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REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL E D I T O R I A L A missão fundamental de uma revista é proporcionar visibilidade ao conhecimento, sendo exigida hoje, em um conjunto de complexas práticas para multiplicar a difusão das publicações. A partir do número anterior, a Diaphora – Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul iniciou um novo ciclo de trabalho. As modificações introduzidas objetivaram fortalecer a Revista como uma oportunidade que se abre para a propagação da produção científica nas diferentes áreas da Psicologia. A Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul segue acreditando nos avanços do seu processo editorial, auxiliado pelo trabalho e empenho da equipe, consultores e autores, fundamental para o bom andamento do trabalho. Nesse segundo número de 2012 traz um conjunto de artigos e resenha com visões e referenciais teóricos diversos. Dentre os artigos de pesquisa, os primeiros deste número são de pesquisadores de âmbito internacional. O primeiro deles trata de uma área importante da Psicologia, intitulado Caracterização da cultura organizacional em organizações policiais de Portugal. O segundo trata da Auto-regulação emocional e vinculação em adultos toxicodependentes. O próximo artigo vem da França e nos traz um estudo sobre adolescência, suas alterações biopsicossociais e a doença crônica, apontando esta influencia mutua, com especial relevância ao comportamento social e a ruptura da temporalidade que age paralelamente sobre a noção de identidade do enfermo - Nada será nunca mais como antes: o adolescente doente crônico: o exemplo do diabete insulino-dependente. O próximo estudo, também de Portugal, nos brinda com o trabalho intitulado Síndrome de burnout: um estudo comparativo entre enfermeiros e médicos portugueses. Em seguida, um tema bastante atual que reflete a importância de pesquisas que investigam aspectos sobre o Suicídio no Brasil e América Latina: revisão bibliométrica na base de dados Redalyc. Os próximos, Elaboração das Formulações Psicodinâmicas de Caso: um estudo exploratório. Dentre os artigos de revisão, Psiquismo Fetal: Um Olhar Psicanalítico transita pela teoria psicanalítica a partir de sua clínica. O trabalho intitulado O Mini-Exame do Estado Mental na avaliação neuropsicológica pós-TCE: aplicabilidades tem como objetivo a investigação do traumatismo craniencefálico (TCE), aponta uma das maiores causas de lesão cerebral com altos índices de morbidade e mortalidade em jovens. Saúde da Mulher e Medicina Tradicional Chinesa alem de, A escola promotora da saúde e o desenvolvimento de habilidades pessoais, ambos voltados a questões de promoção e manutenção de saúde, sua influência sobre as condições e qualidade de vida, tema que vem ocupando políticos e pesquisadores na busca de soluções para enfrentar os múltiplos problemas de saúde que afetam as populações humanas e seus entorno neste inicio de século. Fechando este numero temos a resenha de Oswaldo Otávio Henrique Braz de Oliveira que analisa a obra de Maria Helena Fávero, Psicologia do Gênero: Psicobiografia, sociocultura e transformações. Uma proposta de ressignificação, ressaltando o valor da produção. Desejamos que apreciem os trabalhos e tenham uma boa leitura! Tânia Rudnicki Referências Helmanm, C.G. (2009). Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: ARTMED. 431p Yamamoto, O. H. (2001). Vale a pena avaliar periódicos científicos? Estudos de Psicologia, 6(2), 129-130. Trzesniak, Piotr; Koller, Silvia H. (2009): A redação científica apresentada por editores. In: A. A.Z. P. Sabadini, M. I. C. Sampaio, & S. H. Koller (Orgs.), Publicar em psicologia: um enfoque para a revista científica (pp. 19-33). São Paulo: Associação Brasileira de Editores Científicos de Psicologia; Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. 1 R E L ATO D E P E S Q U I S A Caracterização da cultura organizacional em organizações policiais de Portugal Characterization of the organizational culture of police organizations in Portugal Sónia P. Gonçalves(a)*, José Neves(b) Resumo: Este estudo teve como objectivo caracterizar a cultura organizacional de um conjunto de instituições de polícia em Portugal. Para tal, recorreu-se à conceptualização de cultura organizacional com base no modelo dos valores contrastantes. Foram inquiridos, através de questionário, 856 polícias de sete organizações policiais. Os resultados sugerem uma partilha nas percepções das orientações de cultura organizacional, denotando-se a predominância para a ênfase na dimensão interna, em termos de uma orientação para o apoio e para as regras. De destacar que a orientação para a inovação surge como menos caracterizadora deste sector. Palavra-chave: Cultura organizacional; Valores organizacionais; Polícia Abstract: This study aimed to characterize the organizational culture of police institutions in Portugal. The conceptualization of organizational culture was based on the model of competing values. Through questionnaire were inquired 856 police officers from seven police organizations. The results suggest a shared perception of organizational culture orientations, showing predominance for the emphasis on internal dimension in terms of support and rules. The results also highlighted that the orientation to innovation appears as less characterize of this sector. Keywords: Football; Criminality data; Policing a Doutora em Psicologia do Trabalho e das Organizações; Docente no Instituto Piaget; Investigadora no Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS/ISCTE- IUL) - Lisboa, Portugal. *E-mail: [email protected] b Psicólogo: Doutor em Psicologia; Docente no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) - Lisboa, Portugal. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 1 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13 O conceito de cultura tem a sua raiz na antropologia e foi definido como sendo um conjunto de aspectos que são adquiridos pelo Homem enquanto membro da sociedade, tais como as crenças, as leis, os costumes, os hábitos, etc., manifestando-se nos modos de vida dos indivíduos e nos artefactos utilizados. Perspectivada no contexto organizacional, o estudo da cultura organizacional, teve início demarcado nos finais dos anos 70 e conheceu um franco desenvolvimento durante a década de 80. Os processos de fusões e as aquisições de organizações que ocorreram durante a década de 90, vieram reforçar a importância da cultura organizacional enquanto factor que pode dificultar ou facilitar a gestão dos indivíduos e do trabalho (Neves, 1996). Esta tomada de consciência por parte dos investigadores e dos profissionais acerca do interesse da cultura decorreu quando se apercebam que não são apenas os factores económicos que influenciam o sucesso da organização, pois os factores não económicos, como sejam os valores, as crenças e os pressupostos, parecem ter importância nas práticas e sucesso organizacional (Neves, 1996), nomeadamente quando se constatou nos anos 80 que empresas com diferentes níveis de sucesso apresentavam diferenças em termos de valores e estilo de gestão. De tal forma que Sarmento (1994, p. 94) afirma que a “(…) abordagem cultural das organizações e o conceito de cultura organizacional permitem que se dirija a atenção para os aspectos simbólicos no interior das organizações e para a atribuição de significado pelos actores aos diferentes momentos e realidades da ‘vida’ organizacional”. Inúmeros estudos têm sido conduzidos no sentido de caracterizar a cultura organizacional de organizações de diferentes sectores de actividade (Neves, 1996, 2000). No seguimento desta linha de investigação o presente estudo foca um sector cuja importância social é conhecida e reconhecida, mas sobre o qual pouco se conhece em termos do seu funcionamento interno – o sector policial. No actual contexto social todas as organizações sem excepção, confrontam-se com mudanças e desafios constantes, cuja adaptação e sucesso dependem da própria cultura organizacional e daqui emerge a importância de se conhecer realidade laboral e organizacional dos diferentes sectores e organizações. de investigação, é a mais citada e utilizada servido de base a inúmeros trabalhos de investigação. Segundo Schein (1992, p.12), a cultura pode ser definida como: “A pattern of shared basic assumptions that the group learned as its solved its problems of external adaptation and internal integration, that has worked well enough to be considered valid and, therefore, to be taught to new members as the correct way to perceive, think, and fell in relation to those problems”. Assim, Schein sugere que uma vez que o grupo tenha aprendido e retido os pressupostos básicos que o ajudaram a lidar de forma eficaz com problemas de adaptação externa e integração interna, estes resultam em padrões partilhados quase automáticos de pensar, sentir e agir, e fornecem significado, conforto e estabilidade, e facilitam a interpretação e acção em situações novas. Estes padrões são ensinados aos novos membros como sendo a forma correcta de percepcionar, pensar e sentir esses problemas e situações. Modelo de Valores Contrastantes O Modelo de Valores Contrastantes de Quinn é um dos modelos de referência nesta área, sendo considerado que a abordagem dos valores contrastantes aplicada à cultura organizacional é “talvez a mais adequada para captar o sentido paradoxal e por vezes pouco racional e caracterizador da natureza dos fenómenos organizacionais, o que pressupõe um pensamento janusiano capaz de pensar ideias contraditórias, como integradas e funcionalmente eficazes” (Neves, 2001, p.91). O modelo dos valores contrastantes (Quinn & Rohrbaugh, 1981) representa-se por dois eixos (Figura 1) que formam quatro quadrantes: o eixo horizontal remete para orientação interna vs. externa, sendo que a orientação interna coloca a ênfase no desenvolvimento dos recursos humanos e na manutenção de um ambiente de trabalho estável e cooperante, enquanto que a orientação externa enfatiza o desempenhar das actividades para crescer e adquirir recursos. O eixo vertical representa a flexibilidade vs. controle, representando o factor flexibilidade a importância da iniciativa individual, da rapidez e da adaptabilidade organizacional, enquanto o factor controle acentua a necessidade de hierarquia e controle. Da combinação destes eixos resulta uma estrutura conceptual de quatro tipos de cultura organizacional: cultura de apoio, cultura de inovação, cultura de regras e cultura de objectivos (Quinn, 1985, Cultura organizacional 1991). Estes quatro quadrantes são suportados por diferentes A definição de cultura organizacional é um dos pontos que modelos teóricos: modelo das relações humanas, modelo dos tem sido alvo de debate no seio dos investigadores. Todavia, a sistemas abertos, modelo dos processos internos e modelo dos definição de Edgar Schein, considerado pioneiro neste campo objectivos racionais. 2 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13 Modelo das relações humanas Modelo dos sistemas abertos Flexibilidade APOIO INOVAÇÃO Participação Rapidez Crescimento Coesã Interno Externo Informação Produtividade Estabilidade Planeament REGRAS Modelo dos processos internos OBJECTIVOS Controle Modelo dos objectivos racionais Figura 1. Representação esquemática do Modelo de Valores Contrastantes. Nota. Adaptado de Neves (1996). O quadrante superior esquerdo resulta dos vectores de orientação interna e da flexibilidade, associados à participação e à coesão. Neste quadrante fala-se de cultura de apoio que se desenvolve em torno de valores como a participação, o trabalho em equipa, o sentimento de pertença e a confiança. Este tipo de cultura insere-se no modelo de relações humanas, no qual é enfatizado o desenvolvimento humano e a motivação com base na coesão, no compromisso e na descentralização das decisões; O quadrante superior direito traduz o modelo dos sistemas abertos, definido pelos vectores da flexibilidade e da orientação externa que potencia uma cultura de inovação. Neste contexto sobressaem valores de rapidez e crescimento, sendo valorizada a flexibilidade e a mudança, centrando a atenção da organização nas respostas às exigências da envolvente externa com vista à adaptação O quadrante inferior esquerdo destaca o modelo dos processos internos que valoriza a estabilidade interna e o controlo dos processos. Este modelo está associado à organização burocrática e tradicional, criando uma cultura de regras, na qual prevalece a formalização, estruturação, centralização, uniformidade e estabilidade em busca da eficácia. Por fim, o quadrante inferior direito traduz o modelo dos objectivos racionais, definido pelos vectores do controle e da orientação externa, em que o fundamental é o alcance da produtividade e da eficiência. Nesta cultura de objectivos há uma orientação para os resultados e o alcance dos objectivos pré-definidos, enfatizando a produtividade, o desempenho em prol do alcançar dos objectivos definidos. Estas culturas, segundo Quinn (1991), não são estanques podendo emergir em qualquer organização e dentro de cada realidade organizacional. Não existem tipos únicos de cultura, ou seja, nenhuma organização se caracteriza por apenas um tipo de cultura mas pela sua coexistência, embora com ênfases diferentes (Denison & Spreitzer, 1991) e quanto maior a dominância e a nitidez dos contornos, mais intensa e forte será a cultura (Cameron & Freeman, 1991). Assim, “(…) in that sense types of organizational culture should not be viewed as mutually exclusive, but rather as complementary. The pattern of organizational culture then reflects the relative importance and dominance of types of organizational culture in a particular organization, but also, the relationship between types of organizational culture” (Reino, 2009, p. 60). O modelo dos valores contrastantes parte do pressuposto teórico de que as organizações não se encontram num estado de equilíbrio perfeito, e que as quatro orientações integram a dinâmica e a complexidade inerente à organização, colocando como hipótese a recepção de diferentes graus e ênfases. Os quatro quadrantes não são apenas abstracções, mas representações de quatro formas de ver a realidade organizacional (Quinn, 1991). De acordo com Neves (1996, 2000) este modelo de 3 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13 conceptualização da cultura organizacional apresenta as vantagens de constituir uma estrutura teórica integrada que possibilita o entendimento mais profundo sobre a cultura, uma vez que a integra nas principais teorias organizacionais; permite a clarificação do conteúdo conceptual, na medida em que é representado graficamente, e contextualiza a cultura organizacional na sua forma de funcionamento paradoxal e contrastante, dinamizando as relações e dando conta do carácter de simultaneidade das várias orientações contrastantes que cada organização pode prosseguir no seu funcionamento. Para além disto, em termos de investigação permite a formulação de hipóteses de estudos, a partir da forma como cada tipo de cultura se relaciona com outros critérios comparativos como a estratégia, o desempenho, os recursos humanas, a liderança, entre outros. A cultura no contexto da polícia As questões associadas à cultura no contexto policial têm sido estudadas em duas grandes linhas de investigação: por um lado, associada à temática das sub-culturas ocupacionais (também designada por cultura policial) e, por outro lado, ao tema da cultura organizacional. A primeira linha de investigação subordinada à cultura policial, tem vindo a ser estudada há mais de quarenta anos (Paoline, 2004), com especial incidência nos Estados Unidos da América (Boke & Nalla, 2009). Esta linha de investigação emerge da ideia que a organização policial é marcada por características próprias, fruto da sua natureza e missão específicas que conferem uma identidade própria ao grupo ocupacional (Quiar, 2001). A segunda linha de investigação, na qual se enquadra o presente trabalho, tem procurado caracterizar a cultura organizacional das organizações policiais. Um dos pontos assumidos na literatura, associa o princípio do militarismo como estando na base da Organização Policial e da sua organização hierárquica e centralizada (Duarte, 2005), conduzindo a uma herança burocrática dos modelos racionais de organização (Clegg, 1998; Motta, 1976) que levam à adopção de uma estratégia de sistema fechado. Sendo associada a uma estrutura burocrática mecanicista (Mintzberg, 1995), tende a fixar-se nos princípios da organização da administração científica, baseado no the one best way da Escola Clássica, que concebe a organização como uma máquina que tem implícita a superioridade técnica e instrumental da burocracia, a diferenciação funcional, um comando hierárquico rígido com hierarquias claras, a coordenação sistemática dos meios em ordem aos fins, o controlo nas diferentes etapas do processo, e a contínua maximização dos resultados o que implica uma forte profissionalização dos profissionais (Ferrreira, 2001; Motta, 2001) e que tende a conduzir a uma visão mais voltada para o interior da organização (Soeiro, 1994). Segundo Leitão, citado por Duarte 20(05), a organização policial em Portugal encontra-se associada a uma visão instrumentalista do Estado e do poder, que promove a criação de uma cultura interna que aposta na manutenção e na reposição da ordem pública, alimentando rotinas burocráticas e mecanismos internos de recolha e tratamento de informação, muitas vezes associada à intervenção reactiva pós-situação e pouco preventiva. As consequências secundárias de uma cultura organizacional burocratizada associam-se a uma orientação a curto prazo e com ausência de pensamento estratégico a longo prazo, que poderá dificultar os planos de acção e o alcance dos objectivos, conduzindo a um enviesamento desses mesmos objectivos, à comunicação pobre com o ambiente, à dificuldade em realizar determinadas tarefas e à baixa produtividade (Duarte, 2005; Mintzberg, 1995). Robles (1997) assume que o conservadorismo, associado às organizações policiais, pode ser uma forma de protecção organizacional e profissional pelo facto da sobre-exposição a um ambiente desorganizado e por operar na desordem, ou poderá estar associado ao facto de actuar num ambiente regulado, tendencialmente assente no pressuposto da estabilidade, consolidando uma cultura com elevada formalização e rigidez, focada no cumprimento dessas normas. Apesar de considerar que a organização policial tende para a estrutura da burocracia mecanicista, principalmente devido “à sua orientação para um controlo muito acentuado que pretende eliminar as incertezas e os conflitos, e pela necessidade de prestar contas à sociedade” e ter sido “concebida para missões pré-determinadas e específicas em que o seu domínio tem de ser, por excelência, o da eficácia e não o da inovação” (Duarte, 2005, p. 22). Duarte (2005) discute brevemente a ideia de que a organização policial se deveria estruturar como burocracia profissional e adoptar uma postura adaptativa, não estando imune às variações do ambiente e aos fenómenos organizacionais, como a idade e dimensão da organização, a tecnologia, o controlo, as relações de poder e a estratégia organizacional (Ferreira, 2001). Reforça-se, assim, a necessidade de ajustar e modificar os objectivos e formas de actuação proactivamente e não apenas em momentos de crise (Duarte, 2005). As “sociedades cada vez 4 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13 mais complexas têm vindo a exigir estruturas organizacionais que se coadunem com as suas exigências, sendo a especialização, a profissionalização e o poder da competência, mais do que a autoridade hierárquica e de posição, que marcam as necessidades de respostas eficazes e eficiências das organizações” (Duarte, 2005, p. 22). Esta noção de mudança parece reflectir em grande parte os desafios que se colocam actualmente às organizações policiais, que têm procurado dar resposta, traçando um conjunto de objectivos internos e de gestão dos seus recursos humanos, nomeadamente, o investimento na formação dos profissionais de polícia, bem como um investimento operacional em programas específicos dando resposta às necessidades do seu ambiente externo, ou seja, da sociedade. De acordo com a tipologia de Blau e Scott (1977), a polícia está incluída nas Organizações de Estado, cujo beneficiário é o público em geral. A tipologia de Blau e Scott enfatiza a influência do beneficiário sobre a organização, ao ponto de condicionar a sua estrutura e os seus objectivos. Apesar desta tentativa de mudança de paradigma de gestão interna e operacional, a polícia ainda tende a ser percepcionada como rígida, pouco permeável à mudança, com respostas lentas para as situações que ocorrem, criando barreiras não só em relação à sua actuação para o exterior mas, também, em relação à actuação do exterior para com o interior (Duarte, 2005). Por exemplo, o estudo de Cosner, Brickman e Payne (2004), utilizando o modelo de cultura de Harrison (1972) concluiu que os polícias percepcionam a sua organização como uma cultura voltada para o poder (alta centralização e baixa formalização). Duarte (2005), num estudo com a Polícia de Segurança Pública de Braga (no norte de Portugal), verificou que a cultura de regras assume uma dominância central, existindo um predomínio do eixo do controlo e dos processos internos. O simbólico na polícia Os símbolos, os ritos, as cerimónias, os mitos e a linguagem, são exemplos de manifestações da cultura organizacional. A Polícia está repleta destas simbologias. Os símbolos são bem visíveis no exterior desta hierarquia, reforçando o sentimento de pertença e de identidade com os valores do grupo. Por exemplo, os uniformes, os galões e o número. O uniforme é o significado do compromisso profissional, os galões são o símbolo da autoridade e da hierarquia, o número representa a antiguidade e a identificação do profissional (Robles, 1997). Os rituais visam reduzir a ansiedade e produzir consequências técnicas com importância prática (Trice, 1985), e exemplo disto, são as passagens de turno, durante as quais os polícias que saem e os entram ao serviço reúnem com as chefias para fazer o balanço do serviço, receber instruções e missões específicas de cada patrulha e serviço. Tal como os rituais, também as cerimónias têm como função a consolidação os valores (Deal & Kennedy, 1982), exemplo é a atribuição de mérito excepcional por serviços prestados constituindo um reconhecimento formal e público. A própria linguagem é um indicador de cultura, expressando a existência de um universo simbólico diferenciado (Duarte, 2005). Estes conteúdos simbólicos são internalizados desde do processo de formação, aquando do ingresso na instituição. É um processo longo e intenso durante o qual são expostos à disciplina e às normas internas, nomeadamente, na forma de vestir, pontualidade e tratamento dos formadores, cujo incumprimento é penalizado, para além de ser um período para fomentar os valores de companheirismo e solidariedade entre colegas nos vários desafios que lhes vão sendo colocados. Os conteúdos simbólicos vão sendo internalizados ao longo da socialização já num contexto prático, como seja no patrulhamento e na realização das missões. Durante este período, o polícia tem oportunidade de adquirir informações, técnicas e regras de comportamento que estão para além da teoria do curso inicial de formação (Duarte, 2005). Pelo exposto, este estudo teve por objectivo caracterizar a cultura organizacional de organizações policiais em Portugal, apoiando-se na conceptualização de cultura organizacional baseada no Modelo de Valores Contrastantes proposta por Quinn (1983). A opção por este modelo deveu-se à forma como explícita as relações de oposição e de semelhança entre os vários tipos de cultura fornecendo uma visão dinâmica e integradora do funcionamento organizacional. Método Amostra A amostra é constituída por 856 polícias de sete instituições de polícia, dos quais 91.5% são homens. A idade média dos inquiridos é de 37 anos (DP = 8.85). A maioria é casada (n = 494, 64.2%). Relativamente às habilitações literárias, 57.2% (n = 413) dos inquiridos tem entre 10 a 12 anos de escolaridade. A média de anos de serviço é de, aproximadamente, 13 anos (DP=8.59). Instrumentos e variáveis A cultura organizacional foi operacionalizada através dos valores organizacionais (core da cultura organizacional) medidos com base em 16 itens adaptados de Neves (2001), com 5 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13 base no FOCUS (Van Muijen et al., 1999). Estes itens organizamse nas quatro dimensões e resultam da média dos itens correspondentes, previstas no Modelo dos Valores Contrastantes: cultura de apoio (4 itens; e.g., “Compreensão mútua”; α=0.823), cultura de inovação (4 itens; e.g., “Assumir riscos”; α=0.625), cultura de regras (4 itens; “Cumprimento de regras”; α=0.740) e cultura de objectivos (4 itens; “Ênfase na realização da tarefa”; α= 0.724). Estes itens têm por objectivo avaliar a percepção dos inquiridos, relativamente aos valores organizacionais que caracterizam a organização. Os itens foram respondidos numa escala de tipo Likert de 6 pontos (1=Demodo nenhum a 6=Muítissimo). Os valores de Alfa de Cronbach para a amostra em estudo apresentou qualidades psicométricas (α=0.620 a 0.823) seguindo os padrões de estudos anteriores (Neves, 2001). Os participantes responderam, ainda, a um conjunto de questões de natureza sócio-demográfica. Procedimento Os dados foram recolhidos através de questionário. Foram estabelecidos contactos telefónicos e presenciais com as chefias, tendo-lhes sido explicado o estudo, bem como o procedimento de recolha dos dados. O questionário foi distribuído e, após um período de aproximadamente quatro semanas, procedeu-se à recolha dos mesmos já preenchidos, pessoalmente ou via correio interno. Na Polícia 6 a recolha decorreu também em formato presencial em sala. A taxa de resposta no total foi de, aproximadamente, 53%. Em todas as instituições obtivemos uma taxa de resposta acima dos 50%, com excepção da Polícia três e Polícia dois que se rondou os 20% e 24%, respectivamente, de taxa de resposta e representatividade. No caso da Policia sete a taxa de resposta é de 77% (Tabela 1). A recolha de dados cumpriu as recomendações do princípio específico de investigação do Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses, publicado na 2.ª Série do Diário da República a 20 de Abril de 2011, Regulamento n.º 258/2011. Tabela 1 Distribuição da amostra por instituição e % de resposta ab N % Tipo de políciaa Polícia 1 33 51% Polícia municipal Polícia 2 11 24% Polícia municipal Polícia 3 8 20% Polícia municipal Polícia 4 15 65% Polícia municipal Polícia 5 27 57% Polícia municipal Polícia 6 225 75% Polícia/Força de segurança e Polícia municipal Polícia 7b 537 77% Polícia/Força de segurança Total 856 53% --- Dado este trabalho incluir um sector de actividade específico considerou-se necessário abordar, ainda que muito sucintamente, a organização das polícias em Portugal. O sector policial em Portugal reveste-se de elevada complexidade dada a fragmentação e dispersão das entidades. A caracterização das instituições pode ser feita com o apoio de um conjunto de diferentes critérios base. Tendo como critério de diferenciação a presença prevista no Sistema de Segurança Interna, as Polícias seis e sete são entidades incluídas nas forças e serviços de segurança interna, enquanto as Polícias Municipais não se encontram incluídas. Considerando a natureza jurídica e formativa do pessoal que constitui o quadro das polícias, a Polícia sete possui natureza militar e as restantes são de cariz civil. Relativamente às atribuições, todas, excepto as Polícias Municipais, são funcionalmente órgãos de polícia criminal. Outra classificação que pode ajudar a distinguir as polícias está relacionada com o âmbito territorial de actuação. As polícias municipais são um serviço de âmbito municipal, enquanto as restantes polícias são de âmbito nacional. À Polícia sete cabe a responsabilidade pelas áreas rurais e peri-urbanas. A Polícia seis, dado acumular funções de força de segurança e polícia municipal, compete-lhe a responsabilidade por uma grande área urbana. Outra distinção rege-se pelo órgão de dependência hierárquica. As polícias municipais dependem directamente da Administração Autónoma Local dos respectivos municípios, mais concretamente, do Presidente da Câmara. A Polícia sete depende directamente da Administração Estadual Directa Central, ou seja, do Governo, através do Ministro da Administração Interna. A Polícia seis por acumular funções tem a dupla dependência, a As polícias incluídas no estudo são não especializadas, tendo um campo de intervenção alargado; b Foram seleccionados para participar no estudo os locais que pertenciam às mesmas zonas geográficas das restantes polícias envolvidas no trabalho. 6 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13 pois em termos operacionais responde ao Presidente da Câmara Tabela 3 Municipal e em termos de gestão dos operacionais rege-se pelas Diferenças das médias dos pares das orientações culturais M DP Pares regras do Ministério da Administração Interna. comparados Resultados Caracterização da cultura organizacional em função das organizações envolvidas A Tabela 2 ap resenta a análise descritiva dos resultados da análise das diferenças médias da cultura em função das sete organizações envolvidas, bem como os valores do índice de James (Rwg) para aferir o grau de consenso entre as percepções dos polícias acerca dos valores organizacionais predominantes. Em termos globais, da análise da Tabela 2 (coluna do Total), constata-se ser a orientação para o apoio (M=4.01) o valor que predomina, seguida da orientação para as regras (M=3.99), objectivos (M=3.68) e por fim, a orientação para a inovação com valores mais baixos (M=2.84). Para aprofundar este resultado, i.e., se as médias das diferentes orientações culturais na amostra global eram significativamente diferentes fez-se comparação entre duas variáveis, i.e. o Teste T à diferença de médias (t-test pairs), cujos resultados são apresentados na Tabela 3. Os resultados revelam que não existem diferenças significativas entre a cultura de apoio e a de regras (t(822)=.480, p=.631), contudo todos os restantes pares de médias apresentam diferenças estatisticamente significativas. Conclui-se assim que, termos globais, denota-se a ênfase na orientação interna. A tensão observa-se em termos dos resultados globais ao nível do eixo vertical, com a tensão entre a flexibilidade associada à importância da iniciativa individual, da rapidez e adaptabilidade organizacional e o controle, que acentua a necessidade de hierarquia e controle. A dimensão externa aparece como menos dominante, especialmente a orientação para a inovação. De realçar que as percepções globais dos profissionais das sete instituições, apresentam forte nível de consenso (valores de Rwg superiores a 0.70 indicam a existência de consenso entre as percepções individuais (Naumann & Bennett, 2000). Cultura Inovação – Organizacional Apoio Inovação – Objectivos Inovação – Regras Apoio – Objectivos Apoio – Regras Objectivos – Regras -1.170 t g.l. p 1.039 -32.332 823 .000 -0.841 1.190 -20.302 823 .000 -1.149 1.282 -25.711 821 .000 0.332 1.193 8.006 824 .000 0.021 1.241 0.480 822 .631 -0,300 1,149 -7,498 822 .000 Analisando por instituição, os resultados revelam diferenças significativas entre as várias organizações na forma como a cultura é percepcionada (ver última coluna da Tabela 2). Para analisar essas diferenças recorreu-se ao teste de Scheffe para comparações múltiplas (Scheffe’s multiple comparison test). Relativamente à cultura de inovação, os resultados revelam que a Polícia dois apresenta o valor mais baixo de percepção de cultura de inovação, diferindo significativamente das Polícias um, três e quatro que apresentam os valores mais elevados. Por sua vez, as Polícias três e quatro diferem-se também da Polícia cinco que apresenta, igualmente, valor mais baixo de percepção de cultura de inovação. No que concerne à cultura de apoio a Polícia cinco difere da Polícia quatro e Polícia três, sendo que a primeira apresenta valores de percepção de cultura de apoio significativamente mais baixo comparativamente aos valores mais elevados das Polícias quatro e três. As percepções cultura de objectivos revelam que a Polícia dois difere das Polícias sete, seis, três e quatro, apresentando valores mais baixos. Também a Polícia cinco difere das Polícia seis, três e quatro, apresentando estas últimas os valores mais elevados. Na cultura de regras, as Polícias cinco e dois diferem das Polícias seis, três, sete e quatro, pois por apresentam valores mais baixos. A análise do índice de James revela um forte consenso nas percepções dos polícias acerca dos valores das suas organizações (Rwg> .70). Esta análise permite realçar as tensões existentes entre as diferentes dimensões em cada organização, visíveis nas representações gráficas da Figura 2. 7 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13 DP .85 Rwg 4.04 3.16 M 1.14 0.74 0.94 DP 0.81 0.81 0.88 0.84 Rwg 2.16 2.07 4.02 1.68 M 1.13 0.67 0.78 0.62 DP 0.81 0.89 0.87 0.90 Rwg 4.15 4.09 4.63 3.70 M 1.17 1.17 0.98 1.01 DP 0.81 0.81 0.84 0.83 Rwg 4.66 4.64 4.62 3.82 M 0.91 0.98 0.52 0.56 DP 0.85 0.84 0.91 0.91 Rwg 2.07 2.39 3.48 2.14 M 0.88 1.21 0.62 0.92 DP 0.85 0.80 0.90 0.85 Rwg 3.98 3.90 3.93 2.82 M 1.21 1.38 0.98 1.13 DP 0.80 0.77 0.84 0.81 Rwg 4.15 3.66 4.05 2.84 M 1.22 1.19 0.77 1.04 DP Polícia 7 M 1.07 .87 3.45 1.13 Polícia 6 Orientações culturais 2.84 0.83 .82 3.34 Polícia 5 Inovação 4.01 1.28 .82 Polícia 4 Apoio 3.68 1.28 Polícia 3 Objectivos 3.99 Tabela 2. Cultura organizacional por organizações – médias, desvio padrão e Rwg1 Total Polícia 1 Polícia 2 Regras Rwg Diferença de médias2 χ2KW 0.83 (6)=47.401, p=.000 χ2KW 0.87 (6)=33.174, p=.000 χ2KW 0.80 (6)=62.242, p=.000 χ2KW 0.80 (6)=84.381, p=.000 Nota. M=Média; DP= Desvio padrão; 1Rwg (Índice de James) é uma medida de acordo que permite ver o grau de consenso entre as percepções (Lindell & Brandt, 2000); 2Optou-se por recorrer ao Teste de Kruskall-Wallis, como alternativa não-paramétrica da One-way Anova, em virtude do não cumprimento dos pressupostos de homogeneidade e normalidade, bem como devido à desproporcionalidade dos n’ s das sub-amostras. 8 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13 Global das 7 organizações Polícia 1 FLEXIBILIDADE FLEXIBILIDADE 6 5 Apoio 4 6 Inovação 5 Apoio 3 2 2 1 INTERNO 1 EXTERNO 0 Regras Inovação 4 3 INTERNO Objectivos EXTERNO 0 Regras CONTROLE Objectivos CONTROLE Polícia 2 Polícia 3 FLEXIBILIDADE FLEXIBILIDADE 6 6 Apoio 5 Inovação 4 5 Apoio 3 2 2 1 INTERNO Inovação 4 3 1 EXTERNO 0 Regras INTERNO EXTERNO 0 Objectivos Regras Objectivos CONTROLE CONTROLE Polícia 4 Polícia 5 FLEXIBILIDADE FLEXIBILIDADE 6 6 Apoio 5 Apoio Inovação 4 Inovação 4 3 3 2 2 1 1 INTERNO 5 INTERNO EXTERNO 0 Regras Objectivos EXTERNO 0 Regras CONTROLE Objectivos CONTROLE Polícia 6 Polícia 7 FLEXIBILIDADE FLEXIBILIDADE 6 6 Apoio 5 4 Apoio Inovação 4 3 3 2 2 0 Regras Inovação 1 1 INTERNO 5 EXTERNO Objectivos INTERNO 0 Regras CONTROLE EXTERNO Objectivos CONTROLE Figura 2. Representação gráfica dos perfis de cultura por organização 9 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13 Na fase seguinte exploraram-se as diferenças de médias, tendo em conta a natureza das instituições, e.g., polícias municipais, polícia com acumulação de funções (força de segurança e polícia municipal) e força de segurança. Verificouse que não existem diferenças entre os tipos de polícias em termos da percepção sobre a cultura de inovação e de apoio. Contudo, há diferenças na percepção da cultura de objectivos e de regras. A polícia com acumulação de funções e a força de segurança percepcionam valores mais elevados, associados a uma orientação para os objectivos e para as regras, do que os registados pelos polícias municipais, conforme (Tabela 4). A análise do Índice de James revela um forte consenso nas percepções dos policias acerca dos valores da sua organização (Rwg> .70). Caracterização da cultura organizacional em função das características sócio-demográficas Para estudar e caracterizar a cultura organizacional em função das características sócio-demográficas, foram realizadas análises de comparação de médias (One-way ANOVA e a alternativa não paramétrica quando os pressupostos não estavam reunidos). As habilitações literárias, a idade e a antiguidade, foram seleccionadas como variáveis a explorar. Da análise da Tabela 5, pode-se verificar que não existem diferenças estatisticamente significativas nas percepções de cultura organizacional, no concerne à escolaridade dos inquiridos. Globalmente, prevalece a dominância da orientação de cultura para o apoio e para as regras, e com menor expressividade a de inovação. Tabela 4 Cultura organizacional por organizações – médias, desvio padrão e Rwga Polícias Polícia c/ acumulação Orientações Total municipais funções culturais M DP Rwg M DP Rwg M DP Rwg Inovação Apoio Objectivos Regras 2.84 4.01 3.68 3.99 1.07 0.83 1.28 1.28 .85 .87 .82 .82 2.85 4.02 3.24 3.12 1.12 .80 1.38 1.39 .82 .83 .79 .79 2.82 3.93 3.90 3.98 1.13 0.98 1.38 1.21 0.81 0.84 0.77 0.80 Força de segurança M DP Rwg 2.84 4.05 3.66 4.15 1.04 0.77 1.19 1.22 0.83 0.87 0.80 0.80 Diferença de médiasb χ2KW (2)= .171, p=.918 χ2KW (2)= 2.882, p=.237 χ2KW (2)= 17.634, p=.000 χ2KW (2)= 41.019, p=.000 a Rwg (Índice de James) é uma medida de acordo que permite ver o grau de consenso entre as percepções (Lindell & Brandt, 2000); b Optou-se por recorrer ao Teste de Kruskall-Wallis, como alternativa não-paramétrica da One-way Anova, em virtude de não cumprimento dos pressupostos de homogeneidade e normalidade. Tabela 5 Diferenças de média (desvio-padrão) da cultura organizacional em função das variáveis sócio-demográficas Escolaridade A. Até 9.º ano B. Entre 10.º e 12.º ano C. Ensino Superior Diferença das médias Observações Idade A.18 a 34 anos B. 35 a 49 anos Com 50 anos ou mais Diferença das médias Observações Antiguidade A. Até 5 anos B. 6-13 anos C.14-20 anos D. Mais de 20 anos Diferença das médias Observações Cultura de inovação Cultura de apoio Cultura de objectivos Cultura de regras 2.923 (1.082) 2.776 (1.061) 3.021 (1.065) F(2,700)=2.068, p=.127 n.s. 4.079 (.942) 3.990 (.740) 4.162 (.567) χ2Kruskall-Wallis(2)=4.246, p=.120 n.s. 3.781 (1.271) 3.656 (1.274) 3.729 (1.141) F(2,698)=.785, p=.457 n.s. 4.054 (1.230) 3.980 (1.304) 3.765 (1.371) F(2,605)=.926, p=.397 n.s. 2.808 (1.045) 2.806 (1.074) 3.108 (1.144) F (2,733)=2.848, p=.059 n.s. 4.023 (.668) 3.961 (.856) 4.216 (1.202) χ2Kruskall-Wallis(2)=4.699, p=.095 n.s. 3.531(1.154) 3.658 (1.298) 4.079 (1.527) χ2Kruskall-Wallis(2)=12.720, p=.002 A, B < C 3.977 (1.281) 3.943 (1.297) 4.076 (1.230) F (2,727)= .333, p=.717 n.s. 2.871 (1.0126) 2.713 (1.050) 2.746 (1.122) 3.106 (1.082) F (3,705)=5.108, p=.002 B, C < D 4.108 (.670) 3.908 (.705) 3.964 (.872) 4.151 (1.009) χ2Kruskall-Wallis(3)=9.820, p=.020 B<D 3.610 (1.161) 3.508 (1.190) 3.519 (1.271) 3.985 (1.363) F(3,703)=2.866, p=.001 A, B, C < D 4.064 (1.304) 3.879 (1.249) 3.849 (1.289) 4.194 (1.236) F(3,700)=2.866, p=.036 B, C < D Nota. n.s. - Não significativo 10 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13 Quando cruzados os escalões etários e as orientações de cultura verifica-se a existência de diferenças estatisticamente significativas, sendo que o escalão etário com mais idade percepciona um nível mais elevado da orientação para a cultura de objectivos do que os dois escalões mais jovens (χ2KruskallWallis(2)=12.720, p=.002). Por fim, ao cruzar-se o número de anos de serviço e as orientações culturais encontram-se diferenças estatisticamente significativas nas percepções de todas as orientações, sendo que, os elementos que estão há mais tempo na organização, apresentam médias mais elevadas em todas as orientações. Discussão Este estudo teve por objectivo caracterizar a cultura organizacional de instituições policiais em Portugal, conceptualizada à luz do Modelo de Valores Contrastantes. No sentido de alcançar este objectivo, foram aplicados questionários a uma amostra de 856 polícias de sete instituições policiais. Em termos globais, constata-se um predomínio de um sector de actividade voltado para os processos internos, sendo que as orientações para o apoio e para as regras reúnem a maior intensidade das percepções. A orientação para a cultura de apoio remete para uma ênfase na componente humana, assim como para as interacções sociais de tipo informal, tendencialmente acompanhadas por uma liderança que viabiliza os valores do desenvolvimento e envolvimento humano. A orientação para as regras remete para organizações estruturadas e formais, que enfatizam o controlo e a uniformidade, valorizando a segurança, a estabilidade interna e a integração organizacional, assumindo, por isso, um propósito tendencialmente burocrático. O critério de organização do trabalho é maioritariamente funcional sendo caracterizado por códigos fortemente interiorizados, alimentados pela história e pelas funções da própria organização, mostrando uma resistência à inovação. De certa forma, estes resultados globais são dissonantes com investigações anteriores neste contexto (Duarte, 2005) as quais remetem para o predomínio das regras e dos objectivos. Isto poderá ser sinal das mudanças que este sector de actividade está a tentar implementar, no sentido da aposta nos seus recursos humanos, e, aparentemente, os indivíduos que têm mais anos de serviço têm mais percepção desta tensão entre a flexibilidade e o controlo, muito provavelmente porque têm assistido de forma mais permanente e continuada às mudanças internas. Quando se analisam os três tipos de polícias (i.e., força de segurança, polícia com cumulação de funções e polícias municiais) verifica-se que nas forças de segurança é detectada uma maior ênfase nos objectivos e regras do que nas polícias municipais. Este resultado poderá estar associado às características das organizações, como a idade e a dimensão. As organizações mais velhas e de maior dimensão tendem para uma cultura de regras (Cameron & Quinn, 1999; Dastmalchian, Lee & Ng,. 2000). estas características estão presentes nas forças de segurança, já que as polícias municipais são organizações muito jovens e com dimensões significativamente mais pequenas. Denota-se um realce menos vincado da orientação externa, a qual tende a enfatizar o desempenhar das actividades para crescer e adquirir recursos. Esta conclusão vem reforçar o caminho que estas instituições ainda têm que fazer no sentido de se aproximarem ao exterior e à comunidade, através de um investimento e demonstração que a comunidade e o exterior são prioridades. Isto faz ainda mais sentido, considerando que estas organizações têm como finalidade a prossecução do interesse público. Para além disto, diversos são os autores (Deshpandé & Farley, 2004; Ogbonna & Harris, 2000) que associam uma orientação para o exterior a um melhor desempenho. Em Portugal começa a fazer-se sentir esta tentativa de aproximação da polícia à comunidade através de programas específicos que têm surgido como resposta às necessidades da comunidade (Escola Segura dedicada à segurança das escolas e meio envolvente). Outra conclusão importante passível de extrair é que as percepções dos profissionais são consensuais, traduzidas pelo elevado grau de acordo dos polícias em termos intra e inter organizações em torno dos valores básicos. Esta consensualidade perceptiva poderá ser fruto da dinâmica, natureza e missão específicas do sector de actividade, bem como de um ajustamento indivíduo-organização que poderá ser aproveitado por parte da organização para fortalecer a relação e vinculação dos polícias às instituições. Contudo, importa reforçar que falar em consensualidade perceptiva não permite dizer que existe uma cultura forte. Aferir a extensão e a intensidade perceptiva com que determinada cultura é partilhada, como foi o objectivo deste estudo, não dá a profundidade com que as crenças, os valores e as expectativas atingem o âmago da organização e a sua real aceitação, sendo de explorar futuramente o (des)ajuste entre a cultura percebida e a desejada. Uma das mais-valias deste estudo é o facto de ter incluído diferentes instituições policiais, o que permitiu efectuar um conjunto de análises comparativas. Os estudos na polícia tendem a reportar-se, habitualmente, a uma única instituição ou a departamentos de uma mesma organização (Paoline, 11 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13 Myers & Worden, 2000). Em termos práticos, os líderes destas sete instituições poderão, com este diagnóstico, delinear um conjunto de estratégias de gestão com vista a fomentar os quadrantes que apresentam um enfoque pouco desenvolvido. Para além, disso, estes resultados disponibilizam pistas para traçar planos de comunicação que permitam limar os pontos que não estão de acordo com a estratégia e visão organizacional declaradas. O contributo teórico associado a este estudo remete para o aprofundar um pouco o conhecimento sobre este contexto profissional, relativo ao qual existe uma escassez significativa de estudos, especialmente em Portugal. Uma limitação deste estudo remete para a escolha metodológica quantitativa que o orientou. Optar pelo questionário e pela utilização do Modelo dos Valores Contrastantes de Quinn e colaboradores, para a análise da cultura, permitiu delinear os traços da cultura que se apresentam. Contudo, há que se considerar que ter em conta uma perspectiva qualitativa poderá trazer consigo informações significativas e complementares. Todavia, futuramente, dever-se-á alargar este diagnóstico da realidade cultural a todas instituições policiais existentes em Portugal, pois isso forneceria uma visão mais integradora e consolidada da cultura organizacional do sector. Para além disso, a complexidade da cultura organizacional, como constructo, dificulta o seu estudo na sua amplitude total (Borges, Argolo, Pereira, Machado, & Silva, 2002). E apesar de ser assumido na literatura que os valores são as variáveis centrais aquando do estudo da cultura organizacional (Ashkanasy, Wilderom, & Peterson, 2000), dispondo-se do diagnóstico dos valores apenas se traduz uma visão parcial da cultura organizacional (Borges et al. 2002), o que constitui uma limitação a este estudo e simultaneamente um desafio para pesquisas futuras. Resta apontar algumas linhas de orientação e investigação futura que nasceram, quer da multiplicidade de interrogações que foram ganhando visibilidade à medida que se avançava com a análise, quer das limitações referentes às escolhas teórico-metodológicas. Neste sentido, sugere-se a realização de estudos análogos em outras organizações policiais, conciliando uma abordagem metodológica de triangulação, focada para além dos questionários, em entrevistas e análise documental. Será interessante, no contexto da polícia, explorar o conceito de cultura organizacional em articulação com conceitos como o da liderança, assim como o estudo da socialização e da sua contribuição para a formação e consolidação dos valores percebidos poderá ser um caminho interessante para uma investigação futura. Referências Ashkanasy, N. M., Wilderom, C. P. M., & Peterson, M. F. (2000). Handbook of organizational culture & climate. Thousand, Oaks, CA: Sage. Blau, P., & Scott, W. R. (1977). Organizações formais. 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Organizational culture: the Focus Questionnaire. European Journal of Work and Organizational Psychology, 8(4), 551-568. Recebido em agosto/2011 Revisado em outubro/2011 Aceito em outubro/2011. 13 R E L ATO D E P E S Q U I S A Auto-regulação emocional e vinculação em adultos toxicodependentes Emotional self regulation and attachment in drug addicts Inês Martins(a)*, António J. Santos(b) Resumo: De acordo com a hipótese da auto-medicação (Khantzian, 1997, 2003), o abuso de substâncias traduz uma forma compensatória de o sujeito modular estados emocionais. Diversos estudos apontam para a relação entre um tipo de vinculação insegura e a toxicodependência. Contudo, a sua associação com categorias específicas evidencia uma grande variabilidade consoante as medidas utilizadas. O presente estudo correlacional procurou analisar a regulação emocional, a diferenciação emocional e a vinculação, numa amostra de 31 toxicodependentes em tratamento. Os resultados indicam que os valores das medidas emocionais estão dentro dos obtidos para a população normativa e a ausência de um script de base segura. Verificou-se uma ausência de correlação significativa entre todas as medidas emocionais e uma correlação positiva entre a reavaliação cognitiva e a vinculação. Os dados sugerem que a teoria da vinculação providencia um enquadramento adequado ao desenvolvimento de programas de tratamento e prevenção no abuso de substâncias. É proposto um modelo integrativo que conceptualize a toxicodependência como um fenómeno multi-factorial. Palavras-chave: Toxicodependência; Hipótese da auto-medicação; Regulação emocional; Diferenciação emocional; Vinculação Abstract: According to Khantzian’s self medication hypothesis (1997, 2003), substance abuse functions as a compensatory mean to modulate emotional states. A number of studies reveal the association between an insecure attachment style and drug addiction. However, its association with specific categories or patterns of attachment shows great variability depending on the measurements in use. The goal of the present correlational study is to analyse emotion regulation, emotion differentiation and attachment in a sample of 31 drug addicts undergoing treatment. Results show emotional measures’ scores are similar to the normative population and an absence of a secure base script. Results also indicate an absence of correlation between all emotional measures and a positive significant correlation between cognitive reevaluation and attachment. Data suggests that attachment theory provides an adequate framework from which to develop treatment and prevention programs in substance abuse. Drug addiction understanding requires an integrative model that conceptualizes it as a multifactorial phenomenon. Keywords: Drug addiction, self-medication hypothesis, emotion regulation, emotion differentiation, attachment a Psicóloga; Mestre em Psicologia Clínica (ISPA-IU/Portugal). *E-mail: [email protected] b Professor Associado;Doutor em Psicologia do Desenvolvimento (ISPA-IU/Portugal). Sistema de Avaliação: Double Blind Review 14 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 14-23 Estudos realizados junto da população portuguesa revelam que a droga constitui a principal preocupação dos pais em relação aos seus filhos, o que pode ser explicado tanto pela crescente prevalência e visibilidade do fenómeno da toxicodependência nas últimas décadas, como pelo sentimento de impotência a ela associado (Moreira, 2001). Este sentimento de impotência é ainda agravado pelo facto de o problema atingir uma dimensão transversal, e pela sua preponderância assumir proporções tais que a toxicodependência se constitui como o principal problema de saúde dos países desenvolvidos (Becoña, 1999; Inaba, Cohen & Holstein, 1997). Vinculação e Toxicodependência São vários os autores a propor que o abuso de substâncias é motivado por défices na regulação emocional, associada a perturbações do sistema de vinculação (ex. Flores, 2001; Torres & Oliveira, 2010). De facto, é durante a infância, por meio de vivências constantes de responsividade e sensibilidade das figuras de vinculação, que a capacidade para a auto-organização e regulação emocional se tornam evidentes (Fonagy & Target, 2003; Suh et al., 2008). Contudo, apesar do crescente interesse na última década na relação entre vinculação e psicopatologia, existem ainda poucas investigações que se debrucem sobre as implicações da vinculação no abuso de substâncias (Schindler et al., 2005). Diversos estudos apontam para uma possível relação entre um tipo de vinculação insegura e a toxicodependência (ex. Mikulincer & Shaver, 2007; Shindler et al, 2005). Para além disso, o tipo de vinculação insegura tem sido relacionado com perturbações e angústia emocional, bem como com défices ao nível das estratégias de coping (Schindler, Thomasius, Petersen & Sack, 2009). No entanto, a maioria das investigações na área utiliza medidas de auto-relato (HSSR; Hazan & Shaver, 1987; Bartholomew & Horowitz, 1991) em vez de indicadores que permitam avaliar as representações mentais da vinculação, derivadas de instrumentos como a AAI (Main & Goldwyn, 1998. Caspers et al., 2006; Schindler et al., 2005). Procedendo a uma revisão da investigação empírica na área, o panorama geral dos resultados permite afirmar que a toxicodependência apresenta uma relação consistente com a vinculação insegura, mas que a sua associação com categorias específicas evidencia uma grande variabilidade consoante os instrumentos de avaliação utilizados (e.x. Allen, Hauser & Borman-Spurell, 1996; Finzi-Dottan, Cohen, Iwaniec, Sapir & Weizman, 2003; McNally, Palfai, Levine & Moore, 2003; Rosenstein & Horowitz, 1996; Torres & Oliveira, 2010). Preservando a ideia de origem psicodinâmica de que a relação precoce produz representações mentais duradouras na criança com impacto na idade adulta, Bowlby incorporou na sua teoria o conceito da psicologia cognitiva de modelo mental, o qual seria responsável pela representação mental da experiência e afectaria a memória, as expectativas e a capacidade de resposta nas interacções sociais (Waters & Waters, 2006). Waters e Rodrigues-Doolabh (2001) propõem que a história de base segura do indivíduo seja representada na memória sob a forma de um script. Sujeitos que tiveram experiências de base segura consistentes e coerentes durante a infância, terão conhecimento e facilidade de acesso ao script de base segura em todas as suas interacções de base segura. Para além disso, o script será activado quando o sujeito é confrontado com objectivos e acontecimentos em relação directa com o fenómeno de base segura. O sujeito estará apto a responder em conformidade sempre que o script for activado, esperará comportamentos consistentes com o script por parte das figuras de vinculação, e irá proceder ao registo de acontecimentos e experiências que violem as expectativas que desenvolveu com base no script (Schank, 1982). Emoção, Diferenciação Emocional e Regulação Emocional No presente trabalho, a emoção será tratada não em termos da sua dicotomia positiva versus negativa, mas sim se é geradora ou não de comportamentos adaptativos. Esta posição é congruente com os modelos mais actuais (ex. Greenberg, 2002), em que os investigadores adoptam uma perspectiva funcional da emoção (Fridja, 1986). Para a emoção ser experienciada, é preciso que o indivíduo atribua um significado à reacção fisiológica. Este processo de simbolização tem o nome de diferenciação emocional, constituída por duas dimensões: (1) repertório de experiências emocionais, isto é, a variedade de emoções experienciadas pelo indivíduo e (2) capacidade de perceber distinções subtis dentro de uma mesma categoria emocional (Kang & Shaver, 2004). Dado que permite uma maior multiplicidade de significados das experiências emocionais, promove o conhecimento e utilização de estratégias de regulação mais adaptativas (e.x. Barret, Gross, Conner, & Benvenuto, 2001; Gross, 2008). Défices ao nível da diferenciação emocional estão associados a múltiplas psicopatologias e estados psicopatológicos, como a alexitimia (Kang & Shaver, 2004). A reavaliação cognitiva e a supressão emocional são duas 15 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 14-23 das estratégias de regulação emocional que mais foco têm tido na investigação, nomeadamente no que diz respeito ao estudo das diferenças individuais e consequências da sua implementação (Gross & John, 2003). Por exemplo, a nível afectivo, a supressão emocional conduz a uma diminuição da expressão emocional (quer desadaptativa, quer adaptativa) e conduz a sentimentos de discrepância entre o que o indivíduo mostra aos outros e o que realmente pensa e sente. Por outro lado, o reduzido nível de partilha emocional compromete o desenvolvimento de relações de intimidade (Butler et al., 2003) e a integração no grupo de pares, com consequências ao nível do suporte social. Partindo dos pressupostos apresentados o primeiro objetivo do presente estudo é verificar se o abuso de substâncias está associado a uma baixa competência de regulação emocional. Serão igualmente avaliados o repertório e a capacidade de diferenciação emocional. Apesar de ainda não existirem muitas investigações que se debrucem sobre o papel da vinculação no abuso de substâncias, Schindler e colegas (2005) defendem que, uma vez que ambas incluem a regulação emocional e as estratégias de coping como constructos centrais, seria do interesse dos investigadores na área aprofundar esta relação. O segundo objectivo deste estudo é então verificar se os sujeitos toxicodependentes apresentam preferencialmente um tipo de vinculação insegura, como avaliada pelo método das Narrativas sobre as Representações da Vinculação em Adultos (Waters & Waters, 2006). As hipóteses em estudo são as seguintes: (1) sujeitos toxicodependentes apresentam uma baixa competência de regulação emocional, com utilização preferencial da supressão emocional; (2) sujeitos toxicodependentes apresentam uma baixa capacidade de diferenciação emocional; (3) sujeitos toxicodependentes apresentam preferencialmente uma vinculação insegura. Participantes Método Os participantes são 31 residentes de uma Comunidade Terapêutica para toxicodependentes. O tratamento está dividido em três fases que diferem ao nível da progressiva autonomia, responsabilização e contacto com o exterior. Para além do programa terapêutico geral (politoxicómanos), a Comunidade contempla ainda um programa terapêutico para alcoólicos e um programa terapêutico para utentes com doença concomitante. A decisão da participação dos residentes no estudo foi da responsabilidade da coordenadora da equipa técnica da Comunidade. Não foram incluídos na amostra residentes que se encontravam a tomar metadona, devido às possíveis alterações do humor e emocionais causadas pelo medicamento. Por outro lado, apenas foram seleccionados para participação no estudo alguns dos residentes do programa terapêutico para utentes com doença concomitante, pelas implicações óbvias dos casos severos de psicopatologia. Os participantes têm idades compreendidas entre os 23 e os 58 anos (M = 36.42; DP = 9.55), sendo 20 do sexo masculino (64.5%). No que respeita às habilitações literárias, nove (29%) completaram a escolaridade obrigatória, cinco (16.1%) completaram o secundário e 5 (16.1%) frequentaram ou terminaram um curso universitário. A maioria frequentava o programa terapêutico geral (90.3%) e encontrava-se na primeira fase dos respectivos programas (N = 13; 41.9%). A droga de preferência dos residentes é a heroína (N = 12; 38.7%), seguida pela cocaína (N = 8; 25.8%) e ambas as drogas sem distinção (N = 6; 19.4%). As idades de início do consumo problemático variam entre os 11 e os 45 anos (M = 20.45; DP = 8.75) e 9 (29%) participantes fizeram mais de cinco tentativas de tratamento (ingresso em comunidades ou em ambulatório). Instrumentos - Questionário de Regulação Emocional (ERQ) de Gross e John (2003), adaptação e tradução de Machado Vaz, 2009), constitui uma medida de auto-relato de 10 itens, em que seis itens avaliam a estratégia de regulação emocional Reavaliação Cognitiva e quatro itens avaliam a estratégia de regulação emocional Supressão Emocional. Apresenta uma escala tipo Likert de sete pontos. No estudo de validação em Portugal foi replicado o modelo de dois factores da versão original, foram extraídos dois factores explicativos de 49.64%, numa amostra de 851 indivíduos. No que respeita à análise de consistência interna, foram registados para a nossa amostra os valores de .59 para a escala Reavaliação Cognitiva e .53 para a escala Supressão Emocional. - Escala de Avaliação do Repertório e Capacidade de Diferenciação Emocional (RDEES) de Kang e Shaver (2004); adaptação e tradução de Machado Vaz, 2009), constitui uma medida de auto-relato, desenvolvida com o objectivo de avaliar a natureza e características individuais da complexidade emocional. Utiliza uma escala tipo Likert de cinco pontos e a avaliação da complexidade emocional inclui duas dimensões: (1) capacidade do sujeito em fazer distinções subtis entre diferentes categorias emocionais; (2) variedade ou amplitude de diferentes emoções que o sujeito experiencia. A adaptação para Portugal replicou o modelo de dois factores da versão original 16 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 14-23 (Machado Vaz, 2009). No que respeita à análise de consistência interna, para a nossa amostra foram registados os valores de .71 para a escala Diferenciação Emocional, .53 para a escala Repertório Emocional e .59 para a escala total - Narrativas sobre as Representações da Vinculação em Adultos (Waters & Waters, 2006), um instrumento que pretende avaliar a organização do conhecimento de base segura utilizando narrativas produzidas por adultos em resposta a seis conjuntos de palavras sugestivas. Quatro conjuntos de palavras sugestivas visam a produção de histórias relativas a cenários importantes do ponto de vista da vinculação: duas histórias (“A manhã do bebé” e “No consultório médico”) referem-se à interacção mãe/ criança; duas histórias (“O acampamento da Joana e do Pedro” e “O acidente”) referem-se à interacção adulto/adulto. Os restantes conjuntos de palavras são considerados neutros (“O passeio no parque” e “Uma tarde nas compras”). Depois de gravadas, as histórias são transcritas e posteriormente cotadas utilizando uma escala de 7 pontos definida por Waters e Rodrigues-Doolabh (2004, manual não publicado), em relação ao protótipo de script de base segura. ). Na cotação das narrativas, as correlações entre dois investigadores treinados variaram entre .80 e .84. Mais de 90% das comparações concordavam num intervalo de 1.5 e nenhuma cotação para uma dada história diferiu mais do que 2.5 pontos. A correlação entre a média das narrativas mãe/criança e as narrativas adulto/adulto (r = .81, p<0.01) evidencia a existência de um script de base segura comum aos dois tipos de relações (Tabela 4). Estes resultados vão no sentido dos encontrados por Waters e Rodrigues-Doolabh (2001) e Veríssimo et al. (2005), o que demonstra a adequabilidade do instrumento na amostra utilizada. Procedimentos A presente investigação apresenta-se como um estudo transversal, descritivo e correlacional (Sampieri, Collado & Lucio, 2006). A amostra é não probabilística por conveniência. Após consentimento informado e preenchimento de um breve questionário de caracterização sócio-demográfica, foi pedido aos participantes que respondessem aos questionários de avaliação emocional, seguidos da aplicação das Narrativas sobre as Representações da Vinculação em Adultos (Waters & Waters, 2006), com recurso ao respectivo manual (Veríssimo & Santos, manual não publicado). Resultados Relação entre as Medidas Emocionais e a Vinculação A tabela 1 apresenta as correlações entre as medidas emocionais e as histórias de representação da vinculação. Apenas a dimensão da Reavaliação Cognitiva se encontra significativamente correlacionada com duas das três medidas de vinculação: interacção adulto/adulto (r = .40; p<0.05) e o total das histórias (r = .39; p<0.05). A correlação entre a dimensão Reavaliação Cognitiva e as histórias adulto/criança pode ser considerada uma tendência (r = .33; p = 0.76). Ainda que não possam ser consideradas tendências, a Supressão Emocional apresenta correlações negativas com todas as três medidas de vinculação (totalidade das histórias: r = -.16, p = .42; interacção adulto/criança: r = -.12, p = .52; interacção adulto/adulto: r = -.19, p = .34; p<0.05). Tabela 1 Correlações entre as medidas emocionais e a vinculação Total Adulto/ Criança Adulto/Adulto Reavaliação Cognitiva .39* .33 .40* Supressão Emocional -.16 -.12 -.19 Repertório Emocional Diferenciação Emocional -.03 .05 .01 .20 .22 .15 Nota: *Correlação significativa para p<0.05 Diferenças em função da Fase de Tratamento Foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre as fases de tratamento, no que respeita às dimensões do QRE: Reavaliação Cognitiva e Supressão Emocional (Tabela 2). Estes resultados permitem especular sobre as implicações das diferentes fases nas estratégias de regulação emocional. O contacto gradual com o exterior a partir da segunda fase poderá estar na base da diminuição do uso da Reavaliação Cognitiva, possivelmente pelos novos desafios que este contacto com o mundo exterior apresenta. Por outro lado, na segunda fase de tratamento é fortemente privilegiada a capacidade de expressão emocional, o que poderá constituir uma base explicativa para a diminuição dos valores na dimensão Supressão Emocional. (Retirei este comentário da Discussão, não sei em que secção ficará melhor, ou se repito a informação nos Resultados e na Discussão) 17 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 14-23 Tabela 2 Diferenças em função da fase de tratamento Média Teste K-W Fase gl N (%) das Tratamento Ordens (p<0.05) Reavaliação Emocional Supressão Emocional p 1º Fase 2ª Fase 3ª Fase 13 (41.9) 17.81 10 (32.3) 10.35 8 (25.8) 20.13 6.058 2 0.048 1ª Fase 2ª Fase 3ª Fase 13 (41.9) 21.54 10 (32.3) 11.10 8 (25.8) 13.13 8.577 2 0.014 Discussão Tanto a primeira como a segunda hipótese em estudo não foram confirmadas. Uma possível explicação para a infirmação das hipóteses prende-se com o facto de os participantes estarem a ser submetidos a uma intervenção terapêutica com forte componente na exteriorização das emoções. Outra explicação possível para o baixo nível de utilização da supressão emocional deve-se à circunstância de esta dimensão contemplar tanto a expressão de emoções desagradáveis, como a expressão de emoções tidas como “positivas”, o que dificulta a compreensão de importantes diferenças entre emoções específicas. Ainda outra justificação poderá relacionar-se com a interpretação do conteúdo dos itens que avaliam a reavaliação cognitiva. A utilização da alteração do pensamento associado à emoção experienciada pode traduzir uma forma de supressão da emoção, conduzindo a um controlo da activação emocional. Os resultados verificados vão ao encontro dos obtidos por Hall e Queener (2007), em que a relação entre o consumo de substâncias e o afecto negativo e/ou ambíguo não foi verificada. As razões da convergência dos resultados podem estar relacionadas com a pouca representatividade da amostra nos dois estudos. A terceira hipótese do presente estudo foi confirmada e os resultados vão ao encontro de numerosos estudos que apontam para a relação entre a toxicodependência e a vinculação (e.x.; Caspers, Cadoret, Langbehn, Yucuis & Troutman, 2005; Caspers et al., 2006; Rosenstein & Horowtitz, 1996). Uma vez que à data não foram publicados estudos para avaliar esta relação com o método das narrativas, os resultados dão o seu contributo na constatação da relação entre as variáveis, evidenciada em investigações que utilizam distintas medidas de avaliação da vinculação. O método das narrativas permite ainda ultrapassar as limitações decorrentes da utilização de medidas de autorelato, e o facto de os participantes serem residentes numa comunidade terapêutica, com análises de urina esporádicas, contribui igualmente para assegurar que os dados recolhidos não são contaminados por influência de variáveis não consideradas. Na medida em que o presente estudo foi realizado com uma amostra clínica, permite atender apenas às motivações em casos severos de consumo de substâncias. No que respeita às correlações entre as medidas emocionais e a vinculação, a hipótese foi parcialmente confirmada. Apenas a dimensão da Reavaliação Cognitiva se encontra significativamente correlacionada com a vinculação, nomeadamente com as narrativas de interacção adulto/adulto e com o total das narrativas. A correlação entre a dimensão Reavaliação Cognitiva e as histórias adulto/criança pode ser considerada uma tendência, passível de se tornar significativa com o alargamento da amostra. A Supressão Emocional apresenta correlações negativas (ainda que não significativas) com todas as três medidas de vinculação. Contrariamente ao esperado, não foi verificada uma correlação positiva entre a vinculação e a EARCDE. Tal pode estar ser interpretado tendo em conta a ausência de correlações significativas entre as medidas emocionais da EARCDE e do QRE. Os resultados verificados no que respeita à relação entre a regulação emocional e a vinculação vão no sentido de múltiplos estudos conduzidos pela investigação na área (e.x. Gilliom et al., 2002; Kochanska, 2001; Nachmias et al., 1996) e poderão indicar que uma vinculação insegura constitui um factor de risco para o consumo de substâncias, enquanto forma de lidar com estados emocionais indutores de mal-estar. No que respeita às diferenças encontradas entre as fases de tratamento nas dimensões do QRE, os resultados permitem especular acerca das implicações das diferentes fases no processo terapêutico. O contacto gradual com o exterior a partir da segunda fase poderá estar na base da diminuição do uso da Reavaliação Cognitiva, possivelmente pelos novos desafios que este contacto com o mundo exterior apresenta. Por outro lado, na segunda fase de tratamento é fortemente privilegiada a capacidade de expressão emocional, o que poderá constituir uma base explicativa para a diminuição dos valores na dimensão Supressão Emocional. Implicações Os dados da presente investigação apontam para a necessidade de conceptualizar a toxicodependência como um fenómeno multifactorial, influenciado por disposições individuais e circunstâncias culturais e societais, a serem contempladas no todo complexo que constitui o indivíduo. Como tal, é sugerida a formulação de um modelo integrativo que permita explicar o multifacetado ciclo aditivo, com a contínua exploração dos 18 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 14-23 seus múltiplos preditores (Hall & Queener, 2007). Exemplos de variáveis a serem incorporadas são: traços de personalidade como a ansiedade e a impulsividade, os quais representam importantes idiossincrasias na vulnerabilidade a estratégias de coping desadaptadas; expectativas face ao consumo e efeitos específicos das substâncias; regiões neurológicas envolvidas e mecanismos fisiológicos actuantes; e o mundo relacional do toxicodependente (Quirk, 2001). As implicações metodológicas estão relacionadas com a inclusão de medidas emocionais mais próximas do fenómeno do abuso, com questões como: “Quando estou zangado, tenho vontade de consumir” (Hall & Queener, 2007). Outra hipótese seria a inclusão de itens respeitantes a circunstâncias do quotidiano, que permitam contextualizar – com situações concretas – as emoções. Seria igualmente útil a exploração dos mediadores envolvidos no processo interactivo entre a vinculação e a regulação emocional (e.x. factores ambientais indutores de stress na relação de vinculação e factores de resiliência, como o suporte social e relações positivas com os pares). Quer as emoções indutoras de desconforto ou mal-estar estejam positiva ou negativamente correlacionadas com o abuso de substâncias, a exploração emocional como forma de aumentar o insight deverá ser uma constante no tratamento (Hall & Queener, 2007). O tratamento deverá ainda considerar a possível existência de perturbações em comorbilidade com a toxicodependência, bem como as consequências sociais que esta acarreta (Schindler et al., 2005). Como tal, o trabalho clínico deverá contemplar uma reaprendizagem dos prazeres quotidianos decorrentes do percurso estudantil e laboral, as mais das vezes interrompido, bem como a exploração de modos eficazes para lidar com as frustrações inerentes ao dia-a-dia. Por outro lado, a preferência por determinada substância poderá fornecer pistas importantes sobre as emoções predominantes na vida do toxicodependente, contribuindo para intervenções psicoterapêuticas mais individualizadas. Como evidenciado pelos resultados do presente estudo e da generalidade da investigação na área, a teoria da vinculação providencia um enquadramento adequado ao desenvolvimento de programas de intervenção na toxicodependência (Caspers et al., 2006). Uma implicação clínica desta constatação diz respeito ao estabelecimento da aliança terapêutica, tarefa crucial dificultada pelo facto de a maioria destes pacientes evidenciarem um tipo de vinculação inseguro (Shindler et al., 2005). No trabalho clínico, os terapeutas poderão explorar cognições relacionadas com este sistema e permanecerem atentos a indicadores comportamentais que possam estar associados a diferentes representações da vinculação (Caspers et al., 2006; Torres & Oliveira, 2010). A alteração dos estilos e padrões interpessoais poderá ser feita em complementaridade com o contexto familiar, a qual demonstrou ser uma abordagem eficaz e reconhecida no tratamento da toxicodependência (ex. Waldron & Turner, 2008). Uma vez que as evidências apontam para resultados pouco satisfatórios nas intervenções de carácter remediativo, é cada vez mais consensual a necessidade de valorizar a prevenção no combate à toxicodependência (Moreira, 2001). Do que antecede, seria útil o desenvolvimento de programas de promoção da consciência e regulação emocional em crianças cujo ambiente parental e social esteja comprometido. Tais programas teriam por base a incorporação de elementos referentes ao carácter autónomo da competência emocional, dirigidos à utilização funcional e adaptativa deste sistema. No essencial, o foco seria dar a conhecer às crianças que os estados emocionais podem ser examinados e que existem formas adaptadas de os expressar, experienciar e regular. O simples conversar sobre as emoções implica um agir no plano simbólico que previne a actuação impulsiva, abrindo caminho para uma saudável gestão das emoções. Para um agir espontâneo, mas sensato, é extremamente importante que as crianças tenham um modelo a quem recorrer. Estes programas deveriam assim contemplar uma vertente terapêutica familiar, dirigida a uma maior consciencialização do papel do meio social e práticas parentais na autonomização dos processos emocionais nas crianças (ex. Sroufe, 1996). Ao nível da vinculação, é sugerida a elaboração de programas com famílias em situação de risco sinalizadas aos serviços sociais. O foco nos comportamentos de cuidado parental ao recémnascido e nas práticas parentais com os restantes filhos, bem como a consciencialização da importância dos horários e rotinas na disponibilidade para cuidar da criança, constituem bons exemplos de temáticas facilitadoras do estabelecimento de uma vinculação segura. Por outro lado, estas iniciativas beneficiariam da acção concertada de uma equipa multidisciplinar (pediatras, enfermeiros, gestores de caso, psicólogos), em que a preparação para o parto pudesse ser complementada com elementos facilitadores de uma vinculação segura. De notar que o sucesso deste tipo de intervenções é dependente de toda uma conjuntura política, económica e social que passa, em primeiro lugar, pelo reconhecimento do impacto da vinculação no desenvolvimento da psicopatologia. 19 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 14-23 Limitações e direcções futuras As principais limitações do presente estudo estão relacionadas com a pouca representatividade da amostra, o que impede a generalização dos resultados para além do contexto específico em que o estudo foi conduzido. A amostra é também limitada na sua área geográfica de abrangência. O facto de os participantes serem residentes numa comunidade terapêutica e estarem a ser submetidos a uma intervenção com forte componente na exteriorização das emoções, pode justificar o seu desempenho normativo nas medidas emocionais. Como tal, seria desejável que estudos futuros integrassem participantes não só inseridos em comunidades terapêuticas, como também de outros contextos mais próximos do acto de consumo, ou restringir a participação no estudo aos residentes que se encontram na primeira fase do tratamento. Outra limitação está relacionada com o possível enviesamento dos resultados obtidos através das medidas de auto-relato, função da selectividade, reconstrução e idiossincrasias dos processos de memória. Uma forma de ultrapassar esta limitação seria complementar as medidas de auto-relato com medidas de componente qualitativa. No presente estudo, apenas foram avaliadas duas estratégias de regulação emocional. Seria do interesse da investigação na área a avaliação de outras dimensões da regulação emocional, bem como a avaliação do modo como as diferentes estratégias de regulação emocional interagem com os estados afectivos, traços de personalidade e droga de eleição. No âmbito do elevado número de sujeitos que apresentam um diagnóstico de comorbilidade com a toxicodependência – e atendendo ao facto do instrumento Narrativas de Representação da Vinculação em Adultos ter sido fundamentalmente concebido para a população normativa – estudos futuros beneficiariam de medidas de avaliação da vinculação adequadas às características psicológicas destes sujeitos. A omissão do tipo de vinculação não-resolvido ou desorganizado constitui outra limitação do estudo, dadas as evidências que relacionam este tipo de vinculação com o abuso de substâncias (ex. Caspers et al., 2006; Schindler et al., 2009). Este facto é particularmente relevante se atendermos à utilização maioritária dos valores inferiores da escala na cotação das narrativas. Por último, a presente investigação é de natureza correlacional, o que limita as inferências acerca da direcção da relação entre a vinculação insegura e a toxicodependência. Neste âmbito é sugerido o delineamento de estudos de carácter longitudinal, que permitam a exploração de direcções causais entre as variáveis. Referências Abelson, J. L., Liberzon, I., Young, E. A., & Khan, S. (2005). Cognitive modulation of the endocrine stress response to a pharmacological challenge in normal and panic disorder subjects. Archives of General Psychiatry, 62, 668-75. Ainsworth, M., Blehar, M., Waters, E., & Wall, S. (1978). Patterns of attachment. Hillsdale, NJ: Erlbaum. Alford, D. J., Lyddon, W. J., & Schreiber, R. (2003). Adult attachment and working models of emotion. Couselling Psychology Quarterly, 19(1), 45-56. Allen, J. P., & Fonagy, P. (2001). 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Recebido em julho/2012 Revisado em setembro/2012 Aceito em novembro/2012 23 R E L ATO D E P E S Q U I S A Nada será nunca mais como antes: o adolescente doente crônico o exemplo do diabete insulinodependentea Nothing will ever be again as it was before: the chronically ill teenager – the example of the insulin-dependent diabetes Dana Castro(b)* Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a interação que se estabelece entre “o trabalho da adolescência” e o da doença crônica, e de interrogá-la no seu impacto subjetivo e social a partir o exemplo do Diabete Insulino-Dependente (DID). A adolescência é um período de grande vulnerabilidade no qual o jovem é invadido pela ansiedade, animado pela rebelião e devorado pela indecisão devido à dificuldade a integrar um mundo adulto. Neste contexto, o DID, doença crônica grave, com suas exigências rigorosas e seus riscos em longo prazo, pesa como uma carga psicológica suplementar no universo já carregado do jovem. A doença provoca ciclicamente, no adolescente, emoções de cólera e de injustiça, um sentimento poderoso de diferença e distância, e organiza o funcionamento psíquico em torno de mecanismos de defesa típicos : recusa e racionalização. Estes movimentos se exprimem através de certas condutas de saúde e mais particularmente através da adesão ou da não-adesão periódica ao tratamento medicamentoso prescrito. O apoio psicológico oferecido aos jovens doentes se estrutura, por um lado, a partir de suas necessidades específicas e atuais; por outro lado, dos dados contemporâneos da pesquisa em psicologia. Palavras-chave: Adolescência; Doença crônica; Adesão ao tratamento Abstract: The aim of the study is to consider the psychological interaction between the developmental mutations of adolescence and that of the chronic illness, such as Diabetes Mellitus, analyzed within its social and subjective impact. Adolescence is a period of great vulnerability where teens are overwhelmed by anxiety and driven by feelings of rebellion and indecision, mainly due to the difficulty of integrating the adult world where responsibilities, demands and relationships are very different from those known in childhood. From this point of view, Diabetes, severe chronic illness, with its strict regimen demands and long term health risks, becomes a supplementary burden in the everyday life of the young ones. It elicits periodically, emotions of anger and injustice as well as negative feelings of difference and stigmatization which organize, in return the psychic world around defense mechanisms such as denial and rationalization. These psychological movements express themselves through several health behaviors, such as compliance or non-compliance to the medical treatment. The psychological help offered to these young patients take into account their current needs and is anchored in the contemporary research evidence. Keywords: Adolescence; Chronic illness; Compliance to treatment; Psychological mutations a Este artigo vai ser publicado na França como capitulo do livro Précis d’expériences transculturelles, Editora Le Journal des Psychologues, Paris, setembro de 2012. b Psicóloga; Psicoterapeuta. *E-mail: [email protected] Sistema de Avaliação: Double Blind Review 24 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 24-34 A adolescência: um momento-chave do desenvolvimento psíquico A adolescência assinala o começo de uma ‘nova era’, de uma renovação, de um segundo nascimento. Começando com um acontecimento biológico - a puberdade, e culminando com um acontecimento social - o acesso à independência e à autonomia - os ‘anos adolescentes’ ou os ‘anos verdes’, como são designados pelos nossos colegas vietnamitas correspondendo, no mundo inteiro, ao período situado entre os 13 e os 20 anos. Um grande número de adolescentes vive estes anos de maneira penosa, experimentam sentimentos de cólera, de medo e de questionamento. Os ‘anos verdes da adolescência’ são anos de instabilidade psíquica e de inquietação interior ligados às modificações corporais, à busca de identidade pessoal, assim como às interrogações sobre a sexualidade (Guitton, 2003). A adolescência é frequentemente um período no qual o jovem se sente invadido pela ansiedade, impulsionado pela rebelião e dilacerado pela indecisão. Uma grande parte da confusão vivida por estes jovens decorre da dificuldade a integrar um mundo adulto no qual as responsabilidades, as expectativas e a confusão vividas são muito diferentes daquelas conhecidas na infância. Para certos adolescentes, este período se caracteriza por uma carga de aflições, dominadas pelas flutuações emocionais intensas e pelas reações extremas na qual prevalecem as condutas de oposição devidas às dificuldades para se ‘separar’ (Delhaye, Kempenaers, Burton, Goossens & Linkowski, 2011). Para administrar estas dificuldades, o adolescente reage pela luta ou pela fuga, tenta negociar constantemente com os adultos, e torna sua prioridade essencial o fato de ser aceito pelos seus pares. Nesta época o adolescente tenta transgredir as regras para poder assentar seus valores e suas próprias convicções. Um ciclo de stress quotidiano que prepara à descoberta de si Na vida quotidiana os adolescentes devem perpetuamente enfrentar acontecimentos ou situações que consideram importantes, sérios e potencialmente estressantes. Estes acontecimentos têm uma repercussão afetiva e suscitam emoções negativas (raiva, tristeza, desgosto, desespero, etc.) ou positivas (alegria, afeição, simpatia, etc.). Isto ocorre qualquer que seja a cultura ou a nacionalidade dos adolescentes (SeiffeKrenke, 1995, Rescorla et al., 2007). Assim, por exemplo: Uma má nota é percebida como um acontecimento desagradável mas cujas consequências são passageiras. Suscita emoções desagradáveis de decepção, de raiva, de medo ou de vergonha que são mais intensas nos jovens de 12 anos que nos de 17 anos. Este acontecimento é absolutamente gerenciável pela maioria dos adolescentes que o consideram, finalmente, como um acontecimento de poucas consequências pois se situa longe atrás de suas preocupações existências. O caso é bem diferente no que concerne as situações interpessoais fortemente saturadas emocionalmente. Por exemplo: Apaixonar-se é considerado como um acontecimento extremamente estressante que suscita habitualmente emoções positivas. Este acontecimento é percebido como estressante especialmente pelas moças, as quais se sentem paralisadas nesta situação. Os jovens de 12 anos consideram que não podem controlar este estado e por isso experimentam vergonha e medo. Os de ‘17 anos’, ainda que confiram muita importância a este tipo de situações, estão mais tranquilos e enfrentam com mais serenidade. A sexualidade representa sempre uma busca afetiva que vai muito além da busca de prazer. O enquadramento oferecido pela sexualidade traz ao adolescente um meio de encontrar calor e proximidade, de se descobrir uma nova identidade. A identidade sexual se consolida durante este período (Jeammet & Corcos, 2005). Os adolescentes jovens e menos jovens vivem na expectativa do grande amor que fascina pelas relações misteriosas ao outro e perturba pelo mistério que permite revelar sobre si mesmo. Todo fator exterior suscetível de entravar esta expectativa torna-se perseguidor, e provoca decepção e sofrimento para o adolescente. Sentir-se sozinho é um acontecimento frequente que afeta muito os adolescentes. Pela idade de 15 anos, a solidão e o isolamento social são percebidos como sendo situações dramáticas que assinalam ao adolescente uma incapacidade pessoal, uma espécie de ‘defeito fundamental’. Nesta idade, o jovem é muito sensível às mensagens de simpatia da parte dos outros, assim como ao aspecto intimo das confidências partilhadas. Fazer parte integrante de um grupo de pares tornase suporte identitário e fonte de renarcisização. A irrupção de um acontecimento exterior, tal como uma doença grave, modifica o posicionamento do jovem no seu grupo de pertencimento tanto no seu papel quanto na sua função. Em casos extremos pode chegar a modificar o estilo de apego aos pares e provocar, justamente, condutas de isolamento (Kynga et al., 2000). Brigar com os amigos é percebido como um acontecimento muito mais difícil e muito mais frustrante do que uma briga com os pais. Trata-se de acontecimentos inesperados, portanto 25 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 24-34 mais problemáticos para o adolescente. As meninas reagem mais intensamente do que os meninos. Os de 12 anos são mais vulneráveis e susceptíveis de sentir desespero e tristeza. Consideram-se frequentemente ‘culpados’ do conflito e tendem a assumir ‘toda a responsabilidade’. Uma briga com um amigo querido reaviva o questionamento sobre o valor pessoal e sobre a noção de diferença, assim como a ansiedade que a acompanha. Reaviva também o medo da perda do apoio emocional, tão importante nesta idade, devido a uma falha pessoal. Um acontecimento exterior, tal como uma doença grave, provoca imediatamente um questionamento sobre a autoestima devido ao seu caráter exterior e intrusivo, e aumenta assim a insegurança identitária e o risco de aparecerem mal entendidos relacionais (Narring, 2003). Sentir-se humilhado é um acontecimento dramático, percebido como extremamente estressante que provoca desespero e paralisia da capacidade de reação. Este acontecimento é tanto mais difícil de enfrentar para os adolescentes porque é percebido como imprevisível e incontrolável (Sentenac et al., 2011). As meninas sofrem as humilhações pessoais mais intensamente que os meninos. Os de ‘12 a 15 anos’ se sentem bem mais atingidos que os de 17 anos, os quais têm mais capacidade de se distanciar em face de este tipo de situação. A humilhação pode ter diferentes fontes: sociais, quando acontece entre pares, familiares, quando se manifesta no seio da família, exteriores, quando se trata de uma doença grave ou de um acontecimento perturbador. Em todos estes casos, sua intensidade depende do sentido que o adolescente confere ao acontecimento, e da representação que ele se forjou dele mesmo ao longo do tempo. Um estado de tomada de consciência que prepara ao conhecimento de si Paralelamente, e graças à resolução destas situações potencialmente estressantes, durante seus ‘anos verdes’ o jovem elabora experiências construtivas. Com a intensificação das necessidades internas e das expectativas do ambiente, o adolescente reage para controlar a sua vida e aceder assim à autonomia. Neste caminho para o distanciamento da infância e do aconchego familiar, sua tarefa principal esta totalmente centrada na definição de si que passa pela formulação de projetos pessoais e pelo apoio do grupo de pares, referência essencial para confirmar a identidade, para encontrar apoio e segurança, para satisfazer as necessidades de dependência sem renunciar à autonomia. O jovem deve se diferenciar das identificações parentais para estabelecer suas próprias escolhas num contexto de relações mutuamente valorizadas (Guedeney & Guedeney, 2006). A recusa de regras estabelecidas é uma prioridade. A oposição e o desafio à autoridade do adulto assinalam um processo necessário visando à desconstrução da infância em prol da construção de si. Acontecimentos externos tais como a doença grave, que se desencadeiam durante esta longa marcha para a individuação, modificam profundamente o ritmo da evolução psicológica do adolescente, sua projeção no futuro, suas necessidades pessoais assim como a sua relação ao mundo (Narring, 2003). Este resumo geral da vivência adolescente visa lembrar quatro elementos importantes. O primeiro se refere à acuidade das problemáticas identitárias e relacionais ao longo dos ‘anos verdes’. O segundo lembra a existência de momentos de maior vulnerabilidade no decorrer da adolescência (de modo geral, os 13-15 anos são mais frágeis do que os 16-20 anos) e sobre a diferença de suas experiências segundo seu sexo. O terceiro evoca os meios de reação típicos da adolescência baseados essencialmente no evitação, na oposição, na negociação com a autoridade e a busca (primordial) de apoio dos pares. O quarto, enfim, se refere à universalidade das problemáticas adolescentes, qualquer que seja o país, a cultura ou a comunidade de inserção do adolescente (Rescola et al., 2007). Somente a hierarquização das situações estressantes vividas ao quotidiano pelos adolescentes é modulada pela cultura de pertencimento. Uma doença crônica, tal como o diabetes insulinodependente, com suas necessidades rigorosas e os riscos em longo prazo, pesará como uma carga psicológica suplementar no universo já carregado do jovem, e vai interferir negativamente com o trabalho psíquico da adolescência (Castro,Tubiana-Rufi, Moret Fombonne & The PEDIAB Collaborative Group, 2000; Helgeson et al.. 2007; Naring et al., 2003; Sentenac, 2011). O que é o diabetes? O diabetes insulinodependente (DID) ou diabetes de tipo I é uma das quatro doenças crônicas mais frequentes na infância, cuja incidência está aumentando em todos os países. Na França, nos últimos 10 anos, a incidência anual passou de 7,8 novos casos para 100.000 crianças de menos de quinze anos a mais de 10 para 100.000. O aumento é particularmente importante nas crianças de menos de cinco anos: o numero de novos casos quase dobrou nos últimos 15 anos (Eurodiab, 2000)a. Hoje em a No Brasil a taxa de incidência é de sete casos em 100.000 crianças/adolescentes. 26 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 24-34 dia, o equilíbrio do diabetes insulinodependente depende de um tratamento extremamente fastidioso que implica numa série diária de gestos repetitivos; a irregularidade destes gestos pode se traduzir em perigo vital em longo prazo. Este aumento é tanto mais inquietante porque o DID é considerado como fator severo de estresse psicossocial (DSM-IV-TR, 2004) devido ao seu caráter permanente e irreversível, modificando profundamente o funcionamento psíquico individual e a construção de si. A natureza crônica desta doença modifica os estilos e os projetos de vida, a representação de si e a percepção do quotidiano. A doença atinge não somente o jovem portador, mas todos os membros da família, pais e/ou irmãos e irmãs assim como o vinculo entre eles (Scelles, 2001). Ela se impõe ao funcionamento familiar como um real traumatismo psíquico e invade, periodicamente, o campo psíquico de cada um de seus membros. Neste contexto, o traumatismo psíquico pode ser entendido como a consequência de um acontecimento exterior cujo efeito é mais ou menos devastador a nível afetivo nas pessoas que se encontram implicado diretamente (portadores da doença) ou indiretamente (família, pais, irmãos) (Castro, Malivoir, Martin, Gagnayre & Robert, 2009). No plano psíquico, a vida em longo prazo com o diabetes mergulha o adolescente no cerne de seu conflito identitário, acrescentando problemáticas suplementares e específicas. A doença exige uma serie de importantes reajustamentos tais como a aceitação da sua própria vulnerabilidade, a mudança da percepção de si, e a modificação de suas relações com os outros (Castro, 1997; Castro et al.. 2000; Johnson, 1980). Estes reajustamentos se produzem em reação a diferentes critérios tais como a fase da doença, o momento do desenvolvimento do sujeito, as necessidades profundas. (Castro, 1997). São periódicos e tão crônicos quanto à própria doença. Com o DID, o adolescente e, em seguida, o adulto que ele vai se tornar, vivencia ciclos de bem-estar seguidos de ciclos de revolta, de desânimo, ou até mesmo de desespero. Examinemos estes reajustamentos dentro de uma perspectiva cronológica focando nossa atenção nos mecanismos psicológicos em ação. O diabetes na adolescência Com o anúncio do diagnóstico: o choque, como aceitar a permanência da doença? Tomas é um jovem de 16 anos. Ele é alto, esportivo, alegre, social e gourmet. Faz três semanas que esta saindo com Eleonora, uma menina da mesma classe, que o comove, fazendo nascerem sentimentos de ternura e novos desejos. Tomas vive intensamente esta relação vangloriando os ‘méritos’ do amor aos seus amigos próximos. Ele se sente ‘grande’, despreocupado e leve. Faz três semanas que Tomas se sente cansado, bebe muita água e emagrece visivelmente. Inquieta, a família decide consultar e fica sabendo durante a consulta que Tomas apresenta um diabetes insulinodependente, doença crônica grave, que destrói as células do pâncreas e que se não for tratado, pode levar diretamente à cegueira e a outras complicações agudas e terríveis. Tomas recebe esta noticia com calma (segundo seus pais). Durante sua hospitalização assiste pela manhã às sessões de educação para o tratamento e adquire rapidamente os gestos necessários. De tarde, seus amigos e Eleonora o visitam, brincam sobre a presença no seu quarto das seringas de insulina e sobre o “dope” que poderiam conter, e se perguntam quando estará curado. Tomas enfrenta praticamente bem (segundo ele) esta semana de hospitalização e aprecia, interiormente, o fato de ser, durante este tempo, o centro de atenção de seu universo relacional. A data de saída é anunciada, e com ela uma noticia nova: o fato de que a doença não é curável, as recomendações médicas de todo tipo sobre a necessidade de uma regularidade sem falhas no ritmo do tratamento, sobre as limitações dietéticas, sobre as recomendações quanto à pratica do esporte, sobre a responsabilidade pessoal que tudo isto implica e sobre o calendário anual das consultas médicas. No fim desta consulta, Tomas desmaia por alguns minutos. Quando desperta, diz: “Não quero sair do hospital antes de estar curado! Por favor, não quero que meus amigos e Eleonora me vejam neste estado!” Que sentido psicológico dar a este desmaio imprevisível e inesperado neste jovem alto, esportivo e simpático? Provavelmente o de um choque emocional ligado à súbita compreensão de estar vivendo uma mudança irreparável! Assim, desde o diagnóstico, a doença surge na vida do jovem paciente com a força de um Tsunami e se instala numa vivência penosa e muito irritante. Ela o confronta imediatamente com uma grave problemática identitária assim como a temíveis conflitos intrapsiquicos. Nas suas primeiras fases, a DID desencadeia: Um choque que atinge a representação de si atual e futura, a vida quotidiana, os projetos de vida e as relações com os pares. Na primeira semana de hospitalização não é raro que o jovem paciente se sinta desligado da situação e se comporte de maneira automática, como se não se tratasse dele. O sentimento de continuidade identitária é fortemente desestabilizado “O mundo desmoronou quando descobri a minha doença! Nada será nunca mais como antes!” (nos dirá Tomas durante uma 27 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 24-34 consulta posterior). Assim também o sentimento de segurança relacional e o apego aos pares. O adolescente se interroga sobre o seu posicionamento no grupo e sobre a imagem que lhe é refletida se seus pares viessem a tomar conhecimento de sua problemática médica. Um sentimento de injustiça que culpabiliza e que pune, dominado por sentimentos de raiva e do desesperado questionamento do: ‘Porque eu?’ Este questionamento só encontra respostas insatisfatórias ancoradas em teorias pessoais, sem ligação com a realidade biológica. Estas respostas explicam a aparição do diabetes devida às ‘faltas’cometidas anteriormente: «fui muito festeiro»; «me entreguei», entre outras, atingindo novamente a autoestima. Um sentimento de injustiça que persegue: o DID infiltra todo o espaço mental do jovem modificando sua reação ao mundo e lhe impondo uma tensão interna permanente: «Só penso nisto, no diabetes, uma palavra que eu queria arrancar da minha cabeça, mas que esta lá, sempre lá, só penso nisto: diabete, diabete, diabete, uma palavra que eu queria arrancar da minha cabeça, mas tenho a impressão que todo mundo escuta. É muito duro! » (jovem de 14 anos). A raiva volta contra si mesmo e persegue interiormente o jovem doente. Uma injustiça que exige reparação: o DID é percebido como uma ‘falha’ do corpo médico que não soube prevenir ou não sabe curar. Esta ‘falha’ (imaginaria e fantasiada) deve ser constantemente remetida aos médicos para lembrar sua impotência e sua ignorância num afrontamento entre as ‘vitimas’ (os jovens pacientes) e os «algozes» (médicos): «Para eles (os médicos) tudo é muito fácil, eles dizem que não é grave, que há pior, e que se pode viver com o diabetes! Eu não quero, não vou fazer dieta, vou ficar obesa, meus exames serão horríveis, e eles vão ver que não é verdade!» (jovem de 14 anos). Neste contexto, a reação depressiva é a primeira a se apresentar junto com o sentimento insuportável de perda e de desespero. Depois, com o tempo, os tratamentos eficazes, a continuidade da vida quotidiana, e os momentos de vida fora da doença, o tumulto emocional se acalma (por algum tempo) permitindo que os reajustamentos psicológicos se façam e o jovem continua o seu trabalho de «adolescente». adaptação à doença torna-se seu inimigo quando, devido à duração, impõe a repetição quotidiana e inexorável dos gestos de tratamento sob a constante ameaça do agravamento das perturbações. Nas primeiras fases após a revelação da doença, o jovem paciente não tem plenamente consciência do caráter crônico e inexorável da sua condição; ele conserva ainda inconscientemente a esperança de cura. Mas, com seu ritmo e sua periodicidade, a doença coloca o jovem paciente diante de novas problemáticas, especificas e... crônicas! Uma primeira problemática se refere à descontinuidade temporal, fenômeno que transforma a relação a historia pessoal introduzindo as noções de antes e depois. A afecção crônica vai modificar para o sujeito a experiência do tempo, esta sequencia de «presentes contínuos de valor desigual» e vai acentuar, para alguns deles, as dificuldades identitárias. Um passado idealizado enfrentará um presente desiludido e um futuro incerto. O antes e o depois se tornam, para o jovem paciente, as únicas referências identitárias. Antes do diabetes, quando eu olhava para a minha mãe, achava que ela estava feliz e despreocupada, depois, quando vejo como ela me olha, não é mais a mesma coisa, seus olhos me parecem tão tristes que tenho vontade de chorar! Ela não me vê mais igual, fiquei frágil, quebrada!“, diz uma jovem de 15 anos. Antes do diabetes eu era despreocupada e livre, dinâmica, não me questionava, agora mudei, sou, não sei, mais inquieta e mais introvertida, dizia outra adolescente de 17 anos. Estes exemplos mostram como a aparição do diabetes transforma a relação do sujeito à sua historia pessoal. Esta consciência do tempo em termos de antes e de depois instaura uma nova cronologia que espera a restauração de um estado do ‘antes’ idealizado. A idealização do passado, embelezado em relação ao presente frustrante, ocupa um lugar preponderante. A lembrança do passado torna-se um ponto de referência e objetivo a ser atingido, na esperança inconsciente de volta a um estado de boa saúde. A ruptura da temporalidade age paralelamente sobre a noção de identidade: Se não sou mais como antes, quem sou eu para mim mesmo e para os que me conhecem? O adolescente se sente outro, modificado, remodelado, estigmatizado pela sua afecção (Buchbinder, Detzer, Welsch, Christiano, Patashnick & Com a doença em longo prazo: o choque da Rich, 2005).) Penso que nunca poderei fazer abstração do meu permanência, pois como aceitar para sempre um diabetes. Será sempre a coisa mais difícil da minha vida. Não sou tratamento obrigatório? como os outros, às vezes até tenho a impressão de que sou um monstro! (Tomas, três anos depois do diagnostico da sua DID). Diante da doença crônica, o tempo, paradoxalmente, não A modificação de si mesmo subjetivamente percebida resolve nada! Aliado do jovem doente no processo psíquico de é universal no âmbito desta doença. Ela também pode ser 28 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 24-34 objetivamente medida. Vários estudos em diferentes países mostraram a evidência da prevalência de mecanismos antidepressivos em adolescentes portadores de DID, assim como perturbações importantes nas relações interpessoais que se manifestam pela introversão e a inibição, ou pelo agir e a excitação (Castro et al., 2000; Hsu, Dorn & Sereika, 2010; Huurre & 2002) Durante a evolução da doença, hipoglicemias severas, comas diabéticos, crises, acidentes, operam uma ruptura na cronologia do tempo da doença, modificando uma vez mais a percepção que o sujeito tem do antes e do depois. A experiência temporal assim interrompida reaviva no adolescente e na sua família o choque do anuncio inicial do diagnostico, provocando terror e sideração. A descontinuidade da experiência temporal sempre tem por efeito uma desorganização da economia psíquica. O reequilíbrio depende da reativação de mecanismos pessoais de defesa que permitam ultrapassar a crise com o auxilio da família e o apoio caloroso dos pares (Buchbinder et al., 2005). Uma segunda problemática refere-se à defasagem que modifica, para o adolescente, a relação pessoal e temporal aos outros. No âmbito da doença crônica, a defasagem que o paciente experimenta quando deve controlar sua doença que interfere na sua relação com os outros. Este fenômeno se define como uma irritação sentida pelo paciente enquanto deve controlar sua doença que interfere na sua relação aos outros. Este fenômeno é claramente percebido pelo adolescente quando a centralização sobre si mesmo e o interesse pelos outros se tornam suas principais preocupações. Nesta época de sua vida, os jovens sentem uma necessidade imperiosa de conformismo, de comunicação, de trocas, de proximidade com outras pessoas significativas, de conversas sobre a sexualidade e análise do funcionamento humano. Estas necessidades se manifestam ao nível do comportamento pelo aumento do tempo passado com os amigos e pelo engajamento em atividades sociais (fazer coisas juntos, fazer companhia, ir junto para fazer alguma coisa com alguém) ou erotizadas (sessões de maquilagem com as amigas, andar de mãos dadas, entre outras.). Estas atividades exigem tempo e o sentimento subjetivo de ter tempo é uma condição necessária à satisfação deste tipo de necessidade e à integração no grupo de pertencimento. Mas a doença crônica e seu tratamento quotidiano têm implicações negativas na relação com os pares na medida em que encurta os momentos de participação comum, de reuniões espontâneas, de colaboração programada. As limitações funcionais devidas à afecção, as interrupções frequentes de atividades ligadas ao seu tratamento, levam o jovem portador de DID a sentir de maneira muito negativa as obrigações de horários que lhe são assim impostas: Não se pode fazer nada, quando se começa a estar bem tenho que parar para fazer um tratamento, se queixava este jovem adolescente de 15 anos que adorava ficar em companhia dos colegas depois das aulas, bebendo Coca-cola e comendo barras de chocolate. Não se pode nunca fazer como os outros, não se é diferente e, no entanto não se é mais igual, acrescentava uma outra adolescente de 15 anos. O fenômeno de defasagem implica, portanto, numa experiência afetiva exasperante e frustrante, na qual projetos percebidos como essenciais não podem se realizar plenamente, por falta de tempo. Esta experiência reaviva a raiva e o sentimento de injustiça, gerados pela doença e com ela as eventuais reações ansiosas e depressivas. Esta vivência de defasagem é inconscientemente alimentada pelo próprio adolescente. Os recursos internos, mobilizados para outros fins - na luta pela autonomia e na construção de si, por exemplo - tornam-se indisponíveis para outras tarefas. O adolescente vai buscar apoio e reconforto junto a seus pares. Investirá ainda mais suas relações sociais e, ainda uma vez, vai lhe faltar tempo. Quanto mais o esquema terapêutico for estrito ou percebido como tal, maior será a demanda afetiva e mais intensa a frustração. Paralelamente, o sentimento de não dispor do mesmo tempo que os outros amigos por causa do tratamento médico, influi sobre a autoestima. Acentua assim a convicção na existência de diferentes identidades, pois o adolescente doente perde ou se afasta do vinculo forte de afiliação a um determinado grupo que poderia oferecer, de maneira especular, segurança e confiança. “Meus amigos são legais, mas não é mais a mesma coisa!” (Tomas, três anos depois do inicio da doença) Às vezes este sentimento de perda é fonte de mal entendidos no grupo. O interesse autêntico dos amigos pode ser percebido como intrusivo, factício e simulado quando falta autoestima. (Buchbinder et al., 2005). A sensação de defasagem é um fenômeno tão crônico quanto a doença, a qual, por sua vez, progride por fases. Para gerenciá-la, o adolescente passa por períodos de introversão nos quais recusa a participação dinâmica nas atividades dos amigos, e/ou por períodos de desobediência total do tratamento quando horários e obrigações desaparecem da cena mental para dar lugar à realização total de necessidades afetivas pessoais e sociais. Para o adolescente, a urgência é viver intensamente, o mais perto possível da vida, no momento presente. A adesão ao tratamento prescrito sofre muito. 29 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 24-34 A doença em longo prazo: amortecer os choques se acomodando com o tratamento Viver intensamente o momento presente para um adolescente portador de DID implica, do ponto de vista psicológico, negar temporariamente sua doença para poder esquecer seu penoso tratamento. Este movimento psicológico universal se torna muito claro para o adolescente e produz efeitos negativos sobre a adesão ao tratamento. Sabe-se, hoje, que a observação do tratamento diminui significativamente na adolescência (Jacobson et al., 1987; Nde-Eshimuni et al, 2011). Cerca de 50% dos adolescentes não observam corretamente as prescrições médicas (Kynga et al.2000; Nde-Eshimuni M. Salema et al. 2011), apesar do bom conhecimento do esquema terapêutico e das consequências inelutáveis desta desobediência (Castro, 1991). As problemáticas adolescentes comuns a esta fase do desenvolvimento humano, associadas à da diferença e à da defasagem, específicas ao adolescente doente, explicam em parte este fenômeno. Outra pista explicativa é fornecida pela análise da noção de cronicidade. O estresse induzido pela aparição da doença mergulha o jovem numa fase transitória de luto em relação à perda da integridade física e provoca a mobilização dos recursos psíquicos necessários para enfrentar esta situação. Assim, as primeiras fases depois da aparição da doença são em geral acompanhadas de uma observação particularmente escrupulosa do tratamento cujo motor psicológico inconsciente é a esperança de cura total. À medida que a doença segue seu curso, o jovem paciente é confrontado com a sua duração interminável. A mobilização de se tratar é tanto mais insuportável pelo fato de que (no espírito do jovem) o tratamento só visa a prevenção das complicações ulteriores e não a cura definitiva tanto esperada. Portanto, se neste estágio o adolescente consegue se ajustar à sua vida com o diabetes, ele se torna cada vez mais sensível ao caráter penoso do seu tratamento. Apesar disto, deve gerenciálo na vida quotidiana. Gerenciar o tratamento no quotidiano implica, para o adolescente, se assegurar um conforto psicológico graças à elaboração de novas estratégias adaptativas (cognitivas, afetivas, etc.). Entre estas, a mais frequente consiste em modificar cognitivamente o esquema terapêutico a fim de poder aceitá-lo afetivamente. Concretamente, o adolescente “decide” de se autoprescrever um esquema terapêutico idiossincrático simplificado (Castro, 1991) ao qual adere plenamente, subjetivamente, e em longo prazo. Para isto, “decide” suprimir sistematicamente do seu protocolo quotidiano certos gestos do tratamento (análise de urina, por exemplo) e/ou certas limitações dietéticas. Assim reajustado subjetivamente, o tratamento parece diminuir o peso da dependência e criar no jovem portador de DID um sentimento de liberdade que reduz a distância entre os imperativos da situação médica e as necessidades profundas. Para enfrentar a culpa inerente à transgressão consciente da prescrição médica, o adolescente vai utilizar uma série de mecanismos psicológicos de defensa amplamente descritos na literatura. Insistiremos na descrição dos mecanismos psíquicos diretamente orientados para o controle dos afetos negativos de culpa gerados pela mediocridade da observação terapêutica. Trata-se essencialmente da racionalização dos comportamentos de supressão dos gestos de tratamento que se manifesta através de explicações pessoais que visam a justificá-los plenamente e a reforçar assim o esquema terapêutico auto-prescrito. Os adolescentes chamam de “esquecimento” seus comportamentos de supressão dos gestos de tratamento. A racionalização consiste na atribuição de uma explicação coerente do ponto de vista lógico, ou aceitável do ponto de vista social, a um comportamento cujos verdadeiros motivos não são expressos. No caso do DID, esta se refere a diferentes aspectos do esquema terapêutico e porta sobre o que é percebido pelo adolescente como sendo difícil de aceitar do ponto de vista psicológico (Castro, 1991). Assim nota-se: A racionalização face à percepção penosa ou dolorosa do tratamento ou à sua antecipação: o adolescente justifica o “esquecimento” do teste de sangue dizendo “dói muito”; A racionalização face à percepção de inutilidade de certos itens terapêuticos: o adolescente atribui subjetivamente uma importância variável aos diferentes gestos de tratamento cotidiano negando a sua necessidade: “as análises de urina não são muito importantes”; “não adianta nada”; “não serve para nada”. A racionalização face às supressões justificadas pela falta de tempo ou pela presença de preocupações mais essenciais: «tenho muitas atividades, não dá tempo”; “tinha prova de matemática, nem pensei nisto » ; A racionalização face à negociação com o tratamento: «faço minhas dosagens de sangue duas vezes por semana, na quarta e no domingo porque não tenho aula. O resto do tempo não preciso ». A racionalização face à existência de uma escala de valores pessoal: “aos domingos aumento as doses de insulina para os extras culinários, porque é possível”. 30 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 24-34 A atitude “racionalizante” aparece, nas circunstâncias da doença crônica, como um fenômeno inevitável e tanto mais durável. No plano psicológico, ela testemunha da existência de um compromisso realizado pelo adolescente para enfrentar, por um lado, o caráter obrigatório do seu tratamento e, por outro lado, as duas tendências contraditórias e permanentes que são as de aceitar a doença crônica e negar as suas consequências. Entretanto, o abuso da atitude racionalizante tem efeitos negativos sobre a qualidade da observação terapêutica. Pela justificação aceitável, ela reforça e mantém os comportamentos terapêuticos inadaptados do jovem paciente. Mas, paralelamente a estas condutas racionalizantes, e de maneira durável e periódica, o adolescente utiliza atitudes que lhe permitem respeitar corretamente seu tratamento médico. Clinicamente pudemos observar três condutas principais que aparecem muito frequentemente no discurso dos jovens pacientes: A primeira se refere a uma cíclica recusa da realidade da cronicidade: Magui, 14 anos, esta chocada com a 4° hospitalização para equilibrar o seu DID. Choro, culpa, desespero, se manifestam durante toda a semana de hospitalização. Quando sai do hospital, a paz é total: “Decidi de me responsabilizar, de fazer um esforço, de fazer tudo direitinho durante seis meses. Só vou comer o que é permitido na “dieta” e voltar a uma vida normal.” Para sair da depressão, Magui recorre ao mecanismo de recusa da realidade através da recusa da cronicidade. Inconscientemente, a representação da doença crônica e durável foi recusada e substituída por outra representação – temporária – da doença: aguda, passageira e, portanto, menos ansiogênica, na qual o respeito escrupuloso do tratamento fica forçosamente limitado no tempo. A segunda se refere à noção de reparação: um número importante de jovens portadores do DID afirma: «quando crescer vou ser pediatra, biólogo, médico». Assim, através deste projeto profissional, exprimem a esperança sempre presente de cura ou de minoração significativa das obrigações cotidianas. Ou ainda, a tentativa de controlar, talvez mesmo dominar a doença, pela imersão total no seu universo, para encontrar na fantasia a fonte profunda da sua origem. Ou ainda, este projeto profissional também pode revelar a presença de uma atitude altruísta: dedicar sua vida ao bem-estar dos outros traz um sentido à sua própria vida com a doença. A terceira se aparenta a uma estratégia pessoal positiva que consiste em procurar e achar benefícios pessoais na doença e suas características. Assim, certos jovens afirmam ser « mais maduros, mais responsáveis, mais autônomos » desde que foram diagnosticados com o DID. Trata-se, no entanto, bem entendido, de uma atitude “racionalizante”, mas neste caso a serviço da reconquista identitária e da manutenção da saúde física. Este breve resumo do funcionamento psicológico do adolescente doente crônico visa constatar diferentes aspectos. Em primeiro lugar, as problemáticas dos jovens pacientes portadores de uma doença crônica, e mais particularmente do DID, são universais. Elas se expressam sob diferentes formas culturais, mas recobrem as mesmas realidades psíquicas. Em segundo lugar, esperar que estes jovens pacientes aceitem definitivamente a sua doença é um objetivo inteiramente ilusório. Vimos bem como é difícil, neste momento chave da vida que é a adolescência, gerenciar permanentemente as problemáticas da diferença e da defasagem. Em terceiro lugar, a noção de adaptação à doença é complexa e avança de maneira cíclica. Aos ciclos de melhor adaptação, em termos de observação do tratamento, seguem-se ciclos mais medíocres. A adaptação é fortemente correlata à natureza da doença e à facilidade de equilíbrio, ao estado afetivo do jovem assim como à qualidade de seu ambiente relacional. Em quarto lugar, o apoio psicológico aos adolescentes doentes crônicos deve imperativamente levar em conta, além da singularidade individual, as noções cíclicas de aceitação e de” adaptação à doença tais como foram apresentadas aqui. Com a doença em longo prazo: amortecer os choques recorrendo ao psicólogo do serviço de dialetologia Na nossa experiência, a consulta psicológica no âmbito da doença crônica não é sistemática. Ela é oferecida aos pacientes e às suas famílias sob a forma de consultas eventuais, tratamentos breves ou reuniões periódicas. A ajuda psicológica aos adolescentes portadores de DID torna-se, como a propria doença e as flutuações psicológicas dos jovens, uma questão… crônica de encontros e de trocas em longo prazo! Com efeito, o recurso ao psicólogo acontece pela demanda dos pacientes nas fases periódicas de desequilíbrio somático ou psíquico. A ansiedade suscitada por este tipo de acontecimento propulsa o paciente e sua família na busca de sentido e na procura de explicações racionais e lógicas. A demanda de consulta com o psicólogo aumenta, de maneira recorrente, nestas ocasiões. O recurso ao psicólogo aparece também de maneira recorrente a pedido das equipes médicas e paramédicas, inquietas ao constatar uma observação medíocre. Nestes casos, o psicólogo 31 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 24-34 deve gerenciar um problema especifico de defasagem que se opera entre os objetivos dos jovens pacientes e os da equipe. Trata-se, com efeito, de uma divergência fundamental na definição dos objetivos de tratamento que interroga a questão da temporalidade. Para ao adolescente, se tratar equivale a viver o mais perto possível da vida dos outros e do bem-estar cotidiano, portanto de respeitar seu próprio ritmo e modular o seu esquema terapêutico. Para a equipe, o tratamento visa prevenir as complicações ulteriores e assim manter a vida; portanto, a equipe se apressa em apontar ao seu jovem paciente seu descuido em relação ao tratamento prescrito e lhe pedir para restabelecê-lo o melhor possível sem perder tempo. Para o psicólogo, a gestão destas situações é difícil, pois, de um lado como do outro, fortes expectativas pesam sobre a sua função. Resposta miraculosa aos questionamentos, modificação mágica dos comportamentos indesejáveis, soluções “imediatas” a situações insolúveis, dentre outras. Estas situações só podem encontrar solução satisfatória na abordagem “caso por caso”, em longo prazo, na abordagem pluridisciplinar e, sobretudo, com a participação consentida das partes concernidas. Assim, uma primeira forma de ajuda dispensada pelo psicólogo do serviço de dialetologia é oferecer às equipes de tratamento a possibilidade de compreender o funcionamento do jovem paciente e modular assim seu discurso e sua atitude face a ele. Neste contexto, o psicólogo, explicando o funcionamento do paciente, trabalha em prol da compreensão do adolescente doente junto às equipes para individualizar suas necessidades específicas na interface com o trabalho da adolescência, e também para permitir que as duas partes – pacientes e equipe –se aproximem numa troca construtiva a propósito da doença e de seu tratamento. Uma segunda forma de ajuda psicológica acontece junto ao adolescente durante as repetidas hospitalizações ou as consultas programadas. A missão do psicólogo clinico é simples, teoricamente. Ele deve “obrar” no interesse do seu paciente, qualquer que seja o seu referencial teórico, “para a autonomia da sua personalidade” b ·. Isto vale dizer que no serviço de diabetologia, como em outros serviços, o psicólogo trabalha para a causa identitária. Ele contribui para manter a coerência da identidade do adolescente, sua continuidade e sua perenidade, para que este nunca esqueça que antes de ser doente ele é uma pessoa. No terreno, para desempenhar a sua missão, o psicólogo dispõe de duas fontes inesgotáveis de inspiração criativa: a primeira provém dos próprios adolescentes: da observação e do retorno de seu funcionamento psíquico, das estratégias que b Statut des psychologues hospitalier utilizam para contornar as dificuldades, da sua capacidade a se conhecer e a se apoiar nos seus recursos internos, do seu estilo relacional, etc. Para o psicólogo, o objetivo privilegiado destas interações é de ajudar a integração dos recursos pessoais e o desenvolvimento daqueles que ainda estão em estado bruto. Encorajar periodicamente, sobretudo em fase de desequilíbrio, a busca partilhada de sentido, de revolta, de isolamento ou de oposição na vida com o diabetes. A busca de sentido permite discriminar estes estados emocionais intensos, e assim fazendo permitir que emerjam de maneira mais elaborada e menos dolorosa para o jovem. Sobretudo permite ao jovem, devido à tomada de consciência que implica adquirir e se lembrar (periodicamente), que ele pode se ajudar o melhor possível com o que ele é e o que ele pode realizar; a segunda provém dos dados da pesquisa neste campo. Com efeito, o trabalho clinico de observação, de interação e de apoio justo ao jovem se enriquece utilmente pelas contribuições da pesquisa e permite que a criatividade do psicólogo se concretize no tratamento de cada paciente. Os resultados da pesquisa trazem ideias e aberturas tanto no estilo relacional estabelecido com o adolescente doente quanto na renovação das temáticas abordadas com ele. Os dados da pesquisa ajudam o psicólogo a construir sua missão de ajuda para que ele possa regularmente estimular o interesse do adolescente por ele mesmo e pelo seu bem-estar somático e psíquico. Exporemos a seguir três exemplos de praticas psicológicas provenientes da pesquisa contemporânea no campo da doença crônica na adolescência. Trata-se da noção de pesquisa de benefícios, da questão do posicionamento no grupo de pares e de sua utilização como mediador do estresse cotidiano, e dos estilos de enfoque psicológico diferenciado segundo o sexo do adolescente. A busca de benefícios se define como a experiência emocional que permite ao sujeito experimentar características positivas durante situações adversas. Age como um fator de proteção e demonstra de maneira reiterada seu impacto positivo na adaptação à doença (Helgeson, Reynolds & Tomich, 2006; Linley & Joseph, 2004). Assim definida, a busca de benefícios torna-se uma fonte renovada de equilíbrio psicológico nas situações de sofrimento emocional ligadas aos aspectos negativos da doença e do seu tratamento. O papel do psicólogo neste contexto é levar o adolescente a operar, regularmente, esta mutação na maneira como ele se vê e como vê a sua doença. O posicionamento e utilização do grupo de pares: os dados da pesquisa (Helgeson, Snyder, Escobar, Siminerio & Becker, 2007; Salema et al., 2011) mostram que os pares têm uma 32 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 24-34 influência positiva no bem-estar do adolescente doente porque o seu apoio emocional veicula a aceitação e o reconhecimento que necessita como pessoa, e contribui à consolidação da sua identidade em margem da doença. Assim, pelo seu apoio, camaradas e amigos representam um eficaz fator de proteção contra o estresse da doença e do tratamento. Junto ao jovem, sua adaptação às obrigações terapêuticas ou sua assistência espontânea na realização dos gestos terapêuticos, oferece segurança e tranquilidade ao adolescente doente. Desta forma, pelo seu interesse e sua atenção às necessidades do adolescente doente, os pares lhe permitem controlar seus comportamentos de provocação (particularmente no âmbito da alimentação), prevenir as eventuais brincadeiras tão temidas, e se abrir às necessidades psicológicas dos outros. Neste contexto, o papel do psicólogo é acompanhar o jovem paciente no seu posicionamento constantemente renovado no seu grupo de pertencimento, expressando periodicamente e em toda segurança seus sentimentos e suas expectativas e, sobretudo, aceitar a ideia de que seus pares representam uma fonte de apoio inesgotável e solida. O estilo de enfoque psicológico diferenciado segundo o sexo do adolescente se refere à constatação de que os adolescentes portadores de DID têm mais dificuldades relacionais que as adolescentes. Frequentemente eles se isolam e mostram dificuldade para partilhar o afeto dos amigos. Seu discurso é mais concreto e frequentemente reprimem suas emoções. Assim sendo, experimentam significativamente mais emoções negativas, irritantes ou penosas. Os autores explicam estes resultados referindo-se à noção de estereotipo aplicada aos papeis sociais dos homens e das mulheres. Com efeito, para estes adolescentes, ser doente é percebido como um forte sinal de fraqueza, e a fraqueza é inconsistente com as características de força atribuída ao sexo masculino na sociedade contemporânea (Helgeson et al. 2007 ; Korbel et al, 2007). Neste contexto, o papel do psicólogo é de ficar atento às diferenças de gênero para não subestimar as dificuldades psicológicas especificas aos meninos. E, bem entendido, para facilitar o seu acesso, através de vias que eles considerem aceitáveis, à sua vida interior e à sua elaboração. Conclusão Nada será nunca mais como antes quando a doença crônica aparece e desorganiza o ritmo harmonioso da vida! Na passagem do antes para o depois, numa vida diferente daquela imaginada ou esperada, os adolescentes doentes crônicos necessitam, no mundo todo e em todas as culturas, de encorajamentos adaptados, de orientação construtiva, de apoio envolvente, e de companheirismo solidário na sua luta cíclica com os momentos de desenvolvimento psicológico e os períodos da doença. Nesta luta cíclica, o psicólogo é seu aliado. Pela sua escuta criativa, sua aceitação empática e seus conhecimentos clínicos, ele permanece de maneira “crônica” ao lado do paciente, garantindo permanentemente a sua identidade profunda. Juntos, paciente e psicólogo, trabalham lado a lado para manter em longo prazo, perseverando, no imediato da vida cotidiana, numerosos instantes privilegiados à margem da doença. Referências Buchbinder, M. H., Detzer, M. J., Welsch R. L., Christiano A. S., Patashnick J. L., & Rich, M. (2005). 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Este estudo tem como objetivo comparar a prevalência e os níveis de burnout numa amostra de 164 profissionais de saúde portugueses (98 enfermeiros e 66 médicos), a desempenhar funções no serviço de Urgência através da aplicação do MBI-HSS . Os resultados revelaram diferenças significativas entre estes profissionais. As enfermeiras apresentaram uma prevalência mais elevada da sindrome de brnout e maior exaustão emocional e despersonalização do que os médicos. Palavras-chave: Síndrome de Burnout; Estresse ocupacional; Médicos; Enfermeiros Abstract: The burnout syndrome assumes actually an increasing i mportance, attracting the attention of the scientific community by the impact it causes on workers of different professions, particularly on nurses and physicians, due to the severity of the consequences, being a relevant psycho-social problem related with the health of the worker. This study aims to compare the prevalence and the levels of the burnout among 164 Portuguese health professionals (98 nurses and 66 physicians), working in an Urgency service through the application of the MBI-HSS. Results revealed significant differences between these health professionals. Nurses present a higher prevalence of burnout syndrome and more levels of emotional exhaustion and depersonalization than physicians. Key Words: Burnout syndrome; Occupational stress; Nurses; Physicians a Licenciada em Enfermagem (ESESM) e em Psicologia (FPCEUP). Mestre em SIDA: da Prevenção á Terapêutica (FM-FPCEUC). Doutoranda da Fundação para a Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Governo da República Portuguesa na FPCEUP. *E-mail: [email protected] Sistema de Avaliação: Double Blind Review 35 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 35-41 A síndrome de burnout nos profissionais de saúde tem suscitado cada vez mais o interesse da comunidade científica devido às graves consequências que podem produzir na qualidade dos cuidados prestados aos utentes, uma vez que estes trabalhadores estão particularmente susceptíveis ao sofrimento psíquico e ao adoecimento pelo trabalho (Rios, 2008). Segundo estudos epidemiológicos europeus, esta é uma realidade muito preocupante, sendo já encarada como um risco psicossocial emergente, no âmbito da saúde pública (Gil-Monte, 2005). Ao pesquisarmos investigações realizadas nesta temática, os resultados encontrados parecem ser convergentes ao afirmarem que os profissionais da área da saúde, pela constante exposição a fontes de stress, apresentam-se em risco elevado de desenvolverem a síndrome de burnout (De Dios & Franco, 2007; Dias, Queirós & Carlotto, 2010; Silva & Gomes, 2009), colocando em causa a garantia da qualidade do atendimento e da prestação dos cuidados aos Utentes. De acordo com a literatura, a síndrome de burnout é apenas uma das respostas possíveis às fontes de stress excessivas relacionadas com o trabalho, surgindo como o resultado do stress crónico, típico do quotidiano do trabalho, principalmente quando neste existe sobre os seus trabalhadores pressões excessivas, conflitos, poucas recompensas emocionais e reconhecimento (Maslasch, Schaufeli & Leiter, 2001). Assim, são numerosos os factores identificados na literatura que parecem contribuir para o surgimento e evolução da síndrome, podendo ser enquadrados nos domínios social, psicológico, individual, familiar, profissional, cultural e do meio ambiente. De uma forma consensual, o stress é conhecido por provocar exaustão emocional nos profissionais de saúde, podendo conduzi-los a experimentar sentimentos negativos em relação ao seu trabalho. Maslach e Jackson (1981) referem nesta linha de pensamento que as profissões assistenciais ou de ajuda exigem que os trabalhadores despendam de um tempo considerável de intensa relação interpessoal, que se encontram frequentemente em situações problemáticas e cuja relação está repleta de sentimentos de perturbação emocional, frustração, medo ou desespero, como é o caso dos enfermeiros e dos médicos. Delbrouck (2006) propõe inclusivé como causas explicativas da exaustão específica do prestador de cuidados a especificidade da profissão clínica; o impacto e a repetição de traumatismos encontrados nos doentes e, por fim, o isolamento físico e psicoafectivo do prestador de cuidados. Como consequência, a tensão e o stress resultantes podem ter um efeito de uma deterioração emocional, em que estes profissionais de saúde experienciam uma sensação de vazio e sintomas próprios da síndroma de burnout. Por outro lado, a realidade portuguesa dos serviços de saúde, que se encontra no momento actual em grande reformulação, contrasta com as expectativas pessoais destes profissionais, contribuíndo, de uma forma significativa, para o aparecimento do stress e sentimentos que constituem as três dimensões que caracterizam a síndrome de burnout: exaustão emocional, despersonalização e baixa realização profissional (Carlotto, 2010; Maslach et al., 2001). Assim, quando a instituição hospitalar não é capaz de proporcionar os apoios necessários à realização de um desempenho profissional óptimo, o pessoal médico e o de enfermagem ficam mais vulneráveis ao aparecimento e desenvolvimento de síndrome de burnout. Alguns autores, por vezes têm partilhado uma visão mais simplista, em que o excesso da pressão laboral apresenta como consequência imediata o desgaste emocional, verificando, no entanto, que diferentes trabalhadores, como enfermeiros e médicos, expostos às mesmas circunstâncias não experienciam as mesmas vivências. Nesse sentido, as investigações remetem para a identificação de alguns factores explicativos que conduzem ao burnout nos profissionais de saúde, destacando-se o trabalho por turnos, o cansaço emocional, a falta de realização pessoal e o sentimento de incapacidade e de ausência de controlo face às situações de risco eminente (Moreno-Jimenez & Puente, 1999), o ambiente insalubre, a remuneração, o contacto muito próximo com os Utentes (Escribá-Agüir, Martín-Baena & Pérez-Hoyos, 2006) que podem mobilizar emoções e conflitos, o ambiente físico que envolve uma atmosfera fechada, as pressões de tempo, os ruídos excessivos ou os silêncios incumpridos, a variedade de funções e tarefas, longas horas de pé (Costa, Morita & Martinez, 2000), os conflitos familiares com o trabalho e do trabalho com a família, a falta de recursos pessoais, as relações interpessoais inadequadas, a deficiente supervisão da gestão, a formação insuficiente (Cottrell, 2001), a sobrecarga de trabalho, o apoio social ineficaz, eventos de vida traumáticos, estratégias de coping desajustados (Cline, Reilly & Moore, 2004). Devido ao risco elevado para o experienciar do burnout por parte dos profissionais de saúde, a literatura apresenta nesta temática alguns estudos desenvolvidos com os enfermeiros (Alcacioglu, Yavuzsen, Dirioz, Oztop & Yilmaz, 2009; Albadejo, Villanueva & Ortega, 2004; Dias, Queirós & Carlotto, 2010; Maslach et al., 2001) e com médicos (Martín, Hernández, Arnillas & García, 2009; Palmer, Gomez-Vera, Cabrera-Pivaral, Prince-Vélez & Searcy, 2005; Ramirez, Graham, Richards, Cull & Gregory, 1996) e apesar de mais escassos, nomeadamente em Portugal, alguns estudos comparativos entre estas duas 36 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 35-41 categorias profissionais, que procuraram identificar os factores e as fontes de stress que levam ao aparecimento da síndrome de burnout (Quirós-Aragón & Labrador-Encinas, 2007; Silva & Gomes, 2009). No estudo realizado por Silva e Gomes (2009), foram identificados maiores níveis de stress associados à falta de poder, reconhecimento, instabilidade profissional e de carreira, remuneração e status profissional nos enfermeiros comparativamente aos médicos. A investigação de âmbito nacional conduzida por Queirós, em 2005, revelou que em termos de prevalência, um em cada quatro enfermeiros apresentava burnout no trabalho. Outros estudos apontam os profissionais de enfermagem como os mais susceptíveis a desenvolver a síndrome de burnout (Moreira, Magnago, Sakae & Magajewski, 2009; Rodríguez-García, Oviedo, Santillán, Velázquez & Fiesco, 2009). Estes profissionais, geralmente estão expostos a uma maior sobrecarga de trabalho (Rodríguez-García et al., 2009), evidenciam maior cansaço emocional, falta de realização pessoal e sentimento de incapacidade e de ausência de controlo face às decisões dos médicos (Gunnarsdóttir, Clarke, Rafferty & Nutbeam, 2009). No estudo realizado por Paredes, Pereira e Montiel (2008), que investigou a síndrome de burnout numa amostra constituída por 65 médicos e por 100 enfermeiros nicaraguenses, foram identificados maiores níveis da síndrome em enfermeiros, com uma prevalência de 28%, o dobro da amostra médica. Por seu lado, Yang, Koh, Lee, Chan e Chia (2001) concluíram que enfermeiros a desempenhar funções no serviço de urgência apresentam elevados níveis de stress profissional quando comparados com enfermeiros a desempenhar funções noutros serviços. Segundo Ersoy-Kart (2009) e Kalemoglu e Keskin (2006), os profissionais de saúde que trabalham no serviço de urgência, em particular, na emergência, podem estar sob o impacto da síndrome de burnout, uma vez que estes serviços são considerados como os mais activos e stressantes dos Hospitais. Com a realização deste estudo pretende-se conhecer nesta amostra a prevalência da síndrome de burnout e verificar se existem diferenças nas dimensões do burnout entre os enfermeiros e médicos que desempenham funções no serviço de urgência num hospital público da região norte de Portugal. sexo feminino (62%), casados ou em união de facto (50%) e sem filhos (59%). A idade variou entre 24 e 60 anos (M = 35.4; DP = 9.3) e os anos de serviço variaram entre 2 e 40 anos (M = 11.4; DP = 8.5). No que diz respeito à situação profissional, verificou-se o predomínio dos profissionais de enfermagem (60%), com vínculo definitivo (61%), com exclusividade (34%), apresentando os inquiridos uma carga horária semanal superior a 35 horas (77%), com um horário de trabalho em refime de turnos (76%). Somente 20% dos participantes desempenha outros cargos, nomeadamente a formação em serviço. A tabela 1 apresenta o perfil sóciodemográfico e laboral da amostra. Tabela 1 Perfil sociodemográfico e laboral da amostra (N=164) Características Enfermeiros (n=98) Médicos (n=66) Sexo 67% feminino 53% feminino Estado civil 33% casados ou união 76% casados ou união de facto de facto Filhos 20% com filhos 74% com filhos Faixa etária 24 a 59 anos 26 a 60 anos M = 30.9 anos (±6.26) M =42.2 anos (±9.01) Anos de 2 a 36 anos 2 a 40 anos Serviço M = 7.97 anos (±5.77) M =16.5 anos (±9.21) Formação 14% Pós graduação 6% Pós graduação 2 % Mestrado 6 % Mestrado 6 % Doutoramento Tipo de 62% com vínculo 61% com vínculo contrato definitivo definitivo Pluriemprego 67% com pluriemprego 62% com pluriemprego Carga horária 70% com carga superior a 87% com carga superior semanal 35 horas a 35 horas Horário de 97% em regime de turnos 44% em regime de turnos trabalho Desempenho 5% com cargos 41% com cargos de Cargos Instrumentos Foi construído um questionário adaptado aos objectivos da investigação, sendo constituído essencialmente por dois grupos de questões. O primeiro grupo permitiu a caracterização sócio-demográfica e profissional da amostra. O segundo grupo pretendeu avaliar o burnout, através do MBI-HSS (Maslach Burnout Inventory - Human Services Survey, de Maslach & Jackson, 1996). Este instrumento é constituído por 22 itens, em que o participante tem que assinalar a frequência com Método que vive ou sente várias situações descritas, cujas opções de Amostra resposta se encontram formuladas numa escala de Likert de 7 Foram inquiridos 164 profissionais de saúde que pontos, que vão do zero (nunca) aos seis (todos os dias). Contêm desempenhavam funções no serviço de Urgência de uma na sua organização as três dimensões que medem a Exaustão instituição hospitalar do distrito do Porto, com o predomínio do Emocional (9 itens, alfa = .887), Despersonalização (5 itens, alfa 37 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 35-41 = .775) e Realização Pessoal (8 itens, alfa = .812). A validade factorial deste instrumento tem sido amplamente estudada em diferentes amostras e países (Chayu & Kreitler, 2011; Schaufeli, Leiter & Maslach, 2009), cujos resultados recomendam para a utilização de soluções com três factores, assumindo-se o burnout como um constructo tridimensional (exaustão emocional, despersonalização e reduzida realização pessoal), remetendo para o não uso do score total do MBI como uma única variável, de acordo com as recomendações do manual elaborado pelas autoras (Maslach, Jackson & Leiter, 1996). Nesse sentido, um elevado grau de burnout é reflectido em elevados resultados nas dimensões de exaustão emocional e despersonalização e em baixos resultados na dimensão da realização pessoal. As qualidades psicométricas deste instrumento revelaram-se satisfatórias, de acordo com os critérios propostos por Bryman e Cramer (2003) e Field (2009). Procedimentos (t Student). Após ter sido realizada inicialmente uma análise descritiva das variáveis em estudo e para determinar os critérios de risco para o burnout, foi utilizado também o procedimento recomendado de Shirom (1989), uma vez se assume como uma alternativa válida para identificar os índices de burnout tendo em conta a frequência dos sintomas que quando não existem pontos de corte, baseados em percentis validados no país para classificar a população, como acontece em Portugal. Este autor defende que os indivíduos que apresentam sintomas com frequência igual ou superior a “Algumas vezes por semana” desenvolveram burnout. No MBI-HSS, esta indicação surge na escala de Likert correspondente a “Algumas vezes por semana” é 4. Assim, os profissionais com pontuações ≥ 4 nas dimensões do MBI apresentaram níveis elevados na mesma, excepto na dimensão realização pessoal que é avaliado em sentido inverso. Para avaliar a prevalência da síndrome de burnout, através deste critério, consideram-se altas as pontuações dos participantes que apresentem uma média ponderada superior a 4 (Algumas vezes por semana) para as dimensões exaustão emocional e despersonalização e inferior a 4 (Algumas vezes por semana) para a dimensão realização com o trabalho. O tratamento dos dados obedeceu a um nível de confiança de 95%, com um nível de significância de 5% (valor de p <.005). No entanto e valorizando o apelo da comunidade científica, no que diz respeito à importância do uso de métodos alternativos para a análise de dados nas investigações, em particular no âmbito das ciências sociais, nomeadamente devido às críticas crescentes do uso da estatística inferencial, foi nosso objectivo adicionar na apresentação dos resultados deste estudo, o tamanho do efeito (effect size). O tamanho do efeito foi calculado pela diferença média padronizada entre dois grupos (d de Cohen) que considera o tamanho do efeito inferior ou igual a .2 pequeno, entre .2 a .5 moderado, de .6 a 1.0 elevado e superiores a 1.0 muito elevado (Cohen, 1988; Maroco, 2007). Assim, quanto maior for o tamanho do efeito, maior será a manifestação do fenómeno em estudo na população. Entre a distribuição dos questionários e a sua devolução demorou cerca de 1 mês. Foram entregues 200 exemplares e recolhidos 164, correspondendo a 82% de taxa de devolução. Os dados obtidos foram recolhidos no primeiro semestre de 2012, junto de enfermeiros que exerciam as suas funções no serviço de urgência de um hospital público da região norte de Portugal, seleccionado em função de contactos prévios estabelecidos (amostra de conveniência quanto ao serviço). Nesse momento, foram apresentados e esclarecidos os objectivos da investigação, e após a autorização os questionários foram distribuídos por todos os profissionais que se voluntariaram para participar. Foi ainda realizado um estudo piloto com 20 profissionais que possuíam características similares aos indivíduos da população a ser estudada para verificar possível ambiguidade de alguma questão, respostas não previstas, não variabilidade de algumas perguntas e tempo estimado de aplicação, seguindo orientação de Barbetta (2001). Os questionários foram distribuídos pela chefias dos serviços, sendo de auto-preenchimento, confidenciais e com a garantia da anonimização das informações recolhidas, demorando em média cerca de 10 minutos para o preenchimento. Deste modo, os interessados receberam o questionário e depois de preenchido colocaram-no num envelope selado, entregando-o a um representante do serviço (previamente acordado) que os recolheu e devolveu à investigadora. Os dados foram tratados com recurso ao PASW versão 18 (SPSS/PASW, Inc., Chicago, Resultados IL), onde se realizou uma verificação crítica, através da análise de distribuição de frequências com a finalidade de detectar a Apresentamos a seguir os resultados obtidos com a presença de outliers ou erros de digitação. Foram realizados realização deste estudo. De acordo com as recomendações de diferentes procedimentos estatisticos, para análise descritiva Shirom (1989), verifica-se que é a classe de enfermagem quem e para a comparação de médias entre os grupos profissionais apresenta uma maior prevalência da síndrome de burnout. Nesse 38 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 35-41 sentido, 15% dos enfermeiros apresentam já niveis elevados de eauxtão emocional; 4% apresentam um nível elevado de despersonalização e 34% apresentam valores elevados de baixa realização profissional (Tabela 2). Tabela 2 Prevalência da Síndrome de Burnout nos enfermeiros e médicos portugueses Dimensões do MBI Baixos níveis ( <4) Enfermeiros Médicos n (%) n (%) Exaustão Emocional 83(85) 64(97) Despersonalização 94(95) 66(100) Realização Pessoal 33(34) 22(33) Altos níveis (≥4) Enfermeiros Médicos n (%) n (%) 15(15) 2(3) 4(4) 65(66) 44(67) Ao realizar as análises comparativas das médias das dimensão do burnout para cada grupo profissional, foram encontradas diferenças estatisticamente significativas. Nesse sentido, os resultados evidenciam que são os enfermeiros que apresentam médias mais elevadas de exaustão emocional e de despersonalização. O tamanho do efeito, calculado pelo d de Cohen, para os resultados significativos variou de 0.3 (efeito médio) a 0.6 (efeito grande). (Tabela 3). Tabela 3 Comparação de médias das dimensões da SB portugueses Enfermeiros Médicos (n=98) (n=66) Dimensões do M DP M DP MBI (0-6) Exaustão 2.61 1.23 2.18 1.01 emocional em enfermeiros e médicos t p d t(162)= .020* .382 -2.355 t(162)= Despersonalização 1.89 1.27 1.22 .90 -3.697 .000* .607 Realização pessoal 4.33 .86 4.35 1.03 t(162)= .907 .021 .121 Nota: * Diferença significativa ao nível de 5% Discussão Com a realização deste estudo, verificamos que de uma forma geral, os resultados obtidos vão ao encontro das evidências sugeridas pela grande maioria da investigação neste domínio temático. Os profissionais de saúde, em especial os enfermeiros e os médicos, devido às exigências emocionais e físicas que a sua profissão acarreta, assumem-se como um grupo vulnerável ao burnout. Os resultados obtidos mostram que esta síndrome ainda não está instalada nos profissionais deste estudo, apesar da sua prevalência ser maior nos enfermeiros do que nos médicos. Nesse sentido, esta amosta de profissionais de saúde revela uma baixa prevalência de níveis de burnout, caracterizada por uma elevada realização pessoal, moderada exaustão emocional e baixa despersonalização, não corroborando com o modelo processual proposto por Maslach e Jackson (1981). Segundo estas autoras, níveis elevados nas dimensões da exaustão emocional e despersonalização e baixos na realização pessoal são indicadoras da síndrome de burnout. Mesmo considerando a percentagem significativa de profissionais não realizados profissionalmente, as percentagens mais baixas nas outras duas dimensões traduzem um risco para o experienciar burnout. Assim, importa salvaguardar que já existem profissionais “activos” (enfermeiros e médicos) em risco de adoecerem pelo trabalho, uma vez que apresentam níveis elevados de exaustão emocional (15% e 3%, respectivamente) e de diminuição da realização pessoal (33% e 34%, respectivamente). Somente os enfermeiros apresentam altos níveis de despersonalização (4%). Segundo estes autores, a síndrome constitui-se como um modelo multidimensional, que se desenvolve de uma forma sequencial, devendo as suas três dimensões ser consideradas para caracterizá-la (Ortega & Lopez, 2004). Nesta perspectiva e nesta amostra, os enfermeiros assumem-se como o principal grupo profissional de risco ao burnout, uma vez que congregam as três categorias de factores apontados por Maslach et al. (2001). No que concerne à comparação das médias das dimensões da síndrome de burnout nesta amostra, os resultados confirmaram que existem diferenças significativas entre estes grupos profissionais em relação á exaustão emocional e despersonalização, sendo superior nos enfermeiros do que nos médicos, corroborando estudos já realizados (Gunnarsdóttir et al., 2009; Paredes et al., 2008; Rodríguez-García et al., 2009; Yang et al., 2001). Uma das possibilidades para explicar estes resultados pode estar relacionada com o perfil sóciodemográfico e laboral dos profissionais de saúde envolvidos neste estudo. Nesse sentido, este grupo de enfermeiros apresenta, segundo a literatura, um perfil de risco para o experienciar do stress e do burnout, uma vez que é constituído essencialmente pelo género feminino, profissionais jovens, solteiros, sem filhos, com uma carga horária elevada, com regime de trabalho por turnos, a desempenharem funções com condições de trabalho adversas, e que actuam nos serviços de Urgência (Cornelius & Carlotto, 2007; Dias et al., 2010; Rosa & Carlotto, 2006; Moreira et al., 2009; Ríos-Castillo, Barrios-Santiago, Ocampo-Mancilla & Ávila-Rojas, 2007). Por outro lado e apesar da enfermagem congregar tradicionalmente profissionais altruístas, com valores e 39 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 35-41 expectativas elevadas, vocacionados para o cuidar das pessoas, com um intenso sentido de idealismo, esperança e dedicação, estes profissionais estão cada vez mais expostos a diversas fontes de stress (baixa remuneração económica, com recurso ao múltiplo emprego, horários de trabalho extensas, aumento das exigências de utentes, médicos, familiares e supervisores, falta de reconhecimento por parte dos outros membros da equipa de saúde, alta pressão competitiva) que podem conduzir à deterioração das relações interpessoais nos serviços (nomeadamente com a classe médica) e condicionar o seu desempenho e realização profissional. Nesse sentido, estes resultados devem ser encarados e enquadrados tendo em conta o quadro das elevadas exigências actuais do contexto socioeconómico do país e das implicações directas e indirectas nas organizações de saúde que daí resultam. Nesta linha de pensamento, importa aqui reforçar a necessidade por parte da instituição hospitalar da implementação de estratégias e programas de prevenção do stress ocupacional, proporcionando os apoios necessários para um desempenho profissional mais optimizado, uma vez que o pessoal médico e o de enfermagem ficam mais vulneráveis ao aparecimento e desenvolvimento de síndrome de burnout. O presente estudo fornece algumas pistas para a compreensão do fenómeno em estudo entre enfermeiros e médicos. No entanto, salvaguardam-se alguns aspectos críticos que colocam algumas reservas à generalização dos resultados e ás conclusões inferidas. Embora se tenha tido uma preocupação com os procedimentos e recomendações metodológicas ao nível da aplicação do instrumento e na análise de dados, existe um conjunto de limitações que importa ressalvar. Esses aspectos estão relacionados com os critérios de selecção da amostra, que deu preferência aos profissionais que trabalhavam num único serviço de uma instituição do distrito do Porto. Por outro lado, as características sociodemográficas deste estudo limitaram algumas inferências, uma vez que se foi verificando homogeneidade/ convergência nas mesmas. Outra limitação está relacionada com o facto de se ter utilizado predominantemente uma metodologia quantitativa, tendose recorrido ao questionário como instrumento de recolha de dados. Esta medida, de autopreenchimento, comporta consigo possíveis enviesamentos, derivados da desejabilidade social, de respostas aleatórias, da falsificação e do estilo de resposta, como descritas na literatura. A adicionar a este facto, temos também o “efeito do trabalhador sadio”, em que só os trabalhadores “profissionalmente activos” estão possibilitados de participar na investigação, ao invés dos que estão ausentes do serviço por motivos de doença ou de férias. Para, além disso, a maioria dos estudos é de natureza correlacional e todos são transversais, o que não permite inferir causalidade e pode ter ainda associado efeitos do método comum. Referências Alacacioglu, A., Yavuzsen, T., Dirioz, M., Oztop, I., & Yilmaz, U. (2009). Burnout in nurses and physicians working at an oncology department. Psycho-Oncology, 18(5), 543-548. Albadejo, R., Villanueva, R., & Ortega, P. (2004). Síndrome de Burnout em el personal de enfermería de um hospital de Madrid. Revista Espãnola de Salud Pública, 78(4), 505-16. Barbetta, A. P. (2001). Estatística aplicada às ciências sociais. Florianópolis: UFSC. Bryman, A., & Cramer, D. (2003). 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As revistas que mais publicaram artigos possuem como objetivo a divulgação de trabalhos na área de saúde mental. México foi o país que apresentou maior número de publicações e, dos instrumentos de avaliação que abordam descritores de suicídio, a CES-D e a Escala de Ideação de Beck foram os mais utilizados, assim como, depressão foi o construto associado ao suicídio investigado em maior frequência. Conclui-se que esse estudo não contempla toda a realidade da América Latina e que outras investigações devem ser realizadas, por meio de outras bases de dados, visando corroborar ou não tais constatações. Palavras-chave: Suicídio; Ideação Suicida; Tentativa de Suicídio Abstract: The aim of this study was to review the bibliometric literature in Latin American, contained in the database Redalyc, between the years 2000 to 2010, investigating the amount and form of assessment of suicide. We analyzed 53 articles, concluding that was variability in the numbers of the articles published between the years. The magazines that most published articles have as objective the dissemination of works in the area of mental health. Mexico was the country with the highest number of publications and assessment tools that address descriptors suicide, and CES-D Scale and Ideation Beck Scale were the most used, as well as the construct of depression was associated with suicide investigated in greater frequency. We conclude that this study does not include all the reality of Latin America and that further investigations should be carried out through other databases, in order to prove or disprove these findings. Keywords: Suicide; Suicidal Ideation; Suicide Attempts a Mestre pela Universidade São Francisco. *Email: [email protected] b Doutor pela Escola Paulista de Medicina. c Mestrando pela Universidade São Francisco. d Mestre pela Universidade São Francisco. e Mestrando pela Universidade São Francisco. f Mestre pela Universidade Metodista de Piracicaba. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 42 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 42-48 Os artigos que avaliam a literatura abordam de maneira crítica os materiais que já foram publicados sobre um determinado objeto de estudo, identificando as relações, contradições e lacunas na literatura científica (APA, 2001). O conhecimento científico atualizado sobre um determinado tema é apresentado de maneira mais abrangente nos artigos de revisão por meio de um minucioso levantamento das publicações atuais, sejam elas clássicas ou recentes. Pretende-se ao fim desse artigo apontar possíveis críticas, identificar pontos positivos e negativos e sugerir, caso necessário, pesquisas futuras (Baptista, Morais & Sisto, 2007). O estilo empregado no artigo que revisa a literatura científica deve ser claro, conciso, objetivo e a linguagem precisa, coerente e simples, buscando responder a uma questão científica específica (Marconi & Lakatos, 1999). No presente estudo, a problemática em questão é a publicação de artigos sobre suicídio em países latino americanos, que se refiram à pesquisa de campo e, em especial, os instrumentos de avaliação utilizados em tais pesquisas. Suicídio - formas de avaliação O suicídio, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (2000a), está relacionado a um ato deliberado e levado a cabo por alguém que tem plena consciência de seu resultado final. Por sua vez, quando o indivíduo não consegue êxito em tal ação esse ato é classificado pela literatura como sendo tentativa de suicídio. Tanto a tentativa como o ato suicida em si são motivados por ideações suicidas, ou seja, pensamentos, geralmente relacionados à desvalia, que levam o indivíduo a pensar e planejar sua própria morte. Por suicídio, Baptista e Borges (2005) salientam que esse é um assunto que gera interesse e curiosidade, seja por parte dos pesquisadores e também da população em geral. Trata-se de um ato que acarreta consequências não somente ao indivíduo que se suicida, ou tenta tal atitude, mas também engloba toda sua rede de contato, por exemplo, familiares, grupo de trabalho, escolar e amigos em geral. Diversas variáveis foram comprovadas, principalmente por meio de pesquisas documentais e epidemiológicas, como sendo relacionadas ao ato ou ideação suicida, dentre essas pode-se destacar fatores genéticos, ambientais e socioculturais. Ainda de acordo com os mesmos autores o suicídio deve ser analisado por meio de sua característica multideterminante, ou seja, sua ocorrência muitas vezes se dá pela somatória de variáveis de risco e também da capacidade do indivíduo em resolver conflitos. Variáveis como diagnóstico de depressão, alcoolismo, uso de drogas, idade, sexo, desemprego e precária percepção de suporte familiar e social geralmente são associadas ao suicídio. O Brasil, de acordo com Viana, Zenkner, Sakae e Escobar (2008), apresenta um índice de cerca de cinco suicídios para cada 100 mil habitantes. Quanto a análise por sexo, homens se suicidaram mais que mulheres e a faixa etária mais acometida é entre 15 e 34 anos. Além disso, no que tange ao estado civil, há maior prevalência entre divorciados, solteiros e viúvos. Por fim, em relação aos métodos mais utilizados para o suicídio, enforcamento é o de maior frequência tanto em homens quanto em mulheres. Em Coahuila, no México, Mazacová e Martínez (2006), realizaram um estudo com base em 18 casos de pessoas que cometeram suicídio. Os autores destacam que no México houve uma taxa de aumento de 200% de suicídios nos últimos 30 anos. Em relação aos 18 casos analisados no estudo, 15 foram do sexo masculino, e desses, 10 eram solteiros. Esse estudo se difere à análise dos autores brasileiros uma vez que a população acometida nessa amostra foi de pessoas que tinham entre 35 e 44 anos. Paredes, Orbegoso e Rosales (2006) realizaram um estudo em um hospital em Lima, Peru, com 380 pessoas que tentaram suicídio e não tiveram êxito. Nesse estudo foi constatado que maioria dos casos foi de mulheres, com predomínio de idade variando de 15 e 29 anos. Desse total, a maioria das pessoas que tentaram suicídio era solteira e, o que difere dos demais estudos é em relação ao método utilizado, uma vez que as maiores frequências foram envenenamento, seguido por intoxicação medicamentosa. Esses dados são justificados por dados epidemiológicos na medida em que mulheres tentam mais suicídios que os homens, entretanto os homens geralmente optam por métodos mais letais, o que acaba por aumentar a frequência de mortes por suicídio no público masculino. Em 2009, o Ministério da Saúde em parceria com a Organização Pan-americana de Saúde e a Unicamp, lançaram uma cartilha didática e ilustrada, com base em bibliografia especializada, com o título Prevenção do Suicídio: Manual Dirigido aos Profissionais da Saúde da Atenção Básica. Os temas abordados englobam, de forma sucinta, a dimensão do problema, fatores de risco, associação com transtornos mentais, depressão, álcool e com transtornos de personalidade, além dos aspectos psicológicos, como ajudar a pessoa sob risco, como abordá-la e por fim, discorre sobre como avaliar e lidar com o risco de suicídio. De acordo com essa cartilha, o Brasil e demais países que compreendem a América do Sul e Central possuem, em média, uma estimativa de até oito suicídios a cada 100 mil 43 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 42-48 habitantes (Brasil, 2009). Acerca do processo de avaliação de pessoas que possuem ideações ou já tentaram suicídio, Bertolote, Mello-Santos e Botega (2010), abordaram a importância e os meios para a detecção do risco de suicídio nos serviços de emergência psiquiátrica. Para os autores, a melhor forma de avaliação dessa amostra é por meio do uso da entrevista clínica, uma vez que, por meio dessa, é possível identificar o risco que uma pessoa apresenta quanto a cometer o ato suicida. Nessa mesma direção, a entrevista permite, nesses casos, o apoio emocional necessário, o estabelecimento de vínculos, além da coleta de um grande número de informações. Ainda de acordo com os autores, embora haja escalas para medição e avaliação do risco de suicídio, segundo eles, nenhuma demonstrou eficiência plena para sua detecção. De acordo com Vaz (2010), a questão do suicídio é complexa e a avaliação psicológica necessita de esforços na busca de recursos para as pessoas que se encontram em condições de risco. Para o mesmo autor, os instrumentos psicológicos podem auxiliar no aprofundamento do conhecimento acerca do suicídio e no aperfeiçoamento dos métodos de avaliação, bem como expor aspectos clínicos que demorariam a aparecer de outras formas. Garrido, Alarcón e Castro (2009) afirmaram que entre as escalas existentes autoadministráveis com o intuito de rastrear a presença de ideação e intenção de suicídio, estão a Escala de Beck de Ideação Suicida; Rastreamento para Adolescentes de Columbia; Questionário de Ideação Suicida de Reynolds; Índice de Potencial Suicida de Crianças–Adolescentes (CASPI); Questionário de Conduta Suicida de Linehan; Questionário de Conduta Suicida Revisado de Linehan, todas com validade e precisão bem demonstradas; por outro lado, segundo eles, a Escala de Probabilidade Suicida, O Inventario de Ideação Suicida Positiva y Negativa (PANSI), a Escala de Ideação Suicida de Rudd, necessitam mais estudos e replicação de pesquisas para buscas de propriedades psicométricas. Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivo realizar uma revisão bibliométrica da literatura latino americana entre os anos de 2000 a 2010 investigando a quantidade e de que forma o suicídio vem sendo avaliado nesse contexto, bem como levantar instrumentos que podem auxiliar no processo de avaliação psicológica dessa temática. bibliométrica sobre suicídio na base de dados eletrônica Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal - REDALYC, de língua espanhola e portuguesa, entre os anos de 2000 a 2010. Justifica-se a escolha da base de dados Redalyc uma vez que a mesma possui elevado número de periódicos latino americanos indexados, além disso, é objetivo desse grupo de pesquisadores a realização de um estudo bibliométrico sobre suicídio na base de dados Scielo (a qual também possui periódicos brasileiros e latino americanos indexados) e posteriormente, a realização de um estudo comparativo entre as publicações na temática suicídio dessas referidas bases de dados. Foram utilizadas palavras chave em espanhol, sendo essas, “suicídio”, “intento suicida”, “ideacion suicida” e “intento de suicídio”. Os artigos foram pesquisados pela modalidade de busca por palavras que compõe o título do estudo, resultando dessa busca um total de 67 artigos. Desses, 50 estudos foram localizados por meio da palavra chave “suicidio”, quatro por “intento suicida”, oito por meio de “ideacion suicida” e cinco pelas palavras chave “intento de suicídio”. O critério de inclusão de artigos esteve condicionado a esses serem da modalidade de estudo de campo, sendo excluídos artigos teóricos (n=7), documentais (n=4), resenhas (n=1) e cartas aos editores (n=2). Essa etapa resultou em 53 artigos de pesquisas de campo, na referida década, com os temas suicídio, ideação suicida e tentativa de suicídio, dos quais foram extraídos dados, tais como, quantidade de artigos publicados por ano, nome e país das revistas, metodologia de estudo, número amostral, local de coleta de dados, instrumentos utilizados para análise da ideação e tentativa de suicídio e os construtos associados ao suicídio. Resultados A primeira análise realizada foi em relação à quantidade de artigos com a temática suicídio publicados na década entre 2000 e 2010. A figura a seguir mostra, por ano, a quantidade de artigos publicados. Método A metodologia empregada nesta pesquisa foi a revisão 44 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 42-48 (7,5%) sobre suicídio e, em menor freqüência (dois artigos cada) estão listadas oito diferentes revistas. Por fim, em relação a outras revistas, 22 diferentes revistas publicaram um artigo sobre suicídio cada no período pesquisado (41,3%), sendo essas, a Revista de Ciencias Sociales; Revista de Salud Publica; Nova; Persona y Bioética; Acta Universitaria; Archivos em Medicina Familiar; Biomédica; Brasil alcohol y drogas; Colombia Médica; Enseñanza y investigacion en psicologia; Interamerican journal of psychology/Austin Latinoamericanitas; Orbis; Pensamiento psicológico; Peru Med; Psicologia, Saúde & Doenças; Revista Brasileira de Saúde Ocupacional; Revista Brasileira em Promoção de Saúde; Revista Cubana de Higiene y Epidemiologia; Revista Peruana de Medicina Experimental y Salud Pública; Salud Figura 1. Distribuição da quantidade de artigos por ano. Uninorte e The Spanish Journal of Psychology. Somando-se as revistas pertencentes a um determinado país, na Tabela 2 é Como pode ser visualizado, os anos de maiores frequências possível observar a distribuição das publicações, tendo em vista de publicações foram 2007, com 10 artigos (18,9%), 2009, o país de origem dos periódicos. com nove artigos (17%) e 2002, com oito artigos (15,1%). É importante destacar que há oscilações entre a quantidade de Tabela 2 artigos no decorrer dos anos, ou seja, em alguns anos, tais como País da Revista N % 2002, 2007 e 2009 foi encontrado um número acima em relação País da Revista México 22 41,5 aos demais e nos anos 2000, 2003 e 2008 foram relacionados Colômbia 15 28,3 uma quantidade inferior de artigos. Nesse sentido, não é possív Brasil 3 5,7 3 5,7 el afirmar que o número de artigos publicados foi crescente com Espanha Chile 2 3,8 o decorrer dos anos, nem tão pouco constante. Em relação às Peru 2 3,8 revistas que publicaram os artigos dessa revisão sistemática, Latino-americanas 2 3,8 1 1,9 foram elencados na Tabela 1 os periódicos que publicaram dois Portugal Cuba 1 1,9 ou mais artigos a respeito do assunto. Tabela 1 Revistas que publicaram artigos sobre suicídio Nome da Revista Salud mental Revista Colombiana de Psiquiatria Investigación en Salud Universitas Psychologica Revista Intercontinental de Psicologia y Educacion Revista Colombiana de Psicologia Psicothema Psicología Iberoamericana Psicología y Salud Terapia Psicológica Outras Total Costa Rica Venezuela Total N 11 4 2 2 2 2 2 2 2 2 22 53 % 20,8 7,5 3,8 3,8 3,8 3,8 3,8 3,8 3,8 3,8 41,3 100,0 Cabe destacar que a revista Salud Mental foi a que apresentou maior frequência de publicação de artigos sobre suicídio, com 11 publicações (20,8%). A Revista Colombiana de Psiquiatria publicou no período de 10 anos quatro artigos 1 1 53 1,9 1,9 100,0 No que se refere aos países de origem que mais apresentaram artigos sobre suicídio na presente pesquisa (Tabela 2), México se apresentou com o maior número de artigos publicados, 22 (41,5%), seguido de Colômbia com 15 (28,3%), Brasil com três (5,7%) e Espanha também com três artigos (5,7%). Em relação ao delineamento, do total de artigos pesquisados (n=53) apenas um apresentou como tipo de estudo a modalidade longitudinal. Para a classificação da amostra foram utilizados os critérios de Prieto e Muñiz (2001). De acordo com esses autores, uma amostra pequena é composta por até 150 pessoas, é considerada uma amostra suficiente quando a mesma possui uma quantidade amostral entre 150 e 300 indivíduos, uma amostra é considerada moderada quando seu número de indivíduos varia de 300 a 600, uma amostra grande possui entre 600 e 1000 indivíduos e, por fim, uma amostra muito grande é constituída por mais 45 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 42-48 de 1000 indivíduos. Nesse sentido, dos 53 artigos analisados, 23 (43,4%) possuíam amostras pequenas, seis (11,3%) amostras suficientes, 13 (24,5%) amostras moderadas, quatro (7,5%) com amostras grandes e sete artigos (13,2%) coletaram em amostras consideradas muito grandes. Foi analisada a variável local de coleta de dados na Tabela 3, entretanto, nem todos os artigos apresentavam um detalhamento em relação a essa variável. Tabela 3 Local de coleta dos dados Local de coleta Cidades em geral (sem especificação do local de coleta) Hospital Geral (emergências) Escolas Hospital psiquiátrico Universidades Prisões Zona rural Total N 22 11 8 6 4 1 1 53 % 41,5 20,8 15,1 11,3 7,5 1,9 1,9 100,0 Dos 53 artigos investigados, 22 (41,5%) salientavam que os dados foram coletados em cidades específicas, porém sem apresentar um contexto (por exemplo, hospital, universidades, etc). Dos artigos que especificaram o local de coleta, 11 (20,8%) foram avaliados em hospitais gerais, oito (15,1%) em escolas, seis (11,3%) em hospitais psiquiátricos, quatro (7,5%) em universidades, um (1,9%) em prisões e um (1,9%) apenas citava que a coleta havia sido realizada em zonas rurais (Tabela 3). Alguns estudos fizeram uso de instrumentos cujo objetivo foi avaliar a ideação suicida. A distribuição desses instrumentos pode ser visualizada por meio da Tabela 4. Suicida de Beck. Dos 53 artigos, 41 relacionaram suicídio, ideação suicida e/ou tentativa de suicídio com outros construtos. Os construtos associados estão elencados na Tabela 5. Tabela 5 Construtos associados ao suicídio Construto Depressão Eventos estressantes Motivos para viver Desesperança Suporte familiar Autoestima Atitudes disfuncionais Estratégias de enfrentamento Suporte Social Agressividade Alcoolismo Desordem alimentar Ansiedade Estresse Esquizofrenia Total N 10 4 4 4 3 3 3 2 2 1 1 1 1 1 1 41 % 24,5 9,8 9,8 9,8 7,3 7,3 7,3 4,9 4,9 2,4 2,4 2,4 2,4 2,4 2,4 100,0 Na presente revisão bibliométrica foi possível observar, que 41 artigos relacionaram suicídio a outro construto. Nesse caso, depressão foi o construto associado com maior frequência seguido de eventos estressantes, motivos para viver e desesperança. Discussão A temática suicídio é tratada pela literatura especializada como uma questão problemática de saúde pública, visto que, com base em estatísticas mundiais, há a ocorrência de um suicídio a cada 40 segundos (Botega, Werlang, Cais & Macedo, Tabela 4 2006; Knox, Conwell & Caine, 2004; Mann et al., 2005; OMS, Instrumentos específicos na avaliação de suicídio 2000b; 2002; 2006; WHO, 2000). Instrumentos específicos N % CES-D (Para Ideação suicida) 5 31,25 No presente artigo analisou-se a produção bibliográfica Escala de Ideação suicida de Beck 5 31,25 de suicídio entre os anos de 2000 a 2010, tendo como fonte de Identificação del risco suicida (IRSA) 1 6,25 dados a base Red de Revistas Científicas de América Latina y el Estúdio psicossocial del suicídio 1 6,25 Caribe, España y Portugal - REDALYC. A revisão bibliométrica Cédula de indicadores para suicídio 1 6,25 da literatura se mostra como uma importante ferramenta no Escala de Ideación Suicida de Roberts 1 6,25 processo de planejamento de novas intervenções, uma vez que Escala de Intenção Suicida de Gonzales-Fortaleza1 6,25 identifica as lacunas de investigação de determinado objeto Inventário de Ideación suicida positiva y negativa 1 6,25 de estudo (APA, 2001). Especificamente acerca do suicídio Total 16 100,0 como objeto de estudo, Vaz (2010) pontua que essa temática Como pode ser visualizado na Tabela 4, oito diferentes é complexa, principalmente no que tange a mensuração. Para o instrumentos foram utilizados para avaliação dos descritores autor, os instrumentos de avaliação psicológica podem auxiliar de suicídio, tendo destaque para a CES-D e a Escala de Ideação os psicólogos quanto ao maior conhecimento do construto, 46 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 42-48 assim como auxiliar no aprimoramento de intervenções clínicas e prevenção. Em relação aos resultados do presente estudo, houve variação entre dois e 10 artigos publicados por ano, não podendo afirmar que houve um aumento ou decréscimo de publicações ao longo dos anos. No que tange à quantidade de publicações percebeuse que as duas revistas com maior número de artigos possuem ênfase na divulgação de trabalhos voltados para a área de saúde mental. Nem todos os artigos analisados apresentaram o local de coleta de dados, entretanto, daqueles que apresentaram, as maiores frequências ocorreram em hospitais gerais e psiquiátricos, bem como escolas. Acerca dessa informação Dias e Baptista (2004) atentam para o fato do contexto hospitalar, psiquiátrico ou hospital geral, ter maior frequência de pacientes com ideações suicidas. Os autores acrescentam, com base em estudos, que a taxa de suicídio em pacientes que passaram por internações é três vezes maior quando comparado às taxas de suicídio da população em geral. Bertolote et al., (2010) corroboram com os autores na medida em que pontuam acerca do alto índice de pacientes com ideação suicida internados em emergências clínicas, hospitais gerais e psiquiátricos. De acordo com os autores, é de grande importância que sejam feitas avaliações nessas pessoas, por meio de escalas ou estratégias específicas, para a detecção de ideias suicidas, levantamentos de fatores de riscos, bem como fatores protetivos. A respeito dos instrumentos de avaliação utilizados para investigação da ideação e tentativa do suicídio, na década investigada, a Escala de Ideação Suicida de Beck (BSI) e a CES-D, foram os que apresentaram maior frequência nos artigos. Embora a CES-D não tenha o propósito único de avaliação do suicídio, ou ideação suicida, mas sim o rastreamento de sintomatologias depressivas (Batistoni, Néri & Cupertino, 2010), pode-se perceber que foi um instrumento bastante utilizado para a análise de ideação suicida. Por sua vez a BSI é um instrumento de análise de ideação suicida e, conforme ressaltam Garrido et al., (2009), apresenta-se como uma escala viável, uma vez que a mesma possui adequadas evidências de validade e precisão para a análise da ideação suicida. De acordo com Bertolote et al., (2010), embora haja escalas para mensuração do risco de suicídio, essas nem sempre se configuram como o melhor método de avaliação. Para os mesmos autores, a entrevista psicológica pode ser considerada como a melhor técnica de conhecimento nessa realidade, pois a entrevista permite ao profissional fornecer apoio emocional. Além disso, pode proporcionar coleta de informações mais precisas sobre o paciente com potencial suicida ou que tenha ideação suicida, inclusive no que tange a informações sobre fatores de riscos e protetivos percebidos pelos indivíduos, ou seja, investigar quais os fatores relacionados ao possível ato ou pensamento suicida. No entanto, para atualizações rápidas ou rastreamento, segundo Baptista (2012), as escalas se mostram como importantes recursos do profissional de saúde. Nesse sentido, no que concerne aos construtos associados ao suicídio, depressão foi a que apareceu em maior frequência nos artigos analisados. Tal constatação é corroborada pelos achados de Baptista, Borges e Biagi (2004) que, com base em pesquisas epidemiológicas, ressaltaram possíveis fatores de risco para o suicídio, entre eles a depressão. Ainda de acordo com os autores, isolamento social, eventos estressantes, baixa autoestima e autoimagem, deficitário suporte social e familiar, uso de álcool e outras drogas e histórico familiar de psicopatologias também são variáveis que podem estar associadas à ocorrência de suicídio. Na presente pesquisa alguns desses construtos foram investigados nos artigos analisados, porém em menor frequência, como é caso de eventos estressores, suporte familiar e social, uso de álcool e drogas e autoestima. Como visto, diversas variáveis podem estar relacionadas ao suicídio, uma vez que sua operacionalização se refere a uma questão multifatorial. Em acréscimo, a OMS (2000b; 2002; 2006) atenta para o fato de o suicídio ser um fenômeno de constante preocupação para a sociedade, pois sua ocorrência está intimamente associada à saúde mental dos indivíduos. Nessa mesma direção, trabalhos preventivos devem ser articulados no intuito e atender e oferecer suporte às pessoas que já tentaram suicídio ou mesmo àquelas com potencial suicida, para que dessa forma as estatísticas mundiais tenham um decréscimo. Considerações Finais Os estudos cujo objetivo é a avaliação da literatura possuem como foco o levantamento dos trabalhos publicados em um determinado período de tempo e, mais do que isso, apontar possibilidades para investigações futuras. O intuito de realizar o levantamento bibliográfico em uma base que dados que envolve diversas revistas latino americanas foi justamente o de conhecer a realidade estudada nesses países acerca da temática suicídio. Pode-se verificar que na base de dados pesquisada houve grande variação do número de artigos publicados ao longo dos anos, o que remete a uma necessidade de maior estabilidade do número de artigos publicados por ano. Em relação aos periódicos elencados, não se detectou uma revista específica da 47 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 42-48 área de suicídio na base de dados em questão. Cabe destacar que somente a utilização da base de dados Redalyc pode ser considerado uma limitação do estudo, pois não abarca a realidade da América Latina no que tange aos estudos do suicídio, entretanto essa lacuna será mais bem contemplada uma vez que é objetivo dessa equipe de pesquisadores a investigação do suicídio em outros veículos de busca, de forma a ampliar a discussão sobre o assunto nesse contexto. Além disso, foram constatados poucos estudos brasileiros nessa base de dados, o que remete à necessidade de maior divulgação dos estudos nacionais sobre suicídio. Outro ponto significativo foi a ocorrência de pouca clareza de dados sobre as amostras pesquisadas nos artigos, principalmente no que tange ao local de coleta dos dados. Em contrapartida, foi observado que os artigos analisados apresentaram boa variabilidade nos instrumentos sobre descritores de suicídio, assim como a quantidade de construtos associados ao tema. Referências American Psychological Association (2001). Manual de Publicação da American Psychological Association. (4ª ed.). Porto Alegre: Artmed. Baptista, M. N. (2012). Escala Baptista de Depressão – Versão Adulto (EBADEP-A). São Paulo: Vetor Editora. Baptista, M. N., & Borges, A. (2005). Suicídio: aspectos epidemiológicos em Limeira e adjacências no período de 1998 a 2002. Estudos de Psicologia, 22(4), 425-431 Baptista, M. N., Borges, A., & Biagi, T. A. T. (2004). 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Recebido em outubrol/2012 Revisado em dezembro/2012 Aceito em dezembro/2012 48 R E L ATO D E P E S Q U I S A Elaboração das formulações psicodinâmicas de caso: um estudo exploratório Elaboration of psychotherapy case formulations: an exploratory study Rosangela Catto(a)*, Fernanda Barcellos Serralta(b) Resumo: Este trabalho propôs investigar como psicoterapeutas de orientação psicanalítica realizam suas formulações psicodinâmicas de caso. Trata-se de um estudo clínico e exploratório com delineamento de “estudo de caso sistemático” (ECS). A transcrição completa de uma sessão inicial de psicoterapia gravada em áudio foi entregue a quatro psicoterapeutas experientes com instruções específicas para: a) marcação (seleção), no texto, do material considerado relevante para a compreensão do caso, b) escrita, na margem da página, das hipóteses iniciais, e c) resposta a um questionário que incluía a formulação psicodinâmica do caso, entre outros dados complementares. Os resultados mostraram que os terapeutas apresentam bastante variação no que diz respeito à localização e número de marcas e hipóteses. Existem estilos pessoais que caracterizam o processo de realização desses procedimentos. A afiliação teórica do psicoterapeuta parece afetar mais o resultado de formulação psicodinâmica do que o seu processo. Esses resultados devem ser interpretados com cautela, tendo em vista as limitações de um estudo exploratório. Palavras-chave: Psicoterapia psicanalítica; Formulação psicodinâmica; Hipóteses clínicas Abstract: This study was aimed to investigate how psychotherapists perform their psychodynamic case formulations. This is a clinical and exploratory study with a “systematic case study” (ECS) design. The full transcript of an initial session of psychotherapy, recorded in áudio, was delivered to four experienced psychotherapists with specific instructions: a) to mark (select), in the text, the relevant material for understanding the case, b) to write in the text margin the initial hypotheses, and c) to answer a questionnaire that included the psychodynamic case formulation, among other complementary data. The results showed that therapists have many variation regarding the location and number of marks and assumptions. There are personal styles that characterize the process of carrying out such procedures. The theoretical affiliation of the therapist seems to affect more the result of psychodynamic formulation than the process. These results should be interpreted with caution, in view of the limitations of an exploratory study. Keywords: Psychoanalytic psychotherapy; Psychoynamic formulation; Clinical hiphotesis a Psicóloga (ULBRA/Canoas). *E-mail: [email protected] b Doutora em Ciências Médicas: Psiquiatria (UFRGS); Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Sistema de Avaliação: Double Blind Review 49 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 49-57 As pesquisas sobre o processo terapêutico buscam compreender como funcionam as psicoterapias e como ocorre o processo de mudança ao longo do tratamento (Wallerstein, 2007). Nesse tipo de estudo, é importante observar o que realmente fazem os terapeutas, visando conhecer suas ações e as técnicas pertinentes a cada modelo psicoterapêutico (Roussos, 2001). Estudos intensivos de caso, realizados através da aplicação de métodos empíricos a sessões terapêuticas gravadas em áudio ou vídeo, tem possibilidado compreender diferentes facetas do processo terapêutico (Serralta, Nunes & Eizirik, 2011). Entre as diversas variáveis que compõem o processo de uma psicoterapia encontram-se as hipóteses que norteiam o diagnóstico compreensivo que irão orientar o tratamento. Conhecer o processo de elaboração de hipóteses clínicas (no caso das psicoterapias psicanalíticas, as formulações psicodinâmicas de caso) é fundamental para a elaboração de estratégias de ensino, treinamento e supervisão, além de ofertar subsídios para a proposição de métodos sistematizados de formulação psicodinâmica de caso. Conform referem Vaisberg e Machado (2000), desde o início a psicanálise salientou a importância do estabelecimento de um diagnóstico provisório antes do efetivo início do tratamento. Essa recomendação permanece atual e assume relevância ainda maior quando se considera o universo das psicoterapias de orientação psicanalítica, especialmente, das psicoterapias breves ou focais, pois estas tipicamente exigem maior planejamento quando comparadas às intervenções de longo prazo. As psicoterapias breves constituem uma modalidade de intervenção altamente prevalente na atualidade não apenas nas instituíções, mas também na clínica privada (Parry, Roth & Kerr, 2007). A principal característica da técnica de psicoterapia breve, em comparação com a técnica psicanalítica clássica, “é a preocupação em otimizar o processo de aumentar o número de insight instantâneos” (Lemgruber, 1984, p. 12). Tipicamente isso é alcançado através da utilização de diversos princípios limitadores que incluem, entre outros aspectos, o planejamento terapêutico e a delimitação de um foco ou conflitiva focal que será alvo das intervenções do terapeuta (Lemgruber, 1984; Yoshida, 2004). A formulação psicodinâmica pode ser simplificadamente definida uma narrativa de cunho descritivo sobre a natureza e a etiologia dos problemas psíquicos do paciente. São “hipóteses que poderão ser confirmadas ou não durante o tratamento psicoterápico e que orientam as intervenções dos psicoterapeutas” (Bottino, Bairrão, Hanns, Rosa & Andrade, 2003, p. 166). Estas hipóteses representam, um conjunto de inferências, hierarquicamente organizadas, sobre a natureaza da psicopatologia do paciente, sua estrutura de personalidade, dinâmica e desenvolvimento (Messer & Wolitzki, 2007). Nesse sentido, as formulações psicodinâmicas são parte de um processo de inferência clínica. Roussos e Leibovich de Duarte (2002) definem as inferências clínicas como uma operação cognitivo-afetivo através da qual se conclui, por sentido indireto, a verdade de uma proposição ou um estado de relações. Conforme os autores, alguns estudos empíricos sobre esse processo evidencia que as inferências se concretizam por meio de uma operação cognitiva associada aos sistemas de atribuição e processamento de informação realizada pelo clínico. Entende-se, portanto, que as inferências clínicas compreendem todas as ações que abrangem um processo de transformação que um determinado terapeuta considera relevante para dar sentido ao material clínico de um determinado paciente. A compreensão da fala do outro, neste caso de um paciente, supõe uma função inferencial complexa que ultrapassa a fronteira das informações fornecidas e que é fundamental para o desenvolvimento de intervenções terapêuticas direcionadas ao paciente (Leibovich de Duarte, 2004). Esse processo pode sofrer interferências de fatores do terapeuta, tais como o enfoque teórico, a sua experiência profissional e as particularidades do seu próprio processo cognitivo do terapeuta (Roussos, 2001). Há indícios, por exemplo, de que psicoterapeutas mais experientes realizam formulações de caso com mais informações descritivas, diagnósticas, inferenciais e do planejamento terapêutico que os menos experientes (Eells et al., 2011). Embora existam algumas diretrizes gerais para a elaboração de uma formulação psicodinâmica (Gabbard, 2005), esta tarefa, entretanto, não é simples como poderia se pensar, pois, como bem assinalam Bottino et al. (2003, p. 166), “faltam clareza e sistematização na apresentação dos aspectos psicodinâmicos dos casos”, e, uma vez que as deduções são realizadas livremente, mesmo entre psicoterapeutas com a mesma formação os princípios e níveis de abstração utilizados podem ser bastante diferentes e assim produzir formulações distintas, que dificultam o processo de aprendizado da psicoterapia. Para minimizar diferenças entre psicoterapeutas na formulação do caso, favorecer o ensino da psicoterapia e promover a investigação empírica de processos e resultados em psicoterapia, ao longo das últimas décadas, foram propostos diferentes métodos sistematizados para orientar a construção das hipóteses que irão nortear a intervenção clínica nas diversas abordagens teóricas em psicoterapia (Eells, 2007). Quando de orientação psicanalítica, esses métodos, via de regra, estão 50 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 49-57 relacionados a modelos também sistematizados de psicoterapia breve. Entre outros, citamos como exemplo, o Tema Central de Conflito nos Relacionamentos (CCRT), idealizado na década de 70 por Luborsky, da Universidade da Pensilvânia, e relacionado à proposta da Terapia Suportiva-Expressiva (Suportive-Expressive Therapy) e o Padrão Mal-adaptativo Cíclico (CMP), do grupo da Universidade Vanderbilt, relacionado à Terapia Dinâmica de Tempo Limitado (Time-Limited Dynamic Psychotherapy, TLDP). O CCRT está ancorado da teoria das relações objetais de conflitos intrapsíquicos e interpessoais e a sua formulação é baseada nas narrativas do paciente que refletem desejos e as respostas do self e dos outros (Luborsky & Barret, 2007), sendo amplamente utilizado em pesquisas de processos e resultados em psicoterapia, inclusive no Brasil (Bottino et al., 2003; Yoshida et al., 2009) . O CMP integra perspectivas atuais da teoria das relações objetais, psicologia interpessoal e psicologia do self e a sua formulação considera o estilo interpessoal do paciente, o contexto interpessoal dos problemas, as reações e expectativas interpessoais do paciente, os padrões interpessoais, considerando pessoa, tempo e lugar, os padrões de interação com o terapeuta (transferência) e as reações contratransferências do terapeuta (Levenson & Strupp, 2007). A utilização de métodos sistematizados de avaliação e intervenção terapêutica ainda é pouco difundida entre psicoterapeutas brasileiros de orientação psicanalítica. Neste sentido, destaca-se o trabalho realizado por psicoterapeutas paulistas no já extinto Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicoterapia Breve (NEPPB), durante as décadas de 80 e 90 (Yoshida & Enéas, 2004). O modelo paulista é baseado na teoria da adaptação de Ryad Simon, quem também idealizou a Escala Diagnóstica Adaptativa Operacionalizada (EDAO), um instrumento aplicável às entrevistas clínicas avaliar o funcionamento adaptativo do paciente, e a Psicoterapia Breve Operacionalizada (PBO), um modelo de psicoterapia dirigida aos seus problemas de adaptação (Simon & Yamamoto, 2009). Embora as investigações sobre a formulação psicodinâmica de casos sejam raras, há estudos que mostram que existe correlação entre intervenções consistentes com a formulação padronizada realizada (CCRT, por exemplo) e medidas de processo e resultados (Eells et all., 2011). Todavia, não se sabe ainda em que medida esses métodos de formulação padronizada de caso são aplicáveis à clínica cotidiana (e quais as variáveis que interferem em sua aplicação), assim como qual a avaliação que os psicoterapeutas (não pesquisadores) fazem da sua utilidade (Godoy & Heynes, 2011). São escassas as investigações que se ocupam com a forma como os psicoterapeutas constroem suas inferências clínicas na clínica cotidiana. Na verdade, o exame da literatura nacional e internacional sobre o assunto revela que pouco se sabe sobre os modos como psicoterapeutas abordam e processam o material de seus pacientes e constroem as hipóteses que irão orientar o tratamento. Sendo assim, no presente estudo questionamos: como psicoterapeutas realizam o processo de formulação psicodinâmica de caso? Considerando o relato de uma sessão diagnóstica, existe concordância entre diferentes psicoterapeutas quanto aos elementos considerados relevantes para a construção das hipóteses clínicas? Há concordância na quantidade e qualidade das hipóteses que irão compor a formulação do caso? Responder a essas questões permite que se conheçam, entre outros aspectos, como os psicoterapeutas integram a informação clínica disponível, se tendem a ignorar dados que não apóiem suas hipóteses ou que dêem sustentação para hipóteses alternativas, ou a utilizar evidências ambíguas para sustentar suas próprias hipóteses (Roussos, 2001). Nosso objetivo com este estudo, portanto, é contribuir para uma maior compreensão do processo de elaboração de inferências clínicas na psicoterapia psicanalítica no contexto da clínica cotidiana. Método Este é um estudo clínico e exploratório que busca descrever como os psicoterapeutas constroem suas hipóteses clínicas e integram as informações disponíveis para realizar uma formulação psicodinâmica de caso. Trata-se, portanto, de um estudo de processo no qual um mesmo caso clínico é avaliado, através de procedimentos qualitativos e quantitativos, por diferentes psicoterapeutas. O delineamento, adotado é de “estudo de caso sistemático”, ou ECS (Edwards, 2007), um modelo de investigação compreendida como uma extensão da prática clínica, mas que apresenta, em compração com os estudos de casos clínicos tradicionais, diversos mecanismos para aprimorar o rigor metodológico e controlar os vieses do estudo, entre eles, a coleta de dados cuidadosa e sistemática e a utilização de juízes independentes para a avaliação do processo. Participantes Paciente – T. possui 27 anos e buscou atendimento psicológico em uma Clínica-Escola de uma Universidade do Rio Grande do Sul devido a queixas de depressão. Referiu ter ficado abalada com o rompimento de um relacionamento afetivo, de quase cinco anos, o qual considerava “para sempre”, com uma companheira. Afirmou que nunca fazia nenhuma atividade que 51 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 49-57 não fosse com a companheira, e que não conseguiu aceitar a forma como ela terminou o relacionamento. Relatou ter tido uma infância solitária, e que os pais separaram-se no seu primeiro ano de vida. Definiu a mãe como uma mulher exuberante, bonita e forte, e o pai, como um homem baixinho e sem graça. Quando seu meio irmão revelou à mãe que era gay, sentiu-se encorajada a também fazê-lo. Não sofreram discriminações em casa por isso. Segundo T., para a sua mãe, o importante é que os filhos não se afastassem dela. Em relação ao pai, revelou ter sentido muita falta dele na sua infância. Expressou a idéia de que se fosse guri, o pai a teria levado mais vezes junto dele. Acrescentou que, atualmente, diante do quadro depressivo que apresenta, o pai aproximou-se mais dela. A paciente se autodescreveu como uma pessoa bloqueada para receber carinho e que não consegue expressar seus sentimentos. Associou essa característica à falta de aproximação e contato físico com a sua mãe, quando criança. Sua mãe pareceria estar mais envolvida com os seus próprios relacionamentos amorosos do que com a relação com os filhos. T. possui uma vida profissional bastante produtiva. É reconhecida pelo seu bom desempenho no trabalho e não apresenta nenhuma dificuldade nessa área. Suas queixas concentram-se na vida afetiva e relacional. Por ocasião da primeira entrevista, estava apreensiva com a chegada da sua ex-companheira, que estava para retornar de viagem. Psicoterapeuta entrevistadora - A sessão inicial de T. foi realizada por estagiária de Psicologia Clínica. Psicoterapeutas avaliadores – Participaram do estudo quatro mulheres psicoterapeutas com formação em psicoterapia psicanalítica e experiência de pelo menos oito anos na docência e supervisão em psicoterapia. As participantes foram selecionadas por conveniência entre docentes e supervisores de instituições conceituadas no âmbito da formação psicanalítica. Procedimentos Entrevista - A sessão inicial de T. foi gravada em áudio para posterior transcrição e análise. Esta entrevista teve duração de 50 minutos e foi realizada em sala de atendimento da Clínica-Escola em que a paciente buscou atendimento, em conformidade com as orientações gerais das entrevistas iniciais realizadas nesse local: trata-se de uma entrevista aberta, cujo objetivo maior é identificar o motivo da procura de atendimento, realizar escuta empática e colher informações que subsidiem o diagnóstico descrito e compreensivo do caso. A entrevista coletada foi transcrita na íntegra. Esta transcrição foi realizada buscando contemplar não apenas as verbalizações ocorridas, mas também as pausas no discurso e variações no tom e inflexão de voz de ambas, paciente e terapeuta. Coleta de dados A transcrição da entrevista foi entregue às psicoterapeutas participantes do estudo em envelope fechado, contendo, além do relato, instruções para a marcação dos trechos relevantes do discurso da paciente (no próprio material da entrevista) e escrita (na margem da entrevista) de inferências e hipóteses sobre o material. Desse modo, neste estudo, as marcas são todos os dados sublinhados (marcados devido à sua relevância) pelos psicoterapeutas avaliadores na transcrição da entrevista analisada. Já as hipóteses são as inferências clínicas, escritas na margem do texto analisado, correspondem a hipóteses iniciais (idéias, comentários, interpretações) que foram ou não integradas na formulação psicodinâmica de caso que foi posteriormente realizada. As instruções específicas para a seleção do material relevante (marcas) e escrita de hipóteses na margem da página teve por objetivo possibilitar a análise da sua localização no texto. Além dessas instruções, as participantes receberam um questionário com questões abertas e fechadas para descrever, entre outros aspectos: a hipótese psicodinâmica inicial, os temas mais relevantes da sessão, o nível de confiança nas hipóteses formuladas e o modo como foram realizadas as hipóteses. O questionário foi elaborado pelas pesquisadoras, tendo como base o instrumento utilizado anteriormente por Roussos (2001) na sua investigação sobre este tema. Nenhuma informação adicional sobre o caso foi dada, além daquelas presentes na sessão de avaliação inicial que compõe a unidade de estudo. Análise de dados A análise dos dados seguiu um modelo clínico descritivo. Para avaliar a localização das marcas e inferências/hipóteses realizadas pelos diferentes psicoterapeutas avaliadores, inicialmente o texto foi dividido em blocos de 20 linhas cada. Esse procedimento gerou 31 blocos. Em cada um desses blocos, em planilha do Excel, foi computado o número de marcas realizadas e de hipóteses escritas, por cada psicoterapeuta avaliador. A seguir, foi utilizada, com o auxílio do comando gráfico do SPSS, a análise visual para verificar diferenças significativas entre os avaliadores em relação ao número e localizaçãodas das marcas e hipóteses realizadas. Após, para verificar aspectos centrais das formulações psicodinâmicas dos psicoterapeutas que avaliaram o caso, foi realizada a análise de conteúdo, conforme o método clínico-qualitativo (Turato, 2003). Por fim, para complementar essas informações, foi feito o levantamento descritivo das respostas ao questionário utilizado. 52 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 49-57 Aspectos Éticos Resultados Foram analisadas 513 marcas e 211 hipóteses (uma proporção de 2,43 marcas para 1 hipótese). Os blocos que geraram mais marcas foram os números 19, 16, 1 e 15, com 31, 30, 27 e 27 marcas, respectivamente. Os blocos que geraram mais hipóteses foram os números 19, 6, 14, 15, 16 e 18, com, respectivamente, 16, 10, 9, 9 e 9 hipóteses cada. Para uma melhor visualização desses dados, a distribuição de marcas e hipóteses por psicoterapeuta em cada bloco de texto está apresentada, respectivamente nas figuras 1 e 2. Número de marcas por terapeuta 14 Marcas 12 10 T1 Marca 8 T2 Marca 6 T3 Marca 4 T4 Marca 2 0 1 3 5 7 9 11 13 15 17 19 21 23 25 27 29 31 Blocos Figura 1. Marcas por terapeuta Nota: A figura apresenta o número de marcas realizadas por cada terapeuta participante em cada um dos 31 blocos da sessão. Legenda: T1 Marca = marcas realizadas pela terapeuta 1, T2 Marca= marcas realizadas pela terapeuta 2, T3 Marca = marcas realizadas pela terapeuta 3, T4 Marca = marcas realizadas pela terapeuta 4. Conforme figura 1, observa-se que o terapeuta 4 (T4) tende a realizar mais marcas que os demais em praticamente todos os blocos analisados; T1 faz mais marcas em 7 blocos que T2 (Blocos 1, 5, 8, 15, 19, 23 e 30); T3, por outro lado, tende a fazer menos marcas que os demais em praticamente todos os segmentos da entrevista, exceto nos blocos 15, 16, 19, 23 e 26, quando se mantém na média com as demais terapeutas, mas nos blocos 15, 16, 23 e 26 faz mais que T2. Percebe-se que T1 e T4 coincidem, fazendo um número maior de marcas, enquanto T2 e T3 coicidem entre sí, ficando com um número menor de marcas. Número de hipóteses por terapeuta 8 Hipóteses A pesquisa teve seu protocolo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade na qual foi realizada. Todos os participantes (paciente e psicoterapeutas) receberam informações sobre objetivos e procedimentos de pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), autorizando as pesquisadoras a realizarem todos os procedimentos previstos e a divulgarem seus resultados. T1 H 6 T2 H 4 T3 H 2 T4 H 0 1 3 5 7 9 11 13 15 17 19 21 23 25 27 29 31 Blocos Figura 2. Hipóteses por terapeuta Nota: A figura apresenta o número de hipóteses realizadas por cada terapeuta participante, considerando cada um dos 31 blocos da sessão. Legenda: T1 H = número de hipóteses da terapeuta 1, T2 H = número de hipóteses da terapeuta 2, T3 H = número de hipóteses da terapeuta 3, T4 H = número de hipóteses da terapeuta 4. Segundo figura 2, T1 tende a realizar mais hipóteses na maioria dos blocos marcados, exceto nos blocos 1, 11, 13 e 14, quando a T4 faz mais hipóteses que a T1. Quanto a T2 e T3, fazem menos hipóteses que T1 e T4, fazendo o mesmo número de hipóteses em 12 blocos, sendo ainda que T2 faz um número de hipóteses menor que T3 em 14 blocos, e T3 faz um número menor que T2 em 5 blocos (blocos 9, 10, 22, 27 e 31). A seguir, foi feita uma análise de conteúdo do texto da sessão nos blocos já mencionados. O objetivo foi verificar os temas que levaram as psicoterapeutas particiantes a realizar mais marcas e hipóteses. Foi também realizada análise de conteúdo das hipóteses formuladas em cada bloco analisado. A apresentação desses resultados segue a ordem cronológica no material clínico. Com relação às marcas, encontramos que: - no Bloco 1, o tema predominante foi o abalo emocional da paciente frente ao rompimento amoroso; - no Bloco 14, a paciente relata que, na sua festa de um ano de idade, a mãe mandou o pai embora, e revela a falta que sentia do pai na infância. Afirma que embora ausente no cotidiano, o pai era presente quando estava doente. Fala de sua homoxessualidade, que não esconde, mas não mostra; - no Bloco 15, a paciente conta o quanto sentiu falta de seu pai na sua infância. Descreve a separação dos seus pais e as características físicas de ambos; - no Bloco 16, a paciente conta da separação dos pais e que, quando ela ia visitá-lo, sua mãe ficava chorando no quarto. Este bloco ainda contém o relato de que seu pai tinha várias “namoradas” e a fantasia da paciente de que se ela fosse um “guri”seu pai a levaria junto ao futebol e estaria mais presente em sua vida; e - no Bloco 19, a paciente descreve sua dificuldade em expressar emoções, fala de suas crises de asma e de quão solitária foi sua infância. 53 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 49-57 Com relação às hipóteses, os resultados indicam que: - no Bloco 1, a paciente revela que não aceita o rompimento da companheira e descreve como era essa relação. Hipóteses: dificuldade em lidar com separação; luto pela separação; ansiedade; relação de dependência; - no Bloco 14, a paciente relata que na sua festa de um ano de idade a mãe mandou o pai embora, e revela a falta que sentia do pai na infância. Afirma que embora ausente no cotidiano, o pai era presente quando estava doente. Quanto à sua homoxessualidade, afirma que cansou de ficar escondendo, mas evita mostrar para os outros. Hipóteses: relação dual; convivia com o pai, mas não o tinha nas datas importantes; mostrar-não mostrar sexualidade infantilizada; - no Bloco 15, a paciente conta o quanto sentiu falta de seu pai na sua infância ("a mãe diz que ficou com o pai só para me fazer"). Descreve a separação dos seus pais e as características físicas de ambos (mãe alta e "bonitona", pai "toquinho"). Hipóteses: mãe desvaloriza o pai; mãe fálica - pai castrado, desvalorizado; - no Bloco 16, a paciente conta da separação dos pais e de quando ela ia visitá-lo e sua mãe ficava chorando no quarto. Relata que sua mãe nunca ficou falando do pai para ela. Este bloco ainda contém o relato de que seu pai tinha várias "namoradas" e a fantasia da paciente de que, se ela fosse um "guri", seu pai a levaria junto ao futebol e estaria mais presente em sua vida. Hipóteses: pai ignorado, não existiu figura masculina; mãe tem dificuldade de fazer a separação com a filha. Ela era a parceira da mãe, não podia aproveitar e amar o pai pela ansiedade da mãe-lealdade à mãe. Desejo de ser guri para aproximar-se do mundo do pai, ser aceita e ser amada. Se fosse menino, talvez o pai a amasse mais; - no Bloco 19, a paciente descreve sua dificuldade em expressar emoções, fala de suas crises de asma e de quão solitária foi sua infância. Pai não aparecia, somente quando estava doente. Hipóteses: negligência emocional; medo da dependência - desenvolvimento precoce do ego: rigidez e defesas obsessivas; calava sua raiva; raiva do abandono; fica mal pelo ganho... para ser olhada pelo pai ; Controladora; objetalizarse para o pai; Imatura. Na sequência, verificamos as formulações psicodinâmicas elaboradas pelas terapeutas. Em suas formulações, T1 refere a dependência e desamparo da paciente originados na infância na sua relação com a mãe, o que a faz experimentar, no rompimento com a companheira, uma intensa ansiedade de separação. Não se permite vivenciar a perda. A paciente apresenta uma fusão com a mãe, não há individuação. Não expressa seus sentimentos hostis, pois teme, em suas fantasias, destruir o objeto amado, fantasias que podem ter se originado desde seu nascimento pelo afastamento do pai na gravidez da mãe. Em sua análise, T2 percebe a paciente em um funcionamento emocional muito primitivo, na busca de suprir suas necessidades emocionais. Para esta, as dificuldades estão relacionadas à concepção e fases da infância da paciente, que não sente que foi desejada e amada. A mãe não teria aberto espaço para participação do pai na vida da paciente. Observa que a paciente e a mãe, num primeiro momento, são a mesma pessoa; não consegue fazer a separação-individuação de forma satisfatória. Não teve a figura do pai presente e parece estar na bixessualidade infantil, não foi libidinizada pelo pai. Parece buscar nas relações a situação inicial de amor vivida com a mãe. Na percepção de T3, a paciente é borderline. Sente o pai e a mãe como abandonantes e pouco confiáveis. Possui uma relação distante com o pai e demonstra uma simbiose com a mãe, juntamente com um desejo de separar-se desta e crescer. Para esta terapeuta, a paciente demonstra dificuldade frente à dependência. Seu mundo interno é carregado de agressão, desconfiança e medo. Parece não ter dentro de si um mundo interno indiferenciado, masculino/feminino. Busca em outra mulher um olhar que tem a marca materna. Apresenta ainda difusão da identidade ambígua e instável. Na elaboração de T4, a paciente é neurótica histérica, o que se apresenta no discurso sobre sua sexualidade - escolha narcísica em relação ao objeto. A paciente fica ao redor de questões sexuais nas quais a triangulação mantém seus efeitos com rivalidades em relação à figura materna. T4 elenca a forma de a paciente posicionar-se ao outro (objeto) de completude, a forma de realcionar-se com figuras femininas e a angústia da falta de um objeto "completante". No questionário complementar foi avaliado o quanto os dados foram suficientes para a formulação das hipóteses. Os quatro terapeutas concordaram que os seus pressupostos eram próximos dos dados e negaram que fossem meramente especulativos. Em uma escala crescente de 1 a 5, que avaliava o nível de confiança dado a sua hipótese, os terapeutas T1 e T2 marcaram 4, T3 marcou 2, e T4 marcou 5. Isso indica que T1, T2 e T5 estavam mais confiantes do que T3. Algumas questões do questionário buscaram descrever como os psicoterapeutas realizaram o processo de contrução de suas hipóteses. Foram avaliados aspectos como: em que medida a hipótese foi baseada na reincidência da temática no texto, na repetição de palavras no material, na presença de simbolismos, 54 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 49-57 nas ambigüidades do discurso, nas contradições do discurso, na presença de significados metafóricos, nas referências somáticas, nos erros de linguagem e nos lapsos. Esses aspectos foram avaliados numa escala de 1 (mínimo de concordância) a 5 (máximo de concordância). Os resultados indicam que não houve concordância entre as psicoterapeutas sobre essa questão: cada psicoterapeuta priorizou aspectos diferentes na realização de suas hipóteses, exceto na reincidência temática no material, apontada por três das quatro psicoterapeutas como muito ou extremamente relevante. Com relação à avaliação que os psicoterapeutas fizeram do material, T2 e T4 referiram necessitar conhecer melhor a situação familiar e a história de vida da paciente; os demais avaliaram o material como sendo razoavelmente suficiente para conhecer esses aspectos da vida da paciente. Quanto à perspectiva de avaliação do material, T1 e T3 referiram ter examinado os dados como se fossem o terapeuta do caso, enquanto T2 e T4 salientaram ter avaliado o material desde a posição de um supervisor. Todos os psicoterapeutas negaram a utilização, nas suas práticas, de recursos técnicos não psicanalíticos. Sobre os autores que tiveram influência na prática clínica das terapeutas participantes, o levantamento dos resultados apresentou psicanalistas, em sua ordem crescente de influência e importância, como Freud, Klein, Bowlby, Winnicott, Zimermann, Mahler, Gabbard, Meltzer, Bion, Kemberg, Lacan, Minuchin, Liberman, Kohut, Ferro e Sullivan. Ao analisarmos a importância dos autores de referência, por psicoterapeuta, percebe-se que T1, T2 e T3 possuem como referência autores americanos representantes da psicologia do ego e autores americanos e europeus expoentes dos modelos relacionais, e T4 acentua a importância de autores da psicanálise francesa. Os quatro psicoterapeutas consideram Freud um dos autores mais relevantes em termos de influência em suas práticas. Discussão A análise que realizamos do material clínico com as marcações e hipóteses dos psicoterapeutas deixa claro que, de modo geral, destacam-se três fases diferentes no processo de construção de uma formulação psicodinâmica crentral: Um primeiro passo é a seleção de informação, e isto é realizado através das marcações que os psicoterapeutas fazem no texto; na segunda etapa, que é concomitante à primeira, idéias, interpretações e assinalamentos que representam inferências clínicas são formulados; e posteriormente, os dados são reorganizados numa formulação que integra as hipóteses anteriores. Conforme já havia sido notado por Roussos (2001), na primeira etapa, o referencial teórico não parece ter precedência sobre tendências e sistemas de crença do terapeuta. Embora o quadro teórico possa interagir com esses fatores, há evidências de que, ao propor as marcas, é relevante em si mesmo. Nossos resultados indicam que, em média, são necessárias quase 2,5 marcas para gerar uma inferência acerca do material clínico. Indicam ainda que o número médio de marcas e inferências feitas por cada psicoterapeuta parece ser independente da sua formação teórica, visto que neste sentido T1 e T4 apresentaram o mesmo estilo, embora em termos de formação de base tenham influência de autores oriundos de modelos psicanalíticos bastante distintos. Já T3, cuja formação teórica é bastante semelhante a T1, produziu significativamente menos marcas e hipóteses do que T1, embora tenha chegado, na formulação psicodinâmica de caso, a uma hipótese central bastante semelhante a T1. Nesse sentido, a conclusão de Roussos (2001), Leibovich de Duarte (2004) e Bottino et al., (2003) de que a observação empírica das reuniões clínicas e de supervisão indica a existência de diferenças individuais detectáveis entre psicoterapeutas de uma mesma orientação acerca da quantidade de material necessário para produzir hipóteses clínicas parece ser corroborada pelo presente estudo. A análise visual sugeriu existir bastante variação entre os psicoterapeutas e a localização no texto (blocos) em que se produziu mais informação clinicamente relevante. Psicoterapeutas inclinados a realizar mais marcas e hipóteses, como T1, tendem a fazê-lo em todos os segmentos do texto, enquanto psicoterapeutas que tendem a fazer menos marcas e hipóteses, como T2 e T3, mantêm essa tendência ao longo de todo o processo de análise do material clínico. Não obstante, ao analisarmos conjuntamente os dados, verificamos que existem segmentos do texto que geraram significativamente mais marcas e hipóteses. A análise de conteúdo desses blocos evidenciou temáticas como: abalo emocional frente a rompimento amoroso, falta do pai na infância, solidão, dificuldade para expressar emoções, sexualidade infantilizada, pai castrado, dificuldade de separação / individuação, dependência e desenvolvimento precoce do ego. Contata-se que a formulação psicodinâmica do caso, feita posteriormente, guarda estreita relação com os conteúdos demarcados no texto e com as inferências inicialmente realizadas. Não verificamos nenhuma omissão ou acréscimo significativo. É necessário assinalar, entretanto, que não realizamos análise de conteúdo de todos os blocos do texto, o que pode, em alguma medida, representar um viés de avaliação. 55 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 49-57 Leibovich de Duarte (2004) assinala que é comum encontrarmos analistas e psicoterapeutas que compartilham uma linha teórica comum, porém que possuem pontos de vista não coincidentes sobre o mesmo material clínico. Em nosso estudo, considerando a avaliação do conteúdo da formulação psicodinâmica de caso, observamos que o referencial teórico exerceu uma influência bastante evidente sobre a conceitualização realizada. Nossos resultados, portanto, parecem indicar que a formação teórica do psicoterapeuta afeta menos o processo de construção de hipóteses clínicas do que o seu resultado. Como já mencionamos, psicoterapeutas com formação semelhante podem realizar processos bastante divergentes e psicoterapeutas de diferentes formações, processos muito semelhantes. Por outro lado, os três psicoterapeutas com formação semelhante apresentaram conceituações psicodinâmicas sobre o caso de conteúdo mais semelhante entre si do que a outra psicoterapeuta (T4), cuja orientação era mais relacionada ao modelo estrutural-pulsional clássico que aos modelos relacionais referidos pelas demais participantes como orientadores da sua prática. Apesar das diferenças, as quatro psicoterapeutas parecem concordar acerca da influência de aspectos relacionados à relação primitiva entre mãe e criança na compreensão deste caso. Talvez seja esse o ponto em que o grau de concordância clínica e teórica atinja seu maior expoente. Para a maioria, o amor outorgado é a principal chave do desenvolvimento humano. Dado que a noção de um narcisismo primário inexiste nas teorias relacionais que orientam T1, T2 e T3, não admira que somente T4 refira um relacionamento objetal do tipo narcisista, enquanto as demais coloquem o acento na relação anaclínica de dependência. Não obstante essa diferença, a temática do narcisismo permeia a compreensão do caso feita pelas quatro psicoterapeutas.Nota-se ainda que enquanto T4 compreende a paciente a partir de uma dinâmica mais próxima da histeria e da situação edipiana, T1, T2 e T3 salientamas ansiedades provenientes do temor de abandono do objeto, relacionado ao processo de separação-individuação. Embora a psicoterapia psicodinâmica e a psicanálise não se fundamentam em um conjunto de fórmulas ou regras específicas para a realização de inferências acerca do material clínico e exista um amplo espaço para o surgimento de variações individuais (Leibocich de Duarte, 2004), é possível encontrar concordâncias entre diferentes psicoterapeutas acerca do significado do material clínico examinado. Os dados do presente estudo sugerem que diferentes processos (cuja variação parece ser decorrente do estipo pessoal do terapeuta) podem levar a resultados semelhantes, especialmente entre profissionais que compartilham de um modelo teórico comum. Considerações Finais Este estudo investigou o processo de construção das hipóteses e inferências clínicas que compõem as formulações psicodinâmicas de caso. Para tanto, foi utilizada uma abordagem metodológica descritiva que conjuga as abordagens clínica e empírica. Como praticamente inexistem pesquisas sobre esse tema, consideramos o estudo exploratório, tanto em termos de seus objetivos como em termos de seu método. Assim, embora o presente estudo possua o mérito de ser original em sua proposta, apresenta algumas limitações importantes: a) o estudo trata de avaliar um pequeno número de psicoterapeutas, selecionadas por conveniência. Estas podem, portanto, não representar o universo de psicoterapeutas de orientação psicanalítica que exercem atividades em nosso meio; b) apesar de contarmos um extenso material clínico, dividido em 31 segmentos (blocos), optamos por uma análise qualitativa dos resultados. A análise visual e de conteúdo realizada, futuramente, deverá ser complementada por análises estatísticas que permitirão verificar com maior acuidade eventuais semelhanças e diferenças entre marcas e hipóteses realizadas; c) como praticamente inexistem estudos semelhantes, não há dados de outros estudos para orientar nossas conclusões. É necessário que novos estudos sejam realizados sobre o processo de contrução de hipóteses clínicas entre psicoterapeutas para que se possa melhor compreender e utilizar esse conhecimento para o ensino e para a pesquisa em psicoterapia psicodinâmica. Referências Botinno, S. M. B., Bairrão, J. F. M. H., Hanns, L. A., Rosa, M. D., & Andrade, L. H. S. G. (2003). Transtornos da compulsão alimentar periódica e psicoterapia: é possível sistematizar a formulação psicodinâmica de caso? Revista Brasileira de Psiquiatria, 25(3), 166-170. Edwards, D. J. A. (2007). Collaborative versus adversarial stances in scientific discourse: Implications for the role of systematic case studies in the development of evidence-based practice in psychotherapy. Pragmatic Case Studies in Psychotherapy, 3(1), 6-34. Eells, T. D. (2007). History and current status of psychotherapy case formulation. In T. D. Eells (Ed.), Handbook of psychotherapy case formulation (2nd ed., pp.3-32.) New York: Guilford Press. Eells, T. 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Como instrumento de pesquisa, sua utilização ainda não é consensual, sendo usado isolado ou agregado às baterias de avaliação neuropsicológica, como triagem cognitiva global ou para examinar sinais de demência pós-TCE. Pensando nessa perspectiva, essa revisão assistemática procurou caracterizar o uso do MEEM nessas diversas situações. Após uma breve busca de artigos, verificou-se a utilização do MEEM em todas as situações supracitadas, porém, ainda, de forma não consensual e não padronizada. Sendo assim, existe uma necessidade de estabelecer padrões com objetivo de verificar o quão discriminativo o teste pode ser e qual a relação dos componentes com os déficits neurológicos. Até o momento, o mais prudente parece ser o uso do MEEM como caracterização da amostra e utilização de triagem cognitiva com exame comparativo entre subgrupos de TCE. Palavras-chave: Mini Exame do Estado Mental; Traumatismo craniano; Testes neuropsicológicos Abstract: Neuropsychological assessment in traumatic brain injury patients investigates deficits related to executive components. These components are responsible for directing and managing the skills necessary to perform activities of daily living effectively. Several tests are used to investigate the performance of patients after injury, including the Mini Mental State Examination (MMSE), universally applied in the investigation of dementia or other neurological samples. As a research tool, its use is still no consensual, being used alone or together with batteries of neuropsychological assessment, as global cognitive screening or examining signs of dementia post-TBI. Considering this perspective, this review unsystematic aimed to characterize the use of the MMSE in these situations. After a brief search of articles, it was noted MMSE has been used in all situations mentioned above, however, still so in a nonconsensual and not standardized way. Thus, there is a need to establish standards in order to understand how the MMSE can be discriminative and what the relationship of the components with neurological deficits. So far, it seems to be the most prudent use of the MMSE as sample characterization and use of cognitive screening examination with comparison between subgroups of TBI. Keywords: Mini Mental State Examination; Brain injury; Neuropsychological tests a Fonoaudióloga; Bacharel em Fonoaudiologia; Profissional colaboradora do Grupo de Neuropsicologia Clínica Experimental (GNCE) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. *E-mail: [email protected] b Psicóloga; Bacharel em Piscologia; Departamento de Neurologia do HCPA/UFRGS. c Psicóloga; Mestranda em Psicologia - ênfase Cognição Humana (PUCRS). d Psicóloga e Fonoaudióloga; Pós-Doutoramento em Clínica e Neurociências (PUC-Rio), em Medicina (Neurorradiologia) na UFRJ e em Ciências Biomédicas na Universidade de Montreal (Canadá). Professora da Faculdade de Psicologia e do PPG em Psicologia da PUCRS. Bolsista Produtividade 2 do CNPq. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 58 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 58-63 O presente artigo de revisão assistemática visa apresentar um breve panorama e uma reflexão acerca das aplicabilidades do Mini Exame do Estado Mental (MEEM), bem como investigar de que forma está inserido na avalição neuropsicológica pós traumatismo cranioencefálico (TCE). Para tal, foram realizadas buscas de artigos na base de dados PubMed, utilizandose as seguintes palavras chaves: TBI or brain injury or closed head injury associada às palavras-chave: Mini-mental state examination or cognition or cognitive assessement or dementia or cognitive impairment or executive functions or neuropsychology assessement or cutoffs. A partir dos resultados da busca foram selecionados artigos relacionados às questões dessa revisão. A avaliação neuropsicológica tem por base pressupostos teóricos e metodológicos epistemologicamente interdisciplinares, advindos das mais diversas vertentes da área da psicologia cognitiva e experimental, da neurologia, da fonoaudiologia, da psiquiatria, da educação, entre outras, sendo que todas estas áreas trazem conhecimentos essenciais ao exame neurocognitivo e à reabilitação neuropsicológica (Fonseca et al., 2012). Por meio da aplicação de instrumentos padronizados, pode-se levantar o funcionamento cognitivo de pacientes, caracterizando suas habilidades prejudicadas e aquelas que se mantiveram preservadas, no advento de um quadro patológico (García-Alberca et al., 2011). Procedimentos de observação, entrevistas clínicas em busca da comparação do estado cognitivo pré e pós-mórbido e aplicação de tarefas clínicas e ecológicas fazem também parte da avaliação neuropsicológica. Ultimamente, o padrão ouro da avaliação neuropsicológica tem incluído a administração de testes padronizados, que fornecem maior credibilidade nos resultados à medida que a aplicação e interpretação do desempenho ocorrem de maneira uniforme e consensual, ou seja, baseada em normas técnicas (Guilmette, Whelihan, Sparadeo & Buongiorno, 1994). A busca por testagens adequadas e adaptadas ao contexto auxilia no diagnóstico; porém, necessita-se obedecer às especificidades dos instrumentos, visto que os resultados irão conduzir levantamento de hipóteses diagnósticas, prognósticas e de orientações de intervenção (Fonseca et al., 2012; Lezak, Howieson & Loring, 2004). Nessa perspectiva, os instrumentos podem ser classificados em diferentes critérios e devem ser adaptados às situações de avaliação, de acordo com métodos definidos conforme preconizam Fonseca et al. (2012). Quanto ao tempo, podemos relacionar instrumentos em categorias de: (a) Triagens ou screening – por exemplo, o MEEM – com tempo de aplicação menor de 15 minutos; (b) instrumentos breves aplicados em uma sessão ou ainda, (c) bateria expandida que pode ter até 10 sessões de duração. A cada modalidade, atribui-se uma profundidade de dados obtida no desempenho do exame, sendo que os resultados serão mais ou menos aprofundados conforme o tempo de aplicação. Sendo assim, as triagens – de aplicação mais breve – fornecem índices de sugestão de ocorrência de déficits ao ponto que os instrumentos breves e as baterias expandidas procuram explorar mais o desempenho do paciente e fornecer mais indícios do funcionamento cognitivo do paciente (Fonseca et al., 2012). Mini Exame do Estado Mental – História e Objetivos O MEEM foi inicialmente proposto como rastreio de demência em pacientes psiquiátricos (M. F. Folstein, Folstein, & Mc Hugh, 1975). No entanto, tem sido usado universalmente como uma medida de funcionamento cognitivo geral (Kochhann, Cerveira, Godinho, Camozzato, & Chaves, 2009). O MEEM se propõe a avaliar, de forma rápida, possíveis declínios cognitivos relacionados às funções mentais que envolvem (a) orientação temporal e espacial, (b) evocação imediata e tardia de palavras, (c) atenção, (d) linguagem e (e) construção visual e espacial (Chaves & Izquierdo,1992). É importante atentar ao fato de que o MEEM tem fidedignidade de rastreio e não de diagnóstico (Kochhann, Varela, Lisboa & Chaves, 2010) e, ultimamente, utiliza-se também como acompanhamento e evolução de diversos quadros neurológicos ou ainda como norteador do processo de reabilitação (Brucki, Nitrini, Caramelli, Bertolucci & Okamoto, 2003). No entanto, a ampla utilização do MEEM não o transforma por si só em instrumento soberano sobre outras avaliações mais complexas. Como instrumento de pesquisa é presente a sua aplicação junto às baterias neuropsicológicas, com objetivo de investigar patologias demenciais diversas ou em indivíduos saudáveis (Brucki et al., 2003; Laks, Baptista, Contino, Paula & Engelhardt, 2007). Além disso, também é utilizado como critério de inclusão e caracterização da amostra, tendo assim, aplicabilidade tanto como gerador de variáveis independentes como de dependentes (Brucki et al., 2003). Desde sua primeira adaptação para o Português Brasileiro (Chaves & Izquierdo, 1992, para população gaúcha, e Bertolucci, Brucki, Campacci & Yara, 1994, para população paulista), pontos de corte são utilizados para a avaliação do desempenho dos pacientes, baseados em anos de ensino formal e idade (Tombaugh & Mcintyre, 1992). No Brasil, diversos estudos propuseram-se em modificar versões ou adaptar pontos de cortes que pudessem abranger níveis de escolaridades mais adequados à realidade do país (Scazufca, Almeida, Vallada, Tasse & Menezes, 2009). 59 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 58-63 A diversidade sociodemográfica é presente em nossa cultura e esse aspecto não pode ser negligenciado devido ao alto índice de pessoas com baixa escolaridade e analfabetismo (Kochhann et al., 2009). Para tanto, autores buscaram compreender se o nível de escolaridade interferiria no desempenho dos pacientes e se os pontos de cortes, preconizados inicialmente, poderiam ser utilizados adequadamente aos diferentes níveis educacionais (Brito-Marques & Cabral-Filho, 2004). Por exemplo, Bertolucci et al. (1994) encontraram, em uma população de idosos, que o nível de escolaridade parece interferir no resultado final do teste, ao ponto que a idade não. Em contrapartida, Jacqmin-Gadda, Fabrigoule, Commenges, Letenneur e Dartigues (2000) relataram que a relação entre idade e MEEM parece ser verdadeira. Devido a esse impasse, autores questionam: (1) até que ponto pode-se afirmar que o declínio cognitivo (mensurado pelo MMEE) seja resultado de uma situação demencial ou se, ao contrário, faça parte da evolução natural do envelhecimento? (2) as normas de padronização são aplicáveis para qualquer população e podem ser empregadas como triagem na rotina clínica, hospitalar ou de pesquisa? Finalmente, (3) até que ponto um teste que se propõe a avaliar funções cognitivas é sensível para identificar déficits se os seus escores de interpretação são influenciados por variáveis sociodemográficas, caso não esteja normatizado ou corrigido por elas? (Scazufca et al., 2009). Poderia ser acrescentada ainda a seguinte questão: Como um teste pode ser usado para verificar déficits cognitivos em diferentes populações clínicas sem que seus pontos de corte sejam baseados em estudos de sensibilidade e de especificidade ou em normas clínicas para cada população? Quanto a esses questionamentos, uma sugestão possível e que vêm sendo utilizada seria a interpretação do MEEM por componentes analisados, o que parece ser mais efetivo considerando as funções neuropsicológicas mais prevalentes de acordo com a patologia ou local de lesão, déficits estes já descritos na literatura (Dong et al., 2010; Toglia, Fitzgerald, O’Dell, Mastrogiovanni & Lin, 2010). No entanto, em estudos prévios, com uma amostra de pacientes com acidente cerebral vascular (AVC), a divisão entre os componentes apontou que o MEEM não parece ser apropriado para discriminar déficits cognitivos, quando comparados ao desempenho de outras baterias de avaliação cognitiva (Dong et al., 2010). Na investigação dos componentes relacionados às funções executivas, percepção e construção visual o MEEM também não foi efetivo para identificar déficits, em outro estudo com a mesma população (Nys et al., 2005). A partir disso, pode-se pensar no MEEM como parte integrante, ainda que em forma de triagem, de uma bateria de avaliação neuropsicológica. O intuito seria investigar funções cognitivas e ter um levantamento das associações e dissociações de modo breve de diferentes subcomponentes neurocognitivos. Sendo assim, esta revisão assistemática caracterizará as diferentes vertentes de uso do MEEM na avaliação neurocognitiva de adultos pós-TCE. Neuropsicologia do traumatismo cranioencefálico Os pacientes vítimas de TCE frequentemente apresentam déficits referentes às habilidades de interação com o meio, capacidade de realizar as tarefas diárias de forma efetiva, flexibilidade cognitiva, memória, atenção, planejamento, inibição, etc. (Anderson & Knight, 2010). As queixas dos pacientes e a busca por terapia relaciona-se ao fato dos prejuízos neuropsicológicos interferirem negativamente nos âmbitos sociais e laborais (Mass, Stocchetti, & Bullock, 2008). As funções executivas (FE), mediadoras dessas habilidades cognitivas, referem-se a um complexo conjunto de funções responsáveis por direcionar e gerenciar habilidades cognitivas subjacentes (Alvarez & Emory, 2006). Ainda, as FE são consideradas processos cognitivos que atuam de forma concomitante. O prejuízo das FE nos pacientes pós-TCE pode ser severo e faz parte das queixas destes pacientes (Bush, McBride, Curtiss, & Vanderploeg, 2011). Estudos anteriores, datados da década de 1960, já demonstravam associação do lobo frontal com as disfunções executivas e recentemente, pesquisas encontraram uma possível relação entre exames de neuroimagem, FE e efetiva ativação de múltiplas regiões frontais durante o desempenho em testagens neuropsicológicas (Bush et al., 2011). Entre os locais de maior vulnerabilidae de impacto devido às particularidades do evento traumático está a região frontal, considerada de extrema importância para as funções executivas (Roche, Moody, Szabo, Fleming & Shum, 2007). Por serem funções co-integradas e dependentes de áreas cerebrais íntegras, quando lesionadas, os pacientes apresentam prejuízo em mais de um aspectos cognitivo. (Roche et al., 2007). Da mesma forma que uma única definição não dá conta de explorar e caracterizar a diversidade de habilidades envolvidas com as FE, estudos propõem a interação de instrumentos com o objetivo de avaliar diversas habilidades cognitivas e verificar a possível interação entre elas (Dong et al., 2010; Nys et al., 2005). Nessa perspectiva, as críticas feitas ao MEEM são congruentes com a preocupação de não fornecer, ao paciente, um diagnóstico superficial (Benge, Caroselli, & Temple, 2007). 60 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 58-63 Avaliação neuropsicológica e uso do MEEM em populações neurológicas Por ser um teste de screening de uso universal, o MEEM tem sido usado em diversos estudos com amostras neurológicas tais como: Parkinson (Mamikonyan et al., 2009); demência frontaltemporal (Burke et al., 2011), Alzheimer (Godefroy et al., 2011), AVC (Schweizer, Al-Khindi & Macdonald, 2012; Godefroy et al., 2011), e TCE (Luukinen et al., 2005). Mais especificamente em relação ao TCE, o MEEM vem sendo usado como (1) triagem cognitiva global na fase aguda ou crônica (2) pertencentes às baterias neuropsicológicas e de comunicação como instrumentos de caracterização ou exclusão da amostra, ou ainda para (3) examinar sinais sugestivos de demência pós-TCE. Como triagem cognitiva global, o uso do MEEM é mais comumentemente utilizado a baterias neuropsicológicas e de comunicação. Essa situação é encontrada, por exemplo, em um estudo que investiga a memória episódica no qual não houve diferença na pontuação do MEEM entre pacientes com TCE leve e controles (Tsirka et al., 2010). Ainda, Dardier et al. (2011) utilizaram o MEEM para avaliar pacientes com TCE grave e encontraram uma média de desempenho de 25 pontos dos 30 possíveis. Esses dados foram utilizados na pesquisa do funcionamento cognitivo desses pacientes. Em dois estudos em que os objetivos foram desenvolver e testar formas de avaliação além de investigar habilidades cognitivas, respectivamente, nos quais estão envolvidos flexibilidade cognitiva e teoria da mente (Bosco, Angeleri, Zuffranier, Bara, & Sacco, 2012), os escores do MEEM foram usados somente como variáveis independentes (VI) - critério de inclusão da amostra - não sendo analisado seu escore total nem comparado com outros instrumentos ou populações. Assim, nota-se que mesmo sem pontos de corte específicos para população clínica de TCE, o MEEM tem sido utilizado como um instrumento triagem de verificação de critérios de inclusão. Neste contexto, em relação à avaliação da demência pós-TCE, algumas hipóteses são levantadas referentes a uma proporção direta de indivíduos com TCE que pode ter maior declínio cognitivo com o tempo, tipo, gravidade e local da lesão (Starkstein & Jorge, 2005). Entretanto, não parece ser consensual essa relação. Alguns estudos apontam que pacientes com TCE tem maior risco de desenvolver demência, principalmente do sexo masculino. Ainda, é possível que o limiar para o desenvolvimento de quadros demenciais seja menor para indivíduos que sofreram TCE, tendo em vista os mecanismos neuroquímicos patológicos causados pelo quadro. Jellinger et al. (2001) investigaram variáveis genéticas no desenvolvimento da doença de Azheimer (DA) em indivíduos com TCE. Os resultados dos estudos corroboraram a hipótese de que há relação, mais especificamente que o histórico de TCE grave associado com a falta de Apoliproteína E (ApoEe4) parece ser um fator de risco para o desenvolvimento de Alzheimer. No entanto, os mecanismos neurobiológicos relacionados ainda não são bem conhecidos, pois a maioria dos estudos epidemiológicos sobre demência, por exemplo, não investigam história de TCE. Uma relação bem conhecida é sobre o desenvolvimento de encefalopatia traumática em esportistas lutadores de boxe, que se caracteriza como um tipo de demência distinta (Shively, Sher, Perl & Diaz-Arrastia, 2012). Em relação a essa problemática, alguns autores vêm propondo discussões sobre os mecanismos patológicos do TCE (Giunta, Obregon, Velisetty, Sanberg & Borlogan, 2012). Por último, na investigação de déficits linguísticos em pacientes com TCE na fase aguda, o MEEM apresentou relação significativa com todas as funções linguísticas investigadas (Chabok, Kapourchali, Leili, Saberi & Mohtasham-Amiri, 2012). Hipotetiza-se que os déficits correlacionados com disfunções cognitivas de pequeno e curto prazo (memória verbal, visual e déficit de raciocínio) podem ser frequentes logo após um evento traumático, como já apontavam M. Vukovic, Vucsanovik e Vukovic (2008). Ainda como variável dependente, na comparação de diferentes patologias, o escore do MEEM identificou menos déficits executivos (Godefroy et al., 2011) em relação a “The Montreal Cognitive Assessment” (MOCA) (Nasreddine et al., 2005). Em função, disso para o diagnóstico da própria demência muitos estudos tem sugerido o uso do MEEM associado a outros instrumentos que aumente sua sensibilidade e especificidade, tal como o teste do relógio (por exemplo, Juby, Tench & Baker, 2002). Considerações finais A utilização do MEEM como instrumento específico de avaliação neuropsicológica ainda não é consensual. A partir do exposto, entende-se a necessidade de padronização de normas com intuito de vertificar o poder discriminativo do teste, e a relação de cada componente do MEEM associados com outros instrumentos que examinem os mesmo construtos. Até o momento, o mais cauteloso seria usar o MEEM como instrumento de caracterização da amostra, mas não de critério de exclusão já que os componentes de função cognitiva que podem ser avaliados em um quadro pós-TCE precisam ser bem 61 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 58-63 language use: a study of French-speaking adults. Journal of Comexplorados e que não há, até onde se sabe, normas clínicas do munication Disorders, 44(3), 359-378. MEEM para esta população. Ainda, sugere-se a utilização como triagem cognitiva com exame comparativo entre subgrupos de Dong, Y., Sharma, V. K., Chan, B. P., Venketasubramanian, N., Teoh, H. L., Seet, R. C. S., Tanicala, S., Chan, Y. H., & Chen, C. (2010). The TCE. 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O tema foi escolhido por tratar-se de uma temática atual, relevante e essencial já que nos proporciona um conhecimento das interações do feto com o meio intra e extra uterino, a influência materna no desenvolvimento físico e emocional do feto, a existência de uma continuidade entre a vida intra e extra uterina, no que diz respeito às características de personalidade do feto e também, nos faz refletir sobre o caráter preventivo do estudo do psiquismo fetal e a importância da intervenção precoce. Além disso, constatou-se que o estudo do psiquismo do feto realizado de maneira sistemática e científica é recente. Percebe-se que ocorre uma carência de produção científica sobre o tema e em função disso, há necessidade de desenvolvimento de estudos realizados por psicólogos, divulgando assim o seu entendimento acerca do tema. Para tanto, foi realizada uma revisão bibliográfica sobre psiquismo fetal em artigos atuais e livros clássicos de Psicanálise. Palavras-chave: Psiquismo; Fetal; Pré-Natal; Psicanálise Abstract: This study aimed to conduct a study on the fetal psyche prioritizing the look and psychoanalytic understanding. The theme was chosen because it is a current topic, relevant and essential as it gives us an understanding of the interactions with the environment of the fetus intra and extra-uterine, the maternal influence in the physical and emotional development of the fetus, the existence of a continuity between life inside and outside the womb, with regard to personality traits of the fetus and also makes us reflect on the preventive character of the study of fetal psyche and the importance of early intervention. Furthermore, it was found that the study of the psyche of the fetus conducted in a systematic and scientific way is recent. It is observed that there is a lack of scientific literature on the subject and as a result, there is need for development of studies by psychologists, thereby disclosing their understanding of the topic. For this purpose, we performed a literature review on fetal psyche, current articles and classic books on psychoanalysis. Keywords: Psyche; Fetal; Prenatal; Psychoanalysis a Psicóloga; Especialista em Psicologia Hospitalar. *E-mail: [email protected] b Psicóloga; Doutora em Psicopatologia da Infância, Adolescência e Idade Adulta (UAB/Espanha); Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Sistema de Avaliação: Double Blind Review 64 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 64-69 O objetivo principal desta pesquisa foi realizar um estudo sobre o psiquismo fetal priorizando o olhar e o entendimento psicanalítico. O tema foi escolhido pela escassez de produção científica sobre o assunto, já que se trata de uma temática atual, relevante e essencial, além de ser um assunto polêmico e inovador que ainda causa estranhamento e dúvidas. O estudo ainda visa focar nas interações do feto com o meio intra e extrauterino, na influência materna no desenvolvimento físico e emocional do feto, na existência de uma continuidade entre a vida intra e extrauterina, no que diz respeito às características de personalidade do feto e também, nos faz refletir sobre o caráter preventivo do estudo do psiquismo fetal e a importância da intervenção precoce. Em função da escassez de pesquisas, percebeu-se a necessidade de desenvolvimento de estudos realizados por psicólogos, divulgando assim o seu entendimento acerca do tema. Para tanto, a metodologia utilizada foi uma revisão bibliográfica sobre psiquismo fetal em artigos atuais e livros clássicos de Psicanálise. As autoras ainda optaram por dividir a fundamentação teórica estudada em tópicos a fim de melhor nortear a leitura do artigo. Estudos sobre a vida intrauterina: principais reflexões ao longo da história O estudo do psiquismo fetal realizado de maneira sistemática e científica é recente. Entretanto, o estudo do feto e o de sua psique, foi marcado ao longo do tempo por diferentes abordagens e teorias, incluindo ideias supersticiosas, expectativas e preconceitos do imaginário social acerca da grávida e de seu bebê, influenciando discussões morais, religiosas e legais (Quayle, 2011). No passado, grande parte do conhecimento disponível baseava-se na resposta do feto a estímulos externos e dependia da percepção de sua movimentação pela gestante e pelo obstetra, em sua prática clínica. Além disso, o conhecimento também se baseava muito em especulações e observações feitas em fetos abortados. Foi somente com o avanço das técnicas de diagnóstico pré-natal, principalmente da ultrassonografia na década de 70, que se pôde ter acesso direto ao feto, possibilitando estudos sistemáticos e precisos de seu comportamento no meio intrauterino (Quayle, 2011). A partir das primeiras descrições dos movimentos fetais pelo ultrassom, vários aspectos do comportamento fetal passaram a ser melhor observados e analisados. De acordo com Piontelli (1995), aparentemente acreditava-se que tudo o que acontecia no período pré-natal associava-se a experiências agradáveis de calor, aconchego, penumbra, silêncio, proteção e prazer. Além disso, a vida fetal em função de sua natureza abrigada era considerada como um mundo à parte, como se a vida realmente só começasse no ato do nascimento ou ainda depois. Percebeu-se então que, contrariando as crenças até então aceitas, o feto não é um ser passivo que se desenvolve em absoluto isolamento e silêncio, mas sim que ele interage com o meio intra e extrauterino através de seus movimentos, reagindo a sons provindos do corpo da mãe e do meio externo. Piontelli (1995) afirma que o ambiente no útero não é estático ou homogêneo, ao contrário, ele muda continuamente durante a gestação e cada feto habita um ambiente único, sujeito a diferentes e singulares experiências e estimulações. Assim, de acordo com Gomes e Piccinini (2005), a ultrassonografia inaugurou uma nova forma de contato com o universo intrauterino e o uso dessa tecnologia beneficiou o estudo do psiquismo fetal, pois através dos movimentos e das reações fetais tem sido possível conhecer importantes informações a respeito das funções sensoriais e das altas funções do cérebro do feto e também já é identificar traços iniciais de personalidade, prevendo futuros comportamentos do bebê. Sobre isso SouzaDias (1996, p.40) complementa referindo que “toda especulação sobre fetos e gestantes, que tem surgido através da história e da evolução do pensamento, tem levado à evidência de psiquismo no feto. Isto nos faz pensar que possuímos a pré-concepção da existência desse fato, que vem se manifestando e desenvolvendo através dos tempos, desde os pensamentos supersticiosos até a ciência interpretativa e intuitiva, que tem sido comprovada pela ciência experimental através da ultrassonografia”. Atualmente entende-se que o feto é possuidor de sensações, percepções, sensibilidade e traços rudimentares de personalidade, e que fatos ocorridos antes do nascimento influenciam no desenvolvimento bioevolutivo e psicoafetivo do indivíduo. Para Zenidarci (2010) e Wilheim (1997), mesmo intraútero, o feto manifesta seus sentimentos de prazer, desprazer, tristeza, alegria, angústia, bem-estar, agrado e desagrado por meio de seu comportamento e de sua movimentação. Piontelli (1995) explica que é basicamente através de manifestações somáticas do feto que se pode inferir um funcionamento mental, uma vez que os movimentos fetais representam um meio de comunicação com o ambiente. Geralmente, é com os primeiros movimentos fetais que ocorre a atribuição das características pessoais e de personalidade do feto. Acredita-se que as primeiras relações do bebê com o ambiente já se iniciam durante a gestação, através das expectativas parentais sobre o feto e das interações estabelecidas 65 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 64-69 com ele. É através dos movimentos que o feto se comunica com a mãe e esta vai nomear e interpretar tais movimentos dentro do seu universo, incluindo suas projeções e suas fantasias. As expectativas da mãe em relação ao futuro bebê originam-se de seu próprio mundo interno, de suas relações passadas e de suas necessidades conscientes e inconscientes relacionadas ao feto e a gestação. Estes investimentos iniciais são fundamentais para a futura relação pais-bebê e para estruturação da personalidade do indivíduo (Piccinini, Gomes, Moreira & Lopes, 2004; Prado et al., 2008). Piontelli (1995) chama a atenção para a riqueza e a complexidade dos movimentos fetais mesmo nos estágios iniciais da gravidez. Além disso, a autora aponta para a individualidade dos movimentos de cada feto, que podem ser observados através de suas posturas e reações preferidas, mostrando já ser um indivíduo com preferências e até personalidade própria. De acordo com Piontelli (1995, pp.23-24), “quando o comportamento se repete em cada observação, vai-se adquirindo gradualmente a convicção de que o comportamento tem uma consistência e um significado que precisam ser entendidos. As hipóteses somente se tornam mais plausíveis quando podem ser verificadas com a repetição de observações no decorrer do tempo”. Caron (2000) aponta que a partir da possibilidade de visualizar o feto através da ultrassonografia, a gestante concebe a gravidez como verdadeira e o seu filho como mais real. Com os dados concretos que o exame disponibiliza, a mãe pode ainda na gestação confrontar o bebê imaginário com o bebê real e é como se o encontro com o bebê fosse antecipado. Gomes e Piccinini (2005) explicam que, dessa forma, a ultrassonografia provoca uma intensa sobrecarga emocional devido a rapidez do encontro entre mãe-feto. A reação é tão intensa que conteúdos inconscientes que estavam latentes podem vir à tona. Os autores alertam que tal impacto é diferente para cada mulher e forma como ela irá manejar as expectativas e frustrações despertadas por tal encontro vão depender da sua história prévia, seus conflitos psíquicos, seu momento atual de vida e sua capacidade de elaboração. Dessa forma, percebe-se que estudos relativos à vida intrauterina deixaram de ser somente orgânicos, para ampliar e utilizar também conceitos psicológicos. Wilheim (2000) conceitua que a Psicologia pré-natal, também conhecida como Psiquismo fetal e Psicoembriologia, dedica-se ao estudo do comportamento, desenvolvimento evolutivo, psicoafetivo e emocional do ser humano no período anterior ao nascimento. Zenidarci (2010) aponta que a Psicoembriologia institui a fase umbilical como a primeira fase do desenvolvimento psicológico do indivíduo, marcando esta como uma fase anterior a fase oral, que foi postulada por Freud como a primeira fase do desenvolvimento psíquico. Nesta perspectiva, o estudo do embrião e do feto quebra paradigmas tradicionais ao postular tais ideias. A influência da Psicanálise nos estudos e pesquisas sobre o Psiquismo Fetal Uma atenção especial é dada pela psicanálise que vem mostrando grande interesse no decorrer dos anos pela continuidade de funções da vida pré-natal à pós-natal. Sobre a importância dessa temática para a psicanálise, Wilheim (2000, p.136) destaca: “se considerarmos que todos os fatos que ocorrem no período pré-natal recebem registro mnêmico; que esse registro se dá e fica guardado apenas no nível do inconsciente; que todas as vivências pelas quais passa o ser no período pré-natal irão fazer parte de sua bagagem inconsciente, exercendo influência tanto sobre a personalidade pós-natal como sobre sua conduta e seu comportamento; e sendo o inconsciente o objeto por excelência da Psicanálise, conclui-se que o estudo do psiquismo pré-natal é de importância fundamental para esse campo de conhecimento”. A autora ainda explica que quando se fala em Psicologia e Psiquismo pré-natal refere-se, por um lado, à existência de vida mental no feto, e por outro, à existência de registros de experiências pré-natais, tanto traumáticas como não traumáticas na mente do bebê, criança e/ou adulto. A continuidade entre vida pré e pós-natal tem sido explorada e constatada, ao longo dos anos, nos trabalhos de diversos psicanalistas. Atualmente há um reconhecimento da existência de uma interação entre vida intra e pós-uterina, o que torna verdadeira e atual a frase de Freud: “Há uma continuidade muito maior entre a primeira infância e a vida intrauterina do que a impressionante cesura do ato do nascimento nos permite supor” (Freud, 1926/1976, p.162). Freud (1900/1972) também menciona em “Interpretação dos Sonhos” à existência de fantasias relacionadas com a vida intrauterina e com o nascimento e a importância dos sonhos que evocam o nascimento. Contudo, apesar de Freud ter reconhecido a importância do período embrionário para a vida mental dos seres humanos, sua obra não faz menção mais detalhada à influência do período pré-natal. Rank (1961) enfatiza em seu trabalho, “O trauma do nascimento”, as experiências pré-natais e as do nascimento, postulando sobre a influência dessas experiências nas vivências posteriores. Considera as emoções associadas ao nascimento cruciais, sendo capazes de gerar 66 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 64-69 angústia e sofrimento na vida pós-natal. Rascovsky (1977), psicanalista argentino de orientação kleiniana, discorre sobre a importância das experiências intrauterinas e apresenta a hipótese de um psiquismo arcaico no feto. Segundo este autor, tais experiências se configuram como suporte ao sistema defensivo, que as idealiza e às quais o sujeito pode regredir quando sua vivência psíquica atual é vivida como dolorosa ou intolerável. Assim, as experiências intrauterinas são idealizadas como sendo paradisíacas e o sujeito pode regredir a um estágio fetal diante de ansiedades insuportáveis. Contudo, para Souza-Dias (1996), se a vida intrauterina fosse tão paradisíaca não haveria necessidade de o feto desenvolver mecanismos defensivos. Rascovsky (1977) ainda inova ao postular sobre um Ego desde o momento da concepção chamado de Ego Fetal. Este se constitui em Ego Ideal, o que explica porque nas fantasias de retorno ao ventre o sujeito busca retornar ao estado ideal de seu Ego. O autor ainda acredita que o Ego reencontra seu estado de origem, o estado fetal, diariamente ao dormir e sonhar. Para ele, dormir representa uma regressão cotidiana às condições fetais e chama a atenção à posição fetal assumida por algumas pessoas ao dormir (Gastaud, 2008). Bion (1992) também contribui para a temática do psiquismo fetal, o qual ele chama de proto-psiquismo embrionário e fetal’. Compartilha, com outros autores, a ideia de que o feto é receptivo a estímulos internos provindo do corpo da mãe, do seu próprio corpo e do meio externo, e que responde a estes estímulos através de movimentos corporais. Acredita que as vivências da vida pré-natal deixam registros psíquicos que vão exercer influência na vida pós-natal. O autor ainda refere: “não vejo razão para duvidar que o feto a termo tenha uma personalidade. Parece-me gratuito e sem sentido supor que o fato físico do nascimento seja algo que cria uma personalidade que antes não existia. É muito razoável supor que este feto, ou mesmo o embrião tenha uma mente que algum dia possa ser descrita como muito inteligente. (p.91)”. O trabalho da psicanalista italiana Alessandra Piontelli é considerado um dos pilares para a compreensão do psiquismo humano no período pré-natal, e seu trabalho reforçou que o feto é altamente singular. Para ela, cada feto apresenta uma maneira única de se comportar e de agir, dado que fica ainda mais evidente em gestações gemelares. Em seu estudo, a psicanalista constatou, a partir de suas minuciosas observações, que: os recém-nascidos continuam a apresentar as mesmas características individuais observadas intra-útero; que os padrões de conduta e de comportamento dos fetos aparecem muito cedo na vida intrauterina, tanto em gestações singulares, como nas gemelares; nos gêmeos, cada um dos irmãos apresenta um padrão de comportamento próprio, singular e bem definido, e o padrão de interação entre eles aparece ainda intra-útero, com características próprias, que irão nortear os comportamentos na vida pós-natal. Para a autora, existe uma intencionalidade nos gestos e movimentos. Ela observou, ao acompanhar as crianças de seu estudo na vida pós-natal, que, particularmente os gêmeos, procuravam reproduzir passagens de sua vida pré-natal, o que a psicanalista acredita ser uma tentativa de comunicação, de reconstrução e de elaboração das vivências intra-útero (Piontelli, 1995; Quayle, 2011; Wilheim, 2000). Wilheim (2000, p. 147) complementa as ideias de Piontelli dizendo “proponho-me a testemunhar mais um pouco sobre a existência de um mundo mental no feto e no recém nascido – rico, complexo e variado – cujos efeitos ressoam no espaço mental pós-natal e se manifestam como ecos de um passado distante, dando a este uma continuidade no presente embora por vezes de difícil decodificação”. Wilheim (1997) ainda afirma que é no período pré-natal que se inicia a capacidade de aprendizado do bebê. Ela explica que mesmo antes de nascer o bebê já é um ser inteligente e sensível. Para a autora, os padrões de conduta e de temperamento, as características individuais e as diferenças de personalidade são evidentes e marcantes desde o início do período gestacional, mantendo-se por toda a vida intrauterina e manifestando-se com as mesmas peculiaridades na vida pós-natal. Portanto, pode-se dizer que o feto tem uma personalidade bem definida na vida pré-natal e que após o nascimento continuará a desenvolver as mesmas características antes observadas. Ressalta ainda que na clínica, a psicanálise tem flagrado evidências de registros traumáticos pertencentes ao período pré-natal e ao nascimento e que traumas durante a vivência pré-natal podem resultar em futuras psicopatologias. A influência materna e suas repercussões sobre o bebê intra-útero Também no estudo da psicologia pré-natal, sempre foi de grande interesse a influência materna sob o desenvolvimento físico e emocional do feto. Tal influência atualmente é um fato comprovado e torna-se real a preocupação que emoções maternas destrutivas prejudiquem o feto. De acordo com Quayle (2011) e Zenidarci (2010), uma mãe sob forte tensão emocional tende a apresentar alterações hormonais que ultrapassam a barreira placentária e ocasionam mudanças no equilíbrio psicofisiológico fetal. É pelo cordão umbilical 67 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 64-69 que surge a inter-relação física e emocional entre mãe e filho, portanto os primeiros contatos com o meio externo são através das reações emocionais da mãe, frente ao que ela pensa, sente e vivencia. Com isso, alterações neurais, hormonais e humorais da mãe, devido a alguma perturbação emocional, são levadas ao feto pelo cordão umbilical agindo diretamente no seu estado emocional, registrando assim marcas em seu psiquismo que serão decisivas na sua formação psicoemocional. Sabe-se que os estresses vivenciados pela mãe podem ter conseqüências diretas sobre o feto. Segundo Souza-Dias (1996, p.116), “as investigações feitas através das observações ultrassonográficas mostram-nos que fator de importante interferência na vida fetal é o stress da gestante, poderoso estímulo desencadeante de sofrimento fetal. A sua intensidade e a sua duração, se crônico ou agudo, são fatores que marcam profundamente o feto e o predispõem a angústias já na vida prénatal e que podem reaparecer na vida pós-natal”. Além disso, a disponibilidade afetiva da mãe é fundamental para que ocorra o desenvolvimento emocional do indivíduo e o desenvolvimento do vínculo afetivo da tríade mãe-bebê-pai. Os estados emocionais da gestante e a qualidade de sua relação com o parceiro exercem grande influência no feto. De acordo com Souza-Dias (1996) “o equilíbrio da relação mãe-feto depende da qualidade do vínculo que existe entre os pais” (p.107). O vínculo entre a tríade, que geralmente tem início ainda na gestação, é uma das vias de contato e de troca de afeto dos pais com o futuro bebê (Ramos, 2004; Wilheim, 1997). Ainda sobre a influência materna sob o desenvolvimento do feto, estudos comprovam que o feto é capaz de reconhecer a diferença entre a voz da mãe e a voz de uma desconhecida e, além disso, demonstra preferência pela voz da mãe frente à voz de outras pessoas. Tais ideias indicam que a capacidade auditiva se desenvolve ainda no útero, mais ou menos a partir do quarto mês, o que também contribui para o início da linguagem (De Casper & Fifer, 1980; De Casper & Spence, 1986). Portanto, desde a sua primeira semana de vida, a criança é um ser existente. Não apenas um embrião ou feto que vai se tornar, passivamente, um bebê. Antes de vir ao mundo, este ser passa por sensações, aprendizados e experiências. Seu mundo interno começa a se constituir ainda intra-útero e o mundo externo terá grande influência no seu psiquismo na vida pósnatal. essencial, e tem despertado grande interesse e curiosidade, já que o conhecimento mais detalhado do comportamento das capacidades do ser humano no período pré-natal nos leva a conhecer o rico desenvolvimento e as potencialidades do feto. A partir desse trabalho, pôde-se compreender de que forma o feto interage com o meio intra e extrauterino, pôdese conhecer a existência da continuidade das características de personalidade do feto na vida intra e pós-uterina, confirmou-se a importância da mãe no desenvolvimento físico e emocional do feto e abriu-se um caminho para o entendimento de psicopatologias. Tais constatações levam as autoras a entender que os objetivos inicialmente propostos foram alcançados. Cabe destacar o caráter preventivo do estudo do psiquismo fetal e a importância da intervenção precoce. Visto que registros mnêmicos, guardados no inconsciente, exercem influência no psiquismo do ser humano em sua vida pós-natal, entende-se então que, estes registros, quando traumáticos, podem nos auxiliar na compreensão de psicopatologias de origem primitiva, ou seja, parte-se do entendimento de que quanto mais precoce a falha, falta ou trauma, mais grave será a psicopatologia. Quanto à intervenção, sugere-se a psicoterapia breve pais-bebê, pois se acredita que ela possa auxiliar nos inúmeros distúrbios que possam ocorrer no relacionamento inicial entre a tríade e no desenvolvimento emocional do bebê. Percebe-se então a importância do trabalho do psicólogo que, através de sua escuta e olhar diferenciados, embasados na teoria e técnica psicanalítica, pode compreender essa singular forma de comunicação do feto e, posteriormente na clínica, pode fazer conexões entre a história pré e pós-natal do sujeito e seus sintomas. Por fim, acredita-se que este estudo possa aprimorar o conhecimento de colegas da área e de profissionais que atuam na área Materno-Infantil. Sugere-se ainda a realização de novas pesquisas, principalmente no que diz respeito ao papel do pai e suas repercussões para o psiquismo, a fim de expandir e atualizar os conhecimentos existentes, já que a bibliografia encontrada aborda predominantemente a influência materna sobre o psiquismo. Referências Bion, W. R. (1992). Conversando com Bion. Rio de Janeiro: Imago. Caron, N. (2000). A relação pais-bebê: da observação à clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo. De Casper, A. J., & Fifer, W. P. (1980). Of human bonding: newborns Considerações Finais prefer their mothers voices. Science, 208, 1174-1176. De Casper, A. J., & Spence, M. J. (1986). Prenatal maternal speech inO estudo do psiquismo fetal mostra-se hoje relevante e fluences newborns perception of speech sounds. 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Dentre os resultados, podemos destacar a presença do modelo assistencial, centrado na doença e na assistência médica curativa, bem como, a insuficiência de um olhar mais abrangente da saúde do homem em uma perspectiva de saúde integral, caracterizando-se por aspectos negativos e não priorizando outros que também compõem a vida dos homens. Palavras-Chave: Análise Semiótica; Homens; Saúde Abstract: This article is the proposal to discuss the relationship between men and health through the National Politics for Integral Attention to Men’s Health (PNAISH). From this perspective, there was a qualitative research by analyzing the folder of the National Campaign’s 2009 PNAISH. From the collection of material published in official online page of the Ministry oh Health has developed an analysis of the structure, noting indication text/image and illustrative agency responsible for publishing/focus through the Semiotic Analysis of Still Images. Results included, the presence in the folder of the service model, based on disease and medical healing as well as the lack of a more comprehensive look on men, in a comprehensive health perspective, characterized by negative and not prioritizing other they also make the lives of men. Keywords: Semiotic Analysis; Men; Health a Psicóloga da Associação dos Deficientes Visuais de Canoas-ADEVIC/RS. *E-mail: [email protected] b Psicóloga do Centro de Referência da Assistência Social/ CRAS Cruzeiro, Porto Alegre/RS. c Psicóloga.; Professora do Curso de Psicologia do Centro Universitário Franciscano/UNIFRA. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 70 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 70-78 A Política Nacional de Atenção Integral a Saúde do Homem (PNAISH) alinhada com a Política Nacional de Atenção Básica, porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS) traduz um anseio da sociedade ao reconhecer que os agravos do sexo masculino constituem sérios problemas de saúde pública (Ministério da Saúde, 2008). Nesse ínterim, o presente artigo tem o intuito de problematizar e refletir sobre a saúde dos homens e a PNAISH, através análise do folder da Campanha Nacional de 2009 PNAISH, publicado na página on-line oficial do Ministério da Saúde. Tendo em vista que o homem não é um sujeito ativo de sua saúde, por não possuir cuidados com ela, vários esforços estão sendo realizados, tanto em nível estadual quanto federal, para dar conta da maior mortalidade masculina por problemas de saúde ou relacionados a ela. Campanhas sobre drogas, sexualidade, cuidados no trânsito são esforços que, somados, têm o intuito de alcançar a população masculina. Acrescentase a isso os programas de saúde dedicados aos jovens e aos idosos, que tentam minimizar problemas de saúde nessas faixas etárias. Entretanto, a maior parte da população masculina não é abordada por esses programas de saúde, pelo fato de não contemplar a faixa etária a eles aplicada. Por isso, a necessidade de pensarmos e discutirmos sobre a saúde dos homens e a PNAISH. Sabe-se que os homens atribuem a baixa procura aos serviços de saúde à falta de cuidados e escuta adequada, com um olhar de gênero que possa dar conta de suas demandas (Gomes, Nascimento & Araújo, 2007). As mulheres, por sua vez, são as que mais freqüentam a rede de assistência à saúde, sendo foco de programas de promoção da saúde e de prevenção de agravos, familiarizadas, ao longo dos tempos, com intervenções sobre o seu corpo (Meyer, 2000; Gomes, Nascimento & Araújo, 2007). Essa questão também pode ser reforçada pela Política da Mulher, que encontra-se entre as mais antigas existentes no Pais, desde 1983. Em 2003, teve início a construção da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher – Princípios e Diretrizes, quando a equipe técnica da Política da saúde da mulher avaliou os avanços e retrocessos alcançados na gestão anterior. Em maio de 2004 o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, construída a partir da proposição do SUS e respeitando as características da nova política de saúde. E, levando em consideração esse marco histórico-político-social, somente em 2009 acontece a criação de uma Política Pública de Atenção a Saúde do Homem, visando este enquanto um sujeito que necessita de atenção e cuidado (Brasil, 2011). Até o ano de 2009, o homem era mencionado nas Políticas de Saúde associado às políticas de HIV/AIDS ou à sexualidade, no que diz respeito a problemas do âmbito da fertilidade e, mais uma vez, sendo percebido como ligado às mulheres. O estudo das questões relativas aos homens, principalmente a sua saúde, vem sendo desbravado nos últimos anos, mas ainda há muitos mitos em torno dessa questão, principalmente culturais e vindos dos próprios homens. Atualmente, o modelo hegemônico de masculinidade, do macho, viril, forte, tem se tornado um problema para as questões de saúde. Isso acontece porque, entre os homens, não há uma cultura de autocuidado, pois eles são primeiramente cuidados por suas mães e depois por suas esposas, o que reforça o seu caráter dependente quando se trata da sua saúde, dificultando a promoção de medidas preventivas (Braz, 2005; Korin, 2001; Strey & Pulcherio, 2010). Como ponto de partida este estudo sobre o desenvolvimento de ações de saúde em geral e a formulação de políticas de saúde voltadas para os homens, faz-se necessário investigar a concepção do conceito de saúde, bem como a relação homemsaúde. É importante assinalar o lugar do qual analisaremos a produção de saúde. Esse conceito é problematizado a partir das propostas da reforma sanitária e constitui-se como um dos eixos das dimensões de cuidados em saúde. A reforma sanitária é um movimento engendrado no campo da saúde, a partir da década de setenta, como crítica ao modelo de saúde pública que organizava a atenção à saúde no Brasil. A mesma, ainda é um projeto político que articula saúde, cidadania e direito, onde a saúde passa a ser objetivada como um suporte social, ou seja, um suporte para a vida. A reforma sanitária encontrase na Constituição de 1988, quando se organizam as ações em saúde mediante um Sistema Único de Saúde - SUS (Bernardes & Quinhones, 2009). Breves aspectos históricos sobre produção de saúde De acordo com Elias, citado por Mendonça e Andrade (2010, p. 217), “a saúde passou a ser consolidada como política depois da Segunda Guerra Mundial, com o advento do Estado de Bem-Estar Social e dos sistemas de saúde norte-americano e europeu”. Ainda, os autores acima citados ressaltam que a partir desse momento, os governos passaram a investir em recursos com intuito de viabilizar propostas para a saúde da população. Já no Brasil, a saúde sofreu diversas transformações ao longo do tempo. Carvalho e Ceccim (2007) descrevem os principais acontecimentos históricos relativos ao modelo de 71 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 70-78 saúde. Inicialmente manteve-se o Modelo Curativo individual, que definia o corpo como espaço de evolução das doenças e a clínica como a restauração da suposta normalidade. Nas décadas de 1950 e 1960 emergiu o Modelo Preventista com foco na transformação das práticas de saúde e as necessidades da população. Na década de 1970 a Saúde Comunitária foi alvo de estudos e temas como os territórios da vida, contextos culturais e direito à educação popular são valorizados. Em seguida, surgem novos sanitaristas, os quais expressam críticas à realidade social. Dessa forma, iniciou-se o Movimento Sanitário, o qual reivindicava integração entre o ensino-serviço, com valorização da aprendizagem em Unidades de Saúde. Nesse contexto, foi realizada em 1978 a Conferência Internacional Sobre Cuidados Primários de Saúde em Alma-Ata, promovida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Como resultado dessa Conferência a Atenção Primária de Saúde foi caracterizada como assistência sanitária ao alcance de todos (Andrade, Barreto & Bezerra, 2007). Nesse ínterim, Góis (2008) afirma que a 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) realizada no ano de 1986 e sua proposta de atenção primária em saúde, caracterizam um marco da saúde no Brasil, especialmente por estabelecer os princípios preconizados pelo Movimento da Reforma Sanitária. Segundo o Relatório Final dessa Conferência, saúde é o resultado das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso aos serviços de saúde, dentre outras. A Constituição Federal de 1988 delegou novo sentido à saúde, agregando as discussões feitas na 8° CNS, caracterizando-a como um direito de todos os cidadãos. Ainda, a saúde é descrita como reflexo das condições sociais, econômicas e ambientais, nas quais a população se insere (Nascimento, 2004). Nesse sentido, o Sistema Único de Saúde (SUS), vai além da prestação de serviços assistenciais ao articular e coordenar ações promocionais e de prevenção com as de cura e reabilitação (Vasconcelos & Pasche, 2006). A política de saúde nesse contexto passou a ter expressão e ganhar reconhecimento e dimensão social, após a criação então do Sistema Único de Saúde (SUS). A Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, do Ministério da Saúde, dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, sendo esta um direito fundamental do ser humano. Apresenta três princípios básicos que fundamentam a prática dentro do âmbito da Saúde Pública: a universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; a integralidade da assistência entendida como um conjunto articulado de ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos; e a equidade da assistência, sem preconceitos ou privilégios. Também dispõe acerca da organização, direção e gestão do SUS. As ações e serviços de saúde são organizados de forma regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade crescente. A direção do SUS é realizada no âmbito da União pelo Ministério da Saúde, no âmbito dos Estados e Distrito Federal e Municípios pela Secretaria de Saúde correspondente. Esta estrutura visa facilitar o acesso da população aos serviços vislumbrando sempre seu bem estar. A fiscalização é realizada pelos Conselhos de Saúde, organizados em instâncias Nacionais (CNS), Estaduais (CES), Municipais (CMS) e Distritais (CLS) (Nascimento, 2004). Atualmente, a Saúde Coletiva compreende as subáreas da Saúde Pública, da Epidemiologia e da Medicina Preventiva e Social. A Saúde Coletiva, no que se refere à formação em saúde, propõe novas formas de educar, pensar e agir em saúde, privilegiando histórias de vida, integralidade e histórias culturais. Nessa articulação de formação em saúde a partir da trajetória anteriormente descrita, o desenvolvimento da produção de saúde como campo conceitual e de prática é visto como uma estratégia promissora para enfrentar os múltiplos problemas de saúde que afetam as populações humanas e seus entornos (Buss, 2000). Dentro dessa abordagem, a produção de saúde é definida como o processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle desse processo, incorporando na sua práxis valores que fundamentam a prática dentro do âmbito da saúde pública, já mencionados (OMS, 1986). E, buscando uma maior integração de alguns conceitos que permeiam o processo de produção de saúde, o Ministério da Saúde (MS) (Brasil, 2008), estabelece algumas metas na tentativa de expandir o SUS com trabalho de qualidade e entre essas, a implantação de ações voltadas para a Atenção à Saúde do Homem as quais serão abordadas a seguir. Formulação da política de atenção à saúde do homem No Brasil, a discussão sobre a saúde dos homens teve seu início mediante esforços da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU), que promoveu uma Campanha no ano de 2008 tendo como tema a disfunção erétil. A partir daí, a SBU apoiada pelo então, Ministro da Saúde José Gomes Temporão tinha como uma das metas de sua gestão a implantação de uma política de assistência à saúde dos homens. Dessa forma, começou a exercer forte pressão junto aos órgãos do governo, aos Conselhos 72 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 70-78 de Saúde e a outras entidades médicas, para que fosse lançada uma Política de saúde que tivesse como foco os homens. Durante o ano de 2008, as ações da SBU começaram a dar resultados, entre eles, um acordo de cooperação técnica entre o Ministério da Saúde (MS) e a SBU para promover a assistência aos homens no sistema público de saúde. Além disso, foi realizado o IV Fórum Políticas Públicas de Saúde do Homem, no qual foi apresentado pelo MS o projeto que posteriormente daria origem à Política Pública de Saúde para o homem (Carrara, Russo & Faro, 2009; MS, 2009; SBU, 2010). Em agosto de 2009, após discussões entre pesquisadores, associações médicas e setores do governo, entre outros, o MS lançou a Política de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH). Segundo o MS (2009), essa Política visa atender homens na faixa etária dos 20 aos 59 anos e tem como objetivo ampliar o acesso dos homens aos serviços de saúde, melhorando a assistência oferecida por meio de ações que promovam saúde, prevenção, informação, e uma mudança cultural. A PNAISH é um programa pioneiro dentre os países da América Latina e está alinhada com as diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). Além disso, os governos estaduais possuem autonomia para criar suas próprias Políticas, com base na federal, que atendam as demandas específicas de cada região do Brasil e mesmo dentro de cada Estado. Na construção da Política, apoiada em estudos e pesquisas de instituições públicas e privadas, como a Sociedade Brasileira de Urologia e a Sociedade Brasileira de Cardiologia, entre outras, também se levou em conta a transversalidade com as demais políticas existentes, a fim de que houvesse uma interdependência entre elas (Conass, 2009), primando pela atenção primária como porta de entrada no sistema de saúde. Ao propor a integração com outras Políticas de saúde, como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), o governo pretende perceber os homens através de uma perspectiva individual e relacional, evitando isolar homens e mulheres, relacionando questões que também envolvem o casal. Um plano de ação com nove eixos deveria ser executado até o ano de 2011, segundo o MS (2009), no qual o governo prevê o aumento do valor repassado às unidades de saúde por alguns procedimentos urológicos e de planejamento familiar e ampliação do número de ultrassonografias de próstata. Além disso, a Política presume a capacitação técnica de profissionais para melhor atuar e compreender sobre a saúde masculina. Como nosso país é extenso, percebemos que algumas ações não são executadas de maneira uniforme, e em alguns estados do país, a PNAISH ainda ‘engatinha’ após quase dois anos de seu lançamento. Fazer com que a PNAISH esteja ao alcance de todos os homens é um desafio o que justifica a importância da sua problematização, a fim de que não se perca em seus propósitos. Método Seleção do material o material elegido para a análise foi o folder da Campanha Nacional de 2009 da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH), publicado na página on-line oficial do Ministério da Saúde. A escolha deveu-se pelo fato da PNAISH ser um programa pioneiro dentre os países da América Latina, sendo a mais recente no Brasil até o presente momento. Embora a coleta do material tenha sido via página on-line, o mesmo é significativo, tendo em vista a observância de que os agravos do sexo masculino são um problema de saúde pública (Ministério da Saúde, 2011) estando assim, alinhado com as diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). A PNAISH é uma Política Pública nova e que, ainda, não foi implantada em alguns municípios. Procedimentos para a coleta de dados o primeiro passo foi a escolha do material para ser analisado – o folder da Campanha Nacional de 2009 da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH) acessado entre os meses de Maio a Julho de 2011 no site do Ministério da Saúde (http://portal.saude.gov.br/saude/campanha/ foldershomem_270809.pdf), com o objetivo de suscitar discussões críticas sobre um assunto contemporâneo, que é a saúde dos homens e suas vicissitudes. O segundo passo se fez por meio da identificação dos elementos do material, analisando o texto e a imagem (capa e contracapa). Nessa configuração, destacamos que os dados para a análise foram os textos e as imagens, porque julgamos que tanto as informações escritas, quanto as visuais são indispensáveis a compreensão deste universo e, portanto, trazem elementos relevantes para serem analisados. Já, o terceiro passo foi analisar níveis mais complexos de significados, por exemplo, “como os elementos se relacionam uns com os outros? Que conhecimentos culturais são exigidos a fim de ler o material? (Penn, 2008, p. 328). Ainda, segundo a metodologia proposta pelo autor, o folder da PNAISH, foi analisado através da Análise Semiótica de Imagens Paradas, observando alguns itens, como: indicação textual/imagem ilustrativa e órgão responsável pela publicação/foco. 73 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 70-78 Procedimento de análise dos dados para analisar os dados escolhemos a Análise Semiótica de Imagens Paradas, (Penn, 2008), por também ser uma análise dependente do contexto social e histórico que está sendo apresentado. Sendo assim, algumas interpretações tendem a ser praticamente universais, enquanto outras se limitam a determinada cultura ou a uma maneira individual de enxergar a questão. Este tipo de análise tem o objetivo de tornar explícitos os conhecimentos culturais necessários para que o leitor compreenda a imagem. Além disso, a semiologia instrumentaliza o analista para analisar os signos para que estes produzam sentidos. Resultados e discussões A seguir, discorremos sobre a análise e discussão do folder (capa e contracapa), num contexto de leitura flutuante, levando em consideração que ao analisarmos o folder lançamos um olhar frente a essa estrutura, e que cada sujeito, ao analisar o mesmo material, poderá encontrar outras discussões, podendo ter diferentes interpretações, não existindo uma única e verdadeira leitura (Penn, 2008). Destacamos que os dados para análise do folder, apresentados em capa e contracapa, foram à indicação textual/ imagem ilustrativa e órgão responsável pela publicação/foco, pelo fato de julgarmos que tanto as informações escritas, quanto as visuais são de extrema importância à compreensão deste material, e que, portanto, trazem elementos relevantes para serem analisados. A seguir, o folder da campanha da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: Indicação textual e imagem ilustrativa Ao analisarmos a capa do folder, visualizamos um homem com idade entre 30 e 40 anos, branco, bem vestido, magro, com uma expressão séria, descortinando as doenças, escritas em caixa alta (Hipertensão, Diabetes, Tabagismo, Alcoolismo e Cirrose). Ao fundo, um gramado, um céu azul, com alguns brinquedos, como se fosse uma pracinha infantil e um menino, brincando com uma bola. No canto superior esquerdo, em letras grandes e em caixa alta lemos “HOMEM QUE SE CUIDA NÃO PERDE O MELHOR DA VIDA”. Aqui se entende através da imagem apresentada no plano de fundo do folder que ao cuidar da sua saúde, o homem aproveita sua vida com lazer juntamente da sua família. Gomes et al. (2011), referem que há uma associação entre doença e interrupção do ciclo de vida, dificultando a promoção do autocuidado entre os homens. A frase em destaque no folder remete à importância do cuidado masculino em saúde para que momentos como o do plano de fundo façam parte do cotidiano das famílias. Nessa configuração, percebe-se que o homem tem idade entre 30 a 40 anos. Para tanto, o Ministério da Saúde (2009), afirma que a Política visa atender homens na faixa etária dos 20 aos 59 anos. Cabe ressaltar, que seria interessante outras 74 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 70-78 raças, etnias, idades a serem contempladas, para que houvesse uma maior identificação do público, bem como, estar explícita a faixa etária de acompanhamento da PNAISH. Ocorre assim, uma generalização do público mencionado, associada a uma lógica do modelo linear de comunicação, verificando-se uma tendência em aproximar os indivíduos em suas generalizações e não em suas especificidades (Fausto-Neto, 1995). Esta lógica de generalização é característica marcante nas Campanhas de Saúde Pública (Kelley-Santos & Rozemberg, 2005). Ao abrirmos o folder, nos deparamos com uma continuação da imagem da capa: o gramado verde, o céu azul, crianças brincando em um brinquedo localizado no canto inferior esquerdo da aba esquerda. Ainda, uma mulher, supostamente mãe, empurra um carrinho com uma criança no seu interior. Na aba direita, dando seqüência à figura do gramado, um menino andando de bicicleta aparece na parte inferior. Podemos inferir que a imagem menciona uma família heteronormativa, na qual um casal, composto de um homem e uma mulher e filhos ou filhas são o modelo de família apresentado. Mais uma vez, a heteronormatividade está presente em uma campanha do governo federal, fazendo alusão a uma família tradicional. Campanha esta que tem o intuito de atingir um público ampliado e diverso. Questionamos como os homens irão se identificar nessa campanha, tendo em vista a falta de menção à diversidade sexual e étnico-racial. E ainda, já que a política traz o sofrimento da família quando um homem adoece, referindo que não somente aquele que adoece sofre, mas todas e todos a sua volta, como deixar de lado no folder a questão da paternidade? A paternidade que está tão em voga, com a reconfiguração dos papéis de homens e mulheres, e a maior participação dos homens no cuidado e na responsabilidade com a criação e educação dos filhos. Em estudo de Schraiber et al. (2010), os autores perceberam como a pouca importância dada às especificidades de gênero contribuem para obstaculizar o acesso aos serviços de saúde, principalmente os serviços de atenção primária. Ainda nesse estudo, foi percebida a falta de vínculos com os homens, chamando a atenção para a ausência de um olhar de gênero que possibilitaria apreender novas necessidades e carências nos serviços de saúde. Percebemos, assim, como é delicada a situação dos homens diante dos serviços de saúde, aos quais eles pouco comparecem e, quando comparecem, enfrentam dificuldades pessoais e estruturais dos serviços, que em sua maioria não estão preparados para recebê-los com um olhar e escuta adequada. Entendemos que uma melhor articulação do folder com a diversidade sexual, étnica e racial seria importante para que um maior número de homens pudesse se identificar ao ler o mesmo. Nesse sentido, Heilborn, citado por Gomes (2008), menciona as questões de gênero e classe social, identificando que homens de classes sociais mais elevadas cuidam-se mais do que homens de classes menos favorecidas. Uma vez que o folder está atrelado a uma política pública e ao SUS, percebemos a importância de visibilizar diversidades e no intuito de promover a prevenção e o cuidado em saúde em toda a população masculina. Ainda, a participação de um pai nas brincadeiras das crianças que aparecem no folder também seria interessante, tendo em vista que isto também faz parte de uma vida saudável. O incentivo à paternidade responsável está entre as diretrizes da PNAISH, e é importante que ações estimulem os homens a assumirem sua responsabilidade, direitos e deveres enquanto pais, possibilitando, segundo Arilha (1998) que homens e mulheres compartilhem ideias e acontecimentos sobre aspectos da reprodução. Na aba da direita do folder, escrito em letras grandes lemos a frase: “O que será oferecido para a população masculina no SUS”. Abaixo disso, são explicados itens do que será oferecido aos homens: prevenção da saúde, treinamento dos profissionais de saúde, informação e comunicação. Estas ações são importantes para que não só a população masculina atente para sua saúde, mas também que os/as profissionais da saúde saibam acolher os homens nos espaços de saúde. Conforme Valdés e Olavarría, citado por Keijzer (2003), a invisibilidade dos homens e sua ausência nos espaços de saúde perpassa a identidade de gênero masculina, refletindo nesses espaços a noção de invulnerabilidade dos homens. Ainda, a dificuldade que os homens têm de expressar suas necessidades de saúde e o medo de que elas possam ser percebidas como demonstração de fragilidade, expressa uma feminização da noção de cuidado, reforçando que os espaços de saúde possam ser percebidos como pertencentes a mulheres e crianças (Kohn, 2012). Como parte integrante da prevenção oferecida à população masculina, há maior facilidade, bem como, existe a ampliação e atendimento aos homens na rede básica de saúde, as chamadas UBS (Unidades Básicas de Saúde) e ESF (Estratégia de Saúde da Família) (MS, 2009). Nesse sentido, percebemos que o folder não menciona as ações que serão feitas para que a prevenção atinja a população mencionada. Partimos da idéia de que saúde é mais que a ausência de doença e por isso entendemos que a prevenção não deve estar apenas relacionada à facilidade de acesso e ampliação dos atendimentos nas UBSs e ESFs, mas também a outros aspectos da vida dos homens que garantirão 75 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 70-78 uma maior qualidade de vida e redução da morbi-mortalidade masculina. Em revisão dos estudos em Necessidades de Saúde e Masculinidades de Schraiber et al. (2010), apontam quatro estados brasileiros onde foram pesquisados dez serviços de saúde pública com a realização de observações etnográficas, entrevistas semi-estruturadas com usuários (homens com idade entre15-63 anos, totalizando 182 usuários) e profissionais (72 sujeitos entrevistados), realizando assim a seleção de dados referente a percepção dos usuários e suas necessidades , uso dos serviços, respostas dos profissionais e funcionamento dos serviços. Para tanto, a percepção dos usuários sobre a saúde se aproxima, onde não negam as suas necessidades de saúde e destacam várias dificuldades em procurar e acessar os serviços. No que diz respeito ao treinamento dos/as profissionais de saúde, está escrito no folder que haverá treinamento específico para 32 mil equipes de ESF. Quando buscamos essa informação em sites do Ministério da Saúde, apenas encontramos que poucas capacitações foram realizadas até o momento, 2 anos depois do lançamento da PNAISH. Entretanto, é importante que esses treinamentos aconteçam a fim de que as equipes estejam capacitadas para ouvir as demandas da população masculina. Schraiber et al. (2010) em sua pesquisa, citada anteriormente, refere que os profissionais, embora reconheçam que os homens possuem necessidades , apontam dificuldades para atuarem sobre elas, não tendo percepção do quanto o serviço ou seu modo de prestar assistência repercutem na qualidade do acesso e acolhimento do usuário. Outro aspecto referente ao que será oferecido à população masculina é informação e comunicação. No folder, está escrito que serão “realizadas campanhas voltadas para a Saúde do Homem com a distribuição de cartilhas sobre prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs/Aids) e de cânceres e hábitos de vida mais saudáveis”. Nesse sentido, ainda podemos perceber a prioridade sobre os aspectos relativos às doenças em detrimento de outros referentes ao cuidado dos homens com a sua saúde. Um pequeno texto no centro do folder reforça que a prevenção de doenças no homem melhora também sua saúde e qualidade de vida, explicitando o que deve ser feito para ajudar nessa prevenção: “Adote uma alimentação saudável; Não fume e evite bebidas alcoólicas; pratique exercícios físicos.” Em destaque, em uma caixa de texto à parte dos textos anteriores, o incentivo para que o homem procure uma UBS mais próxima da sua casa. Este texto reforça, mais uma vez, o modelo médico ainda prevalente na saúde. No verso do folder, são ressaltados hábitos de saúde, através das frases: “Adote uma alimentação saudável”; “Não fume e evite bebidas alcoólicas”; “Pratique exercícios físicos”; “Procure a Unidade Básica de Saúde mais próxima”. Além disso, o verso do folder traz a continuação da imagem da capa, com um campo verde no qual um menino anda de bicicleta, com belas árvores ao fundo. Bem no centro da imagem, junto ao céu azul, lemos o nome da Política ressaltado em caixa alta. Ao longo de todo o folder, é possível perceber a cor azul – tida como masculinacontrastando com o verde dos campos, no qual a vida acontece e o homem tem deixado de estar presente. Órgão responsável pela publicação/foco Na parte superior do verso do folder, o site do Ministério da Saúde é destaque, juntamente com um telefone, do Disque Saúde (0800 61 1997). Segundo o Ministério da Saúde (2011), o trabalho parte da definição de políticas e diretrizes em saúde voltadas para a população masculina na faixa etária já mencionada. No dia 25 de agosto de 2011, às 17h e 20 minutos, ligamos para o número do Disque Saúde indicado no folder. Uma gravação redirecionou a ligação para outro número automaticamente. Após uma mensagem inicial, indicando que o número discado tratava-se da ouvidoria do SUS, a gravação sugeria as opções que deveríamos teclar conforme as dúvidas que tínhamos: em relação a doenças, tabagismo, medicamentos, dengue. Somente no quinto item, campanhas do Ministério da Saúde são mencionadas, assim como ações do Ministério da Saúde no sexto item. Mais adiante, a opção de falar com um atendente nos é dada. Ora, se há no folder de divulgação da PNAISH o contato para o Disque Saúde, a ideia que temos é de que ao menos uma das opções oferecidas deveria contemplar diretamente a saúde dos homens. Nesse sentido, este serviço do Ministério da Saúde não transmite informações a respeito da saúde masculina, invisibilizando o usuário do sistema de saúde, partindo assim da premissa de que é preciso construir outras formas de acesso mais eficazes para o atendimento, direcionado e mobilizando assim a população masculina brasileira pela luta e garantia do seu direito social à saúde, tornando os homens protagonistas de suas demandas (Ministério da Saúde, 2008). Considerações finais Somente após 20 anos de implantação do SUS no Brasil é que uma Política de Saúde para os homens foi realizada como 76 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 70-78 forma de atender as demandas dessa população, que como alguns estudos constataram, já está presente nos serviços de saúde, mas aguarda seu atendimento ao lado da porta de saída (Schraiber et al., 2010). Nesse sentido, é interessante que se reflita sobre Políticas Públicas que se relacionam com a saúde do homem, sendo esta uma nova proposta que vem sendo discutida desde 2008 e hoje, firmada dentro da instância do SUS, como Política Nacional de Atenção Integral a Saúde do Homem (PNAISH). Podemos ressaltar, ainda, a presença do modelo assistencial, centrado na doença e na assistência médica curativa, percebido na capa, através da exposição das doenças, como: hipertensão, diabetes, cirrose, entre outras. Além disso, a insuficiência de um olhar mais abrangente sobre o homem, pensando na perspectiva de saúde integral que pode ser descrito através das recomendações sugeridas que se referem à doença, violência, acidentes de trânsito e trabalho, caracterizando-se por aspectos negativos e não priorizando outros que também fazem parte da vida dos homens. Para tanto, é importante problematizar a PNAISH, já que esta se encontra em processo de implantação no Brasil, ligando-a a um conceito de saúde que não seja pautado na doença, conceituando-a enquanto modos de vida, que permitam a inclusão da cidadania e da equidade e que possibilitam também direcionar as práticas em saúde para além do que já está instituído, para além daquilo que coloca os homens numa posição de invisibilidade quando o assunto é saúde. No entanto, há necessidade de mudança de paradigmas da percepção da população masculina em relação ao cuidado com a sua saúde também é enfatizada pela Política. Olhar para o comportamento dos homens em relação a sua saúde é também compreender que durante muito tempo eles ficaram à margem de Políticas assistenciais específicas o que contribui para obstaculizar o acesso dos homens aos serviços de saúde. Percebemos que uma via de mão dupla é importante para que ocorra uma mudança no comportamento dos homens com a sua saúde, pois não apenas os homens devem olhar para si, mas é necessária também uma mudança no atendimento dos(as) profissionais de saúde, que devem saber acolher as demandas masculinas e não restringi-las apenas a um foco sexual e reprodutivo. A análise do folder aqui realizada é um trabalho que não se esgota, pois “teoricamente, o processo de análise nunca se exaure e, por conseguinte, nunca está completo. Isto é, é sempre possível descobrir uma nova maneira de ler uma imagem” (Penn, 2008, p.331- 332). Dentro desse contexto, a proposta de refletir criticamente sobre o material exposto no folder é uma contribuição para uma discussão que coloca os homens como sujeitos ativos de sua saúde e protagonistas de uma escolha pelos caminhos a percorrer. Assim, para que a PNAISH se torne parte de todos e todas, o governo propõe uma articulação com outras áreas de instâncias federais e com o setor privado, a fim de que se forme uma rede visando o compromisso com uma melhor qualidade de vida. Esse é um grande desafio, já que a Política está em seu início, engatinhando no seu processo de implantação e implementação no Brasil. Entretanto, não basta apenas que o governo faça a proposta, é preciso que tanto os homens como a sociedade em geral, possam fazer parte da história desse movimento em prol da saúde masculina. Referências Andrade, L. O. M., Barreto, I. C. H. C., & Bezerra, R. C. (2007). Atenção Primária à Saúde e Estratégia de Saúde da Família. In G. W. S. Campos, M. C. S Minayo, M. 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Recebido em abril/2012 Revisado em novembro/2012 Aceito em dezembro/2012 78 ESTUDO TEÓRICO Aspectos emocionais da saúde da mulher na medicina tradicional chinesa Emotional aspects of woman´s health in traditional chinese medicine Alexsandra Cassol de Vasconcelos(a)* Resumo: A mulher está, atualmente, exposta às variações hormonais decorrentes do estilo de vida atribulado e estressante, e vem aumentando, na mesma medida, os problemas relacionados aos ciclos femininos. Assim, o presente estudo busca explorar as alterações vivenciadas no ciclo menstrual da mulher ocidental sob a perspectiva da Medicina Tradicional Chinesa, aprofundando as relações existentes entre os estados emocionais e as alterações menstruais. Através do levantamento bibliográfico constatou-se que o padrão primário observado nas alterações do ciclo menstrual se refere à Estagnação do Qi do Fígado. Os distúrbios emocionais tendem a congestionar ou bloquear o fluxo energético deste Órgão que é responsável pela movimentação de Qi e Sangue e pela armazenagem do Sangue, ocasionando os sintomas de tensão pré-menstrual. Os autores propõem que, quando se trata de ciclo menstrual, o mais importante para a saúde da mulher é a forma como elas se relacionam com as emoções dissonantes do dia a dia. Palavras-chave: Irregularidades Menstruais; Saúde da Mulher; Medicina Chinesa Abstract: The woman is currently exposed to the hormonal changes resulting from the stressful and hectic lifestyle, and has increased to the same extent, problems related to female cycles. Thus, this study aims to explore the changes experienced in the menstrual cycle of western woman's under the perspective of Traditional Chinese Medicine, deepening the relationship between emotional states and menstrual changes. A bibliographical survey found that the pattern observed in the primary changes of the menstrual cycle refers to the Liver Qi Stagnation. Emotional disturbances tend to jam or block the energy flow of this Organ, which is responsible for the movement of Qi and Blood and storage of Blood, causing symptoms of premenstrual tension. The authors propose that, when it comes to the menstrual cycle, the most important for the health of women is how they relate to their dissonant emotions in everyday life. Key words: Menstrual Irregularities; Women's Health; Chinese Medicine a Psicóloga; Especialista em Acupuntura. *E-mail: [email protected] Sistema de Avaliação: Double Blind Review 79 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 79-87 As irregularidades menstruais, as tensões emocionais e mudanças comportamentais provocadas pelos ciclos femininos, os tumores de mama, os sintomas da menopausa, entre outros têm sido, nos últimos anos, temas amplamente debatidos nos diversos meios de comunicação. Conforme Nunes (2009), os especialistas afirmam que a mulher moderna, mais do que nunca, está exposta às variações hormonais decorrentes do estilo de vida atribulado e estressante, da alimentação sempre inadequada e do uso de anticoncepcionais. Não há dúvidas, segundo o autor, que os problemas sazonais de saúde física e mental, relacionados com o ciclo menstrual, são típicos dos tempos atuais. Um estudo global, envolvendo 4 mil mulheres, em diversos países, estima que 90% da população em idade fértil sofre de sintomas que se enquadram nos critérios do CID-10 (Código Internacional de Doenças) e, ainda, 3% a 5% dessas mulheres apresentam sintomas de angústia e irritabilidade às vésperas da menstruação ou a partir da metade do ciclo (Nunes, 2009). Dados semelhantes são encontrados nos estudos de Valadares, Ferreira, Correa Filho & Romano-Silva (2006) e Carvalho (2009) que informam que um total de 75% a 80% das mulheres em idade reprodutiva apresenta algum tipo de sintoma (físico, emocional ou cognitivo) durante o período pré-menstrual. Ainda, 10% dessas mulheres declaram que seus sintomas são perturbadores, impondo a necessidade de intervenção profissional e, entre 2% e 8% das mulheres padecem de sintomas severos o suficiente para desequilibrar suas vidas social, familiar e ou profissional durante uma ou duas semanas por mês. Diante deste quadro, o objetivo do presente estudo foi explorar as alterações vivenciadas no ciclo feminino da mulher ocidental sob a perspectiva da Medicina Tradicional Chinesa, investigando suas causas, padrões de desarmonia e formas de tratamento, além de aprofundar as relações existentes entre os estados emocionais e as alterações menstruais. Segundo Souza (2008), a Medicina Chinesa é um conjunto de saberes e práticas de saúde que constituem, prioritariamente, um modelo de prevenção e promoção da saúde, além da face curativa. A prática médica chinesa versa sobre o restabelecimento natural do equilíbrio, da harmonia e da vitalidade do corpo, através da valorização dos poderes internos de cura (Valins, 1999; Souza, 2008; Zhao, 2009). Assim, o estudo objetiva, também, reunir um conjunto de práticas e providências de autocuidados oferecido pela sabedoria oriental à mulher que certamente contribuirão para a promoção de sua saúde íntima. Método O estudo realizado utiliza como parâmetro a pesquisa bibliográfica, que se refere a um tipo de pesquisa elaborada a partir de material publicado: livros, artigos de periódicos, teses, monografias e base de dados eletrônicos. Este levantamento objetivou recolher e analisar as principais contribuições literárias sobre o papel das emoções nos problemas ginecológicos da mulher a partir das práticas e conceitos médicos chineses. Para tanto, foram consultados os catálogos da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) disponibilizados na rede. As categorias de descritores consultados foram: irregularidades menstruais, saúde da mulher, acupuntura e medicina chinesa. Foi dada a devida atenção aos livros publicados por autores contemporâneos sobre Medicina Chinesa, cuja obra representa a análise de temas relevantes à compreensão das concepções de saúde desta Medicina. Para complementar a estratégia de busca foi realizada a checagem manual das referências bibliográficas dos artigos e livros consultados com o objetivo final de localizar textos pertinentes ao tema pesquisado. Resultados e discussão Milhões de mulheres em idade reprodutiva apresentam uma constelação de sintomas emocionais, cognitivos, comportamentais e físicos relacionados ao seu ciclo menstrual. Estes quadros sintomáticos recebem denominações como tensão pré-menstrual (TPM), síndrome pré-menstrual (SPM), transtorno disfórico da fase lútea tardia (TDFLT; Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais – DSM-III-R) ou transtorno disfórico pré-menstrual (TDPM; Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais DSM-IV), cada um com a sua gravidade e sustentados por um complexo conjunto de fatores biológicos, psicológicos e ambientais (Valadares et al., 2006). Carvalho (2009) acrescenta que os sintomas de ordem emocional têm sido referidos como de maior intensidade. Os autores são unânimes ao afirmar que há mais de 150 sintomas relacionados ao ciclo menstrual (Carvalho, 2009; Deadman, 1995; Freitas, Menke, Rivoire & Passos (1997); Nunes, 2009; Valadares et al., 2006). Os sintomas mais comumente descritos pela literatura são: 1) sintomas emocionais: humor depressivo; ansiedade; tensão; irritabilidade; choro; inquietação; baixa autoestima; sentimentos de solidão; tristeza. 2) sintomas cognitivos: insônia ou aumento da sonolência; diminuição da memória; confusão; concentração diminuída; distração. 3) sintomas comportamentais: compulsão por alimentos ricos 80 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 79-87 em carboidratos; aumento de apetite; não participação em atividades sociais ou profissionais; maior permanência em casa; aumento do consumo de álcool; aumento ou diminuição da libido. 4) sintomas físicos: intumescimento e dolorimento de seios e abdome; cefaleia; dores generalizadas; aumento de peso; fogachos; desmaios; tonturas; náuseas; fadiga; palpitação; diarreia; constipação; acne. A prática médica chinesa trata as questões relativas ao ciclo feminino e as inúmeras alterações acima relatadas sob uma ótica diferenciada que será exposta a seguir. Primeiramente, há certas particularidades do pensamento chinês ao analisar os conceitos de sua medicina. Como esclarece Ferreira e Luz (2007, p.865), “os sentidos e significados de cada parte do discurso no pensamento chinês só se tornam claros em sua inserção no todo. O significado de uma categoria é dado pela evocação de outras categorias, que vão se ressignificando por meio da associação entre elas”. Dessa forma, torna-se fundamental a exposição preliminar de alguns princípios básicos da Medicina Tradicional Chinesa, dentre eles o conceito de Yin e Yang, do Qi, dos Órgãos Zang Fu e dos Cinco Elementos. As inter-relações e ressignificações destes conceitos básicos permitem, a partir da proposta holística, o entendimento das questões de saúde e doença, e mais estritamente, da saúde íntima da mulher. A Medicina Tradicional Chinesa entende e descreve o funcionamento do corpo humano com base na filosofia taoísta que considera o homem como um aspecto da natureza, dentre milhares de outros e, como tais são regidos pelas mesmas leis naturais que comandam o universo (Gomes, 1996; Zhao, 2009). O indivíduo é um microcosmo, e, portanto, é impossível a separação de uma parte do corpo, ou de um sintoma, ou de seu aspecto físico, ou de seu aspecto emocional, sem a devida consideração do todo. Segundo Zhao (2009, p.27), “cada ser humano é um corpo-mente-espírito orgânico unificado”. Da mesma forma, não se pode isolar uma doença e tratá-la sem entender de que forma ela afeta o restante do corpo. Zhao (2009) esclarece que o microcosmo humano, bem como o universo, está em constante transformação e movimento, sofrendo a ação de forças que impulsionam um elemento ao outro. Essa interação de forças opostas é conhecida como Yin e Yang. Assim, conforme Requena (1990), Yin está associado aos fenômenos materiais, sólidos, aos corpos, ao frio, ao sombrio, à contração, à lua, ao feminino, ao inverno, ao interior. Yang associa-se aos fenômenos imateriais, ao movimento, a atividade psíquica, ao calor, a luminosidade, ao verão, a expansão, ao masculino, ao sol, ao exterior. Da mesma forma, Zhao (2009) lembra que o ser humano também é uma combinação de Yin e Yang, ou seja, cada parte do corpo é descrita como predominantemente Yin ou Yang (por exemplo, nossa cabeça, por posicionar-se no alto é Yang, nossos pés, Yin) e, mais ainda, a Medicina Chinesa vê a saúde como a capacidade de manter um equilíbrio entre estes polos e a doença como um desequilíbrio entre Yin e Yang. A causa desses desequilíbrios está no movimento dinâmico do Qi dentro do corpo. O Qi é definido como força vital que move e gera a vida, sustentando o corpo, mente, coração e espírito. O Qi é a energia que estimula a atividade – a capacidade de digerir os alimentos, de se movimentar, de pensar (Zhao, 2009). O Qi flui pelo corpo por determinadas vias condutoras chamadas Meridianos. A prática médica chinesa trabalha com a harmonização do fluxo do Qi através destes caminhos - no total 12 Meridianos Principais (Kemmer, 2006). Quando o Qi não flui suavemente surge a doença. A acupuntura, uma das técnicas terapêuticas chinesas, atua sobre os Meridianos, em pontos específicos, para recuperar o equilíbrio da energia do corpo gerando saúde (Zhao, 2009). A Medicina Chinesa ensina que a Energia (Qi) e o Sanguea (Xue) estão estritamente relacionados e são inseparáveis. O Qi é fundamental para a produção de Sangue que vai nutrir todo o organismo e que, por sua vez vai gerar Qi. A união harmoniosa e constante entre Sangue e Qi é a que melhor simboliza dentro do corpo as relações de dependência e complementaridade entre o Yin e o Yang (Sangue como expressão do Yin e Qi como expressão do Yang). E essa interdependência se exprime nos conceitos de que o Qi forma, movimenta e controla o Sangue enquanto o Sangue é a Mãe do Qi. É ligada ao Sangue que a Energia Qi encontra um canal de circulação (Auteroche, Navailh, Maronnaud & Mullens, 1987; Auteroche, Solinas & Mainville, 2000; Gomes, 1996; Zhao, 2009). A interconexão de todos os órgãos do nosso corpo, através dessa dinâmica de circulação energética recebe o nome de Zang Fu. Os órgãos Yin são conhecidos como Zang, e as vísceras Yang, como Fu. Cada um dos seis órgãos Zang – Fígado, Coração, Pericárdio, Baço-Pâncreas, Pulmão e Rins – tem vísceras Fu correspondentes – Vesícula Biliar, Intestino Delgado, Triplo Aquecedor, Estômago, Intestino Grosso e Bexiga, respectivamente. Cada um desses pares de órgãos tem funções básicas, está relacionado a um órgão do sentido e também a tecidos. Dada a interdependência destes sistemas, um padrão a Para fazer a diferenciação entre a forma que a Medicina Ocidental e a Tradicional Chinesa veem determinados órgãos e líquidos corpóreos optou-se por utilizar letra maiúscula quando se trata da visão oriental que contempla além da estrutura físico-anatômica as qualidades energéticas. 81 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 79-87 de desequilíbrio em determinado órgão tem efeito profundo em todos os outros órgãos, o que, por fim, pode levar à ocorrência de doenças (Zhao, 2009). Essa sequência de fenômenos ocorre de forma contínua como uma força de transformação dentro do universo e no homem e se traduz pelos Cinco Elementos: Fogo, Terra, Metal, Água e Madeira. No homem cada processo - físico e psíquico tem relação com um desses elementos (Gomes, 1996). A Figura 1 (Adaptado de Gomes, 1996) esclarece essas relações: Madeira Zang Fu: Fígado Órgão do sentido: Olhos Tecido: Tendão, ligamentos e unhas Emoção: Raiva Sabor: Azedo Cor: Verde Estação do ano: Primavera Fogo Zang Fu: Coração Órgão do sentido: Língua Tecido: Vasos sanguíneos Emoção: Alegria Sabor: Amargo Cor: Vermelho Estação do ano: Verão o Coração, a ansiedade, o Baço, a perda ou tristeza, os Pulmões, e o medo, os Rins”. Os autores propõem exemplos elucidativos deste processo em nosso dia a dia. Quando a pessoa é muito preocupada ou rumina pensamentos, o Qi do Baço pode ficar bloqueado, o que talvez se traduza em problemas digestivos ou sangramentos excessivos durante a menstruação (Zhao, 2009). Ou quando a pessoa está triste ou não pode dar vazão à sua raiva e medo, pode reprimir os seus sentimentos prendendo a respiração, tensionando a garganta e enrijecendo os músculos Terra Zang Fu: Baço Órgão do sentido: Boca Tecido: Músculos Emoção: Preocupação Sabor: Doce Cor: Amarelo Estação do ano: Canícula Metal Zang Fu: Pulmão Órgão do sentido: Nariz Tecido: Pele Emoção: Dor e tristeza Sabor: Picante Cor: Branco Estação do ano: Outono Água Zang Fu: Rim Órgão do sentido: Ouvido Tecido: Ossos Emoção: Medo e ansiedade Sabor: Salgado Cor: Preto Estação do ano: Inverno Figura 1. Os Cinco Elementos Os órgãos e as vísceras são distribuídos, de acordo com suas funções, pelos Cinco Elementos. Dado que na Medicina Tradicional Chinesa, o corpo e a mente são inseparáveis, as diversas emoções são sentidas por todas as regiões do corpo e cada uma das emoções se identifica com um órgão e se reflete em várias outras áreas dentro deste circuito energético, imprimindo um ritmo e um sentido de circulação de energia próprio (Gomes, 1996). Quando o corpo é saudável e forte, as emoções também são sadias. Elas fluem livremente e são adequadamente expressas (Zhao, 2009). São sete emoções: a alegria, a raiva, a ansiedade, a obsessão, a tristeza e o medo. No entanto, elas são causas de doenças quando sentidas de forma excessiva por um período prolongado (Gomes, 1996; Zhao, 2009). As emoções, conforme esclarece Zhao (2009), são consideradas expressões de nosso Qi e, assim sendo, gerarão problemas se estiverem bloqueadas, se forem canalizadas ou expressas de forma inadequada. Esta sobrecarga emocional inclui a negação ou recusa em percebê-las ou aceitá-las. Para Gomes (1996), este desequilíbrio precipita a desorganização do fluxo energético, inviabilizando uma boa circulação de Qi, Sangue e outros líquidos do organismo. Nei Jing (O Clássico do Imperador Amarelo), citado por Zhao (2009, p.45), esclarece que todas as doenças surgem da perturbação do Qi: “a raiva faz subir o Qi, a alegria o abranda, o dor o dispersa, o medo o faz descer, o terror o confunde e a ansiedade o deixa estagnado. A raiva prejudica o Fígado, a alegria, abdominais. Com o tempo essas tensões musculares acabam afetando a postura, o equilíbrio e o fluxo de energia (Valins, 1999). Ainda, conforme Gomes (1996), quando a pessoa está excessivamente raivosa ela perde a razão; ou quando se sente frustrada a ponto de inibir sua ação; ou quando a pessoa está deprimida, amedrontada, impedindo-a de sentir prazer; ou excessivamente alegre fazendo com que sua concentração se disperse, entre outros. Zhao (2009) também fala de situações onde o individuo usa táticas para não lidar com emoções ameaçadoras ou medos subjacentes e acaba por expressá-las de forma inadequada. Por exemplo, quando a pessoa chora ao invés de expressar raiva ou ressentimento ou quando culpa os outros por não ouvi-la e, na verdade, deveria enfrentar suas fraquezas e se fazer ouvir. Assim, fica claro para Valins (1999), que as doenças são causadas por um desequilíbrio de energia ou por uma obstrução do fluxo de energia, e que muitas causas de doenças estão na incapacidade de expressar abertamente a dor e o ultraje, e de ter os sentimentos reconhecidos e satisfeitos. A autora ainda complementa que o bloqueio dos sentimentos simplesmente força a emoções a acharem outro modo de expressão em outra parte do corpo. Conforme Rocha (2009), esta ruptura do fluxo de energia quase sempre causado por desequilíbrios emocionais - poderá afetar o órgão ao qual está relacionado. Assim, um problema emocional negligenciado pode tornar-se um problema 82 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 79-87 fisiológico no futuro. Na mesma medida, Zhao (2009) relaciona sintomas crônicos dos indivíduos com emoções mal resolvidas. Esta relação entre o emocional, o mental e o físico é particularmente significativo em disfunções ginecológicas. Muitos dos sintomas presentes nas perturbações femininas não são físicos por natureza, tais como ataques de choro ou as explosões de raiva que, geralmente, precedem o período menstrual (Zhao, 2009). Em Medicina Chinesa, a fisiologia feminina é dominada pelo Sangue. Como o Sangue só pode circular graças à movimentação do Qi, é a abundância de Qi e Xue (Sangue), juntamente com o funcionamento balanceado e adequado dos órgãos e com uma boa circulação nos vasos é que se permite assegurar a regularidade dos ciclos menstruais, a gravidez, o parto e a lactação (Auteroche et al., 1987); Maciocia, 2000; Zhao, 2009). Da mesma forma, o estado patológico de um repercutirá obrigatoriamente no outro (Auteroche et al., 1987). A vida de uma mulher engloba uma série de ciclos de sete anos. Aos 14 anos, a menstruação começa a fluir dada uma série de fatores. Qi e Xue têm que estar fortes e robustos para fluir suavemente através dos Zang Fu e o pleno desenvolvimento da energia dos Rins permitirá que haja abundância de Sangue acumulado no Fígado que será enviado ao Útero. Os dois Canais responsáveis por comandar o ciclo feminino de sete anos devem estar funcionando adequadamente - o Vaso Concepçãob (Ren Mai) deve estar fluindo com intensidade e o Vaso Penetradorc (Chong Mai) deve receber Sangue em abundância (Gomes, 1996; Zhao, 2009). O ciclo menstrual é entendido, segundo Gomes (1996) como um crescente acúmulo de Sangue e posteriormente de Qi, que se esvaem com a descida da menstruação. Maciocia (2000) expõe as quatro fases distintas do ciclo menstrual: Primeiramente, a fase menstrual (cerca de cinco dias) na qual o Sangue está se movimentando, contando com o livre fluxo do Qi do Fígado e do Sangue do Fígado. Após, a fase pós-menstrual (cerca de sete dias) quando o Sangue e o Yin estão relativamente vazios e os Canais Chong Mai e Ren Mai estão exauridos. Segue então para a fase do meio do ciclo (cerca de sete dias) onde Sangue e Yin gradualmente enchem os Canais Chong Mai e Ren Mai e, por b Canal energético que circula pela linha média anterior do corpo, de forma superficial. Seu trajeto está intimamente relacionando com o útero e a capacidade reprodutiva. c Também chamado Mar do Sangue. Este canal não tem trajeto próprio na superfície da pele, utilizando-se de pontos e fazendo a união dos Meridianos do Estômago e dos Rins para que sua energia possa fluir. No interior do organismo ele envolve o útero e é responsável pelo Sangue que ciclicamente lá se concentra. fim, a fase pré-menstrual (cerca de sete dias) quando o Qi Yang sobe e o Qi do Fígado se movimenta como preparação do ciclo. A mobilidade do Qi do Fígado é essencial para mover o Sangue do Fígado durante o ciclo. Dentre os Zang Fu, os sistemas energéticos dos Rins, Fígado e Baço têm uma relação privilegiada com as funções fisiológicas e as manifestações patológicas femininas (Auteroche et al., 1987; Hirsch, 2003; Zhao, 2009). Para Zhao (2009), embora as disfunções ginecológicas possam ser rastreadas até qualquer Órgão, dada a inter-relação deste circuito energético conforme já mencionado, o sistema de Órgãos do Fígado e dos Rins são basicamente os responsáveis por essas alterações. Hirsch (2000) sintetiza estas interconexões da seguinte forma: Os Rins fornecem a Essência que supre o Útero com Qi e Sangue para o fluxo normal das menstruações, além de favorecer a produção de Sangue pelo Baço. Este, por sua vez, regula o Sangue, a Linfa e a circulação de ambos, e está ligado à digestão e aos seios pelo trajeto de seu canal. Já o Fígado armazena o Sangue que é enviado para o Útero para ser liberado. Auteroche et al. (1987) lembra também que com as perdas mensais do ciclo menstrual a mulher, fisiologicamente, tem mais Energia que Sangue, o que facilita o desregulamento de Qi e Xue, a desarmonia do Baço e do Estômago, o esgotamento do Fígado e dos Rins e o ataque de Chong Mai e Ren Mai. Os autores são unânimes ao afirmar que o padrão primário observado nas alterações do ciclo menstrual se refere à Estagnação do Qi do Fígado (Auteroche et al., 1987; Chenggu, 2006; Rocha, 2009; Deadman, 1995; Gomes, 1996; Hirsch, 2000; Maciocia, 2000; Valins, 1999; Zhao, 2009). O Fígado é responsável pelo movimento suave e equilibrado do Qi e do Sangue e pela armazenagem do Sangue que é liberado a pedido do organismo. Esta atividade condiciona o funcionamento normal ou patológico das menstruações (Auteroche et al., 1987; Zhao, 2009). Então, quando o Qi do Fígado está harmonizado, aberto e com livre fluxo o ciclo menstrual, a gravidez e o parto são normais, ao passo que, o distúrbio do Qi acarretará menstruações irregulares, dismenorreias, amenorreias, leucorreias, perturbações do climatério, entre outras (Auteroche et.al, 1987). Tendo em mente que o Fígado rege o movimento desobstruído do Qi pelo corpo e as emoções são manifestações de Qi, a este sistema energético cabe também regular as emoções (Zhao, 2009; Rocha, 2009). Gomes (1996) ilustra esta questão ao afirmar que o este Órgão é como um laboratório que filtra inúmeras substâncias químicas, naturais ou estranhas ao organismo e com as emoções ele tem o mesmo comportamento. 83 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 79-87 O Fígado, segundo Valins (1999), é o órgão mais temperamental e facilmente afetado pelo estresse. Assim, quaisquer distúrbios emocionais, resultado de emoções reprimidas, não expressadas ou excessivas tendem a congestionar ou bloquear o fluxo energético e há uma tentativa de se desobstruir a Estagnação do Qi do Fígado por meio de ataques de raiva ou choro. Raiva, ressentimento, aborrecimento, animosidade, frustração são emoções associadas ao Fígado e se ele está desequilibrado, estas emoções vêm de maneira mais intensa (Rocha, 2009; Zhao, 2009,). Segundo Gomes (1999), este bloqueio de circulação do Qi do Fígado é comumente traduzido pelas mulheres como uma sensação semelhante a uma ‘panela de pressão prestes a explodir’, ou ainda como ‘uma fera pronta a pular no pescoço de alguém’. A obstrução ao fluxo regular de Qi do Fígado impede a circulação do Sangue no Útero e, com o passar do tempo, pode estagnar, gerando não apenas sintomas emocionais, mas também físicos. O impacto é ainda maior no período menstrual, pois é o Fígado que realiza seu controle energético. Deve-se lembrar, de acordo com Gomes (1999), que este é o período de concentração máxima da Energia e Sangue, dentro do ciclo mensal da mulher e os acúmulos e as deficiências, se presentes, tornam-se proeminentes. Então, nesses casos, os ciclos podem se tornar irregulares, com volume ora diminuído, ora aumentado. A instabilidade emocional, inquietude, irritabilidade será acompanhada por cefaleias, seios doloridos, inchaço abdominal, enfim, toda a sintomatologia que, ocidentalmente, é conhecida como tensão pré-menstrual (Auteroche et al., 1987, Gomes, 1999; Maciocia, 2000; Zhao, 2009). A existência de um estado de bloqueio crônico de Energia do Fígado passa a ser traduzido em muitos sintomas comumente encontrados em mulheres, como a depressão, irritabilidade, síndrome pré-menstrual, dismenorreias e outras (Gomes, 1996). A estagnação prolongada do Qi do Fígado pode também dar origem ao padrão chamado Fogo do Fígado, já que o Qi estagnado pode se converter em Fogo após um longo período de tempo causando patologias mais complexas (Auteroche et al., 1987; Maciocia, 2000). Este padrão é caracterizado, de acordo com Deadman (1995) por explosões de raiva e fúria. Quando o Fogo ascende para a cabeça, poderá haver tontura, zumbido, cefaleia e dor no pescoço. Se esse Calor entrar no Sangue (o Fígado armazena o Sangue) haverá sinais de sangramento irregular, com antecipação, grande volume ou prolongamento da menstruação (Deadman, 1995; Maciocia, 2000). Nestes casos, Hirsch (2003) propõe que as terapias de ordem mental são indicadas para chegar à raiz do problema. A estase do Sangue do Fígado, desenvolvida a partir da estagnação do Qi do Fígado causa ciclos com dor, sangue escuro e coágulos também escuros (Maciocia, 2000) e pode levar à infertilidade, segundo Zhao (2009). A autora também enfatiza que as disfunções menstruais, quando não tratadas, além de causar problemas durante os anos reprodutivos da mulher, podem afetá-la na menopausa. Fica claro então que quando se trata de ciclo menstrual, o mais importante para a saúde da mulher é a forma como elas se relacionam com as emoções. Suas diversas expressões são causas poderosas que geram desequilíbrios no corpo e, de maneira mais estrita, tem impacto direto na saúde menstrual (Zhao, 2009). A tradição chinesa sempre promoveu a ideia sobre a interação existente entre o ciclo menstrual anormal e os sentimentos (Deadman, 1995; Gomes, 1999; Maciocia, 2000; Zhao, 2009). A espontaneidade emocional é uma pré-condição para o livre fluxo da função do Fígado (Deadman, 1995). Os autores citam como desequilíbrios emocionais geradores de bloqueios ou alterações da circulação do Qi os sentimentos de perda ou de culpa; estresse adaptativo em relação a situações novas; raiva, ressentimento ou frustração reprimida, com consequente aparecimento de sintomas depressivos; tristeza; e rancores direcionados para si próprio e para os outros (Deadman, 1995; Gomes, 1999; Maciocia, 2000; Zhao, 2009). Conforme mencionado anteriormente, devido à dependência mútua entre todos os Órgãos - a raiva que fere o Fígado, o medo que machuca os Rins, a alegria exagerada que estressa o Coração, a ansiedade que prejudica o Baço ou a tristeza que causa danos ao Pulmão – com o passar do tempo tais emoções produzem, um desequilíbrio nos demais Órgãos, gerando outras doenças (Zhao, 2009). Assim, segundo a autora, é de extrema importância entender como manejar aspectos emocionais, físicos e mentais, pois equilibrá-los tem grande influência sobre a saúde íntima da mulher e seu bem estar geral. Para Deadman (1995) e Rocha (2009), alegria, raiva, culpa, medo são comuns a todos, fazem parte do dia-adia e são intrínsecas a personalidade de cada individuo. No entanto, a falha está em não dar chance à vazão estas emoções reprimindo-as. Uma das maneiras indicadas por Deadman (1995) é o reconhecimento e a expressão destes sentimentos num estágio mais precoce, buscando sempre um equilíbrio entre a passividade excessiva e a transformação desses sentimentos em agressividade, reencontrando, segundo Rocha (2009) o seu “eixo” ou o seu centro novamente. Zhao (2009) complementa e afirma que entrar em contato 84 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 79-87 com os sentimentos, reexaminá-los, perceber as preocupações diárias, determinar a importância de cada uma delas, confiar nos sinais que o corpo expressa a cada ciclo são meios possíveis para retomar o equilíbrio em todos os aspectos da vida. E assim, segundo Gomes (1996), abrir os caminhos para que a Energia e, como consequência, as emoções encontrem um canal de circulação. Os Rins são outro sistema que, quando em desequilíbrio, causa os sintomas relacionados à tensão pré-menstrual (Zhao, 2009). Os Rins armazenam a Essência, considerada a matéria base para a formação do Sangue e é a origem para a formação de Tian Gui (substância material do Sangue menstrual). A menstruação também é chamada Água Celestial. O Tian Gui é encontrado em homens e mulheres: nos homens, ele forma esperma e, nas mulheres, sangue menstrual (Maciocia, 2000). Assim, a Essência do Rim, que origina a Água Celestial influencia de modo marcante a fisiologia das mulheres, especialmente na puberdade, fertilidade, concepção, gravidez e menopausa (Maciocia, 2000; Zhao, 2009). Quando o Qi dos Rins está florescente, a Essência e o Sangue são suficientes, a circulação nos Canais Ren Mai e Chong Mai é normal e o ciclo menstrual se produz no devido tempo. Se o Qi dos Rins for insuficiente ou então se o Yin ou o Yang dos Rins estiverem enfraquecidos, pode se instalar um desequilíbrio e as doenças ginecológicas podem surgir (Auteroche et al., 1987). De acordo com os autores acima o enfraquecimento do Qi do Rim e o consequente empobrecimento do Sangue suscitam perturbações nas menstruações, amenorreias, dismenorreias, metrorragias, leucorreias, abortos, etc. Zhao (2009) complementa e afirma que a Deficiência do Qi do Rim manifesta-se na forma de medos de longa duração, retenção de líquidos no período pré-menstrual, inchaço na região baixa do abdome, dores nas costas, diminuição da libido e infecções no trato urinário, todos os sintomas relacionados ao período menstrual. Já as mulheres que apresentam Deficiência do Qi do Rim e do Baço-Pâncreas tendem a manifestar sintomas preponderantes de inchaço nos olhos e tornozelos, desconforto torácico e epigástrico, pouco apetite, lombalgia e fraqueza nas pernas e nos joelhos, que começam antes da menstruação e podem se estender até após seu término. Essas mulheres apresentam uma deficiência habitual da energia Yang, que promove o movimento e eliminação de líquidos corporais dentro do organismo. Como durante o período pré-menstrual, essa carga energética é muito requisitada, os sintomas acabam se sobressaindo (Gomes, 1999). Percebe-se, conforme ressalta Zhao (2009), que as redes de Órgãos do Fígado e dos Rins são basicamente as responsáveis pelas perturbações menstruais. O Fígado armazena o Sangue que é enviado para o Útero e, então, liberado, e os Rins fornecem a Essência que é necessária para suprir o Útero com Sangue e Qi para o fluxo normal da menstruação. É importante lembrar que, segundo Gomes (1999), com as perdas mensais de Sangue faz-se necessário sua renovação regular através da alimentação. O Baço fabrica o Sangue que, então, é armazenado no Fígado. Desse modo, embora o Fígado tenha influência primordial na função menstrual, seu Sangue é fabricado pelo Baço (Auteroche et al., 1987; Maciocia, 2000). Assim, segundo Maciocia (2000), qualquer deficiência do Sangue do Fígado em mulheres, geralmente indica que o Baço também está deficiente e precisa ser tonificado Quando uma Deficiência de Qi do Baço leva a uma Deficiência de Sangue, a periodicidade e regularidade menstruais podem ser alteradas, se apresentando com uma menstruação de pouca quantidade, prolongada e com sangue pálido, que com o tempo pode evoluir para a amenorreia (Gomes, 1999), além de trazer problemas de insônia (Zhao, 2009). A origem da Deficiência do Baço pode estar no erro alimentar, bem como no excesso de preocupação (Gomes, 1999). Zhao (2009) complementa ao afirmar que a ingestão de alimentos gelados ou crus pode roubar as energias do Baço e desvitalizálo. Assim este Órgão fica impossibilitado de cumprir seu papel, que é conter o sangue dentro das paredes dos vasos (Auteroche et al., 1987; Maciocia, 2000; Zhao, 2009). Quando ocorre um desequilíbrio no Baço aparecem sangramentos intensos, enjoos, espasmos musculares ou um desejo intenso de comer doces. Se esta deficiência ocorre por períodos prolongados pode gerar acúmulo de Frio e Umidade causando dores articulares, além de agravar os sintomas de inchaço, as cólicas e o desconforto. Uma Deficiência de Qi do Baço também pode provocar mãos e pés frios, diarreia e problemas digestivos (Zhao, 2009). De modo sintético, Maciocia (2000) esclarece que a Deficiência de Qi do Baço não é causa direta de problemas ginecológicos, mas está diretamente envolvido com estas perturbações já que o Qi do Baço tem origem no Qi e no Sangue. Além disso, este Órgão lida com a Umidade, importante fator patológico em problemas femininos. E, por último, o Qi deficiente do Baço, ao falhar em manter o Sangue nos vasos, pode causar menorragia. Após a explanação de todas essas formas de desequilíbrio que resultam em grande número de perturbações do ciclo menstrual, convém conceder alguma atenção aos métodos terapêuticos utilizados para a retomada da harmonia entre os 85 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 79-87 Sistemas e restabelecimento da saúde da mulher. Gomes (1999) salienta que a associação de uma ou mais formas terapêuticas, quando dentro de um mesmo princípio, tem efeito sinérgico que só trará benefícios. Auteroche et al. (1987) propõem a utilização de métodos terapêuticos gerais, seguindo a metodologia clássica da Medicina Chinesa, da seguinte forma: primeiramente regularizar o Qi e o Sangue, já que em ginecologia, as doenças são essencialmente enfermidades do Sangue e do Qi, dado o seu caráter inseparável; harmonizar Baço e Estômago que possuem papel importante na transformação do alimento em Sangue. Para o autor, quando a opressão dos sentimentos suscita em desequilíbrio deste Zang Fu, estes se tornam incapazes de receber, decompor, transformar o Qi e tirar o suco para produzir o Sangue. Colocar este sistema energético em harmonia equivale a regularizar o Qi e o Sangue; e, por fim, alimentar o Fígado e os Rins – O Fígado armazena o Sangue. Essa função combinada com o controle que este Órgão exerce no baixo-ventre faz dele o órgão mais importante em se tratando de sexualidade e ciclo menstrual. O enfraquecimento do Fígado afetará os Rins. Inversamente, os desequilíbrios do Fígado e dos Rins poderão suscitar uma insuficiência de Chong Mai e Ren Mai. Assim, tratando o Fígado e os Rins, os canais Chong Mai e Ren Mai também serão harmonizados. De forma sintética, os principais pontos de acupuntura propostos pelos autores (Auteroche et al., 1987; Deadman,1995; Maciocia, 2000) para o tratamento dos distúrbios menstruais são: pontos para tonificar e preencher o Qi do Rim (VC4, B23, B52, R2, R3, R7 e R13); pontos para eliminar a estagnação do Qi do Fígado (F3, F2, F13, PC6, VB34, VB40, BP6, BP8, TA6) e; pontos para reforçar o Baço (BP6, BP7, E29, E36, E43, VC12, B20, B21, VC4). Levando-se em conta que a orientação terapêutica não é restrita a um único método podendo compreender múltiplas abordagens algumas recomendações podem ser dadas no sentido de estimular e resgatar energeticamente as deficiências apresentadas (Gomes, 1999). Para a mulher, segundo Zhao (2009), a forma básica de cuidar de sua saúde consiste em lidar com os problemas emocionais, entrando em contato com os seus sentimentos e descobrindo maneiras de expressá-los de forma construtiva. Orienta a busca de profissionais, familiares ou amigos para compartilhar os problemas, o que auxilia na identificação dos fatores de estresse, da intensidade das reações diante destes eventos e o entendimento do significado que é dado a eles. Outras medidas de autocuidados devem ser incluídas na rotina diária. A adoção de novos hábitos alimentares é uma delas (Gomes, 1999; Hirsch, 2003; Maciocia, 2000; Zhao, 2009). Evitar a ingestão de grandes quantidades de café, álcool, carne vermelha e comidas apimentadas que agridem o Fígado, além de frituras e doces em excesso que afetam o movimento livre tanto do Qi do Fígado quanto do Qi do Baço (Gomes, 1999; Hirsch, 2003; Zhao, 2009). No período menstrual também evitar alimentos e líquidos gelados e comidas cruas que fazem com que o Baço trabalhe em ritmo mais lento, levando a um quadro de Deficiência. Para promover a recuperação do Sangue perdido durante a menstruação alimentos como espinafre, couve, peixe, ovos possuem propriedades de fortalecimento do Sangue (Zhao, 2009). Outra maneira eficaz de dar suporte ao Qi é a prática das antigas artes chinesas do Qi Gong e Tai Chi, pois combinam meditação com movimentos e respiração, recuperando assim o fluxo de Qi e Sangue ao longo dos Meridianos e restabelecendo a harmonia nos Zang Fu e no corpo como um todo (Zhao, 2009). Também são indicados os exercícios físicos moderados, meditação, Ioga e a consciência do ritmo respiratório. Vale também tornar-se presente e atenta ao próprio corpo (Valins, 1999). Todas objetivando aliviar as tensões físicas e mentais e, através do relaxamento, proporcionar o movimento suave do Qi pelo corpo. Considerações finais O estudo das questões da mulher à luz da Medicina Chinesa evidencia duas contribuições fundamentais para o entendimento das questões de saúde e doença. Primeiramente, a proposição de que mente e corpo são inseparáveis, e assim, as alterações emocionais repercutirão em todo o sistema de Órgãos, e vice-versa. O entendimento fundamental é que tanto o físico como o psíquico adoecem juntos, não sendo possível uma visão de causalidade ou de “compartimentalização” do indivíduo: ao contrário, preconiza o envolvimento de múltiplas relações de variáveis. O tratamento passa, então, a depender do entendimento de toda essa rede energética que ao reequilibrarse novamente, proporcionará a retomada de seu bem-estar geral. Além disso, a Medicina Tradicional Chinesa utiliza um enfoque colaborativo. Ora, se o pensamento oriental esclarece que a doença decorre do desequilíbrio do organismo, através da exposição a fatores internos como conflitos e dificuldades emocionais, traumas, alimentação inadequada, estilo de vida estressante, atividade física inadequada ou sua ausência, além de exposição a fatores climáticos, ele também propõe que o indivíduo assuma a responsabilidade por esse restabelecimento, 86 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 79-87 administrando com inteligência as emoções dissonantes da vida diária e adotando comportamentos mais harmônicos e positivos. Propõe-se então em deslocar das mãos do profissional ou terapeuta para o próprio indivíduo a opção de tornar-se o principal instrumento de sua própria cura. O trabalho das emoções é particularmente importante para a mulher e é evidenciado ao longo deste estudo, pois se faz unânime nos textos chineses as inter-relações entre a forma de se lidar com as emoções, as alterações do sistema energético do Fígado, órgão que rege as emoções, e a consequente perturbação da saúde íntima da mulher. Ao se pensar no quanto a mulher atualmente está exposta a um estilo de vida atribulado e estressante, com diversas exigências, cada vez mais desatenta aos sinais que seu corpo manifesta, fica mais claro o entendimento da causa pela qual os sintomas ou tensões pré-menstruais e as disfunções do ciclo vem se exacerbando e se tornando uma constante no diaa-dia, sendo considerado por alguns autores questão de saúde pública. Foi possível perceber também que há dificuldade em se encontrar estudos ocidentais que discutam a conexão entre os aspectos emocionais e suas repercussões nos problemas ginecológicos. Alguns artigos somente relacionam eventos estressantes com episódios de perturbação menstrual. Novos estudos que possam favorecer o enfoque preventivo, não apenas curativo, também se fazem necessários. Por fim, ressalta-se a ideia de que o conhecimento de si, do seu corpo feminino e de seus sentimentos, os cuidados com a alimentação, e com a atividade física, são as melhores estratégias de cuidados para sanar problemas menstruais, e resgatar o bem-estar. Referências Auteroche, B., Navailh, P., Maronnaud, P., & Mullens, E. (1987). Acupuntura em Ginecologia e Obstetrícia. São Paulo: Andrei Editora. Auteroche, B., Solinas, H., & Mainville, L. (2000). Atlas de Acupuntura Chinesa – Meridianos e colaterais. São Paulo: Andrei Editora. Carvalho, V. C. P. (2009). Repercussões do Transtorno Disfórico PréMenstrual entre universitárias. Revista de Psiquiatria, 31(2), 105111. Chenggu, Y. (2006). Tratamento das doenças mentais por Acupuntura e Moxabustão. São Paulo: Roca. 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A terceira apresenta os princípios da escola promotora da saúde e a quarta discute o bulling, a discriminação e a violência, e reflete sobre a importância da escola estimular o desenvolvimento de habilidades pessoais necessárias ao mundo de relações. Para que o ambiente escolar seja potencializador do ser saudável, é necessário que suas ações se desenvolvam na direção da vigilância e promoção da saúde e no desenvolvimento de habilidades pessoais, familiares e comunitárias. Palavras-chave: Escola promotora da saúde; Habilidades de vida; Saúde do escolar Abstract: This paper aims to reflect upon the skills development for life as a basal strategy for health promoting. The text is structured in four sections. First, health promotion and the need to work under the interdisciplinary perspective are discussed as well as the challenge of the construction of a healthy society. Second, point questions related to the youth in jeopardy. Third, the principles of the health promoting school are presented. Fourth, bullying, discrimination and violence are discussed in a way to rethink the school as a strengthening place one for the development of personal skills, necessary for the relationship world. Finally, in order the school environment is strengthening of the healthy being, it is necessary that its actions are developed towards health surveillance and promotion, as well as the development of personal, family, and community skills. Key words: Health promoting school; Life skills; School children health a Doutora em Educação pela PUCRS; Professora do Curso de Enfermagem e Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Área da Saúde. Universidade Luterana do Brasil. *E-mail: [email protected] b Doutora em clínica médica: epidemiologia pela UFRGS; Professora do Curso de Medicina e Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Universidade Luterana do Brasil. c Doutora em Psicologia pela PUCRS; Professora do Curso de Psicologia e Pós-Graduação em Saúde Coletiva - Universidade Luterana do Brasil. Departamento de Psicologia - Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 88 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 88-95 O significado da promoção da saúde foi ampliado em 1986, e passou a considerar que aspectos políticos, sociais, culturais, históricos e econômicos influenciam na vida das pessoas. Além disso, passou a reforçar a necessidade de o indivíduo assumir a responsabilidade pela sua própria vida, desenvolvendo autonomia e se apropriando das questões que podem influenciar a saúde e a doença. Nesse sentido, torna-se necessário investir em capacitação das pessoas para que elas possam aumentar seu poder de decisão sobre as questões que afetam a sua vida. Assim, o objetivo deste artigo é refletir sobre o desenvolvimento de habilidades para a vida como uma estratégia fundamental de promoção da saúde. O texto está estruturado em quatro momentos. No primeiro discute a promoção da saúde e a necessidade do trabalho interdisciplinar. No segundo, aponta as questões relacionadas à juventude em risco. No terceiro discute os princípios da escola promotora da saúde e, no quarto, repensa o espaço escolar como potencializador para o desenvolvimento de habilidades pessoais necessárias ao mundo de relações. A promoção da saúde A I Conferência Internacional de Promoção de Saúde, realizada em 1986, ampliou o significado da promoção para uma visão que considera a influência dos aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais sobre as condições de vida e saúde. Nesta perspectiva, saúde é compreendida como qualidade de vida, determinando que os problemas sejam enfrentados a partir de ações intersetoriais, visto que extrapolam a responsabilidade exclusiva do setor saúde. A partir deste momento, promoção da saúde passou a ser vista como uma estratégia mediadora entre pessoas e ambiente, visando a aumentar a participação dos sujeitos e da coletividade na modificação dos determinantes do processo saúde-doença, como emprego, renda, educação, cultura, lazer e hábitos de vida. Assim, busca proporcionar aos indivíduos e aos grupos populacionais os recursos necessários para melhorar sua saúde, cabendo ao Estado reduzir as diferenças, assegurar a igualdade de oportunidades e promover os meios que permitam desenvolver um melhor controle sobre si próprio e sua saúde. Além da redefinição do conceito de saúde, a promoção da saúde passou a significar a capacitação da população para a sua responsabilização na melhoria de sua qualidade de vida e saúde, incluindo maior participação e controle desse processo (WHO, 1986). Assim, promover a saúde significa assegurar igualdade de oportunidades e proporcionar os meios necessários para que as pessoas possam realizar seu potencial de saúde, conhecendo e incidindo sobre os fatores determinantes de sua saúde e doença (Buss, 2003). Esses determinantes são os fatores sociais, culturais, econômicos, raciais, étnicos, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência dos problemas de saúde e que expressam as condições de vida e trabalho dos indivíduos e dos grupos populacionais e sua influencia sobre a situação de saúde (Buss, 2007). Em Ottawa, as discussões apontaram cinco campos de ação da Promoção da Saúde: criação de ambientes saudáveis; estabelecimento de políticas públicas saudáveis; desenvolvimento de habilidades pessoais; fortalecimento da participação popular e reorganização dos serviços de saúde. Reorientar as práticas de saúde permite a interação saúde, ambiente e desenvolvimento sustentável, o que aparece explicitado no Pacto da Saúde (Ministério da Saúde, 2006). Entretanto, esses somente poderão se concretizar se os indivíduos se corresponsabilizarem pela execução e implementação de cada uma das ações desenvolvidas. Nesse sentido, os trabalhadores da saúde serão facilitadores da organização dos grupos populacionais na defesa de seus interesses e disseminadores das informações necessárias para potencializar a sua saúde (Gentile, 2001). Numa visão interdisciplinar, a promoção da saúde deve apontar para a necessidade da melhoria das condições de vida da população e para o reconhecimento do direito de cidadania e de participação popular (Silva & Araújo, 2007). Essa mudança de conceito se foca em indicadores e condições que promovem e facilitam o bem-estar dos cidadãos (Snyder, 2002), tendo como propósito a construção de condições positivas que assegurem a presença de níveis satisfatórios de bem-estar nas dimensões física, social e psicológica da existência humana (Seligman & Csikszentmihalyi, 2000). Para que seja possível efetivar essa prática, é preciso reforçar as relações positivas que se concretizam no contato do indivíduo com os outros (Keyes, Shmotkin & Ryff, 2002), com a própria equipe e com os recursos sociais disponíveis no momento (Veenhoven, 1994). Assim, a saúde está ligada a cinco âmbitos da vida social: 1) integração social ou sentimento de pertença; 2) aceitação social ou confiança em si e nos outros; 3) contribuição social ou autoeficácia; 4) atualização social ou confiança no futuro da sociedade e em sua capacidade para criar bem-estar; e 5) coerência social ou sentimento de que a vida e o mundo têm sentido e estão dotados de coerência (Blanco & Diaz, 2006). A utilização deste conceito visa extrapolar o empobrecimento que traz o foco na doença e restaurar os valores mais amplos da vida em toda sua plenitude (Camargo Jr, 2007). Tais aspectos, relacionados à inserção da pessoa no contexto social sob a forma de acolhimento, permitem um viver mais saudável. Nesse sentido, uma sociedade mais acolhedora, 89 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 88-95 que permita a expressão individual e proporcione maior apoio social, é determinante para o desenvolvimento de habilidades para a vida (Blanco & Diaz, 2006). Dessa forma, a atuação interdisciplinar pode contribuir para a promoção de uma melhor qualidade de vida com a estimulação do processo democrático a ser utilizada como ferramenta para o desenvolvimento dessas habilidades (Cordeiro, 2008). O desenvolvimento de habilidades para a vida (OPAS, 2001) consiste em uma estratégia educativa que investe nas relações humanas. A Organização Panamericana de Saúde (OPAS) enfoca neste campo a população adolescente, pois considera que a aquisição de hábitos saudáveis na infância e adolescência tem potencial preditor de um estilo de vida saudável na vida adulta. Além disso, as mudanças sociais ocorridas desde o final dos anos 80, como o aumento do consumo de drogas ilícitas e das doenças de transmissão sexual; o elevado número de acidentes de trânsito e o aumento da violência, fizeram com que novos fatores que afetam a saúde fossem contemplados (Pastor, Balaguer & Garcia-Meritá, 1999). No cerne desses problemas de saúde encontram-se as dificuldades dos jovens em fazer frente a seu dia-a-dia devido à falta de uma educação contextualizada. Essas habilidades são uma estratégia de ampliação do contato social e, portanto, de saúde, já que reforçam as capacidades necessárias para o desenvolvimento humano possibilitando, efetivamente, o enfrentamento das demandas da vida. Para crianças e adolescentes essas habilidades podem ser definidas, de forma genérica, como: 1) habilidades sociais e interpessoais (incluindo comunicação, habilidade de dizer não, manejo da agressividade e incremento da empatia); 2) habilidades cognitivas (incluindo a tomada de decisões, pensamento crítico e auto-avaliação); e 3) habilidades para o manejo de emoções (incluindo o estresse e o aumento interno de um centro de controle) (OPAS, 2001). Nesse sentido, a promoção da saúde deve estar articulada a um conjunto de valores éticos, como vida, solidariedade, eqüidade e cidadania e a uma série de estratégias que combinam a atuação do estado, da comunidade, dos indivíduos, do sistema de saúde e da parceria intersetorial (Buss, 1998; Buss, 2003). Para tanto, é necessária a ação coordenada desses setores da sociedade (Keyes et al., 2002) para que os projetos de intervenção sobre a realidade estejam orientados pela visão positiva de saúde (Fracolli & Bertolozzi, 2003). Promover a saúde depende de aspectos individuais e sociais. Ao indivíduo, cabe apoderar-se de sua vida e das informações que podem melhorar a sua saúde e escolher o que é melhor para si. Ao estado, cabe desenvolver políticas públicas capazes de melhorar as condições sociais. Dentre elas, destacam-se a educação, habitação, trabalho e salário digno, devido à sua influência na modificação de estilos de vida. No entanto, é difícil transformar as cidades em lugares melhores para se viver e a maneira dos indivíduos viverem as suas vidas, pois faltam, na sociedade brasileira, estratégias educativas acessíveis a todos (Verdi & Caponi, 2005). É preciso, portanto, investimento em políticas intersetoriais capazes de atingir os amplos setores da sociedade. Dentre eles, destacam-se os projetos que incidam positivamente na qualidade de vida da população. Para tanto, necessita-se de uma abordagem interdisciplinar e intersetorial que proporcione o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos para que possam escolher o que é melhor para suas vidas. Essa abordagem extrapola a esfera do próprio governo. É uma ação articuladora de diversos setores que se complementam e interagem (Wimmer & Figueiredo, 2006). Por isso, deve ser assumida como tarefa de todos, pois os governos sozinhos são incapazes de responderem pelas demandas sociais que implicam ter saúde. Contudo, o poder executivo municipal é responsável pela construção de uma cidade saudável, devendo o setor saúde desencadear a discussão e a inclusão dos outros setores. A viabilidade de um projeto intersetorial passa por um novo olhar sobre a realidade, definindo problemas prioritários e os compromissos dos diversos setores (Buss, 1998; Dalmaso & Nemes Filho, 2001). Deve ser entendida como a capacidade de articular os diversos setores que interferem na saúde das pessoas, pois é essa atuação articulada que é capaz de efetivar mudanças mais profundas no setor saúde (Paula, Palha & Protti, 2004). A juventude em risco As organizações mundiais previram que, no ano de 2010, haveria mais adolescentes vivendo no mundo, com idades entre 10 e 19 anos, do que em qualquer outro momento da história, especialmente na América Central e América Latina (Brasil, 2008; Góes, 2006; Moreira, 2002). Esses jovens são as maiores vítimas de doenças e agravos não transmissíveis (DANTs), sendo que, no Brasil, o número de jovens que morrem vítimas de violência urbana (sendo também os perpetradores), representa uma perda equivalente a um período de guerra (Soares, 2004). Essa situação é determinada pelo consumo e tráfico de drogas, pela violência no trânsito e outros confrontos violentos aparentemente motivados por descontrole emocional e dificuldades em considerar o custo-benefício das ações. A violência na escola também tem sido objeto de preocupação já que está cada vez mais frequente o relato dessa ocorrência no 90 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 88-95 ambiente escolar. Assim, faz-se necessário o investimento em estratégias governamentais, comunitárias e familiares para o desenvolvimento humano dessa geração (Mangrulkar; Whitman & Posner, 2001). A população jovem tem sido alvo de preocupação do Ministério da Saúde e das Organizações de Saúde do mundo inteiro, sendo considerada como grupo prioritário para o desenvolvimento de ações de promoção da saúde. Além de outros setores que devem estar envolvidos, a saúde e a educação devem ser pensadas de forma integrada, pois são dois setores que podem estar acolhendo os jovens e atuando na perspectiva de melhoria da qualidade de vida desse grupo. Em função disso, em maio de 2001, foi assinada uma portaria interministerial que elaborou os Parâmetros Curriculares Nacionais em Ação (Buss, 1998). Esses apontam para a construção de uma nova cultura na qual a saúde e a educação trabalhem com temas transversais - pluralidade cultural, ética, orientação sexual, cidadania, meio ambiente, trabalho, consumo – a partir de situações concretas vivenciadas no cotidiano das populações. O conhecimento deve ser tratado como algo que é construído pelo aluno, fruto da interação e cooperação entre sujeitos que são diferentes (OPAS, 2003). O trabalho institucional deve ser planejado a partir das especificidades locais, regionais e culturais e a escola promotora da saúde deve ser pensada a partir da articulação desses conteúdos com o desenvolvimento de habilidades pessoais e com a criação de um ambiente escolar mais saudável. A escola promotora da saúde Na perspectiva da promoção da saúde, a escola deve ser vista como um ambiente protetor da saúde, pois congrega crianças e adolescentes (WHO, 1986; OPAS, 2003). Em função disso, a OPAS elegeu a promoção da saúde na escola como prioridade (OPAS, 2003), adotando princípios e práticas que incidam no cotidiano do corpo docente e discente; de funcionários e direção, e contribuam para uma vida pessoal mais potente, fraterna e solidária de todos os envolvidos. As estratégias de saúde escolar devem estimular a flexibilização dos currículos escolares e criar espaços institucionais para o planejamento integrado da educação e da saúde com enfoque integral e participativo (OPAS, 2003). As discussões sobre a promoção e educação em saúde nas escolas poderão incluir a operacionalização de programas que promovam a melhoria da qualidade de vida. Devem fortalecer a capacidade individual e social para fazer o enfrentamento dos condicionantes da saúde (Moura, Lourinho, Valdês, Frota & Catrib, 2007); e ter uma visão integral do ser humano, considerando as pessoas dentro dos seus ambientes familiares, comunitários e sociais. Com isso, promovem autonomia, criatividade, participação de alunos, professores e funcionários nas discussões sobre a escola e o ambiente escolar (Goulart, 2006). Por ser uma instituição em que o ser humano passa longa e importante etapa de sua vida, a escola pode contribuir para a construção de valores pessoais e dos significados atribuídos a objetos e situações, entre eles a saúde. Nesse sentido, é importante que desenvolva um processo dialógico, problematizador e inclusivo, no qual o aluno possa construir consciência crítica sobre si próprio e seu estar no mundo. É nesse espaço que se desenvolvem valores pessoais, crenças, conceitos e maneiras de conhecer e viver a vida; o que contribui para a saúde ou a doença, na medida em que atua na inclusão ou na exclusão social (Aerts, Alves, La Salvia & Abegg, 2004). A escola deve estar voltada para a busca de uma educação integral, desenvolvendo habilidades pessoais que contribuam para a criação e manutenção de ambientes saudáveis e protetores. As ações devem reduzir a exposição a fatores de risco de DANTS e a reforçar fatores de proteção relacionados ao estilo de vida, integrando e estimulando o fortalecimento das relações homem/ambiente (Moura et al., 2007). O objetivo é contribuir para uma melhor saúde e bem estar, reforçando a capacidade dos indivíduos e comunidades para o enfrentamento das situações de vida (Cardoso, Reis & Lervolino, 2008). Fundamental é a inserção da escola em projetos de promoção da saúde; na proteção do meio ambiente; e na conservação de recursos naturais, pois na medida em que o homem passa a enxergar suas relações com o mundo, ele assume um novo papel na sociedade, passando de objeto manipulável a ser um sujeito mais crítico (Freire, 1980). O sentido do aprendizado ocorre quando os conteúdos escolares estão a serviço da vida e do bem viver; e valorizam os processos afetivos e intelectuais e a participação da comunidade escolar na seleção dos temas a serem trabalhados em sala de aula (Brasil, 2002). É preciso que os professores estimulem a curiosidade dos alunos, a discussão de temas atuais e o reforço de habilidades que incentivem a autonomia, criatividade e a curiosidade dos alunos, sendo essa considerada a chave mestra para o aprendizado, a potência que faz com que o aluno tenha o desejo de aprender (Alves, 2003). A educação em saúde nas escolas pode auxiliar os indivíduos a pensarem formas de viver que os protejam, discutindo comportamentos e criando espaços de reflexão sobre hábitos saudáveis de vida (Gomes, 2009). Para isso, é importante que 91 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 88-95 a escola desenvolva habilidades para o bem viver, passando a contribuir para a prevenção de comportamentos de risco, promovendo e estimulando a autonomia e a corresponsabilidade dos jovens, professores, funcionários, direção e famílias (Moura et al., 2007). O processo de fortalecer aptidões, capacidades e competências deve ser permanente com vistas ao desenvolvimento de habilidades para que os jovens aprendam a viver a sua vida com mais apropriação e possibilidades de escolhas (Gomes, 2009; Moura et al., 2007). É importante também educar para a formação e a participação cívica de alunos e alunas, desenvolvendo competências e habilidades que sustentem as aprendizagens durante a vida e promovam a capacidade de fazer escolhas mais conscientes na perspectiva de uma vida mais saudável. Para isso, deve reforçar os laços de afeto com as pessoas e seu meio; a participação e a responsabilização de toda a comunidade escolar, proporcionando espaços de debate e estimulando a necessidade de conviver com as diferenças (Portugal, 2006). Isso possibilita o desenvolvimento de uma cultura da paz, o que contribui favoravelmente para a diminuição da violência. Nesse sentido, dentre os desafios, encontram-se o ensino de habilidades para a vida, a instrumentalização dos professores para atuarem nessa perspectiva, a vigilância das práticas de risco e o monitoramento das ações e programas já existentes (Cerqueira, 2007). O desenvolvimento de habilidades para a vida: a escola como espaço potencializador da saúde A escola é um espaço privilegiado de articulação entre os conteúdos científicos e a vida de cada um, fundamental para a saúde dos escolares. Nesse sentido, a sala de aula deve ser um espaço dinâmico, de vida, de relações interativas, no qual o prazer, a criatividade e o desenvolvimento da autonomia necessitam estar presentes. Assim, estará contribuindo para desenvolver habilidades para uma vida mais saudável, já que é na convivência com outros humanos que as pessoas aprendem a manejar suas emoções e a interagir com as diferenças. Essa escola auxilia na permanência de seus alunos no ambiente escolar. É a partir do lúdico e da articulação da teoria com a prática que os alunos podem desenvolver a inteligência, aprender a sonhar e a desejar uma vida melhor (Alves, 2003). Com isso, são preparados para serem capazes de cuidar bem de si, adotando um estilo saudável (Gomes, 2009). Longe de ser um lugar de produção e socialização de conhecimentos, no qual se desenvolvem habilidades, atitudes e conhecimentos, a escola passou a ser um espaço de conflito, ameaça e violência. Muitas atividades escolares são de caráter competitivo, nas quais os melhores são premiados. Ao invés de proporcionarem a integração, podem exacerbar a rivalidade e a desqualificação do outro, diminuindo a autoestima dos sujeitos, já que a competição produz sérias implicações no ambiente escolar. Isso ocorre em função de que apenas um é o vencedor, restando aos outros a frustração, o desapontamento e, muitas vezes, a humilhação. Este contexto potencializa o desrespeito e contribui para o surgimento do bullying (Portugal, 2006). Para que os alunos tornem-se menos violentos, é preciso abandonar essas práticas (Portugal, 2006). No entanto, a comunidade escolar, muitas vezes, não se vê responsável pelo que acontece no ambiente escolar e percebe a violência como um fenômeno externo que invade os contextos de vida. Essas atitudes podem ser evitadas se forem desenvolvidas ações conjuntas entre o setor saúde e o setor educação (Neto, 2005) que discutam atitudes, conhecimentos e habilidades que favoreçam o crescimento, desenvolvimento e o bem-estar dos alunos e auxiliem na prevenção de estilos de vida desfavoráveis à saúde (Gomes, 2009). O comportamento violento é resultado da interação entre o desenvolvimento individual e as relações e contextos sociais: escola, família, círculo de amigos (Neto, 2005). Na sociedade brasileira é preciso falar de um quadro de violência estrutural, que perpassa os mais diversos âmbitos da vida cotidiana. Atualmente, vem sendo massivamente perpetrada por crianças e adolescentes que foram esquecidos, excluídos e, invariavelmente, pouco educados para lidarem consigo próprio e para contribuirem com o desenvolvimento de uma cultura da paz. Há que se fazer um investimento nessa perspectiva, pois se a violência é gerada a partir dos sentimentos de homens e mulheres, é a partir desses que devem ser erguidas as defesas da paz. Esse movimento deve estimular sentimentos de amor, solidariedade, fraternidade e generosidade e se expandir para toda a humanidade. Para se começar essa mudança, é preciso que o homem entre em contato consigo, criando harmonia entre seu corpo, seu coração e seu espírito e que se entre em paz com o meio ambiente. Essa é uma aprendizagem relacionada ao ato de viver (Weil, 1993). Para contribuir com essa cultura, a escola deve desenvolver habilidades para a vida de relação e despertar nos jovens o desejo de aprender e de construírem seus projetos de vida. Para tanto, é necessário o envolvimento de todos: do estado, desenvolvendo políticas públicas promotoras da saúde; 92 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 88-95 da comunidade escolar, discutindo o problema e formas de enfrentá-lo; dos professores, possibilitando uma sala de aula mais saudável, criativa e cooperativa e ter isso como parte dos compromissos da escola. Habilidades para a vida são capacidades que se desenvolvem com um comportamento positivo frente às adversidades (Gorayeb, 2002), sendo conhecido como resiliência. Isto é, potencial para o enfrentamento das adversidades que deve ser acolhido e estimulado no planejamento das ações de saúde (Costa & Assis, 2006). Todas as pessoas possuem um potencial para desenvolver essa capacidade, em maior ou menor grau. Nesse sentido, a escola é um local privilegiado para potencializar essa capacidade (Assis, Pesce & Avaci, 2006; Machado, 2010). A OPAS tem apontado a necessidade de desenvolvimento de ações nas escolas que possam reduzir comportamentos de risco (OPAS, 2003) e aumentar o potencial de saúde dos escolares (Gorayeb, 2002). Essas devem contemplar uma abordagem que desenvolva potencialidades e garanta uma linguagem adequada às suas características. A Escola Promotora da Saúde deve, ao mesmo tempo, reforçar a ação intersetorial de políticas sociais, as alianças e parcerias para a otimização de recursos e instrumentalizar profissionais e população para aprenderem a cuidar melhor de si, construindo relações interpessoais mais saudáveis (Brasil, 2007). Paralelamente ao trabalho de sensibilização e informação para situações de vulnerabilidade na vida dos jovens, é importante que a escola potencialize a autoestima e o apoio social, considerados como fatores de resistência (Gorayeb, 2002), estimulando as capacidades de crianças e adolescentes enfrentarem e superarem as adversidades e as dificuldades de suas vidas. A educação em habilidades para a vida, as relações interpessoais, a afetividade e a sexualidade estão entre as prioridades da Escola Promotora da Saúde. Para tanto, é preciso que utilize todas as oportunidades disponíveis dentro e fora da comunidade educativa. Pensamento crítico, criativo, autoconhecimento, comunicação eficaz e manejo das emoções estão dentre as habilidades essenciais para a vida. A capacidade analítica e investigativa deve fortalecer também o respeito aos direitos humanos, à equidade e aos valores solidários. Assim, irá contribuir para a formação de homens e mulheres mais saudáveis, com maior autoestima, autonomia e compromisso social (Soares, 2004). Para desenvolver essas habilidades, é necessário que o escolar saiba escolher e decidir; dizer “não” e resistir à pressão dos conhecidos e amigos para práticas não saudáveis de vida (OPAS, 2010). Promover a resiliência é atuar na perspectiva do conceito positivo de saúde, entendido como qualidade de vida (Buss, 1998; WHO, 1986) e é uma possibilidade fundamental do cuidado, pois enfatiza os aspectos positivos e saudáveis dos indivíduos (Costa & Assis, 2006). Sem dúvida, o desenvolvimento dessa capacidade pode se constituir em fator de proteção para situações de vulnerabilização de crianças e adolescentes. Para isso, a escola deve auxiliar com as informações necessárias para o enfrentamento dos problemas cotidianos, fortalecendo a autoajuda e o apoio social. É preciso, também, a facilitação do acesso, não somente das informações, mas das oportunidades de aprendizado sobre assuntos de saúde e da vida de cada um (Horochovski & Meirelles, 2007; OPAS, 2009). Considerações finais A estratégia escola promotora da saúde traz subsídios para que trabalhadores da saúde e da educação possam atuar conjuntamente para melhorar a qualidade de vida de alunos, professores, direção, funcionários e famílias e, com isso, diminuir as chances de violência dentro e fora do ambiente escolar. Aos trabalhadores da saúde cabe a capacitação de professores para a abordagem de temas relacionados à saúde, a partir do seu conceito positivo. Podem assessorar a comunidade escolar na identificação de problemas e prioridades que deverão desembocar no desenvolvimento de atividades educativas de promoção da saúde. Aos professores cabe a criação de estratégias que incidam, de forma positiva, na vida de crianças e adolescentes; possibilitando o diálogo, a reflexão crítica e criativa e o desenvolvimento de relações solidárias, o que potencializa a formação de alianças e lideranças positivas. Ao estado cabe estimular alternativas intersetoriais que promovam a saúde e, ao mesmo tempo, que enfrentem os determinantes da violência. Deve desenvolver políticas públicas capazes de produzir espaços limpos e seguros; de fortalecer a cultura da paz; de ofertar alimentos com pouca quantidade de gorduras, farináceos e açúcares; de estimular a criação de comportamentos saudáveis; e de reforçar o poder de decisão e participação dos jovens. Além disso, é fundamental a parceria com as comunidades e famílias, que também podem possibilitar que crianças e jovens se sintam acolhidos e protegidos e, com isso, modifiquem seus estilos de vida de forma a torná-la mais solidária e saudável. Referências Aerts, D., Alves, G. G., La Salvia, M.W., & Abegg, C. (2004). Promoção de saúde: a convergência entre as propostas de vigilância da saúde 93 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 88-95 e da escola cidadã. Cadernos de Saúde Pública, 20(4), 1020-28. 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Uma proposta de ressignificação do novo livro de Maria Helena Fávero Maria Helena Fávero Curitiba/PR: Editora UFPR, 2010 Otávio Henrique Braz de Oliveira(a)* “Este não é um livro de mulheres (p.13)”, afinal, assuntos de gênero dizem respeito à socialização de pessoas, do ser humano, em suas relações. A partir dessa assertiva, a professora Maria Helena Fávero defende, logo no início de seu livro “Psicologia do Gênero: Psicobiografia, sociocultura e transformação”, a tese de que o binarismo que divide rigidamente as pessoas em duas categorias distintas – mulheres e homens – conduz à criação papéis de gênero baseados em desigualdades entre esses indivíduos, mantendo aquelas numa posição de inferioridade no cumprimento de tais papéis. a Pedagogo. Especialista em Psicopedagogia. *E-mail: [email protected] Sistema de Avaliação: Double Blind Review 96 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 96-98 Com uma linguagem fluente e, ao mesmo tempo, um texto denso de conteúdos, a autora sustenta que essa dicotomia é fundamentada por outras dualidades – mantidas, segundo a autora, pela pesquisa e prática psicológica de bases ainda fortemente positivistas - como corpo e mente, indivíduo e sociedade, pensamento e linguagem e, fundamentalmente nos aspectos de gênero, razão e emoção. A autora se detém nesses dois últimos aspectos, enfatizando essa mesma tese ao afirmar que o pensamento social vincula aspectos psicológicos relacionados à racionalidade, coragem e assertividade como atributos masculinos, enquanto docilidade, emotividade e capacidade (obrigação) de agradar o outro como características naturais das mulheres. Essas inquietantes e reveladoras questões são abordadas à luz dos fundamentos teóricos da Psicologia do Desenvolvimento e sua abordagem historicosocial acerca de tais valores. Nisso, a autora afirma que as concepções de gênero naturalizadas não são imutáveis como muitas vezes são consideradas; ao contrário, são produtos de construções sociais que podem ser alteradas, reconstruídas a partir da tomada de consciência da capacidade desenvolvimentista do ser humano e sua atividade psicológica pessoal que o permite – também às mulheres – fazer escolhas sobre seu próprio curso de vida do ponto de vista pessoal e profissional , independente de suas características biológicas, como frequentemente aborda a autora em suas interlocuções. Nisso, no primeiro capítulo, a autora já inicia com a afirmação de que a atividade humana é mediada: “dito em outras palavras, àquilo que é biologicamente determinado, isto é, o sexo dos indivíduos, são atribuídos diferentes significados, que fundamentam o que deve ser adequado e inadequado para cada um, definindo e lhes atribuindo diferente papéis.” (p. 29). Nesse capítulo, a autora, “em muito boa companhia, podemos dizer” (p. 25), recorre a outros pensadores que corroboram a tese apresentada. Por essa razão, Fávero (2010) defende nessa parte que, apesar dos ganhos financeiros e econômicos da mulher, seu aspecto biológico ligado à maternidade produz o mito de que essa função seria natural, não podendo esta contrapor outras funções sociais, naturalizando e enclausurando a mulher num espaço sociocultural determinado. Dessa forma, a subjetividade das pessoas está em estreita relação com o “espaço semiótico no qual a atividade humana se insere, entendendo que esse espaço semiótico ou cultural é público, porque os significados são públicos, o que permite algo fundamental: sua negociação.” (p.35), desafiando, assim, as tênues fronteiras entre o público e o privado, tão presentes nos debates e práticas de gênero. Em consonância com a linha de pensamento da Psicologia do Desenvolvimento, autora recorre também à teoria piagetana, a qual postula que a adaptação humana não se restringe à ordem estabelecida, mas também aos desafios, às novidades e às mudanças que permitem a evolução das pessoas e da sociedade. Portanto, seguindo essa premissa, os significados relativos às questões culturais – incluindo àquelas ligadas ao gênero – também são passíveis de reconstrução e desenvolvimento. (p.45). Em suma, a autora conclui que “o que se procurou defender nesse capítulo foi que a subjetividade (a formação de paradigmas pessoais) é construída nas instâncias individuais, coletivas e institucionais” (p.44), numa clara articulação dos conceitos desenvolvimentistas com a Psicologia do Gênero na constituição da psicobiografia do sujeito. No capítulo, “Desenvolvimento psicológico, papéis de gênero e valores: o crivo da emoção”, o qual inicia a segunda parte do livro, a autora discorre sobre uma tese central de seu discurso: a de que “temos representações sociais diferentes para diferentes emoções em relação ao poder que elas mesas podem significar.” (p.139). Assim, relaciona gênero e emoção nas afirmações de que existe a “crença de que homens não expressam a emoção que sentem” (p.142) e que “as mulheres acreditam que se esperam delas a expressão de emoção positiva em relação aos outros – como gentileza, cuidado, afeição, simpatia, etc. e esperam sanções negativas se não agirem conforme essa expectativa. Os homens, ao contrário, não esperam conseqüências negativas se não se expressam dessa forma.” (p.137). Ainda sobre a o vínculo explícito dessas representações sociais sobre a emoção e as questões de gênero, “o cultivo do medo e o sentimento de dependência do outro” é exposto pela autora com exemplos de práticas cotidianas que representam a seguinte consideração: “é lícito concluir que os contextos socioculturais têm uma importância indiscutível na idéia que elaboramos sobre as emoções.” (p. 147). Dessa forma, a autora sustenta que a socialização de gênero ligada á emoção acontece desde cedo, ainda na infância, de acordo com as mediações simbólicas recebidas dos adultos sobre as questões relativas à formação da criança e os papéis de gênero e emoção: “As crianças desenvolvem modos de entender e expressar suas experiências emocionais por meio dos padrões de apoio que elas recebem em reação à expressão de seus sentimentos” (p.143). Ainda sobre essa questão, Fávero questiona “como essa menina lidaria, no curso de sua vida, com essa pedagogia do medo e da dependência, de um lado e de outro com seus desejos, motivações e realizações profissionais e pessoais” (p.156), questionando como a pedagogia do medo em decorrência à suposta fragilidade da mulher determina seu 97 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 96-98 processo de desenvolvimento. Nesse capítulo, a autora vincula essas questões de gênero relacionando-as aos contextos de saúde, com as afirmações de que “tanto a prática pessoal dos homens no que se refere ao autocuidado como a prática da medicina subentendem a concepção de invulnerabilidade dos homens” (p.161) e que “as mulheres são mais frágeis física e emocionalmente” (p.162). Após um texto profundamente respaldado em várias pesquisas e publicações, Fávero não permite uma conclusão de seu livro: “vamos fazer algumas considerações finais o que talvez leve à proposição de mais questões do que conclusões.” (p.377). Nesse sentido, a autora propõe uma reformulação dos significados sociais que permeam os assuntos de gênero, tidas como “questões de direitos humanos e cidadania”. A todos e todas que se propuserem a fazer uma análise crítica daqueles papéis tradicionais, focalizando-os numa perspectiva desenvolvimentista, e, portanto, otimista, é recomendado a leitura desse livro. 98