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REVISTA DA
SOCIEDADE DE
PSICOLOGIA DO
RIO GRANDE
DO SUL
E D I T O R I A L
A missão fundamental de uma revista é proporcionar
visibilidade ao conhecimento, sendo exigida hoje, em um
conjunto de complexas práticas para multiplicar a difusão das
publicações. A partir do número anterior, a Diaphora – Revista
da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul iniciou um
novo ciclo de trabalho. As modificações introduzidas objetivaram
fortalecer a Revista como uma oportunidade que se abre para
a propagação da produção científica nas diferentes áreas da
Psicologia.
A Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do
Sul segue acreditando nos avanços do seu processo editorial,
auxiliado pelo trabalho e empenho da equipe, consultores e
autores, fundamental para o bom andamento do trabalho. Nesse
segundo número de 2012 traz um conjunto de artigos e resenha
com visões e referenciais teóricos diversos.
Dentre os artigos de pesquisa, os primeiros deste número
são de pesquisadores de âmbito internacional. O primeiro
deles trata de uma área importante da Psicologia, intitulado
Caracterização da cultura organizacional em organizações policiais
de Portugal. O segundo trata da Auto-regulação emocional e
vinculação em adultos toxicodependentes. O próximo artigo
vem da França e nos traz um estudo sobre adolescência, suas
alterações biopsicossociais e a doença crônica, apontando esta
influencia mutua, com especial relevância ao comportamento
social e a ruptura da temporalidade que age paralelamente
sobre a noção de identidade do enfermo - Nada será nunca mais
como antes: o adolescente doente crônico: o exemplo do diabete
insulino-dependente. O próximo estudo, também de Portugal,
nos brinda com o trabalho intitulado Síndrome de burnout: um
estudo comparativo entre enfermeiros e médicos portugueses.
Em seguida, um tema bastante atual que reflete a
importância de pesquisas que investigam aspectos sobre o
Suicídio no Brasil e América Latina: revisão bibliométrica na base
de dados Redalyc. Os próximos, Elaboração das Formulações
Psicodinâmicas de Caso: um estudo exploratório.
Dentre os artigos de revisão, Psiquismo Fetal: Um Olhar
Psicanalítico transita pela teoria psicanalítica a partir de sua
clínica. O trabalho intitulado O Mini-Exame do Estado Mental na
avaliação neuropsicológica pós-TCE: aplicabilidades tem como
objetivo a investigação do traumatismo craniencefálico (TCE),
aponta uma das maiores causas de lesão cerebral com altos
índices de morbidade e mortalidade em jovens. Saúde da Mulher
e Medicina Tradicional Chinesa alem de, A escola promotora
da saúde e o desenvolvimento de habilidades pessoais, ambos
voltados a questões de promoção e manutenção de saúde, sua
influência sobre as condições e qualidade de vida, tema que
vem ocupando políticos e pesquisadores na busca de soluções
para enfrentar os múltiplos problemas de saúde que afetam as
populações humanas e seus entorno neste inicio de século.
Fechando este numero temos a resenha de Oswaldo Otávio
Henrique Braz de Oliveira que analisa a obra de Maria Helena
Fávero, Psicologia do Gênero: Psicobiografia, sociocultura e
transformações. Uma proposta de ressignificação, ressaltando o
valor da produção.
Desejamos que apreciem os trabalhos e tenham uma boa
leitura!
Tânia Rudnicki
Referências
Helmanm, C.G. (2009). Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: ARTMED. 431p
Yamamoto, O. H. (2001). Vale a pena avaliar periódicos científicos? Estudos
de Psicologia, 6(2), 129-130.
Trzesniak, Piotr; Koller, Silvia H. (2009): A redação científica apresentada por
editores. In: A. A.Z. P. Sabadini, M. I. C. Sampaio, & S. H. Koller (Orgs.),
Publicar em psicologia: um enfoque para a revista científica (pp. 19-33).
São Paulo: Associação Brasileira de Editores Científicos de Psicologia;
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
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R E L ATO D E P E S Q U I S A
Caracterização da cultura organizacional em organizações
policiais de Portugal
Characterization of the organizational culture of police organizations in Portugal
Sónia P. Gonçalves(a)*, José Neves(b)
Resumo: Este estudo teve como objectivo caracterizar a cultura organizacional de um conjunto de
instituições de polícia em Portugal. Para tal, recorreu-se à conceptualização de cultura organizacional
com base no modelo dos valores contrastantes. Foram inquiridos, através de questionário, 856 polícias
de sete organizações policiais. Os resultados sugerem uma partilha nas percepções das orientações de
cultura organizacional, denotando-se a predominância para a ênfase na dimensão interna, em termos de
uma orientação para o apoio e para as regras. De destacar que a orientação para a inovação surge como
menos caracterizadora deste sector.
Palavra-chave: Cultura organizacional; Valores organizacionais; Polícia
Abstract: This study aimed to characterize the organizational culture of police institutions in Portugal.
The conceptualization of organizational culture was based on the model of competing values. Through
questionnaire were inquired 856 police officers from seven police organizations. The results suggest a
shared perception of organizational culture orientations, showing predominance for the emphasis on
internal dimension in terms of support and rules. The results also highlighted that the orientation to
innovation appears as less characterize of this sector.
Keywords: Football; Criminality data; Policing
a Doutora em Psicologia do Trabalho e das Organizações; Docente no Instituto Piaget; Investigadora no Centro de Investigação e
Intervenção Social (CIS/ISCTE- IUL) - Lisboa, Portugal.
*E-mail: [email protected]
b Psicólogo: Doutor em Psicologia; Docente no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) - Lisboa, Portugal.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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O conceito de cultura tem a sua raiz na antropologia e
foi definido como sendo um conjunto de aspectos que são
adquiridos pelo Homem enquanto membro da sociedade,
tais como as crenças, as leis, os costumes, os hábitos, etc.,
manifestando-se nos modos de vida dos indivíduos e nos
artefactos utilizados.
Perspectivada no contexto organizacional, o estudo da
cultura organizacional, teve início demarcado nos finais dos anos
70 e conheceu um franco desenvolvimento durante a década de
80. Os processos de fusões e as aquisições de organizações que
ocorreram durante a década de 90, vieram reforçar a importância
da cultura organizacional enquanto factor que pode dificultar ou
facilitar a gestão dos indivíduos e do trabalho (Neves, 1996).
Esta tomada de consciência por parte dos investigadores e dos
profissionais acerca do interesse da cultura decorreu quando
se apercebam que não são apenas os factores económicos que
influenciam o sucesso da organização, pois os factores não
económicos, como sejam os valores, as crenças e os pressupostos,
parecem ter importância nas práticas e sucesso organizacional
(Neves, 1996), nomeadamente quando se constatou nos anos
80 que empresas com diferentes níveis de sucesso apresentavam
diferenças em termos de valores e estilo de gestão. De tal forma
que Sarmento (1994, p. 94) afirma que a “(…) abordagem
cultural das organizações e o conceito de cultura organizacional
permitem que se dirija a atenção para os aspectos simbólicos
no interior das organizações e para a atribuição de significado
pelos actores aos diferentes momentos e realidades da ‘vida’
organizacional”.
Inúmeros estudos têm sido conduzidos no sentido de
caracterizar a cultura organizacional de organizações de
diferentes sectores de actividade (Neves, 1996, 2000). No
seguimento desta linha de investigação o presente estudo foca
um sector cuja importância social é conhecida e reconhecida,
mas sobre o qual pouco se conhece em termos do seu
funcionamento interno – o sector policial. No actual contexto
social todas as organizações sem excepção, confrontam-se com
mudanças e desafios constantes, cuja adaptação e sucesso
dependem da própria cultura organizacional e daqui emerge a
importância de se conhecer realidade laboral e organizacional
dos diferentes sectores e organizações.
de investigação, é a mais citada e utilizada servido de base a
inúmeros trabalhos de investigação. Segundo Schein (1992,
p.12), a cultura pode ser definida como: “A pattern of shared
basic assumptions that the group learned as its solved its problems
of external adaptation and internal integration, that has worked
well enough to be considered valid and, therefore, to be taught
to new members as the correct way to perceive, think, and fell in
relation to those problems”.
Assim, Schein sugere que uma vez que o grupo tenha
aprendido e retido os pressupostos básicos que o ajudaram a
lidar de forma eficaz com problemas de adaptação externa e
integração interna, estes resultam em padrões partilhados quase
automáticos de pensar, sentir e agir, e fornecem significado,
conforto e estabilidade, e facilitam a interpretação e acção
em situações novas. Estes padrões são ensinados aos novos
membros como sendo a forma correcta de percepcionar, pensar
e sentir esses problemas e situações.
Modelo de Valores Contrastantes
O Modelo de Valores Contrastantes de Quinn é um dos
modelos de referência nesta área, sendo considerado que
a abordagem dos valores contrastantes aplicada à cultura
organizacional é “talvez a mais adequada para captar o sentido
paradoxal e por vezes pouco racional e caracterizador da
natureza dos fenómenos organizacionais, o que pressupõe um
pensamento janusiano capaz de pensar ideias contraditórias,
como integradas e funcionalmente eficazes” (Neves, 2001, p.91).
O modelo dos valores contrastantes (Quinn & Rohrbaugh, 1981)
representa-se por dois eixos (Figura 1) que formam quatro quadrantes:
o eixo horizontal remete para orientação interna vs. externa, sendo
que a orientação interna coloca a ênfase no desenvolvimento dos
recursos humanos e na manutenção de um ambiente de trabalho
estável e cooperante, enquanto que a orientação externa enfatiza o
desempenhar das actividades para crescer e adquirir recursos. O eixo
vertical representa a flexibilidade vs. controle, representando o factor
flexibilidade a importância da iniciativa individual, da rapidez e da
adaptabilidade organizacional, enquanto o factor controle acentua a
necessidade de hierarquia e controle.
Da combinação destes eixos resulta uma estrutura conceptual
de quatro tipos de cultura organizacional: cultura de apoio, cultura
de inovação, cultura de regras e cultura de objectivos (Quinn, 1985,
Cultura organizacional
1991). Estes quatro quadrantes são suportados por diferentes
A definição de cultura organizacional é um dos pontos que modelos teóricos: modelo das relações humanas, modelo dos
tem sido alvo de debate no seio dos investigadores. Todavia, a sistemas abertos, modelo dos processos internos e modelo dos
definição de Edgar Schein, considerado pioneiro neste campo objectivos racionais.
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Modelo das relações
humanas
Modelo dos sistemas
abertos
Flexibilidade
APOIO
INOVAÇÃO
Participação
Rapidez
Crescimento
Coesã
Interno
Externo
Informação
Produtividade
Estabilidade
Planeament
REGRAS
Modelo dos
processos internos
OBJECTIVOS
Controle
Modelo dos
objectivos racionais
Figura 1. Representação esquemática do Modelo de Valores Contrastantes. Nota. Adaptado de Neves (1996).
O quadrante superior esquerdo resulta dos vectores de
orientação interna e da flexibilidade, associados à participação
e à coesão. Neste quadrante fala-se de cultura de apoio que se
desenvolve em torno de valores como a participação, o trabalho
em equipa, o sentimento de pertença e a confiança. Este tipo
de cultura insere-se no modelo de relações humanas, no qual é
enfatizado o desenvolvimento humano e a motivação com base
na coesão, no compromisso e na descentralização das decisões;
O quadrante superior direito traduz o modelo dos sistemas
abertos, definido pelos vectores da flexibilidade e da orientação
externa que potencia uma cultura de inovação. Neste contexto
sobressaem valores de rapidez e crescimento, sendo valorizada a
flexibilidade e a mudança, centrando a atenção da organização
nas respostas às exigências da envolvente externa com vista à
adaptação
O quadrante inferior esquerdo destaca o modelo dos
processos internos que valoriza a estabilidade interna e o
controlo dos processos. Este modelo está associado à organização
burocrática e tradicional, criando uma cultura de regras, na
qual prevalece a formalização, estruturação, centralização,
uniformidade e estabilidade em busca da eficácia.
Por fim, o quadrante inferior direito traduz o modelo dos
objectivos racionais, definido pelos vectores do controle e da
orientação externa, em que o fundamental é o alcance da
produtividade e da eficiência. Nesta cultura de objectivos há
uma orientação para os resultados e o alcance dos objectivos
pré-definidos, enfatizando a produtividade, o desempenho em
prol do alcançar dos objectivos definidos.
Estas culturas, segundo Quinn (1991), não são estanques
podendo emergir em qualquer organização e dentro de cada
realidade organizacional. Não existem tipos únicos de cultura,
ou seja, nenhuma organização se caracteriza por apenas
um tipo de cultura mas pela sua coexistência, embora com
ênfases diferentes (Denison & Spreitzer, 1991) e quanto maior
a dominância e a nitidez dos contornos, mais intensa e forte
será a cultura (Cameron & Freeman, 1991). Assim, “(…) in that
sense types of organizational culture should not be viewed as
mutually exclusive, but rather as complementary. The pattern
of organizational culture then reflects the relative importance
and dominance of types of organizational culture in a particular
organization, but also, the relationship between types of
organizational culture” (Reino, 2009, p. 60).
O modelo dos valores contrastantes parte do pressuposto
teórico de que as organizações não se encontram num estado
de equilíbrio perfeito, e que as quatro orientações integram a
dinâmica e a complexidade inerente à organização, colocando
como hipótese a recepção de diferentes graus e ênfases. Os quatro
quadrantes não são apenas abstracções, mas representações de
quatro formas de ver a realidade organizacional (Quinn, 1991).
De acordo com Neves (1996, 2000) este modelo de
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conceptualização da cultura organizacional apresenta as
vantagens de constituir uma estrutura teórica integrada que
possibilita o entendimento mais profundo sobre a cultura,
uma vez que a integra nas principais teorias organizacionais;
permite a clarificação do conteúdo conceptual, na medida em
que é representado graficamente, e contextualiza a cultura
organizacional na sua forma de funcionamento paradoxal e
contrastante, dinamizando as relações e dando conta do carácter
de simultaneidade das várias orientações contrastantes que
cada organização pode prosseguir no seu funcionamento. Para
além disto, em termos de investigação permite a formulação
de hipóteses de estudos, a partir da forma como cada tipo de
cultura se relaciona com outros critérios comparativos como a
estratégia, o desempenho, os recursos humanas, a liderança,
entre outros.
A cultura no contexto da polícia
As questões associadas à cultura no contexto policial têm
sido estudadas em duas grandes linhas de investigação: por
um lado, associada à temática das sub-culturas ocupacionais
(também designada por cultura policial) e, por outro lado, ao
tema da cultura organizacional.
A primeira linha de investigação subordinada à cultura
policial, tem vindo a ser estudada há mais de quarenta anos
(Paoline, 2004), com especial incidência nos Estados Unidos da
América (Boke & Nalla, 2009). Esta linha de investigação emerge
da ideia que a organização policial é marcada por características
próprias, fruto da sua natureza e missão específicas que conferem
uma identidade própria ao grupo ocupacional (Quiar, 2001).
A segunda linha de investigação, na qual se enquadra
o presente trabalho, tem procurado caracterizar a cultura
organizacional das organizações policiais. Um dos pontos
assumidos na literatura, associa o princípio do militarismo como
estando na base da Organização Policial e da sua organização
hierárquica e centralizada (Duarte, 2005), conduzindo a uma
herança burocrática dos modelos racionais de organização
(Clegg, 1998; Motta, 1976) que levam à adopção de uma
estratégia de sistema fechado. Sendo associada a uma
estrutura burocrática mecanicista (Mintzberg, 1995), tende
a fixar-se nos princípios da organização da administração
científica, baseado no the one best way da Escola Clássica,
que concebe a organização como uma máquina que tem
implícita a superioridade técnica e instrumental da burocracia,
a diferenciação funcional, um comando hierárquico rígido com
hierarquias claras, a coordenação sistemática dos meios em
ordem aos fins, o controlo nas diferentes etapas do processo,
e a contínua maximização dos resultados o que implica uma
forte profissionalização dos profissionais (Ferrreira, 2001; Motta,
2001) e que tende a conduzir a uma visão mais voltada para o
interior da organização (Soeiro, 1994).
Segundo Leitão, citado por Duarte 20(05), a organização
policial em Portugal encontra-se associada a uma visão
instrumentalista do Estado e do poder, que promove a criação
de uma cultura interna que aposta na manutenção e na
reposição da ordem pública, alimentando rotinas burocráticas
e mecanismos internos de recolha e tratamento de informação,
muitas vezes associada à intervenção reactiva pós-situação e
pouco preventiva.
As consequências secundárias de uma cultura organizacional
burocratizada associam-se a uma orientação a curto prazo e
com ausência de pensamento estratégico a longo prazo, que
poderá dificultar os planos de acção e o alcance dos objectivos,
conduzindo a um enviesamento desses mesmos objectivos, à
comunicação pobre com o ambiente, à dificuldade em realizar
determinadas tarefas e à baixa produtividade (Duarte, 2005;
Mintzberg, 1995).
Robles (1997) assume que o conservadorismo, associado
às organizações policiais, pode ser uma forma de protecção
organizacional e profissional pelo facto da sobre-exposição a um
ambiente desorganizado e por operar na desordem, ou poderá
estar associado ao facto de actuar num ambiente regulado,
tendencialmente assente no pressuposto da estabilidade,
consolidando uma cultura com elevada formalização e rigidez,
focada no cumprimento dessas normas.
Apesar de considerar que a organização policial tende para
a estrutura da burocracia mecanicista, principalmente devido “à
sua orientação para um controlo muito acentuado que pretende
eliminar as incertezas e os conflitos, e pela necessidade de
prestar contas à sociedade” e ter sido “concebida para missões
pré-determinadas e específicas em que o seu domínio tem
de ser, por excelência, o da eficácia e não o da inovação”
(Duarte, 2005, p. 22). Duarte (2005) discute brevemente a
ideia de que a organização policial se deveria estruturar como
burocracia profissional e adoptar uma postura adaptativa, não
estando imune às variações do ambiente e aos fenómenos
organizacionais, como a idade e dimensão da organização,
a tecnologia, o controlo, as relações de poder e a estratégia
organizacional (Ferreira, 2001).
Reforça-se, assim, a necessidade de ajustar e modificar os
objectivos e formas de actuação proactivamente e não apenas
em momentos de crise (Duarte, 2005). As “sociedades cada vez
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mais complexas têm vindo a exigir estruturas organizacionais
que se coadunem com as suas exigências, sendo a especialização,
a profissionalização e o poder da competência, mais do que a
autoridade hierárquica e de posição, que marcam as necessidades
de respostas eficazes e eficiências das organizações” (Duarte,
2005, p. 22). Esta noção de mudança parece reflectir em grande
parte os desafios que se colocam actualmente às organizações
policiais, que têm procurado dar resposta, traçando um
conjunto de objectivos internos e de gestão dos seus recursos
humanos, nomeadamente, o investimento na formação dos
profissionais de polícia, bem como um investimento operacional
em programas específicos dando resposta às necessidades do
seu ambiente externo, ou seja, da sociedade. De acordo com
a tipologia de Blau e Scott (1977), a polícia está incluída nas
Organizações de Estado, cujo beneficiário é o público em geral.
A tipologia de Blau e Scott enfatiza a influência do beneficiário
sobre a organização, ao ponto de condicionar a sua estrutura e
os seus objectivos.
Apesar desta tentativa de mudança de paradigma de gestão
interna e operacional, a polícia ainda tende a ser percepcionada
como rígida, pouco permeável à mudança, com respostas lentas
para as situações que ocorrem, criando barreiras não só em
relação à sua actuação para o exterior mas, também, em relação
à actuação do exterior para com o interior (Duarte, 2005).
Por exemplo, o estudo de Cosner, Brickman e Payne (2004),
utilizando o modelo de cultura de Harrison (1972) concluiu que
os polícias percepcionam a sua organização como uma cultura
voltada para o poder (alta centralização e baixa formalização).
Duarte (2005), num estudo com a Polícia de Segurança Pública
de Braga (no norte de Portugal), verificou que a cultura de regras
assume uma dominância central, existindo um predomínio do
eixo do controlo e dos processos internos.
O simbólico na polícia
Os símbolos, os ritos, as cerimónias, os mitos e a linguagem,
são exemplos de manifestações da cultura organizacional. A
Polícia está repleta destas simbologias. Os símbolos são bem
visíveis no exterior desta hierarquia, reforçando o sentimento de
pertença e de identidade com os valores do grupo. Por exemplo,
os uniformes, os galões e o número. O uniforme é o significado
do compromisso profissional, os galões são o símbolo da
autoridade e da hierarquia, o número representa a antiguidade
e a identificação do profissional (Robles, 1997). Os rituais
visam reduzir a ansiedade e produzir consequências técnicas
com importância prática (Trice, 1985), e exemplo disto, são as
passagens de turno, durante as quais os polícias que saem e os
entram ao serviço reúnem com as chefias para fazer o balanço
do serviço, receber instruções e missões específicas de cada
patrulha e serviço. Tal como os rituais, também as cerimónias
têm como função a consolidação os valores (Deal & Kennedy,
1982), exemplo é a atribuição de mérito excepcional por serviços
prestados constituindo um reconhecimento formal e público.
A própria linguagem é um indicador de cultura, expressando
a existência de um universo simbólico diferenciado (Duarte,
2005).
Estes conteúdos simbólicos são internalizados desde do
processo de formação, aquando do ingresso na instituição. É um
processo longo e intenso durante o qual são expostos à disciplina
e às normas internas, nomeadamente, na forma de vestir,
pontualidade e tratamento dos formadores, cujo incumprimento
é penalizado, para além de ser um período para fomentar os
valores de companheirismo e solidariedade entre colegas nos
vários desafios que lhes vão sendo colocados. Os conteúdos
simbólicos vão sendo internalizados ao longo da socialização
já num contexto prático, como seja no patrulhamento e na
realização das missões. Durante este período, o polícia tem
oportunidade de adquirir informações, técnicas e regras de
comportamento que estão para além da teoria do curso inicial
de formação (Duarte, 2005). Pelo exposto, este estudo teve por
objectivo caracterizar a cultura organizacional de organizações
policiais em Portugal, apoiando-se na conceptualização
de cultura organizacional baseada no Modelo de Valores
Contrastantes proposta por Quinn (1983). A opção por este
modelo deveu-se à forma como explícita as relações de oposição
e de semelhança entre os vários tipos de cultura fornecendo uma
visão dinâmica e integradora do funcionamento organizacional.
Método
Amostra
A amostra é constituída por 856 polícias de sete instituições
de polícia, dos quais 91.5% são homens. A idade média dos
inquiridos é de 37 anos (DP = 8.85). A maioria é casada (n =
494, 64.2%). Relativamente às habilitações literárias, 57.2% (n
= 413) dos inquiridos tem entre 10 a 12 anos de escolaridade.
A média de anos de serviço é de, aproximadamente, 13 anos
(DP=8.59).
Instrumentos e variáveis
A cultura organizacional foi operacionalizada através
dos valores organizacionais (core da cultura organizacional)
medidos com base em 16 itens adaptados de Neves (2001), com
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base no FOCUS (Van Muijen et al., 1999). Estes itens organizamse nas quatro dimensões e resultam da média dos itens
correspondentes, previstas no Modelo dos Valores Contrastantes:
cultura de apoio (4 itens; e.g., “Compreensão mútua”; α=0.823),
cultura de inovação (4 itens; e.g., “Assumir riscos”; α=0.625),
cultura de regras (4 itens; “Cumprimento de regras”; α=0.740)
e cultura de objectivos (4 itens; “Ênfase na realização da tarefa”;
α= 0.724). Estes itens têm por objectivo avaliar a percepção
dos inquiridos, relativamente aos valores organizacionais que
caracterizam a organização. Os itens foram respondidos numa
escala de tipo Likert de 6 pontos (1=Demodo nenhum a
6=Muítissimo). Os valores de Alfa de Cronbach para a amostra
em estudo apresentou qualidades psicométricas (α=0.620
a 0.823) seguindo os padrões de estudos anteriores (Neves,
2001). Os participantes responderam, ainda, a um conjunto de
questões de natureza sócio-demográfica.
Procedimento
Os dados foram recolhidos através de questionário. Foram
estabelecidos contactos telefónicos e presenciais com as chefias,
tendo-lhes sido explicado o estudo, bem como o procedimento
de recolha dos dados. O questionário foi distribuído e, após um
período de aproximadamente quatro semanas, procedeu-se à
recolha dos mesmos já preenchidos, pessoalmente ou via correio
interno. Na Polícia 6 a recolha decorreu também em formato
presencial em sala.
A taxa de resposta no total foi de, aproximadamente, 53%.
Em todas as instituições obtivemos uma taxa de resposta acima
dos 50%, com excepção da Polícia três e Polícia dois que se
rondou os 20% e 24%, respectivamente, de taxa de resposta e
representatividade. No caso da Policia sete a taxa de resposta é
de 77% (Tabela 1).
A recolha de dados cumpriu as recomendações do princípio
específico de investigação do Código Deontológico da Ordem
dos Psicólogos Portugueses, publicado na 2.ª Série do Diário da
República a 20 de Abril de 2011, Regulamento n.º 258/2011.
Tabela 1
Distribuição da amostra por instituição e % de resposta ab
N
%
Tipo de políciaa
Polícia 1 33 51% Polícia municipal
Polícia 2 11 24% Polícia municipal
Polícia 3 8
20% Polícia municipal
Polícia 4 15 65% Polícia municipal
Polícia 5 27 57% Polícia municipal
Polícia 6 225 75% Polícia/Força de segurança e Polícia municipal
Polícia 7b 537 77% Polícia/Força de segurança
Total
856 53% ---
Dado este trabalho incluir um sector de actividade
específico considerou-se necessário abordar, ainda que muito
sucintamente, a organização das polícias em Portugal. O sector
policial em Portugal reveste-se de elevada complexidade dada
a fragmentação e dispersão das entidades. A caracterização
das instituições pode ser feita com o apoio de um conjunto de
diferentes critérios base. Tendo como critério de diferenciação a
presença prevista no Sistema de Segurança Interna, as Polícias
seis e sete são entidades incluídas nas forças e serviços de
segurança interna, enquanto as Polícias Municipais não se
encontram incluídas.
Considerando a natureza jurídica e formativa do pessoal
que constitui o quadro das polícias, a Polícia sete possui
natureza militar e as restantes são de cariz civil. Relativamente
às atribuições, todas, excepto as Polícias Municipais, são
funcionalmente órgãos de polícia criminal.
Outra classificação que pode ajudar a distinguir as polícias
está relacionada com o âmbito territorial de actuação. As polícias
municipais são um serviço de âmbito municipal, enquanto as
restantes polícias são de âmbito nacional. À Polícia sete cabe
a responsabilidade pelas áreas rurais e peri-urbanas. A Polícia
seis, dado acumular funções de força de segurança e polícia
municipal, compete-lhe a responsabilidade por uma grande
área urbana.
Outra distinção rege-se pelo órgão de dependência
hierárquica. As polícias municipais dependem directamente da
Administração Autónoma Local dos respectivos municípios, mais
concretamente, do Presidente da Câmara. A Polícia sete depende
directamente da Administração Estadual Directa Central, ou seja,
do Governo, através do Ministro da Administração Interna. A
Polícia seis por acumular funções tem a dupla dependência,
a As polícias incluídas no estudo são não especializadas, tendo
um campo de intervenção alargado;
b Foram seleccionados para participar no estudo os locais que
pertenciam às mesmas zonas geográficas das restantes polícias envolvidas no trabalho.
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pois em termos operacionais responde ao Presidente da Câmara Tabela 3
Municipal e em termos de gestão dos operacionais rege-se pelas Diferenças das médias dos pares das orientações culturais
M
DP
Pares
regras do Ministério da Administração Interna.
comparados
Resultados
Caracterização da cultura organizacional em função das organizações
envolvidas
A Tabela 2 ap resenta a análise descritiva dos resultados
da análise das diferenças médias da cultura em função das sete
organizações envolvidas, bem como os valores do índice de
James (Rwg) para aferir o grau de consenso entre as percepções
dos polícias acerca dos valores organizacionais predominantes.
Em termos globais, da análise da Tabela 2 (coluna do Total),
constata-se ser a orientação para o apoio (M=4.01) o valor que
predomina, seguida da orientação para as regras (M=3.99),
objectivos (M=3.68) e por fim, a orientação para a inovação com
valores mais baixos (M=2.84). Para aprofundar este resultado,
i.e., se as médias das diferentes orientações culturais na amostra
global eram significativamente diferentes fez-se comparação
entre duas variáveis, i.e. o Teste T à diferença de médias (t-test
pairs), cujos resultados são apresentados na Tabela 3.
Os resultados revelam que não existem diferenças
significativas entre a cultura de apoio e a de regras (t(822)=.480,
p=.631), contudo todos os restantes pares de médias apresentam
diferenças estatisticamente significativas. Conclui-se assim que,
termos globais, denota-se a ênfase na orientação interna. A
tensão observa-se em termos dos resultados globais ao nível
do eixo vertical, com a tensão entre a flexibilidade associada à
importância da iniciativa individual, da rapidez e adaptabilidade
organizacional e o controle, que acentua a necessidade de
hierarquia e controle. A dimensão externa aparece como menos
dominante, especialmente a orientação para a inovação.
De realçar que as percepções globais dos profissionais das
sete instituições, apresentam forte nível de consenso (valores de
Rwg superiores a 0.70 indicam a existência de consenso entre as
percepções individuais (Naumann & Bennett, 2000).
Cultura
Inovação –
Organizacional Apoio
Inovação –
Objectivos
Inovação –
Regras
Apoio –
Objectivos
Apoio – Regras
Objectivos –
Regras
-1.170
t
g.l.
p
1.039 -32.332 823 .000
-0.841 1.190 -20.302 823 .000
-1.149
1.282 -25.711 821 .000
0.332
1.193 8.006
824 .000
0.021
1.241 0.480
822 .631
-0,300
1,149 -7,498
822 .000
Analisando por instituição, os resultados revelam diferenças
significativas entre as várias organizações na forma como a
cultura é percepcionada (ver última coluna da Tabela 2). Para
analisar essas diferenças recorreu-se ao teste de Scheffe para
comparações múltiplas (Scheffe’s multiple comparison test).
Relativamente à cultura de inovação, os resultados revelam
que a Polícia dois apresenta o valor mais baixo de percepção de
cultura de inovação, diferindo significativamente das Polícias
um, três e quatro que apresentam os valores mais elevados. Por
sua vez, as Polícias três e quatro diferem-se também da Polícia
cinco que apresenta, igualmente, valor mais baixo de percepção
de cultura de inovação.
No que concerne à cultura de apoio a Polícia cinco difere
da Polícia quatro e Polícia três, sendo que a primeira apresenta
valores de percepção de cultura de apoio significativamente
mais baixo comparativamente aos valores mais elevados das
Polícias quatro e três.
As percepções cultura de objectivos revelam que a Polícia
dois difere das Polícias sete, seis, três e quatro, apresentando
valores mais baixos. Também a Polícia cinco difere das Polícia
seis, três e quatro, apresentando estas últimas os valores mais
elevados. Na cultura de regras, as Polícias cinco e dois diferem
das Polícias seis, três, sete e quatro, pois por apresentam valores
mais baixos.
A análise do índice de James revela um forte consenso nas
percepções dos polícias acerca dos valores das suas organizações
(Rwg> .70). Esta análise permite realçar as tensões existentes
entre as diferentes dimensões em cada organização, visíveis nas
representações gráficas da Figura 2.
7
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13
DP
.85
Rwg
4.04
3.16
M
1.14
0.74
0.94
DP
0.81
0.81
0.88
0.84
Rwg
2.16
2.07
4.02
1.68
M
1.13
0.67
0.78
0.62
DP
0.81
0.89
0.87
0.90
Rwg
4.15
4.09
4.63
3.70
M
1.17
1.17
0.98
1.01
DP
0.81
0.81
0.84
0.83
Rwg
4.66
4.64
4.62
3.82
M
0.91
0.98
0.52
0.56
DP
0.85
0.84
0.91
0.91
Rwg
2.07
2.39
3.48
2.14
M
0.88
1.21
0.62
0.92
DP
0.85
0.80
0.90
0.85
Rwg
3.98
3.90
3.93
2.82
M
1.21
1.38
0.98
1.13
DP
0.80
0.77
0.84
0.81
Rwg
4.15
3.66
4.05
2.84
M
1.22
1.19
0.77
1.04
DP
Polícia 7
M
1.07
.87
3.45
1.13
Polícia 6
Orientações
culturais
2.84
0.83
.82
3.34
Polícia 5
Inovação
4.01
1.28
.82
Polícia 4
Apoio
3.68
1.28
Polícia 3
Objectivos
3.99
Tabela 2. Cultura organizacional por organizações – médias, desvio padrão e Rwg1
Total
Polícia 1
Polícia 2
Regras
Rwg
Diferença de
médias2
χ2KW
0.83 (6)=47.401,
p=.000
χ2KW
0.87 (6)=33.174,
p=.000
χ2KW
0.80 (6)=62.242,
p=.000
χ2KW
0.80 (6)=84.381,
p=.000
Nota. M=Média; DP= Desvio padrão; 1Rwg (Índice de James) é uma medida de acordo que permite ver o grau de consenso entre as percepções (Lindell & Brandt, 2000); 2Optou-se por recorrer ao Teste de Kruskall-Wallis, como alternativa não-paramétrica da One-way Anova, em virtude do não
cumprimento dos pressupostos de homogeneidade e normalidade, bem como devido à desproporcionalidade dos n’ s das sub-amostras.
8
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13
Global das 7 organizações
Polícia 1
FLEXIBILIDADE
FLEXIBILIDADE
6
5
Apoio
4
6
Inovação
5
Apoio
3
2
2
1
INTERNO
1
EXTERNO
0
Regras
Inovação
4
3
INTERNO
Objectivos
EXTERNO
0
Regras
CONTROLE
Objectivos
CONTROLE
Polícia 2
Polícia 3
FLEXIBILIDADE
FLEXIBILIDADE
6
6
Apoio
5
Inovação
4
5
Apoio
3
2
2
1
INTERNO
Inovação
4
3
1
EXTERNO
0
Regras
INTERNO
EXTERNO
0
Objectivos
Regras
Objectivos
CONTROLE
CONTROLE
Polícia 4
Polícia 5
FLEXIBILIDADE
FLEXIBILIDADE
6
6
Apoio
5
Apoio
Inovação
4
Inovação
4
3
3
2
2
1
1
INTERNO
5
INTERNO
EXTERNO
0
Regras
Objectivos
EXTERNO
0
Regras
CONTROLE
Objectivos
CONTROLE
Polícia 6
Polícia 7
FLEXIBILIDADE
FLEXIBILIDADE
6
6
Apoio
5
4
Apoio
Inovação
4
3
3
2
2
0
Regras
Inovação
1
1
INTERNO
5
EXTERNO
Objectivos
INTERNO
0
Regras
CONTROLE
EXTERNO
Objectivos
CONTROLE
Figura 2. Representação gráfica dos perfis de cultura por organização
9
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13
Na fase seguinte exploraram-se as diferenças de médias,
tendo em conta a natureza das instituições, e.g., polícias
municipais, polícia com acumulação de funções (força de
segurança e polícia municipal) e força de segurança. Verificouse que não existem diferenças entre os tipos de polícias em
termos da percepção sobre a cultura de inovação e de apoio.
Contudo, há diferenças na percepção da cultura de objectivos
e de regras. A polícia com acumulação de funções e a força de
segurança percepcionam valores mais elevados, associados
a uma orientação para os objectivos e para as regras, do que
os registados pelos polícias municipais, conforme (Tabela 4).
A análise do Índice de James revela um forte consenso nas
percepções dos policias acerca dos valores da sua organização
(Rwg> .70).
Caracterização da cultura organizacional em função das
características sócio-demográficas
Para estudar e caracterizar a cultura organizacional em
função das características sócio-demográficas, foram realizadas
análises de comparação de médias (One-way ANOVA e a
alternativa não paramétrica quando os pressupostos não
estavam reunidos). As habilitações literárias, a idade e a
antiguidade, foram seleccionadas como variáveis a explorar.
Da análise da Tabela 5, pode-se verificar que não existem
diferenças estatisticamente significativas nas percepções de
cultura organizacional, no concerne à escolaridade dos inquiridos.
Globalmente, prevalece a dominância da orientação de cultura
para o apoio e para as regras, e com menor expressividade a de
inovação.
Tabela 4
Cultura organizacional por organizações – médias, desvio padrão e Rwga
Polícias
Polícia c/ acumulação
Orientações Total
municipais
funções
culturais M
DP
Rwg M
DP
Rwg M
DP
Rwg
Inovação
Apoio
Objectivos
Regras
2.84
4.01
3.68
3.99
1.07
0.83
1.28
1.28
.85
.87
.82
.82
2.85
4.02
3.24
3.12
1.12
.80
1.38
1.39
.82
.83
.79
.79
2.82
3.93
3.90
3.98
1.13
0.98
1.38
1.21
0.81
0.84
0.77
0.80
Força de segurança
M
DP
Rwg
2.84
4.05
3.66
4.15
1.04
0.77
1.19
1.22
0.83
0.87
0.80
0.80
Diferença de médiasb
χ2KW (2)= .171, p=.918
χ2KW (2)= 2.882, p=.237
χ2KW (2)= 17.634, p=.000
χ2KW (2)= 41.019, p=.000
a Rwg (Índice de James) é uma medida de acordo que permite ver o grau de consenso entre as percepções (Lindell & Brandt, 2000);
b Optou-se por recorrer ao Teste de Kruskall-Wallis, como alternativa não-paramétrica da One-way Anova, em virtude de não cumprimento dos pressupostos de homogeneidade e normalidade.
Tabela 5
Diferenças de média (desvio-padrão) da cultura organizacional em função das variáveis sócio-demográficas
Escolaridade
A. Até 9.º ano
B. Entre 10.º e 12.º ano
C. Ensino Superior
Diferença das médias
Observações
Idade
A.18 a 34 anos
B. 35 a 49 anos
Com 50 anos ou mais
Diferença das médias
Observações
Antiguidade
A. Até 5 anos
B. 6-13 anos
C.14-20 anos
D. Mais de 20 anos
Diferença das médias
Observações
Cultura de inovação
Cultura de apoio
Cultura de objectivos
Cultura de regras
2.923 (1.082)
2.776 (1.061)
3.021 (1.065)
F(2,700)=2.068, p=.127
n.s.
4.079 (.942)
3.990 (.740)
4.162 (.567)
χ2Kruskall-Wallis(2)=4.246, p=.120
n.s.
3.781 (1.271)
3.656 (1.274)
3.729 (1.141)
F(2,698)=.785, p=.457
n.s.
4.054 (1.230)
3.980 (1.304)
3.765 (1.371)
F(2,605)=.926, p=.397
n.s.
2.808 (1.045)
2.806 (1.074)
3.108 (1.144)
F (2,733)=2.848, p=.059
n.s.
4.023 (.668)
3.961 (.856)
4.216 (1.202)
χ2Kruskall-Wallis(2)=4.699, p=.095
n.s.
3.531(1.154)
3.658 (1.298)
4.079 (1.527)
χ2Kruskall-Wallis(2)=12.720, p=.002
A, B < C
3.977 (1.281)
3.943 (1.297)
4.076 (1.230)
F (2,727)= .333, p=.717
n.s.
2.871 (1.0126)
2.713 (1.050)
2.746 (1.122)
3.106 (1.082)
F (3,705)=5.108, p=.002
B, C < D
4.108 (.670)
3.908 (.705)
3.964 (.872)
4.151 (1.009)
χ2Kruskall-Wallis(3)=9.820, p=.020
B<D
3.610 (1.161)
3.508 (1.190)
3.519 (1.271)
3.985 (1.363)
F(3,703)=2.866, p=.001
A, B, C < D
4.064 (1.304)
3.879 (1.249)
3.849 (1.289)
4.194 (1.236)
F(3,700)=2.866, p=.036
B, C < D
Nota. n.s. - Não significativo
10
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13
Quando cruzados os escalões etários e as orientações de
cultura verifica-se a existência de diferenças estatisticamente
significativas, sendo que o escalão etário com mais idade
percepciona um nível mais elevado da orientação para a cultura
de objectivos do que os dois escalões mais jovens (χ2KruskallWallis(2)=12.720, p=.002).
Por fim, ao cruzar-se o número de anos de serviço e as
orientações culturais encontram-se diferenças estatisticamente
significativas nas percepções de todas as orientações, sendo
que, os elementos que estão há mais tempo na organização,
apresentam médias mais elevadas em todas as orientações.
Discussão
Este estudo teve por objectivo caracterizar a cultura
organizacional de instituições policiais em Portugal,
conceptualizada à luz do Modelo de Valores Contrastantes. No
sentido de alcançar este objectivo, foram aplicados questionários
a uma amostra de 856 polícias de sete instituições policiais.
Em termos globais, constata-se um predomínio de um
sector de actividade voltado para os processos internos, sendo
que as orientações para o apoio e para as regras reúnem a maior
intensidade das percepções. A orientação para a cultura de apoio
remete para uma ênfase na componente humana, assim como
para as interacções sociais de tipo informal, tendencialmente
acompanhadas por uma liderança que viabiliza os valores do
desenvolvimento e envolvimento humano. A orientação para
as regras remete para organizações estruturadas e formais, que
enfatizam o controlo e a uniformidade, valorizando a segurança,
a estabilidade interna e a integração organizacional, assumindo,
por isso, um propósito tendencialmente burocrático. O critério
de organização do trabalho é maioritariamente funcional
sendo caracterizado por códigos fortemente interiorizados,
alimentados pela história e pelas funções da própria organização,
mostrando uma resistência à inovação. De certa forma,
estes resultados globais são dissonantes com investigações
anteriores neste contexto (Duarte, 2005) as quais remetem
para o predomínio das regras e dos objectivos. Isto poderá ser
sinal das mudanças que este sector de actividade está a tentar
implementar, no sentido da aposta nos seus recursos humanos,
e, aparentemente, os indivíduos que têm mais anos de serviço
têm mais percepção desta tensão entre a flexibilidade e o
controlo, muito provavelmente porque têm assistido de forma
mais permanente e continuada às mudanças internas.
Quando se analisam os três tipos de polícias (i.e., força
de segurança, polícia com cumulação de funções e polícias
municiais) verifica-se que nas forças de segurança é detectada
uma maior ênfase nos objectivos e regras do que nas
polícias municipais. Este resultado poderá estar associado às
características das organizações, como a idade e a dimensão. As
organizações mais velhas e de maior dimensão tendem para uma
cultura de regras (Cameron & Quinn, 1999; Dastmalchian, Lee &
Ng,. 2000). estas características estão presentes nas forças de
segurança, já que as polícias municipais são organizações muito
jovens e com dimensões significativamente mais pequenas.
Denota-se um realce menos vincado da orientação externa,
a qual tende a enfatizar o desempenhar das actividades para
crescer e adquirir recursos. Esta conclusão vem reforçar o
caminho que estas instituições ainda têm que fazer no sentido
de se aproximarem ao exterior e à comunidade, através de um
investimento e demonstração que a comunidade e o exterior são
prioridades. Isto faz ainda mais sentido, considerando que estas
organizações têm como finalidade a prossecução do interesse
público. Para além disto, diversos são os autores (Deshpandé
& Farley, 2004; Ogbonna & Harris, 2000) que associam uma
orientação para o exterior a um melhor desempenho. Em
Portugal começa a fazer-se sentir esta tentativa de aproximação
da polícia à comunidade através de programas específicos que
têm surgido como resposta às necessidades da comunidade
(Escola Segura dedicada à segurança das escolas e meio
envolvente).
Outra conclusão importante passível de extrair é que as
percepções dos profissionais são consensuais, traduzidas pelo
elevado grau de acordo dos polícias em termos intra e inter
organizações em torno dos valores básicos. Esta consensualidade
perceptiva poderá ser fruto da dinâmica, natureza e missão
específicas do sector de actividade, bem como de um
ajustamento indivíduo-organização que poderá ser aproveitado
por parte da organização para fortalecer a relação e vinculação
dos polícias às instituições. Contudo, importa reforçar que falar
em consensualidade perceptiva não permite dizer que existe
uma cultura forte. Aferir a extensão e a intensidade perceptiva
com que determinada cultura é partilhada, como foi o objectivo
deste estudo, não dá a profundidade com que as crenças, os
valores e as expectativas atingem o âmago da organização e a
sua real aceitação, sendo de explorar futuramente o (des)ajuste
entre a cultura percebida e a desejada.
Uma das mais-valias deste estudo é o facto de ter incluído
diferentes instituições policiais, o que permitiu efectuar um
conjunto de análises comparativas. Os estudos na polícia
tendem a reportar-se, habitualmente, a uma única instituição
ou a departamentos de uma mesma organização (Paoline,
11
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 01-13
Myers & Worden, 2000). Em termos práticos, os líderes destas
sete instituições poderão, com este diagnóstico, delinear um
conjunto de estratégias de gestão com vista a fomentar os
quadrantes que apresentam um enfoque pouco desenvolvido.
Para além, disso, estes resultados disponibilizam pistas para
traçar planos de comunicação que permitam limar os pontos
que não estão de acordo com a estratégia e visão organizacional
declaradas. O contributo teórico associado a este estudo remete
para o aprofundar um pouco o conhecimento sobre este contexto
profissional, relativo ao qual existe uma escassez significativa de
estudos, especialmente em Portugal.
Uma limitação deste estudo remete para a escolha
metodológica quantitativa que o orientou. Optar pelo questionário
e pela utilização do Modelo dos Valores Contrastantes de Quinn
e colaboradores, para a análise da cultura, permitiu delinear
os traços da cultura que se apresentam. Contudo, há que se
considerar que ter em conta uma perspectiva qualitativa poderá
trazer consigo informações significativas e complementares.
Todavia, futuramente, dever-se-á alargar este diagnóstico da
realidade cultural a todas instituições policiais existentes em
Portugal, pois isso forneceria uma visão mais integradora e
consolidada da cultura organizacional do sector. Para além disso,
a complexidade da cultura organizacional, como constructo,
dificulta o seu estudo na sua amplitude total (Borges, Argolo,
Pereira, Machado, & Silva, 2002). E apesar de ser assumido
na literatura que os valores são as variáveis centrais aquando
do estudo da cultura organizacional (Ashkanasy, Wilderom, &
Peterson, 2000), dispondo-se do diagnóstico dos valores apenas
se traduz uma visão parcial da cultura organizacional (Borges
et al. 2002), o que constitui uma limitação a este estudo e
simultaneamente um desafio para pesquisas futuras.
Resta apontar algumas linhas de orientação e investigação
futura que nasceram, quer da multiplicidade de interrogações
que foram ganhando visibilidade à medida que se avançava
com a análise, quer das limitações referentes às escolhas
teórico-metodológicas. Neste sentido, sugere-se a realização de
estudos análogos em outras organizações policiais, conciliando
uma abordagem metodológica de triangulação, focada para
além dos questionários, em entrevistas e análise documental.
Será interessante, no contexto da polícia, explorar o conceito
de cultura organizacional em articulação com conceitos como
o da liderança, assim como o estudo da socialização e da sua
contribuição para a formação e consolidação dos valores
percebidos poderá ser um caminho interessante para uma
investigação futura.
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Recebido em agosto/2011
Revisado em outubro/2011
Aceito em outubro/2011.
13
R E L ATO D E P E S Q U I S A
Auto-regulação emocional e vinculação
em adultos toxicodependentes
Emotional self regulation and attachment in drug addicts
Inês Martins(a)*, António J. Santos(b)
Resumo: De acordo com a hipótese da auto-medicação (Khantzian, 1997, 2003), o abuso de substâncias
traduz uma forma compensatória de o sujeito modular estados emocionais. Diversos estudos apontam
para a relação entre um tipo de vinculação insegura e a toxicodependência. Contudo, a sua associação
com categorias específicas evidencia uma grande variabilidade consoante as medidas utilizadas. O
presente estudo correlacional procurou analisar a regulação emocional, a diferenciação emocional e
a vinculação, numa amostra de 31 toxicodependentes em tratamento. Os resultados indicam que os
valores das medidas emocionais estão dentro dos obtidos para a população normativa e a ausência de
um script de base segura. Verificou-se uma ausência de correlação significativa entre todas as medidas
emocionais e uma correlação positiva entre a reavaliação cognitiva e a vinculação. Os dados sugerem que
a teoria da vinculação providencia um enquadramento adequado ao desenvolvimento de programas de
tratamento e prevenção no abuso de substâncias. É proposto um modelo integrativo que conceptualize
a toxicodependência como um fenómeno multi-factorial.
Palavras-chave: Toxicodependência; Hipótese da auto-medicação; Regulação emocional; Diferenciação
emocional; Vinculação
Abstract: According to Khantzian’s self medication hypothesis (1997, 2003), substance abuse functions as
a compensatory mean to modulate emotional states. A number of studies reveal the association between
an insecure attachment style and drug addiction. However, its association with specific categories or
patterns of attachment shows great variability depending on the measurements in use. The goal of the
present correlational study is to analyse emotion regulation, emotion differentiation and attachment in
a sample of 31 drug addicts undergoing treatment. Results show emotional measures’ scores are similar
to the normative population and an absence of a secure base script. Results also indicate an absence of
correlation between all emotional measures and a positive significant correlation between cognitive reevaluation and attachment. Data suggests that attachment theory provides an adequate framework from
which to develop treatment and prevention programs in substance abuse. Drug addiction understanding
requires an integrative model that conceptualizes it as a multifactorial phenomenon.
Keywords: Drug addiction, self-medication hypothesis, emotion regulation, emotion differentiation,
attachment
a Psicóloga; Mestre em Psicologia Clínica (ISPA-IU/Portugal).
*E-mail: [email protected]
b Professor Associado;Doutor em Psicologia do Desenvolvimento (ISPA-IU/Portugal).
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 14-23
Estudos realizados junto da população portuguesa revelam
que a droga constitui a principal preocupação dos pais em relação
aos seus filhos, o que pode ser explicado tanto pela crescente
prevalência e visibilidade do fenómeno da toxicodependência
nas últimas décadas, como pelo sentimento de impotência a
ela associado (Moreira, 2001). Este sentimento de impotência é
ainda agravado pelo facto de o problema atingir uma dimensão
transversal, e pela sua preponderância assumir proporções tais
que a toxicodependência se constitui como o principal problema
de saúde dos países desenvolvidos (Becoña, 1999; Inaba, Cohen
& Holstein, 1997).
Vinculação e Toxicodependência
São vários os autores a propor que o abuso de substâncias
é motivado por défices na regulação emocional, associada a
perturbações do sistema de vinculação (ex. Flores, 2001; Torres
& Oliveira, 2010). De facto, é durante a infância, por meio de
vivências constantes de responsividade e sensibilidade das
figuras de vinculação, que a capacidade para a auto-organização
e regulação emocional se tornam evidentes (Fonagy & Target,
2003; Suh et al., 2008). Contudo, apesar do crescente interesse
na última década na relação entre vinculação e psicopatologia,
existem ainda poucas investigações que se debrucem sobre as
implicações da vinculação no abuso de substâncias (Schindler
et al., 2005).
Diversos estudos apontam para uma possível relação
entre um tipo de vinculação insegura e a toxicodependência
(ex. Mikulincer & Shaver, 2007; Shindler et al, 2005). Para além
disso, o tipo de vinculação insegura tem sido relacionado com
perturbações e angústia emocional, bem como com défices ao
nível das estratégias de coping (Schindler, Thomasius, Petersen
& Sack, 2009). No entanto, a maioria das investigações na área
utiliza medidas de auto-relato (HSSR; Hazan & Shaver, 1987;
Bartholomew & Horowitz, 1991) em vez de indicadores que
permitam avaliar as representações mentais da vinculação,
derivadas de instrumentos como a AAI (Main & Goldwyn, 1998.
Caspers et al., 2006; Schindler et al., 2005). Procedendo a uma
revisão da investigação empírica na área, o panorama geral dos
resultados permite afirmar que a toxicodependência apresenta
uma relação consistente com a vinculação insegura, mas que a
sua associação com categorias específicas evidencia uma grande
variabilidade consoante os instrumentos de avaliação utilizados
(e.x. Allen, Hauser & Borman-Spurell, 1996; Finzi-Dottan,
Cohen, Iwaniec, Sapir & Weizman, 2003; McNally, Palfai, Levine
& Moore, 2003; Rosenstein & Horowitz, 1996; Torres & Oliveira,
2010).
Preservando a ideia de origem psicodinâmica de que a
relação precoce produz representações mentais duradouras na
criança com impacto na idade adulta, Bowlby incorporou na sua
teoria o conceito da psicologia cognitiva de modelo mental, o
qual seria responsável pela representação mental da experiência
e afectaria a memória, as expectativas e a capacidade de
resposta nas interacções sociais (Waters & Waters, 2006). Waters
e Rodrigues-Doolabh (2001) propõem que a história de base
segura do indivíduo seja representada na memória sob a forma
de um script. Sujeitos que tiveram experiências de base segura
consistentes e coerentes durante a infância, terão conhecimento
e facilidade de acesso ao script de base segura em todas as suas
interacções de base segura. Para além disso, o script será activado
quando o sujeito é confrontado com objectivos e acontecimentos
em relação directa com o fenómeno de base segura. O sujeito
estará apto a responder em conformidade sempre que o script
for activado, esperará comportamentos consistentes com o script
por parte das figuras de vinculação, e irá proceder ao registo de
acontecimentos e experiências que violem as expectativas que
desenvolveu com base no script (Schank, 1982).
Emoção, Diferenciação Emocional e Regulação
Emocional
No presente trabalho, a emoção será tratada não em termos
da sua dicotomia positiva versus negativa, mas sim se é
geradora ou não de comportamentos adaptativos. Esta posição é
congruente com os modelos mais actuais (ex. Greenberg, 2002),
em que os investigadores adoptam uma perspectiva funcional
da emoção (Fridja, 1986).
Para a emoção ser experienciada, é preciso que o indivíduo
atribua um significado à reacção fisiológica. Este processo
de simbolização tem o nome de diferenciação emocional,
constituída por duas dimensões: (1) repertório de experiências
emocionais, isto é, a variedade de emoções experienciadas pelo
indivíduo e (2) capacidade de perceber distinções subtis dentro
de uma mesma categoria emocional (Kang & Shaver, 2004).
Dado que permite uma maior multiplicidade de significados
das experiências emocionais, promove o conhecimento e
utilização de estratégias de regulação mais adaptativas (e.x.
Barret, Gross, Conner, & Benvenuto, 2001; Gross, 2008). Défices
ao nível da diferenciação emocional estão associados a múltiplas
psicopatologias e estados psicopatológicos, como a alexitimia
(Kang & Shaver, 2004).
A reavaliação cognitiva e a supressão emocional são duas
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 14-23
das estratégias de regulação emocional que mais foco têm tido na
investigação, nomeadamente no que diz respeito ao estudo das
diferenças individuais e consequências da sua implementação
(Gross & John, 2003). Por exemplo, a nível afectivo, a supressão
emocional conduz a uma diminuição da expressão emocional
(quer desadaptativa, quer adaptativa) e conduz a sentimentos
de discrepância entre o que o indivíduo mostra aos outros e o
que realmente pensa e sente. Por outro lado, o reduzido nível de
partilha emocional compromete o desenvolvimento de relações
de intimidade (Butler et al., 2003) e a integração no grupo de
pares, com consequências ao nível do suporte social.
Partindo dos pressupostos apresentados o primeiro objetivo
do presente estudo é verificar se o abuso de substâncias está
associado a uma baixa competência de regulação emocional.
Serão igualmente avaliados o repertório e a capacidade de
diferenciação emocional.
Apesar de ainda não existirem muitas investigações que se
debrucem sobre o papel da vinculação no abuso de substâncias,
Schindler e colegas (2005) defendem que, uma vez que ambas
incluem a regulação emocional e as estratégias de coping como
constructos centrais, seria do interesse dos investigadores na
área aprofundar esta relação. O segundo objectivo deste estudo
é então verificar se os sujeitos toxicodependentes apresentam
preferencialmente um tipo de vinculação insegura, como
avaliada pelo método das Narrativas sobre as Representações da
Vinculação em Adultos (Waters & Waters, 2006).
As hipóteses em estudo são as seguintes: (1) sujeitos
toxicodependentes apresentam uma baixa competência de
regulação emocional, com utilização preferencial da supressão
emocional; (2) sujeitos toxicodependentes apresentam uma
baixa capacidade de diferenciação emocional; (3) sujeitos
toxicodependentes apresentam preferencialmente uma
vinculação insegura.
Participantes
Método
Os participantes são 31 residentes de uma Comunidade
Terapêutica para toxicodependentes. O tratamento está dividido
em três fases que diferem ao nível da progressiva autonomia,
responsabilização e contacto com o exterior. Para além do
programa terapêutico geral (politoxicómanos), a Comunidade
contempla ainda um programa terapêutico para alcoólicos e um
programa terapêutico para utentes com doença concomitante.
A decisão da participação dos residentes no estudo foi da
responsabilidade da coordenadora da equipa técnica da
Comunidade. Não foram incluídos na amostra residentes que se
encontravam a tomar metadona, devido às possíveis alterações
do humor e emocionais causadas pelo medicamento. Por outro
lado, apenas foram seleccionados para participação no estudo
alguns dos residentes do programa terapêutico para utentes
com doença concomitante, pelas implicações óbvias dos casos
severos de psicopatologia.
Os participantes têm idades compreendidas entre os
23 e os 58 anos (M = 36.42; DP = 9.55), sendo 20 do sexo
masculino (64.5%). No que respeita às habilitações literárias,
nove (29%) completaram a escolaridade obrigatória, cinco
(16.1%) completaram o secundário e 5 (16.1%) frequentaram
ou terminaram um curso universitário. A maioria frequentava
o programa terapêutico geral (90.3%) e encontrava-se na
primeira fase dos respectivos programas (N = 13; 41.9%).
A droga de preferência dos residentes é a heroína (N = 12;
38.7%), seguida pela cocaína (N = 8; 25.8%) e ambas as drogas
sem distinção (N = 6; 19.4%). As idades de início do consumo
problemático variam entre os 11 e os 45 anos (M = 20.45; DP =
8.75) e 9 (29%) participantes fizeram mais de cinco tentativas
de tratamento (ingresso em comunidades ou em ambulatório).
Instrumentos
- Questionário de Regulação Emocional (ERQ) de Gross e
John (2003), adaptação e tradução de Machado Vaz, 2009),
constitui uma medida de auto-relato de 10 itens, em que seis
itens avaliam a estratégia de regulação emocional Reavaliação
Cognitiva e quatro itens avaliam a estratégia de regulação
emocional Supressão Emocional. Apresenta uma escala tipo
Likert de sete pontos. No estudo de validação em Portugal foi
replicado o modelo de dois factores da versão original, foram
extraídos dois factores explicativos de 49.64%, numa amostra
de 851 indivíduos. No que respeita à análise de consistência
interna, foram registados para a nossa amostra os valores de .59
para a escala Reavaliação Cognitiva e .53 para a escala Supressão
Emocional.
- Escala de Avaliação do Repertório e Capacidade de
Diferenciação Emocional (RDEES) de Kang e Shaver (2004);
adaptação e tradução de Machado Vaz, 2009), constitui uma
medida de auto-relato, desenvolvida com o objectivo de
avaliar a natureza e características individuais da complexidade
emocional. Utiliza uma escala tipo Likert de cinco pontos e a
avaliação da complexidade emocional inclui duas dimensões:
(1) capacidade do sujeito em fazer distinções subtis entre
diferentes categorias emocionais; (2) variedade ou amplitude de
diferentes emoções que o sujeito experiencia. A adaptação para
Portugal replicou o modelo de dois factores da versão original
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 14-23
(Machado Vaz, 2009). No que respeita à análise de consistência
interna, para a nossa amostra foram registados os valores de
.71 para a escala Diferenciação Emocional, .53 para a escala
Repertório Emocional e .59 para a escala total
- Narrativas sobre as Representações da Vinculação em
Adultos (Waters & Waters, 2006), um instrumento que pretende
avaliar a organização do conhecimento de base segura utilizando
narrativas produzidas por adultos em resposta a seis conjuntos
de palavras sugestivas. Quatro conjuntos de palavras sugestivas
visam a produção de histórias relativas a cenários importantes
do ponto de vista da vinculação: duas histórias (“A manhã do
bebé” e “No consultório médico”) referem-se à interacção mãe/
criança; duas histórias (“O acampamento da Joana e do Pedro” e
“O acidente”) referem-se à interacção adulto/adulto. Os restantes
conjuntos de palavras são considerados neutros (“O passeio no
parque” e “Uma tarde nas compras”). Depois de gravadas, as
histórias são transcritas e posteriormente cotadas utilizando uma
escala de 7 pontos definida por Waters e Rodrigues-Doolabh
(2004, manual não publicado), em relação ao protótipo de
script de base segura. ). Na cotação das narrativas, as correlações
entre dois investigadores treinados variaram entre .80 e .84.
Mais de 90% das comparações concordavam num intervalo
de 1.5 e nenhuma cotação para uma dada história diferiu mais
do que 2.5 pontos. A correlação entre a média das narrativas
mãe/criança e as narrativas adulto/adulto (r = .81, p<0.01)
evidencia a existência de um script de base segura comum aos
dois tipos de relações (Tabela 4). Estes resultados vão no sentido
dos encontrados por Waters e Rodrigues-Doolabh (2001) e
Veríssimo et al. (2005), o que demonstra a adequabilidade do
instrumento na amostra utilizada.
Procedimentos
A presente investigação apresenta-se como um estudo
transversal, descritivo e correlacional (Sampieri, Collado &
Lucio, 2006). A amostra é não probabilística por conveniência.
Após consentimento informado e preenchimento de um breve
questionário de caracterização sócio-demográfica, foi pedido
aos participantes que respondessem aos questionários de
avaliação emocional, seguidos da aplicação das Narrativas sobre
as Representações da Vinculação em Adultos (Waters & Waters,
2006), com recurso ao respectivo manual (Veríssimo & Santos,
manual não publicado).
Resultados
Relação entre as Medidas Emocionais e a Vinculação
A tabela 1 apresenta as correlações entre as medidas
emocionais e as histórias de representação da vinculação.
Apenas a dimensão da Reavaliação Cognitiva se encontra
significativamente correlacionada com duas das três medidas de
vinculação: interacção adulto/adulto (r = .40; p<0.05) e o total
das histórias (r = .39; p<0.05). A correlação entre a dimensão
Reavaliação Cognitiva e as histórias adulto/criança pode ser
considerada uma tendência (r = .33; p = 0.76). Ainda que não
possam ser consideradas tendências, a Supressão Emocional
apresenta correlações negativas com todas as três medidas de
vinculação (totalidade das histórias: r = -.16, p = .42; interacção
adulto/criança: r = -.12, p = .52; interacção adulto/adulto: r =
-.19, p = .34; p<0.05).
Tabela 1
Correlações entre as medidas emocionais e a vinculação
Total
Adulto/
Criança
Adulto/Adulto
Reavaliação Cognitiva
.39*
.33
.40*
Supressão Emocional
-.16
-.12
-.19
Repertório Emocional
Diferenciação
Emocional
-.03
.05
.01
.20
.22
.15
Nota: *Correlação significativa para p<0.05
Diferenças em função da Fase de Tratamento
Foram encontradas diferenças estatisticamente significativas
entre as fases de tratamento, no que respeita às dimensões do
QRE: Reavaliação Cognitiva e Supressão Emocional (Tabela 2). Estes
resultados permitem especular sobre as implicações das diferentes
fases nas estratégias de regulação emocional. O contacto gradual com
o exterior a partir da segunda fase poderá estar na base da diminuição
do uso da Reavaliação Cognitiva, possivelmente pelos novos desafios
que este contacto com o mundo exterior apresenta. Por outro lado, na
segunda fase de tratamento é fortemente privilegiada a capacidade
de expressão emocional, o que poderá constituir uma base explicativa
para a diminuição dos valores na dimensão Supressão Emocional.
(Retirei este comentário da Discussão, não sei em que secção ficará
melhor, ou se repito a informação nos Resultados e na Discussão)
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 14-23
Tabela 2
Diferenças em função da fase de tratamento
Média Teste K-W
Fase
gl
N
(%)
das
Tratamento
Ordens (p<0.05)
Reavaliação
Emocional
Supressão
Emocional
p
1º Fase
2ª Fase
3ª Fase
13 (41.9) 17.81
10 (32.3) 10.35
8 (25.8) 20.13
6.058
2 0.048
1ª Fase
2ª Fase
3ª Fase
13 (41.9) 21.54
10 (32.3) 11.10
8 (25.8) 13.13
8.577
2 0.014
Discussão
Tanto a primeira como a segunda hipótese em estudo não
foram confirmadas. Uma possível explicação para a infirmação
das hipóteses prende-se com o facto de os participantes estarem
a ser submetidos a uma intervenção terapêutica com forte
componente na exteriorização das emoções. Outra explicação
possível para o baixo nível de utilização da supressão emocional
deve-se à circunstância de esta dimensão contemplar tanto
a expressão de emoções desagradáveis, como a expressão de
emoções tidas como “positivas”, o que dificulta a compreensão
de importantes diferenças entre emoções específicas. Ainda
outra justificação poderá relacionar-se com a interpretação
do conteúdo dos itens que avaliam a reavaliação cognitiva. A
utilização da alteração do pensamento associado à emoção
experienciada pode traduzir uma forma de supressão da emoção,
conduzindo a um controlo da activação emocional. Os resultados
verificados vão ao encontro dos obtidos por Hall e Queener
(2007), em que a relação entre o consumo de substâncias e o
afecto negativo e/ou ambíguo não foi verificada. As razões da
convergência dos resultados podem estar relacionadas com a
pouca representatividade da amostra nos dois estudos.
A terceira hipótese do presente estudo foi confirmada e os
resultados vão ao encontro de numerosos estudos que apontam
para a relação entre a toxicodependência e a vinculação (e.x.;
Caspers, Cadoret, Langbehn, Yucuis & Troutman, 2005; Caspers
et al., 2006; Rosenstein & Horowtitz, 1996). Uma vez que à data
não foram publicados estudos para avaliar esta relação com
o método das narrativas, os resultados dão o seu contributo
na constatação da relação entre as variáveis, evidenciada em
investigações que utilizam distintas medidas de avaliação da
vinculação. O método das narrativas permite ainda ultrapassar
as limitações decorrentes da utilização de medidas de autorelato, e o facto de os participantes serem residentes numa
comunidade terapêutica, com análises de urina esporádicas,
contribui igualmente para assegurar que os dados recolhidos não
são contaminados por influência de variáveis não consideradas.
Na medida em que o presente estudo foi realizado com uma
amostra clínica, permite atender apenas às motivações em casos
severos de consumo de substâncias.
No que respeita às correlações entre as medidas
emocionais e a vinculação, a hipótese foi parcialmente
confirmada. Apenas a dimensão da Reavaliação Cognitiva se
encontra significativamente correlacionada com a vinculação,
nomeadamente com as narrativas de interacção adulto/adulto
e com o total das narrativas. A correlação entre a dimensão
Reavaliação Cognitiva e as histórias adulto/criança pode ser
considerada uma tendência, passível de se tornar significativa
com o alargamento da amostra. A Supressão Emocional
apresenta correlações negativas (ainda que não significativas)
com todas as três medidas de vinculação. Contrariamente ao
esperado, não foi verificada uma correlação positiva entre a
vinculação e a EARCDE. Tal pode estar ser interpretado tendo em
conta a ausência de correlações significativas entre as medidas
emocionais da EARCDE e do QRE. Os resultados verificados no que
respeita à relação entre a regulação emocional e a vinculação vão
no sentido de múltiplos estudos conduzidos pela investigação na
área (e.x. Gilliom et al., 2002; Kochanska, 2001; Nachmias et al.,
1996) e poderão indicar que uma vinculação insegura constitui
um factor de risco para o consumo de substâncias, enquanto
forma de lidar com estados emocionais indutores de mal-estar.
No que respeita às diferenças encontradas entre as fases
de tratamento nas dimensões do QRE, os resultados permitem
especular acerca das implicações das diferentes fases no
processo terapêutico. O contacto gradual com o exterior a partir
da segunda fase poderá estar na base da diminuição do uso
da Reavaliação Cognitiva, possivelmente pelos novos desafios
que este contacto com o mundo exterior apresenta. Por outro
lado, na segunda fase de tratamento é fortemente privilegiada
a capacidade de expressão emocional, o que poderá constituir
uma base explicativa para a diminuição dos valores na dimensão
Supressão Emocional.
Implicações
Os dados da presente investigação apontam para a
necessidade de conceptualizar a toxicodependência como um
fenómeno multifactorial, influenciado por disposições individuais
e circunstâncias culturais e societais, a serem contempladas no
todo complexo que constitui o indivíduo. Como tal, é sugerida
a formulação de um modelo integrativo que permita explicar
o multifacetado ciclo aditivo, com a contínua exploração dos
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seus múltiplos preditores (Hall & Queener, 2007). Exemplos
de variáveis a serem incorporadas são: traços de personalidade
como a ansiedade e a impulsividade, os quais representam
importantes idiossincrasias na vulnerabilidade a estratégias de
coping desadaptadas; expectativas face ao consumo e efeitos
específicos das substâncias; regiões neurológicas envolvidas
e mecanismos fisiológicos actuantes; e o mundo relacional do
toxicodependente (Quirk, 2001).
As implicações metodológicas estão relacionadas com a
inclusão de medidas emocionais mais próximas do fenómeno
do abuso, com questões como: “Quando estou zangado, tenho
vontade de consumir” (Hall & Queener, 2007). Outra hipótese
seria a inclusão de itens respeitantes a circunstâncias do
quotidiano, que permitam contextualizar – com situações
concretas – as emoções. Seria igualmente útil a exploração dos
mediadores envolvidos no processo interactivo entre a vinculação
e a regulação emocional (e.x. factores ambientais indutores de
stress na relação de vinculação e factores de resiliência, como o
suporte social e relações positivas com os pares).
Quer as emoções indutoras de desconforto ou mal-estar
estejam positiva ou negativamente correlacionadas com o
abuso de substâncias, a exploração emocional como forma de
aumentar o insight deverá ser uma constante no tratamento
(Hall & Queener, 2007). O tratamento deverá ainda considerar
a possível existência de perturbações em comorbilidade com
a toxicodependência, bem como as consequências sociais que
esta acarreta (Schindler et al., 2005). Como tal, o trabalho
clínico deverá contemplar uma reaprendizagem dos prazeres
quotidianos decorrentes do percurso estudantil e laboral, as
mais das vezes interrompido, bem como a exploração de modos
eficazes para lidar com as frustrações inerentes ao dia-a-dia. Por
outro lado, a preferência por determinada substância poderá
fornecer pistas importantes sobre as emoções predominantes
na vida do toxicodependente, contribuindo para intervenções
psicoterapêuticas mais individualizadas.
Como evidenciado pelos resultados do presente estudo e
da generalidade da investigação na área, a teoria da vinculação
providencia um enquadramento adequado ao desenvolvimento
de programas de intervenção na toxicodependência (Caspers
et al., 2006). Uma implicação clínica desta constatação diz
respeito ao estabelecimento da aliança terapêutica, tarefa
crucial dificultada pelo facto de a maioria destes pacientes
evidenciarem um tipo de vinculação inseguro (Shindler et al.,
2005). No trabalho clínico, os terapeutas poderão explorar
cognições relacionadas com este sistema e permanecerem
atentos a indicadores comportamentais que possam estar
associados a diferentes representações da vinculação (Caspers
et al., 2006; Torres & Oliveira, 2010). A alteração dos estilos e
padrões interpessoais poderá ser feita em complementaridade
com o contexto familiar, a qual demonstrou ser uma abordagem
eficaz e reconhecida no tratamento da toxicodependência (ex.
Waldron & Turner, 2008).
Uma vez que as evidências apontam para resultados pouco
satisfatórios nas intervenções de carácter remediativo, é cada
vez mais consensual a necessidade de valorizar a prevenção no
combate à toxicodependência (Moreira, 2001). Do que antecede,
seria útil o desenvolvimento de programas de promoção da
consciência e regulação emocional em crianças cujo ambiente
parental e social esteja comprometido. Tais programas teriam
por base a incorporação de elementos referentes ao carácter
autónomo da competência emocional, dirigidos à utilização
funcional e adaptativa deste sistema. No essencial, o foco
seria dar a conhecer às crianças que os estados emocionais
podem ser examinados e que existem formas adaptadas de
os expressar, experienciar e regular. O simples conversar sobre
as emoções implica um agir no plano simbólico que previne
a actuação impulsiva, abrindo caminho para uma saudável
gestão das emoções. Para um agir espontâneo, mas sensato, é
extremamente importante que as crianças tenham um modelo
a quem recorrer. Estes programas deveriam assim contemplar
uma vertente terapêutica familiar, dirigida a uma maior
consciencialização do papel do meio social e práticas parentais
na autonomização dos processos emocionais nas crianças (ex.
Sroufe, 1996).
Ao nível da vinculação, é sugerida a elaboração de programas
com famílias em situação de risco sinalizadas aos serviços sociais.
O foco nos comportamentos de cuidado parental ao recémnascido e nas práticas parentais com os restantes filhos, bem
como a consciencialização da importância dos horários e rotinas
na disponibilidade para cuidar da criança, constituem bons
exemplos de temáticas facilitadoras do estabelecimento de uma
vinculação segura. Por outro lado, estas iniciativas beneficiariam
da acção concertada de uma equipa multidisciplinar (pediatras,
enfermeiros, gestores de caso, psicólogos), em que a preparação
para o parto pudesse ser complementada com elementos
facilitadores de uma vinculação segura. De notar que o sucesso
deste tipo de intervenções é dependente de toda uma conjuntura
política, económica e social que passa, em primeiro lugar, pelo
reconhecimento do impacto da vinculação no desenvolvimento
da psicopatologia.
19
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 14-23
Limitações e direcções futuras
As principais limitações do presente estudo estão
relacionadas com a pouca representatividade da amostra, o que
impede a generalização dos resultados para além do contexto
específico em que o estudo foi conduzido. A amostra é também
limitada na sua área geográfica de abrangência. O facto de os
participantes serem residentes numa comunidade terapêutica
e estarem a ser submetidos a uma intervenção com forte
componente na exteriorização das emoções, pode justificar o
seu desempenho normativo nas medidas emocionais. Como tal,
seria desejável que estudos futuros integrassem participantes
não só inseridos em comunidades terapêuticas, como também
de outros contextos mais próximos do acto de consumo,
ou restringir a participação no estudo aos residentes que se
encontram na primeira fase do tratamento.
Outra limitação está relacionada com o possível
enviesamento dos resultados obtidos através das medidas
de auto-relato, função da selectividade, reconstrução e
idiossincrasias dos processos de memória. Uma forma de
ultrapassar esta limitação seria complementar as medidas
de auto-relato com medidas de componente qualitativa. No
presente estudo, apenas foram avaliadas duas estratégias de
regulação emocional. Seria do interesse da investigação na área
a avaliação de outras dimensões da regulação emocional, bem
como a avaliação do modo como as diferentes estratégias de
regulação emocional interagem com os estados afectivos, traços
de personalidade e droga de eleição.
No âmbito do elevado número de sujeitos que apresentam
um diagnóstico de comorbilidade com a toxicodependência – e
atendendo ao facto do instrumento Narrativas de Representação
da Vinculação em Adultos ter sido fundamentalmente concebido
para a população normativa – estudos futuros beneficiariam de
medidas de avaliação da vinculação adequadas às características
psicológicas destes sujeitos. A omissão do tipo de vinculação
não-resolvido ou desorganizado constitui outra limitação
do estudo, dadas as evidências que relacionam este tipo de
vinculação com o abuso de substâncias (ex. Caspers et al., 2006;
Schindler et al., 2009). Este facto é particularmente relevante
se atendermos à utilização maioritária dos valores inferiores da
escala na cotação das narrativas.
Por último, a presente investigação é de natureza correlacional,
o que limita as inferências acerca da direcção da relação entre a
vinculação insegura e a toxicodependência. Neste âmbito é sugerido
o delineamento de estudos de carácter longitudinal, que permitam a
exploração de direcções causais entre as variáveis.
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Recebido em julho/2012
Revisado em setembro/2012
Aceito em novembro/2012
23
R E L ATO D E P E S Q U I S A
Nada será nunca mais como antes: o adolescente doente crônico o exemplo do diabete insulinodependentea
Nothing will ever be again as it was before: the chronically ill teenager – the example of
the insulin-dependent diabetes
Dana Castro(b)*
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a interação que se estabelece entre “o trabalho da adolescência”
e o da doença crônica, e de interrogá-la no seu impacto subjetivo e social a partir o exemplo do Diabete
Insulino-Dependente (DID). A adolescência é um período de grande vulnerabilidade no qual o jovem é
invadido pela ansiedade, animado pela rebelião e devorado pela indecisão devido à dificuldade a integrar
um mundo adulto. Neste contexto, o DID, doença crônica grave, com suas exigências rigorosas e seus riscos
em longo prazo, pesa como uma carga psicológica suplementar no universo já carregado do jovem. A
doença provoca ciclicamente, no adolescente, emoções de cólera e de injustiça, um sentimento poderoso
de diferença e distância, e organiza o funcionamento psíquico em torno de mecanismos de defesa típicos
: recusa e racionalização. Estes movimentos se exprimem através de certas condutas de saúde e mais
particularmente através da adesão ou da não-adesão periódica ao tratamento medicamentoso prescrito.
O apoio psicológico oferecido aos jovens doentes se estrutura, por um lado, a partir de suas necessidades
específicas e atuais; por outro lado, dos dados contemporâneos da pesquisa em psicologia.
Palavras-chave: Adolescência; Doença crônica; Adesão ao tratamento
Abstract: The aim of the study is to consider the psychological interaction between the developmental
mutations of adolescence and that of the chronic illness, such as Diabetes Mellitus, analyzed within its
social and subjective impact. Adolescence is a period of great vulnerability where teens are overwhelmed
by anxiety and driven by feelings of rebellion and indecision, mainly due to the difficulty of integrating
the adult world where responsibilities, demands and relationships are very different from those known in
childhood. From this point of view, Diabetes, severe chronic illness, with its strict regimen demands and
long term health risks, becomes a supplementary burden in the everyday life of the young ones. It elicits
periodically, emotions of anger and injustice as well as negative feelings of difference and stigmatization
which organize, in return the psychic world around defense mechanisms such as denial and rationalization.
These psychological movements express themselves through several health behaviors, such as compliance
or non-compliance to the medical treatment. The psychological help offered to these young patients take
into account their current needs and is anchored in the contemporary research evidence.
Keywords: Adolescence; Chronic illness; Compliance to treatment; Psychological mutations
a Este artigo vai ser publicado na França como capitulo do livro Précis d’expériences transculturelles, Editora Le Journal des Psychologues, Paris, setembro de 2012.
b Psicóloga; Psicoterapeuta.
*E-mail: [email protected]
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 24-34
A adolescência: um momento-chave do
desenvolvimento psíquico
A adolescência assinala o começo de uma ‘nova era’, de
uma renovação, de um segundo nascimento. Começando com
um acontecimento biológico - a puberdade, e culminando
com um acontecimento social - o acesso à independência e à
autonomia - os ‘anos adolescentes’ ou os ‘anos verdes’, como são
designados pelos nossos colegas vietnamitas correspondendo,
no mundo inteiro, ao período situado entre os 13 e os 20 anos.
Um grande número de adolescentes vive estes anos de maneira
penosa, experimentam sentimentos de cólera, de medo e de
questionamento. Os ‘anos verdes da adolescência’ são anos
de instabilidade psíquica e de inquietação interior ligados às
modificações corporais, à busca de identidade pessoal, assim
como às interrogações sobre a sexualidade (Guitton, 2003).
A adolescência é frequentemente um período no qual o
jovem se sente invadido pela ansiedade, impulsionado pela
rebelião e dilacerado pela indecisão. Uma grande parte da
confusão vivida por estes jovens decorre da dificuldade a integrar
um mundo adulto no qual as responsabilidades, as expectativas
e a confusão vividas são muito diferentes daquelas conhecidas
na infância.
Para certos adolescentes, este período se caracteriza por
uma carga de aflições, dominadas pelas flutuações emocionais
intensas e pelas reações extremas na qual prevalecem as
condutas de oposição devidas às dificuldades para se ‘separar’
(Delhaye, Kempenaers, Burton, Goossens & Linkowski, 2011).
Para administrar estas dificuldades, o adolescente reage pela luta
ou pela fuga, tenta negociar constantemente com os adultos, e
torna sua prioridade essencial o fato de ser aceito pelos seus
pares. Nesta época o adolescente tenta transgredir as regras para
poder assentar seus valores e suas próprias convicções.
Um ciclo de stress quotidiano que prepara à
descoberta de si
Na vida quotidiana os adolescentes devem perpetuamente
enfrentar acontecimentos ou situações que consideram
importantes, sérios e potencialmente estressantes. Estes
acontecimentos têm uma repercussão afetiva e suscitam
emoções negativas (raiva, tristeza, desgosto, desespero, etc.) ou
positivas (alegria, afeição, simpatia, etc.). Isto ocorre qualquer
que seja a cultura ou a nacionalidade dos adolescentes (SeiffeKrenke, 1995, Rescorla et al., 2007).
Assim, por exemplo:
Uma má nota é percebida como um acontecimento
desagradável mas cujas consequências são passageiras. Suscita
emoções desagradáveis de decepção, de raiva, de medo ou de
vergonha que são mais intensas nos jovens de 12 anos que nos
de 17 anos. Este acontecimento é absolutamente gerenciável
pela maioria dos adolescentes que o consideram, finalmente,
como um acontecimento de poucas consequências pois se situa
longe atrás de suas preocupações existências. O caso é bem
diferente no que concerne as situações interpessoais fortemente
saturadas emocionalmente. Por exemplo:
Apaixonar-se é considerado como um acontecimento
extremamente estressante que suscita habitualmente emoções
positivas. Este acontecimento é percebido como estressante
especialmente pelas moças, as quais se sentem paralisadas
nesta situação. Os jovens de 12 anos consideram que não
podem controlar este estado e por isso experimentam vergonha
e medo. Os de ‘17 anos’, ainda que confiram muita importância
a este tipo de situações, estão mais tranquilos e enfrentam
com mais serenidade. A sexualidade representa sempre
uma busca afetiva que vai muito além da busca de prazer. O
enquadramento oferecido pela sexualidade traz ao adolescente
um meio de encontrar calor e proximidade, de se descobrir uma
nova identidade. A identidade sexual se consolida durante este
período (Jeammet & Corcos, 2005). Os adolescentes jovens e
menos jovens vivem na expectativa do grande amor que fascina
pelas relações misteriosas ao outro e perturba pelo mistério que
permite revelar sobre si mesmo. Todo fator exterior suscetível
de entravar esta expectativa torna-se perseguidor, e provoca
decepção e sofrimento para o adolescente.
Sentir-se sozinho é um acontecimento frequente que
afeta muito os adolescentes. Pela idade de 15 anos, a solidão
e o isolamento social são percebidos como sendo situações
dramáticas que assinalam ao adolescente uma incapacidade
pessoal, uma espécie de ‘defeito fundamental’. Nesta idade,
o jovem é muito sensível às mensagens de simpatia da parte
dos outros, assim como ao aspecto intimo das confidências
partilhadas. Fazer parte integrante de um grupo de pares tornase suporte identitário e fonte de renarcisização. A irrupção de um
acontecimento exterior, tal como uma doença grave, modifica
o posicionamento do jovem no seu grupo de pertencimento
tanto no seu papel quanto na sua função. Em casos extremos
pode chegar a modificar o estilo de apego aos pares e provocar,
justamente, condutas de isolamento (Kynga et al., 2000).
Brigar com os amigos é percebido como um acontecimento
muito mais difícil e muito mais frustrante do que uma briga
com os pais. Trata-se de acontecimentos inesperados, portanto
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mais problemáticos para o adolescente. As meninas reagem
mais intensamente do que os meninos. Os de 12 anos são
mais vulneráveis e susceptíveis de sentir desespero e tristeza.
Consideram-se frequentemente ‘culpados’ do conflito e tendem
a assumir ‘toda a responsabilidade’. Uma briga com um amigo
querido reaviva o questionamento sobre o valor pessoal e sobre a
noção de diferença, assim como a ansiedade que a acompanha.
Reaviva também o medo da perda do apoio emocional, tão
importante nesta idade, devido a uma falha pessoal. Um
acontecimento exterior, tal como uma doença grave, provoca
imediatamente um questionamento sobre a autoestima devido
ao seu caráter exterior e intrusivo, e aumenta assim a insegurança
identitária e o risco de aparecerem mal entendidos relacionais
(Narring, 2003).
Sentir-se humilhado é um acontecimento dramático,
percebido como extremamente estressante que provoca
desespero e paralisia da capacidade de reação. Este acontecimento
é tanto mais difícil de enfrentar para os adolescentes porque
é percebido como imprevisível e incontrolável (Sentenac et
al., 2011). As meninas sofrem as humilhações pessoais mais
intensamente que os meninos. Os de ‘12 a 15 anos’ se sentem
bem mais atingidos que os de 17 anos, os quais têm mais
capacidade de se distanciar em face de este tipo de situação.
A humilhação pode ter diferentes fontes: sociais, quando
acontece entre pares, familiares, quando se manifesta no seio
da família, exteriores, quando se trata de uma doença grave ou
de um acontecimento perturbador. Em todos estes casos, sua
intensidade depende do sentido que o adolescente confere ao
acontecimento, e da representação que ele se forjou dele mesmo
ao longo do tempo.
Um estado de tomada de consciência que prepara
ao conhecimento de si
Paralelamente, e graças à resolução destas situações
potencialmente estressantes, durante seus ‘anos verdes’ o
jovem elabora experiências construtivas. Com a intensificação
das necessidades internas e das expectativas do ambiente, o
adolescente reage para controlar a sua vida e aceder assim à
autonomia. Neste caminho para o distanciamento da infância
e do aconchego familiar, sua tarefa principal esta totalmente
centrada na definição de si que passa pela formulação de
projetos pessoais e pelo apoio do grupo de pares, referência
essencial para confirmar a identidade, para encontrar apoio
e segurança, para satisfazer as necessidades de dependência
sem renunciar à autonomia. O jovem deve se diferenciar das
identificações parentais para estabelecer suas próprias escolhas
num contexto de relações mutuamente valorizadas (Guedeney
& Guedeney, 2006). A recusa de regras estabelecidas é uma
prioridade. A oposição e o desafio à autoridade do adulto
assinalam um processo necessário visando à desconstrução da
infância em prol da construção de si.
Acontecimentos externos tais como a doença grave, que se
desencadeiam durante esta longa marcha para a individuação,
modificam profundamente o ritmo da evolução psicológica do
adolescente, sua projeção no futuro, suas necessidades pessoais
assim como a sua relação ao mundo (Narring, 2003).
Este resumo geral da vivência adolescente visa lembrar
quatro elementos importantes. O primeiro se refere à acuidade
das problemáticas identitárias e relacionais ao longo dos ‘anos
verdes’. O segundo lembra a existência de momentos de maior
vulnerabilidade no decorrer da adolescência (de modo geral,
os 13-15 anos são mais frágeis do que os 16-20 anos) e sobre
a diferença de suas experiências segundo seu sexo. O terceiro
evoca os meios de reação típicos da adolescência baseados
essencialmente no evitação, na oposição, na negociação com a
autoridade e a busca (primordial) de apoio dos pares. O quarto,
enfim, se refere à universalidade das problemáticas adolescentes,
qualquer que seja o país, a cultura ou a comunidade de inserção
do adolescente (Rescola et al., 2007). Somente a hierarquização
das situações estressantes vividas ao quotidiano pelos
adolescentes é modulada pela cultura de pertencimento.
Uma doença crônica, tal como o diabetes insulinodependente,
com suas necessidades rigorosas e os riscos em longo prazo,
pesará como uma carga psicológica suplementar no universo
já carregado do jovem, e vai interferir negativamente com o
trabalho psíquico da adolescência (Castro,Tubiana-Rufi, Moret
Fombonne & The PEDIAB Collaborative Group, 2000; Helgeson
et al.. 2007; Naring et al., 2003; Sentenac, 2011).
O que é o diabetes?
O diabetes insulinodependente (DID) ou diabetes de tipo I
é uma das quatro doenças crônicas mais frequentes na infância,
cuja incidência está aumentando em todos os países. Na França,
nos últimos 10 anos, a incidência anual passou de 7,8 novos
casos para 100.000 crianças de menos de quinze anos a mais
de 10 para 100.000. O aumento é particularmente importante
nas crianças de menos de cinco anos: o numero de novos casos
quase dobrou nos últimos 15 anos (Eurodiab, 2000)a. Hoje em
a
No Brasil a taxa de incidência é de sete casos em 100.000
crianças/adolescentes.
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dia, o equilíbrio do diabetes insulinodependente depende de
um tratamento extremamente fastidioso que implica numa
série diária de gestos repetitivos; a irregularidade destes gestos
pode se traduzir em perigo vital em longo prazo. Este aumento
é tanto mais inquietante porque o DID é considerado como fator
severo de estresse psicossocial (DSM-IV-TR, 2004) devido ao seu
caráter permanente e irreversível, modificando profundamente o
funcionamento psíquico individual e a construção de si.
A natureza crônica desta doença modifica os estilos e
os projetos de vida, a representação de si e a percepção do
quotidiano. A doença atinge não somente o jovem portador,
mas todos os membros da família, pais e/ou irmãos e irmãs
assim como o vinculo entre eles (Scelles, 2001). Ela se impõe
ao funcionamento familiar como um real traumatismo psíquico
e invade, periodicamente, o campo psíquico de cada um de seus
membros. Neste contexto, o traumatismo psíquico pode ser
entendido como a consequência de um acontecimento exterior
cujo efeito é mais ou menos devastador a nível afetivo nas
pessoas que se encontram implicado diretamente (portadores
da doença) ou indiretamente (família, pais, irmãos) (Castro,
Malivoir, Martin, Gagnayre & Robert, 2009).
No plano psíquico, a vida em longo prazo com o diabetes
mergulha o adolescente no cerne de seu conflito identitário,
acrescentando problemáticas suplementares e específicas. A
doença exige uma serie de importantes reajustamentos tais
como a aceitação da sua própria vulnerabilidade, a mudança da
percepção de si, e a modificação de suas relações com os outros
(Castro, 1997; Castro et al.. 2000; Johnson, 1980).
Estes reajustamentos se produzem em reação a
diferentes critérios tais como a fase da doença, o momento do
desenvolvimento do sujeito, as necessidades profundas. (Castro,
1997). São periódicos e tão crônicos quanto à própria doença.
Com o DID, o adolescente e, em seguida, o adulto que ele vai
se tornar, vivencia ciclos de bem-estar seguidos de ciclos de
revolta, de desânimo, ou até mesmo de desespero. Examinemos
estes reajustamentos dentro de uma perspectiva cronológica
focando nossa atenção nos mecanismos psicológicos em ação.
O diabetes na adolescência
Com o anúncio do diagnóstico: o choque, como aceitar a
permanência da doença?
Tomas é um jovem de 16 anos. Ele é alto, esportivo, alegre,
social e gourmet. Faz três semanas que esta saindo com Eleonora,
uma menina da mesma classe, que o comove, fazendo nascerem
sentimentos de ternura e novos desejos. Tomas vive intensamente
esta relação vangloriando os ‘méritos’ do amor aos seus amigos
próximos. Ele se sente ‘grande’, despreocupado e leve.
Faz três semanas que Tomas se sente cansado, bebe
muita água e emagrece visivelmente. Inquieta, a família decide
consultar e fica sabendo durante a consulta que Tomas apresenta
um diabetes insulinodependente, doença crônica grave, que
destrói as células do pâncreas e que se não for tratado, pode levar
diretamente à cegueira e a outras complicações agudas e terríveis.
Tomas recebe esta noticia com calma (segundo seus pais).
Durante sua hospitalização assiste pela manhã às sessões de
educação para o tratamento e adquire rapidamente os gestos
necessários. De tarde, seus amigos e Eleonora o visitam, brincam
sobre a presença no seu quarto das seringas de insulina e sobre
o “dope” que poderiam conter, e se perguntam quando estará
curado. Tomas enfrenta praticamente bem (segundo ele) esta
semana de hospitalização e aprecia, interiormente, o fato de ser,
durante este tempo, o centro de atenção de seu universo relacional.
A data de saída é anunciada, e com ela uma noticia nova: o
fato de que a doença não é curável, as recomendações médicas
de todo tipo sobre a necessidade de uma regularidade sem
falhas no ritmo do tratamento, sobre as limitações dietéticas,
sobre as recomendações quanto à pratica do esporte, sobre
a responsabilidade pessoal que tudo isto implica e sobre o
calendário anual das consultas médicas. No fim desta consulta,
Tomas desmaia por alguns minutos. Quando desperta, diz: “Não
quero sair do hospital antes de estar curado! Por favor, não quero
que meus amigos e Eleonora me vejam neste estado!”
Que sentido psicológico dar a este desmaio imprevisível
e inesperado neste jovem alto, esportivo e simpático?
Provavelmente o de um choque emocional ligado à súbita
compreensão de estar vivendo uma mudança irreparável! Assim,
desde o diagnóstico, a doença surge na vida do jovem paciente
com a força de um Tsunami e se instala numa vivência penosa e
muito irritante. Ela o confronta imediatamente com uma grave
problemática identitária assim como a temíveis conflitos intrapsiquicos.
Nas suas primeiras fases, a DID desencadeia:
Um choque que atinge a representação de si atual e futura,
a vida quotidiana, os projetos de vida e as relações com os
pares. Na primeira semana de hospitalização não é raro que o
jovem paciente se sinta desligado da situação e se comporte de
maneira automática, como se não se tratasse dele. O sentimento
de continuidade identitária é fortemente desestabilizado “O
mundo desmoronou quando descobri a minha doença! Nada
será nunca mais como antes!” (nos dirá Tomas durante uma
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 24-34
consulta posterior). Assim também o sentimento de segurança
relacional e o apego aos pares. O adolescente se interroga sobre
o seu posicionamento no grupo e sobre a imagem que lhe é
refletida se seus pares viessem a tomar conhecimento de sua
problemática médica.
Um sentimento de injustiça que culpabiliza e que pune,
dominado por sentimentos de raiva e do desesperado
questionamento do: ‘Porque eu?’ Este questionamento só
encontra respostas insatisfatórias ancoradas em teorias pessoais,
sem ligação com a realidade biológica. Estas respostas explicam
a aparição do diabetes devida às ‘faltas’cometidas anteriormente:
«fui muito festeiro»; «me entreguei», entre outras, atingindo
novamente a autoestima.
Um sentimento de injustiça que persegue: o DID infiltra
todo o espaço mental do jovem modificando sua reação ao
mundo e lhe impondo uma tensão interna permanente: «Só
penso nisto, no diabetes, uma palavra que eu queria arrancar
da minha cabeça, mas que esta lá, sempre lá, só penso nisto:
diabete, diabete, diabete, uma palavra que eu queria arrancar da
minha cabeça, mas tenho a impressão que todo mundo escuta. É
muito duro! » (jovem de 14 anos). A raiva volta contra si mesmo
e persegue interiormente o jovem doente. Uma injustiça que exige reparação: o DID é percebido
como uma ‘falha’ do corpo médico que não soube prevenir
ou não sabe curar. Esta ‘falha’ (imaginaria e fantasiada) deve
ser constantemente remetida aos médicos para lembrar sua
impotência e sua ignorância num afrontamento entre as ‘vitimas’
(os jovens pacientes) e os «algozes» (médicos): «Para eles (os
médicos) tudo é muito fácil, eles dizem que não é grave, que há
pior, e que se pode viver com o diabetes! Eu não quero, não vou
fazer dieta, vou ficar obesa, meus exames serão horríveis, e eles
vão ver que não é verdade!» (jovem de 14 anos). Neste contexto,
a reação depressiva é a primeira a se apresentar junto com o
sentimento insuportável de perda e de desespero.
Depois, com o tempo, os tratamentos eficazes, a
continuidade da vida quotidiana, e os momentos de vida fora
da doença, o tumulto emocional se acalma (por algum tempo)
permitindo que os reajustamentos psicológicos se façam e o
jovem continua o seu trabalho de «adolescente».
adaptação à doença torna-se seu inimigo quando, devido à
duração, impõe a repetição quotidiana e inexorável dos gestos
de tratamento sob a constante ameaça do agravamento das
perturbações. Nas primeiras fases após a revelação da doença,
o jovem paciente não tem plenamente consciência do caráter
crônico e inexorável da sua condição; ele conserva ainda
inconscientemente a esperança de cura. Mas, com seu ritmo e
sua periodicidade, a doença coloca o jovem paciente diante de
novas problemáticas, especificas e... crônicas!
Uma primeira problemática se refere à descontinuidade
temporal, fenômeno que transforma a relação a historia pessoal
introduzindo as noções de antes e depois. A afecção crônica vai
modificar para o sujeito a experiência do tempo, esta sequencia
de «presentes contínuos de valor desigual» e vai acentuar, para
alguns deles, as dificuldades identitárias. Um passado idealizado
enfrentará um presente desiludido e um futuro incerto. O antes e
o depois se tornam, para o jovem paciente, as únicas referências
identitárias.
Antes do diabetes, quando eu olhava para a minha mãe,
achava que ela estava feliz e despreocupada, depois, quando
vejo como ela me olha, não é mais a mesma coisa, seus olhos me
parecem tão tristes que tenho vontade de chorar! Ela não me vê
mais igual, fiquei frágil, quebrada!“, diz uma jovem de 15 anos.
Antes do diabetes eu era despreocupada e livre, dinâmica, não
me questionava, agora mudei, sou, não sei, mais inquieta e mais
introvertida, dizia outra adolescente de 17 anos. Estes exemplos
mostram como a aparição do diabetes transforma a relação
do sujeito à sua historia pessoal. Esta consciência do tempo
em termos de antes e de depois instaura uma nova cronologia
que espera a restauração de um estado do ‘antes’ idealizado. A
idealização do passado, embelezado em relação ao presente
frustrante, ocupa um lugar preponderante. A lembrança do
passado torna-se um ponto de referência e objetivo a ser
atingido, na esperança inconsciente de volta a um estado de boa
saúde.
A ruptura da temporalidade age paralelamente sobre a
noção de identidade: Se não sou mais como antes, quem sou eu
para mim mesmo e para os que me conhecem? O adolescente se
sente outro, modificado, remodelado, estigmatizado pela sua
afecção (Buchbinder, Detzer, Welsch, Christiano, Patashnick &
Com a doença em longo prazo: o choque da
Rich, 2005).) Penso que nunca poderei fazer abstração do meu
permanência, pois como aceitar para sempre um diabetes. Será sempre a coisa mais difícil da minha vida. Não sou
tratamento obrigatório?
como os outros, às vezes até tenho a impressão de que sou um
monstro! (Tomas, três anos depois do diagnostico da sua DID).
Diante da doença crônica, o tempo, paradoxalmente, não
A modificação de si mesmo subjetivamente percebida
resolve nada! Aliado do jovem doente no processo psíquico de é universal no âmbito desta doença. Ela também pode ser
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objetivamente medida. Vários estudos em diferentes países
mostraram a evidência da prevalência de mecanismos
antidepressivos em adolescentes portadores de DID, assim
como perturbações importantes nas relações interpessoais que
se manifestam pela introversão e a inibição, ou pelo agir e a
excitação (Castro et al., 2000; Hsu, Dorn & Sereika, 2010; Huurre
& 2002)
Durante a evolução da doença, hipoglicemias severas, comas
diabéticos, crises, acidentes, operam uma ruptura na cronologia
do tempo da doença, modificando uma vez mais a percepção
que o sujeito tem do antes e do depois. A experiência temporal
assim interrompida reaviva no adolescente e na sua família o
choque do anuncio inicial do diagnostico, provocando terror e
sideração. A descontinuidade da experiência temporal sempre
tem por efeito uma desorganização da economia psíquica. O
reequilíbrio depende da reativação de mecanismos pessoais de
defesa que permitam ultrapassar a crise com o auxilio da família
e o apoio caloroso dos pares (Buchbinder et al., 2005).
Uma segunda problemática refere-se à defasagem que
modifica, para o adolescente, a relação pessoal e temporal
aos outros. No âmbito da doença crônica, a defasagem que
o paciente experimenta quando deve controlar sua doença
que interfere na sua relação com os outros. Este fenômeno se
define como uma irritação sentida pelo paciente enquanto deve
controlar sua doença que interfere na sua relação aos outros. Este
fenômeno é claramente percebido pelo adolescente quando a
centralização sobre si mesmo e o interesse pelos outros se
tornam suas principais preocupações. Nesta época de sua vida,
os jovens sentem uma necessidade imperiosa de conformismo,
de comunicação, de trocas, de proximidade com outras pessoas
significativas, de conversas sobre a sexualidade e análise do
funcionamento humano. Estas necessidades se manifestam
ao nível do comportamento pelo aumento do tempo passado
com os amigos e pelo engajamento em atividades sociais (fazer
coisas juntos, fazer companhia, ir junto para fazer alguma coisa
com alguém) ou erotizadas (sessões de maquilagem com as
amigas, andar de mãos dadas, entre outras.).
Estas atividades exigem tempo e o sentimento subjetivo de
ter tempo é uma condição necessária à satisfação deste tipo de
necessidade e à integração no grupo de pertencimento. Mas a
doença crônica e seu tratamento quotidiano têm implicações
negativas na relação com os pares na medida em que encurta
os momentos de participação comum, de reuniões espontâneas,
de colaboração programada. As limitações funcionais devidas à
afecção, as interrupções frequentes de atividades ligadas ao seu
tratamento, levam o jovem portador de DID a sentir de maneira
muito negativa as obrigações de horários que lhe são assim
impostas: Não se pode fazer nada, quando se começa a estar
bem tenho que parar para fazer um tratamento, se queixava este
jovem adolescente de 15 anos que adorava ficar em companhia
dos colegas depois das aulas, bebendo Coca-cola e comendo
barras de chocolate. Não se pode nunca fazer como os outros, não
se é diferente e, no entanto não se é mais igual, acrescentava uma
outra adolescente de 15 anos.
O fenômeno de defasagem implica, portanto, numa
experiência afetiva exasperante e frustrante, na qual projetos
percebidos como essenciais não podem se realizar plenamente,
por falta de tempo. Esta experiência reaviva a raiva e o sentimento
de injustiça, gerados pela doença e com ela as eventuais
reações ansiosas e depressivas. Esta vivência de defasagem é
inconscientemente alimentada pelo próprio adolescente. Os
recursos internos, mobilizados para outros fins - na luta pela
autonomia e na construção de si, por exemplo - tornam-se
indisponíveis para outras tarefas. O adolescente vai buscar
apoio e reconforto junto a seus pares. Investirá ainda mais suas
relações sociais e, ainda uma vez, vai lhe faltar tempo. Quanto
mais o esquema terapêutico for estrito ou percebido como tal,
maior será a demanda afetiva e mais intensa a frustração.
Paralelamente, o sentimento de não dispor do mesmo
tempo que os outros amigos por causa do tratamento
médico, influi sobre a autoestima. Acentua assim a convicção
na existência de diferentes identidades, pois o adolescente
doente perde ou se afasta do vinculo forte de afiliação a um
determinado grupo que poderia oferecer, de maneira especular,
segurança e confiança. “Meus amigos são legais, mas não é mais
a mesma coisa!” (Tomas, três anos depois do inicio da doença)
Às vezes este sentimento de perda é fonte de mal entendidos
no grupo. O interesse autêntico dos amigos pode ser percebido
como intrusivo, factício e simulado quando falta autoestima.
(Buchbinder et al., 2005). A sensação de defasagem é um fenômeno tão crônico
quanto a doença, a qual, por sua vez, progride por fases. Para
gerenciá-la, o adolescente passa por períodos de introversão
nos quais recusa a participação dinâmica nas atividades dos
amigos, e/ou por períodos de desobediência total do tratamento
quando horários e obrigações desaparecem da cena mental para
dar lugar à realização total de necessidades afetivas pessoais e
sociais.
Para o adolescente, a urgência é viver intensamente, o
mais perto possível da vida, no momento presente. A adesão ao
tratamento prescrito sofre muito.
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A doença em longo prazo: amortecer os choques se
acomodando com o tratamento
Viver intensamente o momento presente para um
adolescente portador de DID implica, do ponto de vista
psicológico, negar temporariamente sua doença para poder
esquecer seu penoso tratamento. Este movimento psicológico
universal se torna muito claro para o adolescente e produz
efeitos negativos sobre a adesão ao tratamento.
Sabe-se, hoje, que a observação do tratamento diminui
significativamente na adolescência (Jacobson et al., 1987;
Nde-Eshimuni et al, 2011). Cerca de 50% dos adolescentes
não observam corretamente as prescrições médicas (Kynga et
al.2000; Nde-Eshimuni M. Salema et al. 2011), apesar do bom
conhecimento do esquema terapêutico e das consequências
inelutáveis desta desobediência (Castro, 1991).
As problemáticas adolescentes comuns a esta fase do
desenvolvimento humano, associadas à da diferença e à da
defasagem, específicas ao adolescente doente, explicam em
parte este fenômeno. Outra pista explicativa é fornecida pela
análise da noção de cronicidade. O estresse induzido pela aparição
da doença mergulha o jovem numa fase transitória de luto em
relação à perda da integridade física e provoca a mobilização
dos recursos psíquicos necessários para enfrentar esta situação.
Assim, as primeiras fases depois da aparição da doença são
em geral acompanhadas de uma observação particularmente
escrupulosa do tratamento cujo motor psicológico inconsciente
é a esperança de cura total.
À medida que a doença segue seu curso, o jovem paciente é
confrontado com a sua duração interminável. A mobilização de
se tratar é tanto mais insuportável pelo fato de que (no espírito
do jovem) o tratamento só visa a prevenção das complicações
ulteriores e não a cura definitiva tanto esperada.
Portanto, se neste estágio o adolescente consegue se ajustar
à sua vida com o diabetes, ele se torna cada vez mais sensível ao
caráter penoso do seu tratamento. Apesar disto, deve gerenciálo na vida quotidiana. Gerenciar o tratamento no quotidiano
implica, para o adolescente, se assegurar um conforto psicológico
graças à elaboração de novas estratégias adaptativas (cognitivas,
afetivas, etc.). Entre estas, a mais frequente consiste em modificar
cognitivamente o esquema terapêutico a fim de poder aceitá-lo
afetivamente. Concretamente, o adolescente “decide” de se autoprescrever um esquema terapêutico idiossincrático simplificado
(Castro, 1991) ao qual adere plenamente, subjetivamente, e em
longo prazo. Para isto, “decide” suprimir sistematicamente do
seu protocolo quotidiano certos gestos do tratamento (análise
de urina, por exemplo) e/ou certas limitações dietéticas.
Assim reajustado subjetivamente, o tratamento parece
diminuir o peso da dependência e criar no jovem portador de
DID um sentimento de liberdade que reduz a distância entre os
imperativos da situação médica e as necessidades profundas.
Para enfrentar a culpa inerente à transgressão consciente da
prescrição médica, o adolescente vai utilizar uma série de
mecanismos psicológicos de defensa amplamente descritos na
literatura.
Insistiremos na descrição dos mecanismos psíquicos
diretamente orientados para o controle dos afetos negativos de
culpa gerados pela mediocridade da observação terapêutica.
Trata-se essencialmente da racionalização dos comportamentos
de supressão dos gestos de tratamento que se manifesta através
de explicações pessoais que visam a justificá-los plenamente
e a reforçar assim o esquema terapêutico auto-prescrito. Os
adolescentes chamam de “esquecimento” seus comportamentos
de supressão dos gestos de tratamento. A racionalização consiste na atribuição de uma explicação
coerente do ponto de vista lógico, ou aceitável do ponto de vista
social, a um comportamento cujos verdadeiros motivos não são
expressos. No caso do DID, esta se refere a diferentes aspectos
do esquema terapêutico e porta sobre o que é percebido pelo
adolescente como sendo difícil de aceitar do ponto de vista
psicológico (Castro, 1991). Assim nota-se:
A racionalização face à percepção penosa ou dolorosa do
tratamento ou à sua antecipação: o adolescente justifica o
“esquecimento” do teste de sangue dizendo “dói muito”;
A racionalização face à percepção de inutilidade de certos
itens terapêuticos: o adolescente atribui subjetivamente uma
importância variável aos diferentes gestos de tratamento
cotidiano negando a sua necessidade: “as análises de urina não
são muito importantes”; “não adianta nada”; “não serve para
nada”.
A racionalização face às supressões justificadas pela falta de
tempo ou pela presença de preocupações mais essenciais: «tenho
muitas atividades, não dá tempo”; “tinha prova de matemática,
nem pensei nisto » ;
A racionalização face à negociação com o tratamento: «faço
minhas dosagens de sangue duas vezes por semana, na quarta
e no domingo porque não tenho aula. O resto do tempo não
preciso ».
A racionalização face à existência de uma escala de valores
pessoal: “aos domingos aumento as doses de insulina para os
extras culinários, porque é possível”.
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 24-34
A atitude “racionalizante” aparece, nas circunstâncias da
doença crônica, como um fenômeno inevitável e tanto mais
durável. No plano psicológico, ela testemunha da existência de
um compromisso realizado pelo adolescente para enfrentar, por
um lado, o caráter obrigatório do seu tratamento e, por outro
lado, as duas tendências contraditórias e permanentes que são
as de aceitar a doença crônica e negar as suas consequências.
Entretanto, o abuso da atitude racionalizante tem efeitos
negativos sobre a qualidade da observação terapêutica. Pela
justificação aceitável, ela reforça e mantém os comportamentos
terapêuticos inadaptados do jovem paciente. Mas, paralelamente
a estas condutas racionalizantes, e de maneira durável e
periódica, o adolescente utiliza atitudes que lhe permitem
respeitar corretamente seu tratamento médico. Clinicamente
pudemos observar três condutas principais que aparecem muito
frequentemente no discurso dos jovens pacientes:
A primeira se refere a uma cíclica recusa da realidade
da cronicidade: Magui, 14 anos, esta chocada com a 4°
hospitalização para equilibrar o seu DID. Choro, culpa, desespero,
se manifestam durante toda a semana de hospitalização. Quando
sai do hospital, a paz é total: “Decidi de me responsabilizar, de
fazer um esforço, de fazer tudo direitinho durante seis meses.
Só vou comer o que é permitido na “dieta” e voltar a uma vida
normal.” Para sair da depressão, Magui recorre ao mecanismo
de recusa da realidade através da recusa da cronicidade.
Inconscientemente, a representação da doença crônica e durável
foi recusada e substituída por outra representação – temporária
– da doença: aguda, passageira e, portanto, menos ansiogênica,
na qual o respeito escrupuloso do tratamento fica forçosamente
limitado no tempo.
A segunda se refere à noção de reparação: um número
importante de jovens portadores do DID afirma: «quando crescer
vou ser pediatra, biólogo, médico». Assim, através deste projeto
profissional, exprimem a esperança sempre presente de cura ou
de minoração significativa das obrigações cotidianas. Ou ainda,
a tentativa de controlar, talvez mesmo dominar a doença, pela
imersão total no seu universo, para encontrar na fantasia a fonte
profunda da sua origem. Ou ainda, este projeto profissional
também pode revelar a presença de uma atitude altruísta:
dedicar sua vida ao bem-estar dos outros traz um sentido à sua
própria vida com a doença.
A terceira se aparenta a uma estratégia pessoal positiva
que consiste em procurar e achar benefícios pessoais na doença
e suas características. Assim, certos jovens afirmam ser « mais
maduros, mais responsáveis, mais autônomos » desde que foram
diagnosticados com o DID. Trata-se, no entanto, bem entendido,
de uma atitude “racionalizante”, mas neste caso a serviço da
reconquista identitária e da manutenção da saúde física.
Este breve resumo do funcionamento psicológico do
adolescente doente crônico visa constatar diferentes aspectos.
Em primeiro lugar, as problemáticas dos jovens pacientes
portadores de uma doença crônica, e mais particularmente do
DID, são universais. Elas se expressam sob diferentes formas
culturais, mas recobrem as mesmas realidades psíquicas.
Em segundo lugar, esperar que estes jovens pacientes
aceitem definitivamente a sua doença é um objetivo
inteiramente ilusório. Vimos bem como é difícil, neste momento
chave da vida que é a adolescência, gerenciar permanentemente
as problemáticas da diferença e da defasagem.
Em terceiro lugar, a noção de adaptação à doença é complexa
e avança de maneira cíclica. Aos ciclos de melhor adaptação, em
termos de observação do tratamento, seguem-se ciclos mais
medíocres. A adaptação é fortemente correlata à natureza da
doença e à facilidade de equilíbrio, ao estado afetivo do jovem
assim como à qualidade de seu ambiente relacional.
Em quarto lugar, o apoio psicológico aos adolescentes
doentes crônicos deve imperativamente levar em conta, além
da singularidade individual, as noções cíclicas de aceitação e de”
adaptação à doença tais como foram apresentadas aqui.
Com a doença em longo prazo: amortecer os
choques recorrendo ao psicólogo do serviço de
dialetologia
Na nossa experiência, a consulta psicológica no âmbito
da doença crônica não é sistemática. Ela é oferecida aos
pacientes e às suas famílias sob a forma de consultas eventuais,
tratamentos breves ou reuniões periódicas. A ajuda psicológica
aos adolescentes portadores de DID torna-se, como a propria
doença e as flutuações psicológicas dos jovens, uma questão…
crônica de encontros e de trocas em longo prazo!
Com efeito, o recurso ao psicólogo acontece pela demanda
dos pacientes nas fases periódicas de desequilíbrio somático ou
psíquico. A ansiedade suscitada por este tipo de acontecimento
propulsa o paciente e sua família na busca de sentido e na procura
de explicações racionais e lógicas. A demanda de consulta com
o psicólogo aumenta, de maneira recorrente, nestas ocasiões.
O recurso ao psicólogo aparece também de maneira recorrente
a pedido das equipes médicas e paramédicas, inquietas ao
constatar uma observação medíocre. Nestes casos, o psicólogo
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deve gerenciar um problema especifico de defasagem que se
opera entre os objetivos dos jovens pacientes e os da equipe.
Trata-se, com efeito, de uma divergência fundamental na
definição dos objetivos de tratamento que interroga a questão
da temporalidade. Para ao adolescente, se tratar equivale a
viver o mais perto possível da vida dos outros e do bem-estar
cotidiano, portanto de respeitar seu próprio ritmo e modular
o seu esquema terapêutico. Para a equipe, o tratamento visa
prevenir as complicações ulteriores e assim manter a vida;
portanto, a equipe se apressa em apontar ao seu jovem paciente
seu descuido em relação ao tratamento prescrito e lhe pedir para
restabelecê-lo o melhor possível sem perder tempo.
Para o psicólogo, a gestão destas situações é difícil, pois, de
um lado como do outro, fortes expectativas pesam sobre a sua
função. Resposta miraculosa aos questionamentos, modificação
mágica dos comportamentos indesejáveis, soluções “imediatas”
a situações insolúveis, dentre outras. Estas situações só podem
encontrar solução satisfatória na abordagem “caso por caso”, em
longo prazo, na abordagem pluridisciplinar e, sobretudo, com
a participação consentida das partes concernidas. Assim, uma
primeira forma de ajuda dispensada pelo psicólogo do serviço de
dialetologia é oferecer às equipes de tratamento a possibilidade
de compreender o funcionamento do jovem paciente e modular
assim seu discurso e sua atitude face a ele. Neste contexto, o
psicólogo, explicando o funcionamento do paciente, trabalha
em prol da compreensão do adolescente doente junto às equipes
para individualizar suas necessidades específicas na interface
com o trabalho da adolescência, e também para permitir que
as duas partes – pacientes e equipe –se aproximem numa
troca construtiva a propósito da doença e de seu tratamento.
Uma segunda forma de ajuda psicológica acontece junto ao
adolescente durante as repetidas hospitalizações ou as consultas
programadas.
A missão do psicólogo clinico é simples, teoricamente. Ele
deve “obrar” no interesse do seu paciente, qualquer que seja o
seu referencial teórico, “para a autonomia da sua personalidade”
b
·. Isto vale dizer que no serviço de diabetologia, como em
outros serviços, o psicólogo trabalha para a causa identitária. Ele
contribui para manter a coerência da identidade do adolescente,
sua continuidade e sua perenidade, para que este nunca esqueça
que antes de ser doente ele é uma pessoa.
No terreno, para desempenhar a sua missão, o psicólogo
dispõe de duas fontes inesgotáveis de inspiração criativa: a
primeira provém dos próprios adolescentes: da observação e
do retorno de seu funcionamento psíquico, das estratégias que
b Statut des psychologues hospitalier
utilizam para contornar as dificuldades, da sua capacidade a se
conhecer e a se apoiar nos seus recursos internos, do seu estilo
relacional, etc. Para o psicólogo, o objetivo privilegiado destas
interações é de ajudar a integração dos recursos pessoais e o
desenvolvimento daqueles que ainda estão em estado bruto.
Encorajar periodicamente, sobretudo em fase de desequilíbrio,
a busca partilhada de sentido, de revolta, de isolamento ou de
oposição na vida com o diabetes. A busca de sentido permite
discriminar estes estados emocionais intensos, e assim fazendo
permitir que emerjam de maneira mais elaborada e menos
dolorosa para o jovem. Sobretudo permite ao jovem, devido
à tomada de consciência que implica adquirir e se lembrar
(periodicamente), que ele pode se ajudar o melhor possível
com o que ele é e o que ele pode realizar; a segunda provém dos
dados da pesquisa neste campo. Com efeito, o trabalho clinico de
observação, de interação e de apoio justo ao jovem se enriquece
utilmente pelas contribuições da pesquisa e permite que a
criatividade do psicólogo se concretize no tratamento de cada
paciente. Os resultados da pesquisa trazem ideias e aberturas
tanto no estilo relacional estabelecido com o adolescente
doente quanto na renovação das temáticas abordadas com ele.
Os dados da pesquisa ajudam o psicólogo a construir sua missão
de ajuda para que ele possa regularmente estimular o interesse
do adolescente por ele mesmo e pelo seu bem-estar somático
e psíquico.
Exporemos a seguir três exemplos de praticas psicológicas
provenientes da pesquisa contemporânea no campo da doença
crônica na adolescência. Trata-se da noção de pesquisa de
benefícios, da questão do posicionamento no grupo de pares
e de sua utilização como mediador do estresse cotidiano, e dos
estilos de enfoque psicológico diferenciado segundo o sexo do
adolescente.
A busca de benefícios se define como a experiência emocional
que permite ao sujeito experimentar características positivas
durante situações adversas. Age como um fator de proteção
e demonstra de maneira reiterada seu impacto positivo na
adaptação à doença (Helgeson, Reynolds & Tomich, 2006; Linley
& Joseph, 2004). Assim definida, a busca de benefícios torna-se
uma fonte renovada de equilíbrio psicológico nas situações de
sofrimento emocional ligadas aos aspectos negativos da doença
e do seu tratamento. O papel do psicólogo neste contexto é levar
o adolescente a operar, regularmente, esta mutação na maneira
como ele se vê e como vê a sua doença.
O posicionamento e utilização do grupo de pares: os dados
da pesquisa (Helgeson, Snyder, Escobar, Siminerio & Becker,
2007; Salema et al., 2011) mostram que os pares têm uma
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 24-34
influência positiva no bem-estar do adolescente doente porque
o seu apoio emocional veicula a aceitação e o reconhecimento
que necessita como pessoa, e contribui à consolidação da sua
identidade em margem da doença. Assim, pelo seu apoio,
camaradas e amigos representam um eficaz fator de proteção
contra o estresse da doença e do tratamento. Junto ao jovem,
sua adaptação às obrigações terapêuticas ou sua assistência
espontânea na realização dos gestos terapêuticos, oferece
segurança e tranquilidade ao adolescente doente. Desta forma,
pelo seu interesse e sua atenção às necessidades do adolescente
doente, os pares lhe permitem controlar seus comportamentos
de provocação (particularmente no âmbito da alimentação),
prevenir as eventuais brincadeiras tão temidas, e se abrir
às necessidades psicológicas dos outros. Neste contexto, o
papel do psicólogo é acompanhar o jovem paciente no seu
posicionamento constantemente renovado no seu grupo
de pertencimento, expressando periodicamente e em toda
segurança seus sentimentos e suas expectativas e, sobretudo,
aceitar a ideia de que seus pares representam uma fonte de
apoio inesgotável e solida.
O estilo de enfoque psicológico diferenciado segundo o sexo
do adolescente se refere à constatação de que os adolescentes
portadores de DID têm mais dificuldades relacionais que as
adolescentes. Frequentemente eles se isolam e mostram
dificuldade para partilhar o afeto dos amigos. Seu discurso
é mais concreto e frequentemente reprimem suas emoções.
Assim sendo, experimentam significativamente mais emoções
negativas, irritantes ou penosas. Os autores explicam estes
resultados referindo-se à noção de estereotipo aplicada aos
papeis sociais dos homens e das mulheres. Com efeito, para estes
adolescentes, ser doente é percebido como um forte sinal de
fraqueza, e a fraqueza é inconsistente com as características de
força atribuída ao sexo masculino na sociedade contemporânea
(Helgeson et al. 2007 ; Korbel et al, 2007). Neste contexto, o
papel do psicólogo é de ficar atento às diferenças de gênero
para não subestimar as dificuldades psicológicas especificas aos
meninos. E, bem entendido, para facilitar o seu acesso, através
de vias que eles considerem aceitáveis, à sua vida interior e à sua
elaboração.
Conclusão
Nada será nunca mais como antes quando a doença crônica
aparece e desorganiza o ritmo harmonioso da vida! Na passagem
do antes para o depois, numa vida diferente daquela imaginada
ou esperada, os adolescentes doentes crônicos necessitam,
no mundo todo e em todas as culturas, de encorajamentos
adaptados, de orientação construtiva, de apoio envolvente, e de
companheirismo solidário na sua luta cíclica com os momentos
de desenvolvimento psicológico e os períodos da doença.
Nesta luta cíclica, o psicólogo é seu aliado. Pela sua escuta
criativa, sua aceitação empática e seus conhecimentos clínicos,
ele permanece de maneira “crônica” ao lado do paciente,
garantindo permanentemente a sua identidade profunda.
Juntos, paciente e psicólogo, trabalham lado a lado para manter
em longo prazo, perseverando, no imediato da vida cotidiana,
numerosos instantes privilegiados à margem da doença.
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Revisado em novembro/2012
Aceito em novembro/2012
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R E L ATO D E P E S Q U I S A
Síndrome de burnout: um estudo comparativo entre enfermeiros e
médicos portugueses
Burnout syndrome: comparative study between Portuguese nurses and physicians
Sofia Dias(a)*
Resumo: A síndrome de burnout assume actualmente uma importância crescente, atraindo a atenção da
comunidade científica pelo impacto que causa nos trabalhadores de diferentes profissões, em especial,
nos enfermeiros e nos médicos, devido à severidade das suas consequências, assumindo-se como
uma problemática psicossocial relevante para a saúde do trabalhador. Este estudo tem como objetivo
comparar a prevalência e os níveis de burnout numa amostra de 164 profissionais de saúde portugueses
(98 enfermeiros e 66 médicos), a desempenhar funções no serviço de Urgência através da aplicação
do MBI-HSS . Os resultados revelaram diferenças significativas entre estes profissionais. As enfermeiras
apresentaram uma prevalência mais elevada da sindrome de brnout e maior exaustão emocional e
despersonalização do que os médicos.
Palavras-chave: Síndrome de Burnout; Estresse ocupacional; Médicos; Enfermeiros
Abstract: The burnout syndrome assumes actually an increasing i mportance, attracting the attention of
the scientific community by the impact it causes on workers of different professions, particularly on nurses
and physicians, due to the severity of the consequences, being a relevant psycho-social problem related
with the health of the worker. This study aims to compare the prevalence and the levels of the burnout
among 164 Portuguese health professionals (98 nurses and 66 physicians), working in an Urgency service
through the application of the MBI-HSS. Results revealed significant differences between these health
professionals. Nurses present a higher prevalence of burnout syndrome and more levels of emotional
exhaustion and depersonalization than physicians.
Key Words: Burnout syndrome; Occupational stress; Nurses; Physicians
a Licenciada em Enfermagem (ESESM) e em Psicologia (FPCEUP). Mestre em SIDA: da Prevenção á Terapêutica (FM-FPCEUC).
Doutoranda da Fundação para a Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Governo da República Portuguesa na FPCEUP.
*E-mail: [email protected]
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
35
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 35-41
A síndrome de burnout nos profissionais de saúde tem
suscitado cada vez mais o interesse da comunidade científica
devido às graves consequências que podem produzir na
qualidade dos cuidados prestados aos utentes, uma vez que
estes trabalhadores estão particularmente susceptíveis ao
sofrimento psíquico e ao adoecimento pelo trabalho (Rios,
2008). Segundo estudos epidemiológicos europeus, esta é uma
realidade muito preocupante, sendo já encarada como um risco
psicossocial emergente, no âmbito da saúde pública (Gil-Monte,
2005). Ao pesquisarmos investigações realizadas nesta temática,
os resultados encontrados parecem ser convergentes ao
afirmarem que os profissionais da área da saúde, pela constante
exposição a fontes de stress, apresentam-se em risco elevado de
desenvolverem a síndrome de burnout (De Dios & Franco, 2007;
Dias, Queirós & Carlotto, 2010; Silva & Gomes, 2009), colocando
em causa a garantia da qualidade do atendimento e da prestação
dos cuidados aos Utentes.
De acordo com a literatura, a síndrome de burnout é apenas
uma das respostas possíveis às fontes de stress excessivas
relacionadas com o trabalho, surgindo como o resultado do
stress crónico, típico do quotidiano do trabalho, principalmente
quando neste existe sobre os seus trabalhadores pressões
excessivas, conflitos, poucas recompensas emocionais e
reconhecimento (Maslasch, Schaufeli & Leiter, 2001). Assim, são
numerosos os factores identificados na literatura que parecem
contribuir para o surgimento e evolução da síndrome, podendo
ser enquadrados nos domínios social, psicológico, individual,
familiar, profissional, cultural e do meio ambiente. De uma
forma consensual, o stress é conhecido por provocar exaustão
emocional nos profissionais de saúde, podendo conduzi-los
a experimentar sentimentos negativos em relação ao seu
trabalho. Maslach e Jackson (1981) referem nesta linha de
pensamento que as profissões assistenciais ou de ajuda exigem
que os trabalhadores despendam de um tempo considerável de
intensa relação interpessoal, que se encontram frequentemente
em situações problemáticas e cuja relação está repleta de
sentimentos de perturbação emocional, frustração, medo ou
desespero, como é o caso dos enfermeiros e dos médicos.
Delbrouck (2006) propõe inclusivé como causas explicativas da
exaustão específica do prestador de cuidados a especificidade
da profissão clínica; o impacto e a repetição de traumatismos
encontrados nos doentes e, por fim, o isolamento físico e
psicoafectivo do prestador de cuidados. Como consequência,
a tensão e o stress resultantes podem ter um efeito de uma
deterioração emocional, em que estes profissionais de saúde
experienciam uma sensação de vazio e sintomas próprios da
síndroma de burnout. Por outro lado, a realidade portuguesa
dos serviços de saúde, que se encontra no momento actual em
grande reformulação, contrasta com as expectativas pessoais
destes profissionais, contribuíndo, de uma forma significativa,
para o aparecimento do stress e sentimentos que constituem
as três dimensões que caracterizam a síndrome de burnout:
exaustão emocional, despersonalização e baixa realização
profissional (Carlotto, 2010; Maslach et al., 2001). Assim,
quando a instituição hospitalar não é capaz de proporcionar os
apoios necessários à realização de um desempenho profissional
óptimo, o pessoal médico e o de enfermagem ficam mais
vulneráveis ao aparecimento e desenvolvimento de síndrome de
burnout.
Alguns autores, por vezes têm partilhado uma visão mais
simplista, em que o excesso da pressão laboral apresenta como
consequência imediata o desgaste emocional, verificando, no
entanto, que diferentes trabalhadores, como enfermeiros e
médicos, expostos às mesmas circunstâncias não experienciam
as mesmas vivências. Nesse sentido, as investigações remetem
para a identificação de alguns factores explicativos que
conduzem ao burnout nos profissionais de saúde, destacando-se
o trabalho por turnos, o cansaço emocional, a falta de realização
pessoal e o sentimento de incapacidade e de ausência de
controlo face às situações de risco eminente (Moreno-Jimenez &
Puente, 1999), o ambiente insalubre, a remuneração, o contacto
muito próximo com os Utentes (Escribá-Agüir, Martín-Baena &
Pérez-Hoyos, 2006) que podem mobilizar emoções e conflitos, o
ambiente físico que envolve uma atmosfera fechada, as pressões
de tempo, os ruídos excessivos ou os silêncios incumpridos, a
variedade de funções e tarefas, longas horas de pé (Costa, Morita
& Martinez, 2000), os conflitos familiares com o trabalho e do
trabalho com a família, a falta de recursos pessoais, as relações
interpessoais inadequadas, a deficiente supervisão da gestão, a
formação insuficiente (Cottrell, 2001), a sobrecarga de trabalho,
o apoio social ineficaz, eventos de vida traumáticos, estratégias
de coping desajustados (Cline, Reilly & Moore, 2004).
Devido ao risco elevado para o experienciar do burnout
por parte dos profissionais de saúde, a literatura apresenta nesta
temática alguns estudos desenvolvidos com os enfermeiros
(Alcacioglu, Yavuzsen, Dirioz, Oztop & Yilmaz, 2009; Albadejo,
Villanueva & Ortega, 2004; Dias, Queirós & Carlotto, 2010;
Maslach et al., 2001) e com médicos (Martín, Hernández,
Arnillas & García, 2009; Palmer, Gomez-Vera, Cabrera-Pivaral,
Prince-Vélez & Searcy, 2005; Ramirez, Graham, Richards, Cull
& Gregory, 1996) e apesar de mais escassos, nomeadamente
em Portugal, alguns estudos comparativos entre estas duas
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categorias profissionais, que procuraram identificar os factores
e as fontes de stress que levam ao aparecimento da síndrome
de burnout (Quirós-Aragón & Labrador-Encinas, 2007; Silva &
Gomes, 2009). No estudo realizado por Silva e Gomes (2009),
foram identificados maiores níveis de stress associados à falta
de poder, reconhecimento, instabilidade profissional e de
carreira, remuneração e status profissional nos enfermeiros
comparativamente aos médicos. A investigação de âmbito
nacional conduzida por Queirós, em 2005, revelou que em
termos de prevalência, um em cada quatro enfermeiros
apresentava burnout no trabalho. Outros estudos apontam
os profissionais de enfermagem como os mais susceptíveis a
desenvolver a síndrome de burnout (Moreira, Magnago, Sakae
& Magajewski, 2009; Rodríguez-García, Oviedo, Santillán,
Velázquez & Fiesco, 2009). Estes profissionais, geralmente estão
expostos a uma maior sobrecarga de trabalho (Rodríguez-García
et al., 2009), evidenciam maior cansaço emocional, falta de
realização pessoal e sentimento de incapacidade e de ausência
de controlo face às decisões dos médicos (Gunnarsdóttir, Clarke,
Rafferty & Nutbeam, 2009). No estudo realizado por Paredes,
Pereira e Montiel (2008), que investigou a síndrome de burnout
numa amostra constituída por 65 médicos e por 100 enfermeiros
nicaraguenses, foram identificados maiores níveis da síndrome
em enfermeiros, com uma prevalência de 28%, o dobro da
amostra médica. Por seu lado, Yang, Koh, Lee, Chan e Chia (2001)
concluíram que enfermeiros a desempenhar funções no serviço
de urgência apresentam elevados níveis de stress profissional
quando comparados com enfermeiros a desempenhar funções
noutros serviços. Segundo Ersoy-Kart (2009) e Kalemoglu e
Keskin (2006), os profissionais de saúde que trabalham no
serviço de urgência, em particular, na emergência, podem estar
sob o impacto da síndrome de burnout, uma vez que estes
serviços são considerados como os mais activos e stressantes
dos Hospitais.
Com a realização deste estudo pretende-se conhecer
nesta amostra a prevalência da síndrome de burnout e verificar
se existem diferenças nas dimensões do burnout entre os
enfermeiros e médicos que desempenham funções no serviço
de urgência num hospital público da região norte de Portugal.
sexo feminino (62%), casados ou em união de facto (50%) e
sem filhos (59%). A idade variou entre 24 e 60 anos (M = 35.4;
DP = 9.3) e os anos de serviço variaram entre 2 e 40 anos (M
= 11.4; DP = 8.5). No que diz respeito à situação profissional,
verificou-se o predomínio dos profissionais de enfermagem
(60%), com vínculo definitivo (61%), com exclusividade (34%),
apresentando os inquiridos uma carga horária semanal superior
a 35 horas (77%), com um horário de trabalho em refime de
turnos (76%). Somente 20% dos participantes desempenha
outros cargos, nomeadamente a formação em serviço. A tabela
1 apresenta o perfil sóciodemográfico e laboral da amostra.
Tabela 1
Perfil sociodemográfico e laboral da amostra (N=164)
Características Enfermeiros (n=98)
Médicos (n=66)
Sexo
67% feminino
53% feminino
Estado civil
33% casados ou união
76% casados ou união
de facto
de facto
Filhos
20% com filhos
74% com filhos
Faixa etária
24 a 59 anos
26 a 60 anos
M = 30.9 anos (±6.26) M =42.2 anos (±9.01)
Anos de
2 a 36 anos
2 a 40 anos
Serviço
M = 7.97 anos (±5.77) M =16.5 anos (±9.21)
Formação
14% Pós graduação
6% Pós graduação
2 % Mestrado
6 % Mestrado
6 % Doutoramento
Tipo de
62% com vínculo
61% com vínculo
contrato
definitivo
definitivo
Pluriemprego 67% com pluriemprego 62% com pluriemprego
Carga horária 70% com carga superior a 87% com carga superior
semanal
35 horas
a 35 horas
Horário de
97% em regime de turnos 44% em regime de turnos
trabalho
Desempenho 5% com cargos
41% com cargos
de Cargos
Instrumentos
Foi construído um questionário adaptado aos objectivos
da investigação, sendo constituído essencialmente por dois
grupos de questões. O primeiro grupo permitiu a caracterização
sócio-demográfica e profissional da amostra. O segundo grupo
pretendeu avaliar o burnout, através do MBI-HSS (Maslach
Burnout Inventory - Human Services Survey, de Maslach &
Jackson, 1996). Este instrumento é constituído por 22 itens,
em que o participante tem que assinalar a frequência com
Método
que vive ou sente várias situações descritas, cujas opções de
Amostra
resposta se encontram formuladas numa escala de Likert de 7
Foram inquiridos 164 profissionais de saúde que pontos, que vão do zero (nunca) aos seis (todos os dias). Contêm
desempenhavam funções no serviço de Urgência de uma na sua organização as três dimensões que medem a Exaustão
instituição hospitalar do distrito do Porto, com o predomínio do Emocional (9 itens, alfa = .887), Despersonalização (5 itens, alfa
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= .775) e Realização Pessoal (8 itens, alfa = .812). A validade
factorial deste instrumento tem sido amplamente estudada em
diferentes amostras e países (Chayu & Kreitler, 2011; Schaufeli,
Leiter & Maslach, 2009), cujos resultados recomendam para a
utilização de soluções com três factores, assumindo-se o burnout
como um constructo tridimensional (exaustão emocional,
despersonalização e reduzida realização pessoal), remetendo
para o não uso do score total do MBI como uma única variável,
de acordo com as recomendações do manual elaborado pelas
autoras (Maslach, Jackson & Leiter, 1996). Nesse sentido, um
elevado grau de burnout é reflectido em elevados resultados
nas dimensões de exaustão emocional e despersonalização
e em baixos resultados na dimensão da realização pessoal.
As qualidades psicométricas deste instrumento revelaram-se
satisfatórias, de acordo com os critérios propostos por Bryman e
Cramer (2003) e Field (2009).
Procedimentos
(t Student). Após ter sido realizada inicialmente uma análise
descritiva das variáveis em estudo e para determinar os critérios
de risco para o burnout, foi utilizado também o procedimento
recomendado de Shirom (1989), uma vez se assume como
uma alternativa válida para identificar os índices de burnout
tendo em conta a frequência dos sintomas que quando não
existem pontos de corte, baseados em percentis validados no
país para classificar a população, como acontece em Portugal.
Este autor defende que os indivíduos que apresentam sintomas
com frequência igual ou superior a “Algumas vezes por semana”
desenvolveram burnout. No MBI-HSS, esta indicação surge na
escala de Likert correspondente a “Algumas vezes por semana”
é 4. Assim, os profissionais com pontuações ≥ 4 nas dimensões
do MBI apresentaram níveis elevados na mesma, excepto na
dimensão realização pessoal que é avaliado em sentido inverso.
Para avaliar a prevalência da síndrome de burnout, através deste
critério, consideram-se altas as pontuações dos participantes
que apresentem uma média ponderada superior a 4 (Algumas
vezes por semana) para as dimensões exaustão emocional e
despersonalização e inferior a 4 (Algumas vezes por semana)
para a dimensão realização com o trabalho.
O tratamento dos dados obedeceu a um nível de confiança
de 95%, com um nível de significância de 5% (valor de p
<.005). No entanto e valorizando o apelo da comunidade
científica, no que diz respeito à importância do uso de métodos
alternativos para a análise de dados nas investigações, em
particular no âmbito das ciências sociais, nomeadamente
devido às críticas crescentes do uso da estatística inferencial,
foi nosso objectivo adicionar na apresentação dos resultados
deste estudo, o tamanho do efeito (effect size). O tamanho do
efeito foi calculado pela diferença média padronizada entre
dois grupos (d de Cohen) que considera o tamanho do efeito
inferior ou igual a .2 pequeno, entre .2 a .5 moderado, de .6 a 1.0
elevado e superiores a 1.0 muito elevado (Cohen, 1988; Maroco,
2007). Assim, quanto maior for o tamanho do efeito, maior será
a manifestação do fenómeno em estudo na população.
Entre a distribuição dos questionários e a sua devolução
demorou cerca de 1 mês. Foram entregues 200 exemplares e
recolhidos 164, correspondendo a 82% de taxa de devolução.
Os dados obtidos foram recolhidos no primeiro semestre
de 2012, junto de enfermeiros que exerciam as suas funções
no serviço de urgência de um hospital público da região norte
de Portugal, seleccionado em função de contactos prévios
estabelecidos (amostra de conveniência quanto ao serviço).
Nesse momento, foram apresentados e esclarecidos os objectivos
da investigação, e após a autorização os questionários foram
distribuídos por todos os profissionais que se voluntariaram
para participar. Foi ainda realizado um estudo piloto com
20 profissionais que possuíam características similares aos
indivíduos da população a ser estudada para verificar possível
ambiguidade de alguma questão, respostas não previstas,
não variabilidade de algumas perguntas e tempo estimado
de aplicação, seguindo orientação de Barbetta (2001). Os
questionários foram distribuídos pela chefias dos serviços,
sendo de auto-preenchimento, confidenciais e com a garantia
da anonimização das informações recolhidas, demorando
em média cerca de 10 minutos para o preenchimento. Deste
modo, os interessados receberam o questionário e depois de
preenchido colocaram-no num envelope selado, entregando-o
a um representante do serviço (previamente acordado) que os
recolheu e devolveu à investigadora. Os dados foram tratados
com recurso ao PASW versão 18 (SPSS/PASW, Inc., Chicago,
Resultados
IL), onde se realizou uma verificação crítica, através da análise
de distribuição de frequências com a finalidade de detectar a
Apresentamos a seguir os resultados obtidos com a
presença de outliers ou erros de digitação. Foram realizados realização deste estudo. De acordo com as recomendações de
diferentes procedimentos estatisticos, para análise descritiva Shirom (1989), verifica-se que é a classe de enfermagem quem
e para a comparação de médias entre os grupos profissionais apresenta uma maior prevalência da síndrome de burnout. Nesse
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sentido, 15% dos enfermeiros apresentam já niveis elevados
de eauxtão emocional; 4% apresentam um nível elevado de
despersonalização e 34% apresentam valores elevados de baixa
realização profissional (Tabela 2).
Tabela 2
Prevalência da Síndrome de Burnout nos enfermeiros e médicos portugueses
Dimensões do MBI
Baixos níveis ( <4)
Enfermeiros Médicos
n (%)
n (%)
Exaustão Emocional 83(85)
64(97)
Despersonalização 94(95)
66(100)
Realização Pessoal 33(34)
22(33)
Altos níveis (≥4)
Enfermeiros Médicos
n (%)
n (%)
15(15)
2(3)
4(4)
65(66)
44(67)
Ao realizar as análises comparativas das médias das
dimensão do burnout para cada grupo profissional, foram
encontradas diferenças estatisticamente significativas. Nesse
sentido, os resultados evidenciam que são os enfermeiros que
apresentam médias mais elevadas de exaustão emocional e
de despersonalização. O tamanho do efeito, calculado pelo d
de Cohen, para os resultados significativos variou de 0.3 (efeito
médio) a 0.6 (efeito grande). (Tabela 3).
Tabela 3
Comparação de médias das dimensões da SB
portugueses
Enfermeiros Médicos
(n=98)
(n=66)
Dimensões do
M DP M DP
MBI (0-6)
Exaustão
2.61 1.23 2.18 1.01
emocional
em enfermeiros e médicos
t
p
d
t(162)= .020* .382
-2.355
t(162)=
Despersonalização 1.89 1.27 1.22 .90 -3.697 .000* .607
Realização pessoal 4.33 .86 4.35 1.03 t(162)=
.907 .021
.121
Nota: * Diferença significativa ao nível de 5%
Discussão
Com a realização deste estudo, verificamos que de uma
forma geral, os resultados obtidos vão ao encontro das evidências
sugeridas pela grande maioria da investigação neste domínio
temático. Os profissionais de saúde, em especial os enfermeiros
e os médicos, devido às exigências emocionais e físicas que a
sua profissão acarreta, assumem-se como um grupo vulnerável
ao burnout.
Os resultados obtidos mostram que esta síndrome ainda
não está instalada nos profissionais deste estudo, apesar da sua
prevalência ser maior nos enfermeiros do que nos médicos. Nesse
sentido, esta amosta de profissionais de saúde revela uma baixa
prevalência de níveis de burnout, caracterizada por uma elevada
realização pessoal, moderada exaustão emocional e baixa
despersonalização, não corroborando com o modelo processual
proposto por Maslach e Jackson (1981). Segundo estas autoras,
níveis elevados nas dimensões da exaustão emocional e
despersonalização e baixos na realização pessoal são indicadoras
da síndrome de burnout. Mesmo considerando a percentagem
significativa de profissionais não realizados profissionalmente,
as percentagens mais baixas nas outras duas dimensões
traduzem um risco para o experienciar burnout. Assim, importa
salvaguardar que já existem profissionais “activos” (enfermeiros
e médicos) em risco de adoecerem pelo trabalho, uma vez que
apresentam níveis elevados de exaustão emocional (15% e 3%,
respectivamente) e de diminuição da realização pessoal (33%
e 34%, respectivamente). Somente os enfermeiros apresentam
altos níveis de despersonalização (4%). Segundo estes autores,
a síndrome constitui-se como um modelo multidimensional,
que se desenvolve de uma forma sequencial, devendo as suas
três dimensões ser consideradas para caracterizá-la (Ortega &
Lopez, 2004). Nesta perspectiva e nesta amostra, os enfermeiros
assumem-se como o principal grupo profissional de risco ao
burnout, uma vez que congregam as três categorias de factores
apontados por Maslach et al. (2001).
No que concerne à comparação das médias das dimensões
da síndrome de burnout nesta amostra, os resultados
confirmaram que existem diferenças significativas entre
estes grupos profissionais em relação á exaustão emocional e
despersonalização, sendo superior nos enfermeiros do que nos
médicos, corroborando estudos já realizados (Gunnarsdóttir et
al., 2009; Paredes et al., 2008; Rodríguez-García et al., 2009;
Yang et al., 2001). Uma das possibilidades para explicar estes
resultados pode estar relacionada com o perfil sóciodemográfico
e laboral dos profissionais de saúde envolvidos neste estudo.
Nesse sentido, este grupo de enfermeiros apresenta, segundo
a literatura, um perfil de risco para o experienciar do stress e
do burnout, uma vez que é constituído essencialmente pelo
género feminino, profissionais jovens, solteiros, sem filhos,
com uma carga horária elevada, com regime de trabalho por
turnos, a desempenharem funções com condições de trabalho
adversas, e que actuam nos serviços de Urgência (Cornelius &
Carlotto, 2007; Dias et al., 2010; Rosa & Carlotto, 2006; Moreira
et al., 2009; Ríos-Castillo, Barrios-Santiago, Ocampo-Mancilla &
Ávila-Rojas, 2007).
Por outro lado e apesar da enfermagem congregar
tradicionalmente profissionais altruístas, com valores e
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expectativas elevadas, vocacionados para o cuidar das
pessoas, com um intenso sentido de idealismo, esperança e
dedicação, estes profissionais estão cada vez mais expostos a
diversas fontes de stress (baixa remuneração económica, com
recurso ao múltiplo emprego, horários de trabalho extensas,
aumento das exigências de utentes, médicos, familiares e
supervisores, falta de reconhecimento por parte dos outros
membros da equipa de saúde, alta pressão competitiva) que
podem conduzir à deterioração das relações interpessoais nos
serviços (nomeadamente com a classe médica) e condicionar
o seu desempenho e realização profissional. Nesse sentido,
estes resultados devem ser encarados e enquadrados tendo
em conta o quadro das elevadas exigências actuais do contexto
socioeconómico do país e das implicações directas e indirectas
nas organizações de saúde que daí resultam. Nesta linha de
pensamento, importa aqui reforçar a necessidade por parte
da instituição hospitalar da implementação de estratégias e
programas de prevenção do stress ocupacional, proporcionando
os apoios necessários para um desempenho profissional mais
optimizado, uma vez que o pessoal médico e o de enfermagem
ficam mais vulneráveis ao aparecimento e desenvolvimento de
síndrome de burnout.
O presente estudo fornece algumas pistas para a
compreensão do fenómeno em estudo entre enfermeiros
e médicos. No entanto, salvaguardam-se alguns aspectos
críticos que colocam algumas reservas à generalização dos
resultados e ás conclusões inferidas. Embora se tenha tido
uma preocupação com os procedimentos e recomendações
metodológicas ao nível da aplicação do instrumento e na
análise de dados, existe um conjunto de limitações que importa
ressalvar. Esses aspectos estão relacionados com os critérios de
selecção da amostra, que deu preferência aos profissionais que
trabalhavam num único serviço de uma instituição do distrito
do Porto. Por outro lado, as características sociodemográficas
deste estudo limitaram algumas inferências, uma vez que se
foi verificando homogeneidade/ convergência nas mesmas.
Outra limitação está relacionada com o facto de se ter utilizado
predominantemente uma metodologia quantitativa, tendose recorrido ao questionário como instrumento de recolha de
dados. Esta medida, de autopreenchimento, comporta consigo
possíveis enviesamentos, derivados da desejabilidade social, de
respostas aleatórias, da falsificação e do estilo de resposta, como
descritas na literatura. A adicionar a este facto, temos também
o “efeito do trabalhador sadio”, em que só os trabalhadores
“profissionalmente activos” estão possibilitados de participar
na investigação, ao invés dos que estão ausentes do serviço por
motivos de doença ou de férias. Para, além disso, a maioria dos
estudos é de natureza correlacional e todos são transversais, o
que não permite inferir causalidade e pode ter ainda associado
efeitos do método comum.
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Recebido em setembro/2012
Revisado em dezembro/2012
Aceito em dezembro/2012
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R E L ATO D E P E S Q U I S A
Suicídio no Brasil e América Latina:
revisão bibliométrica na base de dados Redalycs
Suicide in Brazil and Latin America: bibliometric review in the database Redalycs
Hugo Ferrari Cardoso(a)*, Makilim Nunes Baptista(b), Cristiane Deantonio Ventura(c), Edna Maria Branão(d),
Fernando Diogo Padovan(e), Marco Antônio Gomes(f)
Resumo: O estudo teve objetivo de realizar uma revisão bibliométrica da literatura latino americana,
contida na base de dados Redalyc, entre os anos de 2000 a 2010, investigando a quantidade e forma de
avaliação do suicídio. Foram analisados 53 artigos, chegando à constatação de que houve variabilidade
de números de artigos publicados entre os anos. As revistas que mais publicaram artigos possuem como
objetivo a divulgação de trabalhos na área de saúde mental. México foi o país que apresentou maior
número de publicações e, dos instrumentos de avaliação que abordam descritores de suicídio, a CES-D
e a Escala de Ideação de Beck foram os mais utilizados, assim como, depressão foi o construto associado
ao suicídio investigado em maior frequência. Conclui-se que esse estudo não contempla toda a realidade
da América Latina e que outras investigações devem ser realizadas, por meio de outras bases de dados,
visando corroborar ou não tais constatações.
Palavras-chave: Suicídio; Ideação Suicida; Tentativa de Suicídio
Abstract: The aim of this study was to review the bibliometric literature in Latin American, contained in
the database Redalyc, between the years 2000 to 2010, investigating the amount and form of assessment
of suicide. We analyzed 53 articles, concluding that was variability in the numbers of the articles published
between the years. The magazines that most published articles have as objective the dissemination of
works in the area of mental health. Mexico was the country with the highest number of publications
and assessment tools that address descriptors suicide, and CES-D Scale and Ideation Beck Scale were
the most used, as well as the construct of depression was associated with suicide investigated in greater
frequency. We conclude that this study does not include all the reality of Latin America and that further
investigations should be carried out through other databases, in order to prove or disprove these findings.
Keywords: Suicide; Suicidal Ideation; Suicide Attempts
a Mestre pela Universidade São Francisco.
*Email: [email protected]
b Doutor pela Escola Paulista de Medicina.
c Mestrando pela Universidade São Francisco.
d Mestre pela Universidade São Francisco.
e Mestrando pela Universidade São Francisco.
f Mestre pela Universidade Metodista de Piracicaba.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
42
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 42-48
Os artigos que avaliam a literatura abordam de maneira
crítica os materiais que já foram publicados sobre um
determinado objeto de estudo, identificando as relações,
contradições e lacunas na literatura científica (APA, 2001). O
conhecimento científico atualizado sobre um determinado
tema é apresentado de maneira mais abrangente nos artigos
de revisão por meio de um minucioso levantamento das
publicações atuais, sejam elas clássicas ou recentes. Pretende-se
ao fim desse artigo apontar possíveis críticas, identificar pontos
positivos e negativos e sugerir, caso necessário, pesquisas futuras
(Baptista, Morais & Sisto, 2007).
O estilo empregado no artigo que revisa a literatura científica
deve ser claro, conciso, objetivo e a linguagem precisa, coerente e
simples, buscando responder a uma questão científica específica
(Marconi & Lakatos, 1999). No presente estudo, a problemática
em questão é a publicação de artigos sobre suicídio em países
latino americanos, que se refiram à pesquisa de campo e,
em especial, os instrumentos de avaliação utilizados em tais
pesquisas.
Suicídio - formas de avaliação
O suicídio, de acordo com a Organização Mundial de
Saúde (2000a), está relacionado a um ato deliberado e levado
a cabo por alguém que tem plena consciência de seu resultado
final. Por sua vez, quando o indivíduo não consegue êxito em
tal ação esse ato é classificado pela literatura como sendo
tentativa de suicídio. Tanto a tentativa como o ato suicida em
si são motivados por ideações suicidas, ou seja, pensamentos,
geralmente relacionados à desvalia, que levam o indivíduo
a pensar e planejar sua própria morte. Por suicídio, Baptista
e Borges (2005) salientam que esse é um assunto que gera
interesse e curiosidade, seja por parte dos pesquisadores e
também da população em geral. Trata-se de um ato que acarreta
consequências não somente ao indivíduo que se suicida, ou
tenta tal atitude, mas também engloba toda sua rede de contato,
por exemplo, familiares, grupo de trabalho, escolar e amigos em
geral. Diversas variáveis foram comprovadas, principalmente por
meio de pesquisas documentais e epidemiológicas, como sendo
relacionadas ao ato ou ideação suicida, dentre essas pode-se
destacar fatores genéticos, ambientais e socioculturais. Ainda
de acordo com os mesmos autores o suicídio deve ser analisado
por meio de sua característica multideterminante, ou seja,
sua ocorrência muitas vezes se dá pela somatória de variáveis
de risco e também da capacidade do indivíduo em resolver
conflitos. Variáveis como diagnóstico de depressão, alcoolismo,
uso de drogas, idade, sexo, desemprego e precária percepção de
suporte familiar e social geralmente são associadas ao suicídio.
O Brasil, de acordo com Viana, Zenkner, Sakae e Escobar
(2008), apresenta um índice de cerca de cinco suicídios para
cada 100 mil habitantes. Quanto a análise por sexo, homens se
suicidaram mais que mulheres e a faixa etária mais acometida
é entre 15 e 34 anos. Além disso, no que tange ao estado civil,
há maior prevalência entre divorciados, solteiros e viúvos. Por
fim, em relação aos métodos mais utilizados para o suicídio,
enforcamento é o de maior frequência tanto em homens quanto
em mulheres.
Em Coahuila, no México, Mazacová e Martínez (2006),
realizaram um estudo com base em 18 casos de pessoas que
cometeram suicídio. Os autores destacam que no México houve
uma taxa de aumento de 200% de suicídios nos últimos 30
anos. Em relação aos 18 casos analisados no estudo, 15 foram
do sexo masculino, e desses, 10 eram solteiros. Esse estudo se
difere à análise dos autores brasileiros uma vez que a população
acometida nessa amostra foi de pessoas que tinham entre 35 e
44 anos.
Paredes, Orbegoso e Rosales (2006) realizaram um estudo
em um hospital em Lima, Peru, com 380 pessoas que tentaram
suicídio e não tiveram êxito. Nesse estudo foi constatado que
maioria dos casos foi de mulheres, com predomínio de idade
variando de 15 e 29 anos. Desse total, a maioria das pessoas que
tentaram suicídio era solteira e, o que difere dos demais estudos
é em relação ao método utilizado, uma vez que as maiores
frequências foram envenenamento, seguido por intoxicação
medicamentosa. Esses dados são justificados por dados
epidemiológicos na medida em que mulheres tentam mais
suicídios que os homens, entretanto os homens geralmente
optam por métodos mais letais, o que acaba por aumentar a
frequência de mortes por suicídio no público masculino.
Em 2009, o Ministério da Saúde em parceria com a
Organização Pan-americana de Saúde e a Unicamp, lançaram
uma cartilha didática e ilustrada, com base em bibliografia
especializada, com o título Prevenção do Suicídio: Manual
Dirigido aos Profissionais da Saúde da Atenção Básica. Os
temas abordados englobam, de forma sucinta, a dimensão do
problema, fatores de risco, associação com transtornos mentais,
depressão, álcool e com transtornos de personalidade, além dos
aspectos psicológicos, como ajudar a pessoa sob risco, como
abordá-la e por fim, discorre sobre como avaliar e lidar com o
risco de suicídio. De acordo com essa cartilha, o Brasil e demais
países que compreendem a América do Sul e Central possuem,
em média, uma estimativa de até oito suicídios a cada 100 mil
43
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 42-48
habitantes (Brasil, 2009).
Acerca do processo de avaliação de pessoas que possuem
ideações ou já tentaram suicídio, Bertolote, Mello-Santos e
Botega (2010), abordaram a importância e os meios para
a detecção do risco de suicídio nos serviços de emergência
psiquiátrica. Para os autores, a melhor forma de avaliação dessa
amostra é por meio do uso da entrevista clínica, uma vez que,
por meio dessa, é possível identificar o risco que uma pessoa
apresenta quanto a cometer o ato suicida. Nessa mesma direção,
a entrevista permite, nesses casos, o apoio emocional necessário,
o estabelecimento de vínculos, além da coleta de um grande
número de informações. Ainda de acordo com os autores,
embora haja escalas para medição e avaliação do risco de
suicídio, segundo eles, nenhuma demonstrou eficiência plena
para sua detecção.
De acordo com Vaz (2010), a questão do suicídio é complexa
e a avaliação psicológica necessita de esforços na busca de
recursos para as pessoas que se encontram em condições de
risco. Para o mesmo autor, os instrumentos psicológicos podem
auxiliar no aprofundamento do conhecimento acerca do suicídio
e no aperfeiçoamento dos métodos de avaliação, bem como
expor aspectos clínicos que demorariam a aparecer de outras
formas.
Garrido, Alarcón e Castro (2009) afirmaram que entre as
escalas existentes autoadministráveis com o intuito de rastrear
a presença de ideação e intenção de suicídio, estão a Escala
de Beck de Ideação Suicida; Rastreamento para Adolescentes
de Columbia; Questionário de Ideação Suicida de Reynolds;
Índice de Potencial Suicida de Crianças–Adolescentes (CASPI);
Questionário de Conduta Suicida de Linehan; Questionário de
Conduta Suicida Revisado de Linehan, todas com validade e
precisão bem demonstradas; por outro lado, segundo eles, a
Escala de Probabilidade Suicida, O Inventario de Ideação Suicida
Positiva y Negativa (PANSI), a Escala de Ideação Suicida de Rudd,
necessitam mais estudos e replicação de pesquisas para buscas
de propriedades psicométricas.
Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivo realizar
uma revisão bibliométrica da literatura latino americana entre
os anos de 2000 a 2010 investigando a quantidade e de que
forma o suicídio vem sendo avaliado nesse contexto, bem
como levantar instrumentos que podem auxiliar no processo de
avaliação psicológica dessa temática.
bibliométrica sobre suicídio na base de dados eletrônica Red
de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y
Portugal - REDALYC, de língua espanhola e portuguesa, entre
os anos de 2000 a 2010. Justifica-se a escolha da base de
dados Redalyc uma vez que a mesma possui elevado número
de periódicos latino americanos indexados, além disso, é
objetivo desse grupo de pesquisadores a realização de um
estudo bibliométrico sobre suicídio na base de dados Scielo (a
qual também possui periódicos brasileiros e latino americanos
indexados) e posteriormente, a realização de um estudo
comparativo entre as publicações na temática suicídio dessas
referidas bases de dados.
Foram utilizadas palavras chave em espanhol, sendo
essas, “suicídio”, “intento suicida”, “ideacion suicida” e “intento
de suicídio”. Os artigos foram pesquisados pela modalidade de
busca por palavras que compõe o título do estudo, resultando
dessa busca um total de 67 artigos. Desses, 50 estudos foram
localizados por meio da palavra chave “suicidio”, quatro por
“intento suicida”, oito por meio de “ideacion suicida” e cinco
pelas palavras chave “intento de suicídio”. O critério de inclusão
de artigos esteve condicionado a esses serem da modalidade
de estudo de campo, sendo excluídos artigos teóricos (n=7),
documentais (n=4), resenhas (n=1) e cartas aos editores
(n=2).
Essa etapa resultou em 53 artigos de pesquisas de campo,
na referida década, com os temas suicídio, ideação suicida e
tentativa de suicídio, dos quais foram extraídos dados, tais
como, quantidade de artigos publicados por ano, nome e país
das revistas, metodologia de estudo, número amostral, local de
coleta de dados, instrumentos utilizados para análise da ideação
e tentativa de suicídio e os construtos associados ao suicídio.
Resultados
A primeira análise realizada foi em relação à quantidade
de artigos com a temática suicídio publicados na década entre
2000 e 2010. A figura a seguir mostra, por ano, a quantidade de
artigos publicados.
Método
A metodologia empregada nesta pesquisa foi a revisão
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(7,5%) sobre suicídio e, em menor freqüência (dois artigos
cada) estão listadas oito diferentes revistas. Por fim, em relação
a outras revistas, 22 diferentes revistas publicaram um artigo
sobre suicídio cada no período pesquisado (41,3%), sendo essas,
a Revista de Ciencias Sociales; Revista de Salud Publica; Nova;
Persona y Bioética; Acta Universitaria; Archivos em Medicina
Familiar; Biomédica; Brasil alcohol y drogas; Colombia Médica;
Enseñanza y investigacion en psicologia; Interamerican journal
of psychology/Austin Latinoamericanitas; Orbis; Pensamiento
psicológico; Peru Med; Psicologia, Saúde & Doenças; Revista
Brasileira de Saúde Ocupacional; Revista Brasileira em Promoção
de Saúde; Revista Cubana de Higiene y Epidemiologia; Revista
Peruana de Medicina Experimental y Salud Pública; Salud
Figura 1. Distribuição da quantidade de artigos por ano.
Uninorte e The Spanish Journal of Psychology. Somando-se
as revistas pertencentes a um determinado país, na Tabela 2 é
Como pode ser visualizado, os anos de maiores frequências possível observar a distribuição das publicações, tendo em vista
de publicações foram 2007, com 10 artigos (18,9%), 2009, o país de origem dos periódicos.
com nove artigos (17%) e 2002, com oito artigos (15,1%). É
importante destacar que há oscilações entre a quantidade de Tabela 2
artigos no decorrer dos anos, ou seja, em alguns anos, tais como País da Revista
N
%
2002, 2007 e 2009 foi encontrado um número acima em relação País da Revista
México
22
41,5
aos demais e nos anos 2000, 2003 e 2008 foram relacionados Colômbia
15
28,3
uma quantidade inferior de artigos. Nesse sentido, não é possív Brasil
3
5,7
3
5,7
el afirmar que o número de artigos publicados foi crescente com Espanha
Chile
2
3,8
o decorrer dos anos, nem tão pouco constante. Em relação às Peru
2
3,8
revistas que publicaram os artigos dessa revisão sistemática, Latino-americanas
2
3,8
1
1,9
foram elencados na Tabela 1 os periódicos que publicaram dois Portugal
Cuba
1
1,9
ou mais artigos a respeito do assunto.
Tabela 1
Revistas que publicaram artigos sobre suicídio
Nome da Revista
Salud mental
Revista Colombiana de Psiquiatria
Investigación en Salud
Universitas Psychologica
Revista Intercontinental de Psicologia y Educacion
Revista Colombiana de Psicologia
Psicothema
Psicología Iberoamericana
Psicología y Salud
Terapia Psicológica
Outras
Total
Costa Rica
Venezuela
Total
N
11
4
2
2
2
2
2
2
2
2
22
53
%
20,8
7,5
3,8
3,8
3,8
3,8
3,8
3,8
3,8
3,8
41,3
100,0
Cabe destacar que a revista Salud Mental foi a que
apresentou maior frequência de publicação de artigos sobre
suicídio, com 11 publicações (20,8%). A Revista Colombiana
de Psiquiatria publicou no período de 10 anos quatro artigos
1
1
53
1,9
1,9
100,0
No que se refere aos países de origem que mais apresentaram
artigos sobre suicídio na presente pesquisa (Tabela 2), México
se apresentou com o maior número de artigos publicados, 22
(41,5%), seguido de Colômbia com 15 (28,3%), Brasil com três
(5,7%) e Espanha também com três artigos (5,7%). Em relação
ao delineamento, do total de artigos pesquisados (n=53) apenas
um apresentou como tipo de estudo a modalidade longitudinal.
Para a classificação da amostra foram utilizados os critérios
de Prieto e Muñiz (2001). De acordo com esses autores, uma
amostra pequena é composta por até 150 pessoas, é considerada
uma amostra suficiente quando a mesma possui uma quantidade
amostral entre 150 e 300 indivíduos, uma amostra é considerada
moderada quando seu número de indivíduos varia de 300 a
600, uma amostra grande possui entre 600 e 1000 indivíduos
e, por fim, uma amostra muito grande é constituída por mais
45
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de 1000 indivíduos. Nesse sentido, dos 53 artigos analisados, 23
(43,4%) possuíam amostras pequenas, seis (11,3%) amostras
suficientes, 13 (24,5%) amostras moderadas, quatro (7,5%)
com amostras grandes e sete artigos (13,2%) coletaram em
amostras consideradas muito grandes.
Foi analisada a variável local de coleta de dados na
Tabela 3, entretanto, nem todos os artigos apresentavam um
detalhamento em relação a essa variável.
Tabela 3
Local de coleta dos dados
Local de coleta
Cidades em geral (sem especificação do local de coleta)
Hospital Geral (emergências)
Escolas
Hospital psiquiátrico
Universidades
Prisões
Zona rural
Total
N
22
11
8
6
4
1
1
53
%
41,5
20,8
15,1
11,3
7,5
1,9
1,9
100,0
Dos 53 artigos investigados, 22 (41,5%) salientavam que
os dados foram coletados em cidades específicas, porém sem
apresentar um contexto (por exemplo, hospital, universidades,
etc). Dos artigos que especificaram o local de coleta, 11 (20,8%)
foram avaliados em hospitais gerais, oito (15,1%) em escolas,
seis (11,3%) em hospitais psiquiátricos, quatro (7,5%) em
universidades, um (1,9%) em prisões e um (1,9%) apenas
citava que a coleta havia sido realizada em zonas rurais (Tabela
3).
Alguns estudos fizeram uso de instrumentos cujo objetivo
foi avaliar a ideação suicida. A distribuição desses instrumentos
pode ser visualizada por meio da Tabela 4.
Suicida de Beck. Dos 53 artigos, 41 relacionaram suicídio,
ideação suicida e/ou tentativa de suicídio com outros construtos.
Os construtos associados estão elencados na Tabela 5.
Tabela 5
Construtos associados ao suicídio
Construto
Depressão
Eventos estressantes
Motivos para viver
Desesperança
Suporte familiar
Autoestima
Atitudes disfuncionais
Estratégias de enfrentamento
Suporte Social
Agressividade
Alcoolismo
Desordem alimentar
Ansiedade
Estresse
Esquizofrenia
Total
N
10
4
4
4
3
3
3
2
2
1
1
1
1
1
1
41
%
24,5
9,8
9,8
9,8
7,3
7,3
7,3
4,9
4,9
2,4
2,4
2,4
2,4
2,4
2,4
100,0
Na presente revisão bibliométrica foi possível observar,
que 41 artigos relacionaram suicídio a outro construto.
Nesse caso, depressão foi o construto associado com maior
frequência seguido de eventos estressantes, motivos para viver
e desesperança.
Discussão
A temática suicídio é tratada pela literatura especializada
como uma questão problemática de saúde pública, visto que,
com base em estatísticas mundiais, há a ocorrência de um
suicídio a cada 40 segundos (Botega, Werlang, Cais & Macedo,
Tabela 4
2006; Knox, Conwell & Caine, 2004; Mann et al., 2005; OMS,
Instrumentos específicos na avaliação de suicídio
2000b; 2002; 2006; WHO, 2000).
Instrumentos específicos
N
%
CES-D (Para Ideação suicida)
5
31,25
No presente artigo analisou-se a produção bibliográfica
Escala de Ideação suicida de Beck
5
31,25
de suicídio entre os anos de 2000 a 2010, tendo como fonte de
Identificação del risco suicida (IRSA)
1
6,25
dados a base Red de Revistas Científicas de América Latina y el
Estúdio psicossocial del suicídio
1
6,25
Caribe, España y Portugal - REDALYC. A revisão bibliométrica
Cédula de indicadores para suicídio
1
6,25
da literatura se mostra como uma importante ferramenta no
Escala de Ideación Suicida de Roberts
1
6,25
processo de planejamento de novas intervenções, uma vez que
Escala de Intenção Suicida de Gonzales-Fortaleza1
6,25
identifica as lacunas de investigação de determinado objeto
Inventário de Ideación suicida positiva y negativa 1
6,25
de estudo (APA, 2001). Especificamente acerca do suicídio
Total
16
100,0
como objeto de estudo, Vaz (2010) pontua que essa temática
Como pode ser visualizado na Tabela 4, oito diferentes é complexa, principalmente no que tange a mensuração. Para o
instrumentos foram utilizados para avaliação dos descritores autor, os instrumentos de avaliação psicológica podem auxiliar
de suicídio, tendo destaque para a CES-D e a Escala de Ideação os psicólogos quanto ao maior conhecimento do construto,
46
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assim como auxiliar no aprimoramento de intervenções clínicas
e prevenção.
Em relação aos resultados do presente estudo, houve variação
entre dois e 10 artigos publicados por ano, não podendo afirmar
que houve um aumento ou decréscimo de publicações ao longo
dos anos. No que tange à quantidade de publicações percebeuse que as duas revistas com maior número de artigos possuem
ênfase na divulgação de trabalhos voltados para a área de saúde
mental. Nem todos os artigos analisados apresentaram o local
de coleta de dados, entretanto, daqueles que apresentaram,
as maiores frequências ocorreram em hospitais gerais e
psiquiátricos, bem como escolas. Acerca dessa informação Dias
e Baptista (2004) atentam para o fato do contexto hospitalar,
psiquiátrico ou hospital geral, ter maior frequência de pacientes
com ideações suicidas. Os autores acrescentam, com base em
estudos, que a taxa de suicídio em pacientes que passaram por
internações é três vezes maior quando comparado às taxas de
suicídio da população em geral.
Bertolote et al., (2010) corroboram com os autores na
medida em que pontuam acerca do alto índice de pacientes com
ideação suicida internados em emergências clínicas, hospitais
gerais e psiquiátricos. De acordo com os autores, é de grande
importância que sejam feitas avaliações nessas pessoas, por
meio de escalas ou estratégias específicas, para a detecção de
ideias suicidas, levantamentos de fatores de riscos, bem como
fatores protetivos.
A respeito dos instrumentos de avaliação utilizados para
investigação da ideação e tentativa do suicídio, na década
investigada, a Escala de Ideação Suicida de Beck (BSI) e a CES-D,
foram os que apresentaram maior frequência nos artigos.
Embora a CES-D não tenha o propósito único de avaliação
do suicídio, ou ideação suicida, mas sim o rastreamento de
sintomatologias depressivas (Batistoni, Néri & Cupertino, 2010),
pode-se perceber que foi um instrumento bastante utilizado para
a análise de ideação suicida. Por sua vez a BSI é um instrumento
de análise de ideação suicida e, conforme ressaltam Garrido et
al., (2009), apresenta-se como uma escala viável, uma vez que a
mesma possui adequadas evidências de validade e precisão para
a análise da ideação suicida.
De acordo com Bertolote et al., (2010), embora haja
escalas para mensuração do risco de suicídio, essas nem sempre
se configuram como o melhor método de avaliação. Para os
mesmos autores, a entrevista psicológica pode ser considerada
como a melhor técnica de conhecimento nessa realidade, pois
a entrevista permite ao profissional fornecer apoio emocional.
Além disso, pode proporcionar coleta de informações mais
precisas sobre o paciente com potencial suicida ou que tenha
ideação suicida, inclusive no que tange a informações sobre
fatores de riscos e protetivos percebidos pelos indivíduos, ou
seja, investigar quais os fatores relacionados ao possível ato ou
pensamento suicida. No entanto, para atualizações rápidas ou
rastreamento, segundo Baptista (2012), as escalas se mostram
como importantes recursos do profissional de saúde.
Nesse sentido, no que concerne aos construtos associados ao
suicídio, depressão foi a que apareceu em maior frequência nos
artigos analisados. Tal constatação é corroborada pelos achados
de Baptista, Borges e Biagi (2004) que, com base em pesquisas
epidemiológicas, ressaltaram possíveis fatores de risco para o
suicídio, entre eles a depressão. Ainda de acordo com os autores,
isolamento social, eventos estressantes, baixa autoestima e
autoimagem, deficitário suporte social e familiar, uso de álcool e
outras drogas e histórico familiar de psicopatologias também são
variáveis que podem estar associadas à ocorrência de suicídio. Na
presente pesquisa alguns desses construtos foram investigados
nos artigos analisados, porém em menor frequência, como é
caso de eventos estressores, suporte familiar e social, uso de
álcool e drogas e autoestima.
Como visto, diversas variáveis podem estar relacionadas
ao suicídio, uma vez que sua operacionalização se refere a uma
questão multifatorial. Em acréscimo, a OMS (2000b; 2002; 2006)
atenta para o fato de o suicídio ser um fenômeno de constante
preocupação para a sociedade, pois sua ocorrência está
intimamente associada à saúde mental dos indivíduos. Nessa
mesma direção, trabalhos preventivos devem ser articulados no
intuito e atender e oferecer suporte às pessoas que já tentaram
suicídio ou mesmo àquelas com potencial suicida, para que
dessa forma as estatísticas mundiais tenham um decréscimo.
Considerações Finais
Os estudos cujo objetivo é a avaliação da literatura possuem
como foco o levantamento dos trabalhos publicados em um
determinado período de tempo e, mais do que isso, apontar
possibilidades para investigações futuras. O intuito de realizar o
levantamento bibliográfico em uma base que dados que envolve
diversas revistas latino americanas foi justamente o de conhecer
a realidade estudada nesses países acerca da temática suicídio.
Pode-se verificar que na base de dados pesquisada houve
grande variação do número de artigos publicados ao longo dos
anos, o que remete a uma necessidade de maior estabilidade
do número de artigos publicados por ano. Em relação aos
periódicos elencados, não se detectou uma revista específica da
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área de suicídio na base de dados em questão. Cabe destacar
que somente a utilização da base de dados Redalyc pode
ser considerado uma limitação do estudo, pois não abarca
a realidade da América Latina no que tange aos estudos do
suicídio, entretanto essa lacuna será mais bem contemplada uma
vez que é objetivo dessa equipe de pesquisadores a investigação
do suicídio em outros veículos de busca, de forma a ampliar a
discussão sobre o assunto nesse contexto.
Além disso, foram constatados poucos estudos brasileiros
nessa base de dados, o que remete à necessidade de maior
divulgação dos estudos nacionais sobre suicídio. Outro ponto
significativo foi a ocorrência de pouca clareza de dados sobre as
amostras pesquisadas nos artigos, principalmente no que tange
ao local de coleta dos dados. Em contrapartida, foi observado
que os artigos analisados apresentaram boa variabilidade
nos instrumentos sobre descritores de suicídio, assim como a
quantidade de construtos associados ao tema.
Referências
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Recebido em outubrol/2012
Revisado em dezembro/2012
Aceito em dezembro/2012
48
R E L ATO D E P E S Q U I S A
Elaboração das formulações psicodinâmicas de caso:
um estudo exploratório
Elaboration of psychotherapy case formulations: an exploratory study
Rosangela Catto(a)*, Fernanda Barcellos Serralta(b)
Resumo: Este trabalho propôs investigar como psicoterapeutas de orientação psicanalítica realizam suas
formulações psicodinâmicas de caso. Trata-se de um estudo clínico e exploratório com delineamento
de “estudo de caso sistemático” (ECS). A transcrição completa de uma sessão inicial de psicoterapia
gravada em áudio foi entregue a quatro psicoterapeutas experientes com instruções específicas para: a)
marcação (seleção), no texto, do material considerado relevante para a compreensão do caso, b) escrita,
na margem da página, das hipóteses iniciais, e c) resposta a um questionário que incluía a formulação
psicodinâmica do caso, entre outros dados complementares. Os resultados mostraram que os terapeutas
apresentam bastante variação no que diz respeito à localização e número de marcas e hipóteses. Existem
estilos pessoais que caracterizam o processo de realização desses procedimentos. A afiliação teórica do
psicoterapeuta parece afetar mais o resultado de formulação psicodinâmica do que o seu processo. Esses
resultados devem ser interpretados com cautela, tendo em vista as limitações de um estudo exploratório.
Palavras-chave: Psicoterapia psicanalítica; Formulação psicodinâmica; Hipóteses clínicas
Abstract: This study was aimed to investigate how psychotherapists perform their psychodynamic case
formulations. This is a clinical and exploratory study with a “systematic case study” (ECS) design. The full
transcript of an initial session of psychotherapy, recorded in áudio, was delivered to four experienced
psychotherapists with specific instructions: a) to mark (select), in the text, the relevant material for
understanding the case, b) to write in the text margin the initial hypotheses, and c) to answer a
questionnaire that included the psychodynamic case formulation, among other complementary data.
The results showed that therapists have many variation regarding the location and number of marks and
assumptions. There are personal styles that characterize the process of carrying out such procedures. The
theoretical affiliation of the therapist seems to affect more the result of psychodynamic formulation than
the process. These results should be interpreted with caution, in view of the limitations of an exploratory
study.
Keywords: Psychoanalytic psychotherapy; Psychoynamic formulation; Clinical hiphotesis
a Psicóloga (ULBRA/Canoas).
*E-mail: [email protected]
b Doutora em Ciências Médicas: Psiquiatria (UFRGS); Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
49
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 49-57
As pesquisas sobre o processo terapêutico buscam
compreender como funcionam as psicoterapias e como ocorre
o processo de mudança ao longo do tratamento (Wallerstein,
2007). Nesse tipo de estudo, é importante observar o que
realmente fazem os terapeutas, visando conhecer suas ações
e as técnicas pertinentes a cada modelo psicoterapêutico
(Roussos, 2001). Estudos intensivos de caso, realizados através
da aplicação de métodos empíricos a sessões terapêuticas
gravadas em áudio ou vídeo, tem possibilidado compreender
diferentes facetas do processo terapêutico (Serralta, Nunes
& Eizirik, 2011). Entre as diversas variáveis que compõem
o processo de uma psicoterapia encontram-se as hipóteses
que norteiam o diagnóstico compreensivo que irão orientar o
tratamento. Conhecer o processo de elaboração de hipóteses
clínicas (no caso das psicoterapias psicanalíticas, as formulações
psicodinâmicas de caso) é fundamental para a elaboração de
estratégias de ensino, treinamento e supervisão, além de ofertar
subsídios para a proposição de métodos sistematizados de
formulação psicodinâmica de caso.
Conform referem Vaisberg e Machado (2000), desde o início
a psicanálise salientou a importância do estabelecimento de um
diagnóstico provisório antes do efetivo início do tratamento.
Essa recomendação permanece atual e assume relevância ainda
maior quando se considera o universo das psicoterapias de
orientação psicanalítica, especialmente, das psicoterapias breves
ou focais, pois estas tipicamente exigem maior planejamento
quando comparadas às intervenções de longo prazo.
As psicoterapias breves constituem uma modalidade de
intervenção altamente prevalente na atualidade não apenas
nas instituíções, mas também na clínica privada (Parry, Roth &
Kerr, 2007). A principal característica da técnica de psicoterapia
breve, em comparação com a técnica psicanalítica clássica,
“é a preocupação em otimizar o processo de aumentar o
número de insight instantâneos” (Lemgruber, 1984, p. 12).
Tipicamente isso é alcançado através da utilização de diversos
princípios limitadores que incluem, entre outros aspectos,
o planejamento terapêutico e a delimitação de um foco ou
conflitiva focal que será alvo das intervenções do terapeuta
(Lemgruber, 1984; Yoshida, 2004). A formulação psicodinâmica
pode ser simplificadamente definida uma narrativa de cunho
descritivo sobre a natureza e a etiologia dos problemas psíquicos
do paciente. São “hipóteses que poderão ser confirmadas ou
não durante o tratamento psicoterápico e que orientam as
intervenções dos psicoterapeutas” (Bottino, Bairrão, Hanns, Rosa
& Andrade, 2003, p. 166). Estas hipóteses representam, um
conjunto de inferências, hierarquicamente organizadas, sobre
a natureaza da psicopatologia do paciente, sua estrutura de
personalidade, dinâmica e desenvolvimento (Messer & Wolitzki,
2007). Nesse sentido, as formulações psicodinâmicas são parte
de um processo de inferência clínica.
Roussos e Leibovich de Duarte (2002) definem as
inferências clínicas como uma operação cognitivo-afetivo
através da qual se conclui, por sentido indireto, a verdade de
uma proposição ou um estado de relações. Conforme os autores,
alguns estudos empíricos sobre esse processo evidencia que as
inferências se concretizam por meio de uma operação cognitiva
associada aos sistemas de atribuição e processamento de
informação realizada pelo clínico. Entende-se, portanto, que as
inferências clínicas compreendem todas as ações que abrangem
um processo de transformação que um determinado terapeuta
considera relevante para dar sentido ao material clínico de um
determinado paciente.
A compreensão da fala do outro, neste caso de um paciente,
supõe uma função inferencial complexa que ultrapassa a
fronteira das informações fornecidas e que é fundamental para
o desenvolvimento de intervenções terapêuticas direcionadas ao
paciente (Leibovich de Duarte, 2004). Esse processo pode sofrer
interferências de fatores do terapeuta, tais como o enfoque
teórico, a sua experiência profissional e as particularidades do
seu próprio processo cognitivo do terapeuta (Roussos, 2001). Há
indícios, por exemplo, de que psicoterapeutas mais experientes
realizam formulações de caso com mais informações descritivas,
diagnósticas, inferenciais e do planejamento terapêutico que os
menos experientes (Eells et al., 2011).
Embora existam algumas diretrizes gerais para a elaboração
de uma formulação psicodinâmica (Gabbard, 2005), esta tarefa,
entretanto, não é simples como poderia se pensar, pois, como
bem assinalam Bottino et al. (2003, p. 166), “faltam clareza e
sistematização na apresentação dos aspectos psicodinâmicos
dos casos”, e, uma vez que as deduções são realizadas livremente,
mesmo entre psicoterapeutas com a mesma formação os
princípios e níveis de abstração utilizados podem ser bastante
diferentes e assim produzir formulações distintas, que dificultam
o processo de aprendizado da psicoterapia.
Para minimizar diferenças entre psicoterapeutas na
formulação do caso, favorecer o ensino da psicoterapia e
promover a investigação empírica de processos e resultados em
psicoterapia, ao longo das últimas décadas, foram propostos
diferentes métodos sistematizados para orientar a construção
das hipóteses que irão nortear a intervenção clínica nas diversas
abordagens teóricas em psicoterapia (Eells, 2007). Quando
de orientação psicanalítica, esses métodos, via de regra, estão
50
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 49-57
relacionados a modelos também sistematizados de psicoterapia
breve. Entre outros, citamos como exemplo, o Tema Central de
Conflito nos Relacionamentos (CCRT), idealizado na década de
70 por Luborsky, da Universidade da Pensilvânia, e relacionado à
proposta da Terapia Suportiva-Expressiva (Suportive-Expressive
Therapy) e o Padrão Mal-adaptativo Cíclico (CMP), do grupo
da Universidade Vanderbilt, relacionado à Terapia Dinâmica
de Tempo Limitado (Time-Limited Dynamic Psychotherapy,
TLDP). O CCRT está ancorado da teoria das relações objetais
de conflitos intrapsíquicos e interpessoais e a sua formulação
é baseada nas narrativas do paciente que refletem desejos e as
respostas do self e dos outros (Luborsky & Barret, 2007), sendo
amplamente utilizado em pesquisas de processos e resultados
em psicoterapia, inclusive no Brasil (Bottino et al., 2003; Yoshida
et al., 2009) . O CMP integra perspectivas atuais da teoria das
relações objetais, psicologia interpessoal e psicologia do self e
a sua formulação considera o estilo interpessoal do paciente, o
contexto interpessoal dos problemas, as reações e expectativas
interpessoais do paciente, os padrões interpessoais, considerando
pessoa, tempo e lugar, os padrões de interação com o terapeuta
(transferência) e as reações contratransferências do terapeuta
(Levenson & Strupp, 2007).
A utilização de métodos sistematizados de avaliação
e intervenção terapêutica ainda é pouco difundida entre
psicoterapeutas brasileiros de orientação psicanalítica. Neste
sentido, destaca-se o trabalho realizado por psicoterapeutas
paulistas no já extinto Núcleo de Estudos e Pesquisa em
Psicoterapia Breve (NEPPB), durante as décadas de 80 e 90
(Yoshida & Enéas, 2004). O modelo paulista é baseado na
teoria da adaptação de Ryad Simon, quem também idealizou
a Escala Diagnóstica Adaptativa Operacionalizada (EDAO),
um instrumento aplicável às entrevistas clínicas avaliar o
funcionamento adaptativo do paciente, e a Psicoterapia Breve
Operacionalizada (PBO), um modelo de psicoterapia dirigida
aos seus problemas de adaptação (Simon & Yamamoto, 2009).
Embora as investigações sobre a formulação psicodinâmica
de casos sejam raras, há estudos que mostram que existe
correlação entre intervenções consistentes com a formulação
padronizada realizada (CCRT, por exemplo) e medidas de
processo e resultados (Eells et all., 2011). Todavia, não se sabe
ainda em que medida esses métodos de formulação padronizada
de caso são aplicáveis à clínica cotidiana (e quais as variáveis que
interferem em sua aplicação), assim como qual a avaliação que
os psicoterapeutas (não pesquisadores) fazem da sua utilidade
(Godoy & Heynes, 2011).
São escassas as investigações que se ocupam com a forma
como os psicoterapeutas constroem suas inferências clínicas na
clínica cotidiana. Na verdade, o exame da literatura nacional
e internacional sobre o assunto revela que pouco se sabe
sobre os modos como psicoterapeutas abordam e processam
o material de seus pacientes e constroem as hipóteses que
irão orientar o tratamento. Sendo assim, no presente estudo
questionamos: como psicoterapeutas realizam o processo de
formulação psicodinâmica de caso? Considerando o relato de
uma sessão diagnóstica, existe concordância entre diferentes
psicoterapeutas quanto aos elementos considerados relevantes
para a construção das hipóteses clínicas? Há concordância
na quantidade e qualidade das hipóteses que irão compor a
formulação do caso? Responder a essas questões permite que
se conheçam, entre outros aspectos, como os psicoterapeutas
integram a informação clínica disponível, se tendem a ignorar
dados que não apóiem suas hipóteses ou que dêem sustentação
para hipóteses alternativas, ou a utilizar evidências ambíguas
para sustentar suas próprias hipóteses (Roussos, 2001). Nosso
objetivo com este estudo, portanto, é contribuir para uma maior
compreensão do processo de elaboração de inferências clínicas
na psicoterapia psicanalítica no contexto da clínica cotidiana.
Método
Este é um estudo clínico e exploratório que busca descrever
como os psicoterapeutas constroem suas hipóteses clínicas
e integram as informações disponíveis para realizar uma
formulação psicodinâmica de caso. Trata-se, portanto, de um
estudo de processo no qual um mesmo caso clínico é avaliado,
através de procedimentos qualitativos e quantitativos, por
diferentes psicoterapeutas. O delineamento, adotado é de
“estudo de caso sistemático”, ou ECS (Edwards, 2007), um
modelo de investigação compreendida como uma extensão
da prática clínica, mas que apresenta, em compração com os
estudos de casos clínicos tradicionais, diversos mecanismos
para aprimorar o rigor metodológico e controlar os vieses do
estudo, entre eles, a coleta de dados cuidadosa e sistemática e a
utilização de juízes independentes para a avaliação do processo.
Participantes
Paciente – T. possui 27 anos e buscou atendimento
psicológico em uma Clínica-Escola de uma Universidade do Rio
Grande do Sul devido a queixas de depressão. Referiu ter ficado
abalada com o rompimento de um relacionamento afetivo, de
quase cinco anos, o qual considerava “para sempre”, com uma
companheira. Afirmou que nunca fazia nenhuma atividade que
51
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 49-57
não fosse com a companheira, e que não conseguiu aceitar a
forma como ela terminou o relacionamento. Relatou ter tido uma
infância solitária, e que os pais separaram-se no seu primeiro ano
de vida. Definiu a mãe como uma mulher exuberante, bonita e
forte, e o pai, como um homem baixinho e sem graça. Quando
seu meio irmão revelou à mãe que era gay, sentiu-se encorajada
a também fazê-lo. Não sofreram discriminações em casa por
isso. Segundo T., para a sua mãe, o importante é que os filhos
não se afastassem dela. Em relação ao pai, revelou ter sentido
muita falta dele na sua infância. Expressou a idéia de que se
fosse guri, o pai a teria levado mais vezes junto dele. Acrescentou
que, atualmente, diante do quadro depressivo que apresenta, o
pai aproximou-se mais dela. A paciente se autodescreveu como
uma pessoa bloqueada para receber carinho e que não consegue
expressar seus sentimentos. Associou essa característica à falta
de aproximação e contato físico com a sua mãe, quando criança.
Sua mãe pareceria estar mais envolvida com os seus próprios
relacionamentos amorosos do que com a relação com os filhos.
T. possui uma vida profissional bastante produtiva. É reconhecida
pelo seu bom desempenho no trabalho e não apresenta
nenhuma dificuldade nessa área. Suas queixas concentram-se
na vida afetiva e relacional. Por ocasião da primeira entrevista,
estava apreensiva com a chegada da sua ex-companheira, que
estava para retornar de viagem.
Psicoterapeuta entrevistadora - A sessão inicial de T. foi
realizada por estagiária de Psicologia Clínica. Psicoterapeutas
avaliadores – Participaram do estudo quatro mulheres
psicoterapeutas com formação em psicoterapia psicanalítica e
experiência de pelo menos oito anos na docência e supervisão
em psicoterapia. As participantes foram selecionadas por
conveniência entre docentes e supervisores de instituições
conceituadas no âmbito da formação psicanalítica.
Procedimentos
Entrevista - A sessão inicial de T. foi gravada em áudio para
posterior transcrição e análise. Esta entrevista teve duração de 50
minutos e foi realizada em sala de atendimento da Clínica-Escola
em que a paciente buscou atendimento, em conformidade com
as orientações gerais das entrevistas iniciais realizadas nesse
local: trata-se de uma entrevista aberta, cujo objetivo maior é
identificar o motivo da procura de atendimento, realizar escuta
empática e colher informações que subsidiem o diagnóstico
descrito e compreensivo do caso.
A entrevista coletada foi transcrita na íntegra. Esta transcrição
foi realizada buscando contemplar não apenas as verbalizações
ocorridas, mas também as pausas no discurso e variações no
tom e inflexão de voz de ambas, paciente e terapeuta.
Coleta de dados
A transcrição da entrevista foi entregue às psicoterapeutas
participantes do estudo em envelope fechado, contendo, além
do relato, instruções para a marcação dos trechos relevantes
do discurso da paciente (no próprio material da entrevista) e
escrita (na margem da entrevista) de inferências e hipóteses
sobre o material. Desse modo, neste estudo, as marcas são
todos os dados sublinhados (marcados devido à sua relevância)
pelos psicoterapeutas avaliadores na transcrição da entrevista
analisada. Já as hipóteses são as inferências clínicas, escritas
na margem do texto analisado, correspondem a hipóteses
iniciais (idéias, comentários, interpretações) que foram ou
não integradas na formulação psicodinâmica de caso que foi
posteriormente realizada. As instruções específicas para a
seleção do material relevante (marcas) e escrita de hipóteses na
margem da página teve por objetivo possibilitar a análise da sua
localização no texto.
Além dessas instruções, as participantes receberam um
questionário com questões abertas e fechadas para descrever,
entre outros aspectos: a hipótese psicodinâmica inicial, os temas
mais relevantes da sessão, o nível de confiança nas hipóteses
formuladas e o modo como foram realizadas as hipóteses. O
questionário foi elaborado pelas pesquisadoras, tendo como
base o instrumento utilizado anteriormente por Roussos (2001)
na sua investigação sobre este tema. Nenhuma informação
adicional sobre o caso foi dada, além daquelas presentes na
sessão de avaliação inicial que compõe a unidade de estudo.
Análise de dados
A análise dos dados seguiu um modelo clínico descritivo.
Para avaliar a localização das marcas e inferências/hipóteses
realizadas pelos diferentes psicoterapeutas avaliadores,
inicialmente o texto foi dividido em blocos de 20 linhas cada. Esse
procedimento gerou 31 blocos. Em cada um desses blocos, em
planilha do Excel, foi computado o número de marcas realizadas
e de hipóteses escritas, por cada psicoterapeuta avaliador. A
seguir, foi utilizada, com o auxílio do comando gráfico do SPSS,
a análise visual para verificar diferenças significativas entre os
avaliadores em relação ao número e localizaçãodas das marcas
e hipóteses realizadas. Após, para verificar aspectos centrais das
formulações psicodinâmicas dos psicoterapeutas que avaliaram
o caso, foi realizada a análise de conteúdo, conforme o método
clínico-qualitativo (Turato, 2003). Por fim, para complementar
essas informações, foi feito o levantamento descritivo das
respostas ao questionário utilizado.
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Aspectos Éticos
Resultados
Foram analisadas 513 marcas e 211 hipóteses (uma
proporção de 2,43 marcas para 1 hipótese). Os blocos que
geraram mais marcas foram os números 19, 16, 1 e 15, com 31,
30, 27 e 27 marcas, respectivamente. Os blocos que geraram
mais hipóteses foram os números 19, 6, 14, 15, 16 e 18, com,
respectivamente, 16, 10, 9, 9 e 9 hipóteses cada. Para uma
melhor visualização desses dados, a distribuição de marcas
e hipóteses por psicoterapeuta em cada bloco de texto está
apresentada, respectivamente nas figuras 1 e 2.
Número de marcas por terapeuta
14
Marcas
12
10
T1 Marca
8
T2 Marca
6
T3 Marca
4
T4 Marca
2
0
1
3
5
7
9 11 13 15 17 19 21 23 25 27 29 31
Blocos
Figura 1. Marcas por terapeuta
Nota: A figura apresenta o número de marcas realizadas por cada terapeuta participante em cada
um dos 31 blocos da sessão.
Legenda: T1 Marca = marcas realizadas pela terapeuta 1, T2 Marca= marcas realizadas pela
terapeuta 2, T3 Marca = marcas realizadas pela terapeuta 3, T4 Marca = marcas realizadas pela
terapeuta 4.
Conforme figura 1, observa-se que o terapeuta 4 (T4)
tende a realizar mais marcas que os demais em praticamente
todos os blocos analisados; T1 faz mais marcas em 7 blocos que
T2 (Blocos 1, 5, 8, 15, 19, 23 e 30); T3, por outro lado, tende a
fazer menos marcas que os demais em praticamente todos os
segmentos da entrevista, exceto nos blocos 15, 16, 19, 23 e 26,
quando se mantém na média com as demais terapeutas, mas nos
blocos 15, 16, 23 e 26 faz mais que T2. Percebe-se que T1 e T4
coincidem, fazendo um número maior de marcas, enquanto T2 e
T3 coicidem entre sí, ficando com um número menor de marcas.
Número de hipóteses por terapeuta
8
Hipóteses
A pesquisa teve seu protocolo aprovado pelo Comitê
de Ética em Pesquisa da Universidade na qual foi realizada.
Todos os participantes (paciente e psicoterapeutas) receberam
informações sobre objetivos e procedimentos de pesquisa
e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE), autorizando as pesquisadoras a realizarem todos os
procedimentos previstos e a divulgarem seus resultados.
T1 H
6
T2 H
4
T3 H
2
T4 H
0
1
3
5
7
9 11 13 15 17 19 21 23 25 27 29 31
Blocos
Figura 2. Hipóteses por terapeuta
Nota: A figura apresenta o número de hipóteses realizadas por cada terapeuta participante,
considerando cada um dos 31 blocos da sessão.
Legenda: T1 H = número de hipóteses da terapeuta 1, T2 H = número de hipóteses da terapeuta
2, T3 H = número de hipóteses da terapeuta 3, T4 H = número de hipóteses da terapeuta 4.
Segundo figura 2, T1 tende a realizar mais hipóteses na
maioria dos blocos marcados, exceto nos blocos 1, 11, 13 e
14, quando a T4 faz mais hipóteses que a T1. Quanto a T2 e T3,
fazem menos hipóteses que T1 e T4, fazendo o mesmo número
de hipóteses em 12 blocos, sendo ainda que T2 faz um número
de hipóteses menor que T3 em 14 blocos, e T3 faz um número
menor que T2 em 5 blocos (blocos 9, 10, 22, 27 e 31).
A seguir, foi feita uma análise de conteúdo do texto da
sessão nos blocos já mencionados. O objetivo foi verificar os
temas que levaram as psicoterapeutas particiantes a realizar
mais marcas e hipóteses. Foi também realizada análise de
conteúdo das hipóteses formuladas em cada bloco analisado. A
apresentação desses resultados segue a ordem cronológica no
material clínico.
Com relação às marcas, encontramos que:
- no Bloco 1, o tema predominante foi o abalo emocional da
paciente frente ao rompimento amoroso;
- no Bloco 14, a paciente relata que, na sua festa de um
ano de idade, a mãe mandou o pai embora, e revela a falta
que sentia do pai na infância. Afirma que embora ausente no
cotidiano, o pai era presente quando estava doente. Fala de sua
homoxessualidade, que não esconde, mas não mostra;
- no Bloco 15, a paciente conta o quanto sentiu falta de
seu pai na sua infância. Descreve a separação dos seus pais e as
características físicas de ambos;
- no Bloco 16, a paciente conta da separação dos pais e
que, quando ela ia visitá-lo, sua mãe ficava chorando no quarto.
Este bloco ainda contém o relato de que seu pai tinha várias
“namoradas” e a fantasia da paciente de que se ela fosse um
“guri”seu pai a levaria junto ao futebol e estaria mais presente
em sua vida; e
- no Bloco 19, a paciente descreve sua dificuldade em
expressar emoções, fala de suas crises de asma e de quão
solitária foi sua infância.
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Com relação às hipóteses, os resultados indicam que:
- no Bloco 1, a paciente revela que não aceita o rompimento
da companheira e descreve como era essa relação. Hipóteses:
dificuldade em lidar com separação; luto pela separação;
ansiedade; relação de dependência;
- no Bloco 14, a paciente relata que na sua festa de um
ano de idade a mãe mandou o pai embora, e revela a falta
que sentia do pai na infância. Afirma que embora ausente no
cotidiano, o pai era presente quando estava doente. Quanto à sua
homoxessualidade, afirma que cansou de ficar escondendo, mas
evita mostrar para os outros. Hipóteses: relação dual; convivia
com o pai, mas não o tinha nas datas importantes; mostrar-não
mostrar sexualidade infantilizada;
- no Bloco 15, a paciente conta o quanto sentiu falta de seu
pai na sua infância ("a mãe diz que ficou com o pai só para me
fazer"). Descreve a separação dos seus pais e as características
físicas de ambos (mãe alta e "bonitona", pai "toquinho").
Hipóteses: mãe desvaloriza o pai; mãe fálica - pai castrado,
desvalorizado;
- no Bloco 16, a paciente conta da separação dos pais e de
quando ela ia visitá-lo e sua mãe ficava chorando no quarto.
Relata que sua mãe nunca ficou falando do pai para ela. Este bloco
ainda contém o relato de que seu pai tinha várias "namoradas"
e a fantasia da paciente de que, se ela fosse um "guri", seu pai
a levaria junto ao futebol e estaria mais presente em sua vida.
Hipóteses: pai ignorado, não existiu figura masculina; mãe tem
dificuldade de fazer a separação com a filha. Ela era a parceira
da mãe, não podia aproveitar e amar o pai pela ansiedade da
mãe-lealdade à mãe. Desejo de ser guri para aproximar-se do
mundo do pai, ser aceita e ser amada. Se fosse menino, talvez o
pai a amasse mais;
- no Bloco 19, a paciente descreve sua dificuldade em
expressar emoções, fala de suas crises de asma e de quão
solitária foi sua infância. Pai não aparecia, somente quando
estava doente. Hipóteses: negligência emocional; medo da
dependência - desenvolvimento precoce do ego: rigidez e
defesas obsessivas; calava sua raiva; raiva do abandono; fica mal
pelo ganho... para ser olhada pelo pai ; Controladora; objetalizarse para o pai; Imatura.
Na sequência, verificamos as formulações psicodinâmicas
elaboradas pelas terapeutas.
Em suas formulações, T1 refere a dependência e desamparo
da paciente originados na infância na sua relação com a mãe,
o que a faz experimentar, no rompimento com a companheira,
uma intensa ansiedade de separação. Não se permite vivenciar
a perda. A paciente apresenta uma fusão com a mãe, não há
individuação. Não expressa seus sentimentos hostis, pois teme,
em suas fantasias, destruir o objeto amado, fantasias que podem
ter se originado desde seu nascimento pelo afastamento do pai
na gravidez da mãe.
Em sua análise, T2 percebe a paciente em um
funcionamento emocional muito primitivo, na busca de suprir
suas necessidades emocionais. Para esta, as dificuldades estão
relacionadas à concepção e fases da infância da paciente, que
não sente que foi desejada e amada. A mãe não teria aberto
espaço para participação do pai na vida da paciente. Observa
que a paciente e a mãe, num primeiro momento, são a mesma
pessoa; não consegue fazer a separação-individuação de forma
satisfatória. Não teve a figura do pai presente e parece estar
na bixessualidade infantil, não foi libidinizada pelo pai. Parece
buscar nas relações a situação inicial de amor vivida com a mãe.
Na percepção de T3, a paciente é borderline. Sente o pai
e a mãe como abandonantes e pouco confiáveis. Possui uma
relação distante com o pai e demonstra uma simbiose com a
mãe, juntamente com um desejo de separar-se desta e crescer.
Para esta terapeuta, a paciente demonstra dificuldade frente
à dependência. Seu mundo interno é carregado de agressão,
desconfiança e medo. Parece não ter dentro de si um mundo
interno indiferenciado, masculino/feminino. Busca em outra
mulher um olhar que tem a marca materna. Apresenta ainda
difusão da identidade ambígua e instável.
Na elaboração de T4, a paciente é neurótica histérica, o
que se apresenta no discurso sobre sua sexualidade - escolha
narcísica em relação ao objeto. A paciente fica ao redor de
questões sexuais nas quais a triangulação mantém seus efeitos
com rivalidades em relação à figura materna. T4 elenca a forma
de a paciente posicionar-se ao outro (objeto) de completude, a
forma de realcionar-se com figuras femininas e a angústia da
falta de um objeto "completante".
No questionário complementar foi avaliado o quanto
os dados foram suficientes para a formulação das hipóteses.
Os quatro terapeutas concordaram que os seus pressupostos
eram próximos dos dados e negaram que fossem meramente
especulativos. Em uma escala crescente de 1 a 5, que avaliava
o nível de confiança dado a sua hipótese, os terapeutas T1 e T2
marcaram 4, T3 marcou 2, e T4 marcou 5. Isso indica que T1, T2 e
T5 estavam mais confiantes do que T3.
Algumas questões do questionário buscaram descrever
como os psicoterapeutas realizaram o processo de contrução de
suas hipóteses. Foram avaliados aspectos como: em que medida
a hipótese foi baseada na reincidência da temática no texto, na
repetição de palavras no material, na presença de simbolismos,
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 49-57
nas ambigüidades do discurso, nas contradições do discurso, na
presença de significados metafóricos, nas referências somáticas,
nos erros de linguagem e nos lapsos. Esses aspectos foram
avaliados numa escala de 1 (mínimo de concordância) a 5
(máximo de concordância). Os resultados indicam que não
houve concordância entre as psicoterapeutas sobre essa questão:
cada psicoterapeuta priorizou aspectos diferentes na realização
de suas hipóteses, exceto na reincidência temática no material,
apontada por três das quatro psicoterapeutas como muito ou
extremamente relevante.
Com relação à avaliação que os psicoterapeutas fizeram do
material, T2 e T4 referiram necessitar conhecer melhor a situação
familiar e a história de vida da paciente; os demais avaliaram
o material como sendo razoavelmente suficiente para conhecer
esses aspectos da vida da paciente. Quanto à perspectiva de
avaliação do material, T1 e T3 referiram ter examinado os dados
como se fossem o terapeuta do caso, enquanto T2 e T4 salientaram
ter avaliado o material desde a posição de um supervisor. Todos
os psicoterapeutas negaram a utilização, nas suas práticas,
de recursos técnicos não psicanalíticos. Sobre os autores que
tiveram influência na prática clínica das terapeutas participantes,
o levantamento dos resultados apresentou psicanalistas, em sua
ordem crescente de influência e importância, como Freud, Klein,
Bowlby, Winnicott, Zimermann, Mahler, Gabbard, Meltzer, Bion,
Kemberg, Lacan, Minuchin, Liberman, Kohut, Ferro e Sullivan.
Ao analisarmos a importância dos autores de referência, por
psicoterapeuta, percebe-se que T1, T2 e T3 possuem como
referência autores americanos representantes da psicologia do
ego e autores americanos e europeus expoentes dos modelos
relacionais, e T4 acentua a importância de autores da psicanálise
francesa. Os quatro psicoterapeutas consideram Freud um
dos autores mais relevantes em termos de influência em suas
práticas.
Discussão
A análise que realizamos do material clínico com as
marcações e hipóteses dos psicoterapeutas deixa claro que,
de modo geral, destacam-se três fases diferentes no processo
de construção de uma formulação psicodinâmica crentral: Um
primeiro passo é a seleção de informação, e isto é realizado
através das marcações que os psicoterapeutas fazem no texto;
na segunda etapa, que é concomitante à primeira, idéias,
interpretações e assinalamentos que representam inferências
clínicas são formulados; e posteriormente, os dados são
reorganizados numa formulação que integra as hipóteses
anteriores. Conforme já havia sido notado por Roussos (2001), na
primeira etapa, o referencial teórico não parece ter precedência
sobre tendências e sistemas de crença do terapeuta. Embora o
quadro teórico possa interagir com esses fatores, há evidências
de que, ao propor as marcas, é relevante em si mesmo. Nossos
resultados indicam que, em média, são necessárias quase 2,5
marcas para gerar uma inferência acerca do material clínico.
Indicam ainda que o número médio de marcas e inferências
feitas por cada psicoterapeuta parece ser independente da sua
formação teórica, visto que neste sentido T1 e T4 apresentaram o
mesmo estilo, embora em termos de formação de base tenham
influência de autores oriundos de modelos psicanalíticos bastante
distintos. Já T3, cuja formação teórica é bastante semelhante a
T1, produziu significativamente menos marcas e hipóteses do
que T1, embora tenha chegado, na formulação psicodinâmica
de caso, a uma hipótese central bastante semelhante a T1. Nesse
sentido, a conclusão de Roussos (2001), Leibovich de Duarte
(2004) e Bottino et al., (2003) de que a observação empírica
das reuniões clínicas e de supervisão indica a existência de
diferenças individuais detectáveis entre psicoterapeutas de uma
mesma orientação acerca da quantidade de material necessário
para produzir hipóteses clínicas parece ser corroborada pelo
presente estudo.
A análise visual sugeriu existir bastante variação entre
os psicoterapeutas e a localização no texto (blocos) em
que se produziu mais informação clinicamente relevante.
Psicoterapeutas inclinados a realizar mais marcas e hipóteses,
como T1, tendem a fazê-lo em todos os segmentos do texto,
enquanto psicoterapeutas que tendem a fazer menos marcas e
hipóteses, como T2 e T3, mantêm essa tendência ao longo de
todo o processo de análise do material clínico.
Não obstante, ao analisarmos conjuntamente os dados,
verificamos que existem segmentos do texto que geraram
significativamente mais marcas e hipóteses. A análise de
conteúdo desses blocos evidenciou temáticas como: abalo
emocional frente a rompimento amoroso, falta do pai na
infância, solidão, dificuldade para expressar emoções,
sexualidade infantilizada, pai castrado, dificuldade de separação
/ individuação, dependência e desenvolvimento precoce do
ego. Contata-se que a formulação psicodinâmica do caso, feita
posteriormente, guarda estreita relação com os conteúdos
demarcados no texto e com as inferências inicialmente realizadas.
Não verificamos nenhuma omissão ou acréscimo significativo. É
necessário assinalar, entretanto, que não realizamos análise de
conteúdo de todos os blocos do texto, o que pode, em alguma
medida, representar um viés de avaliação.
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 49-57
Leibovich de Duarte (2004) assinala que é comum
encontrarmos analistas e psicoterapeutas que compartilham
uma linha teórica comum, porém que possuem pontos
de vista não coincidentes sobre o mesmo material clínico.
Em nosso estudo, considerando a avaliação do conteúdo
da formulação psicodinâmica de caso, observamos que o
referencial teórico exerceu uma influência bastante evidente
sobre a conceitualização realizada. Nossos resultados, portanto,
parecem indicar que a formação teórica do psicoterapeuta afeta
menos o processo de construção de hipóteses clínicas do que o
seu resultado.
Como já mencionamos, psicoterapeutas com formação
semelhante podem realizar processos bastante divergentes
e psicoterapeutas de diferentes formações, processos
muito semelhantes. Por outro lado, os três psicoterapeutas
com formação semelhante apresentaram conceituações
psicodinâmicas sobre o caso de conteúdo mais semelhante
entre si do que a outra psicoterapeuta (T4), cuja orientação era
mais relacionada ao modelo estrutural-pulsional clássico que
aos modelos relacionais referidos pelas demais participantes
como orientadores da sua prática. Apesar das diferenças, as
quatro psicoterapeutas parecem concordar acerca da influência
de aspectos relacionados à relação primitiva entre mãe e criança
na compreensão deste caso. Talvez seja esse o ponto em que o
grau de concordância clínica e teórica atinja seu maior expoente.
Para a maioria, o amor outorgado é a principal chave do
desenvolvimento humano.
Dado que a noção de um narcisismo primário inexiste nas
teorias relacionais que orientam T1, T2 e T3, não admira que
somente T4 refira um relacionamento objetal do tipo narcisista,
enquanto as demais coloquem o acento na relação anaclínica
de dependência. Não obstante essa diferença, a temática do
narcisismo permeia a compreensão do caso feita pelas quatro
psicoterapeutas.Nota-se ainda que enquanto T4 compreende
a paciente a partir de uma dinâmica mais próxima da histeria
e da situação edipiana, T1, T2 e T3 salientamas ansiedades
provenientes do temor de abandono do objeto, relacionado ao
processo de separação-individuação.
Embora a psicoterapia psicodinâmica e a psicanálise
não se fundamentam em um conjunto de fórmulas ou regras
específicas para a realização de inferências acerca do material
clínico e exista um amplo espaço para o surgimento de variações
individuais (Leibocich de Duarte, 2004), é possível encontrar
concordâncias entre diferentes psicoterapeutas acerca do
significado do material clínico examinado. Os dados do presente
estudo sugerem que diferentes processos (cuja variação parece
ser decorrente do estipo pessoal do terapeuta) podem levar a
resultados semelhantes, especialmente entre profissionais que
compartilham de um modelo teórico comum.
Considerações Finais
Este estudo investigou o processo de construção das
hipóteses e inferências clínicas que compõem as formulações
psicodinâmicas de caso. Para tanto, foi utilizada uma abordagem
metodológica descritiva que conjuga as abordagens clínica e
empírica. Como praticamente inexistem pesquisas sobre esse
tema, consideramos o estudo exploratório, tanto em termos de
seus objetivos como em termos de seu método. Assim, embora o
presente estudo possua o mérito de ser original em sua proposta,
apresenta algumas limitações importantes: a) o estudo trata de
avaliar um pequeno número de psicoterapeutas, selecionadas por
conveniência. Estas podem, portanto, não representar o universo
de psicoterapeutas de orientação psicanalítica que exercem
atividades em nosso meio; b) apesar de contarmos um extenso
material clínico, dividido em 31 segmentos (blocos), optamos
por uma análise qualitativa dos resultados. A análise visual e de
conteúdo realizada, futuramente, deverá ser complementada
por análises estatísticas que permitirão verificar com maior
acuidade eventuais semelhanças e diferenças entre marcas e
hipóteses realizadas; c) como praticamente inexistem estudos
semelhantes, não há dados de outros estudos para orientar
nossas conclusões. É necessário que novos estudos sejam
realizados sobre o processo de contrução de hipóteses clínicas
entre psicoterapeutas para que se possa melhor compreender e
utilizar esse conhecimento para o ensino e para a pesquisa em
psicoterapia psicodinâmica.
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Recebido em outubro/ 2012
Revisado em setembro/ 2012
Aceito em novembro/ 2012
57
ESTUDO TEÓRICO
Mini-Exame do Estado Mental na avaliação neuropsicológica
pós-TCE: aplicabilidades
Mini Mental State Examination in post-TBI neuropsychological assessment: applicability
Natalie Pereira(a)*, Renata Kochhann(b), Nicolle Zimmermann(c), Rochele Paz Fonseca(d)
Resumo: A avaliação neuropsicológica, em pacientes vítimas de Traumatismo Cranioencefálico (TCE),
investiga déficits relacionados aos componentes executivos. Esses componentes são responsáveis
por direcionar e gerenciar habilidades necessárias para a realização das atividades de vida diária, de
forma efetiva. Diversos testes são utilizados para a investigação do desempenho dos pacientes póslesão, dentre eles o Mini Exame do Estado Mental (MEEM), universalmente aplicado na investigação de
demências ou outras amostras neurológicas. Como instrumento de pesquisa, sua utilização ainda não é
consensual, sendo usado isolado ou agregado às baterias de avaliação neuropsicológica, como triagem
cognitiva global ou para examinar sinais de demência pós-TCE. Pensando nessa perspectiva, essa revisão
assistemática procurou caracterizar o uso do MEEM nessas diversas situações. Após uma breve busca de
artigos, verificou-se a utilização do MEEM em todas as situações supracitadas, porém, ainda, de forma
não consensual e não padronizada. Sendo assim, existe uma necessidade de estabelecer padrões com
objetivo de verificar o quão discriminativo o teste pode ser e qual a relação dos componentes com os
déficits neurológicos. Até o momento, o mais prudente parece ser o uso do MEEM como caracterização
da amostra e utilização de triagem cognitiva com exame comparativo entre subgrupos de TCE.
Palavras-chave: Mini Exame do Estado Mental; Traumatismo craniano; Testes neuropsicológicos
Abstract: Neuropsychological assessment in traumatic brain injury patients investigates deficits
related to executive components. These components are responsible for directing and managing the
skills necessary to perform activities of daily living effectively. Several tests are used to investigate the
performance of patients after injury, including the Mini Mental State Examination (MMSE), universally
applied in the investigation of dementia or other neurological samples. As a research tool, its use is still
no consensual, being used alone or together with batteries of neuropsychological assessment, as global
cognitive screening or examining signs of dementia post-TBI. Considering this perspective, this review
unsystematic aimed to characterize the use of the MMSE in these situations. After a brief search of articles,
it was noted MMSE has been used in all situations mentioned above, however, still so in a nonconsensual
and not standardized way. Thus, there is a need to establish standards in order to understand how the
MMSE can be discriminative and what the relationship of the components with neurological deficits. So
far, it seems to be the most prudent use of the MMSE as sample characterization and use of cognitive
screening examination with comparison between subgroups of TBI.
Keywords: Mini Mental State Examination; Brain injury; Neuropsychological tests
a Fonoaudióloga; Bacharel em Fonoaudiologia; Profissional colaboradora do Grupo de Neuropsicologia Clínica Experimental (GNCE)
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
*E-mail: [email protected]
b Psicóloga; Bacharel em Piscologia; Departamento de Neurologia do HCPA/UFRGS.
c Psicóloga; Mestranda em Psicologia - ênfase Cognição Humana (PUCRS).
d Psicóloga e Fonoaudióloga; Pós-Doutoramento em Clínica e Neurociências (PUC-Rio), em Medicina (Neurorradiologia) na UFRJ e
em Ciências Biomédicas na Universidade de Montreal (Canadá). Professora da Faculdade de Psicologia e do PPG em Psicologia da
PUCRS. Bolsista Produtividade 2 do CNPq.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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O presente artigo de revisão assistemática visa apresentar
um breve panorama e uma reflexão acerca das aplicabilidades
do Mini Exame do Estado Mental (MEEM), bem como investigar
de que forma está inserido na avalição neuropsicológica pós
traumatismo cranioencefálico (TCE). Para tal, foram realizadas
buscas de artigos na base de dados PubMed, utilizandose as seguintes palavras chaves: TBI or brain injury or closed
head injury associada às palavras-chave: Mini-mental state
examination or cognition or cognitive assessement or dementia or
cognitive impairment or executive functions or neuropsychology
assessement or cutoffs. A partir dos resultados da busca foram
selecionados artigos relacionados às questões dessa revisão.
A avaliação neuropsicológica tem por base pressupostos
teóricos e metodológicos epistemologicamente interdisciplinares,
advindos das mais diversas vertentes da área da psicologia cognitiva
e experimental, da neurologia, da fonoaudiologia, da psiquiatria,
da educação, entre outras, sendo que todas estas áreas trazem
conhecimentos essenciais ao exame neurocognitivo e à reabilitação
neuropsicológica (Fonseca et al., 2012). Por meio da aplicação de
instrumentos padronizados, pode-se levantar o funcionamento
cognitivo de pacientes, caracterizando suas habilidades prejudicadas
e aquelas que se mantiveram preservadas, no advento de um
quadro patológico (García-Alberca et al., 2011). Procedimentos
de observação, entrevistas clínicas em busca da comparação do
estado cognitivo pré e pós-mórbido e aplicação de tarefas clínicas e
ecológicas fazem também parte da avaliação neuropsicológica.
Ultimamente, o padrão ouro da avaliação neuropsicológica
tem incluído a administração de testes padronizados, que
fornecem maior credibilidade nos resultados à medida que a
aplicação e interpretação do desempenho ocorrem de maneira
uniforme e consensual, ou seja, baseada em normas técnicas
(Guilmette, Whelihan, Sparadeo & Buongiorno, 1994). A
busca por testagens adequadas e adaptadas ao contexto
auxilia no diagnóstico; porém, necessita-se obedecer às
especificidades dos instrumentos, visto que os resultados irão
conduzir levantamento de hipóteses diagnósticas, prognósticas
e de orientações de intervenção (Fonseca et al., 2012; Lezak,
Howieson & Loring, 2004). Nessa perspectiva, os instrumentos
podem ser classificados em diferentes critérios e devem ser
adaptados às situações de avaliação, de acordo com métodos
definidos conforme preconizam Fonseca et al. (2012).
Quanto ao tempo, podemos relacionar instrumentos
em categorias de: (a) Triagens ou screening – por exemplo, o
MEEM – com tempo de aplicação menor de 15 minutos; (b)
instrumentos breves aplicados em uma sessão ou ainda, (c)
bateria expandida que pode ter até 10 sessões de duração. A
cada modalidade, atribui-se uma profundidade de dados obtida
no desempenho do exame, sendo que os resultados serão
mais ou menos aprofundados conforme o tempo de aplicação.
Sendo assim, as triagens – de aplicação mais breve – fornecem
índices de sugestão de ocorrência de déficits ao ponto que os
instrumentos breves e as baterias expandidas procuram explorar
mais o desempenho do paciente e fornecer mais indícios do
funcionamento cognitivo do paciente (Fonseca et al., 2012).
Mini Exame do Estado Mental – História e Objetivos
O MEEM foi inicialmente proposto como rastreio de
demência em pacientes psiquiátricos (M. F. Folstein, Folstein,
& Mc Hugh, 1975). No entanto, tem sido usado universalmente
como uma medida de funcionamento cognitivo geral
(Kochhann, Cerveira, Godinho, Camozzato, & Chaves, 2009). O
MEEM se propõe a avaliar, de forma rápida, possíveis declínios
cognitivos relacionados às funções mentais que envolvem (a)
orientação temporal e espacial, (b) evocação imediata e tardia
de palavras, (c) atenção, (d) linguagem e (e) construção visual
e espacial (Chaves & Izquierdo,1992). É importante atentar
ao fato de que o MEEM tem fidedignidade de rastreio e não
de diagnóstico (Kochhann, Varela, Lisboa & Chaves, 2010) e,
ultimamente, utiliza-se também como acompanhamento e
evolução de diversos quadros neurológicos ou ainda como
norteador do processo de reabilitação (Brucki, Nitrini, Caramelli,
Bertolucci & Okamoto, 2003). No entanto, a ampla utilização
do MEEM não o transforma por si só em instrumento soberano
sobre outras avaliações mais complexas.
Como instrumento de pesquisa é presente a sua aplicação
junto às baterias neuropsicológicas, com objetivo de investigar
patologias demenciais diversas ou em indivíduos saudáveis
(Brucki et al., 2003; Laks, Baptista, Contino, Paula & Engelhardt,
2007). Além disso, também é utilizado como critério de inclusão
e caracterização da amostra, tendo assim, aplicabilidade tanto
como gerador de variáveis independentes como de dependentes
(Brucki et al., 2003).
Desde sua primeira adaptação para o Português Brasileiro
(Chaves & Izquierdo, 1992, para população gaúcha, e Bertolucci,
Brucki, Campacci & Yara, 1994, para população paulista), pontos
de corte são utilizados para a avaliação do desempenho dos
pacientes, baseados em anos de ensino formal e idade (Tombaugh
& Mcintyre, 1992). No Brasil, diversos estudos propuseram-se
em modificar versões ou adaptar pontos de cortes que pudessem
abranger níveis de escolaridades mais adequados à realidade
do país (Scazufca, Almeida, Vallada, Tasse & Menezes, 2009).
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A diversidade sociodemográfica é presente em nossa cultura e
esse aspecto não pode ser negligenciado devido ao alto índice
de pessoas com baixa escolaridade e analfabetismo (Kochhann
et al., 2009). Para tanto, autores buscaram compreender se o
nível de escolaridade interferiria no desempenho dos pacientes
e se os pontos de cortes, preconizados inicialmente, poderiam
ser utilizados adequadamente aos diferentes níveis educacionais
(Brito-Marques & Cabral-Filho, 2004).
Por exemplo, Bertolucci et al. (1994) encontraram, em
uma população de idosos, que o nível de escolaridade parece
interferir no resultado final do teste, ao ponto que a idade não.
Em contrapartida, Jacqmin-Gadda, Fabrigoule, Commenges,
Letenneur e Dartigues (2000) relataram que a relação entre
idade e MEEM parece ser verdadeira. Devido a esse impasse,
autores questionam: (1) até que ponto pode-se afirmar que
o declínio cognitivo (mensurado pelo MMEE) seja resultado
de uma situação demencial ou se, ao contrário, faça parte
da evolução natural do envelhecimento? (2) as normas de
padronização são aplicáveis para qualquer população e podem
ser empregadas como triagem na rotina clínica, hospitalar ou de
pesquisa? Finalmente, (3) até que ponto um teste que se propõe
a avaliar funções cognitivas é sensível para identificar déficits se
os seus escores de interpretação são influenciados por variáveis
sociodemográficas, caso não esteja normatizado ou corrigido
por elas? (Scazufca et al., 2009). Poderia ser acrescentada
ainda a seguinte questão: Como um teste pode ser usado para
verificar déficits cognitivos em diferentes populações clínicas
sem que seus pontos de corte sejam baseados em estudos de
sensibilidade e de especificidade ou em normas clínicas para
cada população?
Quanto a esses questionamentos, uma sugestão possível
e que vêm sendo utilizada seria a interpretação do MEEM
por componentes analisados, o que parece ser mais efetivo
considerando as funções neuropsicológicas mais prevalentes
de acordo com a patologia ou local de lesão, déficits estes já
descritos na literatura (Dong et al., 2010; Toglia, Fitzgerald, O’Dell,
Mastrogiovanni & Lin, 2010). No entanto, em estudos prévios,
com uma amostra de pacientes com acidente cerebral vascular
(AVC), a divisão entre os componentes apontou que o MEEM
não parece ser apropriado para discriminar déficits cognitivos,
quando comparados ao desempenho de outras baterias de
avaliação cognitiva (Dong et al., 2010). Na investigação dos
componentes relacionados às funções executivas, percepção
e construção visual o MEEM também não foi efetivo para
identificar déficits, em outro estudo com a mesma população
(Nys et al., 2005).
A partir disso, pode-se pensar no MEEM como parte
integrante, ainda que em forma de triagem, de uma bateria de
avaliação neuropsicológica. O intuito seria investigar funções
cognitivas e ter um levantamento das associações e dissociações
de modo breve de diferentes subcomponentes neurocognitivos.
Sendo assim, esta revisão assistemática caracterizará as
diferentes vertentes de uso do MEEM na avaliação neurocognitiva
de adultos pós-TCE.
Neuropsicologia do traumatismo cranioencefálico
Os pacientes vítimas de TCE frequentemente apresentam
déficits referentes às habilidades de interação com o meio,
capacidade de realizar as tarefas diárias de forma efetiva,
flexibilidade cognitiva, memória, atenção, planejamento,
inibição, etc. (Anderson & Knight, 2010). As queixas dos
pacientes e a busca por terapia relaciona-se ao fato dos prejuízos
neuropsicológicos interferirem negativamente nos âmbitos
sociais e laborais (Mass, Stocchetti, & Bullock, 2008). As funções
executivas (FE), mediadoras dessas habilidades cognitivas,
referem-se a um complexo conjunto de funções responsáveis
por direcionar e gerenciar habilidades cognitivas subjacentes
(Alvarez & Emory, 2006). Ainda, as FE são consideradas processos
cognitivos que atuam de forma concomitante. O prejuízo das FE
nos pacientes pós-TCE pode ser severo e faz parte das queixas
destes pacientes (Bush, McBride, Curtiss, & Vanderploeg, 2011).
Estudos anteriores, datados da década de 1960, já
demonstravam associação do lobo frontal com as disfunções
executivas e recentemente, pesquisas encontraram uma possível
relação entre exames de neuroimagem, FE e efetiva ativação de
múltiplas regiões frontais durante o desempenho em testagens
neuropsicológicas (Bush et al., 2011). Entre os locais de maior
vulnerabilidae de impacto devido às particularidades do evento
traumático está a região frontal, considerada de extrema importância
para as funções executivas (Roche, Moody, Szabo, Fleming & Shum,
2007). Por serem funções co-integradas e dependentes de áreas
cerebrais íntegras, quando lesionadas, os pacientes apresentam
prejuízo em mais de um aspectos cognitivo. (Roche et al., 2007). Da
mesma forma que uma única definição não dá conta de explorar
e caracterizar a diversidade de habilidades envolvidas com as FE,
estudos propõem a interação de instrumentos com o objetivo de
avaliar diversas habilidades cognitivas e verificar a possível interação
entre elas (Dong et al., 2010; Nys et al., 2005). Nessa perspectiva, as
críticas feitas ao MEEM são congruentes com a preocupação de não
fornecer, ao paciente, um diagnóstico superficial (Benge, Caroselli, &
Temple, 2007).
60
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 58-63
Avaliação neuropsicológica e uso do MEEM em
populações neurológicas
Por ser um teste de screening de uso universal, o MEEM tem
sido usado em diversos estudos com amostras neurológicas tais
como: Parkinson (Mamikonyan et al., 2009); demência frontaltemporal (Burke et al., 2011), Alzheimer (Godefroy et al., 2011),
AVC (Schweizer, Al-Khindi & Macdonald, 2012; Godefroy et al.,
2011), e TCE (Luukinen et al., 2005). Mais especificamente em
relação ao TCE, o MEEM vem sendo usado como (1) triagem
cognitiva global na fase aguda ou crônica (2) pertencentes às
baterias neuropsicológicas e de comunicação como instrumentos
de caracterização ou exclusão da amostra, ou ainda para (3)
examinar sinais sugestivos de demência pós-TCE. Como triagem
cognitiva global, o uso do MEEM é mais comumentemente
utilizado a baterias neuropsicológicas e de comunicação.
Essa situação é encontrada, por exemplo, em um estudo que
investiga a memória episódica no qual não houve diferença na
pontuação do MEEM entre pacientes com TCE leve e controles
(Tsirka et al., 2010). Ainda, Dardier et al. (2011) utilizaram o
MEEM para avaliar pacientes com TCE grave e encontraram uma
média de desempenho de 25 pontos dos 30 possíveis. Esses
dados foram utilizados na pesquisa do funcionamento cognitivo
desses pacientes.
Em dois estudos em que os objetivos foram desenvolver
e testar formas de avaliação além de investigar habilidades
cognitivas, respectivamente, nos quais estão envolvidos
flexibilidade cognitiva e teoria da mente (Bosco, Angeleri,
Zuffranier, Bara, & Sacco, 2012), os escores do MEEM foram
usados somente como variáveis independentes (VI) - critério de
inclusão da amostra - não sendo analisado seu escore total nem
comparado com outros instrumentos ou populações. Assim,
nota-se que mesmo sem pontos de corte específicos para
população clínica de TCE, o MEEM tem sido utilizado como um
instrumento triagem de verificação de critérios de inclusão.
Neste contexto, em relação à avaliação da demência
pós-TCE, algumas hipóteses são levantadas referentes a
uma proporção direta de indivíduos com TCE que pode ter
maior declínio cognitivo com o tempo, tipo, gravidade e local
da lesão (Starkstein & Jorge, 2005). Entretanto, não parece
ser consensual essa relação. Alguns estudos apontam que
pacientes com TCE tem maior risco de desenvolver demência,
principalmente do sexo masculino. Ainda, é possível que o limiar
para o desenvolvimento de quadros demenciais seja menor para
indivíduos que sofreram TCE, tendo em vista os mecanismos
neuroquímicos patológicos causados pelo quadro.
Jellinger et al. (2001) investigaram variáveis genéticas no
desenvolvimento da doença de Azheimer (DA) em indivíduos
com TCE. Os resultados dos estudos corroboraram a hipótese
de que há relação, mais especificamente que o histórico de TCE
grave associado com a falta de Apoliproteína E (ApoEe4) parece
ser um fator de risco para o desenvolvimento de Alzheimer. No
entanto, os mecanismos neurobiológicos relacionados ainda não
são bem conhecidos, pois a maioria dos estudos epidemiológicos
sobre demência, por exemplo, não investigam história de TCE.
Uma relação bem conhecida é sobre o desenvolvimento de
encefalopatia traumática em esportistas lutadores de boxe, que
se caracteriza como um tipo de demência distinta (Shively, Sher,
Perl & Diaz-Arrastia, 2012). Em relação a essa problemática,
alguns autores vêm propondo discussões sobre os mecanismos
patológicos do TCE (Giunta, Obregon, Velisetty, Sanberg &
Borlogan, 2012).
Por último, na investigação de déficits linguísticos em
pacientes com TCE na fase aguda, o MEEM apresentou relação
significativa com todas as funções linguísticas investigadas
(Chabok, Kapourchali, Leili, Saberi & Mohtasham-Amiri, 2012).
Hipotetiza-se que os déficits correlacionados com disfunções
cognitivas de pequeno e curto prazo (memória verbal, visual e
déficit de raciocínio) podem ser frequentes logo após um evento
traumático, como já apontavam M. Vukovic, Vucsanovik e Vukovic
(2008). Ainda como variável dependente, na comparação de
diferentes patologias, o escore do MEEM identificou menos
déficits executivos (Godefroy et al., 2011) em relação a “The
Montreal Cognitive Assessment” (MOCA) (Nasreddine et al.,
2005). Em função, disso para o diagnóstico da própria demência
muitos estudos tem sugerido o uso do MEEM associado a outros
instrumentos que aumente sua sensibilidade e especificidade,
tal como o teste do relógio (por exemplo, Juby, Tench & Baker,
2002).
Considerações finais
A utilização do MEEM como instrumento específico de
avaliação neuropsicológica ainda não é consensual. A partir
do exposto, entende-se a necessidade de padronização de
normas com intuito de vertificar o poder discriminativo do
teste, e a relação de cada componente do MEEM associados
com outros instrumentos que examinem os mesmo construtos.
Até o momento, o mais cauteloso seria usar o MEEM como
instrumento de caracterização da amostra, mas não de critério
de exclusão já que os componentes de função cognitiva que
podem ser avaliados em um quadro pós-TCE precisam ser bem
61
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 58-63
language use: a study of French-speaking adults. Journal of Comexplorados e que não há, até onde se sabe, normas clínicas do
munication Disorders, 44(3), 359-378.
MEEM para esta população. Ainda, sugere-se a utilização como
triagem cognitiva com exame comparativo entre subgrupos de Dong, Y., Sharma, V. K., Chan, B. P., Venketasubramanian, N., Teoh, H.
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63
ESTUDO TEÓRICO
Psiquismo fetal: um olhar psicanalítico
Fetal psyche: a psychoanalytic look
Elisa Cardoso Azevedo(a)*, Mariana Calesso Moreira(b)
Resumo: Este trabalho teve por objetivo realizar um estudo sobre o psiquismo fetal priorizando o olhar
e o entendimento psicanalítico. O tema foi escolhido por tratar-se de uma temática atual, relevante e
essencial já que nos proporciona um conhecimento das interações do feto com o meio intra e extra
uterino, a influência materna no desenvolvimento físico e emocional do feto, a existência de uma
continuidade entre a vida intra e extra uterina, no que diz respeito às características de personalidade do
feto e também, nos faz refletir sobre o caráter preventivo do estudo do psiquismo fetal e a importância da
intervenção precoce. Além disso, constatou-se que o estudo do psiquismo do feto realizado de maneira
sistemática e científica é recente. Percebe-se que ocorre uma carência de produção científica sobre o
tema e em função disso, há necessidade de desenvolvimento de estudos realizados por psicólogos,
divulgando assim o seu entendimento acerca do tema. Para tanto, foi realizada uma revisão bibliográfica
sobre psiquismo fetal em artigos atuais e livros clássicos de Psicanálise.
Palavras-chave: Psiquismo; Fetal; Pré-Natal; Psicanálise
Abstract: This study aimed to conduct a study on the fetal psyche prioritizing the look and psychoanalytic
understanding. The theme was chosen because it is a current topic, relevant and essential as it gives
us an understanding of the interactions with the environment of the fetus intra and extra-uterine, the
maternal influence in the physical and emotional development of the fetus, the existence of a continuity
between life inside and outside the womb, with regard to personality traits of the fetus and also makes us
reflect on the preventive character of the study of fetal psyche and the importance of early intervention.
Furthermore, it was found that the study of the psyche of the fetus conducted in a systematic and scientific
way is recent. It is observed that there is a lack of scientific literature on the subject and as a result, there
is need for development of studies by psychologists, thereby disclosing their understanding of the topic.
For this purpose, we performed a literature review on fetal psyche, current articles and classic books on
psychoanalysis.
Keywords: Psyche; Fetal; Prenatal; Psychoanalysis
a Psicóloga; Especialista em Psicologia Hospitalar.
*E-mail: [email protected]
b Psicóloga; Doutora em Psicopatologia da Infância, Adolescência e Idade Adulta (UAB/Espanha); Professora do Departamento de
Psicologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
64
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 64-69
O objetivo principal desta pesquisa foi realizar um estudo
sobre o psiquismo fetal priorizando o olhar e o entendimento
psicanalítico. O tema foi escolhido pela escassez de produção
científica sobre o assunto, já que se trata de uma temática
atual, relevante e essencial, além de ser um assunto polêmico e
inovador que ainda causa estranhamento e dúvidas.
O estudo ainda visa focar nas interações do feto com o meio
intra e extrauterino, na influência materna no desenvolvimento
físico e emocional do feto, na existência de uma continuidade
entre a vida intra e extrauterina, no que diz respeito às
características de personalidade do feto e também, nos faz
refletir sobre o caráter preventivo do estudo do psiquismo fetal
e a importância da intervenção precoce. Em função da escassez
de pesquisas, percebeu-se a necessidade de desenvolvimento
de estudos realizados por psicólogos, divulgando assim o
seu entendimento acerca do tema. Para tanto, a metodologia
utilizada foi uma revisão bibliográfica sobre psiquismo fetal em
artigos atuais e livros clássicos de Psicanálise. As autoras ainda
optaram por dividir a fundamentação teórica estudada em
tópicos a fim de melhor nortear a leitura do artigo.
Estudos sobre a vida intrauterina: principais
reflexões ao longo da história
O estudo do psiquismo fetal realizado de maneira
sistemática e científica é recente. Entretanto, o estudo do
feto e o de sua psique, foi marcado ao longo do tempo por
diferentes abordagens e teorias, incluindo ideias supersticiosas,
expectativas e preconceitos do imaginário social acerca da
grávida e de seu bebê, influenciando discussões morais,
religiosas e legais (Quayle, 2011).
No passado, grande parte do conhecimento disponível
baseava-se na resposta do feto a estímulos externos e dependia
da percepção de sua movimentação pela gestante e pelo
obstetra, em sua prática clínica. Além disso, o conhecimento
também se baseava muito em especulações e observações feitas
em fetos abortados. Foi somente com o avanço das técnicas de
diagnóstico pré-natal, principalmente da ultrassonografia na
década de 70, que se pôde ter acesso direto ao feto, possibilitando
estudos sistemáticos e precisos de seu comportamento no meio
intrauterino (Quayle, 2011).
A partir das primeiras descrições dos movimentos fetais pelo
ultrassom, vários aspectos do comportamento fetal passaram a
ser melhor observados e analisados. De acordo com Piontelli
(1995), aparentemente acreditava-se que tudo o que acontecia
no período pré-natal associava-se a experiências agradáveis de
calor, aconchego, penumbra, silêncio, proteção e prazer. Além
disso, a vida fetal em função de sua natureza abrigada era
considerada como um mundo à parte, como se a vida realmente
só começasse no ato do nascimento ou ainda depois.
Percebeu-se então que, contrariando as crenças até
então aceitas, o feto não é um ser passivo que se desenvolve
em absoluto isolamento e silêncio, mas sim que ele interage
com o meio intra e extrauterino através de seus movimentos,
reagindo a sons provindos do corpo da mãe e do meio externo.
Piontelli (1995) afirma que o ambiente no útero não é estático
ou homogêneo, ao contrário, ele muda continuamente durante
a gestação e cada feto habita um ambiente único, sujeito a
diferentes e singulares experiências e estimulações. Assim,
de acordo com Gomes e Piccinini (2005), a ultrassonografia
inaugurou uma nova forma de contato com o universo
intrauterino e o uso dessa tecnologia beneficiou o estudo do
psiquismo fetal, pois através dos movimentos e das reações
fetais tem sido possível conhecer importantes informações a
respeito das funções sensoriais e das altas funções do cérebro do
feto e também já é identificar traços iniciais de personalidade,
prevendo futuros comportamentos do bebê. Sobre isso SouzaDias (1996, p.40) complementa referindo que “toda especulação
sobre fetos e gestantes, que tem surgido através da história e da
evolução do pensamento, tem levado à evidência de psiquismo
no feto. Isto nos faz pensar que possuímos a pré-concepção da
existência desse fato, que vem se manifestando e desenvolvendo
através dos tempos, desde os pensamentos supersticiosos até a
ciência interpretativa e intuitiva, que tem sido comprovada pela
ciência experimental através da ultrassonografia”.
Atualmente entende-se que o feto é possuidor de
sensações, percepções, sensibilidade e traços rudimentares
de personalidade, e que fatos ocorridos antes do nascimento
influenciam no desenvolvimento bioevolutivo e psicoafetivo do
indivíduo. Para Zenidarci (2010) e Wilheim (1997), mesmo intraútero, o feto manifesta seus sentimentos de prazer, desprazer,
tristeza, alegria, angústia, bem-estar, agrado e desagrado por
meio de seu comportamento e de sua movimentação. Piontelli
(1995) explica que é basicamente através de manifestações
somáticas do feto que se pode inferir um funcionamento mental,
uma vez que os movimentos fetais representam um meio de
comunicação com o ambiente.
Geralmente, é com os primeiros movimentos fetais que
ocorre a atribuição das características pessoais e de personalidade
do feto. Acredita-se que as primeiras relações do bebê com
o ambiente já se iniciam durante a gestação, através das
expectativas parentais sobre o feto e das interações estabelecidas
65
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 64-69
com ele. É através dos movimentos que o feto se comunica com
a mãe e esta vai nomear e interpretar tais movimentos dentro
do seu universo, incluindo suas projeções e suas fantasias. As
expectativas da mãe em relação ao futuro bebê originam-se de
seu próprio mundo interno, de suas relações passadas e de suas
necessidades conscientes e inconscientes relacionadas ao feto e
a gestação. Estes investimentos iniciais são fundamentais para a
futura relação pais-bebê e para estruturação da personalidade
do indivíduo (Piccinini, Gomes, Moreira & Lopes, 2004; Prado et
al., 2008).
Piontelli (1995) chama a atenção para a riqueza e a
complexidade dos movimentos fetais mesmo nos estágios iniciais
da gravidez. Além disso, a autora aponta para a individualidade
dos movimentos de cada feto, que podem ser observados através
de suas posturas e reações preferidas, mostrando já ser um
indivíduo com preferências e até personalidade própria. De acordo
com Piontelli (1995, pp.23-24), “quando o comportamento se
repete em cada observação, vai-se adquirindo gradualmente a
convicção de que o comportamento tem uma consistência e um
significado que precisam ser entendidos. As hipóteses somente
se tornam mais plausíveis quando podem ser verificadas com a
repetição de observações no decorrer do tempo”.
Caron (2000) aponta que a partir da possibilidade de
visualizar o feto através da ultrassonografia, a gestante concebe
a gravidez como verdadeira e o seu filho como mais real. Com os
dados concretos que o exame disponibiliza, a mãe pode ainda
na gestação confrontar o bebê imaginário com o bebê real e
é como se o encontro com o bebê fosse antecipado. Gomes e
Piccinini (2005) explicam que, dessa forma, a ultrassonografia
provoca uma intensa sobrecarga emocional devido a rapidez do
encontro entre mãe-feto. A reação é tão intensa que conteúdos
inconscientes que estavam latentes podem vir à tona. Os autores
alertam que tal impacto é diferente para cada mulher e forma
como ela irá manejar as expectativas e frustrações despertadas
por tal encontro vão depender da sua história prévia, seus
conflitos psíquicos, seu momento atual de vida e sua capacidade
de elaboração.
Dessa forma, percebe-se que estudos relativos à vida
intrauterina deixaram de ser somente orgânicos, para ampliar
e utilizar também conceitos psicológicos. Wilheim (2000)
conceitua que a Psicologia pré-natal, também conhecida como
Psiquismo fetal e Psicoembriologia, dedica-se ao estudo do
comportamento, desenvolvimento evolutivo, psicoafetivo e
emocional do ser humano no período anterior ao nascimento.
Zenidarci (2010) aponta que a Psicoembriologia institui a fase
umbilical como a primeira fase do desenvolvimento psicológico
do indivíduo, marcando esta como uma fase anterior a fase
oral, que foi postulada por Freud como a primeira fase do
desenvolvimento psíquico. Nesta perspectiva, o estudo do
embrião e do feto quebra paradigmas tradicionais ao postular
tais ideias.
A influência da Psicanálise nos estudos e pesquisas
sobre o Psiquismo Fetal
Uma atenção especial é dada pela psicanálise que
vem mostrando grande interesse no decorrer dos anos pela
continuidade de funções da vida pré-natal à pós-natal. Sobre
a importância dessa temática para a psicanálise, Wilheim
(2000, p.136) destaca: “se considerarmos que todos os fatos
que ocorrem no período pré-natal recebem registro mnêmico;
que esse registro se dá e fica guardado apenas no nível do
inconsciente; que todas as vivências pelas quais passa o ser no
período pré-natal irão fazer parte de sua bagagem inconsciente,
exercendo influência tanto sobre a personalidade pós-natal como
sobre sua conduta e seu comportamento; e sendo o inconsciente
o objeto por excelência da Psicanálise, conclui-se que o estudo
do psiquismo pré-natal é de importância fundamental para esse
campo de conhecimento”. A autora ainda explica que quando se
fala em Psicologia e Psiquismo pré-natal refere-se, por um lado,
à existência de vida mental no feto, e por outro, à existência de
registros de experiências pré-natais, tanto traumáticas como não
traumáticas na mente do bebê, criança e/ou adulto.
A continuidade entre vida pré e pós-natal tem sido
explorada e constatada, ao longo dos anos, nos trabalhos de
diversos psicanalistas. Atualmente há um reconhecimento da
existência de uma interação entre vida intra e pós-uterina, o que
torna verdadeira e atual a frase de Freud: “Há uma continuidade
muito maior entre a primeira infância e a vida intrauterina do
que a impressionante cesura do ato do nascimento nos permite
supor” (Freud, 1926/1976, p.162).
Freud (1900/1972) também menciona em “Interpretação
dos Sonhos” à existência de fantasias relacionadas com a vida
intrauterina e com o nascimento e a importância dos sonhos que
evocam o nascimento. Contudo, apesar de Freud ter reconhecido
a importância do período embrionário para a vida mental dos
seres humanos, sua obra não faz menção mais detalhada à
influência do período pré-natal. Rank (1961) enfatiza em seu
trabalho, “O trauma do nascimento”, as experiências pré-natais
e as do nascimento, postulando sobre a influência dessas
experiências nas vivências posteriores. Considera as emoções
associadas ao nascimento cruciais, sendo capazes de gerar
66
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 64-69
angústia e sofrimento na vida pós-natal.
Rascovsky (1977), psicanalista argentino de orientação
kleiniana, discorre sobre a importância das experiências
intrauterinas e apresenta a hipótese de um psiquismo arcaico no
feto. Segundo este autor, tais experiências se configuram como
suporte ao sistema defensivo, que as idealiza e às quais o sujeito
pode regredir quando sua vivência psíquica atual é vivida como
dolorosa ou intolerável. Assim, as experiências intrauterinas são
idealizadas como sendo paradisíacas e o sujeito pode regredir a um
estágio fetal diante de ansiedades insuportáveis. Contudo, para
Souza-Dias (1996), se a vida intrauterina fosse tão paradisíaca
não haveria necessidade de o feto desenvolver mecanismos
defensivos. Rascovsky (1977) ainda inova ao postular sobre um
Ego desde o momento da concepção chamado de Ego Fetal. Este
se constitui em Ego Ideal, o que explica porque nas fantasias de
retorno ao ventre o sujeito busca retornar ao estado ideal de seu
Ego. O autor ainda acredita que o Ego reencontra seu estado de
origem, o estado fetal, diariamente ao dormir e sonhar. Para ele,
dormir representa uma regressão cotidiana às condições fetais e
chama a atenção à posição fetal assumida por algumas pessoas
ao dormir (Gastaud, 2008).
Bion (1992) também contribui para a temática do
psiquismo fetal, o qual ele chama de proto-psiquismo
embrionário e fetal’. Compartilha, com outros autores, a ideia de
que o feto é receptivo a estímulos internos provindo do corpo da
mãe, do seu próprio corpo e do meio externo, e que responde a
estes estímulos através de movimentos corporais. Acredita que
as vivências da vida pré-natal deixam registros psíquicos que
vão exercer influência na vida pós-natal. O autor ainda refere:
“não vejo razão para duvidar que o feto a termo tenha uma
personalidade. Parece-me gratuito e sem sentido supor que o
fato físico do nascimento seja algo que cria uma personalidade
que antes não existia. É muito razoável supor que este feto, ou
mesmo o embrião tenha uma mente que algum dia possa ser
descrita como muito inteligente. (p.91)”.
O trabalho da psicanalista italiana Alessandra Piontelli é
considerado um dos pilares para a compreensão do psiquismo
humano no período pré-natal, e seu trabalho reforçou que o
feto é altamente singular. Para ela, cada feto apresenta uma
maneira única de se comportar e de agir, dado que fica ainda
mais evidente em gestações gemelares. Em seu estudo, a
psicanalista constatou, a partir de suas minuciosas observações,
que: os recém-nascidos continuam a apresentar as mesmas
características individuais observadas intra-útero; que os padrões
de conduta e de comportamento dos fetos aparecem muito cedo
na vida intrauterina, tanto em gestações singulares, como nas
gemelares; nos gêmeos, cada um dos irmãos apresenta um
padrão de comportamento próprio, singular e bem definido, e
o padrão de interação entre eles aparece ainda intra-útero, com
características próprias, que irão nortear os comportamentos
na vida pós-natal. Para a autora, existe uma intencionalidade
nos gestos e movimentos. Ela observou, ao acompanhar as
crianças de seu estudo na vida pós-natal, que, particularmente
os gêmeos, procuravam reproduzir passagens de sua vida
pré-natal, o que a psicanalista acredita ser uma tentativa de
comunicação, de reconstrução e de elaboração das vivências
intra-útero (Piontelli, 1995; Quayle, 2011; Wilheim, 2000).
Wilheim (2000, p. 147) complementa as ideias de Piontelli
dizendo “proponho-me a testemunhar mais um pouco sobre
a existência de um mundo mental no feto e no recém nascido
– rico, complexo e variado – cujos efeitos ressoam no espaço
mental pós-natal e se manifestam como ecos de um passado
distante, dando a este uma continuidade no presente embora
por vezes de difícil decodificação”.
Wilheim (1997) ainda afirma que é no período pré-natal que
se inicia a capacidade de aprendizado do bebê. Ela explica que
mesmo antes de nascer o bebê já é um ser inteligente e sensível.
Para a autora, os padrões de conduta e de temperamento, as
características individuais e as diferenças de personalidade são
evidentes e marcantes desde o início do período gestacional,
mantendo-se por toda a vida intrauterina e manifestando-se com
as mesmas peculiaridades na vida pós-natal. Portanto, pode-se
dizer que o feto tem uma personalidade bem definida na vida
pré-natal e que após o nascimento continuará a desenvolver as
mesmas características antes observadas. Ressalta ainda que
na clínica, a psicanálise tem flagrado evidências de registros
traumáticos pertencentes ao período pré-natal e ao nascimento
e que traumas durante a vivência pré-natal podem resultar em
futuras psicopatologias.
A influência materna e suas repercussões sobre o
bebê intra-útero
Também no estudo da psicologia pré-natal, sempre foi de
grande interesse a influência materna sob o desenvolvimento
físico e emocional do feto. Tal influência atualmente é um
fato comprovado e torna-se real a preocupação que emoções
maternas destrutivas prejudiquem o feto. De acordo com
Quayle (2011) e Zenidarci (2010), uma mãe sob forte tensão
emocional tende a apresentar alterações hormonais que
ultrapassam a barreira placentária e ocasionam mudanças
no equilíbrio psicofisiológico fetal. É pelo cordão umbilical
67
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 64-69
que surge a inter-relação física e emocional entre mãe e filho,
portanto os primeiros contatos com o meio externo são através
das reações emocionais da mãe, frente ao que ela pensa, sente
e vivencia. Com isso, alterações neurais, hormonais e humorais
da mãe, devido a alguma perturbação emocional, são levadas
ao feto pelo cordão umbilical agindo diretamente no seu estado
emocional, registrando assim marcas em seu psiquismo que
serão decisivas na sua formação psicoemocional.
Sabe-se que os estresses vivenciados pela mãe podem
ter conseqüências diretas sobre o feto. Segundo Souza-Dias
(1996, p.116), “as investigações feitas através das observações
ultrassonográficas mostram-nos que fator de importante
interferência na vida fetal é o stress da gestante, poderoso
estímulo desencadeante de sofrimento fetal. A sua intensidade
e a sua duração, se crônico ou agudo, são fatores que marcam
profundamente o feto e o predispõem a angústias já na vida prénatal e que podem reaparecer na vida pós-natal”.
Além disso, a disponibilidade afetiva da mãe é fundamental
para que ocorra o desenvolvimento emocional do indivíduo e o
desenvolvimento do vínculo afetivo da tríade mãe-bebê-pai. Os
estados emocionais da gestante e a qualidade de sua relação
com o parceiro exercem grande influência no feto. De acordo com
Souza-Dias (1996) “o equilíbrio da relação mãe-feto depende da
qualidade do vínculo que existe entre os pais” (p.107). O vínculo
entre a tríade, que geralmente tem início ainda na gestação, é
uma das vias de contato e de troca de afeto dos pais com o futuro
bebê (Ramos, 2004; Wilheim, 1997).
Ainda sobre a influência materna sob o desenvolvimento
do feto, estudos comprovam que o feto é capaz de reconhecer
a diferença entre a voz da mãe e a voz de uma desconhecida e,
além disso, demonstra preferência pela voz da mãe frente à voz
de outras pessoas. Tais ideias indicam que a capacidade auditiva
se desenvolve ainda no útero, mais ou menos a partir do quarto
mês, o que também contribui para o início da linguagem (De
Casper & Fifer, 1980; De Casper & Spence, 1986).
Portanto, desde a sua primeira semana de vida, a criança
é um ser existente. Não apenas um embrião ou feto que vai se
tornar, passivamente, um bebê. Antes de vir ao mundo, este ser
passa por sensações, aprendizados e experiências. Seu mundo
interno começa a se constituir ainda intra-útero e o mundo
externo terá grande influência no seu psiquismo na vida pósnatal.
essencial, e tem despertado grande interesse e curiosidade, já
que o conhecimento mais detalhado do comportamento das
capacidades do ser humano no período pré-natal nos leva a
conhecer o rico desenvolvimento e as potencialidades do feto.
A partir desse trabalho, pôde-se compreender de que
forma o feto interage com o meio intra e extrauterino, pôdese conhecer a existência da continuidade das características de
personalidade do feto na vida intra e pós-uterina, confirmou-se
a importância da mãe no desenvolvimento físico e emocional
do feto e abriu-se um caminho para o entendimento de
psicopatologias. Tais constatações levam as autoras a entender
que os objetivos inicialmente propostos foram alcançados.
Cabe destacar o caráter preventivo do estudo do psiquismo
fetal e a importância da intervenção precoce. Visto que registros
mnêmicos, guardados no inconsciente, exercem influência no
psiquismo do ser humano em sua vida pós-natal, entende-se
então que, estes registros, quando traumáticos, podem nos
auxiliar na compreensão de psicopatologias de origem primitiva,
ou seja, parte-se do entendimento de que quanto mais precoce
a falha, falta ou trauma, mais grave será a psicopatologia.
Quanto à intervenção, sugere-se a psicoterapia breve pais-bebê,
pois se acredita que ela possa auxiliar nos inúmeros distúrbios
que possam ocorrer no relacionamento inicial entre a tríade e no
desenvolvimento emocional do bebê.
Percebe-se então a importância do trabalho do psicólogo
que, através de sua escuta e olhar diferenciados, embasados na
teoria e técnica psicanalítica, pode compreender essa singular
forma de comunicação do feto e, posteriormente na clínica,
pode fazer conexões entre a história pré e pós-natal do sujeito
e seus sintomas.
Por fim, acredita-se que este estudo possa aprimorar o
conhecimento de colegas da área e de profissionais que atuam
na área Materno-Infantil. Sugere-se ainda a realização de novas
pesquisas, principalmente no que diz respeito ao papel do pai e
suas repercussões para o psiquismo, a fim de expandir e atualizar
os conhecimentos existentes, já que a bibliografia encontrada
aborda predominantemente a influência materna sobre o
psiquismo.
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Casa do Psicólogo.
Recebido em abril/2012
Revisado em setembro/2012
Aceito em outubro/2012
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ESTUDO TEÓRICO
Política de saúde do homem: para além do que se vê
Health politics of man: beyond what you see
Ana Paula Eid(a)*, Kelly Cristina Kohn(b), Roberta Fin Motta(c)
Resumo: Este artigo tem a proposta de discutir a relação homens e saúde através da Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH). Nessa perspectiva, realizou-se uma pesquisa de cunho
qualitativo, através da análise do folder da Campanha Nacional de 2009 da PNAISH. A partir da coleta
do material publicado na página on-line oficial do Ministério da Saúde, desenvolveu-se uma análise da
estrutura, observando a indicação textual/imagem ilustrativa e órgão responsável pela publicação/foco,
por meio da Análise Semiótica de Imagens Paradas. Dentre os resultados, podemos destacar a presença
do modelo assistencial, centrado na doença e na assistência médica curativa, bem como, a insuficiência de
um olhar mais abrangente da saúde do homem em uma perspectiva de saúde integral, caracterizando-se
por aspectos negativos e não priorizando outros que também compõem a vida dos homens.
Palavras-Chave: Análise Semiótica; Homens; Saúde
Abstract: This article is the proposal to discuss the relationship between men and health through the
National Politics for Integral Attention to Men’s Health (PNAISH). From this perspective, there was a
qualitative research by analyzing the folder of the National Campaign’s 2009 PNAISH. From the collection
of material published in official online page of the Ministry oh Health has developed an analysis of the
structure, noting indication text/image and illustrative agency responsible for publishing/focus through
the Semiotic Analysis of Still Images. Results included, the presence in the folder of the service model,
based on disease and medical healing as well as the lack of a more comprehensive look on men, in a
comprehensive health perspective, characterized by negative and not prioritizing other they also make
the lives of men.
Keywords: Semiotic Analysis; Men; Health
a Psicóloga da Associação dos Deficientes Visuais de Canoas-ADEVIC/RS.
*E-mail: [email protected]
b Psicóloga do Centro de Referência da Assistência Social/ CRAS Cruzeiro, Porto Alegre/RS.
c Psicóloga.; Professora do Curso de Psicologia do Centro Universitário Franciscano/UNIFRA.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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A Política Nacional de Atenção Integral a Saúde do Homem
(PNAISH) alinhada com a Política Nacional de Atenção Básica,
porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS) traduz um
anseio da sociedade ao reconhecer que os agravos do sexo
masculino constituem sérios problemas de saúde pública
(Ministério da Saúde, 2008). Nesse ínterim, o presente artigo
tem o intuito de problematizar e refletir sobre a saúde dos
homens e a PNAISH, através análise do folder da Campanha
Nacional de 2009 PNAISH, publicado na página on-line oficial
do Ministério da Saúde.
Tendo em vista que o homem não é um sujeito ativo de
sua saúde, por não possuir cuidados com ela, vários esforços
estão sendo realizados, tanto em nível estadual quanto federal,
para dar conta da maior mortalidade masculina por problemas
de saúde ou relacionados a ela. Campanhas sobre drogas,
sexualidade, cuidados no trânsito são esforços que, somados,
têm o intuito de alcançar a população masculina. Acrescentase a isso os programas de saúde dedicados aos jovens e aos
idosos, que tentam minimizar problemas de saúde nessas faixas
etárias. Entretanto, a maior parte da população masculina não
é abordada por esses programas de saúde, pelo fato de não
contemplar a faixa etária a eles aplicada. Por isso, a necessidade
de pensarmos e discutirmos sobre a saúde dos homens e a
PNAISH.
Sabe-se que os homens atribuem a baixa procura aos
serviços de saúde à falta de cuidados e escuta adequada, com
um olhar de gênero que possa dar conta de suas demandas
(Gomes, Nascimento & Araújo, 2007). As mulheres, por sua vez,
são as que mais freqüentam a rede de assistência à saúde, sendo
foco de programas de promoção da saúde e de prevenção de
agravos, familiarizadas, ao longo dos tempos, com intervenções
sobre o seu corpo (Meyer, 2000; Gomes, Nascimento & Araújo,
2007). Essa questão também pode ser reforçada pela Política da
Mulher, que encontra-se entre as mais antigas existentes no Pais,
desde 1983.
Em 2003, teve início a construção da Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde da Mulher – Princípios e Diretrizes,
quando a equipe técnica da Política da saúde da mulher avaliou
os avanços e retrocessos alcançados na gestão anterior. Em
maio de 2004 o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional
de Atenção Integral à Saúde da Mulher, construída a partir da
proposição do SUS e respeitando as características da nova
política de saúde. E, levando em consideração esse marco
histórico-político-social, somente em 2009 acontece a criação
de uma Política Pública de Atenção a Saúde do Homem, visando
este enquanto um sujeito que necessita de atenção e cuidado
(Brasil, 2011).
Até o ano de 2009, o homem era mencionado nas Políticas
de Saúde associado às políticas de HIV/AIDS ou à sexualidade,
no que diz respeito a problemas do âmbito da fertilidade e, mais
uma vez, sendo percebido como ligado às mulheres. O estudo
das questões relativas aos homens, principalmente a sua saúde,
vem sendo desbravado nos últimos anos, mas ainda há muitos
mitos em torno dessa questão, principalmente culturais e vindos
dos próprios homens. Atualmente, o modelo hegemônico
de masculinidade, do macho, viril, forte, tem se tornado um
problema para as questões de saúde. Isso acontece porque,
entre os homens, não há uma cultura de autocuidado, pois eles
são primeiramente cuidados por suas mães e depois por suas
esposas, o que reforça o seu caráter dependente quando se trata
da sua saúde, dificultando a promoção de medidas preventivas
(Braz, 2005; Korin, 2001; Strey & Pulcherio, 2010).
Como ponto de partida este estudo sobre o desenvolvimento
de ações de saúde em geral e a formulação de políticas de
saúde voltadas para os homens, faz-se necessário investigar a
concepção do conceito de saúde, bem como a relação homemsaúde. É importante assinalar o lugar do qual analisaremos
a produção de saúde. Esse conceito é problematizado a partir
das propostas da reforma sanitária e constitui-se como um dos
eixos das dimensões de cuidados em saúde. A reforma sanitária
é um movimento engendrado no campo da saúde, a partir da
década de setenta, como crítica ao modelo de saúde pública
que organizava a atenção à saúde no Brasil. A mesma, ainda
é um projeto político que articula saúde, cidadania e direito,
onde a saúde passa a ser objetivada como um suporte social,
ou seja, um suporte para a vida. A reforma sanitária encontrase na Constituição de 1988, quando se organizam as ações em
saúde mediante um Sistema Único de Saúde - SUS (Bernardes
& Quinhones, 2009).
Breves aspectos históricos sobre produção de saúde
De acordo com Elias, citado por Mendonça e Andrade
(2010, p. 217), “a saúde passou a ser consolidada como política
depois da Segunda Guerra Mundial, com o advento do Estado
de Bem-Estar Social e dos sistemas de saúde norte-americano e
europeu”. Ainda, os autores acima citados ressaltam que a partir
desse momento, os governos passaram a investir em recursos
com intuito de viabilizar propostas para a saúde da população.
Já no Brasil, a saúde sofreu diversas transformações ao
longo do tempo. Carvalho e Ceccim (2007) descrevem os
principais acontecimentos históricos relativos ao modelo de
71
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saúde. Inicialmente manteve-se o Modelo Curativo individual,
que definia o corpo como espaço de evolução das doenças
e a clínica como a restauração da suposta normalidade. Nas
décadas de 1950 e 1960 emergiu o Modelo Preventista com foco
na transformação das práticas de saúde e as necessidades da
população. Na década de 1970 a Saúde Comunitária foi alvo de
estudos e temas como os territórios da vida, contextos culturais e
direito à educação popular são valorizados. Em seguida, surgem
novos sanitaristas, os quais expressam críticas à realidade social.
Dessa forma, iniciou-se o Movimento Sanitário, o qual
reivindicava integração entre o ensino-serviço, com valorização
da aprendizagem em Unidades de Saúde. Nesse contexto, foi
realizada em 1978 a Conferência Internacional Sobre Cuidados
Primários de Saúde em Alma-Ata, promovida pela Organização
Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a
Infância (Unicef). Como resultado dessa Conferência a Atenção
Primária de Saúde foi caracterizada como assistência sanitária ao
alcance de todos (Andrade, Barreto & Bezerra, 2007).
Nesse ínterim, Góis (2008) afirma que a 8ª Conferência
Nacional de Saúde (CNS) realizada no ano de 1986 e sua
proposta de atenção primária em saúde, caracterizam um marco
da saúde no Brasil, especialmente por estabelecer os princípios
preconizados pelo Movimento da Reforma Sanitária. Segundo
o Relatório Final dessa Conferência, saúde é o resultado das
condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio
ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso
aos serviços de saúde, dentre outras.
A Constituição Federal de 1988 delegou novo sentido à saúde,
agregando as discussões feitas na 8° CNS, caracterizando-a como
um direito de todos os cidadãos. Ainda, a saúde é descrita como
reflexo das condições sociais, econômicas e ambientais, nas
quais a população se insere (Nascimento, 2004). Nesse sentido, o
Sistema Único de Saúde (SUS), vai além da prestação de serviços
assistenciais ao articular e coordenar ações promocionais e de
prevenção com as de cura e reabilitação (Vasconcelos & Pasche,
2006). A política de saúde nesse contexto passou a ter expressão
e ganhar reconhecimento e dimensão social, após a criação
então do Sistema Único de Saúde (SUS).
A Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, do Ministério da
Saúde, dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e
recuperação da saúde, sendo esta um direito fundamental do ser
humano. Apresenta três princípios básicos que fundamentam a
prática dentro do âmbito da Saúde Pública: a universalidade de
acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
a integralidade da assistência entendida como um conjunto
articulado de ações e serviços preventivos e curativos, individuais
e coletivos; e a equidade da assistência, sem preconceitos ou
privilégios. Também dispõe acerca da organização, direção e
gestão do SUS. As ações e serviços de saúde são organizados de
forma regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade
crescente. A direção do SUS é realizada no âmbito da União
pelo Ministério da Saúde, no âmbito dos Estados e Distrito
Federal e Municípios pela Secretaria de Saúde correspondente.
Esta estrutura visa facilitar o acesso da população aos serviços
vislumbrando sempre seu bem estar. A fiscalização é realizada
pelos Conselhos de Saúde, organizados em instâncias Nacionais
(CNS), Estaduais (CES), Municipais (CMS) e Distritais (CLS)
(Nascimento, 2004).
Atualmente, a Saúde Coletiva compreende as subáreas
da Saúde Pública, da Epidemiologia e da Medicina Preventiva
e Social. A Saúde Coletiva, no que se refere à formação em
saúde, propõe novas formas de educar, pensar e agir em saúde,
privilegiando histórias de vida, integralidade e histórias culturais.
Nessa articulação de formação em saúde a partir da trajetória
anteriormente descrita, o desenvolvimento da produção de
saúde como campo conceitual e de prática é visto como uma
estratégia promissora para enfrentar os múltiplos problemas
de saúde que afetam as populações humanas e seus entornos
(Buss, 2000).
Dentro dessa abordagem, a produção de saúde é definida
como o processo de capacitação da comunidade para atuar na
melhoria da sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior
participação no controle desse processo, incorporando na sua
práxis valores que fundamentam a prática dentro do âmbito da
saúde pública, já mencionados (OMS, 1986). E, buscando uma
maior integração de alguns conceitos que permeiam o processo
de produção de saúde, o Ministério da Saúde (MS) (Brasil,
2008), estabelece algumas metas na tentativa de expandir o
SUS com trabalho de qualidade e entre essas, a implantação de
ações voltadas para a Atenção à Saúde do Homem as quais serão
abordadas a seguir.
Formulação da política de atenção à saúde do homem
No Brasil, a discussão sobre a saúde dos homens teve seu
início mediante esforços da Sociedade Brasileira de Urologia
(SBU), que promoveu uma Campanha no ano de 2008 tendo
como tema a disfunção erétil. A partir daí, a SBU apoiada pelo
então, Ministro da Saúde José Gomes Temporão tinha como
uma das metas de sua gestão a implantação de uma política
de assistência à saúde dos homens. Dessa forma, começou a
exercer forte pressão junto aos órgãos do governo, aos Conselhos
72
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de Saúde e a outras entidades médicas, para que fosse lançada
uma Política de saúde que tivesse como foco os homens.
Durante o ano de 2008, as ações da SBU começaram a dar
resultados, entre eles, um acordo de cooperação técnica entre o
Ministério da Saúde (MS) e a SBU para promover a assistência
aos homens no sistema público de saúde. Além disso, foi
realizado o IV Fórum Políticas Públicas de Saúde do Homem,
no qual foi apresentado pelo MS o projeto que posteriormente
daria origem à Política Pública de Saúde para o homem (Carrara,
Russo & Faro, 2009; MS, 2009; SBU, 2010).
Em agosto de 2009, após discussões entre pesquisadores,
associações médicas e setores do governo, entre outros, o MS
lançou a Política de Atenção Integral à Saúde do Homem
(PNAISH). Segundo o MS (2009), essa Política visa atender
homens na faixa etária dos 20 aos 59 anos e tem como objetivo
ampliar o acesso dos homens aos serviços de saúde, melhorando
a assistência oferecida por meio de ações que promovam saúde,
prevenção, informação, e uma mudança cultural. A PNAISH é
um programa pioneiro dentre os países da América Latina e está
alinhada com as diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica
(PNAB). Além disso, os governos estaduais possuem autonomia
para criar suas próprias Políticas, com base na federal, que
atendam as demandas específicas de cada região do Brasil e
mesmo dentro de cada Estado.
Na construção da Política, apoiada em estudos e pesquisas
de instituições públicas e privadas, como a Sociedade Brasileira
de Urologia e a Sociedade Brasileira de Cardiologia, entre outras,
também se levou em conta a transversalidade com as demais
políticas existentes, a fim de que houvesse uma interdependência
entre elas (Conass, 2009), primando pela atenção primária como
porta de entrada no sistema de saúde. Ao propor a integração
com outras Políticas de saúde, como a Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), o governo pretende
perceber os homens através de uma perspectiva individual e
relacional, evitando isolar homens e mulheres, relacionando
questões que também envolvem o casal.
Um plano de ação com nove eixos deveria ser executado
até o ano de 2011, segundo o MS (2009), no qual o governo
prevê o aumento do valor repassado às unidades de saúde por
alguns procedimentos urológicos e de planejamento familiar e
ampliação do número de ultrassonografias de próstata. Além
disso, a Política presume a capacitação técnica de profissionais
para melhor atuar e compreender sobre a saúde masculina.
Como nosso país é extenso, percebemos que algumas ações não
são executadas de maneira uniforme, e em alguns estados do
país, a PNAISH ainda ‘engatinha’ após quase dois anos de seu
lançamento. Fazer com que a PNAISH esteja ao alcance de todos
os homens é um desafio o que justifica a importância da sua
problematização, a fim de que não se perca em seus propósitos.
Método
Seleção do material
o material elegido para a análise foi o folder da Campanha
Nacional de 2009 da Política Nacional de Atenção Integral à
Saúde do Homem (PNAISH), publicado na página on-line oficial
do Ministério da Saúde. A escolha deveu-se pelo fato da PNAISH
ser um programa pioneiro dentre os países da América Latina,
sendo a mais recente no Brasil até o presente momento. Embora
a coleta do material tenha sido via página on-line, o mesmo é
significativo, tendo em vista a observância de que os agravos do
sexo masculino são um problema de saúde pública (Ministério
da Saúde, 2011) estando assim, alinhado com as diretrizes da
Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). A PNAISH é uma
Política Pública nova e que, ainda, não foi implantada em alguns
municípios.
Procedimentos para a coleta de dados
o primeiro passo foi a escolha do material para ser analisado
– o folder da Campanha Nacional de 2009 da Política Nacional
de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH) acessado
entre os meses de Maio a Julho de 2011 no site do Ministério
da Saúde (http://portal.saude.gov.br/saude/campanha/
foldershomem_270809.pdf), com o objetivo de suscitar
discussões críticas sobre um assunto contemporâneo, que é a
saúde dos homens e suas vicissitudes.
O segundo passo se fez por meio da identificação dos
elementos do material, analisando o texto e a imagem (capa
e contracapa). Nessa configuração, destacamos que os dados
para a análise foram os textos e as imagens, porque julgamos
que tanto as informações escritas, quanto as visuais são
indispensáveis a compreensão deste universo e, portanto, trazem
elementos relevantes para serem analisados. Já, o terceiro passo
foi analisar níveis mais complexos de significados, por exemplo,
“como os elementos se relacionam uns com os outros? Que
conhecimentos culturais são exigidos a fim de ler o material?
(Penn, 2008, p. 328). Ainda, segundo a metodologia proposta
pelo autor, o folder da PNAISH, foi analisado através da Análise
Semiótica de Imagens Paradas, observando alguns itens, como:
indicação textual/imagem ilustrativa e órgão responsável pela
publicação/foco.
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Procedimento de análise dos dados
para analisar os dados escolhemos a Análise Semiótica
de Imagens Paradas, (Penn, 2008), por também ser uma
análise dependente do contexto social e histórico que está
sendo apresentado. Sendo assim, algumas interpretações
tendem a ser praticamente universais, enquanto outras se
limitam a determinada cultura ou a uma maneira individual
de enxergar a questão. Este tipo de análise tem o objetivo de
tornar explícitos os conhecimentos culturais necessários para
que o leitor compreenda a imagem. Além disso, a semiologia
instrumentaliza o analista para analisar os signos para que estes
produzam sentidos.
Resultados e discussões
A seguir, discorremos sobre a análise e discussão do folder
(capa e contracapa), num contexto de leitura flutuante, levando
em consideração que ao analisarmos o folder lançamos um olhar
frente a essa estrutura, e que cada sujeito, ao analisar o mesmo
material, poderá encontrar outras discussões, podendo ter
diferentes interpretações, não existindo uma única e verdadeira
leitura (Penn, 2008).
Destacamos que os dados para análise do folder,
apresentados em capa e contracapa, foram à indicação textual/
imagem ilustrativa e órgão responsável pela publicação/foco,
pelo fato de julgarmos que tanto as informações escritas, quanto
as visuais são de extrema importância à compreensão deste
material, e que, portanto, trazem elementos relevantes para
serem analisados.
A seguir, o folder da campanha da Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde do Homem:
Indicação textual e imagem ilustrativa
Ao analisarmos a capa do folder, visualizamos um homem
com idade entre 30 e 40 anos, branco, bem vestido, magro,
com uma expressão séria, descortinando as doenças, escritas
em caixa alta (Hipertensão, Diabetes, Tabagismo, Alcoolismo
e Cirrose). Ao fundo, um gramado, um céu azul, com alguns
brinquedos, como se fosse uma pracinha infantil e um menino,
brincando com uma bola. No canto superior esquerdo, em letras
grandes e em caixa alta lemos “HOMEM QUE SE CUIDA NÃO
PERDE O MELHOR DA VIDA”. Aqui se entende através da imagem
apresentada no plano de fundo do folder que ao cuidar da sua
saúde, o homem aproveita sua vida com lazer juntamente da
sua família. Gomes et al. (2011), referem que há uma associação
entre doença e interrupção do ciclo de vida, dificultando a
promoção do autocuidado entre os homens. A frase em destaque
no folder remete à importância do cuidado masculino em saúde
para que momentos como o do plano de fundo façam parte do
cotidiano das famílias.
Nessa configuração, percebe-se que o homem tem idade
entre 30 a 40 anos. Para tanto, o Ministério da Saúde (2009),
afirma que a Política visa atender homens na faixa etária dos
20 aos 59 anos. Cabe ressaltar, que seria interessante outras
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raças, etnias, idades a serem contempladas, para que houvesse
uma maior identificação do público, bem como, estar explícita
a faixa etária de acompanhamento da PNAISH. Ocorre assim,
uma generalização do público mencionado, associada a uma
lógica do modelo linear de comunicação, verificando-se uma
tendência em aproximar os indivíduos em suas generalizações
e não em suas especificidades (Fausto-Neto, 1995). Esta lógica
de generalização é característica marcante nas Campanhas de
Saúde Pública (Kelley-Santos & Rozemberg, 2005).
Ao abrirmos o folder, nos deparamos com uma continuação
da imagem da capa: o gramado verde, o céu azul, crianças
brincando em um brinquedo localizado no canto inferior
esquerdo da aba esquerda. Ainda, uma mulher, supostamente
mãe, empurra um carrinho com uma criança no seu interior. Na
aba direita, dando seqüência à figura do gramado, um menino
andando de bicicleta aparece na parte inferior. Podemos inferir
que a imagem menciona uma família heteronormativa, na qual
um casal, composto de um homem e uma mulher e filhos ou
filhas são o modelo de família apresentado.
Mais uma vez, a heteronormatividade está presente em
uma campanha do governo federal, fazendo alusão a uma
família tradicional. Campanha esta que tem o intuito de atingir
um público ampliado e diverso. Questionamos como os homens
irão se identificar nessa campanha, tendo em vista a falta de
menção à diversidade sexual e étnico-racial. E ainda, já que a
política traz o sofrimento da família quando um homem adoece,
referindo que não somente aquele que adoece sofre, mas todas
e todos a sua volta, como deixar de lado no folder a questão
da paternidade? A paternidade que está tão em voga, com a
reconfiguração dos papéis de homens e mulheres, e a maior
participação dos homens no cuidado e na responsabilidade com
a criação e educação dos filhos.
Em estudo de Schraiber et al. (2010), os autores perceberam
como a pouca importância dada às especificidades de gênero
contribuem para obstaculizar o acesso aos serviços de saúde,
principalmente os serviços de atenção primária. Ainda nesse
estudo, foi percebida a falta de vínculos com os homens,
chamando a atenção para a ausência de um olhar de gênero
que possibilitaria apreender novas necessidades e carências
nos serviços de saúde. Percebemos, assim, como é delicada a
situação dos homens diante dos serviços de saúde, aos quais
eles pouco comparecem e, quando comparecem, enfrentam
dificuldades pessoais e estruturais dos serviços, que em sua
maioria não estão preparados para recebê-los com um olhar e
escuta adequada.
Entendemos que uma melhor articulação do folder com a
diversidade sexual, étnica e racial seria importante para que um
maior número de homens pudesse se identificar ao ler o mesmo.
Nesse sentido, Heilborn, citado por Gomes (2008), menciona as
questões de gênero e classe social, identificando que homens de
classes sociais mais elevadas cuidam-se mais do que homens de
classes menos favorecidas. Uma vez que o folder está atrelado
a uma política pública e ao SUS, percebemos a importância de
visibilizar diversidades e no intuito de promover a prevenção e o
cuidado em saúde em toda a população masculina.
Ainda, a participação de um pai nas brincadeiras das
crianças que aparecem no folder também seria interessante,
tendo em vista que isto também faz parte de uma vida saudável.
O incentivo à paternidade responsável está entre as diretrizes
da PNAISH, e é importante que ações estimulem os homens a
assumirem sua responsabilidade, direitos e deveres enquanto
pais, possibilitando, segundo Arilha (1998) que homens e
mulheres compartilhem ideias e acontecimentos sobre aspectos
da reprodução.
Na aba da direita do folder, escrito em letras grandes
lemos a frase: “O que será oferecido para a população masculina
no SUS”. Abaixo disso, são explicados itens do que será
oferecido aos homens: prevenção da saúde, treinamento dos
profissionais de saúde, informação e comunicação. Estas ações
são importantes para que não só a população masculina atente
para sua saúde, mas também que os/as profissionais da saúde
saibam acolher os homens nos espaços de saúde. Conforme
Valdés e Olavarría, citado por Keijzer (2003), a invisibilidade
dos homens e sua ausência nos espaços de saúde perpassa a
identidade de gênero masculina, refletindo nesses espaços a
noção de invulnerabilidade dos homens. Ainda, a dificuldade
que os homens têm de expressar suas necessidades de saúde e
o medo de que elas possam ser percebidas como demonstração
de fragilidade, expressa uma feminização da noção de cuidado,
reforçando que os espaços de saúde possam ser percebidos
como pertencentes a mulheres e crianças (Kohn, 2012).
Como parte integrante da prevenção oferecida à população
masculina, há maior facilidade, bem como, existe a ampliação e
atendimento aos homens na rede básica de saúde, as chamadas
UBS (Unidades Básicas de Saúde) e ESF (Estratégia de Saúde da
Família) (MS, 2009). Nesse sentido, percebemos que o folder
não menciona as ações que serão feitas para que a prevenção
atinja a população mencionada. Partimos da idéia de que saúde
é mais que a ausência de doença e por isso entendemos que
a prevenção não deve estar apenas relacionada à facilidade de
acesso e ampliação dos atendimentos nas UBSs e ESFs, mas
também a outros aspectos da vida dos homens que garantirão
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(2) | Ago/Dez | 70-78
uma maior qualidade de vida e redução da morbi-mortalidade
masculina.
Em revisão dos estudos em Necessidades de Saúde e
Masculinidades de Schraiber et al. (2010), apontam quatro
estados brasileiros onde foram pesquisados dez serviços de
saúde pública com a realização de observações etnográficas,
entrevistas semi-estruturadas com usuários (homens com idade
entre15-63 anos, totalizando 182 usuários) e profissionais (72
sujeitos entrevistados), realizando assim a seleção de dados
referente a percepção dos usuários e suas necessidades , uso
dos serviços, respostas dos profissionais e funcionamento dos
serviços. Para tanto, a percepção dos usuários sobre a saúde se
aproxima, onde não negam as suas necessidades de saúde e
destacam várias dificuldades em procurar e acessar os serviços.
No que diz respeito ao treinamento dos/as profissionais de
saúde, está escrito no folder que haverá treinamento específico
para 32 mil equipes de ESF. Quando buscamos essa informação
em sites do Ministério da Saúde, apenas encontramos que
poucas capacitações foram realizadas até o momento, 2 anos
depois do lançamento da PNAISH. Entretanto, é importante que
esses treinamentos aconteçam a fim de que as equipes estejam
capacitadas para ouvir as demandas da população masculina.
Schraiber et al. (2010) em sua pesquisa, citada anteriormente,
refere que os profissionais, embora reconheçam que os homens
possuem necessidades , apontam dificuldades para atuarem
sobre elas, não tendo percepção do quanto o serviço ou seu
modo de prestar assistência repercutem na qualidade do acesso
e acolhimento do usuário.
Outro aspecto referente ao que será oferecido à população
masculina é informação e comunicação. No folder, está escrito
que serão “realizadas campanhas voltadas para a Saúde do
Homem com a distribuição de cartilhas sobre prevenção de
doenças sexualmente transmissíveis (DSTs/Aids) e de cânceres e
hábitos de vida mais saudáveis”. Nesse sentido, ainda podemos
perceber a prioridade sobre os aspectos relativos às doenças em
detrimento de outros referentes ao cuidado dos homens com a
sua saúde.
Um pequeno texto no centro do folder reforça que a
prevenção de doenças no homem melhora também sua saúde e
qualidade de vida, explicitando o que deve ser feito para ajudar
nessa prevenção: “Adote uma alimentação saudável; Não fume e
evite bebidas alcoólicas; pratique exercícios físicos.” Em destaque,
em uma caixa de texto à parte dos textos anteriores, o incentivo
para que o homem procure uma UBS mais próxima da sua
casa. Este texto reforça, mais uma vez, o modelo médico ainda
prevalente na saúde.
No verso do folder, são ressaltados hábitos de saúde, através
das frases: “Adote uma alimentação saudável”; “Não fume e
evite bebidas alcoólicas”; “Pratique exercícios físicos”; “Procure a
Unidade Básica de Saúde mais próxima”. Além disso, o verso do
folder traz a continuação da imagem da capa, com um campo
verde no qual um menino anda de bicicleta, com belas árvores
ao fundo. Bem no centro da imagem, junto ao céu azul, lemos
o nome da Política ressaltado em caixa alta. Ao longo de todo
o folder, é possível perceber a cor azul – tida como masculinacontrastando com o verde dos campos, no qual a vida acontece
e o homem tem deixado de estar presente.
Órgão responsável pela publicação/foco
Na parte superior do verso do folder, o site do Ministério
da Saúde é destaque, juntamente com um telefone, do Disque
Saúde (0800 61 1997). Segundo o Ministério da Saúde
(2011), o trabalho parte da definição de políticas e diretrizes
em saúde voltadas para a população masculina na faixa etária
já mencionada. No dia 25 de agosto de 2011, às 17h e 20
minutos, ligamos para o número do Disque Saúde indicado no
folder. Uma gravação redirecionou a ligação para outro número
automaticamente. Após uma mensagem inicial, indicando que
o número discado tratava-se da ouvidoria do SUS, a gravação
sugeria as opções que deveríamos teclar conforme as dúvidas
que tínhamos: em relação a doenças, tabagismo, medicamentos,
dengue. Somente no quinto item, campanhas do Ministério da
Saúde são mencionadas, assim como ações do Ministério da
Saúde no sexto item. Mais adiante, a opção de falar com um
atendente nos é dada.
Ora, se há no folder de divulgação da PNAISH o contato
para o Disque Saúde, a ideia que temos é de que ao menos uma
das opções oferecidas deveria contemplar diretamente a saúde
dos homens. Nesse sentido, este serviço do Ministério da Saúde
não transmite informações a respeito da saúde masculina,
invisibilizando o usuário do sistema de saúde, partindo assim
da premissa de que é preciso construir outras formas de acesso
mais eficazes para o atendimento, direcionado e mobilizando
assim a população masculina brasileira pela luta e garantia do
seu direito social à saúde, tornando os homens protagonistas de
suas demandas (Ministério da Saúde, 2008).
Considerações finais
Somente após 20 anos de implantação do SUS no Brasil é
que uma Política de Saúde para os homens foi realizada como
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forma de atender as demandas dessa população, que como
alguns estudos constataram, já está presente nos serviços de
saúde, mas aguarda seu atendimento ao lado da porta de saída
(Schraiber et al., 2010). Nesse sentido, é interessante que se
reflita sobre Políticas Públicas que se relacionam com a saúde
do homem, sendo esta uma nova proposta que vem sendo
discutida desde 2008 e hoje, firmada dentro da instância do SUS,
como Política Nacional de Atenção Integral a Saúde do Homem
(PNAISH).
Podemos ressaltar, ainda, a presença do modelo assistencial,
centrado na doença e na assistência médica curativa, percebido
na capa, através da exposição das doenças, como: hipertensão,
diabetes, cirrose, entre outras. Além disso, a insuficiência de
um olhar mais abrangente sobre o homem, pensando na
perspectiva de saúde integral que pode ser descrito através das
recomendações sugeridas que se referem à doença, violência,
acidentes de trânsito e trabalho, caracterizando-se por aspectos
negativos e não priorizando outros que também fazem parte da
vida dos homens.
Para tanto, é importante problematizar a PNAISH, já que esta
se encontra em processo de implantação no Brasil, ligando-a a
um conceito de saúde que não seja pautado na doença,
conceituando-a enquanto modos de vida, que permitam
a inclusão da cidadania e da equidade e que possibilitam
também direcionar as práticas em saúde para além do que já
está instituído, para além daquilo que coloca os homens numa
posição de invisibilidade quando o assunto é saúde.
No entanto, há necessidade de mudança de paradigmas
da percepção da população masculina em relação ao cuidado
com a sua saúde também é enfatizada pela Política. Olhar
para o comportamento dos homens em relação a sua saúde é
também compreender que durante muito tempo eles ficaram
à margem de Políticas assistenciais específicas o que contribui
para obstaculizar o acesso dos homens aos serviços de saúde.
Percebemos que uma via de mão dupla é importante para que
ocorra uma mudança no comportamento dos homens com a
sua saúde, pois não apenas os homens devem olhar para si, mas
é necessária também uma mudança no atendimento dos(as)
profissionais de saúde, que devem saber acolher as demandas
masculinas e não restringi-las apenas a um foco sexual e
reprodutivo.
A análise do folder aqui realizada é um trabalho que não
se esgota, pois “teoricamente, o processo de análise nunca se
exaure e, por conseguinte, nunca está completo. Isto é, é sempre
possível descobrir uma nova maneira de ler uma imagem”
(Penn, 2008, p.331- 332). Dentro desse contexto, a proposta de
refletir criticamente sobre o material exposto no folder é uma
contribuição para uma discussão que coloca os homens como
sujeitos ativos de sua saúde e protagonistas de uma escolha
pelos caminhos a percorrer.
Assim, para que a PNAISH se torne parte de todos e todas, o
governo propõe uma articulação com outras áreas de instâncias
federais e com o setor privado, a fim de que se forme uma rede
visando o compromisso com uma melhor qualidade de vida.
Esse é um grande desafio, já que a Política está em seu início,
engatinhando no seu processo de implantação e implementação
no Brasil. Entretanto, não basta apenas que o governo faça a
proposta, é preciso que tanto os homens como a sociedade em
geral, possam fazer parte da história desse movimento em prol
da saúde masculina.
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Recebido em abril/2012
Revisado em novembro/2012
Aceito em dezembro/2012
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ESTUDO TEÓRICO
Aspectos emocionais da saúde da mulher na
medicina tradicional chinesa
Emotional aspects of woman´s health in traditional chinese medicine
Alexsandra Cassol de Vasconcelos(a)*
Resumo: A mulher está, atualmente, exposta às variações hormonais decorrentes do estilo de vida
atribulado e estressante, e vem aumentando, na mesma medida, os problemas relacionados aos ciclos
femininos. Assim, o presente estudo busca explorar as alterações vivenciadas no ciclo menstrual da mulher
ocidental sob a perspectiva da Medicina Tradicional Chinesa, aprofundando as relações existentes entre
os estados emocionais e as alterações menstruais. Através do levantamento bibliográfico constatou-se
que o padrão primário observado nas alterações do ciclo menstrual se refere à Estagnação do Qi do
Fígado. Os distúrbios emocionais tendem a congestionar ou bloquear o fluxo energético deste Órgão
que é responsável pela movimentação de Qi e Sangue e pela armazenagem do Sangue, ocasionando os
sintomas de tensão pré-menstrual. Os autores propõem que, quando se trata de ciclo menstrual, o mais
importante para a saúde da mulher é a forma como elas se relacionam com as emoções dissonantes do
dia a dia.
Palavras-chave: Irregularidades Menstruais; Saúde da Mulher; Medicina Chinesa
Abstract: The woman is currently exposed to the hormonal changes resulting from the stressful and
hectic lifestyle, and has increased to the same extent, problems related to female cycles. Thus, this
study aims to explore the changes experienced in the menstrual cycle of western woman's under the
perspective of Traditional Chinese Medicine, deepening the relationship between emotional states and
menstrual changes. A bibliographical survey found that the pattern observed in the primary changes of
the menstrual cycle refers to the Liver Qi Stagnation. Emotional disturbances tend to jam or block the
energy flow of this Organ, which is responsible for the movement of Qi and Blood and storage of Blood,
causing symptoms of premenstrual tension. The authors propose that, when it comes to the menstrual
cycle, the most important for the health of women is how they relate to their dissonant emotions in
everyday life.
Key words: Menstrual Irregularities; Women's Health; Chinese Medicine
a Psicóloga; Especialista em Acupuntura.
*E-mail: [email protected]
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
79
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As irregularidades menstruais, as tensões emocionais e
mudanças comportamentais provocadas pelos ciclos femininos,
os tumores de mama, os sintomas da menopausa, entre outros
têm sido, nos últimos anos, temas amplamente debatidos nos
diversos meios de comunicação. Conforme Nunes (2009), os
especialistas afirmam que a mulher moderna, mais do que
nunca, está exposta às variações hormonais decorrentes do
estilo de vida atribulado e estressante, da alimentação sempre
inadequada e do uso de anticoncepcionais. Não há dúvidas,
segundo o autor, que os problemas sazonais de saúde física
e mental, relacionados com o ciclo menstrual, são típicos dos
tempos atuais.
Um estudo global, envolvendo 4 mil mulheres, em diversos
países, estima que 90% da população em idade fértil sofre de
sintomas que se enquadram nos critérios do CID-10 (Código
Internacional de Doenças) e, ainda, 3% a 5% dessas mulheres
apresentam sintomas de angústia e irritabilidade às vésperas da
menstruação ou a partir da metade do ciclo (Nunes, 2009). Dados
semelhantes são encontrados nos estudos de Valadares, Ferreira,
Correa Filho & Romano-Silva (2006) e Carvalho (2009) que
informam que um total de 75% a 80% das mulheres em idade
reprodutiva apresenta algum tipo de sintoma (físico, emocional
ou cognitivo) durante o período pré-menstrual. Ainda, 10%
dessas mulheres declaram que seus sintomas são perturbadores,
impondo a necessidade de intervenção profissional e, entre 2%
e 8% das mulheres padecem de sintomas severos o suficiente
para desequilibrar suas vidas social, familiar e ou profissional
durante uma ou duas semanas por mês.
Diante deste quadro, o objetivo do presente estudo foi
explorar as alterações vivenciadas no ciclo feminino da mulher
ocidental sob a perspectiva da Medicina Tradicional Chinesa,
investigando suas causas, padrões de desarmonia e formas de
tratamento, além de aprofundar as relações existentes entre
os estados emocionais e as alterações menstruais. Segundo
Souza (2008), a Medicina Chinesa é um conjunto de saberes e
práticas de saúde que constituem, prioritariamente, um modelo
de prevenção e promoção da saúde, além da face curativa. A
prática médica chinesa versa sobre o restabelecimento natural
do equilíbrio, da harmonia e da vitalidade do corpo, através da
valorização dos poderes internos de cura (Valins, 1999; Souza,
2008; Zhao, 2009). Assim, o estudo objetiva, também, reunir um
conjunto de práticas e providências de autocuidados oferecido
pela sabedoria oriental à mulher que certamente contribuirão
para a promoção de sua saúde íntima.
Método
O estudo realizado utiliza como parâmetro a pesquisa
bibliográfica, que se refere a um tipo de pesquisa elaborada a
partir de material publicado: livros, artigos de periódicos, teses,
monografias e base de dados eletrônicos. Este levantamento
objetivou recolher e analisar as principais contribuições literárias
sobre o papel das emoções nos problemas ginecológicos da
mulher a partir das práticas e conceitos médicos chineses. Para
tanto, foram consultados os catálogos da Biblioteca Virtual
em Saúde (BVS) disponibilizados na rede. As categorias de
descritores consultados foram: irregularidades menstruais, saúde
da mulher, acupuntura e medicina chinesa. Foi dada a devida
atenção aos livros publicados por autores contemporâneos
sobre Medicina Chinesa, cuja obra representa a análise de
temas relevantes à compreensão das concepções de saúde desta
Medicina. Para complementar a estratégia de busca foi realizada
a checagem manual das referências bibliográficas dos artigos
e livros consultados com o objetivo final de localizar textos
pertinentes ao tema pesquisado.
Resultados e discussão
Milhões de mulheres em idade reprodutiva apresentam
uma constelação de sintomas emocionais, cognitivos,
comportamentais e físicos relacionados ao seu ciclo menstrual.
Estes quadros sintomáticos recebem denominações como
tensão pré-menstrual (TPM), síndrome pré-menstrual (SPM),
transtorno disfórico da fase lútea tardia (TDFLT; Manual
Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais – DSM-III-R) ou
transtorno disfórico pré-menstrual (TDPM; Manual Diagnóstico
e Estatístico de Distúrbios Mentais DSM-IV), cada um com a
sua gravidade e sustentados por um complexo conjunto de
fatores biológicos, psicológicos e ambientais (Valadares et al.,
2006). Carvalho (2009) acrescenta que os sintomas de ordem
emocional têm sido referidos como de maior intensidade.
Os autores são unânimes ao afirmar que há mais de 150
sintomas relacionados ao ciclo menstrual (Carvalho, 2009;
Deadman, 1995; Freitas, Menke, Rivoire & Passos (1997); Nunes,
2009; Valadares et al., 2006). Os sintomas mais comumente
descritos pela literatura são: 1) sintomas emocionais: humor
depressivo; ansiedade; tensão; irritabilidade; choro; inquietação;
baixa autoestima; sentimentos de solidão; tristeza. 2) sintomas
cognitivos: insônia ou aumento da sonolência; diminuição da
memória; confusão; concentração diminuída; distração. 3)
sintomas comportamentais: compulsão por alimentos ricos
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em carboidratos; aumento de apetite; não participação em
atividades sociais ou profissionais; maior permanência em
casa; aumento do consumo de álcool; aumento ou diminuição
da libido. 4) sintomas físicos: intumescimento e dolorimento
de seios e abdome; cefaleia; dores generalizadas; aumento de
peso; fogachos; desmaios; tonturas; náuseas; fadiga; palpitação;
diarreia; constipação; acne.
A prática médica chinesa trata as questões relativas ao ciclo
feminino e as inúmeras alterações acima relatadas sob uma ótica
diferenciada que será exposta a seguir. Primeiramente, há certas
particularidades do pensamento chinês ao analisar os conceitos
de sua medicina. Como esclarece Ferreira e Luz (2007, p.865), “os
sentidos e significados de cada parte do discurso no pensamento
chinês só se tornam claros em sua inserção no todo. O significado
de uma categoria é dado pela evocação de outras categorias, que
vão se ressignificando por meio da associação entre elas”. Dessa
forma, torna-se fundamental a exposição preliminar de alguns
princípios básicos da Medicina Tradicional Chinesa, dentre eles
o conceito de Yin e Yang, do Qi, dos Órgãos Zang Fu e dos Cinco
Elementos. As inter-relações e ressignificações destes conceitos
básicos permitem, a partir da proposta holística, o entendimento
das questões de saúde e doença, e mais estritamente, da saúde
íntima da mulher.
A Medicina Tradicional Chinesa entende e descreve o
funcionamento do corpo humano com base na filosofia taoísta
que considera o homem como um aspecto da natureza, dentre
milhares de outros e, como tais são regidos pelas mesmas
leis naturais que comandam o universo (Gomes, 1996; Zhao,
2009). O indivíduo é um microcosmo, e, portanto, é impossível
a separação de uma parte do corpo, ou de um sintoma, ou de
seu aspecto físico, ou de seu aspecto emocional, sem a devida
consideração do todo. Segundo Zhao (2009, p.27), “cada ser
humano é um corpo-mente-espírito orgânico unificado”. Da
mesma forma, não se pode isolar uma doença e tratá-la sem
entender de que forma ela afeta o restante do corpo.
Zhao (2009) esclarece que o microcosmo humano, bem
como o universo, está em constante transformação e movimento,
sofrendo a ação de forças que impulsionam um elemento ao
outro. Essa interação de forças opostas é conhecida como Yin e
Yang. Assim, conforme Requena (1990), Yin está associado aos
fenômenos materiais, sólidos, aos corpos, ao frio, ao sombrio,
à contração, à lua, ao feminino, ao inverno, ao interior. Yang
associa-se aos fenômenos imateriais, ao movimento, a atividade
psíquica, ao calor, a luminosidade, ao verão, a expansão, ao
masculino, ao sol, ao exterior.
Da mesma forma, Zhao (2009) lembra que o ser humano
também é uma combinação de Yin e Yang, ou seja, cada parte
do corpo é descrita como predominantemente Yin ou Yang (por
exemplo, nossa cabeça, por posicionar-se no alto é Yang, nossos
pés, Yin) e, mais ainda, a Medicina Chinesa vê a saúde como a
capacidade de manter um equilíbrio entre estes polos e a doença
como um desequilíbrio entre Yin e Yang.
A causa desses desequilíbrios está no movimento dinâmico
do Qi dentro do corpo. O Qi é definido como força vital que move
e gera a vida, sustentando o corpo, mente, coração e espírito.
O Qi é a energia que estimula a atividade – a capacidade
de digerir os alimentos, de se movimentar, de pensar (Zhao,
2009). O Qi flui pelo corpo por determinadas vias condutoras
chamadas Meridianos. A prática médica chinesa trabalha com a
harmonização do fluxo do Qi através destes caminhos - no total
12 Meridianos Principais (Kemmer, 2006). Quando o Qi não flui
suavemente surge a doença. A acupuntura, uma das técnicas
terapêuticas chinesas, atua sobre os Meridianos, em pontos
específicos, para recuperar o equilíbrio da energia do corpo
gerando saúde (Zhao, 2009).
A Medicina Chinesa ensina que a Energia (Qi) e o Sanguea
(Xue) estão estritamente relacionados e são inseparáveis. O Qi é
fundamental para a produção de Sangue que vai nutrir todo o
organismo e que, por sua vez vai gerar Qi. A união harmoniosa
e constante entre Sangue e Qi é a que melhor simboliza dentro
do corpo as relações de dependência e complementaridade
entre o Yin e o Yang (Sangue como expressão do Yin e Qi como
expressão do Yang). E essa interdependência se exprime nos
conceitos de que o Qi forma, movimenta e controla o Sangue
enquanto o Sangue é a Mãe do Qi. É ligada ao Sangue que a
Energia Qi encontra um canal de circulação (Auteroche, Navailh,
Maronnaud & Mullens, 1987; Auteroche, Solinas & Mainville,
2000; Gomes, 1996; Zhao, 2009).
A interconexão de todos os órgãos do nosso corpo,
através dessa dinâmica de circulação energética recebe o
nome de Zang Fu. Os órgãos Yin são conhecidos como Zang,
e as vísceras Yang, como Fu. Cada um dos seis órgãos Zang –
Fígado, Coração, Pericárdio, Baço-Pâncreas, Pulmão e Rins
– tem vísceras Fu correspondentes – Vesícula Biliar, Intestino
Delgado, Triplo Aquecedor, Estômago, Intestino Grosso e Bexiga,
respectivamente. Cada um desses pares de órgãos tem funções
básicas, está relacionado a um órgão do sentido e também a
tecidos. Dada a interdependência destes sistemas, um padrão
a
Para fazer a diferenciação entre a forma que a Medicina Ocidental e a Tradicional Chinesa veem determinados órgãos e
líquidos corpóreos optou-se por utilizar letra maiúscula quando se trata da visão oriental que contempla além da estrutura
físico-anatômica as qualidades energéticas.
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de desequilíbrio em determinado órgão tem efeito profundo em
todos os outros órgãos, o que, por fim, pode levar à ocorrência
de doenças (Zhao, 2009).
Essa sequência de fenômenos ocorre de forma contínua
como uma força de transformação dentro do universo e no
homem e se traduz pelos Cinco Elementos: Fogo, Terra, Metal,
Água e Madeira. No homem cada processo - físico e psíquico tem relação com um desses elementos (Gomes, 1996). A Figura
1 (Adaptado de Gomes, 1996) esclarece essas relações:
Madeira
Zang Fu: Fígado
Órgão do sentido: Olhos
Tecido: Tendão, ligamentos
e unhas
Emoção: Raiva
Sabor: Azedo
Cor: Verde
Estação do ano: Primavera
Fogo
Zang Fu: Coração
Órgão do sentido: Língua
Tecido: Vasos sanguíneos
Emoção: Alegria
Sabor: Amargo
Cor: Vermelho
Estação do ano: Verão
o Coração, a ansiedade, o Baço, a perda ou tristeza, os Pulmões,
e o medo, os Rins”. Os autores propõem exemplos elucidativos
deste processo em nosso dia a dia. Quando a pessoa é muito
preocupada ou rumina pensamentos, o Qi do Baço pode ficar
bloqueado, o que talvez se traduza em problemas digestivos ou
sangramentos excessivos durante a menstruação (Zhao, 2009).
Ou quando a pessoa está triste ou não pode dar vazão à sua
raiva e medo, pode reprimir os seus sentimentos prendendo a
respiração, tensionando a garganta e enrijecendo os músculos
Terra
Zang Fu: Baço
Órgão do sentido: Boca
Tecido: Músculos
Emoção: Preocupação
Sabor: Doce
Cor: Amarelo
Estação do ano: Canícula
Metal
Zang Fu: Pulmão
Órgão do sentido: Nariz
Tecido: Pele
Emoção: Dor e tristeza
Sabor: Picante
Cor: Branco
Estação do ano: Outono
Água
Zang Fu: Rim
Órgão do sentido: Ouvido
Tecido: Ossos
Emoção: Medo e ansiedade
Sabor: Salgado
Cor: Preto
Estação do ano: Inverno
Figura 1. Os Cinco Elementos
Os órgãos e as vísceras são distribuídos, de acordo com
suas funções, pelos Cinco Elementos. Dado que na Medicina
Tradicional Chinesa, o corpo e a mente são inseparáveis, as
diversas emoções são sentidas por todas as regiões do corpo
e cada uma das emoções se identifica com um órgão e se
reflete em várias outras áreas dentro deste circuito energético,
imprimindo um ritmo e um sentido de circulação de energia
próprio (Gomes, 1996).
Quando o corpo é saudável e forte, as emoções também são
sadias. Elas fluem livremente e são adequadamente expressas
(Zhao, 2009). São sete emoções: a alegria, a raiva, a ansiedade,
a obsessão, a tristeza e o medo. No entanto, elas são causas de
doenças quando sentidas de forma excessiva por um período
prolongado (Gomes, 1996; Zhao, 2009).
As emoções, conforme esclarece Zhao (2009), são
consideradas expressões de nosso Qi e, assim sendo, gerarão
problemas se estiverem bloqueadas, se forem canalizadas ou
expressas de forma inadequada. Esta sobrecarga emocional
inclui a negação ou recusa em percebê-las ou aceitá-las. Para
Gomes (1996), este desequilíbrio precipita a desorganização
do fluxo energético, inviabilizando uma boa circulação de Qi,
Sangue e outros líquidos do organismo.
Nei Jing (O Clássico do Imperador Amarelo), citado por
Zhao (2009, p.45), esclarece que todas as doenças surgem da
perturbação do Qi: “a raiva faz subir o Qi, a alegria o abranda,
o dor o dispersa, o medo o faz descer, o terror o confunde e a
ansiedade o deixa estagnado. A raiva prejudica o Fígado, a alegria,
abdominais. Com o tempo essas tensões musculares acabam
afetando a postura, o equilíbrio e o fluxo de energia (Valins,
1999).
Ainda, conforme Gomes (1996), quando a pessoa está
excessivamente raivosa ela perde a razão; ou quando se sente
frustrada a ponto de inibir sua ação; ou quando a pessoa está
deprimida, amedrontada, impedindo-a de sentir prazer; ou
excessivamente alegre fazendo com que sua concentração se
disperse, entre outros. Zhao (2009) também fala de situações
onde o individuo usa táticas para não lidar com emoções
ameaçadoras ou medos subjacentes e acaba por expressá-las de
forma inadequada. Por exemplo, quando a pessoa chora ao invés
de expressar raiva ou ressentimento ou quando culpa os outros
por não ouvi-la e, na verdade, deveria enfrentar suas fraquezas
e se fazer ouvir.
Assim, fica claro para Valins (1999), que as doenças são
causadas por um desequilíbrio de energia ou por uma obstrução
do fluxo de energia, e que muitas causas de doenças estão na
incapacidade de expressar abertamente a dor e o ultraje, e de
ter os sentimentos reconhecidos e satisfeitos. A autora ainda
complementa que o bloqueio dos sentimentos simplesmente
força a emoções a acharem outro modo de expressão em outra
parte do corpo.
Conforme Rocha (2009), esta ruptura do fluxo de energia quase sempre causado por desequilíbrios emocionais - poderá
afetar o órgão ao qual está relacionado. Assim, um problema
emocional negligenciado pode tornar-se um problema
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fisiológico no futuro. Na mesma medida, Zhao (2009) relaciona
sintomas crônicos dos indivíduos com emoções mal resolvidas.
Esta relação entre o emocional, o mental e o físico é
particularmente significativo em disfunções ginecológicas.
Muitos dos sintomas presentes nas perturbações femininas
não são físicos por natureza, tais como ataques de choro ou
as explosões de raiva que, geralmente, precedem o período
menstrual (Zhao, 2009).
Em Medicina Chinesa, a fisiologia feminina é dominada
pelo Sangue. Como o Sangue só pode circular graças à
movimentação do Qi, é a abundância de Qi e Xue (Sangue),
juntamente com o funcionamento balanceado e adequado dos
órgãos e com uma boa circulação nos vasos é que se permite
assegurar a regularidade dos ciclos menstruais, a gravidez, o
parto e a lactação (Auteroche et al., 1987); Maciocia, 2000; Zhao,
2009). Da mesma forma, o estado patológico de um repercutirá
obrigatoriamente no outro (Auteroche et al., 1987).
A vida de uma mulher engloba uma série de ciclos de sete
anos. Aos 14 anos, a menstruação começa a fluir dada uma série
de fatores. Qi e Xue têm que estar fortes e robustos para fluir
suavemente através dos Zang Fu e o pleno desenvolvimento
da energia dos Rins permitirá que haja abundância de Sangue
acumulado no Fígado que será enviado ao Útero. Os dois Canais
responsáveis por comandar o ciclo feminino de sete anos devem
estar funcionando adequadamente - o Vaso Concepçãob (Ren
Mai) deve estar fluindo com intensidade e o Vaso Penetradorc
(Chong Mai) deve receber Sangue em abundância (Gomes,
1996; Zhao, 2009).
O ciclo menstrual é entendido, segundo Gomes (1996) como
um crescente acúmulo de Sangue e posteriormente de Qi, que se
esvaem com a descida da menstruação. Maciocia (2000) expõe
as quatro fases distintas do ciclo menstrual: Primeiramente, a
fase menstrual (cerca de cinco dias) na qual o Sangue está se
movimentando, contando com o livre fluxo do Qi do Fígado e
do Sangue do Fígado. Após, a fase pós-menstrual (cerca de sete
dias) quando o Sangue e o Yin estão relativamente vazios e os
Canais Chong Mai e Ren Mai estão exauridos. Segue então para
a fase do meio do ciclo (cerca de sete dias) onde Sangue e Yin
gradualmente enchem os Canais Chong Mai e Ren Mai e, por
b Canal energético que circula pela linha média anterior do corpo, de forma superficial. Seu trajeto está intimamente relacionando com o útero e a capacidade reprodutiva.
c Também chamado Mar do Sangue. Este canal não tem trajeto
próprio na superfície da pele, utilizando-se de pontos e fazendo a união dos Meridianos do Estômago e dos Rins para que
sua energia possa fluir. No interior do organismo ele envolve o
útero e é responsável pelo Sangue que ciclicamente lá se concentra.
fim, a fase pré-menstrual (cerca de sete dias) quando o Qi Yang
sobe e o Qi do Fígado se movimenta como preparação do ciclo. A
mobilidade do Qi do Fígado é essencial para mover o Sangue do
Fígado durante o ciclo.
Dentre os Zang Fu, os sistemas energéticos dos Rins, Fígado
e Baço têm uma relação privilegiada com as funções fisiológicas
e as manifestações patológicas femininas (Auteroche et al.,
1987; Hirsch, 2003; Zhao, 2009). Para Zhao (2009), embora as
disfunções ginecológicas possam ser rastreadas até qualquer
Órgão, dada a inter-relação deste circuito energético conforme
já mencionado, o sistema de Órgãos do Fígado e dos Rins
são basicamente os responsáveis por essas alterações. Hirsch
(2000) sintetiza estas interconexões da seguinte forma: Os Rins
fornecem a Essência que supre o Útero com Qi e Sangue para o
fluxo normal das menstruações, além de favorecer a produção
de Sangue pelo Baço. Este, por sua vez, regula o Sangue, a Linfa
e a circulação de ambos, e está ligado à digestão e aos seios
pelo trajeto de seu canal. Já o Fígado armazena o Sangue que é
enviado para o Útero para ser liberado.
Auteroche et al. (1987) lembra também que com as perdas
mensais do ciclo menstrual a mulher, fisiologicamente, tem
mais Energia que Sangue, o que facilita o desregulamento de Qi
e Xue, a desarmonia do Baço e do Estômago, o esgotamento do
Fígado e dos Rins e o ataque de Chong Mai e Ren Mai. Os autores
são unânimes ao afirmar que o padrão primário observado nas
alterações do ciclo menstrual se refere à Estagnação do Qi do
Fígado (Auteroche et al., 1987; Chenggu, 2006; Rocha, 2009;
Deadman, 1995; Gomes, 1996; Hirsch, 2000; Maciocia, 2000;
Valins, 1999; Zhao, 2009).
O Fígado é responsável pelo movimento suave e equilibrado
do Qi e do Sangue e pela armazenagem do Sangue que é
liberado a pedido do organismo. Esta atividade condiciona
o funcionamento normal ou patológico das menstruações
(Auteroche et al., 1987; Zhao, 2009). Então, quando o Qi
do Fígado está harmonizado, aberto e com livre fluxo o
ciclo menstrual, a gravidez e o parto são normais, ao passo
que, o distúrbio do Qi acarretará menstruações irregulares,
dismenorreias, amenorreias, leucorreias, perturbações do
climatério, entre outras (Auteroche et.al, 1987).
Tendo em mente que o Fígado rege o movimento
desobstruído do Qi pelo corpo e as emoções são manifestações
de Qi, a este sistema energético cabe também regular as
emoções (Zhao, 2009; Rocha, 2009). Gomes (1996) ilustra esta
questão ao afirmar que o este Órgão é como um laboratório que
filtra inúmeras substâncias químicas, naturais ou estranhas ao
organismo e com as emoções ele tem o mesmo comportamento.
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O Fígado, segundo Valins (1999), é o órgão mais
temperamental e facilmente afetado pelo estresse. Assim,
quaisquer distúrbios emocionais, resultado de emoções
reprimidas, não expressadas ou excessivas tendem a
congestionar ou bloquear o fluxo energético e há uma tentativa
de se desobstruir a Estagnação do Qi do Fígado por meio de
ataques de raiva ou choro. Raiva, ressentimento, aborrecimento,
animosidade, frustração são emoções associadas ao Fígado e se
ele está desequilibrado, estas emoções vêm de maneira mais
intensa (Rocha, 2009; Zhao, 2009,). Segundo Gomes (1999),
este bloqueio de circulação do Qi do Fígado é comumente
traduzido pelas mulheres como uma sensação semelhante a
uma ‘panela de pressão prestes a explodir’, ou ainda como ‘uma
fera pronta a pular no pescoço de alguém’.
A obstrução ao fluxo regular de Qi do Fígado impede
a circulação do Sangue no Útero e, com o passar do tempo,
pode estagnar, gerando não apenas sintomas emocionais, mas
também físicos. O impacto é ainda maior no período menstrual,
pois é o Fígado que realiza seu controle energético. Deve-se
lembrar, de acordo com Gomes (1999), que este é o período
de concentração máxima da Energia e Sangue, dentro do ciclo
mensal da mulher e os acúmulos e as deficiências, se presentes,
tornam-se proeminentes. Então, nesses casos, os ciclos podem
se tornar irregulares, com volume ora diminuído, ora aumentado.
A instabilidade emocional, inquietude, irritabilidade será
acompanhada por cefaleias, seios doloridos, inchaço abdominal,
enfim, toda a sintomatologia que, ocidentalmente, é conhecida
como tensão pré-menstrual (Auteroche et al., 1987, Gomes,
1999; Maciocia, 2000; Zhao, 2009).
A existência de um estado de bloqueio crônico de Energia
do Fígado passa a ser traduzido em muitos sintomas comumente
encontrados em mulheres, como a depressão, irritabilidade,
síndrome pré-menstrual, dismenorreias e outras (Gomes,
1996). A estagnação prolongada do Qi do Fígado pode também
dar origem ao padrão chamado Fogo do Fígado, já que o Qi
estagnado pode se converter em Fogo após um longo período
de tempo causando patologias mais complexas (Auteroche et
al., 1987; Maciocia, 2000). Este padrão é caracterizado, de acordo
com Deadman (1995) por explosões de raiva e fúria. Quando o
Fogo ascende para a cabeça, poderá haver tontura, zumbido,
cefaleia e dor no pescoço. Se esse Calor entrar no Sangue (o
Fígado armazena o Sangue) haverá sinais de sangramento
irregular, com antecipação, grande volume ou prolongamento
da menstruação (Deadman, 1995; Maciocia, 2000). Nestes
casos, Hirsch (2003) propõe que as terapias de ordem mental
são indicadas para chegar à raiz do problema.
A estase do Sangue do Fígado, desenvolvida a partir da
estagnação do Qi do Fígado causa ciclos com dor, sangue escuro
e coágulos também escuros (Maciocia, 2000) e pode levar à
infertilidade, segundo Zhao (2009). A autora também enfatiza
que as disfunções menstruais, quando não tratadas, além de
causar problemas durante os anos reprodutivos da mulher,
podem afetá-la na menopausa.
Fica claro então que quando se trata de ciclo menstrual,
o mais importante para a saúde da mulher é a forma como
elas se relacionam com as emoções. Suas diversas expressões
são causas poderosas que geram desequilíbrios no corpo e, de
maneira mais estrita, tem impacto direto na saúde menstrual
(Zhao, 2009). A tradição chinesa sempre promoveu a ideia
sobre a interação existente entre o ciclo menstrual anormal e os
sentimentos (Deadman, 1995; Gomes, 1999; Maciocia, 2000;
Zhao, 2009).
A espontaneidade emocional é uma pré-condição para o
livre fluxo da função do Fígado (Deadman, 1995). Os autores
citam como desequilíbrios emocionais geradores de bloqueios
ou alterações da circulação do Qi os sentimentos de perda ou
de culpa; estresse adaptativo em relação a situações novas;
raiva, ressentimento ou frustração reprimida, com consequente
aparecimento de sintomas depressivos; tristeza; e rancores
direcionados para si próprio e para os outros (Deadman, 1995;
Gomes, 1999; Maciocia, 2000; Zhao, 2009).
Conforme mencionado anteriormente, devido à
dependência mútua entre todos os Órgãos - a raiva que fere
o Fígado, o medo que machuca os Rins, a alegria exagerada
que estressa o Coração, a ansiedade que prejudica o Baço ou a
tristeza que causa danos ao Pulmão – com o passar do tempo
tais emoções produzem, um desequilíbrio nos demais Órgãos,
gerando outras doenças (Zhao, 2009). Assim, segundo a autora,
é de extrema importância entender como manejar aspectos
emocionais, físicos e mentais, pois equilibrá-los tem grande
influência sobre a saúde íntima da mulher e seu bem estar geral.
Para Deadman (1995) e Rocha (2009), alegria, raiva,
culpa, medo são comuns a todos, fazem parte do dia-adia e são intrínsecas a personalidade de cada individuo. No
entanto, a falha está em não dar chance à vazão estas emoções
reprimindo-as. Uma das maneiras indicadas por Deadman
(1995) é o reconhecimento e a expressão destes sentimentos
num estágio mais precoce, buscando sempre um equilíbrio entre
a passividade excessiva e a transformação desses sentimentos
em agressividade, reencontrando, segundo Rocha (2009) o seu
“eixo” ou o seu centro novamente.
Zhao (2009) complementa e afirma que entrar em contato
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com os sentimentos, reexaminá-los, perceber as preocupações
diárias, determinar a importância de cada uma delas, confiar
nos sinais que o corpo expressa a cada ciclo são meios possíveis
para retomar o equilíbrio em todos os aspectos da vida. E assim,
segundo Gomes (1996), abrir os caminhos para que a Energia
e, como consequência, as emoções encontrem um canal de
circulação.
Os Rins são outro sistema que, quando em desequilíbrio,
causa os sintomas relacionados à tensão pré-menstrual (Zhao,
2009). Os Rins armazenam a Essência, considerada a matéria
base para a formação do Sangue e é a origem para a formação
de Tian Gui (substância material do Sangue menstrual). A
menstruação também é chamada Água Celestial. O Tian Gui
é encontrado em homens e mulheres: nos homens, ele forma
esperma e, nas mulheres, sangue menstrual (Maciocia, 2000).
Assim, a Essência do Rim, que origina a Água Celestial
influencia de modo marcante a fisiologia das mulheres,
especialmente na puberdade, fertilidade, concepção, gravidez
e menopausa (Maciocia, 2000; Zhao, 2009). Quando o Qi dos
Rins está florescente, a Essência e o Sangue são suficientes, a
circulação nos Canais Ren Mai e Chong Mai é normal e o ciclo
menstrual se produz no devido tempo. Se o Qi dos Rins for
insuficiente ou então se o Yin ou o Yang dos Rins estiverem
enfraquecidos, pode se instalar um desequilíbrio e as doenças
ginecológicas podem surgir (Auteroche et al., 1987).
De acordo com os autores acima o enfraquecimento do Qi
do Rim e o consequente empobrecimento do Sangue suscitam
perturbações nas menstruações, amenorreias, dismenorreias,
metrorragias, leucorreias, abortos, etc. Zhao (2009) complementa
e afirma que a Deficiência do Qi do Rim manifesta-se na forma
de medos de longa duração, retenção de líquidos no período
pré-menstrual, inchaço na região baixa do abdome, dores nas
costas, diminuição da libido e infecções no trato urinário, todos
os sintomas relacionados ao período menstrual.
Já as mulheres que apresentam Deficiência do Qi do Rim e do
Baço-Pâncreas tendem a manifestar sintomas preponderantes
de inchaço nos olhos e tornozelos, desconforto torácico e
epigástrico, pouco apetite, lombalgia e fraqueza nas pernas e
nos joelhos, que começam antes da menstruação e podem se
estender até após seu término. Essas mulheres apresentam uma
deficiência habitual da energia Yang, que promove o movimento
e eliminação de líquidos corporais dentro do organismo. Como
durante o período pré-menstrual, essa carga energética é muito
requisitada, os sintomas acabam se sobressaindo (Gomes,
1999).
Percebe-se, conforme ressalta Zhao (2009), que as redes de
Órgãos do Fígado e dos Rins são basicamente as responsáveis
pelas perturbações menstruais. O Fígado armazena o Sangue
que é enviado para o Útero e, então, liberado, e os Rins fornecem
a Essência que é necessária para suprir o Útero com Sangue e
Qi para o fluxo normal da menstruação. É importante lembrar
que, segundo Gomes (1999), com as perdas mensais de Sangue
faz-se necessário sua renovação regular através da alimentação.
O Baço fabrica o Sangue que, então, é armazenado
no Fígado. Desse modo, embora o Fígado tenha influência
primordial na função menstrual, seu Sangue é fabricado pelo
Baço (Auteroche et al., 1987; Maciocia, 2000). Assim, segundo
Maciocia (2000), qualquer deficiência do Sangue do Fígado
em mulheres, geralmente indica que o Baço também está
deficiente e precisa ser tonificado Quando uma Deficiência de
Qi do Baço leva a uma Deficiência de Sangue, a periodicidade e
regularidade menstruais podem ser alteradas, se apresentando
com uma menstruação de pouca quantidade, prolongada e com
sangue pálido, que com o tempo pode evoluir para a amenorreia
(Gomes, 1999), além de trazer problemas de insônia (Zhao,
2009).
A origem da Deficiência do Baço pode estar no erro alimentar,
bem como no excesso de preocupação (Gomes, 1999). Zhao
(2009) complementa ao afirmar que a ingestão de alimentos
gelados ou crus pode roubar as energias do Baço e desvitalizálo. Assim este Órgão fica impossibilitado de cumprir seu papel,
que é conter o sangue dentro das paredes dos vasos (Auteroche
et al., 1987; Maciocia, 2000; Zhao, 2009). Quando ocorre um
desequilíbrio no Baço aparecem sangramentos intensos, enjoos,
espasmos musculares ou um desejo intenso de comer doces.
Se esta deficiência ocorre por períodos prolongados pode gerar
acúmulo de Frio e Umidade causando dores articulares, além de
agravar os sintomas de inchaço, as cólicas e o desconforto. Uma
Deficiência de Qi do Baço também pode provocar mãos e pés
frios, diarreia e problemas digestivos (Zhao, 2009).
De modo sintético, Maciocia (2000) esclarece que a
Deficiência de Qi do Baço não é causa direta de problemas
ginecológicos, mas está diretamente envolvido com estas
perturbações já que o Qi do Baço tem origem no Qi e no
Sangue. Além disso, este Órgão lida com a Umidade, importante
fator patológico em problemas femininos. E, por último, o Qi
deficiente do Baço, ao falhar em manter o Sangue nos vasos,
pode causar menorragia.
Após a explanação de todas essas formas de desequilíbrio
que resultam em grande número de perturbações do ciclo
menstrual, convém conceder alguma atenção aos métodos
terapêuticos utilizados para a retomada da harmonia entre os
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Sistemas e restabelecimento da saúde da mulher. Gomes (1999)
salienta que a associação de uma ou mais formas terapêuticas,
quando dentro de um mesmo princípio, tem efeito sinérgico que
só trará benefícios.
Auteroche et al. (1987) propõem a utilização de métodos
terapêuticos gerais, seguindo a metodologia clássica da Medicina
Chinesa, da seguinte forma: primeiramente regularizar o Qi e o
Sangue, já que em ginecologia, as doenças são essencialmente
enfermidades do Sangue e do Qi, dado o seu caráter inseparável;
harmonizar Baço e Estômago que possuem papel importante na
transformação do alimento em Sangue. Para o autor, quando a
opressão dos sentimentos suscita em desequilíbrio deste Zang
Fu, estes se tornam incapazes de receber, decompor, transformar
o Qi e tirar o suco para produzir o Sangue. Colocar este sistema
energético em harmonia equivale a regularizar o Qi e o Sangue;
e, por fim, alimentar o Fígado e os Rins – O Fígado armazena o
Sangue. Essa função combinada com o controle que este Órgão
exerce no baixo-ventre faz dele o órgão mais importante em se
tratando de sexualidade e ciclo menstrual. O enfraquecimento
do Fígado afetará os Rins. Inversamente, os desequilíbrios do
Fígado e dos Rins poderão suscitar uma insuficiência de Chong
Mai e Ren Mai. Assim, tratando o Fígado e os Rins, os canais
Chong Mai e Ren Mai também serão harmonizados.
De forma sintética, os principais pontos de acupuntura
propostos pelos autores (Auteroche et al., 1987; Deadman,1995;
Maciocia, 2000) para o tratamento dos distúrbios menstruais
são: pontos para tonificar e preencher o Qi do Rim (VC4, B23,
B52, R2, R3, R7 e R13); pontos para eliminar a estagnação do
Qi do Fígado (F3, F2, F13, PC6, VB34, VB40, BP6, BP8, TA6) e;
pontos para reforçar o Baço (BP6, BP7, E29, E36, E43, VC12, B20,
B21, VC4). Levando-se em conta que a orientação terapêutica
não é restrita a um único método podendo compreender
múltiplas abordagens algumas recomendações podem ser
dadas no sentido de estimular e resgatar energeticamente as
deficiências apresentadas (Gomes, 1999).
Para a mulher, segundo Zhao (2009), a forma básica
de cuidar de sua saúde consiste em lidar com os problemas
emocionais, entrando em contato com os seus sentimentos e
descobrindo maneiras de expressá-los de forma construtiva.
Orienta a busca de profissionais, familiares ou amigos para
compartilhar os problemas, o que auxilia na identificação dos
fatores de estresse, da intensidade das reações diante destes
eventos e o entendimento do significado que é dado a eles.
Outras medidas de autocuidados devem ser incluídas na
rotina diária. A adoção de novos hábitos alimentares é uma
delas (Gomes, 1999; Hirsch, 2003; Maciocia, 2000; Zhao, 2009).
Evitar a ingestão de grandes quantidades de café, álcool, carne
vermelha e comidas apimentadas que agridem o Fígado, além
de frituras e doces em excesso que afetam o movimento livre
tanto do Qi do Fígado quanto do Qi do Baço (Gomes, 1999;
Hirsch, 2003; Zhao, 2009). No período menstrual também evitar
alimentos e líquidos gelados e comidas cruas que fazem com
que o Baço trabalhe em ritmo mais lento, levando a um quadro
de Deficiência. Para promover a recuperação do Sangue perdido
durante a menstruação alimentos como espinafre, couve, peixe,
ovos possuem propriedades de fortalecimento do Sangue (Zhao,
2009).
Outra maneira eficaz de dar suporte ao Qi é a prática das
antigas artes chinesas do Qi Gong e Tai Chi, pois combinam
meditação com movimentos e respiração, recuperando assim o
fluxo de Qi e Sangue ao longo dos Meridianos e restabelecendo
a harmonia nos Zang Fu e no corpo como um todo (Zhao,
2009). Também são indicados os exercícios físicos moderados,
meditação, Ioga e a consciência do ritmo respiratório. Vale
também tornar-se presente e atenta ao próprio corpo (Valins,
1999). Todas objetivando aliviar as tensões físicas e mentais e,
através do relaxamento, proporcionar o movimento suave do Qi
pelo corpo.
Considerações finais
O estudo das questões da mulher à luz da Medicina
Chinesa evidencia duas contribuições fundamentais para o
entendimento das questões de saúde e doença. Primeiramente,
a proposição de que mente e corpo são inseparáveis, e assim,
as alterações emocionais repercutirão em todo o sistema de
Órgãos, e vice-versa. O entendimento fundamental é que tanto
o físico como o psíquico adoecem juntos, não sendo possível
uma visão de causalidade ou de “compartimentalização” do
indivíduo: ao contrário, preconiza o envolvimento de múltiplas
relações de variáveis. O tratamento passa, então, a depender do
entendimento de toda essa rede energética que ao reequilibrarse novamente, proporcionará a retomada de seu bem-estar
geral.
Além disso, a Medicina Tradicional Chinesa utiliza um
enfoque colaborativo. Ora, se o pensamento oriental esclarece
que a doença decorre do desequilíbrio do organismo, através
da exposição a fatores internos como conflitos e dificuldades
emocionais, traumas, alimentação inadequada, estilo de vida
estressante, atividade física inadequada ou sua ausência, além
de exposição a fatores climáticos, ele também propõe que o
indivíduo assuma a responsabilidade por esse restabelecimento,
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administrando com inteligência as emoções dissonantes da vida
diária e adotando comportamentos mais harmônicos e positivos.
Propõe-se então em deslocar das mãos do profissional
ou terapeuta para o próprio indivíduo a opção de tornar-se
o principal instrumento de sua própria cura. O trabalho das
emoções é particularmente importante para a mulher e é
evidenciado ao longo deste estudo, pois se faz unânime nos
textos chineses as inter-relações entre a forma de se lidar com as
emoções, as alterações do sistema energético do Fígado, órgão
que rege as emoções, e a consequente perturbação da saúde
íntima da mulher. Ao se pensar no quanto a mulher atualmente
está exposta a um estilo de vida atribulado e estressante, com
diversas exigências, cada vez mais desatenta aos sinais que seu
corpo manifesta, fica mais claro o entendimento da causa pela
qual os sintomas ou tensões pré-menstruais e as disfunções do
ciclo vem se exacerbando e se tornando uma constante no diaa-dia, sendo considerado por alguns autores questão de saúde
pública.
Foi possível perceber também que há dificuldade em se
encontrar estudos ocidentais que discutam a conexão entre
os aspectos emocionais e suas repercussões nos problemas
ginecológicos. Alguns artigos somente relacionam eventos
estressantes com episódios de perturbação menstrual. Novos
estudos que possam favorecer o enfoque preventivo, não apenas
curativo, também se fazem necessários. Por fim, ressalta-se
a ideia de que o conhecimento de si, do seu corpo feminino e
de seus sentimentos, os cuidados com a alimentação, e com a
atividade física, são as melhores estratégias de cuidados para
sanar problemas menstruais, e resgatar o bem-estar.
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Recebido em abril/2012
Revisado em setembro/2012
Aceito em outubro/2012
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ESTUDO TEÓRICO
A escola promotora da saúde e o desenvolvimento de
habilidades sociais
A health promoting school and the development of social skills
Gehysa Guimarães(a)* , Denise Aerts (b), Sheila Gonçalves Câmara(c)
Resumo: O objetivo deste artigo é refletir sobre o desenvolvimento de habilidades para a vida como
uma estratégia fundamental de promoção da saúde. O texto está estruturado em quatro seções. A
primeira discute a promoção da saúde, a necessidade de se atuar na perspectiva interdisciplinar e o
desafio de construir uma sociedade saudável. A segunda aponta às questões relacionadas à juventude
em risco. A terceira apresenta os princípios da escola promotora da saúde e a quarta discute o bulling,
a discriminação e a violência, e reflete sobre a importância da escola estimular o desenvolvimento de
habilidades pessoais necessárias ao mundo de relações. Para que o ambiente escolar seja potencializador
do ser saudável, é necessário que suas ações se desenvolvam na direção da vigilância e promoção da
saúde e no desenvolvimento de habilidades pessoais, familiares e comunitárias.
Palavras-chave: Escola promotora da saúde; Habilidades de vida; Saúde do escolar
Abstract: This paper aims to reflect upon the skills development for life as a basal strategy for health
promoting. The text is structured in four sections. First, health promotion and the need to work under the
interdisciplinary perspective are discussed as well as the challenge of the construction of a healthy society.
Second, point questions related to the youth in jeopardy. Third, the principles of the health promoting
school are presented. Fourth, bullying, discrimination and violence are discussed in a way to rethink the
school as a strengthening place one for the development of personal skills, necessary for the relationship
world. Finally, in order the school environment is strengthening of the healthy being, it is necessary that
its actions are developed towards health surveillance and promotion, as well as the development of
personal, family, and community skills.
Key words: Health promoting school; Life skills; School children health
a Doutora em Educação pela PUCRS; Professora do Curso de Enfermagem e Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Área da Saúde. Universidade Luterana do Brasil.
*E-mail: [email protected]
b Doutora em clínica médica: epidemiologia pela UFRGS; Professora do Curso de Medicina e Pós-Graduação em Saúde Coletiva.
Universidade Luterana do Brasil.
c Doutora em Psicologia pela PUCRS; Professora do Curso de Psicologia e Pós-Graduação em Saúde Coletiva - Universidade Luterana
do Brasil. Departamento de Psicologia - Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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O significado da promoção da saúde foi ampliado em 1986,
e passou a considerar que aspectos políticos, sociais, culturais,
históricos e econômicos influenciam na vida das pessoas. Além
disso, passou a reforçar a necessidade de o indivíduo assumir
a responsabilidade pela sua própria vida, desenvolvendo
autonomia e se apropriando das questões que podem influenciar
a saúde e a doença. Nesse sentido, torna-se necessário investir
em capacitação das pessoas para que elas possam aumentar
seu poder de decisão sobre as questões que afetam a sua vida.
Assim, o objetivo deste artigo é refletir sobre o desenvolvimento
de habilidades para a vida como uma estratégia fundamental
de promoção da saúde. O texto está estruturado em quatro
momentos. No primeiro discute a promoção da saúde e a
necessidade do trabalho interdisciplinar. No segundo, aponta as
questões relacionadas à juventude em risco. No terceiro discute
os princípios da escola promotora da saúde e, no quarto, repensa
o espaço escolar como potencializador para o desenvolvimento
de habilidades pessoais necessárias ao mundo de relações.
A promoção da saúde
A I Conferência Internacional de Promoção de Saúde,
realizada em 1986, ampliou o significado da promoção para uma
visão que considera a influência dos aspectos sociais, econômicos,
políticos e culturais sobre as condições de vida e saúde. Nesta
perspectiva, saúde é compreendida como qualidade de vida,
determinando que os problemas sejam enfrentados a partir de
ações intersetoriais, visto que extrapolam a responsabilidade
exclusiva do setor saúde. A partir deste momento, promoção
da saúde passou a ser vista como uma estratégia mediadora
entre pessoas e ambiente, visando a aumentar a participação
dos sujeitos e da coletividade na modificação dos determinantes
do processo saúde-doença, como emprego, renda, educação,
cultura, lazer e hábitos de vida. Assim, busca proporcionar aos
indivíduos e aos grupos populacionais os recursos necessários
para melhorar sua saúde, cabendo ao Estado reduzir as diferenças,
assegurar a igualdade de oportunidades e promover os meios que
permitam desenvolver um melhor controle sobre si próprio e sua
saúde. Além da redefinição do conceito de saúde, a promoção
da saúde passou a significar a capacitação da população para
a sua responsabilização na melhoria de sua qualidade de vida
e saúde, incluindo maior participação e controle desse processo
(WHO, 1986). Assim, promover a saúde significa assegurar
igualdade de oportunidades e proporcionar os meios necessários
para que as pessoas possam realizar seu potencial de saúde,
conhecendo e incidindo sobre os fatores determinantes de sua
saúde e doença (Buss, 2003). Esses determinantes são os fatores
sociais, culturais, econômicos, raciais, étnicos, psicológicos e
comportamentais que influenciam a ocorrência dos problemas
de saúde e que expressam as condições de vida e trabalho dos
indivíduos e dos grupos populacionais e sua influencia sobre a
situação de saúde (Buss, 2007).
Em Ottawa, as discussões apontaram cinco campos
de ação da Promoção da Saúde: criação de ambientes
saudáveis; estabelecimento de políticas públicas saudáveis;
desenvolvimento de habilidades pessoais; fortalecimento da
participação popular e reorganização dos serviços de saúde.
Reorientar as práticas de saúde permite a interação saúde,
ambiente e desenvolvimento sustentável, o que aparece
explicitado no Pacto da Saúde (Ministério da Saúde, 2006).
Entretanto, esses somente poderão se concretizar se os indivíduos
se corresponsabilizarem pela execução e implementação de cada
uma das ações desenvolvidas. Nesse sentido, os trabalhadores
da saúde serão facilitadores da organização dos grupos
populacionais na defesa de seus interesses e disseminadores das
informações necessárias para potencializar a sua saúde (Gentile,
2001). Numa visão interdisciplinar, a promoção da saúde deve
apontar para a necessidade da melhoria das condições de vida
da população e para o reconhecimento do direito de cidadania
e de participação popular (Silva & Araújo, 2007). Essa mudança
de conceito se foca em indicadores e condições que promovem e
facilitam o bem-estar dos cidadãos (Snyder, 2002), tendo como
propósito a construção de condições positivas que assegurem
a presença de níveis satisfatórios de bem-estar nas dimensões
física, social e psicológica da existência humana (Seligman &
Csikszentmihalyi, 2000). Para que seja possível efetivar essa
prática, é preciso reforçar as relações positivas que se concretizam
no contato do indivíduo com os outros (Keyes, Shmotkin & Ryff,
2002), com a própria equipe e com os recursos sociais disponíveis
no momento (Veenhoven, 1994). Assim, a saúde está ligada a
cinco âmbitos da vida social: 1) integração social ou sentimento
de pertença; 2) aceitação social ou confiança em si e nos outros;
3) contribuição social ou autoeficácia; 4) atualização social ou
confiança no futuro da sociedade e em sua capacidade para criar
bem-estar; e 5) coerência social ou sentimento de que a vida
e o mundo têm sentido e estão dotados de coerência (Blanco
& Diaz, 2006). A utilização deste conceito visa extrapolar o
empobrecimento que traz o foco na doença e restaurar os valores
mais amplos da vida em toda sua plenitude (Camargo Jr, 2007).
Tais aspectos, relacionados à inserção da pessoa no contexto
social sob a forma de acolhimento, permitem um viver mais
saudável. Nesse sentido, uma sociedade mais acolhedora,
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que permita a expressão individual e proporcione maior apoio
social, é determinante para o desenvolvimento de habilidades
para a vida (Blanco & Diaz, 2006). Dessa forma, a atuação
interdisciplinar pode contribuir para a promoção de uma melhor
qualidade de vida com a estimulação do processo democrático
a ser utilizada como ferramenta para o desenvolvimento dessas
habilidades (Cordeiro, 2008).
O desenvolvimento de habilidades para a vida (OPAS, 2001)
consiste em uma estratégia educativa que investe nas relações
humanas. A Organização Panamericana de Saúde (OPAS) enfoca
neste campo a população adolescente, pois considera que a
aquisição de hábitos saudáveis na infância e adolescência tem
potencial preditor de um estilo de vida saudável na vida adulta.
Além disso, as mudanças sociais ocorridas desde o final dos
anos 80, como o aumento do consumo de drogas ilícitas e das
doenças de transmissão sexual; o elevado número de acidentes
de trânsito e o aumento da violência, fizeram com que novos
fatores que afetam a saúde fossem contemplados (Pastor,
Balaguer & Garcia-Meritá, 1999). No cerne desses problemas de
saúde encontram-se as dificuldades dos jovens em fazer frente a
seu dia-a-dia devido à falta de uma educação contextualizada.
Essas habilidades são uma estratégia de ampliação do contato
social e, portanto, de saúde, já que reforçam as capacidades
necessárias para o desenvolvimento humano possibilitando,
efetivamente, o enfrentamento das demandas da vida. Para
crianças e adolescentes essas habilidades podem ser definidas,
de forma genérica, como: 1) habilidades sociais e interpessoais
(incluindo comunicação, habilidade de dizer não, manejo
da agressividade e incremento da empatia); 2) habilidades
cognitivas (incluindo a tomada de decisões, pensamento crítico
e auto-avaliação); e 3) habilidades para o manejo de emoções
(incluindo o estresse e o aumento interno de um centro de
controle) (OPAS, 2001). Nesse sentido, a promoção da saúde
deve estar articulada a um conjunto de valores éticos, como vida,
solidariedade, eqüidade e cidadania e a uma série de estratégias
que combinam a atuação do estado, da comunidade, dos
indivíduos, do sistema de saúde e da parceria intersetorial (Buss,
1998; Buss, 2003). Para tanto, é necessária a ação coordenada
desses setores da sociedade (Keyes et al., 2002) para que os
projetos de intervenção sobre a realidade estejam orientados
pela visão positiva de saúde (Fracolli & Bertolozzi, 2003).
Promover a saúde depende de aspectos individuais e sociais.
Ao indivíduo, cabe apoderar-se de sua vida e das informações
que podem melhorar a sua saúde e escolher o que é melhor
para si. Ao estado, cabe desenvolver políticas públicas capazes
de melhorar as condições sociais. Dentre elas, destacam-se
a educação, habitação, trabalho e salário digno, devido à sua
influência na modificação de estilos de vida. No entanto, é difícil
transformar as cidades em lugares melhores para se viver e a
maneira dos indivíduos viverem as suas vidas, pois faltam, na
sociedade brasileira, estratégias educativas acessíveis a todos
(Verdi & Caponi, 2005). É preciso, portanto, investimento em
políticas intersetoriais capazes de atingir os amplos setores da
sociedade. Dentre eles, destacam-se os projetos que incidam
positivamente na qualidade de vida da população. Para tanto,
necessita-se de uma abordagem interdisciplinar e intersetorial
que proporcione o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos
para que possam escolher o que é melhor para suas vidas.
Essa abordagem extrapola a esfera do próprio governo. É uma
ação articuladora de diversos setores que se complementam
e interagem (Wimmer & Figueiredo, 2006). Por isso, deve ser
assumida como tarefa de todos, pois os governos sozinhos
são incapazes de responderem pelas demandas sociais que
implicam ter saúde. Contudo, o poder executivo municipal é
responsável pela construção de uma cidade saudável, devendo
o setor saúde desencadear a discussão e a inclusão dos outros
setores. A viabilidade de um projeto intersetorial passa por um
novo olhar sobre a realidade, definindo problemas prioritários
e os compromissos dos diversos setores (Buss, 1998; Dalmaso
& Nemes Filho, 2001). Deve ser entendida como a capacidade
de articular os diversos setores que interferem na saúde das
pessoas, pois é essa atuação articulada que é capaz de efetivar
mudanças mais profundas no setor saúde (Paula, Palha & Protti,
2004).
A juventude em risco
As organizações mundiais previram que, no ano de 2010,
haveria mais adolescentes vivendo no mundo, com idades
entre 10 e 19 anos, do que em qualquer outro momento da
história, especialmente na América Central e América Latina
(Brasil, 2008; Góes, 2006; Moreira, 2002). Esses jovens são
as maiores vítimas de doenças e agravos não transmissíveis
(DANTs), sendo que, no Brasil, o número de jovens que morrem
vítimas de violência urbana (sendo também os perpetradores),
representa uma perda equivalente a um período de guerra
(Soares, 2004). Essa situação é determinada pelo consumo e
tráfico de drogas, pela violência no trânsito e outros confrontos
violentos aparentemente motivados por descontrole emocional
e dificuldades em considerar o custo-benefício das ações. A
violência na escola também tem sido objeto de preocupação já
que está cada vez mais frequente o relato dessa ocorrência no
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ambiente escolar.
Assim, faz-se necessário o investimento em estratégias
governamentais, comunitárias e familiares para o
desenvolvimento humano dessa geração (Mangrulkar;
Whitman & Posner, 2001). A população jovem tem sido alvo de
preocupação do Ministério da Saúde e das Organizações de Saúde
do mundo inteiro, sendo considerada como grupo prioritário para
o desenvolvimento de ações de promoção da saúde. Além de
outros setores que devem estar envolvidos, a saúde e a educação
devem ser pensadas de forma integrada, pois são dois setores
que podem estar acolhendo os jovens e atuando na perspectiva
de melhoria da qualidade de vida desse grupo. Em função disso,
em maio de 2001, foi assinada uma portaria interministerial que
elaborou os Parâmetros Curriculares Nacionais em Ação (Buss,
1998). Esses apontam para a construção de uma nova cultura
na qual a saúde e a educação trabalhem com temas transversais
- pluralidade cultural, ética, orientação sexual, cidadania, meio
ambiente, trabalho, consumo – a partir de situações concretas
vivenciadas no cotidiano das populações.
O conhecimento deve ser tratado como algo que é
construído pelo aluno, fruto da interação e cooperação entre
sujeitos que são diferentes (OPAS, 2003). O trabalho institucional
deve ser planejado a partir das especificidades locais, regionais
e culturais e a escola promotora da saúde deve ser pensada a
partir da articulação desses conteúdos com o desenvolvimento
de habilidades pessoais e com a criação de um ambiente escolar
mais saudável.
A escola promotora da saúde
Na perspectiva da promoção da saúde, a escola deve ser vista
como um ambiente protetor da saúde, pois congrega crianças
e adolescentes (WHO, 1986; OPAS, 2003). Em função disso, a
OPAS elegeu a promoção da saúde na escola como prioridade
(OPAS, 2003), adotando princípios e práticas que incidam no
cotidiano do corpo docente e discente; de funcionários e direção,
e contribuam para uma vida pessoal mais potente, fraterna e
solidária de todos os envolvidos.
As estratégias de saúde escolar devem estimular a
flexibilização dos currículos escolares e criar espaços institucionais
para o planejamento integrado da educação e da saúde com
enfoque integral e participativo (OPAS, 2003). As discussões
sobre a promoção e educação em saúde nas escolas poderão
incluir a operacionalização de programas que promovam a
melhoria da qualidade de vida. Devem fortalecer a capacidade
individual e social para fazer o enfrentamento dos condicionantes
da saúde (Moura, Lourinho, Valdês, Frota & Catrib, 2007); e ter
uma visão integral do ser humano, considerando as pessoas
dentro dos seus ambientes familiares, comunitários e sociais.
Com isso, promovem autonomia, criatividade, participação de
alunos, professores e funcionários nas discussões sobre a escola
e o ambiente escolar (Goulart, 2006).
Por ser uma instituição em que o ser humano passa
longa e importante etapa de sua vida, a escola pode contribuir
para a construção de valores pessoais e dos significados
atribuídos a objetos e situações, entre eles a saúde. Nesse
sentido, é importante que desenvolva um processo dialógico,
problematizador e inclusivo, no qual o aluno possa construir
consciência crítica sobre si próprio e seu estar no mundo. É nesse
espaço que se desenvolvem valores pessoais, crenças, conceitos
e maneiras de conhecer e viver a vida; o que contribui para a
saúde ou a doença, na medida em que atua na inclusão ou na
exclusão social (Aerts, Alves, La Salvia & Abegg, 2004).
A escola deve estar voltada para a busca de uma educação
integral, desenvolvendo habilidades pessoais que contribuam
para a criação e manutenção de ambientes saudáveis e
protetores. As ações devem reduzir a exposição a fatores de risco
de DANTS e a reforçar fatores de proteção relacionados ao estilo
de vida, integrando e estimulando o fortalecimento das relações
homem/ambiente (Moura et al., 2007). O objetivo é contribuir
para uma melhor saúde e bem estar, reforçando a capacidade
dos indivíduos e comunidades para o enfrentamento das
situações de vida (Cardoso, Reis & Lervolino, 2008).
Fundamental é a inserção da escola em projetos de promoção
da saúde; na proteção do meio ambiente; e na conservação de
recursos naturais, pois na medida em que o homem passa a
enxergar suas relações com o mundo, ele assume um novo
papel na sociedade, passando de objeto manipulável a ser um
sujeito mais crítico (Freire, 1980). O sentido do aprendizado
ocorre quando os conteúdos escolares estão a serviço da vida e
do bem viver; e valorizam os processos afetivos e intelectuais e
a participação da comunidade escolar na seleção dos temas a
serem trabalhados em sala de aula (Brasil, 2002). É preciso que
os professores estimulem a curiosidade dos alunos, a discussão
de temas atuais e o reforço de habilidades que incentivem a
autonomia, criatividade e a curiosidade dos alunos, sendo essa
considerada a chave mestra para o aprendizado, a potência que
faz com que o aluno tenha o desejo de aprender (Alves, 2003).
A educação em saúde nas escolas pode auxiliar os indivíduos
a pensarem formas de viver que os protejam, discutindo
comportamentos e criando espaços de reflexão sobre hábitos
saudáveis de vida (Gomes, 2009). Para isso, é importante que
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a escola desenvolva habilidades para o bem viver, passando
a contribuir para a prevenção de comportamentos de risco,
promovendo e estimulando a autonomia e a corresponsabilidade
dos jovens, professores, funcionários, direção e famílias
(Moura et al., 2007). O processo de fortalecer aptidões,
capacidades e competências deve ser permanente com vistas ao
desenvolvimento de habilidades para que os jovens aprendam
a viver a sua vida com mais apropriação e possibilidades de
escolhas (Gomes, 2009; Moura et al., 2007).
É importante também educar para a formação e a
participação cívica de alunos e alunas, desenvolvendo
competências e habilidades que sustentem as aprendizagens
durante a vida e promovam a capacidade de fazer escolhas mais
conscientes na perspectiva de uma vida mais saudável. Para isso,
deve reforçar os laços de afeto com as pessoas e seu meio; a
participação e a responsabilização de toda a comunidade escolar,
proporcionando espaços de debate e estimulando a necessidade
de conviver com as diferenças (Portugal, 2006).
Isso possibilita o desenvolvimento de uma cultura da paz,
o que contribui favoravelmente para a diminuição da violência.
Nesse sentido, dentre os desafios, encontram-se o ensino de
habilidades para a vida, a instrumentalização dos professores
para atuarem nessa perspectiva, a vigilância das práticas de
risco e o monitoramento das ações e programas já existentes
(Cerqueira, 2007).
O desenvolvimento de habilidades para a vida: a
escola como espaço potencializador da saúde
A escola é um espaço privilegiado de articulação entre os
conteúdos científicos e a vida de cada um, fundamental para
a saúde dos escolares. Nesse sentido, a sala de aula deve ser
um espaço dinâmico, de vida, de relações interativas, no qual
o prazer, a criatividade e o desenvolvimento da autonomia
necessitam estar presentes. Assim, estará contribuindo para
desenvolver habilidades para uma vida mais saudável, já que é
na convivência com outros humanos que as pessoas aprendem a
manejar suas emoções e a interagir com as diferenças.
Essa escola auxilia na permanência de seus alunos no
ambiente escolar. É a partir do lúdico e da articulação da teoria
com a prática que os alunos podem desenvolver a inteligência,
aprender a sonhar e a desejar uma vida melhor (Alves, 2003).
Com isso, são preparados para serem capazes de cuidar bem de
si, adotando um estilo saudável (Gomes, 2009).
Longe de ser um lugar de produção e socialização de
conhecimentos, no qual se desenvolvem habilidades, atitudes
e conhecimentos, a escola passou a ser um espaço de conflito,
ameaça e violência. Muitas atividades escolares são de caráter
competitivo, nas quais os melhores são premiados. Ao invés de
proporcionarem a integração, podem exacerbar a rivalidade e a
desqualificação do outro, diminuindo a autoestima dos sujeitos,
já que a competição produz sérias implicações no ambiente
escolar. Isso ocorre em função de que apenas um é o vencedor,
restando aos outros a frustração, o desapontamento e, muitas
vezes, a humilhação. Este contexto potencializa o desrespeito e
contribui para o surgimento do bullying (Portugal, 2006). Para
que os alunos tornem-se menos violentos, é preciso abandonar
essas práticas (Portugal, 2006).
No entanto, a comunidade escolar, muitas vezes, não se vê
responsável pelo que acontece no ambiente escolar e percebe a
violência como um fenômeno externo que invade os contextos de
vida. Essas atitudes podem ser evitadas se forem desenvolvidas
ações conjuntas entre o setor saúde e o setor educação (Neto,
2005) que discutam atitudes, conhecimentos e habilidades que
favoreçam o crescimento, desenvolvimento e o bem-estar dos
alunos e auxiliem na prevenção de estilos de vida desfavoráveis
à saúde (Gomes, 2009).
O comportamento violento é resultado da interação
entre o desenvolvimento individual e as relações e contextos
sociais: escola, família, círculo de amigos (Neto, 2005). Na
sociedade brasileira é preciso falar de um quadro de violência
estrutural, que perpassa os mais diversos âmbitos da vida
cotidiana. Atualmente, vem sendo massivamente perpetrada
por crianças e adolescentes que foram esquecidos, excluídos e,
invariavelmente, pouco educados para lidarem consigo próprio
e para contribuirem com o desenvolvimento de uma cultura da
paz.
Há que se fazer um investimento nessa perspectiva, pois
se a violência é gerada a partir dos sentimentos de homens e
mulheres, é a partir desses que devem ser erguidas as defesas
da paz. Esse movimento deve estimular sentimentos de amor,
solidariedade, fraternidade e generosidade e se expandir para
toda a humanidade. Para se começar essa mudança, é preciso
que o homem entre em contato consigo, criando harmonia entre
seu corpo, seu coração e seu espírito e que se entre em paz com
o meio ambiente. Essa é uma aprendizagem relacionada ao ato
de viver (Weil, 1993). Para contribuir com essa cultura, a escola
deve desenvolver habilidades para a vida de relação e despertar
nos jovens o desejo de aprender e de construírem seus projetos
de vida.
Para tanto, é necessário o envolvimento de todos: do
estado, desenvolvendo políticas públicas promotoras da saúde;
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da comunidade escolar, discutindo o problema e formas de
enfrentá-lo; dos professores, possibilitando uma sala de aula
mais saudável, criativa e cooperativa e ter isso como parte dos
compromissos da escola. Habilidades para a vida são capacidades
que se desenvolvem com um comportamento positivo frente às
adversidades (Gorayeb, 2002), sendo conhecido como resiliência.
Isto é, potencial para o enfrentamento das adversidades que deve
ser acolhido e estimulado no planejamento das ações de saúde
(Costa & Assis, 2006). Todas as pessoas possuem um potencial
para desenvolver essa capacidade, em maior ou menor grau.
Nesse sentido, a escola é um local privilegiado para potencializar
essa capacidade (Assis, Pesce & Avaci, 2006; Machado, 2010).
A OPAS tem apontado a necessidade de desenvolvimento
de ações nas escolas que possam reduzir comportamentos de
risco (OPAS, 2003) e aumentar o potencial de saúde dos escolares
(Gorayeb, 2002). Essas devem contemplar uma abordagem
que desenvolva potencialidades e garanta uma linguagem
adequada às suas características. A Escola Promotora da Saúde
deve, ao mesmo tempo, reforçar a ação intersetorial de políticas
sociais, as alianças e parcerias para a otimização de recursos e
instrumentalizar profissionais e população para aprenderem
a cuidar melhor de si, construindo relações interpessoais mais
saudáveis (Brasil, 2007).
Paralelamente ao trabalho de sensibilização e informação
para situações de vulnerabilidade na vida dos jovens, é
importante que a escola potencialize a autoestima e o apoio
social, considerados como fatores de resistência (Gorayeb,
2002), estimulando as capacidades de crianças e adolescentes
enfrentarem e superarem as adversidades e as dificuldades de
suas vidas.
A educação em habilidades para a vida, as relações
interpessoais, a afetividade e a sexualidade estão entre as
prioridades da Escola Promotora da Saúde. Para tanto, é
preciso que utilize todas as oportunidades disponíveis dentro
e fora da comunidade educativa. Pensamento crítico, criativo,
autoconhecimento, comunicação eficaz e manejo das emoções
estão dentre as habilidades essenciais para a vida. A capacidade
analítica e investigativa deve fortalecer também o respeito aos
direitos humanos, à equidade e aos valores solidários. Assim,
irá contribuir para a formação de homens e mulheres mais
saudáveis, com maior autoestima, autonomia e compromisso
social (Soares, 2004).
Para desenvolver essas habilidades, é necessário que o
escolar saiba escolher e decidir; dizer “não” e resistir à pressão
dos conhecidos e amigos para práticas não saudáveis de vida
(OPAS, 2010). Promover a resiliência é atuar na perspectiva do
conceito positivo de saúde, entendido como qualidade de vida
(Buss, 1998; WHO, 1986) e é uma possibilidade fundamental
do cuidado, pois enfatiza os aspectos positivos e saudáveis dos
indivíduos (Costa & Assis, 2006). Sem dúvida, o desenvolvimento
dessa capacidade pode se constituir em fator de proteção para
situações de vulnerabilização de crianças e adolescentes. Para
isso, a escola deve auxiliar com as informações necessárias
para o enfrentamento dos problemas cotidianos, fortalecendo a
autoajuda e o apoio social. É preciso, também, a facilitação do
acesso, não somente das informações, mas das oportunidades
de aprendizado sobre assuntos de saúde e da vida de cada um
(Horochovski & Meirelles, 2007; OPAS, 2009).
Considerações finais
A estratégia escola promotora da saúde traz subsídios
para que trabalhadores da saúde e da educação possam atuar
conjuntamente para melhorar a qualidade de vida de alunos,
professores, direção, funcionários e famílias e, com isso, diminuir
as chances de violência dentro e fora do ambiente escolar.
Aos trabalhadores da saúde cabe a capacitação de professores
para a abordagem de temas relacionados à saúde, a partir do
seu conceito positivo. Podem assessorar a comunidade escolar
na identificação de problemas e prioridades que deverão
desembocar no desenvolvimento de atividades educativas
de promoção da saúde. Aos professores cabe a criação de
estratégias que incidam, de forma positiva, na vida de crianças e
adolescentes; possibilitando o diálogo, a reflexão crítica e criativa
e o desenvolvimento de relações solidárias, o que potencializa
a formação de alianças e lideranças positivas. Ao estado cabe
estimular alternativas intersetoriais que promovam a saúde e, ao
mesmo tempo, que enfrentem os determinantes da violência.
Deve desenvolver políticas públicas capazes de produzir espaços
limpos e seguros; de fortalecer a cultura da paz; de ofertar
alimentos com pouca quantidade de gorduras, farináceos e
açúcares; de estimular a criação de comportamentos saudáveis;
e de reforçar o poder de decisão e participação dos jovens. Além
disso, é fundamental a parceria com as comunidades e famílias,
que também podem possibilitar que crianças e jovens se sintam
acolhidos e protegidos e, com isso, modifiquem seus estilos de
vida de forma a torná-la mais solidária e saudável.
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Recebido em março/2012
Revisado em agosto/2012
Aceito em novembro/ 2012
95
RESENHA
Psicologia do Gênero: psicobiografia, sociocultura e transformações.
Uma proposta de ressignificação do novo livro de Maria Helena Fávero
Maria Helena Fávero
Curitiba/PR: Editora UFPR, 2010
Otávio Henrique Braz de Oliveira(a)*
“Este não é um livro de mulheres (p.13)”, afinal, assuntos de gênero dizem respeito à socialização
de pessoas, do ser humano, em suas relações. A partir dessa assertiva, a professora Maria Helena Fávero
defende, logo no início de seu livro “Psicologia do Gênero: Psicobiografia, sociocultura e transformação”,
a tese de que o binarismo que divide rigidamente as pessoas em duas categorias distintas – mulheres
e homens – conduz à criação papéis de gênero baseados em desigualdades entre esses indivíduos,
mantendo aquelas numa posição de inferioridade no cumprimento de tais papéis.
a Pedagogo. Especialista em Psicopedagogia.
*E-mail: [email protected]
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 96-98
Com uma linguagem fluente e, ao mesmo tempo, um texto
denso de conteúdos, a autora sustenta que essa dicotomia é
fundamentada por outras dualidades – mantidas, segundo
a autora, pela pesquisa e prática psicológica de bases ainda
fortemente positivistas - como corpo e mente, indivíduo e
sociedade, pensamento e linguagem e, fundamentalmente nos
aspectos de gênero, razão e emoção.
A autora se detém nesses dois últimos aspectos, enfatizando
essa mesma tese ao afirmar que o pensamento social vincula
aspectos psicológicos relacionados à racionalidade, coragem e
assertividade como atributos masculinos, enquanto docilidade,
emotividade e capacidade (obrigação) de agradar o outro como
características naturais das mulheres.
Essas inquietantes e reveladoras questões são abordadas à
luz dos fundamentos teóricos da Psicologia do Desenvolvimento
e sua abordagem historicosocial acerca de tais valores. Nisso, a
autora afirma que as concepções de gênero naturalizadas não
são imutáveis como muitas vezes são consideradas; ao contrário,
são produtos de construções sociais que podem ser alteradas,
reconstruídas a partir da tomada de consciência da capacidade
desenvolvimentista do ser humano e sua atividade psicológica
pessoal que o permite – também às mulheres – fazer escolhas
sobre seu próprio curso de vida do ponto de vista pessoal e
profissional , independente de suas características biológicas,
como frequentemente aborda a autora em suas interlocuções.
Nisso, no primeiro capítulo, a autora já inicia com a
afirmação de que a atividade humana é mediada: “dito em
outras palavras, àquilo que é biologicamente determinado, isto
é, o sexo dos indivíduos, são atribuídos diferentes significados,
que fundamentam o que deve ser adequado e inadequado para
cada um, definindo e lhes atribuindo diferente papéis.” (p. 29).
Nesse capítulo, a autora, “em muito boa companhia, podemos
dizer” (p. 25), recorre a outros pensadores que corroboram a tese
apresentada. Por essa razão, Fávero (2010) defende nessa parte
que, apesar dos ganhos financeiros e econômicos da mulher, seu
aspecto biológico ligado à maternidade produz o mito de que
essa função seria natural, não podendo esta contrapor outras
funções sociais, naturalizando e enclausurando a mulher num
espaço sociocultural determinado. Dessa forma, a subjetividade
das pessoas está em estreita relação com o “espaço semiótico
no qual a atividade humana se insere, entendendo que esse
espaço semiótico ou cultural é público, porque os significados
são públicos, o que permite algo fundamental: sua negociação.”
(p.35), desafiando, assim, as tênues fronteiras entre o público
e o privado, tão presentes nos debates e práticas de gênero.
Em consonância com a linha de pensamento da Psicologia do
Desenvolvimento, autora recorre também à teoria piagetana, a
qual postula que a adaptação humana não se restringe à ordem
estabelecida, mas também aos desafios, às novidades e às
mudanças que permitem a evolução das pessoas e da sociedade.
Portanto, seguindo essa premissa, os significados relativos às
questões culturais – incluindo àquelas ligadas ao gênero –
também são passíveis de reconstrução e desenvolvimento.
(p.45). Em suma, a autora conclui que “o que se procurou
defender nesse capítulo foi que a subjetividade (a formação de
paradigmas pessoais) é construída nas instâncias individuais,
coletivas e institucionais” (p.44), numa clara articulação dos
conceitos desenvolvimentistas com a Psicologia do Gênero na
constituição da psicobiografia do sujeito.
No capítulo, “Desenvolvimento psicológico, papéis de
gênero e valores: o crivo da emoção”, o qual inicia a segunda
parte do livro, a autora discorre sobre uma tese central de seu
discurso: a de que “temos representações sociais diferentes
para diferentes emoções em relação ao poder que elas mesas
podem significar.” (p.139). Assim, relaciona gênero e emoção
nas afirmações de que existe a “crença de que homens não
expressam a emoção que sentem” (p.142) e que “as mulheres
acreditam que se esperam delas a expressão de emoção
positiva em relação aos outros – como gentileza, cuidado,
afeição, simpatia, etc. e esperam sanções negativas se não
agirem conforme essa expectativa. Os homens, ao contrário,
não esperam conseqüências negativas se não se expressam
dessa forma.” (p.137). Ainda sobre a o vínculo explícito dessas
representações sociais sobre a emoção e as questões de gênero,
“o cultivo do medo e o sentimento de dependência do outro”
é exposto pela autora com exemplos de práticas cotidianas
que representam a seguinte consideração: “é lícito concluir que
os contextos socioculturais têm uma importância indiscutível
na idéia que elaboramos sobre as emoções.” (p. 147). Dessa
forma, a autora sustenta que a socialização de gênero ligada
á emoção acontece desde cedo, ainda na infância, de acordo
com as mediações simbólicas recebidas dos adultos sobre as
questões relativas à formação da criança e os papéis de gênero
e emoção: “As crianças desenvolvem modos de entender e
expressar suas experiências emocionais por meio dos padrões
de apoio que elas recebem em reação à expressão de seus
sentimentos” (p.143). Ainda sobre essa questão, Fávero
questiona “como essa menina lidaria, no curso de sua vida, com
essa pedagogia do medo e da dependência, de um lado e de
outro com seus desejos, motivações e realizações profissionais
e pessoais” (p.156), questionando como a pedagogia do medo
em decorrência à suposta fragilidade da mulher determina seu
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 96-98
processo de desenvolvimento. Nesse capítulo, a autora vincula
essas questões de gênero relacionando-as aos contextos de
saúde, com as afirmações de que “tanto a prática pessoal dos
homens no que se refere ao autocuidado como a prática da
medicina subentendem a concepção de invulnerabilidade dos
homens” (p.161) e que “as mulheres são mais frágeis física e
emocionalmente” (p.162).
Após um texto profundamente respaldado em várias
pesquisas e publicações, Fávero não permite uma conclusão
de seu livro: “vamos fazer algumas considerações finais o que
talvez leve à proposição de mais questões do que conclusões.”
(p.377). Nesse sentido, a autora propõe uma reformulação
dos significados sociais que permeam os assuntos de gênero,
tidas como “questões de direitos humanos e cidadania”. A
todos e todas que se propuserem a fazer uma análise crítica
daqueles papéis tradicionais, focalizando-os numa perspectiva
desenvolvimentista, e, portanto, otimista, é recomendado a
leitura desse livro.
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