 NUNES, LUIZ ANTONIO RIZZATTO. Compre Bem; Manual de Compras e Garantias do Consumidor.
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dutos ou serviços duráveis, como eletrodomésticos, automóveis etc, o prazo é de 90
dias.
Caso o vício seja oculto, os prazos começam a ser contados no momento de
sua evidencia.8
Quanto às garantias contratuais, o Código diz que seu prazo é complementar.
Caso o produto tiver prazo de garantia superior a 90 dias, o período para reclamar
corresponde ao tempo maior oferecido.
No caso de danos causados ao consumidor por defeito do produto ou serviço, por exemplo, a TV que explode e queima o consumidor, o prazo para se pleitear
respectiva indenização é de cinco anos contados do conhecimento do dano e do
descobrimento do responsável.
Quanto aos vícios de qualidade do produto, o fornecedor tem trinta dias para
resolver o problema, sem ônus para o consumidor; após trinta dias, caso o vicio não
tenha sido sanado, o consumidor pode exigir, à sua escolha:
• a substituição do produto por outro da mesma espécie;
• a restituição da quantia paga, corrigida monetariamente;
• o abatimento proporcional do preço.
O consumidor em o direito de escolher quem vai fazer o reparo, ou seja, ele
pode voltar à loja, ir diretamente à fabrica ou mesmo se dirigir à assistência técnica.
Por fim, resta distinguir vício de defeito.
Vício é o problema que atinge o produto ou serviço, que faz com que estes
percam seu valor ou deixem total ou parcialmente de funcionar, mas sem gerar nenhum outro problema além daquele já existente.9
O defeito é o vício acrescido de um problema extra, que causa um dano
maior atingindo o consumidor em seu patrimônio jurídico, moral ou material.10
CURIOSIDADES
RESTAURANTES: Pesquise preços, não tenha vergonha de devolver pratos
que estejam mal preparados ou com gosto ruim. Lembre-se que o couvert artístico
tem que estar à mostra. Se o preço não estiver anunciado este é de graça!
Couvert não é obrigatório, as vezes vale a pena dispensá-lo.
Se você deixou o carro com o manobrista, não se esqueça de que o restaurante é responsável pela guarda dele.
FACULDADE E MATRÍCULA: Pela sistemática vigente do CDC, não pode haver pagamento de preço sem o respectivo serviço, isto é, o preço da matrícula é um
componente do custo das aulas que serão ministradas. Se o aluno paga e desiste,
sem assistir às aulas, tem o direito de receber o dinheiro de volta descontadas apenas despesas com taxas administrativas.
ROUBO, FURTO E ACIDENTES COM VEÍCULOS EM ESTACIONAMEN-
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TOS: A responsabilidade pela guarda do veículo é do estabelecimento, quer ele tenha contrato de seguro, quer não. O direito à indenização pelo roubo do veículo no
estacionamento vem há muito tempo sendo reconhecido pelos tribunais brasileiros.
Os famosos avisos que os estabelecimentos colocam dizendo que não se responsabilizam por furto ou roubo do veiculo têm sido repelidos pelos juízes, uma vez que
são absolutamente ilegais.
OPERAÇÃO CASADA: Algumas dessas operações são bem conhecidas. Dentre elas, estão certas imposições feitas por bancos para abrir conta ou oferecer crédito, como, por exemplo, somente dar empréstimo se o consumidor fechar um seguro de vida. É claro que algumas exigências casadas são legítimas, como, por exemplo, o empresário pode se negar a vender apenas a calça do terno.
CONCLUSÕES
Não podemos negar grande evolução nas relações de consumo após a vigência do Código de Defesa do Consumidor. O CDC constitui arma poderosa de proteção ao cidadão. Contudo, a cidadania é qualidade que deve ser exercida muito além
do papel, principalmente no cotidiano do cidadão.
O que se tem visto, no entanto, é a carência de informação e práticas abusivas
contra o consumidor que é a parte mais fraca da relação de consumo.
O consumidor, enquanto cidadão e destinatário de uma lei de defesa como o
CDC merecia estar sendo mais bem informado e ainda conhecer todos os seus direitos para poder defender-se de certas práticas consideradas abusivas.
Apesar de possuirmos uma das mais avançadas legislações do mundo, em matéria de Direito do Consumidor, ainda nos falta o essencial: a conscientização do
consumidor brasileiro, quanto ao papel que a ele cabe desempenhar.
REFERÊNCIAS
BORTOLAI, Edson Cosac. Da defesa do consumidor em juízo. São Paulo: Malheiros, 1997.
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GRINOVER, Ada Pellegrini. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos
Autores do Anteprojeto. 5ª edição: Rio de Janeiro: Forense Universitária.
MELLO, Sonia Maria Vieira de. O direito do consumidor na era da globalização: a descoberta da cidadania. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Compre bem: manual de compras e garantias do consumidor.
São Paulo: Saraiva, 2000.
A GARANTIA DO ACESSO À JUSTIÇA NA
EXECUÇÃO PENAL
Ana Carolina De Paula Nobre
Acadêmica – FDB – Instituição Toledo de Ensino – ITE – Bauru – SP.
Orientador: Francisco Bento
Professor – FDB – Instituição Toledo de Ensino – ITE – Bauru – SP.
RESUMO
A situação dos presos, no Brasil, tem se demonstrado um verdadeiro descaso
por parte do Estado; o preso é tratado quase como um animal, sendo esquecida sua
condição de pessoa humana. Tal descaso acarreta, dentro da execução penal, uma
pena acessória não prevista no ordenamento jurídico.
Palavras-chave: Dignidade da Pessoa Humana, Direitos do Preso, Cumprimento de
pena, Crise penitenciária.
A GARANTIA DO ACESSO À JUSTIÇA NA EXECUÇÃO PENAL
Nos dizeres de João Bosco Oliveira, a justiça penal não termina com a condenação do acusado, pois o conflito entre o jus puniendi do Estado na fase executória e os direitos subjetivos do preso permanece.
Um secretário de segurança de um Estado-membro da Federação, diante de
uma crise no sistema penitenciário, disse numa entrevista que, direito do preso é
cumprir sua pena quietinho até o fim.
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E essa é a visão de muitas pessoas, achar que, pela infração cometida, o preso
deve ficar trancado em uma cela, sem direito a nada.
Segundo o Professor Manoel Pedro Pimentel,
trata-se da necessidade de modificação da atitude da sociedade
frente ao preso e da atitude do preso frente à sociedade. Essas atitudes jamais se modificarão se a sociedade não ficar conhecendo
melhor o preso e este conhecendo melhor a sociedade. Não devemos esperar que o sentenciado seja o primeiro a estender a mão,
por óbvias razões. O primeiro passo deve ser dado pela sociedade.
A sociedade não pode ficar de “braços cruzados” frente ao desrespeito aos direitos do preso por parte do Estado, há de se modificar a imagem que se tem de que
o preso não tem direito a nada. Pois ele tem sim, afinal a pessoa, qualquer que seja
o grau de sua decadência, não perdeu sua dignidade, atributo essencial do ser humano, que constitui o supremo valor que deve inspirar o Direito.
A experiência tem mostrado que nenhuma espécie de tratamento penitenciário tem produzido os efeitos esperados quanto à readaptação do condenado. A prisão tem servido apenas para reforçar valores negativos e falhou completamente em
seu propósito de modificar as pessoas. Está comprovado que, na maioria dos casos,
a existência de uma “subcultura” presente entre os presos, característica das instituições prisionais de grande porte, torna-os impermeáveis a qualquer tipo de tratamento, cuja ideologia vem sendo abandonada.
Tem se feito o seguinte questionamento: será que o Estado, com os meios de
que dispõe, tem a possibilidade de recuperar o homem que enfrenta a resposta penal, que suporta a reação do Estado? A resposta deve ser medida pelos índices de
reincidência que povoam o mundo. Se ocorrer um exame atento quanto à cadeia, à
prisão, perceber-se-á que os egressos, na sua grande maioria, voltam a delinqüir,
pois o índice médio de reincidência no mundo é de ordem de 70%, no Brasil, também é uma tarefa frustrante como ocorre no mundo, pois esses índices são ainda
superiores.
Nesse contexto, observa-se atentamente que a aplicação das penas alternativas, no tocante exclusivamente à taxa de reincidência, são um alento, pois revelam
uma grande esperança, porquanto, em média, apenas 30% daquelas pessoas sujeitas a penas não detentivas voltaram a cometer crimes.
A humanização da execução inicia-se pela regra da não-privação dos direitos
do preso que não forem atingidos pela decisão judicial ou pela lei. O condenado
continua sendo uma pessoa, conservando assim todos os direitos reconhecidos aos
cidadãos pelas normas jurídicas vigentes, com exceção, naturalmente, daqueles cuja
privação ou limitação constituem precisamente o conteúdo da pena imposta. A sentença transitada em julgado não retira do sentenciado sua condição de sujeito de di-
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reito, assumindo a Administração uma série de responsabilidades que dizem respeito à pessoa humana do preso e a seus direitos e interesses jurídicos não afetados
pela condenação.
A humanização das penas é um princípio básico ao Direito Penal Moderno. Ele
arranca do sentimento comum aos homens de boa formação ética, pois embora se
admita a necessidade de punição, repugna-se à consciência de todos a inflição de
castigos cruéis e ofensivos à dignidade que sempre permanece, em maior ou menor
escala, até no pior delinqüente. A dignidade deve permanecer inalterada em qualquer situação em que a pessoa se encontre.
Porém, em pleno século XXI, as penitenciárias traduzem um verdadeiro inferno, onde presos, amontoados em celas sujas, úmidas, que mais se parecem jaulas,
perdem o senso de dignidade humana, numa degeneração tanto física quanto mental. O caráter ressocializador da pena está longe de ser alcançado.
Embora os direitos fundamentais do condenado sejam reconhecidos pelo legislador, há um grande descompasso entre a realidade e a lei.
Os presos são tratados quase como animais, o que inviabiliza qualquer perspectiva de reintegração. A partir do momento em que o homem é tratado como animal, retira-lhe o Estado a condição de agir com racionalidade, comprometendo o direito à integridade psíquica, moral e física.
Partindo-se da premissa de que a prisão é um mal necessário, cabe ao Estado
Democrático fazer com que a pena que restringe a liberdade garanta ao sentenciado o direito à integridade física, psíquica e moral.
Mas será que a realidade da prisão é compatível com a dignidade? Com certeza
não. Percebe-se isso pelo próprio descumprimento das normas estabelecidas pela Lei
de Execução Penal, como, por exemplo, pode-se citar o art. 88 que preserva a intimidade do preso, dizendo que “o condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório”. Porém, devido à situação precária da
maioria dos presídios, cujas celas são superlotadas, não preservando assim sua intimidade e, por muitas vezes, nem mesmo sua integridade física e moral, os requisitos básicos da unidade celular prevista no parágrafo único do citado artigo também são desrespeitados. Evidencia-se, assim, um total desrespeito à dignidade da pessoa humana.
E este é apenas um, dentre vários artigos desta mesma lei que não são respeitados.
Tanto desrespeito leva uma lei excelente como a Lei de Execução Penal à seguinte crítica de que é uma lei voltada para o ideal, que se fosse integralmente cumprida, atingir-se-ia as finalidades da pena. Porém, é uma lei que traz disciplina e institutos que, no Brasil, ou não se tem, ou tem e ainda não está implantada. É uma lei
feita com parâmetros de país rico, enquanto que a realidade do nosso sistema é totalmente diferente, onde se encontram prisões superlotadas, presos condenados
ainda atirados em delegacias distritais.
A superpopulação carcerária, como antagonismo diuturno aos ideais de
classificação dos presidiários e individualização executiva da sanção, é uma de-
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núncia freqüente na doutrina, nas comissões de inquérito parlamentar e nos relatórios oficiais.
A individualização da pena é tão importante que constitui um dos seus mais
importantes caracteres e traduz, nos casos concretos, um desdobramento do princípio da personalidade, constitucionalmente também afirmado como expressão de
um regime democrático fiel à dignidade humana. Tamanha importância se vê pelos
momentos distintos que a compreendem, quais sejam: o da individualização judicial
e o da individualização executória.
Na primeira etapa, dá-se o ajustamento da pena às condições do fato concreto. Nesse instante, o juiz penal deverá escolher a espécie de pena aplicável ao caso
e fixar-lhe a quantidade, bem como determinar o regime inicial do cumprimento da
pena e decidir sobre o cabimento de eventual substituição da pena privativa de liberdade (art. 59 e incisos do CP). Tal decisão, segundo o mencionado dispositivo legal, deverá tomar em linha de conta a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos, circunstâncias e conseqüências do crime e, ainda, o comportamento da vítima. Nesse procedimento, ainda, impõe a lei ao juiz a individualização da pena consoante os critérios da necessidade e
suficiência para a reprovação e prevenção do crime.
Um primeiro dado a respeito, vem consignado na Exposição de Motivos da Lei
de Execução Penal, que afirma, que “a classificação dos condenados é requisito fundamental para demarcar o início da execução científica das penas privativas da liberdade e da medida de segurança detentiva (item 26)”.
A sistemática adotada pela Lei de Execução Penal para fazer a classificação foi
a prevista no art. 5º “os condenados serão classificados, segundo seus antecedentes
e personalidade, para orientar a individualização da execução penal.”
Buscando sempre o fim de readaptar o condenado ao convívio social, a individualização da pena, em matéria de execução, pressupõe que “a cada sentenciado,
conhecida a sua personalidade e analisando o fato cometido, corresponda tratamento penitenciário adequado”.
O princípio da individualização da pena se apresenta como uma antinomia ao
princípio da igualdade; reflete um conceito de justiça. E isso porque, justiça, no âmbito do direito penal, significa, também, tratar o homem segundo os critérios individuais de sua personalidade.
Ensina José Frederico Marques:
Juridicamente o fundamento da pena individualizada com traços
que lhe imprimiu o Direito Penal Moderno está na afirmação do
princípio geral dominante em qualquer setor da justiça: o de dar
a cada um o que é seu.
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Essa proporcionalidade, na execução penal, será estabelecida através da classificação do condenado, de maneira a estabelecer correspondência entre este e o
modo pelo qual a pena que lhe foi imposta venha a ser adequadamente executada,
após o exame de sua personalidade e do fato a ele imputado.
Porém, a própria exposição de Motivos da LEP, no item 39, demonstra que a
individualização, que é tão importante não é feita.
No Relatório da CPI do Sistema Penitenciário, foi acentuado que
a ação educativa individualizada ou a individualização da pena
sobre a personalidade, requisito inafastável para a eficiência do
tratamento penal, é obstaculizada na quase-totalidade do sistema
penitenciário brasileiro pela superlotação carcerária, que impede
a classificação dos prisioneiros em grupo e a sua conseqüente distribuição por estabelecimentos distintos onde se concretize o tratamento adequado.
O princípio da proporcionalidade encontra consagração no art. 5º da Lei de
Execução Penal. A eventual inobservância do princípio em questão encontrará reparo no procedimento destinado à correção do excesso ou desvio na execução da
pena, referido nos artigos 185 e 186 da Lei de Execução Penal. A proporcionalidade
assegura que a pena seja executada dentro do marco constitucional, de respeito à
dignidade do sentenciado e não em função dos anseios sociais.
A consciência livre, ao correr dos séculos, já afirmará os excessos e a desnecessidade de penas cruéis. Nessa afirmação, a obra de Beccaria constitui um marco.
A ele se devem páginas eloqüentes e candentes contra esse tipo de punição. Em sua
obra Dos Delitos e Das Penas, indagou
Poderão os gritos de um infeliz nos tormentos retirar do seio do
passado, que não volta mais, uma ação já cometida? Não. Os
castigos têm por fim único impedir o culpado de ser nocivo futuramente à sociedade e desviar seus concidadãos da senda do
crime.
A degradação do sistema penitenciário a níveis intoleráveis vem sendo freqüentemente retratado, tendo à frente a acusação do então Ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, de que os presídios brasileiros são verdadeiros depósitos de pessoas
e permanentes fatores de criminógenos. Anos se passaram desde tal depoimento e
o que se percebe é que quase nada mudou.
Os locais de prisão, e particularmente os destinados a alojar os presos durante a noite, que deveriam levar em conta o clima, às exigências da higiene, especialmente no que concerne à cubagem do ar, à superfície mínima, à iluminação, à cale-
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fação e ao arejamento (regras mínimas para tratamento dos presos da ONU, nº 10),
não vem sendo respeitados.
As penitenciárias e os presídios assumem a condição de depósitos humanos,
não atendendo aos fins objetivados de correção dos desvios de conduta social dos
indivíduos. Os índices de reincidência mostram tal fracasso.
A pena já consiste na perda da liberdade. As circunstâncias da prisão não devem, assim, ser utilizadas como punição suplementar. Qualquer efeito perverso da
prisão deve ser evitado. Contudo, o que vemos é que as deficiências de alojamento,
de higiene, a má alimentação, deterioram a saúde do detento, e problemas psicológicos são constatados como conseqüência do encarceramento.
Dormir em quartos abafados, frios ou úmidos pode originar uma série de
doenças; passar muitas horas seguidas em quartos densamente ocupados, particularmente naqueles casos em que os reclusos não trabalham e não saem das celas
(exceto, quando muito, durante certos períodos de recreio), pode ser causa de atrofias musculares.
Grande parte dos detentos tem transtornos anti-sociais de personalidade, sem
controle de seus impulsos agressivos, e que não são isolados dos demais presos pela
administração carcerária, gerando nos demais insegurança, estado defensivo, que na
maioria das vezes culmina em morte.
Empiricamente, o que ocorre é uma mistura dos mais diferentes tipos de delinqüentes, principalmente em delegacias distritais, onde presos provisórios são misturados a presos já sentenciados; presos primários são colocados juntamente com os reincidentes; numa cela onde deveriam ser colocados seis presos, colocam-se doze ou quinze (quando isso acontece, os presos precisam revezar-se para dormir); na maioria dos
casos, não há trabalho para o preso; muitas vezes, os detentos são torturados ou agredidos pelos agentes penitenciários como “método de correção”; a AIDS prolifera no sistema penitenciário nacional em razão da promiscuidade; doenças como a tuberculose
ressurgem de forma assustadora nas cadeias públicas; etc.
Michel Foucault faz a seguinte advertência: “A prisão torna possível, ou melhor, favorece a organização de um meio delinqüente solidários entre si, hierarquizado, prontos para todas as cumplicidades futuras”.
A superlotação, a falta de controle e assistência nas penitenciárias e o descaso
das autoridades governamentais, fazem do ambiente carcerário uma escola do crime com formação de associações delitivas de alta periculosidade. Na linguagem popular, é a escola do crime, que muito contribui para o fracasso da pena como prevenção especial ressocializadora, além de criar condições para que o criminoso retorne à delinqüência.
A promiscuidade é conseqüência da superlotação, assim como as fugas, os
motins, a violência e a corrupção.
Qualquer um que acompanha o dia a dia dos noticiários sobre a profundidade da crise no sistema prisional do nosso País sabe a situação precária do sistema
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prisional, como cadeias superlotadas, mal administradas, desprovidas de recursos, e
em quantidade muito inferior às necessidades.
No dia 21 de janeiro de 2005, aconteceu uma rebelião no presídio Jacy de Assis,
localizado na cidade de Uberlândia, Minas Gerais. Apenas mais uma dentre as várias
rebeliões que acontecem todos os anos no Brasil. Pelos mesmos motivos de sempre:
falta de espaço, pedidos de transferência para outros presídios, revisão criminal aos
apenados definitivamente e o problema crônico da superlotação (o presídio que tem
capacidade para 400 presos, na data da rebelião estava com 650, 60% acima da sua capacidade normal, dentre os quais vários não haviam sequer sido julgados).
As prisões de grandes dimensões são desaconselháveis, sejam destinadas ao
cumprimento em regime fechado ou semi-aberto, não convindo exceder a sua capacidade de abrigar 350 condenados, limite máximo geralmente indicado pelos autores penitenciários.
No Brasil, porém, tais limitações não tem sido obedecidas. A superlotação dos
presídios no Brasil constitui um dos mais graves problemas penitenciários, longe de
ser resolvido, pois a par do incremento da criminalidade violenta, praticamente
nada se fez em termos de construção de novos estabelecimentos penais.
A violação da regra sobre a capacidade de lotação pode ser punida com a interdição do estabelecimento a ser determinada pelo juiz da execução (art. 66, VIII).
Além disso, o descumprimento injustificado desse dever de obediência ao limite máximo de capacidade do estabelecimento pela unidade federativa implica suspensão
de qualquer ajuda financeira a ela destinada pela União para atender às despesas de
execução das penas e medidas de segurança (LEP, art. 203, §4º). Essa sanção, porém,
dificilmente será aplicada, pois os Estados-membros não dispõem de recursos materiais, suficientes para a construção de todos os estabelecimentos penais necessários a abrigar a população de condenados, e a suspensão da ajuda financeira terá por
conseqüência o agravamento do problema penitenciário.
No item 100 da exposição de motivos da Lei de Execução Penal, a LEP, fala do
mal que a superlotação traz:
É de conhecimento geral que grande parte da população carcerária está confinada em cadeias públicas, presídios, casas de detenção e estabelecimentos análogos, onde prisioneiros de alta periculosidade convivem em celas superlotadas com criminosos ocasionais, de escassa ou nenhuma periculosidade, e pacientes de imposição penal prévia (presos provisórios ou aguardando julgamento), para quem é um mito, no caso, a presunção de inocência. Nestes ambientes de estufa, a ociosidade é a regra; a intimidade, inevitável e profunda. A deterioração do caráter, resultante da influência corruptora da subcultura criminal, o hábito da ociosidade, a alienação mental, a perda paulatina da aptidão para o tra-
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balho, o comprometimento da saúde são conseqüências desse tipo
de confinamento promíscuo, já definido alhures como sementeiras
de reincidência, dados os seus efeitos criminógenos.
Sempre que o Estado priva alguém da sua liberdade, assume um dever de cuidado, o de garantir a segurança das pessoas privadas da liberdade. O dever de cuidado compreende também um dever de garantir o bem-estar da pessoa presa, Bemestar este que não é visto na prisão.
A situação dos presos acaba tornando-se um completo descaso. Uma vez que
seus direitos não são respeitados dentro das prisões.
Vinte anos se passaram desde a entrada em vigor da Lei de Execução Penal e
o que se percebe é que pouca coisa foi feita, para colocar em prática o que vem disciplinado pela Lei de Execução Penal; aí fica a seguinte pergunta: Quantos anos mais
terão que passar para que posse ser colocado em prática direitos assegurados há
tantos anos? Quantos anos terão que passar para que os presos tenham sua dignidade materializada? Sim, porque a dignidade e os direitos fundamentais do condenado são reconhecidos pelo legislador, contudo, há um grande descompasso entre a
realidade e a lei. Será que terão que esperar mais 20 anos para serem tratados como
humanos, como sujeito de direitos?
Afinal, nos dizeres de Foucault:
O sentimento de injustiça que um prisioneiro experimenta, é uma
das causas que mais podem tornar indomável seu caráter. Quando se vê assim exposto a sofrimento que a lei não ordenou, nem
mesmo previu, ele entra num estado habitual de cólera contra
tudo o que o cerca; só vê carrascos em todos os agentes da autoridade; não pensa mais ter sido culpado; acusa a própria justiça.
A inobservância dos direitos do preso significaria a imposição de um pena suplementar não prevista em lei. Está previsto, nas Regras Mínimas para Tratamento
dos Presos da ONU, o princípio de que o sistema penitenciário não deve acentuar
os sofrimentos já inerentes à pena privativa de liberdade, no qual está assim redigido em seu item 57:
A prisão e as demais medidas cujo efeito é separar o delinqüente
do mundo exterior são aflitivas pelo fato de que despojam o indivíduo do direito de dispor de sua pessoa, ao privá-lo da liberdade.
Portanto, salvo em referência às medidas de separação, justificadas, ou à preservação da disciplina, não deve o sistema penitenciário agravar os sofrimentos inerentes à situação do preso.
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Sendo assim, diante do grande problema penitenciário, não só no Brasil como
no mundo, ensejam numa reflexão mais profunda sobre uma filosofia de tratamento do preso.
As exigências de vários países, quanto à diminuição do emprego da prisão e
aumento da adoção de medidas alternativas, baseavam-se em critérios de humanidade, justiça e tolerância. Sendo a pena nada mais do que uma retribuição ao condenado do mal causado aos valores sociais com a prática delitiva. Tendo assim, caráter retributivo, são inadmissíveis tais situações degradantes vistas nos presídios, pois
tira a proporcionalidade entre a infração e a pena.
A proporcionalidade da pena revela, por um lado, a força do interesse da defesa social e, por outro, o direito do condenado em não sofrer uma punição que exceda o limite do mal causado pelo ilícito. A retribuição, “como a alma de todas as penas” é umas das imposições fundamentais do direito penal de natureza realmente
democrática.
Beccaria já tratava da proporcionalidade da pena, afirmando que: “toda a severidade que ultrapasse os limites se torna supérflua e, por conseguinte, tirânica”.
Tal situação, além de tornar a pena desproporcional, infringe ao condenado
algo que a lei não prevê, restringindo direitos não atingidos pela sentença ou pela
lei, dentre eles a própria dignidade da pessoa humana.
A culpabilidade tem por função preservar a liberdade individual contra o interesse do Estado em aplicar a pena; é limite ao poder punitivo do Estado. Portanto,
a culpabilidade é princípio de garantia do indivíduo, de reconhecimento de sua dignidade e de afirmação de sua liberdade.
Para Figueiredo Dias,
a medida da pena, não pode, em caso algum, ultrapassar a medida
de culpa. A culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas. Para o autor, relevante é a consideração de que o limite máximo da pena adequado à culpa não pode ser
ultrapassado, vez que a ultrapassagem feriria a dignidade do delinqüente e seria jurídico – constitucionalmente inadmissível.
A Constituição Federal proclama que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”: assim, se de um lado se pode impor ao condenado as sanções penais estabelecidas na legislação, observadas as limitações constitucionais; de outro, não se admite que seja ele submetido a restrições
não contidas na lei.
Assinala-se, na exposição de motivos no item 20:
É comum, no cumprimento das penas privativas de liberdade, a
privação ou limitação de direitos inerentes ao patrimônio jurídi-
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co do homem e não alcançados pela sentença condenatória. Essa
hipertrofia de punição não só viola a medida de proporcionalidade como se transforma em poderoso fator de reincidência, pela
formação de focos criminógenos, que propicia.
Preceitua o art. 40 que se impõe a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios. Estão assim protegidos
os direitos humanos fundamentais do homem (vida, saúde, integridade corporal e
dignidade humana), os mais importantes, porque servem de suporte aos demais,
que não existiriam sem aqueles. Algo que nem deveria vir na lei, posto que a integridade física e moral é um preceito básico inerente a toda e qualquer pessoa, independente de estar preso ou não, é algo tão supremo que não pode ser atingido pela
sentença ou pela lei, diz respeito à própria dignidade da pessoa humana. Nasce com
a pessoa humana e acompanha toda a trajetória da existência do homem. Por isso,
são chamados dos direitos do homem, no singular genérico, e não direitos dos homens ou direitos de certos grupos humanos, dizeres de José Soder.
Muito é de se admirar, entretanto, que embora expresso na Constituição Federal, na Lei de Execução Penal, o que se vê nas prisões é um total desrespeito a tais
preceitos.
Constitui excesso ou desvio de execução a prática de qualquer ato fora dos limites fixados pela sentença, por normas legais ou regulamentares. Extravasados esses limites, atinge-se o status jurídico do sentenciado, com a violação de seus direitos, ou se compromete a normalidade da execução, que é um imperativo da defesa
social.
Exposição de Motivos item 171: “a impotência da pessoa presa ou internada
constitui poderoso obstáculo à autoproteção de direitos ou ao cumprimento dos
princípios de legalidade e justiça que devem nortear o procedimento executivo”.
Em observância ao princípio da humanidade, não se pode admitir “qualquer
castigo que fira a dignidade e a própria condição do homem, sujeito de direitos fundamentais invioláveis” – Checaria.
A proteção da dignidade da pessoa humana tem repercussão em todos os ramos do direito, com grande relevância. Mas, é no campo penal, onde as possibilidades de violações encontram maior freqüência, uma vez que, de um lado, situa-se o
poder-dever de punir detido pelo Estado, para garantir a paz pública; e de outro, os
direitos e garantias fundamentais do preso.
O princípio da dignidade da pessoa humana, com todo o valor atribuído
pelo legislador constituinte, espraia-se por todo o texto constitucional, alcançando acentuado destaque no direito penal, onde o condenado não pode ser encarado como objeto da relação jurídica, mas sim, como sujeito de direitos, devendo ser mantidos todos os seus direitos fundamentais que não forem alcançados
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pela sentença condenatória.
A dignidade da pessoa humana efetivamente constitui qualidade inerente de
cada pessoa humana que a faz destinatária do respeito e da proteção tanto do Estado, quanto das demais pessoas, impedindo que ela seja alvo não só de quaisquer situações desumanas ou degradantes, como também lhe garantindo direito a condições existenciais mínimas.
Nesse sentido, temos uma das legislações mais completa, mais justa, como a
Lei de Execução Penal (lei nº. 7.210, de 11 de julho de 1984), o próprio Código Penal, porém muita coisa ainda precisa ser feita, ou melhor, colocada em prática do
muito que existe.
Com a condenação, cria-se especial relação de sujeição que se traduz em complexa relação jurídica entre o Estado e o condenado em que, ao lado dos direitos daquele, que constituem os deveres do preso, encontram-se os direitos destes, a serem respeitados pela Administração. Por estar privado de liberdade, o preso encontra-se em uma situação especial que condiciona uma limitação dos direitos previstos na Constituição Federal e nas leis, mas isso não quer dizer que perde, além da liberdade, sua condição de pessoa humana e a titularidade dos direitos não atingidos
pela condenação.
O Estado, a partir do momento em que chamou para si o poder de julgar, adquiriu o dever de julgar, bem como, a responsabilidade por aquele que se encontra
sobre sua tutela. O preso deve sim ser apenado para pagar pelo que fez, mas que
isso seja feito com legalidade, com respeito ao preso, pois é incoerente tratar alguém que infringiu a lei, que desrespeitou o dispositivo legal, fazendo com essa pessoa o mesmo desrespeito da lei que assegura a ele todos os seus direitos fundamentais, como a integridade, dignidade. Afinal, não dá para combater uma violação da
lei penal feita pelo condenado, com uma violação feita por parte do Estado da legalidade, dos princípios constitucionais e dos direitos do preso, tem de se respeitar os
direitos do preso não atingidos pela sentença ou pela lei, como prevê o art. 3º da
Lei de Execução Penal, protegendo, assim, tanto a própria vítima, como a sociedade, que acaba sendo atingida pelo ato delituoso, e até mesmo o indivíduo.
Além do mais, note-se que a pena é privativa de liberdade, e não da dignidade, respeito e outros direitos inerentes à pessoa humana. Sendo assim, cabe a todos
a observância de tais direitos não atingidos pela sentença.
REFERÊNCIAS
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AMARAL, Getúlio Sérgio do. Normas de Execução Penal Estadual e alguns comentários.
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DO CABIMENTO DA EXCEÇÃO DE
PRÉ-EXECUTIVIDADE NA AÇÃO DE EXECUÇÃO FISCAL
Assis Moreira Silva Junior
Aluno Matriculado no 4º ano da Faculdade de Direito da ITE/Bauru.
Orientadora: Professora Daniela Nunes Veríssimo Gimenes
RESUMO
Visando a dar uma maior celeridade e uma maior efetividade ao processo
de execução, a doutrina criou a chamada exceção de pré-executividade, ainda
sem previsão legal, como mecanismo de defesa do executado, no caso de acharse ele diante de algum vício que obsta o prosseguimento da execução. Na execução fiscal, assim como no rito previsto pelo Código de Processo Civil, vislumbramos a exigência da não-realização de provas, ou seja, o juiz pode, de plano,
analisar os autos e verificar se o alegado pelo executado realmente impede o
prosseguimento da ação executiva.
Palavras-chave: Fazenda Pública, Constrição, Defesa.
INTRODUÇÃO
Dada a falta de previsão legal, a exceção de pré-executividade vem sendo admitida pela doutrina e pela jurisprudência como um dos meios de defesa a que o
executado pode se valer em casos de execuções infundadas ou ilegais, as quais podem lhe acarretar graves danos.
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Todavia, muito embora tenha ela surgido para um determinado fim, qual seja,
trazer a juízo matérias conhecidas de ofício pelo magistrado, a exceção tem sido utilizada pelo executado como um instrumento semelhante aos embargos à execução.
Inobstante a exceção não esteja prevista em nossa legislação, pode ela ser admitida? Uma vez admitida sua utilização, quais matérias podem ser trazidas à análise
do douto magistrado sem estar seguro o juízo?
Primeiramente, para haver um processo de execução mister se faz a presença
de dois requisitos, quais sejam, um título executivo, judicial ou extrajudicial, certo,
líquido e exeqüível, bem como o inadimplemento de tal obrigação.
No caso da execução fiscal, tal crédito foi previamente apurado na seara administrativa e, posteriormente, inscrito na dívida ativa, de maneira unilateral.
Se um dos requisitos para a execução é a existência de um título certo, e nossa legislação prevê a possibilidade de desconstituição de tal título em sede de embargos, após garantido o juízo, não seria uma discrepância admitir a exceção de préexecutividade, dada a sua falta de previsão legal?
O presente estudo tem como foco a ação de execução fiscal, regulada pela Lei
6.830/80, que prevê expressamente a possibilidade de desconstituição do crédito
somente através do oferecimento de embargos, no prazo de trinta dias após a realização da penhora, ou seguro o juízo.
Tal previsão exclui a possibilidade de apresentação da exceção? Em caso negativo, toda e qualquer matéria desconstitutiva do crédito pode ser trazida a lume? E
levando-se em conta que o art. 16, §3° da LEF proíbe expressamente a reconvenção,
a compensação e as exceções, salvo as de suspeição, impedimento e incompetência,
argüíveis em sede de preliminar nos embargos à execução? Ou seja, na exceção
pode o executado trazer matérias atinentes ao juízo de admissibilidade e ao juízo de
mérito? E mais, o não-cabimento da exceção caracteriza restrição ao direito do contraditório?
O presente estudo tem por escopo discutir acerca do cabimento ou não da exceção em sede de execução fiscal, observados os pontos questionados.
PROCESSO DE EXECUÇÃO
Enquanto no processo de conhecimento o juiz irá analisar os fatos e resolver
uma lide, no processo de execução já existe a certeza da existência de um direito
previamente reconhecido, seja através de um processo de conhecimento (título judicial), ou expresso em que a lei confere semelhante eficácia (título extrajudicial).
A atividade jurisdicional visa apenas e tão-somente, à satisfação do direito do
credor, atingindo somente a parte dos bens do devedor indispensáveis à satisfação
desse direito.
Para a válida existência do processo executivo, mister se faz a presença do título executivo, pois nulla executio sine titulo, princípio consagrado no art. 583 do
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Código de Processo Civil. Após anos na briga entre Carnelutti e Liebman acerca da
natureza jurídica do título executivo, nos dias atuais acredita-se que “a essência ou
substância é o ato jurídico que representa o conteúdo do título, e a forma é o documento escrito no qual o ato se insere” (NOLASCO: 2002, 84).
São requisitos indispensáveis para que o credor possa propor a execução, o
inadimplemento do devedor (art. 580 do Código de Processo Civil) e a existência de
um título executivo certo, líquido e exigível. O título executivo nada mais é do que
um documento contendo a certeza da existência de um direito creditício, o qual legitima o credor a promover a execução.
Considera-se devedor inadimplente aquele que não cumpriu sua obrigação na
maneira e tempo devidos, sendo que, na ausência da inadimplência não se pode falar em descumprimento da obrigação do devedor. Para os títulos executivos judiciais
(art. 584), falamos em inadimplência com o trânsito em julgado da condenação e a
liquidação, quando o for necessário. Já para os títulos extrajudiciais (art. 585), o inadimplemento se dá com a ocorrência do termo (momento a partir do qual a prestação se torna exigível) ou condição (acontecimento a que está subordinada a eficácia
da sentença) impostos, quando o título não tiver seu vencimento à vista.
Se não bastassem esses dois requisitos necessários para realizar qualquer execução, deve ser observado, também, o juízo de admissibilidade, comum a todo e
qualquer processo, em que o magistrado analisa a existência das condições da ação
e dos pressupostos processuais. Uma vez ausente qualquer um deles, não há de se
falar em decisão de mérito.
O mérito do processo executivo consiste na realização de atos de constrição
sobre bens do executado, com a finalidade de satisfazer o direito que o exeqüente
ostenta através do título executivo. Existem autores que acreditam que o mérito do
processo de execução será analisado quando da eventual propositura dos embargos
à execução. Todavia, os embargos, como ação autônoma que são, possuem mérito
próprio, que nada mais é do que o pedido de desconstituição do título executivo.
A sentença proferida no processo de execução se trata de uma sentença declaratória de extinção de uma obrigação e, assim como no processo de conhecimento, gera coisa julgada, ou seja, a imutabilidade dos efeitos da sentença.
No curso do processo de execução, não vislumbramos a possibilidade de
defesa do executado. Tal premissa se dá em razão da presunção juris tantum de
liquidez e certeza se que gozam os títulos executivos, sejam eles judiciais ou extrajudiciais.
Os chamados embargos do executado, os quais terão sempre efeito suspensivo, a teor do disposto no § 3°, do art. 739, do Código de Processo Civil, na realidade, se tratam de um processo de conhecimento autônomo ao de execução, de caráter incidental, condicionado à segurança do juízo, ou seja, ao depósito da coisa, ou
à sujeição do patrimônio do executado à penhora, visando a desconstituir o título
executivo, ou impugnar a validade da relação processual executiva.
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Visando a simplificar e dar uma maior celeridade ao processo executivo, o legislador criou a possibilidade de ocorrer o julgamento antecipado da lide, quando
os embargos versarem apenas sobre matéria de direito, ou, versando sobre matéria
de direito e fato, a prova for exclusivamente documental.
Não apenas em sede de embargos à execução pode o executado se contrapor
à execução forçada, admitindo a doutrina, sempre que sua defesa se referir à matéria de ordem pública e ligada às condições da ação executiva e seus pressupostos
processuais, sem que haja necessidade de dilação probatória, sua defesa pode ser
feita através de simples petição nos próprios autos do processo executivo. Tal incidente foi denominado por Pontes de Miranda como “exceção de pré-executividade”
e será objeto de estudo posteriormente.
EXECUÇÃO FISCAL
Trata-se de uma “execução singular por quantia certa, com base em título executivo extrajudicial, constituído pela certidão de dívida ativa regularmente inscrita”
(PACHECO: 2002, 10), prevista no art. 585, VI, do Código de Processo Civil, que representa um crédito devidamente apurado na seara administrativa, por órgão especial de controle e, esgotado o prazo fixado para pagamento, foi devidamente inscrito. Cumpre ressaltar que a inscrição na dívida ativa constitui prévia constatação administrativa da legalidade da dívida.
O procedimento administrativo que precede à inscrição da dívida ativa define
quem vem a ser o devedor principal, e eventual co-responsável. A execução deve ser
proposta no foro do domicílio do devedor e, em havendo mais de um devedor, com
diferentes domicílios, em qualquer um deles. Uma vez determinado o juízo competente, esse foro torna-se o único e o exclusivo da Fazenda Pública, excluindo, inclusive o da falência. Aqui cumpre esclarecer que, se porventura já existir processo de
falência ou de recuperação judicial em curso, o crédito fazendário não se sujeita ao
juízo universal, podendo ser cobrado no juízo competente.
A Lei de Execução Fiscal traz, também, algumas medidas de economia processual, tais como a simplificação das publicações, para efeito de intimações, bem como
a reunião de processos contra o mesmo devedor (arts. 27 e 28).
Em consonância com o disposto no art. 9°, § 6°, o executado pode efetuar o
pagamento da parte que considera incontroversa, e garantir a execução da parte que
julga ilegítima. Uma vez seguro o juízo, inicia-se o prazo de trinta dias para oposição
dos embargos.
Por derradeiro, cumpre ressaltar que, no mesmo prazo dos embargos, o executado deve dizer as provas que pretende produzir e, se dependerem de requerimento, deve fazê-lo no mesmo ato, pedindo o deferimento da produção dessa prova, bem como indicar seu rol de testemunhas e juntar os documentos com que deseje comprovar suas alegações.
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EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE
É cediço que o processo leva um certo tempo para se desenrolar e solucionar
a lide. Todavia, ele deve ser efetivo, no sentido de dar à parte exatamente aquilo que
ela obteria se o direito não tivesse sido ofendido, não podendo o réu suportar ônus
maior do que aquilo que efetivamente deveria ter cumprido.
Com efeito, no processo de execução o exeqüente erige uma posição de superioridade em relação ao executado o que, muitas vezes, pode dificultar sua possibilidade de defesa, no caso de execuções viciadas. Neste caso, o processo deve ser
mais efetivo e célere ainda, a fim de evitar eventuais danos que possam ser causados
ao executado, caso sua esfera patrimonial seja atacada indevidamente.
O pioneiro na utilização deste instrumento processual de defesa foi Pontes de
Miranda, em parecer que ofertou em 1966 em face do pedido de falência da Companhia Siderúrgica Mannesman, que sofria várias execuções, com base em títulos
que continham assinatura falsa de algum de seus diretores. Todavia, o Decreto n°
848, de 1890, já previa, em sede de execução fiscal, a possibilidade de o devedor se
defender, mesmo sem estar seguro o juízo, apresentando documento comprobatório do pagamento da dívida.
Uma vez que não se pode iniciar uma execução que não preenche todos os requisitos legais, o executado pode-se utilizar da exceção de pré-executividade, que nada
mais é do que uma simples petição nos próprios autos de execução, na qual é trazido
ao juiz a ilegalidade da cobrança e, conseqüentemente, a nulidade da execução.
As matérias passíveis de alegação são aquelas que podem ser reconhecidas de
ofício pelo juiz, ou ainda, que dispensam dilação probatória e podem ser demonstradas de forma inequívoca, através de documentos.
Se considerarmos a palavra exceção como sinônimo de defesa, podemos concluir que, para o executado, o instituto é, sim, uma defesa, uma vez que se pretende extinguir o processo, por ausência dos requisitos legais. Para alguns, somente podem ser alegadas matérias de ordem pública e, por isso, a consideram uma objeção,
não podendo se falar em preclusão.
A exceção de pré-executividade possui natureza de incidente processual, não
se aplicando os efeitos da revelia, uma vez que não se trata de ação. Acredita-se não
ser possível fixar um prazo para a propositura da exceção, até porque não existe previsão legal para tanto, bem como por estarmos falando de matérias de ordem pública, não sujeitas aos efeitos da preclusão.
A exceção de pré-executividade é proposta visando a impedir o prosseguimento do curso normal da ação executiva e, conseqüentemente, impedir também a
injusta invasão do patrimônio do executado.
A decisão final do incidente pode acolhê-lo, através de sentença, hipótese em
que cabe recurso de apelação, ou rejeitá-lo, através de uma decisão interlocutória,
da qual cabe agravo de instrumento.
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No primeiro caso, em se referindo o alegado à admissibilidade da ação, teremos uma sentença terminativa, podendo, via de regra, ser a execução proposta novamente. Todavia, em se tratando de matéria de mérito, que declara a não existência da obrigação contida no título, não mais poderá ser proposta a ação.
Em vista do princípio da sucumbência, responde a parte sucumbente pelas
custas e despesas processuais, bem como pelos honorários advocatícios.
Igualmente ocorre na ação de execução fiscal, admitindo-se a utilização da exceção de pré-executividade naqueles casos em que for dispensada a produção de
provas, podendo o juiz analisar e, se for o caso, conhecer, desde logo, as matérias
alegadas pelo executado.
Ainda, a Lei de Execução Fiscal pretendeu, ao trazer um rito diferenciado para
as execuções fiscais, dar maior agilidade a este procedimento, o que pode ser amplamente alcançado quando da utilização do instituto ora em estudo, nas hipóteses
mencionadas no parágrafo anterior, haja vista que os embargos, muito embora possua um rito mais ágil do que outros processos de conhecimento, mesmo assim continuam demorados, podendo acarretar danos ao executado.
CONCLUSÃO
A fim de dar uma maior efetividade ao processo de execução, a doutrina criou
um instrumento de defesa, ainda sem previsão legal, para que o executado pudesse
se defender de uma execução viciada, sem a necessidade de segurança do juízo, requisito sine qua non para a utilização dos embargos à execução.
Assim, após toda a análise, conclui-se que a exceção de pré-executividade se
trata de um incidente processual, cujo conteúdo é uma questão prejudicial a ser decidida de plano pelo juiz. Pode ser apresentada a qualquer tempo, através de uma
simples petição, acompanhada de todos os documentos comprobatórios nos quais
se baseiam as alegações, nos próprios autos de execução, não estando sujeita aos
efeitos da preclusão quando versarem sobre matérias de ordem pública, suspendendo o curso da execução.
O próprio nome nos revela que se trata de uma defesa do executado anterior
à execução, ou seja, anterior à expropriação de bens do executado. Desta forma,
pode ele se utilizar deste instrumento nas hipóteses em que ficar demonstrado, de
forma clara e inequívoca, a existência de um vício que obsta o prosseguimento do
curso normal da execução, podendo o juiz conhecer das matérias de plano, desde
que não haja a necessidade de realizar qualquer diligência probatória.
Por fim, concluímos pela possibilidade de ser a exceção de pré-executividade
utilizada no processo executivo fiscal, até porque a Lei de Execução Fiscal pretendeu dar maior celeridade à cobrança da dívida ativa, em face do interesse público.
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Autor do O Capital, e percussor do socialismo.
“ad hoc”, para um fim específico, criação da corte apenas para este fim.
“Kaiser”, imperador Alemão durante a Primeira Guerra Mundial.
Paises Aliados: países que se uniram para combater o III Reich Alemão: Estados Unidos, França, Inglaterra, Polônia e União Soviética.
Holanda.
Japão.
III Reich, foi a designação adotada por Adolf Hitler para o grande império formado pela Alemanha Nazista.
Em 1977 vários paises requisitaram um Código Internacional de Crimes. Em 1978 a idéia foi debatida pelo sexto comitê das Nações Unidas, e em 1982 o Sr. Doudou Thiam, ministro do Senegal especialista em Leis criminais internacional, foi apontado pelo ILC (International Law Commission) como o responsável pela criação do
Codigo Internacional de Crimes.
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TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
Eduardo Luiz de Oliveira Filho
Aluno do Curso de Direito, 3º ano, Faculdade de Direito da Instituição Toledo de Ensino de Bauru.
Orientadora: Professora Camila Leal Calais
RESUMO
A criação do Tribunal Penal Internacional foi um grande passo para a internacionalização dos Direitos; sua formação é uma união de experiências dos países desenvolvidos, na área do direito, como EUA, Europa e Brasil. Assim, o trabalho se resume na descrição de como o tribunal é formado e alguns aspectos institucionais e
administrativos.
Palavras-chave: Relações Internacionais, Formação, Crimes.
INTRODUÇÃO
O mundo sempre se deparou com Guerras ou atrocidades que violam os Direitos Humanos, como a Primeira Guerra Mundial onde mais de 10 milhões de soviéticos
foram enviados para a morte pelo líder comunista Stalin; mais recentemente, a Guerra
entre Israel e Palestina matou milhares de inocentes civis. Entretanto, o senso de justiça que reside entre os seres humanos fez com que alguns responsáveis por tais atrocidades fossem julgados e condenados. Tais julgamentos são alçados à esfera internacional já que as Nações Unidas nunca pouparam esforços para trazer aos olhos da Justiça
criminosos internacionais, sem importar-se com a sua nacionalidade ou qual face da
vasta justiça mundial iria enfrentar (WAUGAMAN, Adele, 2004).
A própria ONU fora criada para que houvesse uma maior união entre os países, união essa que proporcionasse uma evolução e um aperfeiçoamento na sociedade humana. Carl Marx1 previu uma sociedade comum e essa sociedade deveria ser
uma evolução. Outros pensaram que a internacionalização dos direitos fosse uma
10 A Assembléia Geral das Nações Unidas, Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide; 1948. Criada para uma prévia discussão de quais crimes poderiam ser julgados pelo tribunal que julgava
os crimes cometidos durante a Segunda Guerra.
11 Convenção que defende os Direitos Humanos em âmbito internacional, visando minorar o sofrimento de soldados doentes e feridos, bem como de populações civis atingidas por um conflito bélico.
12 Será definido o que caracteriza agressão, ainda não há um acordo entre os paises membros da ONU.
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evolução ( WAUGAMAN, Adele, 2004).
Traços do início do pensamento da criação do Tribunal Penal Internacional podem ser notados desde 1872. Nessa época, Gustav Moynier, um dos fundadores do
Comitê Internacional da Cruz Vermelha, propôs uma corte permanente em resposta aos crimes de guerra cometidos durante a Guerra Franco-Prussiana ( WAUGAMAN, Adele, 2004).
Após a Primeira Guerra Mundial, foi assinado o Tratado de Versalhes que criou
uma Corte ad hoc2 para julgar o Kaiser3 e os líderes alemães pelos crimes de genocídio e de violação de Direitos Humanos cometidos durante a Guerra. Seguindo os
traços históricos do século XX, após a Segunda Guerra Mundial, os países aliados4
criaram tribunais nas cidades de Nuremberg5 e Tokyo6 para julgar os seguidores do
III Reich7 ( WAUGAMAN, Adele, 2004).
Assim, logo após os julgamentos em Nuremberg, em outubro de 1946, um
congresso internacional se reuniu em Paris e requisitou a adoção de uma lei que
proibisse e penalizasse crimes contra a humanidade e para que criasse um Tribunal
Penal Internacional. Nesse sentido, em 09 de dezembro de 1948, a Assembléia Geral das Nações Unidas adotou a Convenção para a Prevenção e Punição de Crimes
de Genocídio; entretanto, não se determinou onde e como esses crimes seriam julgados. Por outro lado, uma comissão estudava a implantação do Tribunal Penal Internacional ( WAUGAMAN, Adele, 2004).
Porém, com a Guerra Fria, as Nações Unidas deixaram pairando a idéia da criação do Tribunal. O fato que fez com que as mencionadas idéias não fossem totalmente abandonadas nesse período, foi um acordo8 que definia crimes de agressão e
o Código Internacional de Crimes;9 entretanto, com o término da Guerra Fria, houve um grande crescimento de número de países favoráveis à criação da Corte e, simultaneamente, começaram-se a redigir os primeiros esboços do estatuto do Tribunal Penal Internacional.
Ressalta-se, ainda que, com a existência das Convenções contra o Genocídio10
e de Genebra11, a Guerra da Bósnia-Herzegovina, Croácia e de Rwanda, claramente
violaram tais os direitos da humanidade ( WAUGAMAN, Adele, 2004).
Assim, fica nítido que, embora diversos estudos para a criação de um Tribunal
Penal Internacional fossem realizados, a inércia e falta de consenso ainda era uma
realidade.
A realidade foi alterada quando, em 1997, o Camboja ofereceu às Nações Unidas um criminoso conhecido como Pol Pot, líder do Khmer Vermelho, regime responsável pela eliminação de milhares de cambojanos. Após terríveis tempos de ditadura, o Camboja alcançou a democracia e destituiu Pol Pot do poder. A situação
14 Frase dita pelo presidente Bush quando se referia aos paises árabes.
15 Trabalho de Monografia que tinha o tema do Império Americano continha estudos sobre o terrorismo dentro
e fora dos EUA.
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não ficou confortável para a ONU, já que a falta de um órgão permanente responsável por julgamentos de crimes como os cometidos por Pol Pot impediu uma rápida
solução do caso. Primeiramente, as Nações Unidas pediram aos Estados Unidos que
julgassem Pol Pot, porém não foi permitido pelos tribunais americanos. Assim, o criminoso foi oferecido aos tribunais do Canadá, que possuía uma lei permitindo julgamento de estrangeiros, mas acabou por não aceitar. Desta forma, o Camboja, observando a dificuldade para o julgamento de Pol Pot, retirou sua oferta às Nações
Unidas, perdendo assim a oportunidade de um julgamento internacional de um grave criminoso (CASSEL, Douglas, 1999).
Desta forma, para se evitar que ocorresse outro caso como de Pol Pot, 160
membros das Nações Unidas se reuniram e formaram o Tribunal Penal Internacional
– TPI, tribunal esse responsável pelo julgamento de crimes de genocídio, crimes de
guerra, crimes contra a humanidade e de agressão12 (CASSEL, Douglas, 1999).
Devido à criação do TPI, uma nova perspectiva se abriu para a possibilidade de
crimes ultrapassarem as fronteiras dos Estados partindo assim para uma perspectiva internacional, na qual o Estado originário não é mais responsável por seu julgamento.
O estabelecimento do Tribunal Penal Internacional trouxe discórdias13 e comuns acordos, principalmente por parte dos países europeus, sul-americanos e dos
Estados Unidos, um dos sete países que votaram contra a sua formação, sem qualquer justificativa, surpreendendo a todos, pois em 1997, o presidente Clinton pessoalmente dirigiu-se ao Secretário Geral das Nações Unidas e pediu pelo Tribunal Penal Internacional. Por mais, a China, um dos outros países que votaram contra, justificando seu voto com o argumento de “proteção da soberania”. No entanto, o voto
contrário não abalou o entusiasmo do Secretário Geral, Kofi Anaan, que disse que o
Tribunal era ”um presente e esperança para as futuras gerações” (FERENCZ, Benjamin; 1999).
Somente dois países que adotam a “democracia”, Israel e Estados Unidos, não
assinaram o tratado posto que o “modelo de democracia americano deve ser levado
a todos no mundo”14, assim propaga o império. Além dos países europeus, os países
do sul e centro-americanos apoiaram em massa o tratado. Perto de compreender os
verdadeiros motivos que levaram os EUA a não assinarem o tratado, em uma recente reportagem da escola de Direito de Harvard, o aluno Samuel Huntington disse
que “os EUA são: intrusivos, intervencionistas, explorativos, unilaterais, hegemônicos, hipócritas e aplicam padrões duplos”15. Assim, Samuel explica a humilhação de
120 contra 7 votos, e que o Governo no poder não representa o povo, mas sim o
modo de vida americano (CASSEL, Douglas; 1999).
Entretanto, ainda existem diversas dúvidas que os estudiosos desse Tribunal
16 Os princípios principais do Direito Romano são livremente a obrigatoriamente aplicáveis, posto que a base jurídica para a criação do Tribunal baseasse nos principais meios legais do Mundo, como Alemão, Romano e An-
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demonstram, como, por exemplo, a responsabilização de cidadãos que estão agindo dentro das leis de seus países, mas, no entanto, cometendo crimes tipificados no
tratado que cria o tribunal (STEINER, Sylvia Helena F., 2001).
O ESTATUTO DE ROMA
Em 17 de julho de 1998, foi firmado o estatuto do Tribunal Penal Internacional, dividido em 13 sessões e 128 artigos. As sessões são: Estabelecimento da Corte,
Jurisdição Admissibilidade e Aplicação da Lei, Princípios Gerais da Lei Criminal,
Composição e administração da Corte, Investigação e Processo, O Julgamento, Penalidades, Apelação e Revisão, Cooperação Internacional e Assistência Judicial, Aplicação, Assembléia dos Estados Partes, Financiamento da Corte e Cláusulas Finais
(Coalition for Internacional Criminal Court;{CICC}; www.iccnow.org; 07/01/2005).
A primeira sessão, Estabelecimento da Corte, artigos 1º ao 4º disciplina a relação do Tribunal com as Nações Unidas, diz que a Corte será estabelecida por tratado e que será sediada em Haia, na Holanda. Seguindo, Jurisdição Admissibilidade, e
Aplicação da Lei, artigos 5º ao 21º, trata de quais crimes estão na jurisdição do Tribunal, de como os casos serão admitidos e a procedência nos casos ocorridos antes
do estabelecimento do Tribunal.
Inicialmente, o Tribunal terá jurisdição sobre os crimes de guerra, genocídio
e crimes contra a humanidade; adicionalmente, a corte vai exercer a sua jurisdição
sobre os crimes de agressão, assim que haja um acordo sobre a sua definição.
A terceira sessão do Estatuto traz os Princípios Gerais da Lei Criminal (artigos
22 ao 33) e se preocupa, principalmente, com as diferenças entre os sistemas legais,
provendo todas as garantias do processo legal16. Esta sessão inclui os princípios não
retroativos. Entretanto, o Tribunal não terá jurisdição pelos atos cometidos antes da
entrada em vigor do estatuto.
Na quarta parte, Composição e administração da Corte (artigos 34 a 52), detalha-se a estrutura do Tribunal e a qualificação e independência dos Juízes. Nesse sentido, o Tribunal é composto pelo Presidente, pela divisão de Apelação, pela divisão
de Julgamento e de pré-Julgamento, pelo Gabinete de Promotoria e, finalmente,
pelo Cartório. Dezoito Juízes irão ser eleitos pela assembléia dos estados partes pelo
mandato de 9 anos, sendo que deverão ter reputação ilibada e grandes qualificações
profissionais.
A sessão denominada Investigação e Processo, dos artigos 53 ao 61, trata das
regras de investigação dos crimes alegados e seu processo, o qual o Promotor pode
iniciar e carregar a investigação. Também define os direitos individuais dos suspei17 Rules of Procedure and Evidence.
18 O Gabinete de Promotoria, assim como o Ministério Publico no Brasil, tem o dever de buscar a verdade e a jus-
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tos de um crime.
O julgamento, sessão sexta (artigos 62 ao 76), define os procedimentos do julgamento, regularizando o julgamento com a falta da presença do acusado, a admissão de culpa, os direitos e proteção do acusado, o princípio da ampla defesa e também contém as procedências das vítimas e testemunhas.
A sessão sétima descreve as penalidades (artigos 77 ao 80), quais sejam: prisão perpétua, prisão por um determinado número de anos, entre outras que podem
ser aplicadas pelo Tribunal. Esta sessão também estabelece um fundo para possível
indenização às vitimas e suas famílias.
A Apelação e Revisão, previstas na sessão oitava (artigos de 81 ao 85), determina que, nos casos de apelação contra julgamentos ou sentenças, o procedimento
será de apelação. Nesta sessão, também há previsão de que qualquer pessoa que for
presa erroneamente pode pedir indenização perante o Tribunal.
A nona parte (dos artigos 86 ao 102) trata da Cooperação Internacional e da
Assistência Judiciária, enfocando a cooperação internacional e a assistência judiciária entre os países membros do Tribunal. Trata da aplicação das leis a décima parte,
dividida entre os artigos 113º e 111º. Reza sobre o reconhecimento do julgamento,
a aplicação da sentença, a transferência das pessoas para cumprir a sentença e a comutação de sentenças.
A Assembléia dos Estados Partes, prevista na 11ªsessão, contém somente o artigo 112 e estabelece que a Assembléia será formada pelos representantes de cada
país membro. Cada representante tem direito a um voto que, para obter alguma decisão, deve conter a maioria dos votos, e para manter um controle do Tribunal, a Assembléia tem o Direito de emendar o texto das “Regras de procedimento, evidencias e elementos do crime”17.
O financiamento da corte está descrito na 12ª parte, entre os artigos 113 e 118,
e será provido pelas Nações Unidas e por contribuições voluntárias de governos, organizações internacionais, indivíduos, corporações e entidades.
A última parte e 13ª sessão, as Cláusulas finais, descrita nos artigos 119 ao 128,
completa o estatuto, descrevendo assuntos como a ratificação e seus procedimentos.
COMPOSIÇÃO DO TRIBUNAL
O Tribunal é composto pela Presidência, pelas Câmaras, pelo Gabinete de Promotoria e pelo Cartório, sendo que dezoito Juízes são membros permanentes. São
eleitos por votos secretos na Assembléia dos Estados Partes após uma cerimônia solene. Os juízes eleitos, logo que possível, elegem a Presidência e a constituição das
Câmaras, composta pelo Presidente e pelos primeiro e segundo Vice-Presidentes
19 Material que pode ser obtido de maneira ilegal ou ser apenas informações da mídia sobre algum crime, este
material deve apresentar apenas o fumus boni iuris do crime ou o seu vestígio.
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(Official International Criminal Court site; http://www.icc-cpi.int; 15/01/2005).
A divisão de Apelação é composta pelo Presidente e quatro outros Juízes. O
Julgamento e o pré-julgamento não são constituídos por menos de seis Juízes cada.
O gabinete de Promotoria atua independentemente18, como um órgão separado do
Tribunal e é encabeçado pelo Promotor, eleito pela absoluta maioria na Assembléia
dos Estados partes.
OS JUÍZES
Os dezoito Juízes que são eleitos pela Assembléia têm um período de atuação
de três, seis ou nove anos. Apenas pessoas com excelente moral, imparcialidade, integridade e qualificação requerida e podem ser indicadas pelos Estados partes (Official International Criminal Court site; http://www.icc-cpi.int; 15/01/2005; United
Nations official site; www.un.org/icc; 20/01/2005).
A eleição possui duas divisões. A primeira estabelece que o Juiz deve ter competência em leis criminais e processo, relevante experiência como Juiz, promotor,
advogado ou outra capacidade similar em procedimentos criminais. A segunda divisão exige competência em relevantes áreas internacionais assim como direitos humanos com uma extensa experiência profissional e grande capacidade legal.
Os Juízes são eleitos para que haja uma boa representação dos principais sistemas legais do mundo, com uma justa divisão entre homens e mulheres, já que são provindos de Estados partes do tratado. Para aqueles que são eleitos pelo período de nove
anos, não há possibilidade de reeleição; no entanto, para os que são eleitos pelo período de três anos cabe reeleição pelo mesmo período. Existirão Juízes que trabalharão
em período integral e outros em meio período (Benjamin B. Ferencz, 1999).
AS CÂMARAS
O jurídico do Tribunal é composto por três câmaras: de Pré-julgamento, de
Julgamento e de Apelação. As divisões de Pré-julgamento e Julgamento são compostas por, pelo menos, seis Juízes; e a de Apelação, pelo Presidente e outros quatro juízes (Official International Criminal Court site; http://www.icc-cpi.int; 15/01/2005).
A divisão de Pré-julgamento é composta pelos Juízes com experiência em julgamentos e por um período de três anos, sendo composta por um a três Juízes.
As Câmaras são responsáveis por aceitar ou rejeitar o pedido de autorização
para se iniciar uma investigação e para verificar se o caso recai sobre a jurisdição do
Tribunal. O Promotor deve enviar à Câmara um pedido para iniciar a investigação, já
apresentando algum material que suporte seu pedido19. Reconhecendo que não haja
provas suficientes para o início da investigação, pode o Promotor não proceder com
a investigação ou apresentar futuramente um novo pedido com mais evidências. O
estatuto prevê que pode a câmara verificar a decisão do Promotor em não continuar
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com a iniciativa de investigação.
Por requerimento do Promotor e para a segurança das vítimas e das testemunhas, a câmara de Pré-julgamento pode garantir a prisão do suspeito, sendo que os
procedimentos para isso devem obedecer ao artigo 115 das “Regras de Procedimento e Evidencias” (Benjamin B. Ferencz, 1999).
Assim como na câmara de Pré-julgamento, os juízes da câmara de Julgamento
devem apresentar experiência em julgamentos. A sessão de julgamento apenas terá
início se houver a presença de três juízes. No artigo 64 do Estatuto, descreve-se todo
o procedimento necessário para assegurar um julgamento justo e de acordo com todos os direitos do acusado, resguardando a proteção da vítima e testemunhas (Benjamin B. Ferencz, 1999).
O presidente pode decidir por adotar, no Julgamento, um Juiz designado para
o Pré-Julgamento, para, assim, assegurar a eficiência do Julgamento e do trabalho
que envolve o Julgamento. No entanto, sobre quaisquer circunstâncias, pode haver
um Juiz que tenha participado do Pré-julgamento referente ao mesmo caso, assim
determinando a câmara à culpa ou inocência do acusado.
A pena a ser imposta pode ser de um número específico de anos, não excedendo a trinta anos, ou prisão perpétua. Multas podem ser impostas, pois o acusado pode ser condenado a pagar uma quantia em dinheiro para compensação, restituição ou em favor das vítimas (Rules of Procedure and Evidence; http://www.icccpi.int).
O julgamento deve ser aberto ao Público. Porém, pode haver circunstâncias
em que haja a necessidade de proteger a testemunha ou caso haja informações
confidenciais.
A divisão de apelação é composta por Juízes eleitos pelo segundo critério
(competência em relevantes áreas internacionais assim como direitos humanos com
uma extensa experiência profissional e grande capacidade legal). A Câmara de Apelação é composta por todos os Juízes a ela designados e o Promotor, ou o condenado, pode apelar contra a decisão do Pré-ulgamento ou do Julgamento.
Os termos de apelação são contra erro de procedimento, erro do fato, erro de
lei, ou qualquer outro erro que venha a afetar a veracidade e a credibilidade do procedimento ou da decisão, assim como a desproporção entre o crime e sua penalidade. Pode a Câmara reverter ou emendar a decisão, julgamento ou a sentença, ou ordenar um novo julgamento. Se houver novas provas, pode ser requerida à revisão
da sentença que não era disponível no tempo do julgamento.
A PRESIDÊNCIA
A Presidência é composta pelo Presidente, primeiro e segundo vices. São eleitos por maioria absoluta dentre os Juízes pelo período de três anos. O presidente é
responsável pela administração do Tribunal, com exceção do gabinete de promoto-
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ria que tem administração independente. No entanto, deve o Promotor apresentar
um bom desenvolvimento tendo ele o dever de demonstrar um bom desempenho
e mútuo consentimento com o Presidente (Official International Criminal Court
site; http://www.icc-cpi.int; 27/01/2005).
O GABINETE DA PROMOTORIA
Encabeçado pelo Promotor Chefe, eleito pela Assembléia dos Estados Partes,
o Gabinete de Promotoria, como chamado, é um dos quatro órgãos do Tribunal.
Tem uma autonomia à parte do Tribunal, apesar de estar diretamente interligado a
ele e possui autoridade total sobre a administração, incluído seu pessoal e recursos
(Official International Criminal Court site; http://www.icc-cpi.int; 16/01/2005).
A função do Gabinete é de conduzir as investigações e processos dos crimes que
recaírem sobre a jurisdição do Tribunal, conduzindo o processo e investigando os crimes. O Gabinete de Promotoria objetiva, por fim, a impunidade e perpetuar os mais
sérios crimes contra a humanidade, assim como contribuir para prevenir tais crimes.
O Promotor Chefe pode iniciar uma investigação assim que uma referente situação criminosa venha a ocorrer ou alguma situação que possa ocorrer. A investigação pode ser iniciada por meio de denúncia de algum dos estados partes ou por
meio do conselho de segurança das Nações Unidas, assim atuando para prevenir
qualquer ameaça internacional e proporcional paz e segurança. De acordo com o estatuto de Regras e Procedimentos, o Promotor Chefe deve analisar o material enviado a ele antes de tomar qualquer decisão ou dar continuação aos procedimentos.
Pode o Promotor Chefe receber informações de crimes dentro da jurisdição
do Tribunal oriundas de outras fontes, tais como de indivíduos ou organizações não
governamentais. O Promotor Chefe conduz um exame prévio das informações recebidas, decidindo se há provas suficientes para levar em frente a investigação, assim
requisitando à Câmara de Pré-Julgamento a autorização para investigação.
Conseqüentemente à sua função, o Gabinete de promotoria comporta ambas
divisões, a de investigação e de processo. Principalmente responsável pelo exame
preliminar e em conduzir a investigação, assim como coletar e examinar provas e depoimentos, investigar vitimas e testemunhas. Em acordo com o estatuto, o Gabinete deve estender a investigação para incriminar ou exoneram um fato, pois há a responsabilidade de estabelecer a verdade em qualquer caso.
O Estatuto de Roma reconhece, em seu preâmbulo, que o Tribunal é o ultimo
meio para trazer justiça às vitimas de genocídio, crimes de guerra, contra a humanidade e futuramente contra a agressão. Exaltando, em primeiro lugar, a responsabilidade dos Estados em investigar e proceder para com os criminosos de crimes internacionais, o Estatuto prevê que um caso é inadmissível quando um caso já esta sendo legalmente investigado por um Estado que tem jurisdição sobre este, a menos
que o Estado renegue o direito, assim o Promotor Chefe é obrigado a considerar o
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caso (Official International Criminal Court site; http://www.icc-cpi.int; 16/01/2005).
VÍTIMAS E TESTEMUNHAS
Pela primeira vez na história de um tribunal internacional, as vítimas têm a
possibilidade de apresentar suas observações e pontos de vista perante o tribunal.
Essa participação pode ocorrer em diversas fases do julgamento e de diferentes formas, cabendo ao Juiz dizer quando e como ocorrer.
Sua participação, sempre em acordo com o procedimento do tribunal requer,
na maioria dos casos, um representante legal que conduzirá de maneira a preservar
a integridade e os direitos do acusado, para assim proporcionar um julgamento justo e imparcial. O Estatuto prevê que as vítimas, nos casos em que couber, podem ser
indenizadas pelo agressor quando assim diminuir seu sofrimento (Rules of Procedure and Evidence; http://www.icc-cpi.int),
A vítima, evidentemente, pode enviar informações para o Promotor para provocá-lo, assim iniciando sua posição de investigador e causando um possível julgamento. Inicia-se com a provocação do Promotor que, perante a Câmara de Pré-Julgamento, irá requisitar a permissão para se iniciar a investigação. Logo depois de
concluída a investigação, o Promotor irá a julgamento podendo relacionar as vitimas
como testemunhas, pois em casos como as vitimas de Ruanda ou Iugoslávia, as testemunhas eram as vítimas, sendo assim classificadas. Não apenas no julgamento o
Promotor pode requisitar as vítimas, mas em qualquer momento do processo.
As regras de Procedimento e Evidências estipulam como as vítimas podem ser
utilizadas. Elas devem enviar uma carta com os motivos da participação para o Tribunal
registrar, mas especificamente para a Câmara em que será apreciada. No entanto, a Câmara pode rejeitar sua apresentação se decidido que a pessoa não é vítima.
Indivíduos que queiram participar dos procedimentos perante o Tribunal devem prover evidências que são vítimas e, assim, provocar o Promotor. Para tal, existe a divisão de Reparação, responsável por examinar as provas das vítimas e encaminhá-las para os respectivos procedimentos. A petição deve ser feita por uma pessoa
que esteja agindo com o consentimento da vítima, ou em seu nome quando a vítima for menor ou incapaz.
As vítimas são livres para procurarem seus representantes legais, que devem
ser igualmente qualificados como o indicado para a defesa; assim, deve possuir extensa experiência internacional, e ser advogado, promotor ou juiz. Para garantir a
eficiência do processo nos casos nos quais existe um vasto número de vítimas, compete à Câmara questionar a vítima que escolha um representante ou divida um com
outras vítimas. Se a vítima não é capaz de indicar a Câmara, pede ao Cartório para
que escolha.
O Cartório, assim como a unidade de Reparação, tem a obrigação de manter
as vítimas informadas das ocorrências processuais. Caso ocorra de o Promotor não
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iniciar o procedimento por motivo qualquer, as vítimas podem requerer suas presenças diante da Câmara de Pré-Julgamento para questionar o posicionamento do
Promotor, assim irá a Câmara procurar o porquê da não iniciativa do Promotor.
Assim também, pela primeira vez na história da humanidade, um tribunal internacional tem o poder para ordenar um indivíduo de pagar indenização para outro indivíduo. No artigo 75 do Estatuto, está descrito o princípio para a reparação
das vitimas, o qual inclui a restituição, a indenização ou a reabilitação. Desta forma,
o Estatuto tenta direcionar o sofrimento para um patamar inferior, indenizando as
vítimas e proporcionando um refúgio financeiro.
A unidade de Reparação é responsável por proporcionar a devida publicidade
para o procedimento de reparação, assim levando ao conhecimento das vítimas seus
direitos de receber tais indenizações. Este procedimento apenas é possível após a
declaração de culpado do julgado, e para isso o confisco de todas as propriedades
do condenado.
A reparação pode ser individual ou coletiva, de acordo com o tipo de crime.
Se a reparação for coletiva, será criado um fundo para as vítimas, se assim pode ser
paga ao governo ou organização, nacional ou internacional que vise à reconstrução
ou melhoria da qualidade de vida das vítimas.
E como dito anteriormente, pela primeira vez na história da humanidade, um
Tribunal Internacional tem o poder de penalizar um indivíduo a pagar uma multa
contra outro indivíduo, em caráter de indenização.
O DIREITO DOS ACUSADOS
Assim como em qualquer sistema jurídico avançado, o acusado é presumido
inocente até que se prove o contrário, e esta prova cabe ao Promotor. O artigo 67
do Estatuto de Roma detalha o direito dos acusados, exemplificando-os, pois estes
direitos são universais (Estatuto de Roma, 1998).
Exemplos dos Direitos que estão no artigo 67 do Estatuto de Roma:
- pronta informação ao acusado da natureza, causa e conteúdo
da acusação;
- ter o tempo adequado e facilidades para a preparação da defesa;
- de ser julgado sem atraso;
- estar presente no julgamento, conduzir a defesa pessoalmente ou
através de um representante legal, de livre escolha do acusado, se
não a tiver, tem o direito de ter tal apontada pelo Tribunal no caso
onde o interesse da justiça requerer, e se não houver condição de
pagar o Tribunal arcará com as despesas;
- de examinar as testemunhas de acusação, e apresentar testemunhas e provas a seu favor;
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- não ser forçado a testemunhar ou confessar o crime, assim como
o Direito de permanecer calado;
- de fazer uma alegação oral ou escrita para sua defesa.
CONCLUSÃO
O Tribunal Penal Internacional deve buscar o respeito dos países membros, no
início, é óbvio que irá enfrentar problemas com a jurisdição. Alguns Juízes dos países membros podem não entregar os criminosos para serem julgados como acordado; entretanto, o passo da criação já encaminha o Direito Internacional a um novo
patamar, a união dos países membros e a adoção de um único Tribunal para o julgamento de criminosos sem discriminação de nacionalidade, fornecendo a todos os
mesmos direitos de defesa, torna-o um fato histórico único.
A união das principais leis e sistemas jurídicos mundiais demonstra que um
Tribunal pode ser de pacífico entendimento mundial. Nesse sentido, para o Brasil ou
para a África do Sul, o Tribunal pode ser justo e digno de estudo para o aperfeiçoamento das próprias leis internas.
Internamente no Brasil, o que acarretará maior discussão será a aplicação da
prisão perpétua pelo Tribunal, que o artigo 5º, inciso XLVII, alínea b da Constituição
proíbe. No entanto, a redação abre uma brecha para que a pena perpétua não seja
imposta pelos Tribunais nacionais, nada impedindo que um Tribunal Internacional
venha impor tal pena, o caminho será ou a revogação de tal alínea ou a adoção da
teoria anterior. Descartada está a retirada do Brasil como um dos países membros
do Tribunal, pois o parágrafo 4º do artigo 5º inserido com a Emenda Constitucional
n. 45, já torna o Brasil sujeito à jurisdição do Tribunal, basta agora aguardar para ver
qual será o caminho adotado pelos Tribunais nacionais.
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Caio Mário Da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, v.III.
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A TEORIA DA IMPREVISÃO E A REVISÃO
JUDICIAL DOS CONTRATOS
Jacqueline Machuca
Orientadora: Professora Mestre Doutora Lydia Bastos Telles Nunes
RESUMO
A teoria da Imprevisão recai sobre os contratos de execução diferida que sofre uma modificação superveniente e imprevisível e impede que a parte cumpra o
pactuado sem ter um empobrecimento exacerbado.
O objetivo de abordar a revisão dos contratos em face da Teoria da imprevisão
é de suma importância, tendo em vista de que o contrato é o motor da economia e
é de grande valia a sua execução para o mundo moderno.
Palavras-chave: Revisão Contratual, Teoria da Imprevisão.
INTRODUÇÃO
O mundo moderno é o mundo dos contratos. Neste mundo, sua importância é
tamanha que se fosse feita uma abstração por um momento do fenômeno contratual a
conseqüência seria a estagnação da vida social. O homo economicus estancaria as suas
atividades. É o contrato que proporciona a subsistência de toda gente. Sem ele, a vida
individual regrediria, a atividade do homem limitar-se-ia aos momentos primários.1
Na atualidade, os contratos são numerosos em quantidade e velozes quanto à
sua celebração, pois basta uma moeda para que se celebre um contrato com “a máquina de refrigerantes”.
A partir do século XX, a celebração dos contratos foi sendo massificada pelo
2
3
Segundo o Dicionário de Vocábulos Jurídicos de Plácido e Silva a expressão rebus sic stantibus é a locução latina utilizada na terminologia jurídica para designar a cláusula contratual, que se julga inserta nas convenções,
em virtude da qual o devedor é obrigado a cumprir o contrato, somente, quando subsistem as condições econômicas existentes quando fundado o ajuste. “Rebus sic stantibus” quer, precisamente, significar o mesmo estado das coisas, ou a subsistência das coisas. O contrato se cumpre se as coisas se conservarem, desta maneira, no estado preexistente, quando de sua estipulação, isto é, desde que não tenham sofrido modificações essenciais.
Contrato: é o ato ou efeito de contratar. É o acordo de duas ou mais pessoas, empresas, etc., que entre si trans-
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sistema capitalista e hoje é o instrumento de importante movimentação econômica,
tanto para a obtenção do lucro, quanto para trazer segurança jurídica entre as partes contratantes.
Porém, pode ocorrer que uma das partes sofra a incidência de um fato que lhe
traga onerosidade no cumprimento da obrigação, que dificulte a execução do contrato. Assim, o contrato poderá, com fulcro na teoria da imprevisão, submeter-se a
uma revisão judicial. Cabe ao Direito regular as situações e ao juiz ponderar que a
autonomia e a liberdade contratual são hoje massacradas pelas diferenças entre os
contratantes. O intervencionismo não afastará a liberdade contratual, mas trará a ela
a segurança de sua preservação.
Com a celeridade da contratação nos tempos modernos, os contratos vão perdendo suas acepções clássicas, dando espaço para os novos moldes, sobretudo em
face de que a igualdade e liberdade dos contratantes são suprimidas pelas variadas
desigualdades existentes e pela situação de dominação. Uma parte querendo impor
sua vontade perante a outra. Caso essa imposição dificultar o cumprimento do contrato é necessário que o Estado intervenha para evitar que seu total descumprimento gere insegurança nas relações jurídicas.
Dá-se, assim, a revisão dos contratos, com a aplicação da cláusula rebus sic
stantibus2, contrapondo-se à cláusula pacta sunt senvanda (o que foi pactuado
deve ser cumprido).
ASPECTOS CONTRATUAIS
CONCEITO DE CONTRATO: Não poderemos deixar de citar o conceito
mais difundido entre a doutrina, pois seja: Contrato3 é um acordo de vontades, na
conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar,
modificar ou extinguir direitos. Em palavras mais simples, é o acordo de vontades
com a finalidade de produzir efeitos jurídicos.
Seu fundamento ético é a vontade humana, desde que atue em conformidade da ordem jurídica, a moral e os bons costumes. Seu habitat é a ordem legal. Seus
jurídicos e legais efeitos são a criação de direitos e de obrigações.4
O contrato não é uma invenção ou criação da lei, sim uma expressão da natureza e razão humana, é uma convenção ou mútuo acordo, pela qual duas ou mais
pessoas se obrigam. É um ato natural e voluntário constituído pela inteligência e arbítrio do homem, é o exercício da faculdade que ele tem de dispor dos diversos
meios que possui de desenvolver o seu ser e preencher os fins de sua natureza, de
sua existência intelectual, moral e física.5
4
5
Caio Mario da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, v.III.
Otávio Luiz Rodrigues Junior, Revisão Judicial dos contratos, ed. Atlas.
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PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DOS CONTRATOS
AUTONOMIA DA VONTADE: A vontade é livre, há a liberdade em se contratar. As partes estipulam o que bem quiserem mediante acordo de vontades.
Segundo Kant, significa aquela sua propriedade, graças à qual, ela é para si
mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer).
Há uma visão reiterada deste princípio através da doutrina. Pregam que há liberdade em estabelecer relação jurídica com outra pessoa, isto é, se irá contratar-se
ou não; liberdade de estipular com quem irá se contratar; e a liberdade de fixar o
conteúdo do contrato.
PRINCÍPIO DO CONSENSUALISMO: Basta o consenso puro das partes
para a formal realização do contrato.
PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE: Baseia-se na idéia de que se houve a
formação de um contrato deverá necessariamente haver o seu cumprimento. Traduzse pelo preceito latino pacta sunt servanda, os contratos devem ser cumpridos. O contrato faz lei entre as partes, pois se fora confeccionado livremente pelos interessados
tem força obrigatória. O contrato aqui se equipara à norma jurídica, intangível.
PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE DOS EFEITOS DO CONTRATO: Posto
que não atingem outros sem ser aqueles que pactuaram.
PRINCÍPIO DA BOA-FÉ: Princípio consagrado no Código Civil, segundo o
qual, deverá estar presentes a lealdade e confiança. Relacionado ao comportamento
dos agentes. Ligado até mesmo a interpretação dos contratos.
Felizmente, esses princípios do direito de contratar não são mais absolutos,
pois para cada um deles há uma exceção que poderá ser mencionada.
A autonomia da vontade dos indivíduos sofre fortes influências e a liberdade
de se contratar choca-se com a urgência em se adquirir um bem ou um serviço. Muitas vezes, essa autonomia do sujeito se subordina à vontade do outro e se estabelece um contrato desproporcional às posses individuais.
O consenso da parte pode vir com grande carga coercitiva da vontade da outra parte, por exemplo o contrato de adesão.6
A obrigatoriedade é afastada em casos de força maior, caso fortuito e a excessiva onerosidade superveniente no cumprimento do contrato.
6
7
8
No que respeita aos aspectos contratuais da proteção do consumidor, o CDC rompe com a tradição do Direito Privado, cujas bases estão assentadas no liberalismo que reinava na época das grandes codificações européias do século XIX e o exemplo aqui cabível é o de relativizar o princípio da intangibilidade do conteúdo do
contrato, alterando a regra milenar expressa pelo brocardo latino pacta sunt servanda, e enfatizar o princípio
da conservação do contrato (art. 6º, V ). Nelson Nery Júnior, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor-comentado pelos autores do anteprojeto, 6º ed.
São eles: José Maria Othon Sidou, Rogério Ferraz Donnini e Carlos Alberto Bittar.
Código da Hamurabi existente por volta de 1694 aC, encontrado em 1901 nas escavações promovidas por Jean
Marie Morgan.
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A relatividade dos contratos pode também atingir terceiros. A boa-fé nem
sempre estará presente, pois nem sempre há lealdade e confiança no contrato.
Pode-se celebrar um contrato sabendo-se que não será possível cumpri-lo, e mesmo
assim o faz utilizando-se de má-fé.
BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA
ANTIGÜIDADE ORIENTAL: Alguns autores defendem o surgimento do
instituto da revisão dos contratos na Codificação Mesopotâmica.7 E o documento mais antigo que demonstra esse fato é o Código de Hamurábi8, na Lei 48: Se
alguém tem um débito a juro, e uma tempestade devasta o campo ou destrói a
colheita, ou por falta d’água não cresce o trigo no campo, ele não deverá nesse
ano dar trigo ao credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não pagar juros por este ano.
ANTIGÜIDADE CLÁSSICA: É discutível se a revisão contratual existiu efetivamente no direito romano. A favor cita-se o De Officiis ad Marcum filium, de Marco Túlio Cícero:
Apresentam-se-nos, muitas vezes, circunstâncias nas quais as coisas que parecem eminentemente justas, para aquele que nós chamamos homem honrado, mudam de natureza e tomam um caráter oposto. Assim, em certas ocasiões, será conforme à justiça não
restituir o depósito, não cumprir a promessa, desconhecer a verdade e a fé empenhada!... A alteração dos tempos e das circunstâncias levam à alteração da verdade9.
10 Op. cit. p.50.
11 Op. cit. P.51. Em latim: Cum quis sibi, aut Titio dari stipulatus sit, magis esse ait, ut ita demum recte Titio solvi dicendum sit, si in oedem statu maneat, quo fuit, cum stipulacio interponeretur; caeterum sive in adoptionem, sive in exilium ierit, vel aqua et igni ei interdictum, vel servus factus sit, non recte ei solvi dicendum: tacite enim inesse haec conventio stiputioni videntur, si in eadem causa maneat.
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De Sêneca, em De Beneficiis, é também feita uma menção ao presente estudo:
A menor mudança deixa-me inteiramente livre para modificar
minha determinação, desobrigando-me da promessa.10
No Digesto, há resquícios da idéia de imprevisão. Contudo, inexiste nas fontes
romanas a famosa expressão: “Contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur” (Os contratos que têm trato sucessivo ou a termo ficam subordinados, a todo tempo, ao mesmo estado de
subsistência das coisas).
A título de exemplo citaremos um fragmento de Africano (Digesto, XLVI.3.38):
Quando alguém tiver estipulado que se dê a ele ou a Tício, se diz
ser mais certo que se há de entender, que se paga bem a Tício, somente se perdurar o mesmo estado em que se falava quando se assentou a estipulação. Mas, se o foi por adoção, ou tiver sido desterrado, ou se pôs interdição pelas águas e pelo fogo, ou foi feito servo, se há de dizer que não se lhe paga bem, porque se considera
que tacitamente é inerente à estipulação esta convenção, desde
que permaneça no mesmo estado.11
Há o entendimento de que a teoria da imprevisão não consagrou a cláusula
rebus sic stantibus, mas é inegável que era um instituto notório entre os romanos.
IDADE MÉDIA: Outra corrente defende que a sistematização da teoria da imprevisão nasceu efetivamente com o Direito Canônico e toda a filosofia da igreja de
boa-fé e piedade. O Bispo de Hipona, em Sermones ad Populum, escreveu:
Quando ocorre alguma coisa de maior importância que impeça a
execução fiel da minha promessa eu não quis mentir, mas apenas
13 Landrecht, no título 1º, capítulo 5º, parágrafos 377 e 378: “ Exceto os casos de efetiva impossibilidade, o cumprimento de um contrato, em regra, não pode ser recusado por mudança de circunstâncias. Contudo, se por
imprevisível mudança se tornou impossível atingir o escopo final de ambas as partes, expressamente declarado ou resultante da natureza do ato, pode qualquer delas desistir desde que esse ato não tenha sido executado”.
14 Em seu artigo 1134, diz que as convenções legalmente constituídas têm o mesmo valor que a lei relativamente às partes que as fizerem.
15 Código Civil Francês-Código de Napoleão. Traduzido por Souza Diniz. Distribuidora Record. Rio de Janeiro.
1962.
16 Sendo que, ainda,os artigos prescrevem: “Art. 1254: El contrato existe desde que uma o varias personas consienten em obligarse, respecto de outra u otras, a dar alguna cosa o prestar algún servicio” e “Art. 1258: Los
contratos se perfeccionam por el mero consentimiento, y desde entonces obligan, no solo al cumplimiento de
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não pude cumprir o que prometi. Eis, então, o que penso, sem argumentação forçada para persuadir-vos, porém, agucei a atenção
de vossa prudência para a circunstância de que não mente aquele que promete alguma coisa e não a faz se, para isso não executar, algo sucedeu que impediu o cumprimento da promessa, ao
contrário da falsidade convincente.12
O direito natural de caráter divino teria dado ênfase à imprevisão com Santo
Tomás de Aquino e Santo Agostinho e já começaria a aplicar a rebus sic stantibus
nos tribunais eclesiásticos. Pouco tempo depois, a aplicação teria sido estendida
para os tribunais comuns.
IDADE MODERNA: Hugo Grotius dá à cláusula rebus sic stantibus uma posição
de maior destaque inserindo-a em seu estudo sobre direito natural e direito internacional e, influenciado por Santo Tomás de Aquino, defende a mudança do caráter obrigatório da promessa que em acontecimentos excepcionais poderiam não ser mais cumpridas. O Codex Maximilianus Bavaricus Civilis de 1756 (Código Civil da Baviera) tem em
seu bojo a primeira norma legislativa cogente sobre a cláusula rebus sic stantibus.
Em 1774, o Landrech (Lei da Terra Prussiana) adota a teoria da imprevisão.13
Nas Ordenações Filipinas, de 1603, há menção da cláusula rebus sic stantibus
nos Títulos 21,24,27 e 64, do Livro IV.
IDADE CONTEMPORÂNEA: Com o Estado Liberal trazido pelas idéias da
Revolução Francesa, o princípio da teoria da imprevisão perdeu força e houve posição retrógrada. Presumia-se que todos eram livres para contratar e iguais para estipular tal contrato. Nesse momento, o pacta sunt servanda retorna com o Código
Civil Francês14 de 1804 e a exploração do mais fraco fez-se presente pelo enaltecimento da autonomia da vontade,. Em seu artigo 1134, que segue:
Art.1134: As convenções legalmente constituídas têm o mesmo va17 Referida lei prevê: “Art. 1º: Durante a duração da guerra e até sua expiração, por um prazo de três meses a partir da cessação das hostilidades, os dispositivos excepcionais desta lei são aplicáveis nos negócios e nos contratos de caráter comercial às partes ou a uma delas somente, concluídos antes de 1º de agosto de 1914, e que
consistam, seja na entrega de mercadorias ou gêneros, seja em outras prestações, sucessivas ou apenas adiadas.
Art. 2º: Independente de causas resolutórias de direito civil ou de convenções particulares, os negócios e contratos mencionados no artigo anterior podem ser rescindidos a pedido de qualquer das partes, se provado que
por motivo de estado de guerra a execução das obrigações de um dos contratantes envolve encargos que lhe
causam prejuízos cuja importância ultrapassa de muito as previsões razoavelmente feitas à época do ajuste.
A rescisão será pronunciada, segundo as circunstâncias, com ou sem indenizações.
O juiz, quando estabelecer indenizações por perdas e danos, deverá reduzir seu montante se constatar que,
em virtude do estado de guerra, o prejuízo ultrapassou demasiadamente aquele que os contratantes puderam
prever.
Se, conforme as condições e usos do comércio, a compra foi feita por conta e risco do vendedor, e as mercadorias não foram entregues, o montante da indenização deve ser reduzido na forma da terceira alínea acima.
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lor que a lei relativamente às partes que a fizeram. Só podem elas
ser revogadas pelo seu consentimento mútuo, ou pelas causas que
a lei admite. Devem ser executadas de boa-fé.15
O Código Civil Espanhol determina que:
Art. 1090: Las obligaciones que nacen de los contratos tienen fuerza de ley entre las partes contratantes, y deben cumplirse al tenor
de los mismos.16
Em 1918, A Lei Failliot17 põe fim à supremacia do pacta sunt servanda, com
a crise da autonomia da vontade, e re-insere a teoria da imprevisão. A partir de então, o princípio retorna do âmbito jurídico.
O INSTITUTO NO DIREITO COMPARADO: Os países têm posição diversa entre si sobre a adoção da teoria da imprevisão.
Em 1937, foi realizado em Paris a “Semana internacional do Direito”, onde, então, a teoria da imprevisão foi discutida pela primeira vez em matéria de direito comparado. Vejamos:
ALEMANHA: Temos como base para a aceitação da teoria da revisão dos contratos o CODEX MAXIMILIANUS BAVARICUS CIVILIS (de 1756) e a LEI DA TERRA
PRUSSIANA (LANDRECHT, de 1774).
O Código Civil de 1896 (BÜRGERLICHES GESETZBURCH) não contém a men18 Decreto Lei n. 739/15e dizia: “ A tutti gli effeti dell’ articolo 1226 codice civile la guerra è considerata come caso
di forza maggiore non solo quando renda impossibile la prestazione, ma anche quando lê renda eccessivamente onerosa, purchè l’ obbligazione sai stata assunta prima della data Del decreto di modificazione generala” Tradução: “Para todos os efeitos do art. 1226 do Código Civil, a guerra é considerada como caso de força maior,
para exonerar o devedor das responsabilidades decorrentes dos contratos celebrados antes da data do decreto de mobilização geral, não só quando torne impossível a prestação, mas também quando acarrete excessiva
onerosidade”. R. F. Donnini, op. cit., p. 26.
19 “Art. 1372: o contrato tem força de lei entre as partes. Não pode ser desfeito senão por mútuo consenso ou por
causa previsiva em lei.
Art. 1467: Nos contratos de execução continuada, periódica ou de execução futura, se a prestação de uma das
partes torna-se excessivamente onerosa em conseqüência de acontecimento extraordinário e imprevisíveis, a
parte que deve tal prestação pode demandar a resolução do contrato, com os efeitos estabelecido no art.1458.
A resolução não pode ser demandada se a onerosidade superveniente entra no risco normal do contrato.
A parte contra a qual é demandada a resolução pode evitá-la oferecendo-se para modificar eqüitativamente as
condições do contrato”.
20 Decreto n. 14.668/1927; Decreto n. 16.076/1928; Decreto n. 31.911/1942; Decreto n. 32.432/1942; Decreto n.
34.073/1944; Decreto n. 34.443/1945.
21 Art. 437: 1. Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa-fé e não
esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. 2. Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao
pedido, declarado aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior.
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ção expressa referente à teoria aqui presente. Entretanto, os tribunais adotam o
princípio da revisão tendo como fundo a Teoria de Bernard Windscheid, chamada
TEORIA DA PRESSUPOSIÇÃO, criada no século XIX, dizendo que quem faz um contrato parte do pressuposto de que tudo ocorrerá naturalmente e, se por acaso isso
não ocorrer, a parte contrária não terá culpa, ela se desobriga.
O dispositivo mais elucidativo, do Código Civil Alemão, para a aplicação da rebus sic stantibus é o Parágrafo 242 onde se destaca que o devedor está obrigado a efetuar a sua prestação conforme a boa-fé e os costumes. Aqui, a boa-fé supõe um vínculo, geralmente contratual, entre quem invoca a cláusula de revisão e a outra parte.
Os Tribunais, portanto, utilizam o princípio da boa-fé para a aplicação da teoria rebus sic stantibus e alguns pressupostos para sua efetiva aplicação: mudança
das circunstâncias básicas do negócio (alteração que, se conhecida, não levaria ao
pacto); modificação imprevisível que exceda a distribuição dos riscos inerentes ao
contrato; e alteração que torna o cumprimento da avença insuportável para um dos
contraentes.
ITÁLIA: O Código de 1865, baseado no Code Napoleon, reverenciava o pacta sunt servanda. Não mencionava, contudo, a cláusula rebus sic stantibus expressamente. Entretanto havia um Decreto-Lei18 italiano, feito anteriormente ao Código
Civil Francês, que contemplava a cláusula “rebus sic stantibus” e foi sendo aplicada
paulatinamente durante a Primeira Guerra Mundial. Esta serve como ressurgimento
da teoria.
Este artigo 1226 do CC previa o ressarcimento do dano contemplado pela hipótese de revisão dos contratos pelo poder judiciário equiparando a guerra como
força maior.
O Código Civil de 1942 (atual) continua dando ênfase ao pacta sunt servanda; entretanto, prevê a possibilidade de revisão contratual nos artigos 1372 e 146719.
PORTUGAL: O Código Civil de 1867 não previa a revisão contratual por onerosidade superveniente, pois contemplava a rigidez contratual. Havia algumas hipóteses de revisão em Decretos20 da época, mas prevendo apenas contratos em que a
parte fosse a administração pública.
O Código Civil atual de 1966 previu a possibilidade de revisão contratual em
seus artigos 437, 438 e 439.21 Os princípios intrínsecos a estes deduzem que a revisão contratual tem aplicação toda vez que fato superveniente (previsível ou imprevisível) que altere a relação contratual ferir a boa-fé.
FRANÇA: A França prega o pacta sut servanda. A maior parte dos autores
tem uma posição contrária à aplicação da teoria da imprevisão no direito francês,
mas, não é uma corrente dominante. Porém, o instituto existiu na França durante a
Primeira Guerra Mundial por meio da Lei Failliot de 1918, primeira lei sobre a teoria da imprevisão. Esta, conjuntamente com a jurisprudência,22 introduziu no Direi22 No famoso caso de Compagnie Générale d’Eclairage de Bordeaux.
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to Administrativo a possibilidade de revisão.
INGLATERRA: A Common law preza o pacta sunt servanda. Há, contudo, a
Frustration of Adventure que permite, em casos excepcionais, a ruptura do pacto.
Não é um instituto que atende a quesito para a alteração do contrato e sim para o
seu rompimento.
TEORIAS QUE FUNDAMENTAM A IMPREVISÃO CONTRATUAL
Tentou-se muito dar fundamento à teoria da imprevisão e muitas surgiram. Vejamos as mais expressivas.
A Teoria da Pressuposição, formulada por Bernard Windcheid. Segundo esta teoria, existe o pressuposto de que as condições econômicas, no momento da celebração
do contrato, permanecerão da mesma forma. Caso haja uma mudança extraordinária
nessas condições trazendo onerosidade em demasia para um e enriquecimento fora do
normal para o outro, o contrato necessariamente terá que ser revisto.
A Teoria da Superveniência ou da Vontade Marginal de Giusepp Osti, por esta os
contratantes deve ater-se para as circunstâncias de tempo e local da celebração do contrato; e também para as circunstâncias da dificuldade econômica dos contraentes.
A Teoria Base do Negócio Jurídico de Paul Oertmann, condiz que se a base do negócio permanecer a mesma no momento da execução da prestação não haverá como
rever o contrato; entretanto, se a base for rompida, haverá conclusão do contrato.
A Teoria do Erro de Achillxe Giovane crê que pode ocorrer erro em relação os
fatos supervenientes (previsíveis ou imprevisíveis) que venham alterar a relação
contratual, desembocando na modificação da vontade das partes.
A Teoria do Estado de Necessidade, de Lehmann e Coviello, defende que não
irá descumprir o pacto aquele que o faz para salvar direito próprio ou de outrem.
Além dessas outras mais existem; contudo, todas elas vêm acarretando, na
consolidação do argumento, que a teoria da imprevisão tem por base a correta e justa prestação, não podendo ela exceder ao real valor estimado dando causa de enriquecimento ilícito para uma das partes.
PRESSUPOSTO PARA A SUA APLICAÇÃO
Para Arnoldo Medeiros da Fonseca, os pressupostos para a aplicação estão
fundamentados na alteração radical no ambiente objetivo existente ao tempo da formação do contrato, decorrente de circunstâncias imprevistas e imprevisíveis; onerosidade excessiva para o devedor e não compensada por outras vantagens auferidas
23 Lei n. 9.307, de 23 de setembro se 1996, art. 31: A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores,
os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui tí-
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anteriormente, ou ainda esperáveis, diante dos termos do ajuste. Enriquecimento
inesperado e injusto para o credor, com conseqüência direta da superveniência imprevista.
Caio Mário da Silva Pereira entende que, para que se possa atingir o contrato
por meio da teoria da imprevisão, são necessários os requisitos: vigência de um contrato de execução diferida ou sucessiva; alteração radical das condições econômicas
objetivas no momento da execução, em confronto com o ambiente objetivo no da
celebração; onerosidade para o outro; imprevisibilidade daquela modificação.
Maria Helena Diniz aponta os seguintes pressupostos para que a parte lesada
tenha a revisão contratual: vigência de um contrato comutativo de execução continuada; alteração radical das condições econômicas no momento da execução do
contrato, em confronto com as do contraentes e benéfico injusto e exagerado para
o outro; imprevisibilidade e extraordinariedade daquela modificação, pois é necessário que as partes, quando celebraram o contrato, não possam ter previsto esse
evento anormal, isto é, que está fora do curso habitual das coisas.
Em suma, a imprevisão incide nos contratos bilaterais (perfeitos ou não) e nos
unilaterais onerosos. Importante também observar que a execução deve ser protraída no tempo. O princípio da revisão deve ser argüido no Poder Judiciário, ou no juízo arbitral23 se fora estipulado. Deve-se argüir antes do momento de cumprir com a
execução do contrato, ou seja, do seu vencimento, não poderá haver inadimplemento. A imprevisão deve ser provada por quem a alega. Tem legitimidade para argüí-la
o devedor (pois tem o interesse em modificar o contrato para cumpri-lo) e também
o credor (pois tem o interesse de que o contrato seja cumprido).
A imprevisão exige do contratante a conduta de um bonus pater familias,
com a sua cautela. Deverá, ainda, o acontecimento ser inevitável, superveniente, e
que modifique a economia contratual. O contrato, necessariamente, terá que ser interpretado frente aos princípios do direito contratual para qualquer alteração das
circunstâncias fáticas.
A onerosidade só será admitida se for excessiva, pois os ganhos e perdas dos
pactos não são fadados pelas modificações, é uma conseqüência natural do modo
de produção capitalista.
DA APLICAÇÃO DA TEORIA E DO DIREITO VIGENTE.
24 RT 643/90-TJSP.
25 Entretanto, o que é uma lastima essa medida provisória: Art. 4º: As disposições desta medida provisória não se
aplicam: I- às instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, bem como às operações realizadas nos mercados financeiros, de capitais e de valores mobiliários, que continuam regidas pelas normas legais e regulamentares que lhe são aplicáveis; II- às sociedades de crédito que
tenham por objeto social exclusivo a concessão de financiamentos ao microempreendedor; III- às organizações
da sociedade civil de interesse público de que trata a Lei n. 9.790/99, devidamente registradas no Ministério da
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Primeiramente, não deixaremos de expor o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Segundo o nosso novo Código Civil, a teoria da imprevisão vem prevista dos artigos que se seguem:
Art. 478: Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a
prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa,
com vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução
do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à
data da citação.
Art. 479: A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.
Art. 480: Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das
partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou
alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade.
Note-se, que o Código Civil adotou a cláusula rebus sic stantibus, possibilitando, então, a revisão do contrato para a sua execução de acordo com as circunstâncias de fato. Ele também enaltece a função social do contrato e a boa-fé.
Analisando esses artigos, vêem-se quais as exigências que se deve observar.
Contratos de execução continuada ou diferida; existência de prestação excessivamente onerosa para uma das partes em conseqüência de acontecimentos imprevisíveis e extraordinários; o reconhecimento desta onerosidade será mediante sentença e os seus efeitos irão retroagir à data da citação.
A doutrina e a jurisprudência têm consagrado a idéia de intervenção judicial é
um pressuposto indispensável à revisão do contrato.24
Em 23 de agosto de 2001, instituiu-se a medida provisória nº 2.172-3225 que
trouxe ao direito vigente alguns mecanismos de controla sobre os contratos:
Art. 1º I – nos contratos civis de mútuo, taxas de juros superiores
às legalmente permitidas, caso em que deverá o juiz, se requerido,
ajustá-las à medida legal ou, na hipótese de já terem sido cumprida, ordenar a restituição, em dobro, da quantia paga em excesso,
26 Reajuste considerando a atualização monetária do valor dos aluguéis e recomposição de sua referência quantitativa em face do mercado imobiliário.
27 Otávio Luiz Rodrigues Jr, op. cit., p.141
28 Art.19: Não havendo acordo, o locador ou locatário, após três anos de vigência do contrato ou acordo anteriormente realizado, poderão pedir revisão judicial do aluguel, a fim de ajustá-lo ao preço de mercado.
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com juros legais a contar da data do pagamento indevido;
II- nos negócios jurídicos não disciplinados pelas legislações comercial e de defesa do consumidor, lucros ou vantagens patrimoniais excessivos, estipulados em situação de vulnerabilidade da
parte, caso em que deverá o juiz, se requerido, restabelecer o equilíbrio da relação contratual, ajustando-os ao valor corrente, ou,
na hipótese de cumprimento da obrigação, ordenar a restituição,
em dobro, da quantia recebida em excesso, com juros legais a contar da data do pagamento indevido.
Parágrafo único: Para a configuração do lucro ou vantagem excessivos, considerar-se-ão a vontade das partes, as circunstâncias
da celebração do contrato, o seu conteúdo e natureza, a origem
das correspondentes obrigações, as práticas de mercado e as taxas
de juros legalmente permitidas.
A Lei n. 8.245/91, que dispõe sobre as locações de imóveis urbanos e procedimentos a elas pertinentes, define, no artigo 17, que é livre a convenção do aluguel
e serão observados os critérios de reajuste. A lei assegura a recomposição dos valores do aluguel mediante acordo ou expressa cláusula de reajuste.26
Uma leve observação deve ser ressaltada, a correção monetária não é mais inserível nos conceitos peculiares à teoria da imprevisão. Hoje está assente que a atualização monetária apenas mantém o valor do dinheiro, não implicando um plus ou
uma vantagem para quaisquer das partes.27
Portanto, a revisão possível no contrato de locação é o quantum do aluguel
para reajustá-lo ao valor de mercado.28 29
A revisão do aluguel não está adstrita ao prazo de três anos; pelo contrário, verificada a alteração das circunstâncias acarretando a onerosidade em demasia o ajuizamento de ação revisional de aluguel será perfeitamente cabível.
O Código de Defesa do Consumidor preza a proteção dos direitos do consumidor. Destarte, em seu bojo sistemático, traz normas cogentes de aplicação prática
e de observância obrigatória.
Art. 6º: São direitos básicos do consumidor:
V- a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosa.
Tem-se a contemplação expressa da cláusula rebus sic stantibus; implícita a qualquer contrato de consumo, esta põe critérios de justiça nas relações entre destinatário final e fornecedor. Examinar-se-á também o art. 51, onde:
30 A onerosidade excessiva pode propiciar o enriquecimento ilícito sem causa, art. 4º, nºIII.
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São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...)
Parágrafo 1º: Presumem-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: (...)
III- se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes
e outras circunstâncias peculiares ao caso.
A onerosidade30 para o consumidor pode dar ensejo ao direito de modificar a
cláusula contratual para restabelecer o equilíbrio do contrato; a revisão do contrato
em virtude de fato superveniente não previsto pelas partes quando da negociação;
e a nulidade de cláusula que estabeleça desvantagem para o consumidor e vantagem
exagerada para a outra parte.
A apreciação do contrato pelo Poder Judiciário deve ser feita com base nos
princípios do Código de defesa do Consumidor, respeitando o equilíbrio econômico e a vulnerabilidade do consumidor.
A teoria da imprevisão, neste contexto, dá importância à preservação do contrato de consumo, visto que há a necessidade de se contratar. O consumidor tem a
faculdade de decidir se quer resolver o contrato ou revisá-lo
CONCLUSÃO
O contrato é um importante instrumento para a movimentação da economia
e da vida das pessoas (físicas e jurídicas); portanto, toda e qualquer teoria para preservá-lo é válida. A teoria da Imprevisão recai sobre os contratos de execução diferida ou sucessiva, que sofre uma modificação radical em algum momento de sua existência e impede que a parte o cumpra sem ter um empobrecimento exacerbado.
O fato modificativo deve ser imprevisível e superveniente à celebração do pacto. Deve ser, necessariamente, um evento anormal. A teoria da Imprevisão é o fundamento plausível para o pedido de revisão judicial dos contratos. Essa revisão irá
restabelecer o equilíbrio da obrigação e trazer justiça entre as partes.
Seu princípio básico é a boa-fé; está expressa no nosso ordenamento e que
deve ser preservada, em tese, a todo custo.
Vê-se que a cláusula rebus sic stantibus esteve presente desde os primórdios
do Direito e foi tendo sua importância enaltecida com a evolução da sociedade e a
relativização de alguns princípios, com, por exemplo, a não-intervenção estatal.
Atualmente, vários são os países que adotam expressamente em seu bojo de
lei a teoria da imprevisão. O Brasil assim o faz seguindo a maior parte das correntes
existentes.
O contrato não deve ser o responsável pela quebra financeira de ninguém.
Deve ser justo, pesado na balança do direito. A sensação de insegurança da rebus sic
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stantibus foi sendo superada ao longo dos tempos, pois se viu que era uma saída
nos períodos de crises exacerbadas.
É inadmissível que um contrato, que sofreu um acontecimento imprevisível e
extraordinário, venha levar a parte a uma condição de miserabilidade, caso seja executado. Importante frisar que a prestação não pode estar vencida para se requerer a
revisão do pacto.
Impensável servir o contrato de manobra para a auferir vantagens onerosas
em demasia perante um devedor honesto e honroso com sua palavra. Onde estaria
a justiça, como ficaria a paz social diante desta mazela?
Em suma, a Teoria da Imprevisão tem que ter o seu lugar de destaque e lembrança. É um instituto de grande importância para a sociedade, pois traz o conceito
de justo ao caso concreto.
REFERÊNCIAS
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do Consumidor. 2º Edição. São Paulo: Saraiva, 200.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, volume III. 11º Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
KLANG, Marcio. A teoria da Imprevisão e a Revisão dos Contratos. 2º Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.
DINIZ, Maria Helena. Direito Civil Brasileiro, volume 3. 19º Edição. São Paulo: Saraiva, 2003.
JUNIOR, Otávio Luiz Rodrigues. Revisão Judicial dos Contratos – Autonomia da Vontade e
Teoria da Imprevisão. São Paulo: Atlas, 2002.
Código Civil dos Franceses, Código Napoleão. Traduzido por Souza Diniz. Rio de Janeiro:
Distribuidora Record, 1962.
Código Civil Espanhol
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Código Brasileiro de Defesa do Consumidor- Comentado pelos autores do anteprojeto. Rio
de Janeiro: Forense Universitária. 6º Edição. 1999.
Dicionário Vocabulário Jurídico. De Plácido e Silva. 17º Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
CONTROLE DOS PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA:
ASPECTOS POSITIVOS E NEGATIVOS À
INTEGRAÇÃO REGIONAL
Guilherme Henrique Ayub
Aluno matriculado no 5º ano da Faculdade de Direito da Instituição Toledo de Ensino de Bauru.
Orientadora: Professora Josiane de Campos S. Giacovoni
RESUMO
O presente estudo objetiva demonstrar as mudanças nas relações internacionais
entre empresas coligadas ou vinculadas, sobre os preços praticados entre elas, o que
pode acarretar esta prática de preços, e mecanismos de controle destas operações.
Palavras-chave: Preços, Integração, Internacional.
INTRODUÇÃO
Refere-se este artigo ao estudo do controle dos preços de transferência como
método adotado para apurar os preços praticados na venda de produtos entre empresas vinculadas, situadas em países distintos.
Em breves linhas, pretendemos demonstrar a importância deste método à arrecadação nacional, em contraposição ao entrave que significa as integrações entre
Estados soberanos em geral.
Trataremos de disposições sobre os abusos dos preços de transferência pelos
1
2
Fonte: artigo de Carolina Spack Kemmelmeier, p. 228.
HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e Elisão – Rotas Internacionais do Planejamento Tributário. São Paulo: Saraiva, 1997.
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sujeitos passivos que praticam desde manobras lícitas chegando às ilícitas na tentativa de economizar tributos. E, por outro lado, breves assertivas sobre as injustiças
causadas pelo controle dos preços de transferência aos contribuintes.
Vale dizer, mostrar-se-ão as duas facetas dos preços de transferência: uma benéfica aos Estados soberanos que podem envidar esforços na tentativa de limitar as
práticas de economia de tributos, notadamente aquelas ilícitas; e outra, maléfica aos
sujeitos passivos em relação comercial internacional, no sentido de que lhes provoca injusta bi-tributação.
DO PREÇO DE TRANSFERÊNCIA E SEU CONTROLE COMO MÉTODO DE
CONTROLE ESTATAL
O preço de transferência, segundo o International Tax Glossary, citado por
Eliane Lamarca Simões Peres,
se refere à determinação dos preços a serem cobrados entre empresas relacionadas – particularmente pelas companhias multinacionais – relativamente a transações entre vários membros de seu
grupo (venda de bens, prestação de serviços, transferência e uso
da tecnologia e patentes, mútuos, etc.). Como tais preços não são
livremente negociados, os mesmos podem ser eventualmente diferentes daqueles determinados pelas forças livres de mercado, nas
negociações entre partes não relacionadas.1
Segundo conceito de Hermes Marcelo Huck2 in verbis:
O preço de transferência é a expressão proveniente do inglês transfer pricing que significa o preço de um produto ou serviço manipulado para mais ou para menos nas operações de compra e venda
internacionais, quando um mesmo agente é capaz de controlar
ambas as pontas da operação, tanto a vendedora onde a tributação será menor, os lucros da operação quanto à compradora.
Trata-se, em síntese, da prática de transferência de resultados para o exterior,
mediante a manipulação dos preços praticados nas importações ou exportações de
bens, serviços ou direitos, em operação com pessoas vinculadas.
3
4
5
Fonte: p. 229 do mesmo artigo.
ibid.
fonte: artigo de Sebastião Butarello, p. 976.
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Os abusos com os preços de transferência têm ocorrido em praticamente todas as áreas e setores do comércio internacional, sendo praticada tanto para elevar
os preços acima do mercado de tal sorte a concentrar o lucro no país de baixa carga fiscal e cria um custo elevado naquele de altos impostos, como, contrariamente,
baixando os preços em relação aos de mercado quando a compra dos bens e serviços é feita para reduzir o imposto no país do vendedor, de alta carga fiscal, e aumentar o lucro no país do comprador, onde o imposto é menor.
Em decorrência desta prática na utilização manipulada dos preços de transferência, que tem carreado graves prejuízos à arrecadação dos Estados, notadamente àqueles em desenvolvimento, criou-se o método do controle dos preços do transferência.
O controle do preço de transferência para evitar os prejuízos assinalados à arrecadação dos Estados, consoante as letras de Carolina Spack Kemmelmeier,
pode ser entendido como a interferência que a lei faculta ao Fisco,
para avaliar, em relação ao preço normal de mercado (principio
arm´s length), a adequação do valor declarado de uma operação
internacional envolvendo empresas coligadas segundo os termos
da lei.3
A mesma autora realça as dimensões da problemática envolvendo o tema citando relatório da UNCTAD que revela que cerca de um terço do comércio mundial
e ainda 80% dos pagamentos relacionados a intangíveis decorrem de operação entre empresas coligadas.4
No Brasil, o controle dos preços de transferência é adotado desde 1996, nos
termos das prescrições dos artigos 18 a 21 da Lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996,
alterada em 2000 pela Lei nº 9.959, de 27 de janeiro. Ocorre que o controle dos preços de transferência, em que pesem auxiliem o Estado no sentido de diminuir os
campos para manipulações que implicam notadamente evasão de divisas, também
podem fazer “surgir valores divergentes (...) daqueles que seriam formados em
uma transação entre sujeitos independentes, em condições de livre concorrência”
(princípio arm’s lenght), no dizer de Heleno Torres.5
Ainda utilizando as lições do ilustre Heleno Torres, acrescenta o risco da bi-tributação decorrente do controle dos preços de transferência: tal atitude vai implicar uma dupla tributação internacional, porque este lucro, tributado com os
acréscimos da retificação, já sofreu ou poderá vir a sofrer a ação de cobrança de
impostos no Estado de residência da outra empresa relacionada.6
Cuidemos, então destes aspectos negativos do controle em questão.
7
TORRES, Heleno. Pluritributação Internacional sobre as Rendas de Empresas, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2001, pág. 372.
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O PRINCÍPIO DE PLENA CONCORRÊNCIA
Quando ocorre relação comercial entre duas ou mais empresas independentes, os preços acordados entre elas são acertados e baseados de acordo com as condições e mecanismos de mercado. Quando empresas associadas efetuam operações
entre si, as suas relações comerciais e financeiras não sofrem necessariamente da
mesma maneira influência direta dos mecanismos de mercado, muito embora as
empresas procurem, muitas vezes, reproduzir esta dinâmica em suas operações.
As administrações fiscais não devem presumir, sistematicamente, que as empresas associadas tentam manipular os respectivos lucros. Pode revelar-se realmente difícil determinar um preço de mercado aberto, quando os mecanismos de mercado não entram em jogo ou quando se trata de adotar uma determinada estratégia
comercial. Importa ter presente que a necessidade de operar ajustamentos no fracionamento dos lucros com vista a uma maior aproximação das operações de plena
concorrência se impõe, quaisquer que sejam as obrigações contratuais contraídas
pelas partes relativamente ao pagamento de um determinado preço e haja ou não a
intenção deliberada de minimizar o imposto.
O princípio de plena concorrência, ao proceder ao ajustamento dos lucros remetendo para as condições prevalecentes entre empresas independentes relativamente a operações idênticas e em circunstâncias análogas, adota o critério que consiste em tratar os membros de um grupo multinacional como entidade separada e
não como subconjunto de uma única empresa unificada. Ao proceder deste modo,
põe-se o acento tônico sobre a natureza das operações entre os membros do grupo
multinacional.
Em alguns casos, o principio de plena concorrência pode impor uma carga administrativa quer para os contribuintes quer para a administração fiscal, que terão de
avaliar um número significativo e diversificado de operações transfronteiriças. Embora uma empresa associada estabeleça, em regra, as condições de uma operação
no momento em que essa ocorre, pode ser-lhe em qualquer momento que demonstre estarem tais condições conformes com o princípio de plena concorrência.
DA DUPLA TRIBUTAÇÃO INTERNACIONAL
Seguindo as lições do professor Heleno Tôrres7 in verbis:
Causa prevalecente do problema da bi-tributação internacional
deve-se às relações entre dois ou mais sistemas tributantes de Estados soberanos, instigada por inevitáveis concursos de pretensões
8
Fonte: artigo Spack, p. 229.
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impositivas sobre um mesmo ato de produção de rendimentos, em
base transnacional, pela incidência das normas do Estado da situação da fonte efetiva dos rendimentos (dos países onde se localizam as filiais de uma multinacional, por exemplo) e pelas normas
do Estado de residência (do país onde se localiza a matriz, a sede,
da multinacional).
Sobre a Bitributação Internacional, ilustremos este trabalho com o seguinte
exemplo: GN, uma multinacional fabricante de veículos automotores, com sede nos
Estados Unidos, possui filiais em 15 países no mundo. Em todos estes países, o lucro das suas filiais é tributado (IRPJ). Como os rendimentos percebidos pelas filiais
também representam lucro para a matriz, deverá tal quantia ser novamente tributada (IRPJ) nos EUA?
O problema da bi-tributação ocorre porque os países podem adotar estruturas diversas no que concerne à tributação de rendimentos. A princípio, podem os
estados adotar duas estruturas de tributação: a baseada no principio da universalidade (pelo critério da nacionalidade ou residência) e a baseada no principio da territorialidade (pelo critério da fonte).
Países que possuem um evoluído sistema de tributação com elementos e conexão de natureza pessoal, adotam os princípios da universalidade, tributando todos os rendimentos dos sujeitos que possuem uma relação de natureza pessoal com
este país (seja por nacionalidade, seja por residência), independentemente do local
onde foram realizados ou produzidos tais rendimentos.
Notamos que, com esta prática, as empresas que nesses países têm filiais ou
mesmo sua matriz, são obrigadas a tributar duas vezes, sendo assim atingidas pela
dupla tributação internacional.
Para melhor exemplificarmos, relembremos o exemplo citado da multinacional GN, sediada nos EUA, e com 15 filiais em todo o mundo. Esta empresa transnacional, diante da excessiva onerosidade tributária a que está sendo submetida pela
dupla tributação internacional (tributação dos rendimentos pelo estado da matriz e
pelos países das suas filiais) pode vir adotar a seguinte prática: as suas filiais localizadas em países de elevada carga tributária passam a gastar demasiadamente, comprando bens, serviços e direitos por valores superfaturados de suas filiais localizadas
em paraísos fiscais. Assim, as suas filiais localizadas em países de elevada carga tributária, como o Brasil, terão um pequeno lucro, ao passo que as localizadas em paraísos fiscais terão lucros bem maiores, os quais não correspondem à realidade. Desta
forma, a nível global terá conseguido a empresa GN diminuir consideravelmente o
pagamento de tributos sobre a renda e seus rendimentos, por meio de uma prática
de elisão e sonegação fiscal conhecida por Transfer Pricing artificial.
De outra parte, a dupla tributação decorrente do controle dos preços de
transferência pode acontecer
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quando o Estado seja ele importador ou exportador, alega que
uma determinada operação não seguiu o preço arm’s length ou
preço sem interferência e exige o recebimento da diferença do lucro que foi transferido e tributado no outro Estado relacionado.8
Dentre os mecanismos utilizados pelos Estados para viabilizar o estabelecimento de grandes empresas multinacionais em seu território está a assinatura de
tratados e convenções internacionais para evitar a bi-tributação internacional das
empresas.
Estes acordos são imprescindíveis à harmonização dos métodos de controle
de preços de transferência para evitar a dupla tributação decorrente, como se observou na União Européia, através da Convenção nº 436/90.9
CONCLUSÃO
A prática adotada dos preços de transferência, pelas empresas e fiscalizadas
pelo fisco, tem função fundamental no desenvolvimento de vários países, o que torna este tema peculiar em sua essência, e de muita preocupação por parte dos países e das empresas que são parte nesta relação.
Percebe-se que o controle de transferência de preços no Brasil tem um longo
caminho a percorrer para se adequar aos modelos internacionais, tanto na elaboração de normas como na prática, visto que em alguns países a própria autoridade administrativa tem a faculdade e discrição para se chegar a um preço mais satisfatório
para o contribuinte.
O controle de preço de transferência que é praticado nas relações comerciais
entre as empresas vinculadas, e são tratadas presumidamente como ilícitas e que
praticam evasão fiscal, em alguns casos podem prejudicar as empresas relacionadas,
visto que o fisco tem faculdade em avaliar, em relação ao preço normal de mercado
(principio arm´s length), a adequação do valor comercializado envolvendo empresas coligadas.
Pelo princípio da plena concorrência, o fisco, muitas vezes em situações análogas, adota este critério, tratando os membros de um grupo multinacional como
entidades separadas. Tornando em alguns casos prejudiciais aos contribuintes
Ainda hoje nos deparamos com países que adotam o modelo de tributação
universal, o que dificulta e onera por demais as relações comerciais existentes entre
países e empresas.
O que podemos notar ao longo deste artigo, é que por não haver uma relação
comercial de direito entre as filiais e sucursais (mas se tem relação de fato), motivo
de tamanha dificuldade em se ter um preço parâmetro, tornando esta prática do
controle de transferência de preços um tanto quanto difícil.
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REFERÊNCIAS
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MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito Tributário. 18 ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2000.
TORRES, Heleno. Pluritributação internacional sobre as rendas de empresas. 3 ed., São
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Paulo: Dialética, 1999, p.12.
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O aborto no Brasil. Jornal da Cidade, Bauru, p.8, 19 dez. 2004.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de setembro de 1940. Código Penal. Publicado no Diário Oficial da União,
Poder Executivo, Brasília, DF, 31 dez. 1940. Parte especial, título I, capítulo I, artigos 124, 125, 126 e 127.
Ginecologistas atrasam abortos por ignorar a legislação brasileira. Folha, São Paulo, p.C1, 27 fev. 2005.
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A INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO NA HIPÓTESE DE
ANOMALIA FETAL INCOMPATÍVEL COM A VIDA E A
EXCLUSÃO DE SUA ANTIJURIDICIDADE
Litiene Rodrigues de Oliveira
Aluno matriculado no 5º ano da Faculdade de Direito da Instituição Toledo de Ensino de Bauru
Orientador: Professor Mestre Lucas Pimentel
RESUMO
O presente estudo tem por objetivo mostrar que deve caber à mulher a opção
pela interrupção ou não da gravidez de um feto anencéfalo, pois este não tem chance
de sobreviver, de resistir à vida extra uterina e, assim, pouco relevância haveria na interrupção da gestação ou no seu prosseguimento sob o ponto de vista da não-ocorrência
de vida pós-parto em razão da malformação. A análise permeia a impossibilidade de imputação criminal ou civil para a gestante optante pela interrupção da gestação.
Palavras-chave: Dignidade Humana, Saúde Pública, Anencefalia.
INTRODUÇÃO
A cada 6 minutos, morre no mundo uma mulher em conseqüência de um
aborto ilegal e sem condições de segurança.1 De acordo com pesquisa do Ministério
da Saúde e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o aborto induzido é uma das quatro
causas mais freqüentes de morte entre gestantes. Embora o Ministério da Saúde não
disponha de dados oficiais, estima-se que, no Brasil, sejam realizados de 730 mil a
940 mil abortos clandestinos por ano.2
A legislação penal vigente em nosso País coíbe a interrupção da gravidez e a
pena prevista para o crime de aborto é de um a três anos quando provocado pela
própria gestante ou quando esta consente que terceiro lho provoque, de três a dez
anos ao terceiro que o fizer sem o consentimento da gestante, e de um a quatro
anos se houver o consentimento daquela. Há aumento de pena em caso de morte
ou lesão corporal de natureza grave sofrida pela mulher.3
7
8
SÁ, Maria de Fátima Freire. Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
SÁ, Maria de Fátima Freire de. Biodireito e direito ao próprio corpo. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 58.
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Existem duas hipóteses excludentes de ilicitude, mas desde que o aborto seja
praticado por médico: aborto necessário, se não há outro meio de salvar a vida da
gestante, ou aborto humanitário, quando a gravidez resulta de estupro. Entretanto,
apesar de essas duas hipóteses estarem previstas em lei desde 1940, pesquisa da Frebasco, entidade de ginecologistas e obstetras, revela que 66,2% deles acreditam ser
necessário alvará judicial para realizar o aborto nesses casos.4
Embora nossa legislação penal seja bem restrita no que tange às hipóteses de
exclusão da ilicitude da conduta, prevendo apenas essas duas situações, alguns conservadores julgam ser uma liberalidade.
Ausentes as hipóteses acima mencionadas, o aborto é ilícito em 78 (setenta e
oito) países; isso significa que cerca de 25% da população mundial está submetida a
uma legislação muito rígida em relação ao aborto.5
Entretanto, o que se verifica na prática é o desrespeito às normas e um alto
índice de aborto ilegal que, além do risco que causa à vida e à saúde da gestante, tem um custo muito elevado. Os números são alarmantes, de 10 a 50% das
mulheres, que se submetem a uma interrupção da gravidez “clandestina”, apresentam algum tipo de complicação. Já nos países mais liberais, esse número cai
para 0,3%.6
Assim, verifica-se que a questão do aborto não envolve apenas dogmas religiosos e princípios, trata-se também de um problema de saúde pública que não pode
continuar sendo ignorado. Muitas mulheres arriscam a própria vida ao se submeterem a uma interrupção de gravidez em clínicas clandestinas, sem as menores condições de higiene. As mais afetadas são as de baixa renda, já que não têm condições
de pagar por um atendimento médico adequado.
É claro que não se pode admitir que o aborto seja usado como método contraceptivo, mas em casos de malformação grave, como a anencefalia, é hipocrisia
proibi-lo, pois também se deve pensar nos direitos e bem-estar da mulher. O correto seria que a gestante de feto anencéfalo pudesse optar por dar continuidade ou
não à gravidez.
ASPECTOS HISTÓRICOS7
De acordo com Maria de Fátima Freire Sá, tema complexo e de difícil abordagem, o aborto foi encarado de maneiras distintas pelas civilizações, embora sempre
envolvesse valores éticos.
Na Antigüidade, o Código de Hamurábi e o Código Hitita o consideravam ilí-
9 ESCOSTEGUY, D. O aborto em pauta. Época, São Paulo, n. 343, p. 111, dez. 2004
10 SÁ, M. et al. Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 448-449.
11 Bernardo, K. Autorização para aborto em caso de Anencefalia. Datavenia. Disponível em: <http://www.ghente.org/questoes_polemicas/aborto.htm>. Acesso em: 7 mar. 2005.
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cito civil, punindo-o com multa pecuniária. Já no Direito Romano, o aborto não era
considerado crime, sendo que alguns filósofos da época, como Sócrates e Platão, defendiam sua prática.
O primeiro documento a condenar o aborto foi o chamado “Édito de Valencino”; em seguida, veio o Código Justiano e o Imperador Setimus Severus que equiparou o aborto ao homicídio.
Desde aquela época, verifica-se que ocorria a prática do denominado aborto eugênico, pois na Índia antiga, aqueles que sofriam de doenças contagiosas
eram sacrificados às margens do Ganges pelos próprios parentes. Além disso, a
Lei das XII Tábuas, em sua Tábua Quarta, autorizava que o pai, ante o julgamento de cinco vizinhos, matasse o próprio filho, caso este nascesse com alguma
anomalia.8
O primeiro país a liberar o aborto foi a Inglaterra; isso ocorreu em 1967
com o “Ato sobre o aborto”, que é considerado um marco no processo. A exemplo dos ingleses, em 1973 a Suprema Corte dos Estados Unidos também legalizou essa prática, através de uma decisão histórica. No mesmo ano, Áustria e Turquia também seguiram o mesmo caminho, mas exigindo que houvesse autorização do marido.
Do ponto de vista jurídico, ainda hoje existe grande diferença entre os países em relação à aceitação ou não do aborto. Alguns, como Canadá, China, Holanda e Austrália, são mais liberais e respeitam a vontade da gestante. Outros,
como Brasil, África do Sul e Espanha, admitem-no em alguns casos. Já a legislação do Chile, Polônia e Venezuela, por exemplo, incriminam essa prática em
qualquer circunstância.
12
13
14
15
Prática envolve aspecto legal e ético. Jornal da Cidade, Bauru, p.9, 19 dez. 2004.
ESCOSTEGUY, D. O aborto em pauta. Época, São Paulo, n. 343, p. 110, dez. 2004.
Autorização para aborto demora até 1 mês. Folha, São Paulo, p.C4, 27 de fev. 2005.
ESCOSTEGUY, D. O aborto em pauta. Época, São Paulo, n. 343, p.110, dez. 2004.
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Vejamos mapa mundial ilustrado9 de acordo com a situação legal do aborto
em cada país:
CARACTERIZAÇÃO DA ANOMALIA FETAL INCOMPATÍVEL COM A VIDA
COMO EXCLUDENTE DE ILICITUDE
Enquanto alguns criticam o Código Penal por permitir duas hipóteses de aborto legal, outros lutam para que o rol seja ampliado. Atualmente, existe grande discussão acerca da descriminalização da interrupção de gravidez na hipótese de feto
com malformação congênita grave.
Essa hipótese também é denominada de aborto eugênico, mas sem qualquer
apologia ao racismo, e está longe de ser uma forma de “higienizar” a raça humana.
Ao contrário disso, consiste apenas na interrupção da concepção do feto quando detectada a impossibilidade de vida extra-uterina, depois de realizados os devidos exames médicos.10 A anencefalia caracteriza-se por ser uma anomalia fetal incompatível
com a vida, devido a um defeito de fechamento da porção anterior do tubo neural,
levando à não-formação adequada do encéfalo e da calota craniana. Não existe nenhuma chance de vida para os bebês com essa anomalia, pois terão morte intra-uterina ou no período neonatal precoce.11
Ante a total impossibilidade de vida extra-uterina dos fetos anencefálicos, inú17 LILIE, Hans. Biotecnologia médica – eugenia : aborto eugênico. In: ______. Biotecnologia, Direito e Bioética. Belo Horizonte: DelRey, 2002. p. 141.
18 LILIE, op.cit., 141.
19 NUNES, Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2002.
20 MEIRELLES, Jussara Maria Leal. A vida humana embrionária e sua proteção jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
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meras gestantes ingressaram, com razão, na justiça postulando liminar para efetuar
a interrupção da gravidez; algumas foram concedidas, muitas foram negadas e outras sequer foram apreciadas antes da realização do parto.
No entanto, milhões de abortos são feitos ilegalmente no Brasil por ano, o que
demonstra total desrespeito à legislação penal, e sua ineficácia. Além disso, os menores índices de aborto são nos países em que ele é legalizado e de fácil acesso, devido a uma boa educação sexual, muita informação e amplo acesso a métodos contraceptivos.12 O Brasil é um dos poucos países que ainda adota uma legislação tão
defasada e ineficaz.
De acordo com o Ibope, 71% (setenta e um por cento) dos brasileiros concordam com a legalização do aborto nesses casos,13 o que demonstra um surgimento
natural da lei, pois já existe consciência e aceitação social dessa norma em potencial.
Resta apenas que o Estado crie a lei.
Apesar disso, segundo Anaelise Abrahão, coordenadora do setor de aconselhamento genético do hospital São Paulo, 60% das gestantes de fetos anencefálicos
optam por manter a gravidez, seja por amor, sentimento de cuidado com o filho ou
até mesmo esperança de que o quadro seja revertido.14 Mas o que se busca aqui é
que a mulher tenha a faculdade de decidir o que é melhor para ela, e se quer ou não
interromper a gestação.
Em julho de 2004 as discussões tornaram-se mais acaloradas, em razão da concessão da liminar do ministro Marco Aurélio de Melo, do Supremo Tribunal Federal,
autorizando a interrupção da gestação quando for constatada a anencefalia do feto.
A decisão foi proferida em resposta a uma ação de descumprimento de preceito fundamental, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS),
sendo, posteriormente, revogada pelo STF, em uma polêmica sessão.
Entretanto, essa decisão não é definitiva, ainda há esperanças de que nossa
legislação regulamente aquilo que já vem ocorrendo na prática, pois os ministros do
STF ainda vão analisar o mérito da questão.
Em dezembro de 2004, Nilcéa Freire, secretária especial de políticas para as
mulheres, anunciou que o governo irá formar uma comissão para discutir a fundo
sobre o aborto, para depois encaminhar um projeto ao Congresso Nacional. Com
isso, o governo está cumprindo o que ficou pactuado em uma conferência da ONU
realizada na China, em 1995, na qual o Brasil se comprometeu a rever os aspectos
punitivos da lei que trata do aborto.15
De acordo com pesquisa da Febrasgo, essa discussão jurídica está confundin22
23
24
25
26
MEIRELLES, op. cit., 152-153.
SÁ, M. et al. Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.84.
Autorização para aborto demora até 1 mês. Folha, São Paulo, p.C4, 27 de fev. 2005.
Ibid., p.110.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20.ed. Malheiros, 2002, p. 197.
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do até mesmo os médicos, pois 1/3 deles acredita que a lei não pune o aborto nos
casos de feto com malformação congênita grave.16
O autor Hans Lilie sabiamente defende a posição de que os pais têm direito
de optar pela qualidade genética de seus filhos, pois os direitos à inviolabilidade pessoal, à criação de uma família, à procriação voluntária, entre outros, lhe conferem
essa liberdade de decidir o que é melhor para sua descendência. Além disso, ninguém melhor que os próprios pais para valorarem o impacto que uma criança geneticamente deficiente terá em suas vidas.17
O direito à vida do feto não exclui o de seus pais, principalmente o de sua
mãe. Além disso, faz-se necessário, ainda, ressaltar que o anencéfalo sequer pode ser
considerado sujeito de direitos, já que não possui potencialidade de converter-se
em um ser autoconsciente, capaz de autodeterminação e livre-atuação.18 Assim sendo, não há por que não acolher a vontade da gestante; deve caber a ela fazer a opção por levar a gravidez a termo ou não.
SOBRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A dignidade da pessoa humana é princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, garantido pela atual Constituição Federal em seu artigo 1º, inciso III.
Rizzato Nunes encara-o como o principal direito fundamental constitucionalmente garantido, embora alguns autores tenham entendimento diverso, adotando a
isonomia como tal. Trata-se do primeiro fundamento do sistema constitucional vigente, aquele que irá garantir também, em última instância, os direitos individuais.
Rizzato Nunes enxerga a isonomia como meio de se alcançar o direito à dignidade19.
De acordo com a autora Jussara Maria Leal de Meirelles, a dignidade da pessoa humana tem “valor absoluto”,20 ou seja, deve prevalecer sobre todos os outros
direitos.
Por estar protegida pelo status de princípio, a dignidade é soberana, intangível e não pode ser relativizada. Ela é conseqüência de tudo aquilo que se conquistou no decorrer dos anos, por isso, para valorá-la, é preciso se levar em conta todas
as violações de direito que o homem já sofreu. A experiência nazista foi a mais importante para que se conquistasse o respeito à dignidade humana, tanto que sua importância é reconhecida pela Constituição Federal da Alemanha Ocidental do pósguerra, em seu artigo 1º, estabelecendo que é obrigação do poder público proteger
e respeitar a dignidade do homem.21
Os médicos nazistas foram responsáveis por inúmeras barbáries, mas a comu-
28 CFM autoriza transplantes de órgãos de anencéfalos. Datavenia. Disponível em: <http://www.sogesp.com.br/jornal/detalhes_ jornal.asp?ed=54&sum=4>. Acesso em: 7 mar. 2005.
29 NUNES, op. cit., p. 56.
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nidade internacional os condenou através do Tribunal de Nüremberg, dando origem
ao Código de Nüremberg. Desde então, os direitos fundamentais tornaram-se objeto de preocupação do homem, dando ensejo a vários atos normativos internacionais, entre eles a Declaração Universal dos Direitos do Homem.22
Atualmente, em razão dos avanços científicos e tecnológicos, a defesa e a proteção da dignidade da pessoa humana estão ganhando ainda mais ênfase, pois apesar dos benefícios trazidos, tais avanços potencializam os riscos e danos a que os indivíduos estão sujeitos.23
Apesar de toda a luta para que a dignidade do homem seja garantida, muitas
vezes é o próprio Estado que a viola. Ao proibir a mulher de optar pela realização
ou não da interrupção da gravidez, o legislador está ferindo brutalmente sua dignidade, interferindo em sua liberdade de decisão sobre o próprio corpo, sua consciência e princípios.
Conforme esclarece Andalaft Neto, se a gestação de um anencéfalo não for interrompida, a saúde física e psíquica da mulher estará em risco, pois a gravidez poderá levá-la a sofrer doença hipertensiva, complicações no parto, além de sérios
traumas psicológicos.24
De acordo com uma pesquisa publicada na Revista Época, as igrejas evangélicas e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) são contra o aborto. Já as
feministas, comunidade médica e a ONU, são a favor.25 Mas não podemos avaliar os
direitos fundamentais de acordo com critérios de ordem religiosa ou econômica.
Devemos respeitar a dignidade humana independente de fatores como religião, por
exemplo.
Entretanto, nossa Carta Magna assegura o direito à vida desde a concepção,
preservando, assim, a vida do feto acima de qualquer coisa, até mesmo do bem-estar da gestante. De acordo com José Afonso da Silva, “Porque se assegura o direito
à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital”.26
No entanto, não é só a vida que deve ser tutelada, mas também a qualidade
de vida. Ainda de acordo com José Afonso, o anteprojeto da Comissão Provisória de
Estudos Constitucionais tentou incluir em nossa Constituição, o direito a uma existência digna, mas não logrou êxito, assim como o relatório da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, que teve como relator o Senador José Paulo Bisol.27
Chega a ser absurdo o desrespeito à dignidade da mulher quando o assunto
é a gestação de um anencéfalo. O Conselho Federal de Medicina chegou ao extremo de publicar uma resolução que autoriza a doação de órgãos e tecidos de anencéfalos, afirmando ser um ato de extrema solidariedade o daqueles pais que não realizam a antecipação terapêutica do parto, para gestar um ente que não irá sobreviver, apenas para doar seus órgãos e tecidos.28
Com certeza, trata-se de um ato muito nobre, mas que não pode ser imposto
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aos pais, devendo ser de livre arbítrio deles. Além disso, é desumano pedir a uma
mulher que enfrente nove meses de gestação apenas para que possa doar os órgãos
de seu filho morto. Parece que o Conselho Federal de Medicina deixou de lado os
direitos da mulher para tentar solucionar a questão da doação de órgãos, que poderia ser resolvida de um jeito mais humano.
Para finalizar, poderíamos falar, aqui, em conflito de dignidades entre a gestante e seu bebê, nesse caso, devemos aplicar o princípio da proporcionalidade29 para
resolver a questão, ponderando qual direito é mais importante e deve prevalecer.
Tendo em vista que o feto não tem chance de sobrevida, é razoável que o direito da
gestante prevaleça sobre o daquele.
Devido à complexidade da questão, alguns autores afirmam que, em temas
como esse, não seja possível se estabelecer um único julgamento, pois não há uma
norma que solucione da mesma forma tais conflitos. Eles sugerem que se busque a
solução no Biodireito, levando-se em conta sempre a dignidade e a vida da gestante e do feto, para melhor adaptar o ordenamento jurídico ao caso concreto, ficando
a cargo de cada magistrado ponderar sobre a viabilidade ou não da gestação, devendo fundamentar sua decisão nos princípios constitucionais. Isso, para que o direito
não seja apenas uma norma racional e abstrata.30
Mas a polêmica já foi levada ao STF, que deverá analisar o mérito da questão
no decorrer desse ano, decidindo de forma única sobre a concessão ou não do direito de realizar o aborto às gestantes de fetos anencefálicos.
CONCLUSÃO
O objetivo desta pesquisa é mostrar que a gestação de um feto sem chance de
vida extra-uterina, devido à malformação grave, é extremamente dolorosa à mulher,
por isso, obrigar a gestante a ficar nove meses “velando” o bebê é desumano e ofensivo à sua dignidade, podendo ocasionar-lhe até mesmo trauma psicológico. Assim
sendo, deve caber à mulher a opção de interromper ou não a gravidez, sem que se
cogite qualquer tipo de punição, seja ela penal ou cível.
No entanto, a atual legislação penal autoriza o aborto apenas em caso de estupro e quando há risco de vida à gestante, punindo, assim, aqueles que o realizam
em situação diversa. Está clara a defasagem entre nossa atual legislação e a realidade em que vivemos, pois se a ciência permite que detectemos anomalias irreparáveis e incompatíveis com a vida do feto, para que sacrificar mulheres a longos e penosos nove meses de gestação, ao invés de acabar com seu sofrimento?
Nossa legislação não pode ser retrógrada, muito menos desrespeitar a dignidade da gestante, seu direito à liberdade sobre o próprio corpo e à saúde psíquica.
Se os avanços da medicina permitem que se detecte, no feto, anomalias fetais graves e incompatíveis com a vida, devemos utilizar isso em benefício da mulher, evitando, assim, prolongar seu sofrimento.
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O que se discute aqui, não é legalização do aborto em qualquer hipótese, mas
sim quando não existe a mínima chance de sobrevida do feto, que nascerá deformado, com características monstruosas, cego, surdo e sem consciência, devido ao seu
desenvolvimento incompleto. Havendo conflito de direitos entre a mãe e seu filho,
devemos ponderar qual deverá ser preservado, o de alguém que já está no mundo
ou o de outrem sem chance de sobreviver, parece-me mais justo preservarmos os
direitos da mulher.
REFERÊNCIAS
BERNARDO, K. Autorização para aborto em caso de Anencefalia. Datavenia. Disponível em:
<http://www.ghente.org/questoes_polemicas/aborto.htm>. Acesso em: 7 mar. 2005.
DUARTE, M. Algumas informações sobre o aborto. Datavenia. Set. 2004. Disponível em:
<http://blog.liberal social.org/2004/09/algumas-informaes-sobre-o-aborto.html>. Acesso
em: 19 jan. 2005.
ESCOSTEGUY, D. O aborto em pauta. Época, São Paulo, n. 343, p. 111, dez. 2004
LILIE, Hans. Biotecnologia médica – eugenia : aborto eugênico. In: ______. Biotecnologia, Direito e Bioética. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 141.
MEIRELLES, Jussara Maria Leal. A vida humana embrionária e sua proteção jurídica. Rio
de Janeiro: Renovar, 2000.
NUNES, Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2002.
SÁ, Maria de Fátima Freire. Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20.ed. Malheiros, 2002, p.
197.
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MEIOS DE PROTEÇÃO AMBIENTAL
PREVENTIVOS E REPRESSIVOS
Luísa Adélia Brollo Martins
Aluno matriculado no 5º ano da Faculdade de Direito da Instituição Toledo de Ensino de Bauru.
Orientadora: Professora Mestre Daniela A. Rodrigueiro
RESUMO
O presente estudo visa a demonstrar os meios de proteção adequados
para resguardar o meio ambiente, mesmo antes da ocorrência do ato prejudicial
que leva à deterioração ambiental. Na utilização das tutelas ambientais, é importante explicar e demonstrar a utilização da cognição adequada para vencer com
celeridade o trinômio cognitivo, conferindo a prestação jurisdicional adequada,
bem como ressaltando que o conhecimento sobre proteção juntamente com a
preservação, leva a um desenvolvimento sustentável, que se traduz em melhoria
da qualidade de vida. Objetiva-se, ainda, que o estudo ao final se mostre claro e
preciso, podendo ser utilizado como fonte auxiliar para aqueles que desejam se
aprofundar no assunto, e, principalmente, que as questões suscitadas no decorrer do trabalho sejam respondidas satisfatoriamente e de maneira nítida.
Palavras-chave: Precaução, Ambiência, Reparação.
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INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 trouxe uma inovação; atendendo à vontade
mundial, apresentou ao povo brasileiro um capítulo dedicado, com exclusividade,
ao meio ambiente.
No artigo 225 da Constituição Federal, tem-se, no seu caput, a expressão
“todos”, objetivando traduzir o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado a todos os cidadãos, o que assegura a condição de direito difuso que indistintamente aplica-se a toda pessoa que tem uma ligação com a situação fática, ou seja, toda pessoa independente de sua situação sócio-econômica, de seu
grau de instrução, de sua localização, está vinculada ao meio ambiente.
Continuando no mesmo artigo, “[...] impondo-se à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, houve propositadamente uma omissão de parte do artigo, onde se refere ao Poder Público, para
com isso mostrar que a proteção ao meio ambiente compete a todos os cidadãos, pois estes não estão interagindo diretamente no Poder Público, mas sim
no meio ambiente.
Tem-se, deste modo, o advento da disciplina denominada direito ambiental,
na qual se pretende mostrar aos interessados que há como protegê-lo, e como se
deve operacionalizar a proteção, para que não fique somente a cargo do Poder Público salvaguardar o meio ambiente.
Para tanto, o estudo aqui ambicionado visa a mostrar as técnicas, ou seja, as
tutelas específicas com que conta o operador do direito, trazendo fundamento legal
nos artigos 461 e 461-A do Código de Processo Civil, Ação popular, Ação civil pública, no artigo 84 do Código de Defesa do consumidor, sendo que no plano constitucional, meio ambiente e consumidor estão expressos no mesmo artigo, e funcionam
como limites à livre iniciativa.
Assim, necessário partirmos da distinção entre ilícito e dano, concedendo
para tanto as tutelas específicas ambientais nas suas modalidades de prevenção e remoção do ilícito e ressarcitória do dano ambiental.
O objetivo maior deste estudo, por conseguinte, é despertar no leitor o interesse e o desejo para compreender como se aplica a tutela específica adequada visando a proteger o meio ambiente, e com isso levá-lo a preservar os recursos naturais, não apenas esperando a proteção estatal, ou mesmo deixando para as futuras
gerações a tarefa de proteção e preservação.
Ponderadas as possibilidades, o processo de escolha e posterior delimitação
tiveram seu início com o interesse pelo aprofundamento do estudo e dos meios de
proteção aplicáveis ao Direito Ambiental.
O presente estudo pretende demonstrar a necessidade de se preservar, proteger, cuidar e reconstituir o meio ambiente.
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Decidiu-se pelos meios de proteção ligados ao Direito Ambiental, tendo em
vista sua relevância no ordenamento jurídico atual, bem como o entrelaçamento
com outros ramos do direito.
REVISÃO DE LITERATURA
Antes de iniciados estudos ou pesquisas sobre determinado tema, faz-se necessária uma compilação dos princípios como tema fundamental para a compreensão de
qualquer ramo do Direito, como no estudo do direito ambiental (MIRRA, 1996).
Sabemos que, em se tratando de bem comum, de interesses difusos, como é
o caso do meio ambiente – o Poder Público assume as funções de gestor qualificado: legisla, executa, vigia, defende, impõe sanções; enfim, pratica todos os atos que
são necessários para atingir os objetivos sociais, no escopo e nos limites de um Estado de Direito (MILARÉ, 2001).
Com o propósito de argumentar a este respeito “O ponto de partida da defesa e proteção jurisdicionais do meio ambiente, não é jurídico, provém da realidade,
é amplo, multidisciplinar e resulta de conscientização” (SILVEIRA, 1986).
Estudando o direito ambiental e sua proteção, depara-se com o fato de que,
em nosso País, quase todos os textos normativos são anteriores à Constituição Federal de 1988; portanto, orientados por um sistema constitucional ambiental acanhado, tal situação contribui para aumentar a insegurança e a incerteza jurídica de
quantos militam na defesa do ambiente (MILARÉ, 2001).
Entretanto, pode-se afirmar, sem medo de errar, que no Brasil, o Direito do
Ambiente é na realidade um “Direito adulto”. Conta ele com princípios próprios,
com assento constitucional e com um regramento infraconstitucional complexo e
moderno (MILARÉ, 2001).
É o entendimento de que a proteção adequada e efetiva ao direito material
provém de procedimento estruturado, mediante sumarização formal e material;
desta maneira, temos a tutela jurisdicional. Contudo, se os cidadãos devem ter à sua
disposição instrumentos processuais adequados para a tutela dos seus direitos, é
necessário que seja construída uma tutela jurisdicional idônea à prevenção do ilícito (MARINONIb, 2000).
Tem-se, desse modo, que a tutela inibitória configura-se como tutela preventiva,
visa a prevenir o ilícito, sendo anterior à sua prática, e não como uma tutela voltada para
o passado, como a tradicional tutela ressarcitória. A inibitória visa a atuar sobre a vontade
do réu, convencendo-o a praticar ou não praticar um ato, para que o ilícito não se verifique não se repita ou não prossiga. A tutela de remoção do ilícito (executiva) diferenciase da inibitória (mandamental) por remover ou eliminar o ilícito (MARINONIb, 2000).
Sabe-se que nem toda tutela ressarcitória é uma tutela na forma do equivalente monetário à lesão sofrida, pois pode haver tutela ressarcitória na forma específica (MARINONIa, 2000).
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Para se chegar ao procedimento adequado à realidade de direito material, de
grande importância é a cognição, como vetor destinado à concepção de tutelas jurisdicionais diferenciadas (MARINONIa, 2000).
È necessário a combinação das várias modalidades de cognição para a concepção de processos com procedimentos diferenciados. Com a combinação dessas modalidades de cognição, o legislador está capacitado a conceber procedimentos diferenciados e adaptados às várias especificidades dos direitos, interesses e pretensões
materiais ( WATANABEb, 2000).
A relação de causalidade não quer dizer que tudo que acontecesse no meio
ambiente leva a um prejuízo ambiental; às vezes, as mudanças eventuais e naturais
ocorridas levam a um benefício ao meio ambiente, quer dizer que o meio ambiente
não é imutável (MACHADO, 2001). Agora, tratando-se de violação ocorrida por causa não natural, deve-se ter todo cuidado, pois a recomposição é difícil, levando-se ao
dano ambiental.
DISCUSSÃO
Para iniciar este trabalho, necessário se fez tratar de uma definição, ou ao menos um conceito, primeiramente de meio ambiente que é expressamente tratado
pelo direito brasileiro. Sendo que o conceito legal de meio ambiente é de grande
importância, tanto quando ocorrem controvérsias doutrinárias, como para caracterizar o objeto do Direito Ambiental.
Primeiramente, encontramos a definição na Lei 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) como delimitação do conceito ao campo jurídico -“o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
Já a Constituição Federal de 1988, em seu art. 225, caput, não define e sim esboça uma conceituação: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para os
presentes e futuras gerações” acentuando o caráter patrimonial do meio ambiente.
Pode-se notar que há uma omissão da Lei 6.938/81, bem como da Constituição
de que o ser humano, considerado individualmente ou como uma coletividade é parte integrante do mundo natural, por conseguinte do meio ambiente, levando-se facilmente a idéia que é algo extrínseco e exterior à sociedade humana (MILARÉ, 2001).
Deste modo, incumbirá ao Poder Público e à sociedade observar melhor o espírito da lei, sabendo que deverá ser interpretada além do que está escrito, pois foi
elaborada num determinado contexto histórico.
Dessa maneira, observa-se que o legislador adotou um conceito amplo e relacional de meio ambiente, dando ao Direito Ambiental brasileiro um campo de aplicação mais amplo do que o de outros países.
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Assim é que, com base no ordenamento jurídico vigente, pode-se chegar a
uma noção de Direito Ambiental, como sendo
o complexo de princípios e normas coercitivas reguladoras das atividades humanas que, direita ou indiretamente, possam afetar a
sanidade do ambiente em sua dimensão global, visando à sua sustentabilidade para as presentes e futuras gerações (MILARÉ, 2001).
O Direito Ambiental é disciplina autônoma mas não independente, é fundamentalmente multidisciplinar. Abrange conhecimentos de várias disciplinas e ciências, sendo elas jurídicas ou não.
Entretanto, para essa disciplina jurídica ganhar corpo e forma é necessária a
existência de princípios e normas específicas a informá-la, normas de âmbito nacional e internacional; com isso, há a possibilidade de denominar o Direito Ambiental
um “Direito adulto”.
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO AMBIENTAL
Princípios, proposições básicas e fundamentais, condicionando todas as estruturas subseq?entes, sendo imprescindíveis para que uma ciência seja considerada
autônoma, quer dizer, suficientemente desenvolvida e adulta para existir por si e situar-se num dado contexto científico.
1. Princípio do ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental da pessoa humana. O legislador constituinte acrescentou o caput do art.
225, um novo direito fundamental da pessoa humana; para que se tenha uma vida
digna, adequada, faz-se necessário um ambiente saudável.
Direito fundamental novo, que foi reconhecido pela Conferência das Nações
Unidas sobre o ambiente Humano de 1072 (Princípio 1), reafirmado pela declaração
do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 (Princípio 1) e pela carta
da Terra de 1997 (Princípio 4), conquistando espaço nas Constituições mais modernas, por exemplo, a de Portugal, 1976, e Espanha, 1978.
2. Princípio da natureza pública da proteção ambiental. Decorre da previsão legal que considera o meio ambiente como um valor a ser necessariamente assegurado e protegido para uso de todos. Meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem de uso comum do povo. A realização individual desse direito está intrinsecamente ligada à sua realização social, sendo impossível, em nome desse direito, apropriar-se de parcelas do meio ambiente para o consumo privado (DENARI,
1997).
Princípio com estreita vinculação com o princípio geral de Direito Público da
primazia do interesse público e com o princípio do Direito Administrativo da indisponibilidade do interesse público. O interesse na proteção do ambiente, por ser de
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natureza pública, deve prevalecer sobre os interesses individuais privados, e sendo
assim, sempre que houver dúvidas sobre a norma a ser aplicada no caso concreto,
deve prevalecer aquele que privilegie os interesses da sociedade, ou seja, in dubio
pro ambiente.
3. Princípio do controle do poluidor pelo Poder Público. Órgãos e entidades
públicas realizam intervenções necessárias à manutenção, preservação e restauração
dos recursos ambientais, visando a sua utilização racional e disponibilidade permanente. A ação desses órgãos se concretiza através de seu poder de polícia administrativa, faculdade inerente à administração pública de limitar o exercício dos direitos
individuais, visando a assegurar o bem-estar da coletividade.
4. Princípio da consideração da variável ambiental no processo de políticas de desenvolvimento. Consagrado como surgimento, no final dos anos 60, nos
Estados Unidos, do Estudo do Impacto Ambiental, utilizado para prevenir a poluição e outras agressões à natureza, avalia antecipadamente os efeitos da ação do homem sobre seu meio. Esse princípio diz da obrigação de considerar a variável ambiental em qualquer ação ou decisão.
5. Princípio da participação comunitária. Não é exclusivo do Direito Ambiental, e para a resolução dos problemas relacionados com o ambiente deve-se dar
especial destaque à cooperação entre o Estado e a sociedade, com a participação
dos diferentes grupos sociais na formulação e execução da política ambiental. Esse
princípio vem contemplado no art. 225, caput, da Constituição Federal, prescrevendo que cabe ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o
meio ambiente para as presentes e futuras gerações.
6. Princípio do poluidor- pagador (polluter pays principle). Também conhecido como o princípio da responsabilidade. A intenção desse princípio não
é tolerar a poluição mediante um preço, nem se limita a compensar os danos causados, mas sim evitar o dano ao ambiente. Cobrança efetuada apenas sobre o que
tenha respaldo na lei, se não estaria admitindo o direito de poluir. Está se tratando do princípio do poluidor-pagador (poluiu, paga os danos), e não pagador-poluidor (pagou, então pode poluir). Acolhido pela Lei da Política Nacional do Meio
Ambiente, de 1981, estabelecendo como um de seus fins, a imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados.
Reforçando isso, a Constituição Federal anuiu que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de
reparar os danos causados”.
7. Princípio da prevenção. Há juristas que usam a denominação princípio da
prevenção, outros se citam o princípio da precaução, tem-se também os usam ambas as expressões. Adotou-se aqui princípio da prevenção como fórmula simplificadora, uma vez que prevenção, pelo seu caráter genérico, engloba precaução. Princípio basilar do Direito Ambiental, que apregoa a prioridade que deve ser dada aos
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meios, às medidas, que evitem o surgimento de atentados ambientais que venham
a alterar sua qualidade.
Os objetivos do Direito Ambiental são eminentemente preventivos. Importante é o momento anterior à consumação do dano – o do mero risco. Diante da incerteza da reparação e quando possível, excessivamente onerosa, o melhor é a prevenção, sendo muitas vezes a única solução (MILARÉ, 2001).
8. Princípio da função socioambiental da propriedade. Direito à propriedade é direito fundamental; contudo não é ilimitado e intangível, pois o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A propriedade sem deixar de ser
privada, socializou-se, deve oferecer à coletividade uma maior utilidade, dentro da
concepção que o social orienta o individual. Esse princípio não constitui apenas um
simples limite ao exercício de direito de propriedade, que permite ao proprietário
no exercício de seu direito, fazer tudo que não prejudique a sociedade e o meio ambiente. A função social e ambiental vai além e impõe ao proprietário comportamentos positivos, no exercício de seu direito, para que a sua propriedade se adeqúe à
preservação do meio ambiente.
9. Princípio do direito ao desenvolvimento sustentável. Definido pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento como “aquele que atende
às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades”. Direito e dever estão unidos, termos
recíprocos, mutuamente condicionantes dando legitimidade à força e à oportunidade desse comando como referência basilar ao Direito Ambiental.
10. Princípio da cooperação entre os povos. Exposto no art. 4º., IX, da Constituição Federal, estabelece como princípio nas relações internacionais da República Federativa do Brasil a “cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”. Uma das áreas que liga as Nações é a relacionada à proteção do ambiente,
uma vez que as agressões a ele infligidas nem sempre se circunscrevem aos limites
territoriais de um único país, espraiando-se também, não raramente, a outros vizinhos (MILARÉ, 2001).
11. Princípio da solidariedade. Na reparação do dano ambiental, a solidariedade passiva foi adotada integralmente pelo texto constitucional. Art. 225, caput,
(...) compete ao Poder Público e a Coletividade o dever de proteger e preservar (...),
juntamente com a regra exposta no art. 3º., III da Lei 6.938/81, de que todo aquele
que direita ou indiretamente, seja pessoa física ou jurídica, privada ou pública, causar dano a meio ambiente, deve ser responsabilizado por tal ato omissivo ou comissivo. Esse princípio na responsabilidade civil ambiental é o princípio de justiça, de
modo que não cabe a análise e verificação do dano ambiental provocado por várias
e diversas fontes, qual teria sido o papel individual de cada um (RODRIGUES, 2002).
Para verificação da proporção do que causou, somente através de ação própria contra os demais responsáveis, pois em sede de responsabilidade objetiva ambiental não se admite a figura do chamamento ao processo (RODRIGUES, 2002).
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Portanto, aquele que causou ou contribuiu de alguma forma para o dano ambiental
pode ser responsabilizado integralmente, pois responde solidariamente pelo todo.
AÇÃO INDIVIDUAL E AÇÃO COLETIVA
Os artigos 461 do CPC e 84 do CDC, duas normas processuais que dão ao juiz
instrumentos capazes para a prestação das tutelas preventivas e repressivas. Esses
artigos têm redação praticamente idêntica, sendo que ambos mencionam a tutela
das obrigações de fazer e de não-fazer.
Entretanto, a identidade é apenas aparente, pois suas funções são distintas. O
art. 84 do CDC serve às relações de consumo e à proteção de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos e, por estar inserta no CDC em um primeiro momento, poderia supor que se trata apenas de direitos do consumidor. Para a tutela
dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, existe um sistema processual próprio, composto pela Lei da Ação Civil Pública – LACP (Lei 7.347/85) e pelo
Título III, do CDC. Como estatui o art. 90 do Código de defesa do Consumidor, as
ações fundadas no CDC se aplicam as normas da Lei da Ação Civil Pública. Por outro lado, complementa o art. 21 da Lei da Ação Civil Pública que as disposições processuais que estão no CDC são aplicáveis à tutela dos direitos que nela estão previstos (MARINONIa, 2000).
Com a interligação entre a LACP e o CDC surge um sistema processual para a
tutela dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Como o art. 84 está
inserido no Título III do CDC, e assim dentro desse sistema processual, ele se aplica à tutela de quaisquer direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Nesse
sentido, o art. 84 do CDC é a base processual para as ações coletivas preventivas e
repressivas; fora também pensado para dar tutela aos direitos individuais do consumidor, e com o posterior surgimento do art. 461 do CPC, por ser capaz de dar tutela a qualquer espécie de direito individual, tornou desnecessária a invocação do art.
84 do CDC para a tutela dos direitos individuais do consumidor. Ou se a lembrança
dessa norma ainda pode ser feita quando em jogo direitos individuais do consumidor, isso se deve à necessidade de relacionar as normas de direito material de proteção do consumidor com uma norma de caráter processual para ele especificamente criada (MARINONIb).
Sendo que existe no sistema de proteção aos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos uma norma (art. 84 do CDC) que serve para a prestação das
tutelas preventivas e repressivas (entre outras tutelas), essa deve ser apontada como
a base da ação coletiva, deixando-se o art. 461 do CPC como suporte para as ações
individuais. Em sendo assim, pode-se ter como exemplo o caso de concorrência
desleal, onde se invocará o art. 461 do CPC, mas quando na hipótese de direito ao
meio ambiente, será invocado o art. 84 do CDC.
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MEIOS PREVENTIVOS E REPRESSIVOS
TUTELA INIBITÓRIA AMBIENTAL: O fundamento dessa tutela está no próprio direito material, pois diante de sua natureza, várias situações são absolutamente
invioláveis. Necessário se faz admitir uma ação preventiva. Essa ação preventiva é uma
conseqüência lógica das necessidades do direito material; caso contrário, as normas
que protegem bens fundamentais não teriam qualquer significado prático, poderiam
ser violadas a qualquer momento, restando apenas o ressarcimento do dano.
Pode-se pensar, como exemplo, na norma que proíbe algum ato com o objetivo de proteger direito, que possui natureza inviolável, como direito ao meio ambiente ou o direito à honra.
A Constituição Federal de 1988, no seu art. 5º., XXXV, traz que “nenhuma lei
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Desse modo,
o acesso à justiça tem como fundamento o direito à tutela capaz de impedir a violação do direito.
A ação inibitória é voltada para o futuro, não para o passado, pois se volta contra a possibilidade do ilícito, ainda que se trate de repetição ou continuação, nada
tendo a ver com o ressarcimento do dano, e desta maneira, com os elementos de
imputação ressarcitória, os chamados elementos subjetivos, culpa ou dolo (MARINONIb, 2000).
Para que se tenha a tutela jurisdicional inibitória, é necessária a mera probabilidade de ato contrário ao direito e não de dano, por exemplo, um direito que exclui um fazer – o titular de uma marca comercial tem o direito de inibir alguém de
usar a sua marca, ou uma norma definindo que algo não deve ser feito – norma impedindo a venda de terrenos que se situem a menos de 30m das margens de um rio,
a associação dos moradores de bairro pode pedir a inibição da venda. Dessa maneira, a matéria da ação inibitória se restringe ao ilícito, o autor não precisa alegar o
dano e o réu está impedido de discuti-lo.
TUTELA INIBITÓRIA DIANTE DO FAZER E NÃO-FAZER: O Estado tem
o dever de editar normas para proteger os direitos fundamentais, como o dever de
proteção ao consumidor e o meio ambiente; com isso, as normas civis também assumiram função preventiva, que passou a ser exercida através de normas proibitivas
e impositivas de condutas. Com a evolução da sociedade, o direito material passou
a ser cada vez mais dependente de ações positivas. Sendo que, essas últimas passaram a ser necessárias à prevenção dos direitos.
A prevenção então passou a exigir um fazer, ficando claro que o ilícito poderia ser além de comissivo, também omissivo. Assim, alguém que possui um dever de
fazer para que um direito não seja violado, o não-fazer implicará ato contrário ao direito, que poderá ser qualificado de ilícito omissivo.
Nem todo dever de prestação fática leva a um dever de prestar algo para a prevenção. Para que o dever se destine à prevenção, é necessário avaliar qual a finalida-
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de do dever. Voltando à Constituição Federal, art. 225, caput, diz que compete ao
Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente
para as presentes e futuras gerações. Como também, a Lei Municipal nº 2.911, do
município de Lençóis Paulista, trata do dever de coletar o lixo para manter a cidade
limpa, evitando contaminar o meio ambiente, e, diante do que foi tratado, o dever
se destina a proteger um bem inviolável. “O poder Público, deve agir para alcançar
o fim previsto na norma, ação essa precipuamente preventiva” (MIRRA, 1995), não
importando se, com a intermediação ou não do poder Judiciário, pois “tal atividade
não pode ser postergada por razões de oportunidade e conveniência, nem mesmo
por ordem financeira e orçamentária” (MIRRA, 1995).
Para um melhor entendimento do que foi tratado, é necessária a distinção entre
ilícito e dano, pois se a distinção não ficar clara, não há como pensar em ilícito que se
perpetua como fonte de danos. Quando a Administração Pública não cumpre um dever
legal, dever esse que evitaria a degradação do meio ambiente perpetuando no tempo,
exemplo: Não coleta do lixo (ilícito)? por um período determinado? leva a danos (à medida que a omissão ilícita caminha no tempo). Nesse caso, a ação processual volta-se
contra uma omissão ilícita que prossegue no tempo. Assim é, pois, se depois de violado
o dever, a Administração Pública voltar a realizar o ato (coleta do lixo), NÃO haverá apenas outorga de ressarcimento, mas se evitará que danos sejam causados.
Quando a norma jurídica impõe ao particular um dever de não-fazer, NÃO jogar lixo em terrenos baldios, mas o particular joga, cometeu um ilícito comissivo
(praticou a ação proibida)? perpetuou no tempo? ensejo a danos. A ação processual
volta-se contra uma ação ilícita que prossegue no tempo. Depois de parar com a pratica da ação proibida, não haverá apenas outorga de ressarcimento, mas se evitará
que danos ocorram.
Diante do exposto, o Poder Público, o particular, a coletividade, possuem dever, visando à preservação do meio ambiente, que se não for observado, ou a nãoação quando possui dever de atuar para proteger o meio ambiente, configura uma
ação que deve ser suprimida para que a fonte de danos não fique aberta, caso contrário se perpetuará no tempo, constituindo um não-agir continuado. Sendo que
para obrigar a prática do ato necessário para que o ato não se perpetue no tempo,
usa-se uma tutela jurisdicional que determina o adimplemento de um dever. “Mas,
se o próprio dever possui o fim de evitar a violação do meio ambiente, a ação voltada a efetivá-lo logicamente presta tutela inibitória, ou melhor, a própria prevenção
desejada pelo direito material” (MARINONIb, 2000).
MEIO REPRESSIVO – TUTELA DE REMOÇÃO DO ILÍCITO: A tutela inibitória (mandamental) tem por fim prevenir o ilícito e, por finalidade, atuar sobre a
vontade do réu convencendo-o a praticar ou não um ato, para que o ilícito não se
verifique, não se repita, não prossiga. Sendo que não podemos esquecer da dualidade da inibitória. Conforme o tipo de obrigação violada, o ilícito pode ser comissivo
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ou omissivo; significa que, na hipótese de:
ilícito omissivo
à inibitória positiva
ilícito comissivo
à inibitória negativa
Quando há uma omissão do Poder Público, por exemplo, a falta de ação no tratamento dos aterros sanitários próximos à cidade, admite-se uma inibitória positiva. Do
mesmo modo, se o particular diante de uma obrigação e não-fazer, não jogar lixo no
rio, e ele joga, realiza a ação proibida, nesse caso temos um inibitória negativa.
Resta que o importante é ter a tutela da obrigação que se deseja ver cumprida pelo réu que implica a efetividade da tutela inibitória, ou a efetividade da prevenção do ilícito. Há hipóteses em que se observa a continuidade do ilícito, devido à
não-observação do fazer ou do não-fazer, e que é possível à remoção do ilícito, da situação de ilicitude mediante ato do próprio juízo.
Uma obra que foi construída em local proibido, a tutela que determina a sua
destruição é a da remoção do ilícito; o fechamento de uma indústria que foi construída em local proibido pela legislação local.
Nessas hipóteses, a tutela adequada é a de remoção do ilícito (executiva), que
remove ou elimina o ilícito, pois não é uma tutela contra o dano.
A tutela de remoção do ilícito (reintegratória) tem por finalidade remover ou
eliminar o próprio ilícito, a causa do dano; não é função da reintegratória ressarcir
o prejudicado pelo dano.
Como exemplo de aplicabilidade: deter o fechamento de uma indústria que
foi construída em local proibido pela legislação ambiental, não se está tutelando
contra o dano ambiental que eventualmente foi produzido pela empresa, a tutela
está removendo a própria causa do dano (MARINONIb, 2000).
Uma vez que essas tutelas se aplicam às obrigações de fazer e não-fazer, a lei
processual permite que sejam tuteladas através de medidas coercitivas. Aplicadas
quer se trate de obrigações fungíveis ou infungíveis (GUERRA, 1999).
A multa diária, como medida coercitiva (execução indireta), será aplicada na
execução de obrigação de fazer e não-fazer. Trata-se de medida coercitiva, pois é
aplicada independentemente da indenização por perdas e danos que resultem do
não-cumprimento específico da obrigação.
Nada impede que o juiz possa usar de meios sub-rogatórios (execução direta)
para a efetiva realização da tutela de remoção do ilícito. Como, por exemplo, quando a Administração pública não recolhe o lixo de uma cidade, pode-se determinar
que terceiro realize a coleta, em caráter de urgência e relevância, pois o meio ambiente não pode esperar para que a remoção se realize.
O uso da tutela reintegratória remove a causa do eventual dano; com isso, elimina a possibilidade de sua produção. Mas se o malefício/degradação ocorreu? Temse, então, outro instrumento para ser utilizado – tutela ressarcitória.
Com a remoção do ilícito, restabelece a situação anterior a ele. desaparecen-
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do o fato gerador do dano. Em ocorrendo o dano, às vezes, mesmo com a remoção
do ilícito, ocorre o dano ao meio ambiente, necessário se faz repará-lo, corrigir o malefício/degradação.
O ressarcimento não visa simplesmente ao estabelecimento do equivalente
monetário, deve restabelecer, retornar ao que deveria existir se não houvesse dano.
Estabelecer uma situação equivalente àquela que existia. Por exemplo, se é apenas
possível, no caso de destruição da mata ciliar de um rio, o estabelecimento de uma
situação só em parte equivalente à que existia antes da destruição, apenas parcela
do dano será ressarcido através da tutela ressarcitória na forma específica. Sendo
que a outra parte do dano, que também deve ser reparada, será por meio do pagamento em dinheiro. Infelizmente, mesmo com a utilização das tutelas preventivas e
repristinatórias, nem sempre o meio ambiente volta ao estado original. Para melhor
visualizar as tutelas:
PREVENTIVA
Mandamental (tutela inibitória)
técnica de coerção
Visa a convencer o obrigado
a praticar ou não o ato
execução indireta
obrigações fungíveis
obrigações infungíveis
REPRESSIVA
Reintegratória
(remoção do ilícito)
Mandamental
técnica de coerção
obrigações fungíveis
obrigações infungíveis
Executiva lato senso
técnica de sub-rogação
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execução direta
Ressarcitória
(ocorreu o dano)
na forma específica/pelo
equivalente monetário
CONCLUSÃO
Direito à tutela jurisdicional efetiva: É dever do legislador estabelecer procedimentos judiciais capazes de permitir a efetiva tutela dos direitos, bem como
adequar esses procedimentos à participação dos cidadãos na reivindicação e na proteção dos direitos.
Mesmo assim, não é possível o legislador saber antecipadamente quais técnicas processuais adequadas para os casos conflitos.
Dessa maneira, a solução foi encontrada estabelecendo regras que conferissem maior poder ao juiz, dando-lhe oportunidade de moldar o processo de acordo
com as peculiaridades dos casos concretos.
Essas regras estão nos artigos 84 do CDC e 461 do CPC. Sendo que, com a aplicação desses artigos, impõe-se um fazer ou não fazer, permitindo que o juiz conceda a tutela específica de acordo com o caso concreto ou determine providências que
assegurem o resultado prático equivalente. Além do que, poderá utilizar-se de meios
coercitivos (execução indireta), que forçam o cumprimento da obrigação ou mesmo
mudar a modalidade de execução.
Através desses procedimentos, assegura-se o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, oportunidade na qual o legislador faculta ao magistrado a possibilidade de decidir utilizando a opção que julgar mais adequada ao caso concreto.
Dessa forma seu poder de decisão é ampliado, ao permitir a utilização da técnica
processual mais adequada, valendo-se do princípio da proporcionalidade na busca
da efetiva tutela jurisdicional adequada à prevenção e reparação do meio ambiente.
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CRIME PASSIONAl
Luciana Sabóia Cremonezi
Aluno matriculado no 5º ano da Faculdade de Direito da Instituição Toledo de Ensino de Bauru.
Orientador: Professor Mestre Daniel Pegoraro
RESUMO
O presente trabalho visa a demonstrar a evolução do crime passional durante
a história contemporânea da humanidade, priorizando, de qualquer modo, a vida
humana diante de qualquer outra circunstância, notadamente emocional. Pretende
ainda definir o verdadeiro passional, muitas vezes utilizado como escudo para a defesa de crimes torpes.
Palavras-chave: Crime, Dignidade Humana, Passionalismo.
INTRODUÇÃO: O CRIME
O Código de Direito Penal brasileiro não possui uma definição do que seria o
crime, deixando essa função para a doutrina. A doutrina, por sua vez, nos dá uma
definição formal quando conceitua o crime como sendo todo fato humano contrário à lei (Carmignani). A definição formal do que seria crime se faz observando-o
simplesmente pelo seu aspecto externo.
Se fossemos refletir sobre quais são os elementos determinantes para que o
legislador considere certos atos como criminoso e outros não, teremos que observar o crime sobre um aspecto mais substancial. A doutrina nos dá um conceito de
Crime substancial, quando conceitua crime como sendo:
Ação ou omissão que, a juízo do legislador, contrasta violentamente com valores ou interesses do corpo social, de modo a exigir seja
proibida sob ameaça de pena, ou que se considere afastável somente através de sanção penal (FRAGOSO, p. 149).
Se pensarmos, no entanto, nos elementos que compõem o crime, aspectos ou
até mesmo características do crime, pensaremos em uma definição analítica de crime e, quanto a esse conceito, os autores que seguem a teoria causualista e os adep-
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tos da teoria finalista acreditavam que crime seria composto por fato típico, ilícito e
culpável. Muito já se discutiu quanto a essa definição até Hans Welzel defensor da
teoria finalista demonstrar, em um conceito analítico, que crime seria aquele onde
se une fato Típico e Antijurídico. Isso porque, no conceito de conduta adversa à lei,
já está implícito uma conduta dolosa, e esta já está abrangida pelo fato típico. Assim,
a culpabilidade significa a reprovabilidade ou censurabilidade da conduta.
Posto isto, para a caracterização de um ato como criminoso, devemos primeiramente verificar se o fato é típico ou não. Na hipótese de atipicidade, encerra-se qualquer indagação acerca da ilicitude, pois em respeito ao Princípio da Reserva legal, não estando descrito como crime, trata-se tão-somente de irrelevante penal. A ilicitud, por sua vez, é a contrariedade que se estabelece entre o fato
típico e o ordenamento legal. Quando um fato humano se enquadra em um tipo
incriminador, tem-se presente a Tipicidade. Em princípio, todo fato típico contraria o ordenamento jurídico; portanto, também é fato ilícito. Assim, cometido um
fato Típico, presume-se que se trata de um fato ilícito, a menos que exista uma
causa excludente de antijuricidade expressamente prevista em lei. São quatro as
causas de excludente de ilicitude prevista na parte geral do código penal, são
elas: a legítima defesa, o estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular do direito. No que se refere à parte especial do Código Penal, temos como excludentes: o aborto para salvar a vida da gestante, ou quando
a gravidez resulta de estupro; nos crimes de injúria e difamação, quando a ofensa é irrogada em juízo na discussão da causa, na opinião desfavorável da crítica
artística, literária ou científica e no conceito emitido por funcionário público em
informação prestada em desempenho de suas funções; crime de constrangimento ilegal se é feita à intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida,
e na coação exercida para impedir suicídio; na violação de domicílio, quando um
crime está ali sendo cometido.
Sendo típico e ilícito, caracteriza-se o crime e a partir daí, analisamos acerca
da culpabilidade ou da periculosidade.
Em uma conclusão abrangendo a medida de segurança, podemos repetir os
dizeres de Walter Coelho: “Crime é o fato típico e ilícito, em que a culpabilidade é o
pressuposto da pena e a periculosidade é da medida de segurança”.
CRIMINOLOGIA
Quando pretendemos estudar os crimes, precisamos também fazer um complexo estudo sobre a psicologia do criminoso e os motivos que teriam levado aquele homem a cometê-lo. No momento em que pensamos em julgar ou condenar pessoas, não basta sermos apenas codificados a detectar um determinado ato e sua respectiva pena, é preciso mais, pois apesar de se tratar de pessoas que cometem cri-
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mes, que chegam a tirar a vida de outra, são pessoas, e como tal devem ser tratadas.
O Estado visa a proteger a sua sociedade, dar meios para que viva bem, viva
em segurança. O nosso Estado é formado de milhares de pessoas com personalidades, características, temperamentos, comportamentos e históricos de vida diversos. Essa diversidade resulta em uma variedade de pessoas pensando, vivendo
e agindo de formas diferentes. Para que o Estado dê conta de proteger tantas pessoas diferentes, é preciso muito mais do que um policiamento ou jurisdição calculada, que ao reconhecer um crime determine sua correspondente pena e insira aquele reconhecido delinqüente em estabelecimento carcerário. Um sistema
assim, não pode ser considerado seguro, e por que não pode? Simples, nós sabemos que em nosso ordenamento brasileiro, a Constituição Federal, lei maior, determina como cláusula pétrea a proibição da pena de morte. Além da referida
proibição, uma pessoa por pior crime que tenha cometido, só pode ficar em regime fechado por não mais do que 30 anos, isso sem contar nas formas de diminuição de pena possíveis. Esses dados são suficientes para que cheguemos a uma
simples conclusão: todos delinqüentes que forem presos serão soltos, voltarão
para o seio da sociedade e, dependendo da medida adotada a eles, se de sucesso ou não, voltarão sim a delinqüir.
Quando temos notícia de desprezíveis crimes que nos aterrorizam, a sociedade de uma forma geral espera e pressiona o Estado para que consiga alcançar aquele criminoso e que o exclua da vida em sociedade o mais rápido possível. E não se
contentam com pouco, a sociedade clama para que aquele seja trancafiado, de forma que se tenha uma sensação maior segurança. Mas essa sensação não é real, pois
não basta defender a sociedade, é preciso salvar o criminoso, impedindo que o mesmo caia na reincidência, tornando-se um elemento permanentemente perigoso.
O criminoso é um ser que age e pensa de acordo com a sua coerência, assim
como qualquer outra pessoa, mas seu comportamento acaba por ultrapassar o limite do tolerável. O que dizer de um marginal que comete um crime assustador capaz
de deixar toda a sociedade em pânico, e como medida de segurança esse marginal
é mandado a um hospital?
Essa medida, provavelmente, deixará a população ainda mais amedrontada e
revoltada com a aparente sensação de não segurança. De acordo com De Greef, embora o crime seja uma realidade, o criminoso como a sociedade o imagina, é um
mito. Um mito porque o seu problema não é só comportamental e sim patológico.
Assim, cria-se a psicologia criminal, para mais do que julgar um cidadão potencialmente criminoso colocar-se em seu lugar, analisando meio de vida e histórico de infância podendo, assim, detectar se estamos diante de um egoísta criminoso ou mais
uma vítima da violência domiciliar. Vítima esta, que, por reiterados traumas, acabou
por se tornar uma pessoa psicologicamente doente e que precisa de ajuda para se
corrigir.
No papel da psicologia criminosa, o criminologista deve analisar o ser huma-
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no de acordo com o seu modo de ser no mundo assim sendo, é de prima importância que tente conhecer a razão de ser de um comportamento criminal. Baseando-se,
nesta linha de raciocínio, a criminologia nos leva a rever a filosofia cartesiana, aquela que nos mostra que, em cada pessoa existe um EU, esse EU é o conjunto de tudo
o que acontece com aquela pessoa, psicologicamente, moralmente, sentimentalmente, o que ela vive em estado consciente. Esse EU é o responsável pelos atos da
nossa vida, sempre procurando conciliar o que o agente sente com o que se quer,
ao que se almeja e aquilo que repelimos. O EU que não deseja para si a experiência
do fracasso.
O jurista conceitua o crime, a psicologia criminal, tenta sempre entender a
ação anti-social, baseando-se na premissa de que é impossível julgar um crime sem
compreendê-lo. É beirando este raciocínio que podemos constatar que, uma vez
compreendida as razões psicológicas que levaram um indivíduo a cometer determinado ato, este ato poderá ser reprimido, ou compreendido. Isso porque o que torna um indivíduo comum em assassino é o ambiente em que o mesmo viveu.
Nenhum homem age conscientemente no intuito de se prejudicar, a não ser
em casos patológicos, pois isso estaria em desacordo com seus desejos. Nenhum
homem erra deliberadamente, age sempre procurando satisfazer o seu bem-estar,
essa mesma “corrida” pela satisfação é que perpetua a maioria dos crimes. De acordo com o que passava no EU do delinqüente naquele dado momento do crime consumativo, é que devemos estudar o seu comportamento e aplicar a medida mais
adequada. Esse estudo de comportamento não deve ser considerado apenas no momento da delinqüência, devemos procurar estudar, também, o ambiente em que viveu todo o seu passado, das lembranças boas e más, e da maneira como tudo se organizou em seu inconsciente, para que, assim, possamos realmente entender por
que, naquela circunstância, considerou ele aquela atitude a mais correta.
Segundo os estudos de Freud, as pessoas não se deixam levar apenas pelo seu
inconsciente, existe uma parte de sua personalidade, da qual o indivíduo não tem
consciência, que em determinadas circunstâncias, pode predominar no desenrolar
de suas atividades. Os fatores biológicos e harmônicos exercem, como sabemos, influência sobre o comportamento singular e muitas vezes, acabam nem sendo percebidos pelo próprio indivíduo. Um exemplo seria a atuação do álcool modificando
comportamentos, traduzindo uma irregular compreensão do ambiente.
Traumatismo físico pode ser muito chocante, mas traumatismo psicológico
pode ser ainda mais aterrorizante, principalmente em determinadas faixas etárias,
pode comprometer totalmente, influenciar a estrutura psicológica de uma pessoa.
Tudo começa com o pretérito do delinqüente. A criança por si tem um instinto, característica egocêntrica, agressiva, conduta que é perfeitamente maleável nesta fase. Sua estrutura de personalidade é ainda imatura e se determinará de acordo
com sua educação, em meio harmônico. Estando a criança submetida a um lar precário e violento, ou até com excesso de mimos, qualquer coisa aparentemente dife-
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rente do balanceado, sua estrutura psicológica será deficiente e mesmo que uma vez
adulta não se torne um criminoso, terá sempre a conduta criminosa em estado latente dentro de si, e a qualquer momento, de acordo com sua valoração subjetiva,
essa potencialidade poderá se transformar em um ato criminoso. Daí a idéia de que
o criminoso nasce no lar.
A criminalidade é, então, educacional, mas isso não significa que deixe de ser
uma escolha. Não é perdoável o crime, mas uma vez cometido deve ser curado e
não tão somente penalizado.
DO CRIMINOSO PASSIONAL
Já vimos que, ser ou não ser criminoso está intimamente ligado à sua estrutura psicológica. Porem, isso não é determinante, inúmeras pessoas, que passaram e
continuam passando por uma vida difícil e até violenta, acabam por se firmar perante a vida de forma completamente louvável e honrada. Isso nos mostra que o crime
é, sim, uma questão de escolha.
Ao sujeito que comete crime movido pela paixão, dá-se o nome de passional.
Mas a paixão não é o único sentimento a qualificar este tipo de crime, principalmente na linguagem jurídica. Neste sentido, as paixões da honra, da fé religiosa ou da
política, são as chamadas paixões sociais e também se enquadram no conceito de
passionalismo.
No que tange à história deste tipo de crime, nos remetemos onde á desigualdade social nunca mais será tão explícita como no tempo das Ordenações Filipinas.
A referida Ordenação era o conjunto de leis que vigoraram durante o período colonial em nosso País. Em seu texto, apesar de excluir as vinganças privadas, estas eram
autorizadas em duas situações: “a perda da paz” e o adultério. Quanto ao adultério,
o artigo legal era exposto da seguinte forma: “Achando o homem casado sua mulher
em adultério, licitamente, poderá matar a ela como adultério, salvo se o marido for
peão, e o adúltero Fidalgo, ou nosso Desembargador ou pessoa de maior qualidade.
E não somente poderá o marido matar sua mulher e o adúltero, que achar com ela
em adultério, mas ainda os pode licitamente matar sendo certo que lhe cometeram
adultério”.
No Brasil, o crime passional foi durante muito tempo um sinônimo de punição para a mulher adúltera, um reflexo do instinto sexual. O passionalismo no homem seria um instinto ativo; por outro lado, a mulher seria caracterizada por sua
passividade.
Se fôssemos tentar achar a raiz que gerou a modalidade de crime passional,
teríamos que nos remeter a um sistema patriarcal brasileiro onde a honra era lavada com sangue. Esse crime foi durante muito tempo alegado como uma legítima defesa da honra. Interessante se faz observar que uma legitimação nunca antes publi-
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cada em nosso código conseguiu ser criada e se manter até hoje.
Apesar desta menção aos tempos do primórdio, o passionalismo é relativamente novo. Ele está intimamente ligado à época do romantismo, onde os escritores atenuavam o horror do crime, colocando a paixão sempre como uma justificativa romântica para a morte da mulher amada. Seu assassino era descrito como o romântico, herói por conseguir matar sua malvada amada que não correspondia a seus
carinhos.
Foi nas obras de autores como Cesare Lombroso que apareceu pela primeira
vez a figura do criminoso passional. Em meados do séc. XIX, aparece Enrico Ferri,
criminalista responsável pela teorização mais importante sobre o assunto. Enrico definiu o criminoso passional, como sendo um criminoso social, isto é, alguém que comete um crime impulsionado por motivos úteis à sociedade. O passional é conceituado como aquele homem de respeitabilidade social, jovem, apaixonado, de sensibilidade superior que, tomado por uma violenta emoção, perpetua um crime, que
para ele parecia justificável naquele contexto.
A emoção que dominou momentaneamente a vida daquele sensível apaixonado foi a que o tirou da realidade e ele acaba matando a sua amada. Na maioria das
vezes, o crime se dá sem premeditação, sem cumplicidade, e logo após o criminoso
se vê tomado por um sufocante sentimento de arrependimento. Esse sentimento
lhe traz tanto remorso e desespero que, na maioria dos casos, ou o delinqüente tenta seriamente o suicídio, ou confessa imediatamente o crime, buscando ser severamente condenado.
No código de 1890, tínhamos a possibilidade de “Os que se achassem em estado de completa perturbação de sentido e de inteligência no ato de cometer o crime”, serem irresponsáveis por seus atos.
Com a modernização do código e a conseqüente evolução da teoria, se estabelece como base a responsabilidade objetiva. Nesta nova era, a violenta emoção, reflexo da paixão, não exclui a responsabilidade criminal, passando a ser apenas uma
causa de diminuição de pena. O agente que, tomado por uma violenta emoção, comete um crime seguido por injusta provocação da vítima, esta circunstância será
considerada como uma causa de diminuição da pena. Essa diminuição fica a critério
do juiz, podendo ser reduzida de 1/6 (um sexto) a 1/3, (um terço), de acordo com
a sua convicção.
Nítida se faz a evolução desta modalidade de crime que até tempos atrás, nem
ao menos seria responsabilizado, para uma atual década em que apesar de esse crime ser um delito de exceção, considerado como privilegiado, não se tem mais a hipótese da absolvição.
A pena para os crimes qualificados como passionais variará de 1 a 6 anos de
prisão, e o critério determinante também é uma evolução; leva-se em conta o grau
de periculosidade do criminoso.
O conceito de periculosidade vem da idéia que Lombroso trazia de que
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existia ainda a possibilidade do “criminoso nato”, aquele sujeito aparentemente
normal, mas que possuía uma potencialidade criminosa que poderia se manifestar a qualquer momento. A esse criminoso “nato”, a medida mais eficaz seria então a de segurança.
Baseando-se na referida tese, os advogados pretendiam demonstrar que seus
clientes eram pessoas sensíveis que, por um lapso, cometeram atos não desejados
por eles, que não faziam parte da sua índole, que seus clientes não ofereciam perigo à sociedade uma vez que seu problema era patológico, ou seja, detectado e tratado, aquele indivíduo arrependido voltaria para a vida em sociedade como uma
pessoa normal.
Outra tese defendida é a chamada legítima defesa da honra. Defendia-se que
a honra estava em cada um dos membros da família. Assim, qualquer ato que não
fosse de agressão física, tentado contra um dos familiares, por qualquer um deles,
atingiria a honra dos demais. Neste caso, a emoção dominava momentaneamente a
vida de um dos indivíduos pela descoberta da ofensa à sua honra, ou à sua família.
Esta emoção momentânea resultava no crime. Contudo, garantiam os advogados
que aquele brutal crime não passava de um único acidente indesejável na vida de
um homem honrado que, agora arrependido, tenta a sua própria morte. Mas essa é
apenas uma das correntes que aborda o tema.
O Código Penal dedica um capítulo para os crimes contra honra; entretanto,
não define legalmente o que seria. Ora, a honra está em cada um. Assim, se uma pessoa comete um ato amoral, esse ato só poderia atingir a sua própria honra, e nunca
a de terceiro. Assim, se define a segunda corrente sobre o assunto.
Para Ferri, existia sim a figura do criminoso passional. Era aquele garoto, na
maioria das vezes honesto que, por sua intolerância, comum da idade, unida com a
sua paixão avassaladora e aguda sensibilidade, atordoado pela emoção do momento, sem cúmplices ou premeditações, acaba por perpetuar a morte da sua grande
paixão. Esse passional inconsolado pela dor do arrependimento acaba também por
dar fim à sua própria vida, suicidando-se. Se essa é a real figura do passional, não teríamos a preocupação de julgar bem ou mal esse cidadão, pois da cena do crime ele
não chegaria ao banco dos réus.
Neste ensejo, o que dizer daquele criminoso que mata e no júri se defende
usando a alegação do passionalismo? Deveríamos apenas adverti-lo de que se esqueceu de um dos requisitos para a classificação do crime, o suicídio. Se aquele
indivíduo era tão sensível, se amava tanto, como poderia viver ele com o encargo
de criminoso e agora eternamente longe da sua amada? O único amor nestes casos é o amor próprio. A emoção envolvida não era o carinho, e sim a raiva, ciúmes, egocentrismo, sentimentos característicos da vaidade, do egoísmo e não do
amor.
Neste ponto estamos condenando aqueles criminosos vaidosos que se escondem atrás do conhecido passional. Em relação ao verdadeiro passional, se não per-
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petuasse o suicídio, se chegasse ao banco dos réus, também deveria ser condenado.
Isso porque não há desculpas para o assassinato. A única forma de homicídio aceita
pela sociedade e defendida pelo código é a legítima defesa, e nada de legítima defesa da honra, pois se quem trai é a mulher, ela é a adúltera, a desonrada e não o marido, que até aqui não passa de vítima da má escolha.
O passional mata porque quer matar. Sente-se agredido, doído e resolve matar. Poderia ser mais homem, ou mais mulher, sem executar nos tempos modernos
a figura da mulher passional, e matar sim a mulher desonesta, mas matar em seu coração, matar em sua memória, riscá-la da sua vida. A morte neste caso é a mesma, a
dor neste caso... é a mesma.
Violenta emoção? Emoção todo mundo sente, ninguém precisa ser passional
para sentir emoção, para morrer de dor no coração, sentir-se sufocado até a garganta diante de uma cena triste.
As situações tristes também servem para nos fazer crescer. Saber perdoar
é uma grande prova de amor, ou então que não perdoe, mas mostre para si mesmo que é forte o bastante para recomeçar. Se não for forte, que chore, que morra de chorar até aliviar o coração e sentir que nasceu de novo, mas nunca, nunca matar.
Homicídio em qualquer modalidade expressa exclusivismo, vaidade, futilidade. Futilidade com a sua vida e com a vida dos outros. Como pode a vida de
uma mulher, mesmo que seja uma mulher adúltera, não valer mais do que o ciúme do homem, mesmo que seja um homem honrado? A vida é cheia de emoções;
paixões são fervorosas, porém passageiras, o que fica é o pacífico amor.
Foi abraçando esse pensamento que, em 1925, foi criado o chamado Conselho Brasileiro de Higiene Social. Órgão formado por conceituados juristas
como Nélson Hungria, Roberto Lyra, Afrânio Peixoto, que tinha como objetivo dar
um fim aos crimes passionais até então tolerados pelos juristas e sociedade. Esse
trabalho deu frutos, excluindo as hipóteses de irresponsabilidade aos que agiam
em “estado de perturbação dos sentidos”.
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CONCLUSÃO
Ante ao todo exposto, podemos com clareza observar que a honra masculina
não depende do comportamento feminino. Não há desculpas para aqueles que ante
um amor contrariado vê-se no direito de lavar a sujeira com sangue. A tendência criminosa não está na emoção momentânea, e sim na personalidade formada daquele
indivíduo, sua tendência natural, ou sua criação principalmente no período de infância. A esse indivíduo de formação doente, a medida a ser adotada é a de segurança.
Cuidar desse criminoso patológico é uma necessidade social, pois é a segurança de
todo um Estado a que se visa defender. Aquele que comete um homicídio guiado
pela sua vaidade, não pode ter sua pena diminuída e sim aumentada, pelo motivo
torpe. Esse sujeito não pode se esconder atrás de uma grande paixão, pois quem
ama não mata.
REFERÊNCIAS
CAPEZ, F. Curso de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2003.
CORR NDA, M. Os crimes da paixão. São Paulo: Brasiliense, 1981.
DOURADO, L.A. Ensaio da psicologia criminal. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.
FERRI, E. O delito passional na civilização contemporânea. São Paulo: Saraiva.
MIRABETE, J.F. Código penal interpretado.São Paulo: Atlas, 2000.
MIRABETE, J.F. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 2002.
Paixão e Criminalidade. São Paulo Disponível em <direitopenal.Adv.br/artigos.asp?pagina=12&id=396.> Acesso em 10 nov. 2004
1
2
3
4
5
Teixeira Filho, Manoel Antonio. Sistema dos Recursos Trabalhistas. 10.ed. São Paulo: LTr, p. 74.
Teixeira Filho, Manoel Antonio. Sistema dos Recursos Trabalhistas. 10.ed. São Paulo: LTr, p. 75.
Nascimento, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 21.ed. São Paulo: Saraiva, p. 491.
Martins, Sérgio Pinto. Direito Processual do Trabalho.19.ed. São Paulo: Atlas, p. 355.
Nery Júnior, Nelson. Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribu-
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RECURSOS TRABALHISTAS
Lucélia Marques de Almeida Prado
Aluno matriculado no 5º ano da Faculdade de Direito da Instituição Toledo de Ensino de Bauru.
Orientador: Professor Fábio Alexandre Coelho
RESUMO
Este trabalho visa a demonstrar a importância dos recursos, que têm por escopo corrigir a iniqüidade ou a injustiça das decisões, salientando, no entanto, que
nem sempre o último julgar significa o mais acertado para o caso concreto. Desta
forma, tem por objetivo mostrar, de forma singela, a Teoria Geral dos Recursos e as
modalidades existentes no processo do trabalho.
Palavras-chave: Processo do trabalho, Espécies recursais, Princípios.
INTRODUÇÃO: CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA
São vários os conceitos formulados pelos doutrinadores sobre “Recurso”.
Segundo Manoel Antonio Teixeira Filho
o vocábulo recurso pode ser utilizado na linguagem processual em
um sentido amplo, genérico, a significar todos os meios utilizados
pelas partes, ou por terceiro, com o propósito de defender o seu direito, sendo assim, poderiam ser compreendidas nessa acepção
lata a ação, a contestação, a exceção, a reconvenção, as medidas
preventivas, etc.1
Por outro lado, num sentido estrito, o ilustre doutrinador define recurso como
o direito que a parte vencida ou terceiro possui de, na mesma relação
processual, e atendidos os pressupostos de admissibilidade, submeter a
matéria contida na decisão recorrida ao reexame, pelo mesmo órgão
prolator ou por outro órgão distinto e hierarquicamente superior, com
6
Coelho, Fábio Alexandre. Teoria Geral do Processo. 1.ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. p. 217.
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o objetivo de anulá-la, ou de reformá-la, total ou parcialmente.2
Para Amauri Mascaro Nascimento os recursos “constituem um instrumento
assegurado aos interessados para que, vencidos, possam pedir aos órgãos jurisdicionais um novo pronunciamento sobre a questão decidida”.3
No dizer sempre expressivo de Sérgio Pinto Martins, recurso “é a possibilidade de provocar o reexame de determinada decisão, pela autoridade hierarquicamente superior, visando à obtenção de sua reforma ou modificação”.4
Nelson Nery Júnior define recurso como
o remédio processual que a lei coloca à disposição das partes, do Ministério Público ou de um terceiro interessado a fim de que a decisão
judicial possa ser submetida a novo julgamento por órgão de jurisdição hierarquicamente superior, em regra, àquele que a proferiu.5
Portanto,
recurso é o meio pelo qual a lei possibilita à parte vencida, terceiro interessado ou ao Ministério Público impugnar a decisão proferida, a fim de que esta seja reformada, anulada, esclarecida ou integrada, pelo mesmo órgão prolator ou em regra por outro hierarquicamente superior.
Conforme é sabido, o direito de recorrer resulta da existência de previsão legal. Nesse sentido, a Consolidação das Leis do Trabalho trata dos Recursos Trabalhistas em seu Capítulo VI, nos artigos 893 e seguintes.
Quanto à natureza jurídica dos recursos diverge a doutrina. Uma parte sustenta que é uma ação diversa e autônoma em relação àquela em que as partes estão envolvidas e outra parte afirma que é uma forma de impugnação dentro do mesmo
processo em que a decisão recorrida foi proferida.
Concordamos que é uma impugnação endoprocessual, sendo assim uma extensão do direito de ação ou de defesa, apenas prolongando a vida do processo e a
litispendência existente.
OBJETIVOS E FUNDAMENTOS DO DIREITO DE RECORRER
Os recursos podem ter como objetivos a reforma da decisão impugnada ou a
invalidação da mesma. Pode ainda ter como finalidade o esclarecimento da decisão
proferida, quando esta for obscura ou contraditória, ou sua respectiva integração,
quando for omissa.
Os fundamentos do direito de recorrer podem ser jurídicos ou psicológicos.
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Vejamos:
Erro ou má-fé do Juiz
Todo ser humano é falível, tem a possibilidade de errar. Assim, o juiz pode
julgar mal, ou seja, proferir uma decisão que não seja a mais acertada para o caso
concreto. De outro lado, pode também agir com má-fé. Por tais motivos, é que a
lei possibilita a revisão da decisão, em regra, por outro órgão hierarquicamente
superior ao que a proferiu.
Alguns doutrinadores fundamentam o direito de recorrer na possibilidade de
reexame por juízes mais experientes. No entanto, nem sempre as decisões proferidas por órgãos superiores tendem a ser as mais adequadas para determinada situação, uma vez que geralmente o exame mais aprofundado acerca da avença foi feito
pelo juiz de 1º grau, o qual teve contato direto com a prova, testemunhas, etc. Descabida, portanto, tal fundamentação.
Parte da doutrina entende, ainda, que a possibilidade do reexame por órgãos
superiores faz com que os juízes de primeiro grau sejam mais cautelosos ao proferir determinada decisão. Tal argumentação é inegável, porém não se pode olvidar
que existem posicionamentos diferentes e a independência dos juízes em suas manifestações deve ser respeitada.
Tendência do ser humano em não se conformar com uma única decisão
contrária ais seus interesses
É do próprio psicológico do ser humano o inconformismo diante de uma única decisão proferida que se oponha aos seus objetivos. Daí a oportunidade dos interessados recorrerem quando entenderem que o único julgamento foi injusto.
Duplo grau de jurisdição
O princípio do Duplo Grau de Jurisdição está previsto, de forma implícita na
Carta Magna, nos incisos II e III, do artigo 102, quando se estabelece que os tribunais do País terão competência para julgar causas originariamente e em grau de recurso.
De outra parte, importante transcrever o entendimento do Professor Fábio
Alexandre Coelho:
De acordo com o princípio do duplo grau de jurisdição, toda decisão teria que pelo menos receber duas apreciações, sendo que a segunda deveria ser realizada por um órgão hierarquicamente superior. Cumpre notar, contudo, que o Supremo Tribunal Federal
entendeu que o duplo grau de jurisdição não é um princípio cons-
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titucional, o que permite que a legislação venha a afastá-lo. Aliás,
a Lei n. 5.584/1970 afasta o duplo grau de jurisdição em matéria
trabalhista quando o valor dado à causa (conflito) não é superior
a dois salários mínimos. A regra, porém, é a existência do duplo
grau de jurisdição.6
Mas quais são as finalidades do princípio do duplo grau de jurisdição?
O duplo grau visa a evitar o abuso por parte dos magistrados, o que poderia
ocorrer caso não houvesse a possibilidade de reexame das decisões por outro órgão
do Poder Judiciário. Além disso, em razão da falibilidade humana, não seria razoável
pretender que fosse o juiz um homem imune de falhas, capaz de decidir de modo
definitivo sem que ninguém pudesse questioná-lo.
Acrescenta-se, ainda, que é próprio do ser humano não se conformar com
uma única decisão que lhe seja desfavorável.
Entretanto, são muitas as oposições a esse princípio. Vejamos:
Os recursos retardam o andamento natural do processo, ainda mais quando
utilizado pelo litigante de má-fé.
Ademais, a confirmação da decisão impugnada por outro órgão do poder Judiciário resultaria na desnecessária atividade deste e sua eventual reforma poderia
implicar o reconhecimento de erro daquela decisão ou apenas no conflito de diferentes entendimentos.
Por fim, é oportuno dizer que concordamos com a importância da existência do Duplo Grau de Jurisdição para que haja a garantia fundamental de uma
boa justiça.
Princípios recursais
Vários são os princípios relacionados aos Recursos. Veremos alguns deles a seguir.
Uni-recorribilidade
Esse princípio é também conhecido como Singularidade Recursal ou Unicidade.
Estabelece que só é possível a interposição de um recurso de cada vez. Nesse
sentido, é impossível a simultaneidade da interposição de recursos, podendo apenas haver a sucessividade.
A discussão doutrinária resulta dos Embargos de Declaração serem ou não
considerados uma exceção ao Princípio da Unicidade.
Parte dos doutrinadores sustenta que a interposição dos embargos declaratórios não representa uma exceção ao princípio em testilha, uma vez que não o consideram recurso.
Ao contrário disso, outra parte da doutrina, com a qual concordamos, fun-
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damenta que os Embargos Declaratórios são uma exceção ao presente princípio,
haja vista que podem ser interpostos de quaisquer decisões, desde que presentes os pressupostos dos incisos I e II, do artigo 535 do Código de Processo Civil.
Fungibilidade
O princípio da fungibilidade possibilita a aceitação de um recurso erroneamente interposto como se fosse o correto para o caso concreto.
Convém ressaltar, porém, que tal recurso só será aproveitado se for tempestivo.
Vale lembrar, ainda, que existem algumas regras para que o presente princípio
possa ser utilizado. A saber:
a) dúvida sobre qual o recurso cabível para determinado caso;
b) inexistência de erro grosseiro;
c) tempestividade quanto ao recurso que deveria ter sido interposto.
Variabilidade
Em primeiro lugar, cumpre consignar que não há de se confundir o princípio
da variabilidade com o princípio da fungibilidade.
O princípio em tela decorre da desistência do recurso interposto pela parte,
substituindo-o por outro, desde que respeitado o prazo legal.
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Algumas observações quanto ao processo do trabalho
A) DAS DECISÕES INTERLOCUTÓRIAS
Diferentemente do que ocorre no processo civil, as decisões interlocutórias
no processo do trabalho não são recorríveis de imediato.
O § 1º, do artigo 893 da Consolidação das Leis do Trabalho dispõe que:
Os incidentes do processo serão resolvidos pelo próprio Juízo ou
Tribunal, admitindo-se a apreciação do merecimento das decisões
interlocutórias somente em recurso da decisão definitiva.
Convém ressaltar que as decisões interlocutórias na Justiça do Trabalho só serão recorríveis de imediato quando terminativas do feito.
Assim, consoante o Enunciado 214 do Tribunal Superior do Trabalho temos:
As decisões interlocutórias, na Justiça do Trabalho, só são recorríveis de imediato quando terminativas do feito, podendo ser impugnadas na oportunidade da interposição do recurso contra decisão
definitiva, salvo quando proferidas em acórdão sujeito a recurso
para o mesmo Tribunal.
B) INEXIGIBILIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO
No processo do trabalho, prevalece a regra estampada no artigo 899 da CLT,
de que os recursos podem ser interpostos por simples petição, não necessitando,
portanto, de fundamentação.
No entanto, essa regra não é absoluta, uma vez que nos recursos técnicos
(aqueles que precisam demonstrar violação de lei ou divergência jurisprudencial)
deve haver fundamentação. Exemplos: Recurso de Revista e Embargos.
Concluindo, essa interpretação quanto à inexigibilidade de fundação só é válida para os casos em que ocorre o ius postulandi, ou seja, que empregado ou empregador estiverem atuando sem advogado.
C) EFEITOS DOS RECURSOS
Conforme o disposto no artigo 899 da CLT, “os recursos serão interpostos por
simples petição e terão efeito meramente devolutivo...”.
Como se nota, a regra no processo do trabalho é que os recursos terão apenas efeito devolutivo, salvo o disposto no artigo 14 da Lei nº 10.192/01:
O recurso interposto de decisão normativa da Justiça do Trabalho
7
8
Nascimento, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 21.ed. São Paulo: Saraiva, p. 497.
Martins, Sérgio Pinto. Direito Processual do Trabalho.19.ed. São Paulo: Atlas, p. 372.
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terá efeito suspensivo, na medida e extensão conferidas em despacho do Presidente do Tribunal Superior do Trabalho.
D) UNIFORMIDADE DOS PRAZOS RECURSAIS
O artigo 6º da Lei nº 5.584/70 uniformizou o prazo dos recursos no processo do
trabalho em 8 (oito) dias. A exceção ocorre no caso do Recurso Extraordinário, que deverá ser interposto no prazo de 15 (quinze) dias (artigo 508 do CPC) e dos Embargos
de Declaração que deverão ser interpostos em 5 (cinco) dias (artigo 897-A da CLT).
Juízo de admissibilidade
O juízo de admissibilidade é feito tanto no juízo a quo quanto no ad quem.
Através do juízo de admissibilidade, o juízo a quo e o ad quem examinarão se
em determinado recurso estão presentes os pressupostos objetivos e subjetivos.
Necessário se faz ressaltar que o posicionamento do primeiro não vincula de
forma alguma o segundo.
Nessa senda, pode o juízo de segundo grau entender de forma diversa do órgão a quo.
Pressupostos recursais
Os pressupostos recursais se subdividem em objetivos e subjetivos.
A) OBJETIVOS
São pressupostos objetivos: previsão legal, adequação, tempestividade, preparo e representação. A saber:
B) PREVISÃO LEGAL
Em primeiro lugar, cumpre observar que o recurso deve estar previsto em lei.
A Consolidação das leis do Trabalho especifica os recursos cabíveis no processo do trabalho em seu artigo 893. Ademais, a Constituição Federal, no inciso III, de
seu artigo 102, discorre sobre o cabimento do Recurso Extraordinário no processo
do trabalho.
C) ADEQUAÇÃO
Conforme já mencionado, para cada ato passível de impugnação existe um
respectivo recurso. Dessa forma, o recurso interposto pela parte tem que ser o cabível para a decisão atacada.
D) TEMPESTIVIDADE
A lei estabelece prazos para a interposição dos recursos.
No processo do trabalho, a regra é que os recursos deverão ser interpostos no
prazo de oito dias.
9
Teixeira Filho, Manoel Antonio. Sistema dos Recursos Trabalhistas. 10.ed. São Paulo: LTr, p. 147.
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Importante ressaltar que o Decreto-lei nº 779/69 dispõe que, para os entes públicos, esses respectivos prazos serão contados em dobro; portanto, será de 16 dias.
E) PREPARO
Consiste no pagamento prévio das despesas relativas ao processamento do recurso e depósito recursal.
O preparo se subdivide em custas e depósito, os quais deverão ser pagos e
comprovados dentro do prazo recursal (artigo 789, da CLT e 7º da Lei 5584/70).
F) CUSTAS
A regra é que quem paga as custas é a parte vencida. No caso de a decisão ser
procedente, somente em parte para o Autor, caberá ao Réu o pagamento das custas.
No entanto, será admitida a divisão das custas nas hipóteses previstas nos §§
3º (acordos) e 4º (dissídios coletivos) do artigo 789 da CLT.
O pagamento das custas deverá ser feito mediante a guia Darf e comprovado
no prazo de oito dias, sob pena do recurso ser declarado deserto.
O artigo 790-A da CLT estipula quem está isento de tal pagamento:
São isentos do pagamento de custas, além dos beneficiários de justiça gratuita:
I – a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e respectivas autarquias e fundações públicas federais, estaduais ou municipais que não explorem atividade econômica;
II – o Ministério Público do Trabalho
Parágrafo único. A isenção prevista neste artigo não alcança as
entidades fiscalizadoras do exercício profissional, nem exime as
pessoas jurídicas referidas no inciso I da obrigação de reembolsar
as despesas judiciais realizadas pela parte vencedora.
G) DEPÓSITO
Reza o § 1º, do artigo 899 da Consolidação das Leis do Trabalho, que todos os
recursos, até mesmo o extraordinário, só serão admitidos mediante o depósito do
valor da condenação:
Sendo a condenação de valor até 10 (dez) vezes o valor de referência regional, nos dissídios individuais, só será admitido o recurso,
inclusive o extraordinário, mediante prévio depósito da respectiva
importância. Transitada em julgado a decisão recorrida, ordenarse-á o levantamento imediato da importância de depósito, em favor da parte vencedora, pós simples despacho do juiz.
Tal depósito diz respeito apenas ao empregador e deverá ser feito na conta
vinculada do FGTS do empregado. Contudo, inexistindo conta vinculada, esta deve-
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rá ser aberta em nome do empregado ou então deverá ser realizado um depósito
em juízo.
Por fim, a natureza jurídica do depósito recursal é de garantia recursal e tem
como objetivo impedir a interposição de recursos protelatórios e facilitar a execução da sentença.
H) REPRESENTAÇÃO
Ao contrário do processo civil, a CLT, em seus artigos 791 e 839, deixa claro
que não há necessidade da parte estar assistida por advogado no processo do trabalho, podendo exercer o ius postulandi.
Subjetivos
Os pressupostos subjetivos encontram-se divididos em: Legitimidade, Capacidade e Interesse em Recorrer.
A) LEGITIMIDADE RECURSAL
O que vem a ser a legitimidade recursal?
Conforme Amauri Mascaro Nascimento, é
a adequação da pessoa que quer recorrer com a autorizada pela
lei para que o faça. Desse modo, ilegitimidade para recorrer é a
inexistência dessa adequação e legitimidade para recorrer é a
existência dessa mesma compatibilização. Parte ilegítima é aquela a que falta a legitimação.7
Sobre a matéria, estabelece o artigo 499 do Código de Processo Civil que:
O recurso pode ser interposto pela parte vencida, pelo terceiro prejudicado e pelo Ministério Público.
Segundo Sérgio Pinto Martins
a parte vencedora poderá recorrer. Exemplo: quando o juiz extingue o processo sem julgamento de mérito, por inépcia. A parte vencedora (o réu) pode interpor recurso, pois caso contrário o reclamante poderá ingressar com a mesma ação.8
De se salientar ainda que muito se confunde, a respeito da legitimidade para
recorrer, quanto à figura do preposto. No entanto, este não é parte na relação processual, não havendo, portanto, que se falar em sua legitimidade.
Vale lembrar também que da dicção do artigo 898 da CLT extrai-se que no caso
das decisões proferidas em dissídio coletivo que afete empresa de serviço público,
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ou em qualquer caso, das proferidas em revisão, são legitimados para recorrer, além
dos interessados, o Presidente do Tribunal e a Procuradoria da Justiça do Trabalho.
Dispõe o artigo 8º da Lei nº 5584/70 que:
Das decisões proferidas nos dissídios coletivos poderá a União interpor recurso, o qual será sempre recebido no efeito suspensivo
quanto à parte que exceder o índice fixado pela política salarial
do Governo.
Quanto ao Ministério Público do Trabalho, este só poderá recorrer nos casos
em que for parte no processo ou atuar como fiscal da lei (inciso VI do artigo 83 da
Lei Complementar nº 75/93).
São, também, legitimados para recorrer os Sindicatos, uma vez que podem
ajuizar ações, inclusive como substitutos processuais.
É possível, ainda, o INSS recorrer da sentença que fixa contribuições previdenciárias, como sucede nos acordos. Assim, o parágrafo único, do artigo 831 da CLT estabelece que o termo de acordo é irrecorrível, salvo para a Previdência Social quanto às contribuições que lhe forem devidas.
Portanto, são legitimados para Recorrer: a parte vencida, o terceiro prejudicado, e o Ministério Público, além do Presidente do Tribunal, Procuradoria da Justiça
do Trabalho, União, os Sindicatos e o INSS nas situações acima mencionadas.
B) CAPACIDADE
Além da legitimidade, outro requisito é extremamente importante para que a
parte possa recorrer. Trata-se da capacidade. Esta é a aptidão para desempenhar, por
si só, o exercício do direito. Assim, não havendo capacidade a pessoa não poderá recorrer. É o que ocorre com os absolutamente incapazes que devem ser representados por seus pais, tutores e curadores, consoante o disposto no artigo 8º do CPC.
C) INTERESSE
Caracteriza-se o interesse quando o recorrente possa esperar, em tese, do julgamento do recurso, situação mais favorável do que aquela trazida na decisão impugnada.
No mesmo sentido se direciona a lição de Manoel Antonio Teixeira Filho:9
Regra genérica, o interesse radica na situação desfavorável em
que foi lançada a parte recorrente pelo pronunciamento jurisdicional, motivo por que as leis processuais lhe concedem a possibilidade de tentar elidir, mediante os meios recursais, esse estado de
desfavorabilidade.
10 Martins, Sérgio Pinto. Direito Processual do Trabalho.19.ed. São Paulo: Atlas, p. 400.
11 Amauri Mascaro Nascimento Apud Sérgio Pinto Martins. Direito Processual do Trabalho.19.ed. São Paulo: Atlas,
p. 400.
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(...) o interesse, nesse caso, deriva não da sucumbência de uma ou de
ambas as partes (que, segundo a doutrina pressupõe um gravame ou
prejuízo ocasionado pela decisão), mas, apenas, da situação jurídica
desfavorável trazida pelo pronunciamento jurisdicional.
Recursos em espécie
RECURSO ORDINÁRIO
O Recurso Ordinário tem previsão legal no artigo 895 da CLT, sendo cabível:
a) das decisões definitivas das Varas e Juízos, no prazo de 8 (oito) dias;
b) das decisões definitivas dos Tribunais Regionais, em processo de sua competência originária, no prazo de 8 (oito) dias, tais como mandado de segurança, ação rescisória, ação anulatória, dissídios coletivos, habeas corpus (lei 8038/90, art. 30).
Existe também o Recurso Ordinário oponível das decisões terminativas quando se extingue o processo sem julgamento do mérito.
O Recurso Ordinário devolve o conhecimento da matéria impugnada na lide
ao Tribunal Regional. Não possui efeito suspensivo, pois segue a regra geral do recebimento do recurso apenas no efeito devolutivo (artigo 899 da CLT).
Pode ser interposto por simples petição – mera transcrição de peças anteriores (defesa), não necessitando de fundamentação.
Quanto ao depósito recursal, se o Recurso Ordinário tiver sido interposto pela
Reclamada (empresa), será obrigatória sua realização, no valor da condenação, até o
limite fixado periodicamente pelo TST. Caso tenha sido interposto pelo reclamante
não há necessidade de depósito recursal. Pode haver depósito de custa, caso haja
condenação específica.
O depósito deve ser efetuado no mesmo prazo da interposição do Recurso, o
mesmo ocorrendo com o pagamento das custas, ou seja, no prazo de oito dias.
A interposição de recurso ordinário pelo vencido proporciona ao vencedor da
demanda a apresentação de contra-razões, no prazo de oito dias de sua intimação.
RECURSO DE REVISTA
O Recurso de Revista é cabível das decisões proferidas pelos tribunais regionais do trabalho (acórdãos) em grau de recurso ordinário. O art. 896 da CLT estabelece suas hipóteses de cabimento e requisitos.
Ao contrário do que falamos anteriormente, para o Recurso de Revista, não
será aplicada a regra geral do artigo 899 da CLT, haja vista a necessidade para o seu
conhecimento de se demonstrar que:
a) deram ao mesmo dispositivo de lei federal interpretação da que lhe houver
dado outro Tribunal Regional, no seu Pleno ou Turma, ou a Seção de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, ou a Súmula de Jurisprudência Uniforme
dessa Corte (alínea “a” do artigo 896 da CLT);
A respeito da matéria, o Enunciado 337 do TST determina que, para a comprovação da divergência justificadora do recurso, é necessário que o recorrente in-
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dique e especifique o acórdão paradigma (certidão, cópia autenticada, fonte oficial
ou repositório autorizado) e transcreva os trechos que configurem tais divergências.
b) deram ao mesmo dispositivo de lei estadual, Convenção Coletiva de Trabalho,
Acordo Coletivo, sentença normativa ou regulamento empresarial de observância obrigatória em área territorial que exceda a jurisdição do Tribunal Regional prolator da decisão recorrida interpretação divergente (alínea “b” do artigo 896 da CLT);
c) houve violação literal de dispositivo de lei federal ou afronta direta e literal
à Constituição Federal (alínea “c” do artigo 896 da CLT).
De outro lado, mostraremos, a seguir, algumas hipóteses de não-cabimento
do Recurso de Revista. A saber:
a) o Enunciado 126 do TST dispõe que: “Incabível o recurso de revista ou de
embargos (arts. 896 e 894, letra “b” da CLT) para reexame de fatos e provas (Res.
Adm. n. 84/81, de 24.9.81, DJ 6.10.81)”.
b) o Enunciado 221 do TST estabelece que:
Interpretação razoável de preceito de lei, ainda que não seja a melhor, não dá ensejo à admissibilidade ou ao conhecimento dos recursos de revista ou de embargos com base, respectivamente, nas
alíneas “b” dos artigos 896 e 894 da Consolidação das Leis do Trabalho. A violação há que estar ligada à literalidade do preceito
(Res. n. 14/85, 12.9.85, DJ 19.9.85).
c) o Enunciado 333 do TST que estabelece que “Não ensejam recursos de revista ou de embargos decisões superadas por iterativa, notória e atual jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho”.
d) Não é cabível Recurso de Revista contra acórdão em Agravo de Instrumento.
Oportuno se torna dizer agora que o Recurso de Revista tem por objetivo uniformizar a jurisprudência e a interpretação das leis, e deverá ser interposto no prazo de 8 (oito) dias para o Tribunal Superior do Trabalho.
Ademais, cumpre observar que possui apenas efeito devolutivo, consoante o
§ 1º, do artigo 896 da CLT, com redação dada pela lei nº 9756/98.
No que tange ao preparo, para interpor o presente recurso a parte deverá fazer o depósito da condenação, sob pena de deserção.
Mister se faz ressaltar, ainda, que
nas causas sujeitas ao procedimento sumaríssimo, somente será
admitido recurso de revista por contrariedade a súmula de jurisprudência uniforme do Tribunal Superior do Trabalho e violação
direta da Constituição da República (§ 6º, artigo 896 da CLT).
AGRAVO DE PETIÇÃO
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O artigo 897, alínea “a” da CLT, disciplina o Agravo de Petição, estabelecendo
para sua interposição o prazo de 8 (oito) dias.
Este recurso tem apenas efeito devolutivo e visa a atacar as decisões do juiz
ou Presidente, somente nas execuções.
Contudo, devem ser respeitadas as regras gerais de que não são cabíveis
quaisquer recursos dos despachos de mero expediente (artigo 504 do CPC) e das
decisões interlocutórias no processo do trabalho, salvo quando terminativas do feito (§ 1º do artigo 893 c/c § 2º do artigo 799 da CLT e Enunciado 214 do TST).
Consoante abalizado magistério de Sérgio Pinto Martins “o agravo de petição
caberá, portanto, da decisão que julga os embargos do devedor, de terceiros, à
praça, à arrematação”.10
Não se pode deixar de registrar que Amauri Mascaro Nascimento admite o
agravo de petição contra o despacho que determina o levantamento dos depósitos
na execução ou que nega tal levantamento.11
Quanto ao depósito recursal, a Lei nº 8177/91, em seu artigo 40, deixou claros
os recursos que deverão fazê-lo, tais como o Recurso Ordinário, o Recurso de Revista,
Embargos etc. Assim, não tendo se manifestado quanto ao Agravo de Petição, este estará isento do depósito recursal. No caso de já haver penhora na execução, continua
tal entendimento, haja vista que a execução já está garantida com a penhora.
Anota-se, por fim, que, quanto às custas na execução, estas serão pagas somente
ao final, não sendo necessário seu pagamento para a interposição do Agravo de Petição.
EMBARGOS NO TST
Estão previstos no artigo 894 da CLT e tem como objetivo a uniformização da
matéria dentro do próprio Tribunal julgador ou de decisões não unânimes em processos de competência originária do TST.
São cabíveis das decisões das Turmas contrárias à letra da lei federal, ou que
divergirem entre si, ou da decisão proferida pelo Tribunal Pleno, salvo se a decisão
recorrida estiver em consonância com súmula de jurisprudência uniforme do TST
(art. 894, da CLT).
O prazo para sua interposição é de 8 (oito) dias e segundo o artigo 40 da Lei nº
8177/91, com redação dada pela lei nº 8542/92 há necessidade do depósito recursal.
Importante ressaltar, ainda, o Enunciado 183, que estabelece que não cabem
embargos para o pleno das decisões das Turmas em Agravo de Instrumento contra
despacho indeferidor do Recurso de Revista.
AGRAVO DE INSTRUMENTO
O agravo de instrumento tem previsão legal na alínea “b” do artigo 897 da CLT,
sendo oponível às decisões que denegam o processamento aos recursos.
Diferencia-se do agravo de instrumento utilizado no Processo Civil, uma vez
que este é cabível para impugnar despachos, ou qualquer decisão, até mesmo as interlocutórias. Já, no processo do trabalho, visa apenas a destrancar o recurso, ao
qual foi sustada a subida.
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O prazo para a interposição do Agravo de Instrumento é de 8 dias e não será
necessário o depósito recursal, uma vez que a lei nº 8177/91, em seu artigo 40, não
mencionou acerca da obrigatoriedade do depósito para o respectivo Recurso.
Também não será necessário o pagamento das custas.
O agravo de instrumento possui apenas efeito devolutivo e será julgado pelo
Tribunal que seria competente para conhecer o recurso cuja interposição foi denegada (§ 4º, artigo 897 da CLT).
Ressalta-se, por fim, que o § 5º do referido artigo determina as peças necessárias para a formação do instrumento, sob pena de não conhecimento.
AGRAVO REGIMENTAL
O Agravo Regimental encontra-se previsto no Regimento Interno dos Tribunais e, segundo o artigo 338 do Regimento Interno, seu prazo é 8 (oito) dias.
Este recurso visa, assim como o Agravo de Instrumento, a destrancar o recurso ao qual foi negado prosseguimento.
Tem como finalidade a revisão de tal decisão, que poderá ser feita pelo mesmo órgão ou outro hierarquicamente superior.
Possui efeito devolutivo numa 1ª etapa e depois devolutivo e modificativo
numa 2ª.
Ademais, não é necessário o depósito recursal para o Agravo Regimental.
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO
Os Embargos de Declaração estão previstos no artigo 897-A da CLT e devem
ser interpostos no prazo de 5 (cinco) dias, tanto no 1º quanto no 2º grau (artigo 536
do CPC e 897-A da CLT).
São cabíveis das decisões que contiverem obscuridade ou contradição, ou
quando for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal.
Estatui o artigo 538 do CPC que a interposição dos referidos embargos interrompe o prazo para a interposição de qualquer recurso.
Os Embargos de Declaração serão julgados pelo próprio juiz que proferiu a
decisão e seu julgamento deverá ocorrer na 1ª audiência após sua apresentação,
quando se der em 1º grau. Já quando em 2º grau, os Embargos serão julgados na 1ª
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sessão ulterior à sua apresentação.
RECURSO ADESIVO
O Recurso Adesivo é admitido no Processo do Trabalho, consoante o disposto nos artigos 769 da CLT e 500 do CPC.
É cabível o Recurso de Revista, no processo do trabalho, relativamente aos recursos ordinário, de revista, de embargos (no TST), extraordinário e agravo de petição, não sendo necessário que a matéria nele veiculada seja relacionada com a do
recurso interposto pela parte contrária (Enunciado 283 do TST).
Tal recurso possui dois requisitos necessários para a sua admissibilidade:
a) sucumbência recíproca;
b) a parte deveria ter condições de recorrer independentemente.
O prazo para sua interposição é de 8 (oito) dias, seguindo a regra geral dos
prazos no processo do trabalho.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
É admitido o Recurso Extraordinário no Processo do Trabalho, conforme dispõe o inciso III, artigo 102 da Constituição Federal, in verbis:
Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda
da Constituição, cabendo-lhe:
I – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas
em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
a)contrariar dispositivo desta Constituição;
b)declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;
c)julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da
Constituição.
O prazo para interposição desse recurso é de 15 (quinze) dias (artigo 508 do
CPC) e este deverá ser apresentado perante o Presidente ou Vice-Presidente do TST
(artigo 541 do CPC). Possui efeito apenas devolutivo.
REFERÊNCIAS
Amauri Mascaro Nascimento Apud Sérgio Pinto Martins. Direito Processual do Trabalho.19.
ed. São Paulo: Atlas.
Coelho, Fábio Alexandre. Teoria Geral do Processo. 1. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.
Martins, Sérgio Pinto. Direito Processual do Trabalho.19. ed. São Paulo: Atlas.
Nascimento, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 21. ed. São Paulo: Saraiva.
Nery Júnior, Nelson. Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos. 5. ed. São Paulo:
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Revista dos Tribunais.
Teixeira Filho, Manoel Antonio. Sistema dos Recursos Trabalhistas. 10. ed. São Paulo: LTr.
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DIREITOS HUMANOS E A INCLUSÃO DO IDOSO
Maria Carolina Nogueira Ribeiro
Discente. FDB – Instituição Toledo de Ensino – ITE – Bauru – SP
Orientador: Lister Porto Amaral Franco
Docente – FDB – Instituição Toledo de Ensino – ITE – Bauru – SP
RESUMO
Os Direitos Humanos passaram por um longo processo evolutivo. Não se
sabe, ao certo, seu berço, mas seus sinais começaram a surgir antes mesmo de
Cristo. E, neste imenso processo, muitas criações, mudanças e adaptações foram
acontecendo. Órgãos e legislações, nacionais e internacionais, nasceram, com a
finalidade de garantir a todos os excluídos, inclusive aos idosos a sua inclusão
social.
Palavras-chave: Evolução, Direitos Humanos, Exclusão, Inclusão, Idoso.
INTRODUÇÃO
Direitos Humanos são aqueles chamados fundamentais à dignidade da pessoa
humana. Têm por característica principal o fato de serem comuns a qualquer ser humano, em virtude de sua própria natureza.
O reconhecimento universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém – nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação –
pode considerar-se superior aos demais.
Entretanto, se hoje a idéia dos direitos humanos fundamentais parece natural
e, como se sabe, o mundo todo com suas diferentes culturas, consagra direitos dessa classe, os quais não foram sempre assim.
A evolução histórica da concepção de dignidade humana e igualdade, emergiu, gradualmente, das lutas que o homem travou por sua própria emancipação e
das transformações das condições de vida que essas lutas produzem.
Para se fazer uma breve incursão histórica, retornamos ao período em que
HAMURÁBI, rei da Babilônia e fundador do Império Babilônico, fez editar o primeiro código de leis escrito de que se tem notícia, o CÓDIGO DE HAMURÁBI.
Este código defendia, basicamente, a vida e o direito de propriedade; mas
também contemplava a honra, a dignidade, a família e a supremacia das leis em re-
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lação aos governantes.
À partir desse primeiro código, instituições sociais como a religião e a democracia, ou concepções como a filosofia, contribuíram para humanizar os sistemas legais. Segundo o entendimento geral da doutrina, mais adiante, tem-se a origem de
tal categoria de direitos intrinsecamente ligada aos movimentos revolucionários e
sociais que abalaram o panorama mundial, principalmente, os ocorridos na Europa,
ente os quais podemos citar a promulgação da célebre Magna Carta, escrita na Inglaterra no ano de 1215, pela qual o Rei João Sem Terra reconhecia alguns direitos
dos nobres, limitando o poder do monarca.
Depois, com a Revolução Francesa, em 1789, se acentuaram os movimentos e
documentos escritos que buscavam garantir aos cidadãos os seus direitos elementares em face da atuação do poder público. Um dos documentos mais conhecidos neste sentido foi a denominada Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789, produto daquela revolução ocorrida em território francês.
Pouco antes disso, porém, outro documento entrava para a história, como resultado de outra revolução, a Americana. A Declaração de Virgínia, elaborada em
1776, procurava estabelecer os direitos fundamentais do povo norte-americano, tais
como a liberdade, a igualdade, eleição de representantes etc.
Os Direitos Humanos resultaram, também, de uma evolução do pensamento
filosófico, jurídico e político da Humanidade.
Já, desde a antigüidade que os homens refletiam sobre sua própria natureza e
concluíam que há direitos inerentes à pessoa humana que transcendem as ordens normativas. Assim, se manifestaram os filósofos gregos e, quase ao mesmo tempo, com
Buda na Índia e de Confúcio na China, ou ainda, do próprio Jesus de Nazaré em Israel.
Na Idade Média, a idéia do direito ou de lei natural, autônoma, que poderia
não ser revelação divina, a qual, explicou Santo Tomás de Aquino (século XIII), que
entendeu ser ‘lei natural’, aquela fração da ordem imposta pela mente de Deus, governador do universo.
Na era iluminista, destacam-se os pensamentos dos contratualistas HOBBES,
LOCKE, MONTESQUIEU e ROSSEAU e ainda do racionalista EMANUEL KANT.
Com a Revolução Industrial, delineou-se um novo Estado, capitalista e liberal,
o qual SEGADAS VIANNA descreveu a situação da época.
No movimento renascentista, os pontos altos foram as idéias de NIETZSCHE.
E, em 1852, HENRI DUNANT fundou a Sociedade Suíça da Cruz Vermelha.
De cunho assistencialista e posteriormente sindicalista, proporcionou o socialismo materialista de KARL MARX e FRIEDRICH ENGELS.
Houve, também, a ascensão dos regimes totalitaristas, em oposição ao Estado
Liberal, na Alemanha, com HITTLER, e na Itália, com MUSSOLINI. Foi então, em
1939, que eclodiu a 2ª Grande Guerra.
Assim, nascem, com o fim da guerra, as Nações Unidas, cujo sistema de proteção aos direitos humanos vigora até hoje.
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Agora, a história dos Direitos Humanos no Brasil está vinculada, de forma direta com a história das constituições brasileiras. Portanto, para se falar a respeito de
tal assunto, vale lembrar, a história das várias Constituições no Brasil e a importância que as mesmas deram aos Direitos Humanos.
Primeiramente, as reivindicações de liberdade, culminaram com a consagração dos Direitos Humanos, pela Constituição Imperial que, apesar de autoritária
(por concentrar uma grande soma de poderes nas mãos do imperador), revelou-se
liberal no reconhecimento de direitos.
Portanto, a tradição constitucional brasileira revela que todas as suas Constituições sem exceção, enunciavam Declarações de Direitos. Senão vejamos:
CONSTITUIÇÃO DE 1891:
TÍTULO IV: DOS CIDADÃOS BRASILEIROS
SEÇÃO II: DECLARAÇÕES DE DIREITOS
CONSTITUIÇÃO DE 1934:
TÍTULO III: DA DECLARAÇÃO DE DIREITOS
CAPÍTULO II: DOS DIREITOS E DAS GARANTIAS INDIVIDUAIS
CONSTITUIÇÃO DE 1937:
DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
CONSTITUIÇÃO DE 1946:
TÍTULO IV: DA DECLARAÇÕES DE DIREITOS
CAPÍTULO II: DOS DIREITOS E DAS GARANTIAS INDIVIDUAIS
CONSTITUIÇÃO DE 1967:
TÍTULO II: DA DECLARAÇÃO DE DIREITOS
CAPÍTULO IV: DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
EMENDA CONSTITUCIONAL DE 1969:
TÍTULO II: DA DECLARAÇÃO DE DIREITOS
CAPÍTULO IV : DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
Da Constituição de 88, pode-se perceber a evolução dos Direitos Humanos
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com a inclusão desses no sistema interno de proteção.
Existem, também, outras legislações infraconstitucionais que fazem menção
aos Direitos Humanos, como o Código Civil e Penal.
Portanto, não existe tratado ou outro documento internacional referente a direitos humanos e cidadania que não tenha como objetivo a eliminação das desigualdades sociais, a construção de uma sociedade para TODOS. Trata-se de um compromisso mundial, não mais pela integração (união de grupos diferentes, sem que a sociedade precise mudar para receber os “diferentes”, pois estes é que tentam se
adaptar), mas pela conscientização de que TODA a humanidade forma um grupo só,
cada um com suas especificidades, mas todos iguais. Isto é mais que integrar, é INCLUIR: envolver, fazer parte, pertencer. É a sociedade criando condições favoráveis
para que todos possam conviver sem exclusões.
E assim, entendendo-se que as diversidade “fazem parte”, a aceitação delas
passa a ser natural e com essa consciência inclusiva, ninguém ousará colocar em prática projetos inacessíveis a determinadas parcelas da população.
Não existe democracia com as sérias injustiças sociais, as formas variadas de
exclusão e as violações reiteradas aos direitos humanos que ocorrem.
Os idosos formam uma das classes que sofre com o problema da exclusão social, na área da saúde, da segurança, do transporte..., além do desrespeito que vêm
sofrendo por parte da sociedade e muitas vezes pela própria família.
Sabendo que o idoso é pessoa e, como tal, sujeito de direitos e obrigações,
como promover a inclusão do mesmo nas discussões sobre os Direitos Humanos? É
bem verdade que o Ordenamento Jurídico Brasileiro dispõe de Lei inovadora acerca da Proteção do Idoso, como o ESTATUTO DO IDOSO, lei que surgiu como resposta aos anseios da sociedade.
Então, inegavelmente a questão do Idoso, no Direito Brasileiro, há de ser amplamente discutida e tratada de forma mais eficaz. Não poderemos nos limitar aos reconhecimentos primários de direitos de preferências em filas, não obrigatoriedade de votar, gratuidade no transporte coletivo, prioridade de atendimento, e agora, mais recentemente, a prioridade de tramitação processual através da Lei 10.173 de 09/01/2001.
Mas, segundo os especialistas, para que esta situação se modifique, é preciso
que ela seja debatida e reivindicada em todos os espaços possíveis, pois somente
uma grande mobilização da sociedade seria capaz de configurar um novo olhar sobre o processo de envelhecimento dos cidadãos brasileiros.
Reconhecendo a enorme diversidade das situações das pessoas de idade, não
só entre os diferentes países, como também dentro de cada país e entre as pessoas
mesmo, problema que necessita respostas políticas diferenciadas.
Consciente de que as pressões que pesam sobre a família tanto nos países em
1
CASSONE, Vittorio, Direito Tributário, 9. ed.: Atlas, 1996, p. 60 e 61; MARTINS, Ives Gandara, Comentário ao
Código Tributário Nacional; SPAGNOL, Werther Botelho, As Contribuições Sociais no Direito Brasileiro..
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desenvolvimento como nos desenvolvidos, é indispensável oferecer apoio àqueles
que se ocupam do atendimento das pessoas idosas que requerem cuidados.
Tendo presentes as normas fixadas no Plano de Ação Internacional sobre o Envelhecimento e os convênios, recomendações e resoluções da OIT – Organização
Internacional do Trabalho, da OMS – Organização Mundial da Saúde e de outras entidades das Nações Unidas.
Propôs o governo nacional brasileiro que introduzam a:
CURTO PRAZO
Estabelecer prioridade obrigatória de atendimento às pessoas idosas em todas
as repartições publicas e estabelecimentos bancários do país.
Facilitar o acesso das pessoas idosas a cinemas, teatros, shows de música e outras formas de lazer público.
Apoiar as formas regionais denominadas ações fundamentais integradas, para
o desenvolvimento da Política Nacional do Idoso.
MÉDIO PRAZO
Criar e fortalecer conselhos e organizações de representação dos idosos, incentivando sua participação nos programas e projetos governamentais de seu interesse.
Incentivar o equipamento de estabelecimentos públicos e meios de transporte de forma a facilitar a locomoção dos idosos.
LONGO PRAZO
Generalizar a concessão de passe livre e precedência de acesso aos idosos em
todos os sistemas de transporte público urbano.
Criar, fortalecer e descentralizar programas de assistência aos idosos, de forma a contribuir para sua integração à família e à sociedade e incentivar o seu atendimento no seu próprio ambiente.
REFERÊNCIAS
_________A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. São Paulo:
Cortez. 2000.
AGUIAR, Roberto A. R. Os filhos da flecha do tempo. pertinência e rupturas. Brasília: Letraviva, 2000.
2
CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 12 ed., São Paulo, Malheiros, p. 391.
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ALVES, J. A. Lindgren. A declaração dos direitos humanos na pós – Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 9, V. 18, p. 208 – 227, jul./dez. 2001. 227 modernidade. In: BOUCAULT Carlos; ARAÚJO Nádia (Orgs.). Os direitos humanos e o Direito Internacional.Rio de Janeiro: Renovar. 1999. p. 139-166.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999. Capítulo 3.
BOBBIO, Norberto, Nicola MATTEUCI e Gianfranco PASQUINO. Dicionário de Política. Brasília: Edunb, 1992.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus. 1992.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, São Paulo: Saraiva, 1999.
FARIAS, José. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, “Direitos Humanos Fundamentais”, São Paulo: Saraiva, 1998.
FERREIRA, Manoel. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva. 1996.
HERKENHOFF, João Baptista. Curso de direitos humanos. São Paulo: Acadêmica, 1994,
MARTINEZ, Wladimir Novaes, “Direito dos Idosos”, São Paulo: LTR, 1997.
PINHEIRO, Carla, “Direito Internacional e Direitos Fundamentais”, São Paulo: Atlas, 2001.
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o Social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1999.
VERAS, Renato Peixoto. Terceira Idade: um envelhecimento digno para o cidadão do futuro.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará: UnATI/UERJ,1995. LI-0018.
SALDANHA, Nelson, “Formação da Teoria Constitucional”, Renovar, 2000, p. 20
VERAS, Renato. Peixoto. País jovem com cabelos brancos: a saúde do idoso no Brasil. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará/UERJ, 1994.
3
4
Idem, p. 389.
a questão foi resolvida pelo Supremo Tribunal Federal, afirmando, com inteira propriedade, que “o serviço de
iluminação pública não pode ser remunerado mediante taxa, uma vez que não configura serviço público específico e divisível prestado ao contribuinte ou posto a sua disposição (CF, art. 145, II).” (Recursos Extraordiná-
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CONTRIBUIÇÃO DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA – CIP:
UM DESVIO DE FINALIDADE DO ATO LEGISLATIVO
Mariana Augusta Mercadante Velloso
Aluna do curso de Direito, 5º ano, da Instituição Toledo de Ensino-Bauru.
Orientador: Professor Luiz Nunes Pegoraro
RESUMO
Considerando que os gastos dos brasileiros com impostos diretos já superam as despesas de educação, vestuário, lazer e outros itens de higiene pessoal.
Juntando a ineficiência da Administração Pública, o Congresso com seus parlamentares que desfiguram institutos jurídicos e normas disciplinadoras, somando a banalidade em que se tornou o Poder Legislativo, outorgando competência
para a instituição de novos tributos por meio de Emendas Constitucionais, resultou em criação de figuras tributárias que ferem e agridem princípios, normas e
institutos. Um exemplo claro foi a criação da Emenda Constitucional nº 39, que
alterou o texto constitucional e criou uma nova espécie tributária, Contribuição
para o custeio de Iluminação Pública. Tal espécie não tem sua materialidade indicada, o artigo expresso apenas mencionou a finalidade de sua criação. Não podemos aceitar a imposição pelo Estado dessa exação. Providências devem ser tomadas para proteger o bolso e a dignidade dos contribuintes, que suportam uma
carga tributária altíssima.
Palavras-chave: Contribuição, Iluminação Pública.
INTRODUÇÃO: CONCEITO E ESPÉCIES DE TRIBUTO
O presente trabalho tem como objetivo estudar a Emenda Constitucional n°
39, que veio alterar e introduzir o artigo 149-A, da Constituição Federal, criando assim uma nova figura tributária.
Pretende-se mostrar a inconstitucionalidade da Emenda, a banalidade que se
tornou o ato legislativo e provar que a nova contribuição não se enquadra em nenhuma das espécies tributárias existentes.
Como estudante de Direito e contribuinte, tenho o dever de mostrar e alertar
os abusos feitos em face da nova figura.
Tributo é toda receita arrecadada pelo Estado em função de sua soberania.
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Sua definição legal encontra-se no art. 3º do Código Tributário Nacional (CTN).
A natureza jurídica ou característica fundamental do tributo, numa de suas
acepções mais comuns, é ser o objeto da relação jurídica obrigacional. Ao contrário
das obrigações privadas (civis e comerciais), onde predomina a manifestação de
vontade e o acordo entre as partes, a obrigação tributária, nasce ou surge a partir de
uma situação estabelecida em lei onde a vontade do contribuinte é irrelevante.
A expressão tributo constitui o gênero de várias espécies, onde podemos mencionar os impostos, taxas, contribuição de melhoria, empréstimo compulsório e contribuição social, conforme art. 5º do CTN e art. 145 da Constituição Federal (CF).
Assim, vem se generalizando o entendimento, já consagrado pela doutrina
majoritária e também pelo Supremo Tribunal Federal, de que existem 5 (cinco) espécies de tributos.1
O Código Tributário Nacional, assim como fez com a idéia de tributo, consagra definições legais para as primeiras três espécies do gênero tributo.
Vale lembrar não ter o constituinte, bem como a legislação tributária, fixado
de forma clara e expressa definições ou conceitos para as duas últimas espécies de
tributos (empréstimos compulsórios e contribuições sociais).
Identificamos, a partir do conceito legal de imposto, que esta espécie de tributo é simplesmente exigida do contribuinte. Trata-se de imposição legal que independe de atuação estatal relacionada com o obrigado, ou seja, para instituí-lo o ente
público não se vincula à prestação de qualquer atividade administrativa direta ou indireta.
A receita decorrente da arrecadação dos impostos é utilizada para custeio geral da administração e das atividades públicas.
A Constituição, no art. 145, §1°, determina que, sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão majorados conforme a capacidade econômica
do contribuinte. Portanto, o legislador, ao instituir um imposto, deve, na medida do
possível, conformar a tributação às características peculiares da pessoa de cada contribuinte.
A taxa, um tributo vinculado, cujo fato gerador está diretamente ligado a uma
atividade do Estado em contraprestação com o particular, deve ter os seguintes pressupostos para sua exigibilidade: a atividade prestada pelo ente Estatal deve ser específica, ou seja, uma atividade que somente o Estado pode prestar; deve ser divisível,
o valor da contraprestação será dividida por todos aqueles que utilizam do serviço
prestado e mensurável, deve ser determinada.
Já, a contribuição de melhoria, espécie tributária vinculada indiretamente ao
Estado, ocorre quando há um acréscimo no patrimônio do particular, devido a uma
obra pública realizada pelo Estado, ocorre uma plus valia no imóvel, conforme ar5
registrado em 18/12/2002, pela “Agência Câmara”, órgão de publicidade da própria Câmara dos Deputados,
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tigos 81 e 82 do CTN.
Podemos dizer que o empréstimo compulsório não é receita pública, só acontece mediante lei complementar, não pode ser instrumento de medida provisória.
O art. 148, parágrafo único da Constituição reza que a aplicação dos recursos provenientes de empréstimo compulsório será vinculada à despesa que fundamentou sua
instituição.
Quanto às funções das Contribuições Sociais, estas foram instituídas como
instrumento da atuação da União no interesse de categorias profissionais e econômicas, de intervenção no domínio econômico, na área social e para o financiamento da seguridade social, elas têm a ampla acepção de serem destinadas ao custeio de
metas fixadas pelo legislador constituinte na Ordem Social.
O texto Constitucional, quanto às Contribuições Sociais, é muito explícito
disciplinando a sua instituição e cobrança, sendo que estas se qualificam como tributos vinculados, dependentes da atuação estatal para serem criados, tendo como
pressuposto para sua existência à afetação da receita para grupos sociais de interesse intervencionista, conforme art. 195 da Constituição Federal.
A hipótese de incidência de uma Contribuição Social está condicionada a uma
determinada atividade estatal, intimamente ligada a determinado fato do contribuinte, inexistindo tal requisito, restará impossível a criação de uma Contribuição Social.
O art. 149 da Constituição Federal tipifica, sem descrever, a materialidade três
tipos de Contribuições, são elas: Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE), Contribuição Social e as Contribuições de Interesse das Categorias
Profissionais ou Econômicas, sendo que as referidas contribuições têm exatamente
a ampla acepção de serem ao custeio das metas fixadas na Ordem Social, estas não
se prestam para o financiamento de todas as atividades estatais.
Portanto, a Constituição não qualifica as contribuições por suas regras matrizes, mas sim por suas finalidades. Haverá esse tipo de tributo sempre que implementada uma de suas finalidades constitucionais.2
Porém, a simples exigência de um grupo social não é suficiente para autorizar
a sua existência, a contribuição deve vincular-se à total realização do objeto do interesse do grupo, tanto no sentido dinâmico como no sentido funcional.3
Essas contribuições são verdadeiros tributos qualificados pela finalidade que
devem alcançar, podendo, pois, revestir a natureza jurídica de imposto ou taxa, conforme as hipóteses de incidência e as bases de cálculo que tiverem.
Após essa breve explanação sobre conceito de tributo e suas espécies, o presente trabalho vem estudar o perfil da Contribuição de Iluminação Pública, a qual foi
criada pela Emenda Constitucional (EC) n° 39, que veio alterar o texto vigente, introduzindo, assim, no ordenamento jurídico, esse novo tributo, que elege como aspecto material a hipótese de incidência a prestação pelo poder público, de serviço
de iluminação pública.
Seria essa uma nova figura tributária, com roupagem de contribuição social,
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sem os requisitos necessários para tal? De que forma essa figura afronta a Constituição vigente?
A ANTIGA TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA
Na década de oitenta, os municípios instituíram uma taxa para custear a iluminação pública, pois afirmavam que os impostos municipais já instituídos não conseguiam arrecadar o suficiente para arcar com a despesa deste serviço e que não queriam majorar os tributos já existentes.
Com fundamento nessas afirmações, foi criada a Taxa de Iluminação Pública,
tendo como base o artigo 145, II, da Constituição Federal e artigo 77, do CTN.
Salienta-se lembrar que os serviços remuneráveis por taxas têm de ser, obrigatoriamente, específicos e divisíveis, nos termos artigos supracitados, podendo ainda
ser utilizados de maneira efetiva e concreta ou simplesmente, potencial.
Porém, desde 1.986, o Supremo Tribunal Federal4 tem julgado inconstitucional a cobrança da Taxa de Iluminação Pública, com fundamento no art. 145, II da CF,
o qual limita o uso das taxas. Em meados de 2002, tal lei foi decretada inconstitucional, considerando que iluminação pública já era paga com os valores do Imposto
Predial e Territorial Urbano – IPTU.
A antiga taxa não preenchia o requisito da divisibilidade, previsto do art. 79, III,
do CTN. Significa dizer que o serviço de Iluminação Pública deveria, para efeito dessa
forma de contraprestação, ser mensurável, ou seja, poder ser avaliado ou aferido o
quantum consumido pelo usuário-contribuinte, individualmente considerado.
Porém, isso não é possível, pois esse serviço é prestado genericamente aos
municípios, não podendo ser oferecido de maneira individual e específica.
NATUREZA JURÍDICA DA CONTRIBUIÇÃO PARA O CUSTEIO DO SERVIÇO DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA
O Código Tributário traz no seu artigo 4° a definição da natureza jurídica do
tributo, sendo esta determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação. A criação
de um fato novo faz nascer a obrigação tributária, esse fato determina diante de qual
espécie tributária nos encontramos.
Muito bem lembrada a lição que Machado (2002, p. 32) ensina:
Para sabermos se um tributo é imposto, taxa, ou contribuição de
melhoria, não importa o nome, nem a destinação do produto de
sua arrecadação, mas o fato gerador respectivo. Qual o fato cujo
acontecimento fará nascer à obrigação de pagar o tributo. Esse
fato é que determinará se estamos diante de um imposto, de uma
taxa, ou de uma contribuição de melhoria, ou de uma outra espé-
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cie de tributo.
Quanto ao imposto, encontramos no art. 16, do CTN o seu fato gerador,
sendo uma situação independente do Estado, o qual é um tributo não vinculado.
No que diz à CIP, esta depende da prestação do serviço de iluminação pública,
sendo uma atividade vincula ao Estado, não podendo ser contribuinte as pessoas
que moram em localidades em que não haja luz elétrica, ou melhor, iluminação
pública. Ressalte-se, também, que, enquanto o produto arrecadado pela CIP tem
destinação específica (o custeio do serviço de iluminação pública), o produto arrecadado por imposto não tem destinação específica, outra diferença entre contribuição e imposto. Com base nesses fatos podemos concluir que a CIP não tem
natureza jurídica de imposto.
Por outro lado, temos a taxa, como uma decorrência do poder de polícia, ou
um serviço público divisível e específico. No caso em questão, a iluminação pública
é um serviço destinado à coletividade toda, prestado uti universi e não uti singuli,
não há como enquadrar a CIP dentro das taxas, como já concluído acima.
A mesma não pode ter natureza jurídica de contribuição de melhoria, pois
esta deve decorrer de obras públicas.
Por certo, a CIP não tem natureza de empréstimo compulsório, sendo que
este, em seu texto legalm especifica a sua criação para atender a despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública, de guerra ou sua iminência; ou no caso
de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional. Não
sendo também o caso da CIP.
A Contribuição para o Custeio de Iluminação Pública tem a sua natureza jurídica fundada nas Contribuições Sociais. Como se sabe, a contribuição é um tributo
vinculado à atuação do Estado, à prestação por este de determinado serviço.
No tocante à base de cálculo de uma contribuição, deve-se lembrar que a mesma deve estar mensurando a causa provocante da ação estatal por um grupo especial de sujeitos passivos. Mas na CIP, a base de cálculo mede uma despesa geral, ou
seja, provocada por toda a população que se beneficia da iluminação pública.
Neste caso, o contribuinte da contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública é toda a população do município, pois tal serviço é destinado à coletividade em sua totalidade.
Com base nessas conclusões, resta dizer que a CIP não possui todos os elementos necessários para configurar tal figura tributária, pois o custeio de serviço de
iluminação pública não é uma despesa especial provocada por um grupo específico
de pessoas, e sim uma despesa provocada por toda a coletividade.
Vale lembrar que a emenda constitucional sequer delineou qual seria a hipótese de incidência, deixando assim a critério do legislador ordinário municipal optar, desde que respeitem os parâmetros constitucionais.
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OFENSA AOS PRINCÍPIOS TRIBUTÁRIOS E PROCESSO LEGISLATIVO
Não há como se falar em tributo e não citar seus princípios, estes são o norte
e a base do Direito Tributário, estão implícitos e explícitos na Constituição Federal e
constituem nota essencial do Estado de Direito.
Porém, em relação à Contribuição de Iluminação Pública, nossos governantes
não foram muito felizes em sua atuação, desrespeitaram e violaram princípios e garantias fundamentais, já intrínsecas no nosso ordenamento jurídico, estas conseguidas e lutadas pela Constituição de 1988.
Segundo o Princípio da Anterioridade, art. 150, III, b, da CF, o mesmo tem, como
função maior, proteger o contribuinte contra o poder do Estado, pois nenhum tributo
pode ser cobrado no mesmo exercício em que este tenha sido criado ou modificado,
evitando assim que o contribuinte seja apanhado de surpresa no transcorrer do exercício financeiro, então denominado de princípio da não–surpresa, permitindo que o
contribuinte possa fazer um planejamento fiscal de suas atividades.
Entretanto, não foi isso que ocorreu com a Contribuição em tela, pois a mesma
entrou em vigor nos últimos dias do mês de Dezembro de 2002, ou seja, causando uma
grande surpresa ao contribuinte, ferindo assim o princípio da segurança jurídica.
No caso da Contribuição de Iluminação, ficou valendo, portanto, a “regra da
surpresa”, ou seja, o cidadão fica sabendo de seu novo dever no momento em que
receber a fatura de energia elétrica.
É mesmo lastimável a banalidade com que a máquina administrativa trata de tão
grave penalidade, sendo o fato de que milhões de contribuintes brasileiros foram tomados de surpresa, com a criação de um novo tributo, com roupagem de contribuição,
nos últimos dias do exercício financeiro de 2002, tendo como exigência sua previsão
para o primeiro dia do exercício seguinte, ou seja, 01 de janeiro de 2003.
Sendo assim, podemos afirmar, com segurança, que todas as leis municipais
editadas entre 19/12/2002 (data da aprovação da EC 39/02) e 31/12/2002, são inconstitucionais, pois afronta, de forma cruel, o princípio da segurança jurídica, embora formalmente de acordo com o princípio da. Anterioridade.
Há, também, de se lembrar que, na votação da EC nº 39/02, junto à Câmara
dos Deputados, não foi respeitado o interstício de tempo mínimo, ou seja, cinco sessões entre os dois turnos de votação, como reza o art. 60, §2º da CF, conseqüentemente violando assim o artigo 202, §6º do Regimento Interno da casa legislativa, que
regulamenta a referida norma constitucional.
No caso em tela, a Câmara dos Deputados efetuou os dois turnos de votação
da PEC nº 559/02 (proposta que deu origem à EC nº 39/02) em sessões consecutivas, com um intervalo de apenas trinta minutos entre ambas.5 Tal fato configura descumprimento da vontade perpetrada pelo Poder Constituinte Originária (derivado
6
conforme notícia Jornal O Estado de São Paulo, quarta-feira, 16 de março de 2005, página B3.
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reformador), que é a de promover sérios debates e discussões acerca das propostas
de mudança na Lei Maior.
Diante de tais absurdos, pode–se constatar que a decisão tomada pela Mesa
da Câmara dos Deputados, lamentavelmente, teve fundamento não em questões
institucionais e legítimas, mas sim em aspectos puramente políticos, oriundos da
forte pressão exercida pelas bancadas dos mais de 5.000 municípios brasileiros.
VINCULAÇÃO DA RECEITA E ASPECTOS DE BITRIBUTAÇÃO
Em sua formação, a contribuição para o custeio de iluminação pública vinculou o produto da arrecadação ao direcioná-la ao Fundo Especial, vinculado ao custeio do serviço de iluminação pública, contrariando o art. 167, IV, da CF. As contribuições não podem ser criadas apenas observando a destinação específica dos recursos arrecadados, fosse assim, à luz de cada dia criaríamos contribuições das mais
diferentes qualificações.
Ressalta lembrar que sendo a iluminação um serviço público, este se torna intributável para o usuário, recaindo o tributo apenas para a concessionária, que paga
sobre a energia comercializada o ICMS, sob pena de bitributação, ou seja, duas entidades federadas, ambas com competência constitucional para o exercício do poder impositivo, decretam imposto igual ao mesmo contribuinte, com fundamento
no mesmo fato gerador. Para que ela ocorra, deve existir a identidade de impostos
concorrentes, sendo que a iluminação pública já integra o fato gerador do IPTU.
O serviço de iluminação pública somente pode ser remunerado pelos impostos gerais (essa é a verdadeira alternativa para o custeio dessa despesa!), na medida
em que é um serviço “uti universi”, difuso, na forma já reconhecida pelo STF.
No tocante à base de cálculo, tanto a contribuição de iluminação pública,
como o ICMS, possuem a mesma, o que configura bitributação, que é vedada em
nosso sistema constitucional. Ainda, a contribuição especial instituída configura
confisco, pois não pode o Poder Público cobrá-lo em seu próprio favor.
Conforme notícia pública no Boletim Eletrônico, INR n° 441, em 24/01/200, foi
suspensa a cobrança de iluminação pública para São Paulo – (Última Instância –
21.01.2005), tal decisão, presidida pelo ministro Edson Vidigal, vem livrar os paulistanos da cobrança da Contribuição para Custeio do Serviço de Iluminação Pública; sendo assim, com a decisão, volta a valer a tutela antecipada concedida pelo juízo da 12ª
Vara da Fazenda Pública, que suspende a cobrança do tributo em todo município de
São Paulo, a decisão foi baseada na ilegalidade da bitributação, já prevista em lei.
Os autores da ação sustentaram a ilegalidade da Contribuição, referindo que
ocorrerá bitributação, considerando a incidência do ICMS sobre o consumo de energia elétrica, os mesmos garantem que seria a criação de um novo imposto, afrontando preceitos da Constituição Federal, além de violar o princípio da legalidade, porque indiretamente se estaria propiciando a majoração da contribuição sempre que
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a empresa concessionária reajustasse os valores das tarifas.
Resta saber se a decisão servirá de base, para que outros contribuintes consigam se livrar de mais uma exação do Estado.
O NÃO-PAGAMENTO DA CONTRIBUIÇÃO
Em relação à inadimplência, qual a medida a ser adotada pela concessionária
de energia? Esta poderá suspender o fornecimento em razão do não-pagamento da
contribuição?
Na verdade, essa problemática já foi discutida, porém o legislador não apresentou solução para o caso, apenas deixou claro que não pode ocorrer a suspensão
do fornecimento no caso de não pagamento, deixando vaga qual a medida adotada
para o pagamento da conta, excluindo-se a contribuição.
O que ocorre na prática é a dificuldade de o contribuinte se desvincular do valor
da contribuição a ser pago pelo consumo de energia; no caso em tela, o contribuinte
não tem instrumentos acessíveis para pagar somente o valor da conta de luz, excluindo
o valor do tributo, pois se o mesmo agir assim, poderá acarretar o seu ingresso em juízo, fundamentando que o não-pagamento do tributo deverá ensejar a inscrição do débito em Dívida Ativa, seguindo os meios próprios de cobrança dos créditos municipais.
Levantando a hipótese de que o contribuinte quer discutir em juízo o pagamento da contribuição com a sua devida conta de energia, este não poderá fazer depósito judicial enquanto se discute a questão, pois o depósito judicial não é meio de
pagamento da Contribuição, sendo que ele não tem o condão de afastar a mora e
outras conseqüências legais da inadimplência, devendo o contribuinte ser regularmente inscrito em Dívida Ativa.
O caso em questão deverá ser muito bem analisado, devendo ser encontrada uma forma legal que não prejudique o contribuinte, para que ele possa entrar em juízo, assegurando o seu devido processo legal, nos termos do artigo 5º,
XXXV, da CF.
Quanto à criação de uma nova figura tributária o presente trabalho já discutiu
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sua inconstitucionalidade, e agora vem mostrar quantos abusos são feitos com o
contribuinte em face de essa nova figura, neste caso se torna inadmissível o contribuinte ter que compactuar o ordenamento jurídico.
Que o legislador tome logo suas devidas providências, e faça a tão sonhada
justiça!
COBRANÇAS CONJUNTAS COM TARIFA DE ENERGIA ELÉTRICA – VIOLAÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR
No parágrafo único, do art. 149-A, da CF, vem expressa a possibilidade de cobrança da contribuição na fatura de energia elétrica, previsão também encontrada
no art. 7º do CTN. Sendo assim, a concessionária pode receber atribuição das funções de arrecadar o tributo; para que isso aconteça, deve o Município incluir tal previsão na lei complementar local e firmar convênio com a empresa concessionária.
Não levando em conta a inconstitucionalidade do tributo, a sua inclusão na fatura de energia elétrica vem afrontar o direito do consumidor, indo mais além, extrapolando desta forma os poderes da Administração Pública, pois é assegurado pela
Constituição Federal ao contribuinte legítimo direito de resistência à tributação que
extrapola os limites legais.
Quando as concessionárias efetuarem a interrupção do serviço de fornecimento de energia, amparados pelo art. 6º da Lei n. 8.987, § 3º, II, em virtude do não
pagamento da fatura (pois nela se encontra incluído tributo indevido), as concessionárias estarão diretamente violando o dever de continuidade do serviço público essencial conforme art. 22 do Código de Defesa do Consumidor e art. 5°, XXXII, da
CF, embora esse tributo não seja responsabilidade da concessionária, nem constitui
serviço contratado com o consumidor.
Ocorrendo o corte de fornecimento de energia, para aqueles que não pagarem a contribuição, teremos a presença da auto-executoriedade dos atos da administração pública, o que só pode ocorrer em virtude de lei expressa.
Deverão sempre ser obedecidos os parâmetros do Código de Defesa do Consumidor, pois o caso em exame se trata de relação de consumo, quem está contratando com a empresa prestadora do serviço é o consumidor, posto que receba um
produto (energia elétrica), artigo 155, § 3º do Código Penal como destinatário final.
Quem fornece a energia, a concessionária de serviços públicos, o faz mediante uma
contraprestação em dinheiro (preço público).
A contribuição para o custeio de energia elétrica, assim como qualquer outro
tributo, deve ser cobrada do contribuinte através de execução fiscal e não através da
privação ilegal e inconstitucional de um serviço essencial.
A cada dia, surgem novos problemas com a legislação em relação à nova exação, tornando-se cada vez mais difícil aceitar a imposição pelo Estado dessa nova figura tributária.
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A questão a ser tratada agora é o que fazer com os moradores não beneficiados pelo serviço de iluminação. Muito se sabe que as concessionárias não conseguem cobrir todas as áreas, deixando vários bairros, logradouros sem energia, o sistema ainda é muito precário, então o que devemos fazer? As pessoas não beneficiadas pelo serviço deverão pagar a Contribuição?
Na concepção de contribuição, não, porque apenas as taxas admitem a possibilidade de exação por mera potencialidade, os contribuintes, proprietários ou possuidores de imóveis não atendidos pelo serviço de iluminação pública, ou mesmo
de energia elétrica na região, não serão tributados. Tal regra não se aplica, em absoluto, às contribuições.
Da mesma forma, aqueles que não dispuserem de energia elétrica em suas residências, não serão tributados, pois é o consumo da energia elétrica que constitui
a base de cálculo do tributo.
Por outro ângulo, então estamos ferindo o princípio da isonomia, sendo que
toda a população de uma cidade se beneficia com o serviço e apenas uma parcela
irá contribuir para o custeio de uma despesa geral.
CONCLUSÃO
O presente trabalho defende que a referida emenda não atende aos fins para
ela desejados. Vem sanar carências dos municípios através da arrecadação de sua receita; vem instituir cobrança de tributo para satisfação apenas de entes políticos que,
na atribuição de suas funções, não são capazes de destinar verbas necessárias ao custeio. O legislador quer, com essa nova Contribuição, suprir a verba que então destinada aos Municípios, fora desviada ou tornara-se insuficiente.
A referida emenda é inócua, o presente trabalho tem como objetivo mostrar
que a atual contribuição não é, entretanto, contribuição.
Diante disso, estamos à frente de uma nova espécie tributária, sui generis,
com características próprias e pressupostos de exigibilidade, criada pelo legislador
e não como uma Contribuição Social, como quer o Governo Federal.
Em outras palavras, a contribuição – que não é contribuição, mas seria taxa –
à falta da criação de outra nomenclatura, vem ferir o ordenamento jurídico e criar
uma nova figura de arrecadação de receita tributária, pois se assim o legislador constituiu a esdrúxula figura Contribuição de Iluminação Pública, e sua matéria, quanto
aos pressupostos de exigibilidade e materialidade, não se encontra dentro das receitas tributárias, que este mesmo legislador, agora constitua essa nova figura como
sendo outra espécie tributária.
Não podemos, de forma alguma, deixar essa Contribuição ser cobrada como
tal, já que esta foi criada pelos motivos já mencionados, então que agora o legislador a regulamente como outra espécie tributária, pois esta fere todos os princípios
constitucionais implícitos e explícitos e, pior ainda, esta espécie de Contribuição dá
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margem para criação de outras figuras tanto quanto inadmissíveis, pela escandalosa
carga tributária que suporta o brasileiro, já no fantástico nível de 35,45% do PIB,6 no
ano de 2004.
REFERÊNCIAS
BECKER – Alfredo Augusto, Teoria Geral do Direito Tributário, 3. ed. Lejus, 1998.
CARRAZZA, Roque Antonio, Curso de Direito Constitucional Tributário, 11. São Paulo: Malheiros.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
MACHADO, Hugo de Brito: Curso de Direito Tributário, 15.ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
HARADA, Kiyoshi. Contribuição para o custeio da iluminação pública. Jus Navigandi. Disponível em: <http://www1.jus.com.Br/doutrina/texto.asp?id=4076> acesso
em:12/fev/2005.
NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Pensando a CIP – Contribuição para Custeio do Serviço de Iluminação Pública. Jus Navigandi. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4005> acesso em 16/fev/2005.
GOMES, Lucivanda Serpa. Breve análise da natureza jurídica da contribuição para o custeio
do serviço de iluminação pública, instituída através da Emenda Constitucional n.º 39 de
19/12/2002. Revista Virtual de Direito Tributário e Financeiro. Disponível em:
<http://www.deniselucena.adv.br/lab/artigo_lucivanda_01.html> acesso em 20/fev/2005.
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O EXERCÍCIO DA CIDADANIA PARA O COMBATE
À IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
Mariel Rodrigues de Freitas
Aluna matriculada no curso de Direito da Instituição Toledo de Ensino-Bauru.
Orientador: Professor Carlos Alberto Rufatto
RESUMO
A improbidade administrativa é um dos maiores males presente na Administração Pública e um dos aspectos contraproducentes da má administração que mais
justifica a implementação de um maior controle social. O presente estudo visa, então, a apresentar um diagnóstico da improbidade administrativa e, paralelamente
apresentar o combate a referida prática como forma de expressão maior do princípio constitucional fundamental da cidadania.
Palavras-chave: Cidadania, Dignidade Humana, Omprobidade.
INTRODUÇÃO
O conceito de improbidade administrativa está relacionado à desonestidade,
mau caráter, desonradez, maldade, perversidade, falta de probidade, “equivale ao
ímprobo, que conduz ao improbus administrator; caracterizando, no serviço público, o administrador desonesto” (HORTA, 2004).
Definindo improbidade administrativa, Mariano Pazzaglini Filho e outros,
dizem:
Numa primeira aproximação, improbidade administrativa é o designativo técnico para a chamada corrupção administrativa, que sob diversas formas promove o
desvirtuamento da Administração Pública e afronta os princípios nucleares da ordem jurídica (Estado de Direito Democrático e Republicano), revelando-se pela obtenção de vantagens patrimoniais indevidas às expensas do erário, pelo exercício nocivo das funções e empregos públicos, pelo ‘tráfico de influência’ nas esferas da Administração Pública e pelo favorecimento de poucos em detrimentos dos interessados da sociedade, mediante a concessão de obséquios e privilégios ilícitos.
Assim, pode-se conceituar o ato de improbidade administrativa como sendo
todo aquele praticado por agente público, contrário às normas da moral, à lei e aos
bons costumes, com notória falta de brio e integridade de caráter no modo de agir
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perante a Administração Pública.
Ao retrocedermos aos primórdios da história da improbidade, constataremos
que a corrupção é tão antiga quanto o homem. Tem-se que o primeiro ato de corrupção pode ser atribuído à serpente seduzindo Eva com a oferta da maçã, na permutação simbólica do paraíso pelos prazeres da carne (Gênese, Capítulo 3, Versículos de 1 a 6).
Em outras passagens bíblicas, a corrupção também não passou despercebida,
sendo encontrada em Gênese, capítulo 4, versículos 11, 12 e 13, em que Deus condena a humanidade por corromper a Terra:
A terra corrompia-se diante de Deus e enchia-se de violência. Deus olhou para
a terra e viu que ela estava corrompida: toda criatura seguia na terra o caminho da
corrupção. Então Deus disse a Noé: Eis chegado o fim de toda a criatura diante de
Mim, pois eles encheram a terra de violência.
Em Isaías, capítulo 1, versículos de 21 a 23, é analisada a corrupção na polis:
Como se prostituiu a cidade fiel, Sião, cheia de retidão? A justiça habitava nela,
e agora são os homicidas. Tua prata converteu-se em escória, teu vinho misturou-se
com água. Teus príncipes são rebeldes, cúmplices de ladrões. Todos eles amam as
dádivas e andam atrás do proveito próprio, não fazem justiça ao órfão e a causa da
viúva não é evocada diante deles.
No Deuteronômio, capítulo 16, versículo 18, na disciplina concernente aos deveres dos juízes, está dito que:
Não torcerás o juízo, não farás acepção de pessoas, nem tomarás peitas (dádivas feitas com o fim de subornar); porquanto, a peita cega os olhos dos sábios, e perverte as palavras dos justos.
Nas antigas legislações, também havia preocupações com a venalidade da Justiça. O juiz corrupto, na Grécia, era punido com a morte, e na lei mosaica com a flagelação.
Conforme o passar dos tempos, as sanções passaram a ser menos severas, instituindo ao agente a obrigação de devolver o indevido valor recebido (lex de repetundis). Isto ocorreu graças a Lúcio Calpurnio Pisone, tribuno da plebe em 149 a.C.
(ano 605 de Roma), o qual buscava atender aos desejos veementes das províncias
oprimidas pelo desvio de dinheiro dos magistrados romanos. Através desta lei, que
foi aprovada por um plebiscito, os juízes corruptos seriam forçados, em ação ajuizada pelos provincianos, a ressarcir os danos causados ao erário.
Com a Lei Acilia (123 a.C.), a corrupção passou a cominar as penas do furto,
onde dizia que qualquer coisa furtada deveria ser devolvida em dobro. Encontra-se
certa lei semelhante na Bíblia, em xodo, capítulo 22, versículo 9, que cita as leis acerca da probidade:
Em toda questão fraudulenta, quer se trate de um boi, de um jumento, de
uma ovelha, de uma veste, quer se trate de qualquer outro objeto perdido, do qual
se dirá: esta é a coisa, o litígio entre as duas partes irá diante de Deus, e aquele que
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Deus declarar culpado restituirá o dobro a seu próximo.
Em Roma, depois de algum tempo, as sanções começaram a perder a sua eficácia, pois todos sabiam que qualquer rico que cometesse um crime não seria punido. Então, foram editadas outras leis, dentre elas a lex repentudarum de Sila (81
a.C.) e o Code de Lege Julia repetundar (59 a.C. – ano 625 de Roma).
Logo depois, Justiniano criou leis específicas aos juízes corruptos, como
restituição em quádruplo, perda dos direitos civis, que com o tempo, foram sendo alteradas, estabelecendo distinções entre o juiz cível e o criminal, dentre outras alterações.
Ao chegar a Idade Média, já não eram somente os juízes que eram punidos e sim todos os agentes públicos. A corrupção foi sendo colocada nos códigos criminais franceses de 1791 e 1810, constatando os tipos de sanções que
ocorriam.
Em 1787, a Constituição dos Estados Unidos decretou, em seu artigo ll, Seção
4, que o Presidente da República, o Vice-Presidente e todos os funcionários civis serão destituídos de seus cargos sempre que acusados e condenados por traição, corrupção ou outros crimes.
Na França, a Constituição de 1791 buscava a normalização política, implementando um nítido e acentuado sistema de separação dos poderes, regulamentava
também que o governante não poderia escolher seus ministros no seio da Assembléia, pois evitaria que os deputados corressem o risco de serem corrompidos.
Como se vê, os atos de improbidade existem em todos os lugares do mundo,
sendo impossível narrar todos os que já se passaram. Mas é de suma importância fazer uma breve análise sobre os atos de improbidade no Brasil.
Há quem diga que o vírus da improbidade tenha vindo com a nau de Pedro
Álvares Cabral em 1500, quando o escriba Pero Vaz de Caminha aqui chegou e já na
primeira carta dirigida ao rei lhe pediu um emprego.
Ao refletirmos sobre a história brasileira, veremos que os colonizadores aqui
vieram para “roubar”, melhor dizendo, buscar as nossas riquezas e não procurar um
lugar bom para viver, constituir família.
Portugal, tendo em vista as dimensões das terras brasileiras, criou as Capitanias Hereditárias, que eram compostas por particulares, fidalgos e altos funcionários
da Casa Real, que corriam os riscos da empreitada nas terras novas.
O sistema de Capitanias Hereditárias era semelhante ao sistema feudal da Idade Média. Os donatários tinham uma fonte quase que inexaurível de arbitrariedade,
como por exemplo, o privilégio de algumas terras a eles pertencentes se manterem
fora do alcance da justiça da Coroa.
Em 17 de setembro de 1548, após a criação do Governo-Geral, instituído por
Dom João lll, esse privilégio foi anulado, dando início às aplicações das leis administrativas.
No Governo-Geral, as ordens vinham diretamente da Coroa, com isso, a admi-
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nistração passou a ser mais fraudulenta, pois a distância a percorrer para fazer a fiscalização era muito grande, surgindo o contrabando de metais, madeira e pedras
preciosas. Havia, também, a sonegação de impostos, que culminou em enormes
desvios de verbas, que se aproximavam de 35% da produção da época.
Desde esses indícios de improbidade até os dias atuais, formou-se o que alguns filósofos chamam de visão ideológica, ou seja, a forma de ver o mundo pela
qual o que detém o poder o impõe para a sociedade E é a partir de certas contradições que se demonstra qual a visão ideológica da sociedade perante a administração
pública brasileira, como, por exemplo, a costumeira frase: “Ele é excelente administrador, é ladrão, enriqueceu, mas é bom, rouba mas faz”. Como alguém que rouba,
deturpa a administração, é bom?
Já dizia o eterno Rui Barbosa, um dos maiores combatentes da corrupção em
nosso país: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de
tanto agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimarse da virtude, rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.
Em face de tais acontecimentos, é que surgiu a Lei de Improbidade, para que
aos poucos se transforme o modo de agir dos administradores públicos e afaste-se
a sensação de impunidade que assola a sociedade.
A Constituição Federal, de 1988, antes mesmo do início da criação da Lei de
Improbidade, trata do assunto nos seguintes artigos:
Art. 15. É vedada a cassação de direito político, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
V- improbidade administrativa, nos termos do art. 37, §4º.
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, as seguintes: (EC n.º
18/98, EC n.º 19/98, EC n.º 20/98, EC n.º 34/2001, EC n.º 41/2003 e EC
n.º 42/2003)
§ 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao erário, na forma em gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
V- a probidade na administração.
O texto que deu início à Lei de Improbidade era composto apenas de treze ar-
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tigos que enfatizava somente a figura do enriquecimento ilícito. Foi objeto de várias
emendas, e alterado, resultou no Projeto de Lei n.º 1.446/91, remetido à Câmara dos
Deputados pelo Presidente Fernando Collor de Mello, que tinha como escopo a minoração da corrupção naquela época.
Conforme o ritual legislativo, o texto final aprovado na Câmara dos Deputados
foi conduzido para apreciação do Senado Federal, sendo modificado e retornando
para a Câmara dos Deputados, que novamente alteraram o texto aprovado pelo Senado. O texto, que novamente deveria voltar para o Senado, é submetido à sanção
presidencial, deturpando o processo legislativo designado no art. 65 e parágrafo único da Constituição Federal, que dispõe:
Art. 65. O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisado pela
outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção
ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se
rejeitar.
Parágrafo único. Sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora.
O Partido Trabalhista Nacional (PTN), baseado neste dispositivo, ingressou no
Supremo Tribunal Federal, com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN). Dia 31
de maio de 2000, o plenário reconheceu a validade da tramitação legislativa da Lei
8.429/92.
A Lei de Improbidade, mesmo tendo a sua constitucionalidade duvidosa, é
considerada um marco no Direito Brasileiro por tratar, desde 3 de junho de 1992
(data de sua publicação), das sanções aplicáveis às condutas antiéticas dos agentes
públicos.
É de suma importância, elucidar que agentes públicos, são as pessoas, vinculadas ou não ao Estado, que sofrem três divisões: agentes públicos políticos, que
são os que ocupam cargos principais na estrutura constitucional, em situação de representar a vontade política do Estado, os agentes públicos por colaboração, que
são particulares e colaboram com o poder público voluntária, compulsoriamente,
ou por delegação, como por exemplo, o mesário eleitoral e por último, os agentes
públicos administrativos, que são os servidores públicos em geral.
A Lei 8.429/92 possui 24 artigos, divididos em três grandes grupos:
a. Atos de Improbidade Administrativa que Importam em Enriquecimento Ilícito;
b. Atos de Improbidade Administrativa que Causam Prejuízo ao
Erário;
c. Atos de Improbidade Administrativa que Atentam Contra os
Princípios da Administração Pública.
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Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de
cargo, mandato, função, emprego ou atividade pública. A prática desses atos acarretará para o responsável, além das sanções civis, administrativas e penais, a perda dos
bens ou valores acrescidos ilicitamente ao seu patrimônio, a perda da função pública, o pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial, a
proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos, suspensão dos direitos
políticos durante oito a dez anos e o ressarcimento do dano quando houver.
São considerados atos de improbidade administrativa os que causam prejuízo ao
erário, qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial,
desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres do Poder Público. As sanções decorrentes desses atos são mais brandas do que os atos de improbidade que importam enriquecimento ilícito, a suspensão dos direitos políticos será de
cinco a oito anos, ressarcimento integral do dano, pagamento de multa civil de até duas
vezes o valor do dano, proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa
jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos, perda dos valores
acrescidos ilicitamente ao patrimônio e a perda da função pública.
Por último, são considerados atos de improbidade administrativa que atentam
contra os princípios da administração pública, qualquer ação ou omissão que viole
os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições. Esses atos praticados acarretarão ressarcimento integral do dano, perda da função pública, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida
pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou
incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio
de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos, e a suspensão dos direitos políticos por um período de três a cinco anos.
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O principal foco deste trabalho, está designado no art. 14, onde regulamenta
quem poderá representar à autoridade administrativa competente para acolher essa
representação.
Este art. dispõe, que qualquer pessoa poderá fazer a representação à autoridade competente, que é o Ministério Público e o Tribunal ou Conselho de Contas,
para que se tome os devidos procedimentos.
Em regra, a representação deverá ser feita de forma escrita ou oral (reduzida a termo), assinada, contendo informações sobre o fato e a indicação de provas que tenha conhecimento, para que não ocorra denúncias infundadas e levianas contra alguém. Porém, há situações concretas que podem impedir a pessoa
de formalizar a devida representação, inclusive até para a defesa de sua família e
integridade corporal.
Até pouco tempo atrás, o Ministério Público, limitava-se somente às questões
criminais, visto que a sua atuação era basicamente a de sustentar a acusação dos criminosos, diligenciando a respectiva ação penal em juízo. Hoje, já assume funções
extrapenais, dentre elas, na esfera cível está a defesa do patrimônio público, que atribui a ele certas funções:
1. defender e fiscalizar os interesses da administração e do patrimônio público da União, dos Estados, dos Municípios e de suas entidades;
2. receber obrigatoriamente informações da existência de procedimento administrativo de apuração de improbidade administrativa;
3. acompanhar os procedimentos administrativos que apurem qualquer lesão
ao patrimônio público;
4. zelar pela legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade dos atos
administrativos;
5. propor medidas adequadas para impelir os agentes e servidores públicos a
ressarcir as lesões causadas ao patrimônio público;
6. combater a improbidade administrativa de agentes ou servidores públicos.
A Constituição Federal, em seu artigo 129, inciso III, profere que para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses coletivos e difusos, o Ministério Público deverá propor Ação Civil Pública.
A Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo também regulamenta esse assunto, prevendo que:
Art. 103. São funções institucionais do Ministério Público, nos termos da legislação aplicável:
VIII- promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção, a prevenção e a representação dos danos causados ao patrimônio público e social [...].
1
SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Uma nova visão da arbitragem . Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 387, 29 jul. 2004.
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Ação Civil Pública, “é o direito expresso em lei de fazer atuar, na
esfera cível, em nome do interesse público, a função jurisdicional”
(conceito extraído de uma das teses apresentadas no 11° Congresso Nacional do Ministério Público).
Segundo a Lei de Improbidade, a Ação Civil Pública, poderá ser proposta pelo
Ministério Público ou pela pessoa interessada, dentro de trinta dias da efetivação da
medida cautelar (art. 17, caput). Caso o Ministério Público, não interpor a sua autoridade no processo como parte, atuará obrigatoriamente, como fiscal da lei, sob
pena de nulidade (art. 17, § 4°).
A parte interessada ao fazer uma representação, deverá estar atento a dois dispositivos:
1. Se a pessoa que faz uma representação por ato de improbidade souber que
o agente público é inocente, a mesma estará sujeita a detenção de seis a dez meses
e multa;
2. Passados cinco anos após o término do exercício de mandato, de cargo em
comissão ou de função de confiança, ocorrerá a prescrição do feito.
É de extrema importância, que o cidadão tenha a consciência, de que é ele quem
motiva a ação do Ministério Público em relação aos atos de improbidade administrativa.
O Ministério Público é o órgão que representa os interesses da sociedade. Porém, ele não age sozinho, há a necessidade de que outros órgãos como a polícia, especialistas em assuntos contábeis, imprensa, Internet, dentre outros, para que haja
a devida apuração dos fatos.
Um exemplo, de relação entre a Internet e o Ministério Público, poderá ser encontrado no site www.prsp.mpf.gov.br, onde qualquer pessoa ou entidade que tenha acesso à Internet, poderá enviar uma “denúncia” ao Ministério Público Federal.
Esta “denúncia” poderá ser anônima e não precisará estar acompanhada de documentos comprobatórios.
A imprensa também contribui para o combate à corrupção. Em Bauru, o jornalista Nelson Gonçalves, redator do Jornal da Cidade, publica constantemente notícias sobre a malversação do dinheiro público bauruense. Dia 20 de fevereiro de
2005, na página 4, publicou um artigo, no qual elucida ao cidadão o que é improbidade administrativa, quais as portas da corrupção, e explica da seguinte forma,
como a “denúncia” poderá ser feita:
(Ao constatar irregularidades contate seu chefe imediato e exponha a ocorrência.
(Se a situação persistir, reúna documentos ou outros tipos de provas e encaminhe o caso para a Corregedoria Municipal.
(Se ainda assim não houver solução, procure orientação do Ministério Público de sua cidade.
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(Se o servidor tem receio de represálias, envie uma cópia das provas que conseguiu para o Ministério Público.
(A editora do Jornal da Cidade recebe denúncias de possíveis irregularidades através de carta e e’mail: [email protected].
Mesmo com estes recursos, atualmente não existe em Bauru uma ONG ou um
site, que com a contribuição do Ministério Público, da imprensa ou até mesmo de
alunos de direito, instrua e acompanhe os respectivos casos do município.
Finalmente, resta a nós, cidadãos, as denúncias, e principalmente aos governantes deste país a aplicação da lei, para que essa sensação de impunidade não mais
exista.
CONCLUSÃO
Improbidade significa desonestidade, perversidade. Logo, Improbidade administrativa é todo ato contrário às normas, à lei e aos bons costumes, praticado por
agente público perante a Administração Pública.
A improbidade existe em todos os lugares e há muito tempo. Na Grécia, existia a pena de morte e na lei mosaica a flagelação, para o juiz corrupto. Na Lei Acilia,
tudo que era furtado, teria como pena a devolução em dobro. E com a Idade Média,
passaram a ser punidos os agentes públicos e não somente os juízes.
Já no Brasil, a história é de vasta improbidade. Os colonizadores, implantaram
o sistema de Capitanias Hereditárias, onde os donatários tinham vários privilégios e
gozavam de muita arbitrariedade. No Governo-Geral, surgiu a sonegação de impostos, o contrabando de metais, madeiras e pedras preciosas.
Diante desses e muitos outros acontecimentos, surgiu a Lei 8.429/92, para regulamentar todos os atos de improbidade administrativa.
Essa Lei possui 24 artigos, divididos em três grupos:
- Atos de Improbidade que importam em enriquecimento ilícito;
- Atos de Improbidade que causam prejuízo ao erário;
- Atos de Improbidade que atentam contra os princípios da administração pública.
Qualquer cidadão poderá fazer a representação à autoridade administrativa
competente, que é o Ministério Público e o Tribunal ou Conselho de Contas.
Uma das funções do Ministério Público é receber obrigatoriamente informações da existência de procedimento administrativo de apuração de improbidade administrativa e a acompanhar os procedimentos administrativos que apurem qual2
STRENGER, Guilherme Gonçalves: Do Juízo arbitral, RT 607, p. 31.
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quer lesão ao patrimônio público.
Existem outros órgãos que auxiliam o Ministério Público, como a polícia, a Internet, a imprensa, dentre outros. O Jornal da Cidade, de Bauru, coloca a disposição
o seu e-mail: [email protected], para possíveis denúncias de irregularidades.
Neste município, não existe nada que trate especificamente deste assunto,
como uma ONG ou um site, que possa dar o devido auxilio ao cidadão de como proceder mediante esses acontecimentos.
O aspecto mais importante neste trabalho, é o exercício da cidadania. Este
exercício ocorre quando o cidadão faz a “denúncia”, depois, cabe aos governantes
fazerem com que a Lei de Improbidade Administrativa saia do papel.
REFERÊNCIAS
COSTA, Epaminondas da. Manual do patrimônio público: responsabilidade dos agentes
políticos e administrativos na gestão do dinheiro público: teoria e prática. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
DROPA, Romualdo Flávio. Improbidade administrativa e controle social. Brasilia, n. 0010,
set. 2004. Disponível em:
www.avocato.com.br/doutrina/ed0010.gui0005.htm> Acesso em: fev. 2005.
GARCIA, E.; ALVES, R. Improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Lumen, 2002.
GONÇALVES, Nélson. Os ralos que sugam a gestão pública. Jornal da Cidade, Bauru, 20 fev.
2005, p.4.
IMPROBIDADE administrativa. Organização: Luiz Carlos Gonçalves. Palestrante: José Eduardo Martins. Ciclo de estudos da Faculdade de Direito de Bauru (ITE), 2002. 1 fita de vídeo
(90 min.), son, color.
INNOCENTE, Luís Felipe O. Atos de improbidade administrativa e crimes contra o patrimônio público. 85f. Monografia (Graduação) – Faculdade de Direito, Instituição Toledo de
Ensino, Bauru. 2003.
MARQUES, Raphael Peixoto de Paula. Breve apanhado sobre a lei de improbidade administrativa. Jus Navigandi, Teresina, a.6, n.52, nov.2001. Disponível em: <http:// HYPERLINK
http://www.1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2384
www.1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2384> Acesso em: 01 set. 2004.
MATTOS, Mauro Roberto Gomes. O limite da improbidade administrativa. São Paulo:
América Jurídica, 2004.
3
http://www.mediar-rs.com.br/conceitos/mediacao.asp.
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PAZZAGLINI FILHO; ROSA; FAZZIO. Improbidade administrativa: aspectos jurídicos da defesa do patrimônio público. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1997.
PAZZAGLINI FILHO; ROSA; FAZZIO. Improbidade administrativa: aspectos jurídicos da defesa do patrimônio público. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1998.
REVISTA DE DIREITO ADMINISTRATIVO. Rio de Janeiro: Renovar, n.236, abril/jun. 2004.
TOLOSA FILHO, Benedicto. Comentários à lei de improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
OS MEIOS ALTERNATIVOS PARA A SOLUÇÃO DOS
CONFLITOS DE NATUREZA JURÍDICA EM GERAL
Michelle Domingues Albertini
Aluna regularmente matriculada no curso de Direito da ITE/Bauru.
Orientador: Professor Mestre José Roberto Martins Segalla
RESUMO
O presente trabalho tem por finalidade apontar a importância dos meios alternativos na solução dos conflitos para a sociedade atual, observando a veloz transformação que essa vem sofrendo. O Poder Judiciário, assim como a sociedade, deve
evoluir para acompanhar os anseios sociais, e buscar a pacificação social.
Palavras-chave: Arbitragem, Conciliação ou Transação, Mediação, Negociação Direta
ou Auto-Composição.
INTRODUÇÃO
A partir do início da década de 70, o mundo vem passando por mudanças radicais em praticamente todas as atividades humanas. Esse processo denominado de
globalização pode ser definido como um processo de integração mundial.
A sociedade está se transformando numa velocidade incrível. As inovações sociais e tecnológicas desses novos tempos exigem a superação de fórmulas arcaicas,
hoje obsoletas. O Direito, como ciência social, não deve ficar à margem dessas modificações.
Diante desta realidade, necessário se faz buscar vencer aquilo que Mauro Cap-
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pelletti chama de “obstáculo processual” ao acesso à Justiça, reconhecendo que em
certas espécies de controvérsias, o tradicional processo litigioso que flui lentamente perante o Poder Judiciário pode não ser o melhor caminho para possibilitar a satisfação efetiva de direitos. Nessa perspectiva, abre-se espaço para os denominados
“meios alternativos” de solução de controvérsias.
Nas palavras do professor Leon: “As pendências exigem soluções, boas ou
más, porém, eficazes e sumamente velozes. Uma grande nação é aquela que possui
leis justas e uma justiça rápida e não onerosa”.1
As reformas fatiadas do Código de Processo Civil introduziram uma novidade
promissora nesse campo, ao tornarem obrigatória a designação, pelo magistrado, da
audiência de conciliação, nos feitos em que se discutem direitos disponíveis, dessa
forma, como está estatuído no artigo 331 do Código de Processo Civil Brasileiro.
O jurista português Boaventura de Souza Santos é de entendimento que a
criação de mecanismos de solução de conflitos, baseados na informalidade, rapidez,
acesso ativo da comunidade, conciliação e mediação entre as partes, constituem a
maior inovação da política judiciária. A criação de alternativas de solução de conflitos à margem do Judiciário, visa a criar, em paralelo à administração da justiça convencional novo mecanismos de resolução de conflitos, franqueando e ampliando o
acesso da população marginalizada à justiça.
NOÇÕES HISTÓRICAS
Entre os povos antigos, a arbitragem, a mediação, a conciliação, a negociação,
a transação, entre outros meios, constituíam-se como alternativas comuns para sanar os conflitos entre as pessoas
Na Grécia antiga, as soluções amigáveis das contendas faziam-se com muita
freqüência, por meio da arbitragem, a qual poderia ser compromissária ou obrigatória. Os compromissos especificavam o objeto do litígio e os árbitros eram indicados
pelas partes. O povo tomava conhecimento do laudo arbitral gravado em plaquetas
de mármore ou de metal, e sua publicidade dava-se pela afixação nos templos das
cidades.
Em Roma também eram adotados esses meios alternativos, em especial, a arbitragem, a qual era mais simples e aberta que a jurisdição togada, permitindo-se ao
árbitro decidir sem se submeter a qualquer lei. É inegável que esse sistema trazia
mais vantagens. Como era costume a arbitragem, a justiça togada ficava sempre em
plano secundário; nessa situação, a parte interessada só se socorria à justiça togada
se estava realmente convicta do seu sucesso final. Este sistema, por ser muito rápido, perdurou por muito tempo, até o período clássico.
Na Idade Média, também era igualmente comum se socorrer à arbitragem
como meio de resolver conflitos, entre nobres, cavaleiros, barões, proprietários feudais e, fundamentalmente, entre comerciantes.
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O Direito Lusitano medieval previa a utilização da arbitragem. As ordenações
Afonsinas, Manuelinas e Filipinas disciplinavam este sistema de composição dos
conflitos.
No Brasil Colônia, a arbitragem era o meio alternativo admitido na época, existente nas Ordenações Filipinas, que vigoraram, até após a proclamação da República; essas, disciplinava a arbitragem no Livro III, que tratava dos juízes árbitros e dos
arbitradores.
A Constituição de 1824, no artigo 160, facultava às partes nomear juízes-árbitros, nas ações cíveis e nas penais civilmente intentadas, cujas sentenças eram executadas, sem recurso, desde que as partes assim convencionassem.
Hoje, no Brasil, a arbitragem é regulamentada por Lei, a 9.307/96, a mediação,
a conciliação, a transação entre outras denominações que a lei atribui, estão elencadas dispersamente ao longo do nosso ordenamento jurídico. E já é de conhecimento de todos que esses meios alternativos possuem eficácia comprovada para afastar
o formalismo exagerado, com a máxima celeridade, sem ferir obviamente a Constituição Federal e os Princípios Gerais do Direito, tendo como uma de suas características a flexibilidade.
DIREITO COMPARADO
Mario Frota, em notável estudo sobre a arbitragem necessária institucional,
em Portugal, comenta que a arbitragem necessária se assenta em três pilares básicos
para uma verdadeira justiça: a celeridade, a segurança, traduzida pela eficiência, e a
economia.
O modelo brasileiro é semelhante ao italiano, não sendo passível de recurso,
cabendo somente a interposição de ação de nulidade da sentença arbitral nos casos
expressamente previstos.
A lei francesa contém um dispositivo que lhe confere o caráter jurisdicional,
com autoridade de coisa julgada, desde o momento em que a sentença é proferida.
O Direito francês autoriza as partes a conferirem ao juiz arbitral a prerrogativa de julgar por eqüidade, quando estatuído na cláusula compromissória.
A União Européia tem acolhido com entusiasmo a solução de conflitos, por
meio da arbitragem, notadamente no que diz respeito às relações de consumo.
Estudando o Sistema Legal Chinês anterior ao comunismo, René David escreve que a concepção do Direito, entre os chineses, difere fundamentalmente do pensamento greco-romano, visto que aquele tem uma função secundária. As leis representam, para esse povo, um mal, fazendo-os perder o senso de honestidade e moral. Contrariamente ao processo, que é criticável, por sua demora excessiva, a transação e o entendimento são a melhor forma de resolver conflitos, só se devendo recorrer ao Juízo, após esgotadas todas as oportunidades de acordo, já que essas possibilidades são muitas.
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A arbitragem, nos Estados Unidos da América, é regulada pelo US ARBITRATION ACT, de 1925, e goza de grande prestígio. Este diploma confere às cláusulas
compromissórias caráter de irrevogabilidade, executoriedade e validade, aplicáveis
a todo tipo de contrato.
CONCEITOS
Arbitragem
A palavra arbitragem é derivada do latim “arbiter”, que significa juiz, louvado,
jurado, sendo especialmente empregada na linguagem jurídica para significar o procedimento utilizado na solução de litígios.
A definição resumida e tradicional da arbitragem é: “a instituição pela qual as partes confiam a árbitros, que livremente designam, a missão de resolver seus litígios”2
A arbitragem é um meio alternativo para solucionar controvérsias. É extrajudicial e voluntária. Ocorre entre pessoas físicas e jurídicas, capazes de contratar no âmbito dos direitos patrimoniais disponíveis.
As partes litigantes elegem, em compromisso arbitral ou cláusula compromissória elaborada em comum acordo e no pleno e livre exercício da vontade, uma ou
mais pessoas, denominadas árbitros ou juizes arbitrais, estranhas ao conflito, para
resolver a questão que as torna adversárias, submetendo-se à decisão final dada pelo
árbitro, em caráter definitivo, uma vez que não cabe recurso e que a sentença tem
força judicial.
Na arbitragem, a função do árbitro nomeado será a de conduzir o processo arbitral de forma semelhante ao processo judicial, porém de maneira muito mais rápida,
menos formal, de baixo custo. A decisão será dada por pessoa especialista na matéria
objeto da controvérsia, diferentemente do Poder Judiciário, onde o juiz, na maioria das
vezes, para bem instruir seu convencimento quanto à decisão final a ser prolatada, ne1
CF, art. 225, §1º, VI.
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cessita do auxílio de peritos especialistas, por não ser técnico no assunto.
Conciliação ou Transação
Do latim conciliation, quer dizer; ato consistente na harmonização dos interesses conflitantes, que mediante proposta do juiz ou conciliador, indicado espontaneamente pelas partes resolve, de maneira equilibrada, os litígios sociais, ou também composição amigável do litígio mediante proposta formulada por sugestão de
uma das partes. A conciliação pode ser tanto judicial como extrajudicial, optativa ou
obrigatória, ocorrendo também no campo do Direito Internacional.
O dever do conciliador é sugerir e formular propostas, apontar vantagens e
desvantagens, objetivando sempre a composição do litígio pelas partes.
A conciliação tem suas próprias características. Além da administração do conflito por um terceiro neutro e imparcial, este mesmo conciliador tem a prerrogativa
de poder sugerir um possível acordo, após uma criteriosa avaliação das vantagens e
desvantagens que tal proposição traria a ambas as partes.
Nos casos que versem sobre Direito de Família, a conciliação judicial é um requisito sine qua non. Em âmbito geral, esse instituto, nomeado no diploma legal ora
como transação, ora como conciliação, está estampado no Código de Processo Civil
no art. 331 e seus parágrafos, como requisitos da audiência preliminar, no capítulo
das providências preliminares, tamanha sua importância no sistema.
Mediação
A mediação se origina da palavra latina mediatio, ou meditationis, que significa,
uma intervenção com que se busca produzir um acordo ou processo pacífico de acerto de conflitos, cuja solução é sugerida, não imposta às partes, o objetivo da arbitragem é exatamente o mesmo do
judiciário, decidir conflito entre as partes.
A Mediação é uma forma de tentativa de resolução de conflitos através de um
terceiro, estranho ao conflito, que atuará como uma espécie de “facilitador”, sem,
entretanto, interferir na decisão final das partes que o escolheram. Sua função é a
de tentar estabelecer um ponto de equilíbrio na controvérsia, aproximando as partes e captando os interesses que ambas têm em comum, com a finalidade de obje-
2
3
4
Paulo de Bessa Antunes, Direito Ambiental, p. 209.
Marcos Reigota, O que é educação ambiental.
Elisabete Gabriela Castellano, Fazal Hussain Chaudhry, Desenvolvimento Sustentado: Problemas e Estratégias,
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tivar uma solução que seja a mais justa possível para as mesmas.3
Uma das grandes vantagens da Mediação é que ela pode evitar um longo e
desgastante processo judicial, pois a mesma se dá antes que as partes se definam
por uma briga nos tribunais, resolvendo suas diferenças de forma extrajudicial, levando ao Judiciário apenas aquelas questões que não podem ser resolvidas de outra forma.
Negociação direta ou auto-composição
A negociação direta ou a auto-composição caracteriza-se pela solução da controvérsia pelas próprias partes, sem a intervenção de pessoa estranha. Cada uma delas renuncia aos interesses ou a parte deles, concretizando-se pela desistência, transação ou pelo reconhecimento, por parte da parte demandada, da procedência do
pedido, com o que se obtêm o acordo, pondo fim ao litígio.
Pode-se conceituar a negociação ou transação como: “Uma forma conjunta de
resolução dos problemas contidos numa relação de interesses”. É o “processo onde
duas ou mais partes tentam concordar sobre o que cada uma deve dar e receber, ou
fazer e receber em uma transação entre eles”
Os agentes ativos da negociação ou transação são os próprios detentores da
relação de interesses. São eles os negociadores e não terceiros. É comum aos negociadores colocarem à mesa de negociação os seus pontos de maior interesse, acompanhados dos de menor interesse com a finalidade de barganhar com o outro as soluções que melhor lhe convierem.
CONCLUSÃO
A arbitragem, a conciliação ou transação, a mediação, a negociação direta ou
a auto-composição e outros possíveis meios alternativos de solução de conflitos, na
área privada e na área pública, quer no campo interno, quer no campo internacional, constituem as ferramentas eficazes e rápidas, desnudadas da burocracia e do
formalismo danoso, prejudicial, que contamina o Poder Judiciário.
Não se pode transformar o juízo arbitral em morosa e odienta ação ordinária,
à semelhança do que ocorre na Justiça do Trabalho, com a ofensa ao princípio da
oralidade, caminhando, assim, para a tormentosa morosidade e burocratização, contrariando os propósitos de sua criação.
Sendo assim, esses meios são instrumentos altamente importantes e afastam
de pronto o exagerado formalismo, processando-se, com a máxima celeridade, sem
ferir obviamente os cânones legais e a Constituição, tendo como uma de suas características a flexibilidade.
Uma justiça tardia violenta os direitos humanos, porque fere, brutalmente, a
consciência e a dignidade humana, resguardada pela Constituição Federal.
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Não se põe mais em dúvida a necessidade de reforçar a cultura dos meios alternativos, como remédio necessário e indispensável, acompanhando o avanço econômico, científico e técnico do ser humano que, em segundos, comunica-se com
seu semelhante em qualquer ponto da Terra e realiza contratos em minutos, sem
contato pessoal, graças aos modernos meios de comunicação.
Os diversos meios alternativos para a solução de litígios não competem com
o Judiciário nem contra ele atenta, pois o Poder Judiciário é independente e constitui o amparo do Estado de Direito. Sem ele, a democracia inexiste, a liberdade se extingue e o tão aclamado Direito, não passa de “mero direto”.
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REFERÊNCIAS
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http://www.arbitragem.com.br/artigo%20Leon.htm Acesso em: 15 de janeiro de 2005
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CACHAPUZ, Rosane da rosa: Arbitragem: alguns aspectos do processo e do procedimento
na Lei 9.307/96: São Paulo: Editora de Direito, 2000.
CAETANO, Luiz Antunes. Arbitragem e mediação. São Paulo: Atlas, 2002.
CUNHA, Maria Inês Moura Santos Alves da. A equidade e os meios alternativos de solução
de conflitos. São Paulo: LTr, 2001.
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http://www.dji.com.br/processo_civil/conciliacao.htm Acesso em: 28 de janeiro de 2005
JESUS, Edgar A. de. Arbitragem: questionamentos e perspectivas. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003.
KROETZ, Tarcísio Araújo. Arbitragem: conceito e pressupostos de validade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
SALES, L. M. de M. Braga Neto: Estudos sobre mediação e arbitragem, Rio De Janeiro : Abc,
2003.
http://www.mediar-rs.com.br/conceitos/mediacao.asp
SENADOR MARCO MACIEL. A Lei de Arbitragem a caminho de seus oito anos http://www.senado.gov.br/web/senador/marcomaciel/default.htm Acesso em: 23 de janeiro de 2005
SOUZA NETO, João Batista de Mello e: Mediação em juízo: abordagem prática para obten-
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ção de um acordo justo. São Paulo: Atlas, 2000
PAILEGAL. PROJETO DE LEI SOBRE A MEDIAÇÃO E OUTROS MEIOS DE PACIFICAÇÃO
http://www.pailegal.net/dissertacoeseanalises.asp?rvTextoClassificacao=mediation Acesso
em: 25 de janeiro de 2005
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Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar a responsabilidade pela exploração e prostituição infanto-juvenil. Relatório Final. Brasília, Câmara dos Deputados, 1994 (mimeo), p. 22.
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A EDUCAÇÃO AMBIENTAL VOLTADA AO
ENSINO FUNDAMENTAL
Sabrina de Oliveira Magalhães
Curso Direito
Orientadora: Professora Mestre Rossana Teresa Curioni
RESUMO
A educação ambiental está prevista no artigo 225, inciso VI de nossa Constituição. Trata-se de uma cláusula pétrea, pois é considerada como um componente essencial e permanente da educação nacional, tendo em vista ser a única forma eficaz
encontrada até o momento para que possamos atingir o tão almejado desenvolvimento sustentável.
Palavras-chave: Desenvolvimento Sustentável, Ensino, Meio Ambiente.
INTRODUÇÃO
Nossa Constituição Federal estabelece expressamente ser obrigação do Estado à promoção da educação ambiental.1 Sendo que, de fato, é um dos mais importantes mecanismos que podem ser utilizados para a adequada proteção do meio ambiente, pois não se pode acreditar, ou mesmo desejar, que o Estado seja capaz de
exercer controle absoluto sobre todas as atividades que, direta ou indiretamente,
possam alterar a qualidade ambiental. A correta implementação de processos de
educação ambiental é a maneira mais eficiente e economicamente viável de evitar
que sejam causados danos ao meio ambiente.2
Nas palavras de Marcos Reigota3, conclui-se da mesma maneira:
Claro que a educação ambiental por si só não resolverá os complexos problemas ambientais planetários. No entanto ela pode influir
decisivamente para isso, quando forma cidadãos conscientes dos
seus direitos e deveres. Tendo consciência e conhecimento da pro-
2
CPI. “Relatório Final” – Idem, págs. 23-27.
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blemática global e atuando na sua comunidade, haverá uma mudança no sistema, que se não é de resultados imediatos, visíveis,
também não será sem efeitos concretos. Os problemas ambientais
foram criados por homens e mulheres e deles virão as soluções. Estas não serão obras de gênios, de políticos ou tecnocratas, mas sim
de cidadãos e cidadãs.
Desta forma, tem-se que a educação ambiental passa a ser um importante instrumento para a aplicação de um dos princípios mais importantes do direito ambiental,
qual seja, o princípio da prevenção, visando ao desenvolvimento sustentável.
De acordo com a Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999, que dispõe sobre a educação ambiental e institui a Política Nacional de Educação Ambiental, temos que a
educação ambiental é considerada um componente essencial e permanente da educação nacional, devendo estar presente de forma articulada, em todos os níveis e
modalidades do processo educativo, em caráter formal e não formal.
Nesse sentido, importante enfatizar que medidas educativas devem ser tomadas para concretização do ensino nas escolas, principalmente no início da vida escolar, onde a absorção das idéias penetram e se instalam mais facilmente.
A educação ambiental é, portanto, um processo permanente e participativo
que deve envolver toda a sociedade e visa à explicitação de valores, à aquisição de
conhecimentos e à compreensão da relação dinâmica que existe entre os ecossistemas naturais e os sistemas sociais, à mudança dos padrões de conduta dos indivíduos e dos grupos sociais em favor do gerenciamento racional dos recursos naturais, para o bem das gerações futuras e para a sobrevivência do planeta e, conseqüentemente, da própria espécie humana.4
Através de iniciativa própria, será elaborada uma revista em quadrinhos que
de forma totalmente didática poderá incentivar, conscientizar e preparar os alunos
do ensino fundamental na colaboração com a preservação do meio ambiente, não
somente através de ações individuais, mas também de forma coletiva, tendo como
ponto inicial sua própria residência.
Ao final da estória elaborada para a revista em quadrinhos, através de um
questionário a ser respondido pelos alunos juntamente com seus pais, bem como,
uma pesquisa de consumo na residência em que moram, os próprios alunos irão colher dados de consumo como de água, energia elétrica, sendo que após o tempo determinado na planilha a ser preenchida por eles e recolhida por seus professores,
seja constatado quem conseguiu reduzir o consumo de tais recursos durante o tempo da pesquisa. Sendo que todo este processo será monitorado pelos professores
que receberão uma cartilha explicando os procedimentos a serem tomados no decorrer do projeto.
Assim, através deste projeto, será realizado um trabalho escolar, onde o aluno
consiga trazer para sua residência a conscientização ambiental, não somente para di-
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minuir os gastos da família, mas principalmente com o intuito de preservação do
meio ambiente.
É de conhecimento geral que, embora tenhamos em nossa gama de Leis uma
diversidade de sanções para as pessoas que causarem danos ao meio ambiente, sabemos que muitas vezes somente tais medidas não são suficientes para a preservação deste.
À primeira vista, parece que a educação ambiental trazida às crianças tende a
se perder, ao longo dos anos; no entanto, ao contrário do que se pensa, as crianças,
se educadas num ambiente de conscientização e estimulação com relação à preservação do meio ambiente, sem dúvida alguma tendem a se tornar adultos responsáveis e conscientizados quanto à importância desta, não só para o indivíduo, mas
também para a coletividade.
Diante da escassez em que se encontram nossos recursos naturais, medidas,
por menores que sejam têm de ser tomadas pelo homem, mesmo que estes muitas
vezes não enxerguem sua dependência quanto a esses recursos.
O avanço da ciência não é suficiente para nos proteger da possível escassez de
recursos; portanto, medidas cautelares devem ser tomadas pelo homem, que não
pode cruzar os braços, deixando apenas a cargo do governo a fiscalização e a proteção do meio ambiente, pois aliás, o artigo 225 da Constituição Federal, é claro ao dispor que a preservação do meio ambiente é dever de todos.
Aliado à necessidade de preservação do meio ambiente, temos a educação
ambiental que, a nosso ver, é de suma relevância, sendo que quanto antes a importância da preservação do meio ambiente for inserida na mente das crianças, mais
cedo poderemos alcançar o desenvolvimento sustentável tão almejado por todos.
Por esta razão, se faz necessária a tomada de medidas para educação ambiental das crianças já no ensino fundamental, pois além de absorverem mais facilmente
as idéias e perspectivas que lhes serão passadas, estas levarão para suas casas lições
de cidadania e educação ambiental, corrigindo os adultos quando estes estiverem
cometendo alguma infração contra o meio ambiente.
Assim, como a matemática, a língua portuguesa, a geografia, são importantes
para nossa formação, não se pode esquecer que a nossa história, só poderá continuar sendo escrita se alguém estiver para contá-la entretanto, se um dia ocorrer a
extinção de nossos recursos naturais, a possibilidade de sobrevivência de vida humana na terra será pequena.
Aliás, atualmente já estamos sofrendo as conseqüências da má utilização dos
recursos naturais, podendo ser observada, como, por exemplo, a incompatibilidade
de temperaturas com as estações do ano.
Desta forma, não podemos deixar que nossos recursos naturais se esgotem,
devido sua importância para nossa sobrevivência, além do mais como diz o ditado
“não adianta dar valor à água somente depois que a fonte secar”.
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REFERÊNCIAS
ANTUNES, P. B. Direito Ambiental. 6ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002.
REIGOTA, M. O que é educação ambiental. São Paulo, 1994.
CASTELLANO, E.; CHAUDHRY,F. Desenvolvimento sustentado: problemas e estratégias. São
Carlos, 2000.
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A PROSTITUIÇÃO INFANTIL, SEUS ASPECTOS
E A REALIDADE BAURUENSE
Olívia Eulália Cenchi
Aluna do Curso de Direito da Instituição Toledo de Ensino ITE/Bauru, 5º B Diurno.
Orientador: Professor Mestre Sílvio Carlos Álvares
RESUMO
O presente trabalho vem analisar o problema da prostituição infanto-juvenil,
um problema que se alastra no País e, principalmente, nas cidades do interior, inclusive na cidade de Bauru. As normas existentes em nosso ordenamento jurídico são
vastas, porém não são aplicadas devidamente. Na cidade de Bauru, não existem normas, leis ou decretos que visam a amenizar o problema da prostituição infanto-juvenil. O presente trabalho mostra que a educação seria o principal objetivo para acabar com o problema, pois seria uma forma de mostrar à criança e ao adolescente
que existe a possibilidade de uma vida digna perante a sociedade e, ainda, que podem buscar com a educação o crescimento intelectual e moral.
Palavras-chave: Prostituição, Infanto-Juvenil, Educação.
INTRODUÇÃO
A prostituição é um problema que vem se agravando cada vez mais, e com
a inércia por parte do Estado torna-se um problema comum perante a sociedade. O presente trabalho vem demonstrar que as normas proibitivas existem; no
entanto, não têm eficácia. As normas são de grande potencial, mas não passam
de regras não cumpridas pelo próprio Estado, que não tem se preocupado com
o assunto. O Estado tem se encontrado em um momento difícil, onde a infra-estrutura é mínima para que algo tão grandioso seja feito ao combate da prostituição infanto-juvenil. O presente trabalho terá o condão de mostrar algumas causas da prostituição infantil, mas principalmente, mostrará que o Estado é mero
espectador da situação.
O objetivo do trabalho visa a mostrar ao Estado ou pessoas que tenham condições, a dura realidade em que vivem nossos jovens e, ainda, que existem numerosas normas, mas não são aplicadas. Visa a mostrar a falta de pessoas qualificadas para
a melhoria da situação. Também que o assunto educação precisa ser tratado com
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mais seriedade, que a falta de escolas e a condição social das famílias são grandes
aliados para o alastramento da prostituição infanto-juvenil.
A sociedade se acomodou perante a situação, trata do assunto como se fosse
normal uma criança se prostituir para sustentar sua família e a si própria, ou até mesmo para alimentar seus vícios.
Os maiores causadores da prostituição infanto-juvenil, na maioria dos casos, são os próprios parentes que, muitas vezes, estimulam a criança a se prostituir.
O presente trabalho foi baseado na cidade de Bauru e feita pesquisa na Câmara Municipal, constatou-se que não há na cidade uma Lei ou Decreto, ou qualquer outro tipo de norma que venha tentar combater a prostituição infanto-juvenil. O que existe, no presente momento, é um projeto de Lei que foi apresentado pelo Vereador Luís Barbosa, sobre o combate à prostituição infanto-juvenil,
que em síntese propõe instituir programas de formação de educadores de rua,
fiscalizando casas noturnas, lanchonetes e estabelecimentos similares. Instituindo como responsáveis a Secretaria Municipal do Bem estar Social junto com a Secretaria Municipal de Educação, visando também, à reintegração das crianças e
adolescentes no meio familiar.
SISTEMA JURÍDICO
O tema prostituição infantil gera vários problemas. O primeiro exsurge na
questão, apresentada pela socióloga Marlene Vaz: “Seriam essas meninas prostitutas
ou prostituídas?” ( Vaz, 1994, p. 8).
No ano de 1994, foi realizada uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito)
da Prostituição Infanto-Juvenil, na qual se chegou à conclusão de que essa situação,
além de ser um escândalo social, é um crime. Diante de tal, fato é absurdo acreditar
que crianças de apenas seis anos de idade são usadas em práticas sexuais remuneradas, sendo os principais culpados por tamanha brutalidade seus próprios pais, parentes e exploradores. Crianças que a Constituição Federal garante o direito à educação, proclamando obrigatório o ensino básico (Comissão Parlamentar de Inquérito, 1994, p. 22).1
Conclui-se que o perigo mora dentro das próprias casas, do lar em que vivem
essas crianças, causado pelos pais, parentes. Crianças iludidas por promessas de
uma vida melhor são levadas as mesmas a outros Estados, países.
O Relatório da CPI da Prostituição Infanto-juvenil com a investigação realizada mostrou diversas considerações, tais como:
1. A prostituição e a exploração infanto-juvenil são realidades disseminadas por todo o território nacional e permeiam todas as
classes sociais.
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2. O numero de meninas prostituídas é maior que o de meninos,
mas estes são encontrados também em grande quantidade.
3. Não existe idade mínima para a vitimização.
4. Há distinção entre a prostituição famélica e a destinada à obtenção de bens de consumo ou acesso a locais da moda. As meninas que se prostituem para conseguir sustento se enquadram no
primeiro grupo: a prestação de favores sexuais serve à subsistência
ou à proteção contra autoridades a que se submetem (o explorador, o líder de um grupo de rua, os policiais, os pais e padrastos).
De maneira diversa, a menina de classe media se prostitui para
adquirir a ‘roupa da griffe’, freqüentar dispendiosos locais da
moda ou para beneficiar uma ilusória carreira de modelo.
5. Não raro, a prostituição de crianças e adolescentes está relacionada à escravização e ao cárcere privado.
6. Existe, um mecanismo típico de chegada ao submundo da prostituição: as meninas são captadas por agenciadores, que as tiram
de seus lares, ou com o conhecimento das famílias (casos em que
as meninas são ‘vendidas’), ou sem o seu conhecimento (casos em
que o aliciador retira as jovens do lar a pretexto de empregá-las
em outras cidades).
(...)
8. O uso de drogas tem estreita relação como que estudamos. Em
primeiro lugar, o jovem, de qualquer classe social, que se vicia,
pode chegar a se prostituir para obter a droga. Em segundo lugar,
os exploradores incentivam os vícios em álcool e drogas para
manterem ascendência e controle sobre os explorados. Por ultimo,
a alienação trazida pelas drogas é o refúgio último da criança e
do jovem submetidos às mais odiosas formas de degradação. Freqüentemente a menina que se serve de ‘avião’ (entregando drogas
ou acompanhando quem as transporta) também se prostitui para
os traficantes e usuários.
(...)
11. Registram-se, em todas as classes sociais, altíssimos níveis de incesto, o que também pode acabar por levar as crianças e adolescentes à prostituição.
12. Influi decisivamente na violência sexual no lar, o fato de as populações de baixa renda ou de condições miseráveis viverem em
habitações que convidam promiscuidade.
13. Há um profundo e arraigado componente cultural no fenômeno sobre o qual nos debruçamos: a prostituição é vista como ‘normal’ pela sociedade brasileira. A valorização da menina jovem e,
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ainda mais, daquela virgem, é encarada como afirmação lícita
da sexualidade masculina.
(...)
15. A polícia é responsável, muitas vezes, pela impunidade dos exploradores, com quem é conivente em troca de propinas. A CPI recebeu, inclusive, denúncias de corrupção policial, segundo as
quais agentes da lei exploram, eles próprios, a prostituição.
(...)2
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
O nosso ordenamento jurídico é rico em normas que asseguram os direitos
das crianças e adolescentes, assim como também dispõe de normas que condenam
aqueles que, de qualquer forma, tentarem contra os mesmos.
Vejamos a Constituição Federal de 1988 que prescreve em seu artigo 227:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança
e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, saúde,
alimentação, educação, ao lazer, profissionalização, cultura, ao
respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária, além de
coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
Complementa o mesmo artigo o seu § 4º, assim: “A lei punirá severamente o
abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”.
Diante de tais preceitos garantidos pela Carta Magna, convém ressaltar que
a família hoje não se comporta como antigamente, ou melhor, não possui mais os
laços familiares que uniam os pais aos filhos em uma comunhão. Os pais, na
maioria das vezes, se vêem na obrigação de trabalharem fora e deixar seus filhos
aos cuidados de pessoas “estranhas”, quase sempre em busca de um conforto financeiro, isso em se tratando da classe média ou alta. Sendo assim, seus filhos
crescem sem o carinho, a educação que seus pais teriam a obrigação de darem,
tornando-se, dessa forma, crianças e adolescentes revoltados ou confusos com as
descobertas. As dúvidas, problemas que surgem, a resolução será buscada onde?
Com as babás? Na maioria das vezes, acontece de as babás não possuírem conhecimento suficiente para tirar qualquer dúvida que a criança possa ter, e ficando
esta sem resposta buscará nas ruas, nos meios de comunicação, o que não é ideal.
Hoje, o mundo oferece muitas portas abertas, mas que levam à ruína qualquer família e, ainda, os meios de comunicação não impõem mais nenhum tipo de censura, mostrando a vida real e crua como ela é. Assim, indaga-se, como as crianças
e adolescentes terão discernimentos sobre o certo e errado, se não têm os pais
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para participarem das suas dúvidas?
Quando se trata de classe baixa, o caso é mais sério, visto que as famílias
não têm condição financeiras para viverem dignamente. Nesse caso, a mãe é obrigada a trabalhar para sustentar a casa onde vive e os pais ficam no lar com os filhos, daí surgem os casos de agressão física contra os próprios filhos, abusos...
São pessoas que, na maioria das vezes, não possuem escrúpulos, que colocam
suas filhas para trabalharem como prostitutas ao invés de darem educação. Acabam esses pais levando-as para ruas a fim de auferirem vantagens econômicas em
cima da própria filha. Quanto aos filhos, quando não são corrompidos como as
meninas, se unem aos pais para explorarem sexualmente suas irmãs. Dessa forma, a mãe estando fora de casa, nem tem como fazer algo e, quando dentro, não
tem palavra sobre o modo de criar suas filhas, decorrente de agressões físicas que
sofre de seu marido caso o contrarie. Como se vê, a família perdeu seu valor. O
que acontece é que a vida social não capacita a todos, ou seja, as condições financeiras tem grande influência sobre problemas desse tipo. A verdade é ou trabalham para se sustentarem ou morrem de fome.
A sociedade, por sua vez, não se estabiliza ou se move contra a prostituição infantil, pois já se conformou com a idéia de que é único meio de trabalho capaz de
suprir as necessidades dessas meninas e meninos. A sociedade se corrompeu junto
com o mundo em que hoje se vive, não existe mais valores morais e respeito à vida
digna, e sim o conformismo dos valores invertidos.
A própria Constituição Federal assegura como principal direito o da vida.
Como não colocar em prática esse preceito? O Estado, como órgão que rege o país,
é inerte nesse sentido, a prática sobre esse direito e sobre todos os outros não passa de palavras escritas.
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – ECA
Além da Carta Magna tratar sobre a proteção da criança e do adolescente, o
sistema jurídico pátrio dispõe do Estatuto da Criança e Adolescentes (ECA), Lei nº
8.069/90, que protege integralmente a criança e o adolescente. O Título VII do mesmo, preceitua sobre os crimes e infrações administrativas, sendo em seu Capítulo I
que cuida dos crimes praticados contra a criança e adolescente, porém sem prejudicar o disposto na legislação penal, mais especificamente sobre a prostituição infantil, pois é esse o tema abordado no contexto. O artigo 244-A dispõe:
Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do
art. 2º desta Lei, à prostituição ou à exploração sexual:
Pena – reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa.
§1º Incorrem nas mesmas penas o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifique a submissão de criança ou
adolescente às práticas referidas no caput deste artigo.
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§2º Constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento.
Observa-se, dessa forma que o sistema jurídico é vasto em normas que garantem o direito da criança e do adolescente em terem uma vida digna, com educação,
lar, família.
CÓDIGO PENAL E O ORDENAMENTO JURÍDICO DE BAURU
A matéria apreciada no Código Penal contém distorções e graves falhas. Começando pelo fato de que o patrimônio tem um valor maior do que a vida, sendo
essa protegida na Constituição Federal.
O Código Penal trata dos crimes quanto à liberdade sexual em seu Título VI,
começando pelo crime de Estupro, que se entende estar relacionado com a prostituição e abuso sexual contra criança e adolescente, assim: “Art. 213 – Constranger
mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena – reclusão, de
6 (seis) a 10 (dez) anos”.
No caso de a vítima ser menor de 14 anos, presume-se a violência. O artigo
214 preceitua sobre o Atentado violento ao pudor, dessa forma: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se
pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Sendo que a pena para esse
crime é de reclusão de 6 a 10 anos.
O Código ainda trata do crime de corrupção de menores em seu artigo 218, o
qual dispõe que ao “corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo”. A pena para esse crime é de reclusão de um
a quatro anos.
O jovem que possui vida desregrada ou livre não merece tutela penal, pois a
lei parte do pressuposto de a vítima ser honesta, recatada e de bons costumes, devendo ser demonstrada a inocência da vítima, que não é presumida (RT 591/328,
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501/346).
O Código Penal em seu Capítulo V, Titulo VI cuida – Do Lenocínio e do Tráfico de Mulheres. Assim, o artigo 227 e parágrafos cuida do crime de Mediação para
servir à lascívia de outrem. Já o artigo 228 cuida do assunto abordado pelo presente trabalho, sendo o crime de favorecimento da prostituição. Em se tratando de a vitima ser maior de 14 anos e menor de 18 anos, a violência é presumida (artigo 232
c.c. artigo 224, a, ambos do Código Penal), ocorrendo agravamento da pena.
O Código Penal ainda traz, nesse capítulo, um artigo que trata sobre Casa de
Prostituição (artigo 229). Cuida também, do crime de Rufianismo em seu artigo 330
e, por fim, seu último artigo cuida do crime de Tráfico de Mulheres (artigo 231).
Conclui-se que o Código Penal, ao tratar das questões sobre a exploração sexual, situa-se, no mundo dos maiores de idade e sempre na prostituição feminina,
não dando importância à prostituição infanto-juvenil. É claro que, em se tratando de
vítima menor de 14 anos, a violência é presumida conforme dispõe o artigo 224, porém as vítimas maiores de 14 anos e menores de 18 anos foram desconsideradas.
O ECA se preocupa com a questão da corrupção de menores, ao dispor em
seu artigo 240:
Produzir ou dirigir representação teatral, televisiva ou película cinematográfica, utilizando-se de criança ou adolescente em cena
de sexo explícito ou pornográfica – Pena: reclusão de um a quatro
anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, nas condições referidas neste artigo, contracena com criança ou adolescente.
A sociedade, nos dias de hoje, está cada vez mais livre quando se trata da sexualidade, seja feminina ou masculina; diante disso, torna-se um argumento forte
para justificar a omissão do Estado e da Sociedade perante o problema da prostituição infanto-juvenil. Conclui-se que a moral tem se modificado bastante; porém,
quando se trata de criança e/ou adolescente, os crimes de exploração sexual não é
uma questão de ferir a “moral” dos mesmos, mas se trata de uma situação de horror, uma vez que atenta contra a integridade física e psíquica.
Dessa forma, uma modificação no sistema jurídico quanto ao aumento de
pena, de punição não é suficiente e nem adiantaria. Na realidade, o que precisa ser
feito é o Estado e a sociedade se mobilizarem em projetos, programas para neutralizar o problema. Além disso, a sociedade deve cobrar do Estado a proteção que as
crianças merecem, cobrando mais fiscalização em lugares que possam levar a existir
qualquer tipo de exploração sexual infanto-juvenil, como motéis, hotéis, aplicando
uma multa de valor significativo ou vindo até a fechar o estabelecimento que descumprir o estabelecido. Com isso, os proprietários desses estabelecimentos, temendo multas altas ou até o fechamento do estabelecimento, venham a se conscientizar,
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provocando a diminuição da exploração. A lei penal é omissa quanto à idade da vítima na maioria dos crimes, o que acaba deixando a desejar se a punição para certo
crime se estende à criança e adolescente.
Na cidade de Bauru, não existem leis ou decretos que tenham o condão de
acabar ou amenizar o problema da prostituição infanto-juvenil. O que existe é um
projeto de lei apresentado pelo vereador Luís Barbosa, com a finalidade de fiscalizar
lugares onde se proliferam o problema. O projeto visa a colocar educadores nas ruas
para reintegrar a criança dentro de sua família. Percebe-se que o Estado é inerte,
pois no Município o Prefeito é quem deveria tomar providências para que o problema fosse sanado ou, no mínimo, amenizado. No entanto, se existisse preocupação
com relação ao problema, leis seriam feitas. Acontece que vários projetos de leis são
feitos, acabam indo para pauta da Câmara Municipal para deliberação, mas ali permanecem, ou melhor, não são sancionados. Daí a perceber como o Estado é indiferente com a situação.
Portanto, a lei bem aplicada poderá trazer um poderoso auxilio à saúde moral
e pública. Porém, a dificuldade na aplicação consiste no fato de que exige uma complexa infra-estrutura, oferecendo à prostituta meios que a façam reintegrar na sociedade, para que seja reconhecida como pessoa de “capital mais precioso”, físico, moral e espiritual.
Na cidade de Bauru existem algumas instituições que visam `qa proteção do
menor, bem como o combate à prostituição. O CRAMI (Centro Regional de Registro
e Atenção aos Maus Tratos à Infância), foi fundado em 1987, pela Faculdade de Serviço Social da Instituição Toledo de Ensino. O CRAMI é mantido por doações feitas
pela ITE e pela Prefeitura Municipal de Bauru, pois trata de instituição de direito privado. Seu trabalho é de aconselhamento, registro de dados e denúncia à polícia, nos
casos em que a atitude da família contraria o ECA. O objetivo é a proteção à criança
e ao adolescente, vítimas de maus-tratos no ambiente familiar, além de assistência
integral à vítima. Os casos mais graves são encaminhados à DDM (Delegacia de Defesa da Mulher) e ao Conselho Tutelar.
Existem casas de abrigos à criança e ao adolescente que se prostitui, sendo o
CEVAC (Centro de Valorização da Criança) e Casa de Nazaré, ambos com o condão
de proteger crianças e adolescente que se prostituem, tem problemas com drogas
ou correm riscos com relação à integridade física. O CEVAC é uma instituição que
tem por finalidade abrigar não somente crianças prostituídas, mas aquelas que são
abandonadas pela família e, não tendo moradia, o Conselho Tutelar as encaminham
à casa de abrigo. A casa possui duas assistentes sociais, e educadoras. As crianças vão
a escola sozinhas, apenas são proibidas se utilizarem a escola como fuga. Na casa, as
crianças têm alimentação, vestimentas e local para dormir. Na Casa de Nazaré, a
criança sai para trabalhar de dia e depois permanece no abrigo.
Além dessas instituições, há o Conselho Tutelar que é o responsável pelo acolhimento da criança e adolescente nas ruas de Bauru, cuja busca é feita por meio de
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denúncias anônimas ou de familiares. O Conselho busca encontrar crianças durante a noite e com o acompanhamento de policiais, e quando encontradas são encaminhadas para uma das instituições, o CEVAC ou Casa de Nazaré.
A DIJU (Delegacia da Infância e da Juventude) acompanha os casos em que
o(a) menor é infrator(a), ou seja, em caso de prostituição infanto-juvenil somente
acompanha o caso em que o jovem se torna um criminoso(a); caso contrário, o caso
encaminhado à DDM (Delegacia de Defesa da Mulher).
A Dra. Rejani Borro Ortiz Tiritan, Delegada Titular da Delegacia de Defesa
da Mulher, em síntese, explicou que em Bauru são poucos casos existentes a respeito de prostituição infanto-juvenil, porque ninguém denuncia com medo de
agressões físicas ou porque são familiares e preferem ocultar o problema. A única coisa que fazem quando são enviados casos à DDM, é o exame de corpo de delito na menor, para comprovar apenas que não é mais virgem, sendo prova insuficiente para o caso de prostituição, pois não tem como saber quem é o agressor.
Ainda, vistoriam casas noturnas, com o intuito de encontrar menores praticando
a prostituição, mas não podem enquadrar, pois para isso seria necessário um flagrante da menor e do agente.
O judiciário não tem o poder de agir diretamente sobre esses casos, pois
precisa ser provocado. Em conversa com o Dr. Lucas Pimentel de Oliveira, 13º
Promotor de Justiça de Bauru e Promotor da Vara da Infância e Juventude, expôs
que, em Bauru, recentemente, não houve nenhum processo referente à prostituição infanto-juvenil. Em síntese, o órgão responsável para proteção à criança e ao
adolescente é o Conselho Tutelar, que tem toda liberdade de agir independentemente de autorização judicial. Na verdade, o Conselho tendo conhecimento de
alguma situação, age em conformidade com o poder que lhe é conferido; entregar às instituições de abrigo.
O QUE É PROSTITUIÇÃO?
Prostituição, do ponto de vista de uma ex-prostituta, é:
A degradação da pessoa humana, a destruição da personalidade,
da moral, do pudor, a exploração física para a sobrevivência. É
um ‘submundo’, um ambiente de vergonha e de desgosto. Não obstante, a sociedade que condena este ‘submundo’ é a primeira a
sustentá-lo, a ampliá-lo e a marginalizá-lo.
A prostituição é, na verdade, um jogo sexual, sem amor, onde a prostituta “aluga” seu corpo. Trata-se, no entanto, de um contrato de locação, sendo o corpo da
mulher o objeto. Os parceiros não costumam ser os mesmos; uns pagam por seus
serviços, outros não; o pouco que ganham, gastam com seu sustento (e do filho, se
tiver). A verdade é que a prostituta não se “aluga” por prazer, mas por interesse fi-
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nanceiro, já que busca seu sustento.
A PROSTITUTA E AS DROGAS
Outro fator que leva à prostituição são as drogas, ou seja, muitas prostitutas,
cansadas de seus pais, sua vida, acabam por se prostituírem para droga. O que isso
quer dizer?
O fato de a droga ter-se apresentado naquele momento em que o “mundo”
deu as costas às suas dúvidas, ou seja, em que seus pais a abandonaram. Isso faz com
que se prostituêm para comprar qualquer tipo de droga, já que se trata de um meio
de fuga para seus problemas.
Com o uso das drogas as prostitutas acabam por ter maior coragem de abordar clientes. Muitas vezes, acabam se tornando alcoólatras, o que as tornam dependentes desse tipo de droga e, por mais que falte alguma coisa, a bebida alcoólica esta
disponível em qualquer lugar, pois é uma “droga lícita”, em qualquer lugar do mundo é de fácil consumação.
A EDUCAÇÃO
O necessário para combater o problema da prostituição seria, principalmente,
a educação.
Constata-se que a maioria das crianças que se prostituem, não vão à escola ou não
têm acesso. Isso porque falta incentivo dos pais da própria criança ou por falta de condições do próprio Estado que não se preocupa em saber quantas crianças estão nas ruas,
ou melhor, se preocupam, mas não tomam providências que venham a colocar em prática seus planos de ação contra o problema. Dessa forma, a sociedade se torna inerte, porque seus próprios “comandantes” se acomodam perante tal situação. Então, se é normal
àqueles que têm o “poder”, o fato de crianças se prostituírem, para a sociedade que os
elegem, isso não passa de mais um meio de sustentação da própria família da criança.
Na maioria das vezes, a criança, por falta de um pai ou mãe, ou até mesmo
pela ausência de um dos dois, acaba sendo esquecida; então, ao ser levada a uma escola, se sente perdida, não querendo voltar mais no dia posterior. A partir daí, a
criança diz ao pai que não quer ir e o pai se comove pelo choro da criança e acaba
por permitindo sua permanência dentro de casa. Acontece que os pais dessas crianças não utilizam seu poder pátrio de obrigá-la a freqüentar uma escola. Nessa situação, se nem os pais tomam providências, quem é o Estado para tomar?
O Estado contribui para que esse problema aumente, começando pelo fato de
que a educação do país é uma das piores, seja pela infra-estrutura que é mínima para
um país no qual o número de crianças cresce a cada dia, bem como a falta de centros de readaptação e pessoas qualificadas para combaterem o problema para que a
prostituta tenha uma nova vida, ou seja, vida digna e útil à sociedade. Necessário se
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torna a existência de educadores que busquem crianças nas ruas e as tragam para
uma vida digna, onde terão educação e aprendizado. Para que isso aconteça, é necessário que a sociedade denuncie às autoridades competentes esse problema
quando tiverem conhecimento e não ficarem com medo de se expor, pois se trata
do futuro do país, das nossas crianças.
CONCLUSÃO
Diante de todo exposto, conclui-se que o principal culpado, porém, não o único, da prostituição infanto-juvenil é o Estado.
O Estado, em seu ordenamento jurídico, é vasto de normas em respeito à
criança e ao adolescente, que visam à proteção, à educação, à dignidade; porém, é
inerte em aplicá-las devidamente. Sua preocupação deveria ser no sentido de montar programas de educação, que isso sim dá uma base enorme para criança a fim de
que a mesma não busque na prostituição a solução para uma vida digna, na qual a
todo ser humano é garantido pela própria Constituição Federal.
Claro, o Estado não é o único culpado, uma vez que, a sociedade se acomodou perante a situação, fazendo do problema um meio de vida da criança e do adolescente. É normal nas ruas, hoje em dia, ver criança se prostituindo e se conformar
com a situação, isso porque vendo a inércia do Estado, que “comanda” o país, a sociedade se vê sem poder para agir. Primeiro, não tem infra-estrutura, e segundo, porque no país tudo depende do Estado. Poderia a sociedade denunciar anonimamente, mas por medo da violência prefere se calar.
Outro culpado por essa situação é a própria criança que, vendo o beneficio
financeiro, acaba não denunciando seu agressor e nem mesmo assumindo que se
prostitui. Além disso, com medo de agressões, deixa de denunciar pelo fato de
próprio agente estar se beneficiando às custas da criança. Nesse caso, não tem
como tomar as devidas atitudes em relação ao problema, pois a própria criança
se omite em dizer a verdade. Isto tudo aliado ao fato de que, embora corrompidas, ainda mantêm em seu íntimo a ingenuidade para as coisas mais complexas,
próprias dos infantes.
Enfim, nos é garantido o direito à vida com dignidade; portanto, se cobrando
a atitude do Estado não melhora muita coisa, a sociedade deveria se mobilizar criando programas, principalmente de educação, para que a criança e o adolescente possam acreditar que o caminho a percorrer é satisfatório, no sentido de propiciar a
eles uma vida com dignidade perante a sociedade.
Assim, é imperativo que todos os envolvidos, Estado, população, pais e crianças tenham consciência da gravidade do fato, das mazelas conseqüentes de sua existência, que causam profundas máculas, eternas no consciente do infante, se unam
para que se dê um basta em tal situação, aviltante e repugnante, deixando que nossas crianças possam viver com dignidade e honra essa fase tão importante no desen-
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volvimento do ser humano.
REFERÊNCIAS
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LORENZI, Mario. Prostituição infantil no Brasil e outras infâmias. Porto Alegre: Tchê!.
1987.
DIMESNTEIN, Gilberto. Meninas da Noite – A prostituição de meninas escravas no Brasil.
5.ed. São Paulo: Ática, 1992.
VARELLA, Drauzio. Gravidez indesejada e violência urbana. Folha de São Paulo. São Paulo, 4 set. 2004, p. E8.
BENYHE, Irene. Um nascer antes do tempo: práticas sexuais precoce. 123f. TCC – Faculdade de Serviço Social, Instituição Toledo de Ensino de Bauru, Bauru. 1999.
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Questões Penais Controvertidas – Doutrina e Jurisprudência.
5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
VERONESE, Josiane Rose Petry. Temas de Direito da Criança e do Adolescente. São Paulo:
LTR, 1997.
LAGENEST, J. P. Barruel. Mulheres em Leilão – Um Estudo da Prostituição no Brasil. 2.ed.
Petrópolis: Vozes, 1975.
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ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção Constitucional das Pessoas Portadoras de Deficiência, CORDE, Brasília/DF, 1997, pág 57.
ARAUJO, Luiz Alberto David. Direito da Pessoa Portadora de Deficiência: uma tarefa a ser completada, Centro
de Pós graduação- ITE, Bauru/SP, 2003, pág 25.
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RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO
NA CIRURGIA PLÁSTICA
Priscila Fernanda Xavier
Aluna matriculada na Instituição Toledo de Ensino, Bauru/SP.
Orientadora: Professora Magali Ribeiro Collega
RESUMO
A presente pesquisa é enfocada neste assunto de grande repercussão na atualidade, devido á popularização das cirurgias plásticas. O pesquisador do direito precisa estar atento aos apelos da sociedade, que vive em constante modificação. Será
discutido o tipo de responsabilidade que possui o profissional em cirurgia plástica,
tanto nas reparadoras quanto nas puramente estéticas, bem como a natureza da sua
obrigação, o tipo de contrato celebrado na relação médico paciente, dentre outros
assuntos de grande relevância para o tema discorrido.
Palavras-chave: Responsabilidade Civil, Cirurgião Plástico, Paciente.
INTRODUÇÃO
Tal tema possui grande relevância social devido à difusão de cirurgias plásticas
realizadas no Brasil, alcançando não só as camadas mais privilegiadas, como também
atingindo indivíduos de classe social média. O presente artigo aborda as seguintes
questões: direitos e deveres na relação médico-paciente, quais são os limites da responsabilidade do médico nas cirurgias puramente estéticas e nas reparadoras, enfatizando se é uma obrigação de meio ou de resultado, qual o tipo de contrato celebrado na relação médico-paciente.
Entende-se por dever jurídico a conduta externa que ao homem é imposta
pelo direito positivo para que haja convivência social harmônica.
Conforme afirma San Tiago Dantas “O principal objetivo da ordem jurídica é
proteger o lícito e reprimir o ilícito”.
Importante se faz distinguirmos responsabilidade de obrigação:
3
Dados levantados em Reportagem realizada no telejornal da Globo em 17 de maio de 2004. Disponível em:
www.globo.com.
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Obrigação é um dever jurídico originário, e responsabilidade é um dever jurídico sucessivo, que passa a existir com a violação da obrigação.
Segundo Larenz “a responsabilidade é a sombra da obrigação”, se não houver
uma obrigação violada não existirá responsabilidade.
Será responsabilizado aquele que descumpriu o dever jurídico, ou seja, a
obrigação.
A responsabilidade pode ter várias classificações: – Civil e penal:
A ilicitude não existe apenas no direito penal, ela tem lugar em qualquer ramo
do direito, pois se trata da contrariedade entre a conduta e a norma jurídica. Será
classificada de acordo com a norma jurídica violada, se o agente violou uma norma
jurídica penal, de direito público, será ilícito penal, se violou uma norma jurídica civil, de direito privado, será um ilícito civil.
O limiar entre o ilícito penal e o civil está no bem a ser tutelado juridicamente, mas uma está de certa forma interligada à outra, pois quando há uma sentença
penal condenatória esta faz coisa julgada no civil quanto ao dever de indenizar o
dano causado pela conduta criminal.
A responsabilidade civil leva em conta o prejuízo, o dano, o desequilíbrio patrimonial, embora no caso de dano moral, o que se busca suprir é a dor psíquica e
o desconforto emocional da vítima. Se não houver dano ou prejuízo a ser ressarcido não há de se falar em responsabilidade civil.
Contratual e extracontratual
A responsabilidade será contratual quando o dever jurídico violado estiver
previsto em contrato, quando preexistir um acordo de vontades entre as partes, mas
quando o dever de indenizar surge de lesão de direito subjetivo, sem que entre o
ofensor e o ofendido preexista qualquer relação jurídica, temos a responsabilidade
extracontratual.
Na culpa contratual, leva-se em conta o inadimplemento da obrigação; na culpa aquiliana, leva-se em conta a conduta do agente e a culpa em sentido lato.
No caso de cirurgia plástica, é evidente a natureza contratual da responsabilidade médica, mas é claro que há, em outras especialidades médicas, casos de responsabilidade que não tenham origem de contrato, por exemplo, um médico que
atende a um acidentado que chega desacordado num pronto socorro.
A obrigação de reparar o dano sempre existirá, seja produzida dentro do contrato ou fora dele.
Subjetiva e Objetiva
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COSTALLAT, Fernanda Lavras. O Direito ao Trabalho da Pessoa Deficiente,Fundação Síndrome de Down: Campinas, SP, 2003 pág. 31.
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Na responsabilidade subjetiva, a prova da culpa é de fundamental importância, para que se possa exigir a reparação do dano. É importante mencionar que, aqui,
a palavra culpa é empregada lato sensu, englobando a culpa strictuo sensu e o dolo.
Os pressupostos para a responsabilidade subjetiva são: conduta culposa do agente,
nexo causal e dano.
A prova da culpa do agente nem sempre é possível; então, importantes trabalhos vêm sendo sustentados acerca da responsabilidade objetiva, sem culpa, que é
baseada na teoria do risco.
Na responsabilidade objetiva, noções de risco e garantia ganham força para
substituir a culpa, sendo então necessário apenas que a vítima prove o dano e o
nexo causal, sendo desconsiderada a culpabilidade.
Este tipo de responsabilidade somente será aplicada se a lei expressamente
autorizar; caso contrário, a responsabilidade será subjetiva.
Vale observar que, na responsabilidade objetiva, o dever de indenizar recai sobre um número maior de pessoas.
Importante mencionar, também, a diferença entre obrigação de meio e obrigação de resultado e a importância dessa diferenciação no caso da responsabilidade
do médico, inclusive na cirurgia plástica, estética e reparadora.
A obrigação de meio é quando a própria prestação exige nada mais, do devedor, do que o emprego de determinado meio, sem vislumbrar o resultado; já a obrigação de r

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