Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Psicologia
André Luís Pinheiro Schaustz
O lugar do delírio na direção do tratamento da psicose
Rio de Janeiro
2001
André Luís Pinheiro Schaustz
O lugar do delírio na direção do tratamento da psicose
Dissertação apresentada, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre, ao Programa
de
Pós-Graduação
em
Psicanálise,
da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área
de concentração: Pesquisa e Clìnica em
Psicanálise.
Orientadora: Prof.a Dra. Sonia Alberti
Rio de Janeiro
2001
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/A
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dissertação.
________________________________
Assinatura
____________________________
Data
André Luís Pinheiro Schaustz
O lugar do delírio na direção do tratamento da psicose
Dissertação apresentada, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre, ao Programa
de Pós-Graduação em Psicanálise, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área
de concentração: Pesquisa e Clìnica em
Psicanálise
Aprovada em 17 de outubro de 2001.
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Prof.ª Dra. Sonia Alberti (Orientadora)
Institituto de Psicologia da UERJ
_____________________________________________
Prof. Dr. Luciano Elia
Instituto de Psicologia da UERJ
_____________________________________________
Prof. Drª. Ana Cristina Figueiredo
Instituto de Psiquiatria da UFRJ
Rio de Janeiro
2001
DEDICATÓRIA
Aos meus pais, Jeremias e Laurides in memorian.
A meu irmão e meus sobrinhos, Luís Fernando in memorian, Rafael e Marcella.
E, especialmente, à minha mulher e ao meu filho,Iara e Eduardo.
AGRADECIMENTOS
À Professora Sônia Alberti, pelo desejo em orientar essa pesquisa desde a primeira entrevista.
Ao Professor Luciano Elia, pelas intervenções em momentos cruciais desse percurso.
Aos demais professores e colegas do Mestrado, pelas boas discussões em um clima amigável.
Aos integrantes do “388”, pela respeitosa acolhida em minha viagem ao Québec.
Aos colegas e, principalmente, aos pacientes do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, pela
confiança em meu trabalho.
À Escola Letra Freudiana, particularmente ao Grupo de Trabalho em Psicose, pela
interlocução privilegiada a respeito da psicose.
A Ângela Cristina da Silva, pela revisão desse texto.
RESUMO
SCHAUSTZ, André. O lugar do delírio na direção do tratamento da psicose. 2001. 129f.
Dissertação (Mestrado em Psicanálise) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.
Esta dissertação se propõe a circunscrever o lugar do delírio na direção de tratamento
da psicose, na medida em que ele ocupa uma posição de destaque na estrutura clínica da
psicose. Correlacionamos as concepções teóricas da psiquiatria clássica, de Freud, de Lacan e
de Apollon a respeito do delírio. E também os respectivos desdobramentos dessas abordagens
na intervenção clínica. Interrogamos, mais amiúde, a proposta de Apollon referente à
desmontagem do delírio articulada à produção de um fantasma na psicose. Por fim, cotejamos
dois casos clínicos sustentados por Cantin e Bergeron – ambas psicanalistas do “388”, uma
instituição no Québec que trabalha a partir da proposta de Apollon –, com um caso clínico de
nossa experiência no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, Niterói.
Palavras-chave: Psicanálise. Psicose. Delírio. Direção do tratamento.
RÉSUMÉ
Cette thèse se propose de cerner la place du délire dans la direction de la cure de la
psychose, dans la mesure où il occupe une position d’importance dans cette structure clinique.
Nous établissons une corrélation entre les conceptions théoriques de la psychiatrie classique et
celles de Freud, de Lacan et d’Apollon, en ce qui concerne le délire, ainsi que les
répercussions de ces approches sur l’intervention clinique. Nous interrogeons plus
particulièrement la proposition d´Apollon au sujet du démontage du délire, articulé à la
production d’un fantasme dans la psychose. Finalement, nous comparons deux cas cliniques
soutenus par Cantin et Bergeron – toutes deux psychanalystes du “388”, une institution
québecoise qui travaille à partir de la proposition d’Apollon – à un cas clinique que nous
suivons à l’hôpital psychiatrique de Jurujuba, Niterói.
Mots-clés: Psychanalyse. Psychose. Délire. Direction de La cure.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...........................................................................................
8
1
FREUD............................................................................................................
13
1.1
O delírio na tradição psiquiátrica..................................................................
13
1.2
O delírio segundo Freud.................................................................................
21
1.3
Perspectivas da produção freudiana a respeito da psicose............................
32
2
LACAN ..........................................................................................................
40
2.1
O diálogo de Lacan com a psiquiatria a propósito do delírio .....................
40
2.2
O diálogo de Lacan com Freud a respeito do delírio ...................................
43
2.3
Alguns aspectos da obra mais tardia de Lacan ............................................
52
3
A QUESTÃO DO DELÍRIO NA EXPERIÊNCIA TEÓRICO-CLÍNICA
DO GIFRIC ...................................................................................................
60
3.1
O Centro psicanalítico para jovens psicóticos: uma breve apresentação ....
60
3.2
O Lugar do Delírio na Produção Teórico-Clínica do GIFRIC ....................
61
3.3
A Direção de Tratamento da Psicose no “388” ...........................................
67
3.3.1
Primeiro tempo lógico: reconstrução da história subjetiva do psicótico ............
71
3.3.2
Segundo tempo lógico: a reconstituição da imagem corporal ............................
76
3.3.3
O terceiro tempo lógico: a produção do fantasma .............................................
79
3.3.4
O quarto tempo lógico: o desejo no laço social ................................................
86
4
CASOS CLÍNICOS .......................................................................................
89
4.1
O caso Phillip .................................................................................................
90
4.2
O caso André ..................................................................................................
101
4.3
O Caso “Serquequerser” ...............................................................................
107
CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................
122
REFERÊNCIAS .............................................................................................
124
9
Gradiva, em que ele esboça uma distinção interessante entre delírios histérico e psicótico; e
concluiremos o segundo item do primeiro capítulo apoiando-nos no texto freudiano a respeito
do juiz-presidente Schreber.
A concepção teórica sustentada por Freud revoluciona o saber, especialmente o
psiquiátrico, que considerava até então o delírio somente como uma alteração patológica ao
nível das representações. Ele subverte essa definição de Kraepelin, por exemplo, ao apregoar
que o delírio é uma tentativa de cura já posterior a um momento silencioso de ruptura com a
realidade. Como podemos encontrar, por exemplo, em seu texto Neurose e Psicose de 1924,
em que afirma que “o delírio se apresenta como um remendo colocado no lugar donde
originalmente se produziu um rasgo no vínculo do eu com o mundo exterior” (Freud, 1924a,
p.157).
Assim, Freud, na citação acima, está reforçando a sua original concepção a respeito da
capacidade de cura que a própria atividade delirante oferece ao psicótico, como ressaltara em
seu texto de 1911 sobre o presidente Schreber quando escrevera que a formação delirante, na
realidade, não é patológica em si, mas uma tentativa de reconstrução.
Freud também surpreende em um outro texto escrito em 1924, intitulado “A perda da
realidade na neurose e na psicose”, ao acrescentar que a perda da realidade não é
exclusividade da psicose, apresentando-se também na neurose, como já indica o próprio título
do artigo. E propõe nesse texto que tão importante quanto a perda da realidade é a questão
relativa ao substituto para esta realidade indesejada tanto na neurose como na psicose,
havendo, portanto, não só uma diferença entre essas estruturas no que tange ao processo de
perda da realidade, mas também quanto ao tipo de reconstrução que esta induz em ambas as
clínicas, embora o manancial de significantes do qual se nutrem para se afugentarem da
realidade exterior indesejada provenha do “mundo da fantasia” (Freud, 1924b).
Nesse sentido, esses últimos aspectos recolhidos da trajetória de Freud, incluídos no
terceiro item de nosso primeiro capítulo, abrem a perspectiva de uma articulação entre o
delírio e a fantasia, como abordaremos também nos capítulos dois e três, referentes a Lacan e
a Apollon, respectivamente.
No segundo capítulo, enfocaremos a contribuição de Lacan a respeito da psicose, na
medida em que a sua obra representa um avanço incontestável do projeto freudiano nos mais
diversos temas da psicanálise. Então, no primeiro item do segundo capítulo, faremos algumas
observações a propósito das contribuições da psiquiatria clássica ao ensino de Lacan no que
10
tange à psicose – especialmente Neisser, Séglas, Clérambault –, assim como as divergências
presentes nesse diálogo fecundo que ele travou com a psiquiatria – principalmente, com as
posições de Kraepelin e Jaspers.
No segundo item do capítulo dois, retomaremos o diálogo de Lacan com a produção
freudiana a respeito do delírio, detendo-nos, principalmente, em seu ensino do final da década
de cinqüenta – Seminário III (As psicoses), A instância da letra no inconsciente ou a razão
desde Freud, De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose –, no qual,
após um percurso não-linear, cunhou a expressão “metáfora delirante” como indicação
teórico-clínica para a estabilização da psicose. Tal direção repercute até hoje, entre muitos
lacanianos, como a principal direção no tratamento da psicose. Dessa forma, percorreremos
brevemente as posições de alguns desses autores lacanianos – Caligaris, Silvestre, Soler,
Laurent –, que corroboram a indicação inicial de Lacan em relação à construção da metáfora
delirante como paradigma de cura para a psicose.
No último item do segundo capítulo, esboçaremos uma leitura mais transversal da obra
de Lacan para melhor enfocarmos vários aspectos trabalhados por Lacan no seu ensino mais
tardio como, por exemplo, a estrutura, o sujeito, a fantasia, o enlaçamento borromeano dos
três registros – real, simbólico, imaginário. Enfim, apesar de mantermos a distinção
fundamental entre as três principais posições subjetivas – neurose, psicose e perversão –,
valorizaremos, no entanto, nesse último item, alguns pontos em comum a respeito da questão
do sujeito e da fantasia nas clínicas da neurose e da psicose, a partir da leitura que Neuza
Santos realizou da obra de Lacan. Com isso, permitiremos uma interlocução mais interessante
com as propostas de Apollon, abordadas no terceiro capítulo.
No terceiro capítulo, o primeiro item consistirá em uma pequena apresentação do
“388” – Centro psicanalítico para jovens psicóticos –, no qual, a articulação de algumas
modalidades de trabalho – como as equipes de tratamento (formadas por um interveniente
clínico, um psiquiatra, um assistente social e o próprio usuário), os ateliês de criação, as
reuniões clínicas semanais – facilita a sustentação de uma psicanálise com o psicótico daquela
instituição.
Ao longo do segundo item do capítulo três, abordaremos a concepção que Apollon
desenvolve a respeito do delírio, em interlocução com os membros do GIFRIC,2 a partir da
experiência clínica acumulada por eles em praticamente duas décadas de existência do “388”.
2
Grupo Interdisciplinar Freudiano de Pesquisa e de Intervenções Clínicas.
11
Portanto, enfocaremos a leitura realizada por Apollon das obras de Freud e Lacan no que
tange à psicose, levando-se em conta o seu estilo particular de leitura que valoriza muito o
aporte antropológico.
Apollon sustenta que o delírio apresenta-se na estrutura psicótica com a função de
realizar uma “missão”. O psicótico, por se encontrar desprovido da amarração que o Nomedo-Pai confere ao sujeito para poder compartilhar dos mesmos mitos fundantes da ordem
simbólica, impõe-se a “missão” de fundar uma “nova ordem” de representações para
prosseguir em sua existência. No entanto, na hipótese de Apollon, a solução delirante, de
modo geral, impede que o sujeito estabeleça laço social, em decorrência da foraclusão do
Nome-do-Pai (Apollon, 1990).
No último item do capítulo, problematizaremos a direção de cura alternativa que
Apollon propõe à clínica da psicose. Ele sugere quatro etapas lógicas que se desdobram ao
longo da análise de um psicótico para que haja o resgate do “desejo do sujeito” nas trocas que
caracterizam o laço social. Nesse sentido, questionaremos a tese principal de Apollon que
afirma, como o eixo principal do tratamento psicanalítico do psicótico – a desmontagem do
delírio e a produção de um fantasma na psicose –, na medida em que o delírio consiste no
trabalho espontâneo da psicose.
Os quatro momentos lógicos do tratamento analítico sustentado com psicóticos no
“388” – (re)construção da história subjetiva, reconstituição da imagem corporal, construção
do fantasma e restauração do desejo no laço social –, geram alguns momentos críticos, a ponto
de Apollon assinalar em sua teorização a respeito da prática clínica desenvolvida no “388”
que crises psicóticas fazem parte do tratamento, como, por exemplo, a “crise de inscrição” –
quando o sujeito se engaja no laço transferencial (Apollon, 1999).
Então, no terceiro capítulo, interrogaremos sobre alguns aspectos das propostas de
Apollon, como, por exemplo, a questão a respeito da construção do fantasma na psicose.
Assinalamos previamente que a nossa dissertação não terá como ponto central a questão a
respeito da construção do fantasma na psicose, na medida em que privilegiaremos,
principalmente, o lugar do delírio na direção de cura da psicose.
No quarto e último capítulo de nossa dissertação, apresentaremos três recortes clínicos
de sujeitos psicóticos que permitirão uma melhor articulação com os tópicos teóricos –
especialmente, a questão do delírio – abordados nos três capítulos anteriores do texto –
Psiquiatria clássica, Freud, Lacan e Apollon.
12
Os dois primeiros casos clínicos foram acompanhados pelas psicanalistas Lucie Cantin
e Danielle Bergeron no “388”, e publicados no livro Traiter la psychose. O terceiro caso
clínico que trabalharemos nesse capítulo, baseia-se na escuta analítica de um psicótico que
acompanhamos no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, Niterói. Portanto, faremos um
cotejamento entre as duas experiências clínicas – a canadense e a brasileira –, apesar das
enormes diferenças sócio-cultural e institucional que distinguem os contextos.
Lucie Cantin e Danielle Bergeron, ao abordarem as direções de tratamento de Phillip e
André – como, respectivamente, nomearam os sujeitos em questão –, nos apresentaram
claramente o estilo de intervenção analítica que segue bem de perto os pressupostos teóricos
sustentados pelo GIFRIC. Dessa forma, o real da clínica nos permitirá interrogar a respeito de
alguns pontos que balizam a práxis desenvolvida no “388”.
Por fim, apresentaremos o caso Serquequerser – um psicótico em surto que
acompanhamos no HPJ –, que nos permitiu articular também, a partir de sua produção
delirante, as contribuições de Freud, Lacan e Apollon a respeito de questões muito
importantes no que tange à clínica da psicose, como, por exemplo, a relação entre o delírio e a
verdade.
13
1 FREUD
1.1 O delírio na tradição psiquiátrica
Ao longo da história moderna, pelo menos do Ocidente, há uma superposição entre o
delirante e o louco; ocorrendo, no senso comum, praticamente uma sinonímia entre o ato
delirante e a própria loucura.
A tradição psiquiátrica, instaurada no final do século XVIII, tributária da inclusão da
medicina no campo da ciência, não é menos confrontada por essa problemática que se impõe
na construção de sua clínica, pois talvez seja o delírio o tema mais relevante e complexo para
o saber psiquiátrico, sendo fonte de grande debate entre os autores especialmente das duas
grandes escolas da psiquiatria clássica, a alemã e a francesa.
Então, para podermos extrair a definição de delírio que a psiquiatria propõe,
privilegiaremos em nossa pesquisa um breve recenseamento histórico através das duas escolas
dominantes. Inicialmente, reportar-nos-emos à entidade clínica paranóia – uma construção
teórica da escola alemã, cujo sintoma central é o delírio – considerada por Freud (1908) , em
correspondência com Jung, “um bom tipo clínico” em contraposição à demência precoce que
reputava um mau termo nosográfico. Analisaremos, também, a contribuição da escola
francesa através do delírio crônico de Magnan, que culminará na psicose alucinatória crônica
de Ballet.
Na psiquiatria clínica alemã, há um desenrolar teórico que vai da conceituação de
Verrücktheit à paranóia. Na obra de Emil Kraepelin, tem-se a síntese de praticamente todo o
esforço de quase um século da escola alemã, com a proposição do conceito de paranóia da
seguinte forma: “desenvolvimento insidioso sob a dependência de causas internas e segundo
uma evolução contínua de um sistema delirante durável e impossível de abalar que se instaura
com uma conservação completa da clareza e da ordem do pensamento, da vontade e da ação”
(Kraepelin apud Cacho, 1991, p.19).
Em 1818, Heinroth propõe o termo Verrücktheit, “desordem intelectual” para retomar
a antiga significação de loucura, termo que o Corpus Hipocraticum designava pela palavra
14
“para-noia”, que em grego tem a seguinte acepção: para – contra, em oposição a –; e noos –
espírito (Cacho, 1991).
Em 1845, na obra de Griesinger, a paranóia emerge como termo e como categoria,
tratando-se de uma afecção considerada primitiva, isto é, não dependendo de causas exteriores
e também não dependendo de uma enfermidade anterior. Em 1861, Kalhbaum retoma esse
termo num marco kantiano, no qual se distinguem as afecções que envolvem os afetos, as
afecções que envolvem a vontade e, por último, aquelas que afetam o entendimento e o juízo.
A paranóia, nesta tripartição, refere-se ao último tipo de afecção (Miller, 1985).
Em 1862, Hoffmann utiliza o termo Verrücktheit para definir um tipo de doença
mental que se desenvolve a partir de alucinações sensoriais, podendo conceber o nascimento
de um sistema delirante organizado, classificado conforme a paixão dominante: melancólico,
exaltado, instintivo e alucinatório (Cacho, 1991).
Em 1865, Snell modifica a concepção de seu contemporâneo, Hoffmann, ao sugerir
que, ao lado das formas melancólica e exaltada, haveria uma Verrücktheit primária, cujo
delírio primitivo organizado, não secundário a transtornos afetivos, era composto por temas de
perseguição e de grandeza (Cacho, 1991).
Em 1878, Westphal sublinha um traço específico do delírio organizado e estabelece
uma classificação da loucura sistemática (Verrücktheit) que, assim, se subdivide em quatro
formas:
1. Hipocondríaca – queixas hipocondríacas associadas a transtornos de sensibilidade
geral formam o substrato do delírio de perseguição sucessivo;
2. Crônica – o delírio de perseguição não é precedido por idéias hipocondríacas, mas,
haverá, em sua evolução, a presença de idéias de grandeza;
3. Aguda – caracterizada por alucinações súbitas, idéias de perseguição, sem
apresentar um caráter sistemático;
4. Original – sistematização de ideação persecutória em indivíduos herdeiros de
degenerescência, desenvolvimento organo-psíquico defeituoso (Cacho, 1991).
Em 1879, Krafft-Ebing separa a forma aguda da loucura sistematizada e designa pelo
termo paranóia uma síndrome delirante que corresponde à Verrücktheit. Os principais
sintomas da síndrome são idéias delirantes sistematizadas que organizam um verdadeiro
“edifício delirante”, fruto de um funcionamento lógico mesmo que as premissas sejam falsas
(Cacho, 1991).
16
Todavia, em torno da questão a respeito do mecanismo fundamental da paranóia, há
um importante debate que já se inicia, em fins do século XIX, entre Kraepelin – mestre da
escola de Munique – e outros autores de sua época, como, por exemplo, Clemens Neisser.
Debate que atravessa também a obra de Jaspers no início do século XIX e se desdobra em
Lacan tanto em sua tese de medicina, de 1932, como em seu Seminário sobre as psicoses, em
1955-56 (Sauvagnat, 1988).
Em 1892, Clemens Neisser, em um artigo intitulado Discussões sobre a paranóia
questiona-se sobre qual o processo que determina o delírio e, apoiado apenas em observações
clínicas de casos os mais unívocos possíveis de delírio de perseguição, propõe o termo
krankhafte Eigenbeziehung para localizar o mecanismo gerador da paranóia.
Citemos Neisser: “esses pacientes sem o querer nem o saber, em estados sem afeto,
agarram as representações que se apresentam em suas consciências como estando em relação
particular com sua própria pessoa” (Neisser apud Sauvagnat, 1988, p.22). Portanto, o sujeito
apreende aleatoriamente determinadas representações que irrompem em sua consciência,
aprisionando-o ao relacioná-las a sua própria pessoa. A principal acepção da palavra alemã
Eigenbeziehung indica uma referência a “si próprio”.
Esse mecanismo é considerado por Neisser o sintoma primário da paranóia por
falsificar a percepção sensorial assim como a reprodução das representações, tornando-se, por
esse fato, a fonte do curso de pensamentos formalmente corretos e lógicos. Entretanto, esses
pensamentos são freqüentemente sutis, mas falsos e delirantes do ponto de vista do conteúdo,
representando o sistema delirante propriamente dito (Sauvagnat, 1988).
Assim, o ponto de partida que caracteriza a Eigenbeziehung congregaria o sentido
último de toda uma série de sintomas da paranóia como a hipocondria; o mal-estar corporal; as
agitações mais ou menos desordenadas, alternadas com momentos de abatimento; e as
próprias alucinações, assim como o próprio sistema delirante é considerado em si mesmo
secundário e variável.
Como abordaremos no capítulo seguinte, Lacan, em sua tese de medicina (1932), ao
buscar também um fenômeno elementar na origem da interpretação paranóica retoma a
importância do fenômeno da Eigenbeziehung descrito por alguns clínicos alemães (Neisser,
Tiling, Heilbronner) e traduz esse termo por “significação pessoal” (Sauvagnat, 1988).
Então, a partir dessa apropriação teórico-clínica a respeito do mecanismo fundamental
da paranóia, Lacan unifica sob o termo de “significação pessoal” os quatro tipos de fenômenos
17
elementares que observa no caso Aimée: estados oniróides, incompletude, interpretação,
ilusões da memória (Sauvagnat, 1988).
Essa apropriação terá um alcance muito importante na obra de Lacan, tanto em seu
Seminário intitulado As Psicoses – quando relaciona que na psicose alguma coisa se apresenta
como uma significação que visa o sujeito – como em seu escrito De uma questão preliminar a
todo tratamento possível da psicose.
Lacan considera a significação enigmática como um efeito da língua fundamental de
Schreber, por exemplo, ou seja, a significação é efeito da cadeia significante, sendo a certeza
psicótica diretamente proporcional ao vazio enigmático que se apresenta no lugar da falta de
significação, sendo esta decorrente da foraclusão do significante Nome-do-Pai.
Mas Kraepelin, por sua vez, considerava relativa a importância desse fenômeno da
“significação pessoal” como o mecanismo fundamental da paranóia, na medida em que
preconizava um desenvolvimento insidioso para a paranóia e não um processo que
subvertesse completa e bruscamente a vida psíquica do paciente. Será Jaspers quem mais
fortemente se oporá à concepção kraepeliniana ao apontar, justamente, como principais
critérios para construir a sua psicopatologia compreensiva das afecções mentais, os conceitos
de desenvolvimento e de processo.
Em 1913, Jaspers, em seu livro Psicopatologia Geral, faz uma distinção entre “idéias
delirantes” (Wahn Ideen) e “idéias deliriformes” (Wahnhaften Ideen). As primeiras
representam um fenômeno primário (Urphanomen) irredutível a si mesmo, para as quais não
se encontram antecedentes psicológicos, ou seja, as idéias delirantes se apresentam como uma
coisa última intransponível (Letzheit). Já as idéias deliriformes são psicologicamente
compreensíveis devido a manifestações de estados afetivos e até mesmo a obnubilações da
consciência (Leme Lopes, 1982).
Primeiramente, Jaspers define o delírio como “um juízo patologicamente falseado”,
reconhecido através de três critérios: extraordinária convicção que equivale a uma certeza
subjetiva
incomparável;
impossibilidade
de
sua
modificação
pela
experiência
e
impossibilidade de conteúdo. Posteriormente, Jaspers considerará a idéia delirante um erro
global do psiquismo e não mais, exclusivamente, uma fraqueza de julgamento. Então, a idéia
delirante será teorizada como o resultado de uma alteração global do psiquismo do enfermo,
uma “necessidade de delírio”, na expressão de Jaspers (Leme Lopes, 1982).
18
Jaspers classificava as vivências delirantes em percepções e representações delirantes.
A percepção delirante caracteriza-se por uma percepção seguida imediatamente por um
significado que comporta um sentimento de estranheza, o humor delirante. A representação
delirante como “novas colorações ou interpretações para as lembranças da vida pregressa ou
uma súbita idéia espontânea” (Einfall), a idéia espontânea já surge portadora de um
significado especial (Lemes Lopes, 1982, p.12).
Embora haja na percepção delirante um estímulo externo e a representação delirante
nasça da própria vida psíquica, na realidade, nas d
19
ao contrapor-se, em parte, à nosologia kraepeliniana e ao reagrupar as formas mais
organizadas de delírios crônicos como “psicose alucinatória crônica”, em 1911 (1987).
No entanto, nos últimos anos do século XIX, Séglas consagrou-se ao descrever uma
segunda forma de “delírio crônico alucinatório sistematizado” cuja característica principal não
era a apresentação de alucinações acústico-verbais no quadro clínico, mas o predomínio de
alucinações que nomeou como motrizes, em que a palavra se emancipa da boca do paciente. E
estas alucinações motoras estariam na base de um delírio de perseguição particular, o “delírio
de possessão”, mais tarde rebatizado como “delírio de influência”, no qual o sujeito se sente
habitado psiquicamente (1987).
Assim, a escola francesa, na passagem do século XIX para o XX, apresenta, através da
construção do conceito de “psicose alucinatória crônica”, uma resposta à nosologia de
Kraepelin, que se tornara mundialmente hegemônica a partir de 1899 ao dividir o campo das
psicoses em três grandes grupos: os estados agudos resolutivos (“loucura maníacodepressiva”); os delírios crônicos não-alucinatórios (“paranóia”) e a “demência precoce”
(futura esquizofrenia bleuleriana), esta última consistindo no reagrupamento dos delírios
crônicos alucinatórios (ex-paranóias fantásticas) com o grupo da hebefreno-catatonia.
Ballet fundamenta psicopatologicamente a descrição da “psicose alucinatória crônica”
apoiando-se em trabalhos como os de Cotard, aluno de Séglas, que põem em evidência
observações clínicas caracterizadas por estados alucinatórios crônicos sem delírio.
Observações essas que descrevem uma síndrome alucinatória primária antecedente ao delírio,
este considerado uma superestrutura explicativa tardia. Assim, Ballet opta pela análise de
Séglas e de seus discípulos, que priorizaram uma síndrome alucinatória na base do delírio em
detrimento da concepção de Magnan, que privilegiava justamente o contrário, ou seja, a
alucinação ocorreria posteriormente ao delírio persecutório (1987).
Dessa forma, a escola francesa diferencia-se da escola alemã através da “psicose
alucinatória crônica”, embora mantenha a “paranóia” kraepeliniana e uma “demência precoce”
em uma concepção mais restrita em sua nosografia. Os franceses criticaram a extensão da
desintegração psíquica que estaria na base da demência precoce, assim como o próprio critério
de demenciação, aspecto bastante ressaltado por Kraepelin ao privilegiar uma evolução
terminal nessas afecções mentais.
Contudo, em 1913, quando Ballet finaliza a descrição da “psicose alucinatória
crônica”, Bleuler já havia publicado, em 1911, a sua monografia a respeito do grupo das
20
“esquizofrenias”, começando a suplantar com esse conceito a própria “demência precoce” de
Kraepelin em termos de difusão mundial. Portanto, na realidade, os franceses praticamente
responderam, através da “psicose alucinatória crônica”, tanto à consagrada obra kraepeliniana
como à promissora proposta de Bleuler.
A partir de 1920, a obra de Gaëtan Gatian de Clérambault vai coroar, através da
“síndrome do automatismo mental” e de suas intervenções junto à “psicose alucinatória
crônica”, a produção clássica da psiquiatria francesa nesse debate com os autores alemães a
respeito das psicoses.
Clérambault ocupou uma posição muito peculiar em seu tempo, pois, ainda que
contemporâneo da passagem da psiquiatria clássica para a moderna - devido à revolução
freudiana, que, por intermédio de Jung, ecoou na corrente psicodinâmica de Bleuler e também
à introdução da fenomenologia por Jaspers na pesquisa em psicopatologia - permaneceu
arraigado à psiquiatria clássica como seu último representante.
Clérambult investigou ao longo de sua obra a causa primeira da psicose, nomeada por
ele como o mecanismo gerador da psicose. E, para realizar tal tarefa, apoiou-se inicialmente
em estudos a respeito dos delírios coletivos, chegando a distinguir o delírio da psicose
propriamente dita.
A sua definição de delírio consiste em reportá-lo ao conjunto dos temas ideicos e
sentimentos anexos, “um produto intelectual sobreacrescido”, longe de ser a psicose. Esta se
relaciona ao “fundo material” - histológico, fisiológico - que se expressa psiquicamente
através dos fenômenos elementares, tais como “emancipação do pensamento abstrato,
intuições abstratas, parada do pensamento abstrato, ideorréia, esvaziamento do pensamento”,
que são sucedidos pelas alucinações auditivas, psicomotoras e o próprio delírio (Clérambault,
1987, p. 79).
O delírio para Clérambault apresenta-se como um “Romance”, tentativa de explicação
consciente do efeito dos fenômenos elementares que em si não trilham uma ideação
consciente em sua gênese, portanto, não sendo, assim, investigáveis em termos psicológicos.
Desse modo, notamos que não há uma teoria homogênea a respeito do delírio em
psiquiatria que produza conseqüentemente uma definição única sobre o tema. Observamos
também que a psicanálise parte do edifício nosológico da psiquiatria, principalmente em
relação à definição de paranóia sintetizada por Kraepelin. Entretanto, a obra de Freud subverte
21
profundamente o conceito de delírio subjacente à concepção psiquiátrica alemã, como
veremos no próximo item deste capítulo.
O ensino de Lacan mantém também um extenso diálogo com a psiquiatria clássica Kraepelin, Séglas, Clérambault -, entretanto, opera importantes modificações a respeito da
paranóia e do delírio. Contudo, observamos que Lacan enriqueceu a sua teorização a respeito
da psicose a partir, por exemplo, da proposta de “significação pessoal” (Eigenbeziehung) de
Neisser, assim como da contribuição de Clérambault a respeito dos “fenômenos elementares”
que irrompem na psicose, como veremos no próximo capítulo.
Entretanto, não podemos deixar de ressaltar que há uma profunda diferença entre as
duas disciplinas – psiquiatria e psicanálise –, na medida em que o inconsciente e o significante
é que sobressaem na teoria psicanalítica, enquanto a psiquiatria se reporta à consciência e ao
significado. Contudo, o rigor da observação clínica da psiquiatria clássica permitiu a
preparação do terreno para uma abordagem estrutural dos fenômenos psíquicos que vem
sendo desenvolvida pela psicanálise.
1.2 O delírio segundo Freud
A questão da clínica da psicose perpassa toda a obra de Freud, desde sua
correspondência com Fliess – no início de sua original criação – até seus últimos textos no
exílio londrino. Portanto, a produção freudiana a respeito da psicose é vasta, inovadora,
multifacetada, embora, inconclusa a respeito, principalmente, do processo gerador da psicose.
Freud, no período anterior ao da escritura de Interpretação dos Sonhos (1900), detevese em elaborar uma “teoria da defesa” que possibilitasse uma melhor intervenção clínica
assim como teórica através da definição de defesa. Esta era considerada, então, a operação
necessária para se diminuir ou até mesmo eliminar qualquer modificação que pusesse em risco
a economia psíquica do sujeito. Mas, a partir de 1900, o recalque é que se constitui na
principal defesa, ocupando, portanto, uma posição angular no edifício psicanalítico.
Em 1894, Freud, em seu artigo As Neuropsicoses de Defesa, agrupou a histeria, a
neurose obsessiva e a paranóia como tendo em comum a produção de uma defesa (Abwehr)
22
por parte do eu ante uma representação inconciliável de caráter sexual, tese já esboçada no
Rascunho K na correspondência com Fliess.
Inicialmente, tanto a histeria como a neurose obsessiva têm em comum a modificação
da representação sexual intensa em uma representação débil qualquer, na medida em que é
impossível para o eu tratá-la como “non-arrivée” (não-acontecida), porque já ocorrera sua
inscrição mnêmica com o afeto correspondente. Assim, na histeria, a defesa desencadeada
pelo eu produz o divórcio entre a representação e a soma de excitação que a acompanha,
embora esse quantum de excitação se transponha ao corporal, caracterizando o que Freud
denomina “conversão histérica” (1894).
Na neurose obsessiva, o afeto permanece no âmbito do psíquico por não haver o
escoadouro para o componente somático, entretanto, ao se encontrar liberado da representação
intolerável adere a outras representações inconciliáveis em si mesmas, mas que, a partir de
então, em virtude dessa sobrecarga energética, transformam-se em representações obsessivas
(1894).
Em relação à paranóia, Freud propõe “uma modalidade defensiva muito mais enérgica
e exitosa, na qual o eu rejeita (verwerfen) a representação insuportável junto com seu afeto e
se comporta como se a representação nunca houvera comparecido” (1894, p.59). Portanto,
como exemplifica Freud nesse texto, através do quadro clínico da confusão alucinatória, o
sujeito que logra tal defesa é conduzido à psicose.
Segundo Freud, a rejeição da representação insuportável pelo eu na psicose escapa
tanto à autopercepção do enfermo quanto à análise psicológico-clínica, e como esta
representação está ligada de maneira inseparável a um fragmento da realidade objetiva, este
processo produz como resultante o desatamento total ou parcial da realidade (Realität).
Em 1896, Freud publica um novo artigo, intitulado Novas Observações sobre as
Neuropsicoses de Defesa – que, de certa forma, é um desdobramento das teses do texto
supracitado – reafirmando que a paranóia é, como a histeria e as representações obsessivas,
uma neuropsicose de defesa proveniente do recalque de recordações penosas. Os sintomas
dessas três enfermidades são determinados em sua forma pelo conteúdo do recalcado,
entretanto, essas entidades clínicas diferenciam-se pela modalidade como o recalque incide
sobre a representação indesejável.
Na histeria, o recalque se daria através da “conversão” à inervação somática, enquanto
na neurose obsessiva, por “substituição” da representação intolerável ao longo de certas redes
23
associativas. Em relação à paranóia, Freud descreve minuciosamente nesse texto, no intuito de
uma melhor distinção estrutural, um caso clínico para propor algumas nuances a respeito do
modo particular como o recalque ocorre na psicose (1896).
Esse caso clínico relatado por Freud é entremeado por uma riqueza de alucinações
visuais e auditivas – embora não apresentasse nenhum delírio – a ponto de ele afirmar que a
paciente ou lhe escondera as “formações delirantes” que serviriam para “interpretar as
alucinações” ou ainda não as tinha produzido. Dessa maneira, podemos perceber um dos
aspectos da concepção de Freud a respeito do delírio ao enfatizá-lo como a função de
interpretar as alucinações (1896). Mas, ainda, não é nesse aspecto que a psicanálise
demonstra a sua originalidade em relação à psiquiatria, na medida em que a questão a respeito
da anterioridade do delírio ou da alucinação já era debatida entre os psiquiatras, como citado
no item precedente desse capítulo.
Freud ousa mais ao relacionar as alucinações da paciente à sua revolucionária
conceituação a respeito da formação do sintoma. Ele considera vivazes as alucinações visuais
por não serem outra coisa que fragmentos do conteúdo das vivências infantis recalcadas, ou
seja, sintomas do retorno do recalcado. E quanto às vozes alucinadas, Freud afirma que não
poderiam ser imagens ou sensações reproduzidas por via alucinatória, mas, sim, “pensamentos
ditos em voz alta”, oriundos do recalque de alguns pensamentos de reprovação na ocasião de
uma vivência análoga ao trauma infantil, embora sofram também o efeito da desfiguração
como todo retorno do recalcado.
Freud propõe também uma comparação entre a neurose obsessiva e a paranóia. Ambas,
inicialmente, partem do recalque de uma vivência sexual infantil, assim como formam
sintomas decorrentes de uma defesa primária e secundária. No entanto, na paranóia, os
sintomas que brotam da defesa primária são os delírios de desconfiança, a antipatia, a
perseguição dos outros; enquanto na obsessão, a reprovação inicial é recalcada pela formação
do sintoma defensivo primário: a desconfiança de si mesmo.
Assim, na neurose obsessiva é lícita a reprovação a
24
o paranóico desconfia dos outros, sendo desfalcado, por isso, de uma proteção contra as
reprovações que retornam como idéias delirantes (1896).
Freud observa também que, na paranóia, há produção de sintomas de defesa
secundária, como na obsessão, ou seja, as idéias delirantes que chegam à consciência em
virtude da solução de compromisso entre as forças recalcadoras e as recalcadas imprimem
uma demanda de trabalho ao eu para adaptar-se a essas neoformações psíquicas que são os
delírios. Portanto, o delírio de interpretação desemboca numa alteração do próprio eu no
transcorrer da paranóia.
Então, Freud, neste momento de sua trajetória, ou seja, anterior à delimitação do
recalque propriamente dito, debruça-se sobre as “neuroses de defesa”, atingindo um duplo
objetivo. Em primeiro lugar, estipula a defesa como se encontrando universalmente nas
principais patologias analisadas, ou seja, responde à questão etiológica das psiconeuroses
(histeria, neurose obsessiva e paranóia). Em segundo lugar, a partir do próprio processo
defensivo, descreve as diversas manifestações clínicas, permitindo, inclusive, delimitar novos
mecanismos na particularidade de cada afecção (conv
25
Norbert Hanold, o protagonista da obra de Jensen, nomeou a figura feminina
representada no baixo-relevo como Gradiva (“a jovem que avança”) e entregando-se a suas
fantasias, estas se ampliam a tal ponto que se constituem em um delírio, passando a
influenciar inclusive as suas ações, conforme nos aponta Freud em seu texto (1907, p.13). Por
isso, Hanold se lança a buscar nas cinzas petrificadas da Pompéia atual algum traço das
pegadas de Gradiva, mas dentro do sublime propósito de uma “missão científica”.
Nesta empreitada, o protagonista é interpelado por uma jovem alemã que também se
encontrava em viagem ao sul da Itália acompanhando seu pai, um eminente professor de
Zoologia da mesma cidade universitária na qual Hanold morava. Portanto, eram vizinhos na
Alemanha, mas Hanold, transtornado por seu delírio, não os reconhecia. Na verdade, mais do
que simples vizinhos, durante a sua infância, ele havia tido um contato muito próximo e
bastante amoroso com Zoe Bertgang, mas que esquecera por completo na vida adulta por se
recusar firmemente a qualquer aproximação com o amor.
Nas ruínas de Pompéia, Hanold, em sua busca desesperada por algum contato com
Gradiva, acaba por encontrá-la, o que se dá sempre ao meio-dia, quando esta retorna de sua
eterna morada. Na realidade, Zoe é quem encarna Gradiva nos diálogos com Hanold. E, a
partir dessa estratégia de Zoe, Hanold elaborou associações entre dois sonhos produzidos por
ele, assim como uma articulação com o próprio delírio. Neste ponto, Freud nos indica uma
direção para se abordar o delírio: “o tratamento sério de um estado patológico real dessa
índole não poderia fazer outra coisa que se situar no começo no terreno do edifício delirante e
então explorá-lo da maneira mais exaustiva possível” (1907, p.19).
Portanto, a partir das “intervenções” de Zoe, revela-se algo do material recalcado que
se encontra na própria origem do delírio de Hanold, na medida em que Gradiva era o
substituto de Bertgang, sendo possível acompanhar isso até na própria significação deste
sobrenome: Bert – brilho – e gang – andar. Desvelando-se assim o amor pela menina Zoe
Bertgang que cativou Hanold em sua infância (1907).
O baixo-relevo antigo reacende em Hanold o erotismo adormecido em suas
recordações da infância, porque Zoe também possuía o mesmo andar peculiar retratado pela
escultura. Devido à censura, essas recordações some
26
Então, a partir de sua leitura do texto de Jensen, Freud ressalta alguns pontos
importantes a respeito de sua posição diante do delírio, da fantasia e dos sonhos.
Inicialmente, Freud afirma que o delírio “pertence àquele grupo de estados patológicos
que não corresponde a uma ingerência imediata sobre o corporal, senão que só se expressam
mediante indícios anímicos”, ou seja, é apenas da ordem do pensamento. E relaciona também
o delírio à fantasia de uma forma inequívoca ao singularizá-lo “pelo fato de que nele umas
‘fantasias’ alcançaram o governo supremo, vale dizer, ganharam crença e cobraram influxo
sobre a ação” (1907, p.38).
Dessa forma, Freud considera que fantasias precursoras se encontrariam subjacentes à
própria formação delirante, sendo aquelas substituições de recordações recalcadas devido à
censura (1907). Portanto, neste momento da obra freudiana, o delírio ganha um estatuto muito
próximo a uma formação do inconsciente, como também podemos observar na conexão que
estabelece – “sonho e delírio provêm da mesma fonte: o recalcado” (1907, p.52).
Assim, podemos constatar, através da seguinte citação, como Freud articula as
fantasias ao delírio:
“o determinismo inconsciente somente poderá conseguir aquilo que ao mesmo tempo
satisfaça ao determinismo científico consciente. Os sintomas do delírio – tanto fantasias como
ações – são resultados de um compromisso entre as correntes anímicas, e em um
compromisso se leva em conta as demandas de cada uma das partes” (1907, p.44).
Contudo, a questão a respeito do delírio nesse texto de Freud se complica um pouco
mais porque afirma, em uma pequena nota de rodapé, que o delírio de Hanold teria que ser
designado como histérico e não paranóico, por não haver nenhum indício de paranóia (1907).
Jean-Claude Maleval, em sua obra Loucuras histéricas e psicoses dissociativas, busca
justamente resgatar a categoria nosográfica de loucura histérica, por também considerar o
delírio histérico como uma formação do inconsciente, ou seja, como um retorno do recalcado.
Levando-o a propor, inclusive, uma distinção entre o delírio histérico – efeito do retorno do
recalcado – e o delírio das psicoses – efeito da foraclusão do Nome-do-Pai – já baseado na
formulação de Lacan. Assim, busca perpetuar a categoria de loucura histérica que caíra em
desuso nas nosografias ao longo do século XX, inclusive para a própria psicanálise (Maleval,
1996).
Entretanto, mesmo havendo essa indicação de que o delírio de Hanold seja histérico, o
importante são as pertinentes observações de Freud a respeito do delírio de uma maneira
27
geral. Parecendo-nos, inclusive, que vários desses aspectos serão retomados pelo GIFRIC,
como veremos no terceiro capítulo.
E, para encerrar essa pequena incursão por esse texto de Freud, ressaltamos a questão
da crença que o sujeito deposita em seu delírio, a ponto de amá-lo como a si mesmo:
“Se o enfermo crê com tanta firmeza em seu delírio, isso não se produz por um transtorno de
sua capacidade de julgar nem se deve ao que há de errôneo em seu delírio. Antes o contrário,
em todo delírio se esconde um granito de verdade; há nele algo que realmente merecia crença,
e essa é a fonte da convicção do enfermo, que portanto está justificada nessa medida” (1907,
p.67).
Portanto, Freud, em sua concepção a respeito do delírio, desloca a questão da falha na
capacidade de julgar que o delirante apresentaria, como nos aponta toda tradição psiquiátrica.
A obra de Kraepelin, por exemplo, define o falseamento do juízo como o pilar de toda
construção delirante com sua conseqüente crença inabalável. Entretanto, a posição de Freud se
dirige muito mais para a questão da verdade que estaria em jogo no próprio cerne do delírio
do que para a questão do juízo. Como retorno do recalcado ou do foracluído – conforme se
trata de um delírio na histeria ou na paranóia, respectivamente –, o que importa é o que se
torna presente no delírio, ou seja, algo da ordem da verdade para o sujeito.
Em 1911, Freud persevera em seu estilo ao abordar a psicose a partir da tessitura de
um texto publicado. Neste momento, explora o livro autobiográfico do magistrado alemão
Daniel-Paul Schreber, Memórias de um doente dos nervos, produzindo, então, o primeiro
grande texto da tradição psicanalítica a respeito da psicose: Observações psicanalíticas sobre
um caso de paranóia (Dementia paranoides) descrito autobiograficamente.
Schreber, em seu livro, não só escreveu sobre o processo de construção de seu delírio
paranóico, o que lhe proporcionou sustentar-se de certa forma no laço social, como também
conquistou, a partir deste escrito, a suspensão da custódia que lhe pesava no asilo psiquiátrico,
já que se encontrava internado há oito anos.
E Freud, ao fazer de um livro de memórias de um psicótico um caso clínico – o caso
Schreber, como é comumente designado – introduz no relato desta experiência justamente a
posição do sujeito em jogo na psicose. E para tal, segundo Cabas, Freud parte de duas
hipóteses – homossexualidade e projeção – para alcançar a causa da brutal experiência
psicótica de desmoronamento do mundo, assim como sua reconstrução. Produzindo, talvez, a
sua maior contribuição a propósito para o estudo da psicose, em particular da paranóia,
incluindo aí a sua original concepção a respeito do delírio (Cabas, 1982).
28
Faremos, então, a seguir um breve percurso entremeando alguns pontos da vasta
história clínica de Schreber com a abordagem de Freud a respeito do nosso tema: o lugar do
delírio na direção do tratamento psicanalítico da psicose.
Daniel-Paul Schreber é um advogado bem-sucedido na Alemanha da segunda metade
do século XIX, galgando importantes postos na magistratura. Contudo, diante de sua derrota
em uma disputa eleitoral para ocupar uma cadeira no Parlamento, apresenta pouco tempo
depois um grave quadro hipocondríaco que o leva a ser internado pela primeira vez,
aproximadamente por meio ano, na clínica psiquiátrica da Universidade de Leipzig, sob os
cuidados do Prof. Dr. Paul Flechsig. Nesta época, contava com 42 anos, e, como houve
remissão da sintomatologia, retomou o trabalho e a vida conjugal, embora o casal tenha
permanecido sem filhos, apesar de grande anseio. E o que resta deste período, por parte dos
Schreber, é uma profunda gratidão ao eminente médico.
Dez anos depois, Schreber é novamente internado em Leipzig por ser acometido por
um surto psicótico, poucos meses após a sua nomeação como juiz-presidente da Corte de
Apelação de Dresden, ou seja, o mais alto posto que poderia ocupar na hierarquia jurídica. No
intervalo entre a nomeação para o cargo e seu curtíssimo exercício, Schreber apresenta um
sonho relevante no qual a sua enfermidade retorna e, principalmente, uma fantasia que lhe
surge em estado hipnagógico, que se apresenta como “a representação do formosíssimo que é
sem dúvida ser uma mulher submetida ao coito” (Freud, 1911, p.14).
No período inicial do surto, Schreber apresenta uma severa insônia, idéias
hipocondríacas, como, por exemplo, a de que seu cérebro estaria amolecendo, além de idéias
de perseguição, estados de hiperestesias e hipersensibilidade à luz e a ruídos. Após breve
estada na clínica do Dr. Flechsig em Leipzig, é transferido para o sanatório de Sonnenstein,
passando aos cuidados do Dr. Weber. Neste local, permanecerá seus próximos oito anos em
um longo e árduo trabalho psíquico para produzir uma resposta ao real que irrompe.
Em Sonnenstein, há uma piora no quadro clínico de Schreber devido ao
transbordamento ocasionado por fenômenos alucinatórios verbais, mas que se expressam
também por sensações cenestésicas, como, por exemplo, manipulações corporais. Isso se dá
de tal forma, que realiza várias tentativas de suicídio como a única saída possível para o seu
sofrimento. Nesta fase, começam a brotar também as primeiras idéias persecutórias
relacionadas ao Dr. Flechsig e a Deus.
29
Então, em um primeiro tempo do complexo delírio de Schreber – cujos aspectos,
somente alguns serão abordados – havia uma aliança entre o médico e Deus para transformálo em uma mulher passível de toda sorte de sevícias por parte principalmente de Flechsig, ou
para, simplesmente, deixá-lo de lado, abandonado à corrupção. E, para se alcançar essa
mudança de homem em mulher, Schreber deveria ser emasculado, o que o indignava
profundamente por julgá-la contrária à ordem do universo.
Schreber, em seu processo delirante, sofreu profundas intervenções no corpo a ponto
de ter vivido por muito tempo com a sensação de estar sem vários órgãos, especialmente os da
caixa torácica, como também perceber os outros como verdadeiros simulacros: “homens feitos
às pressas”. Chega a ver não só o comunicado no jornal a respeito de sua morte como o seu
próprio funeral, porque fora vítima de um “assassinato de almas” (1911).
Enfim, neste primeiro tempo do delírio, ele vivencia o extremo de uma desestruturação
subjetiva, na medida em “que o lugar de Schreber é precisamente o lugar do morto”, ou seja,
um lugar que representa a morte do sujeito (Cabas, 1982, p.271). Alertando-nos sobre a
fragilidade de toda subjetividade humana, porque esta é sempre o resultado de uma
construção. Contudo, em um segundo tempo, há uma reordenação subjetiva em Schreber
devido a sua aceitação em ser transformado em mulher em prol de um resgate da bemaventurança do mundo.
Assim, no segundo tempo do delírio, Schreber, através dos nervos, recebe uma
mensagem divina que lhe revela o seu destino em promover a salvação dos homens. Neste
delírio, o lugar de Deus é dimensionado por salas, ante-salas, além de uma hierarquização em
que há um Deus superior e outro inferior, e que tem como característica particular, o fato de
não compreender os homens vivos e apenas se comunicar com poucos privilegiados através de
nervos superexcitados, como os de Schreber, caso em que também se encontrariam os profetas
bíblicos.
Freud remete-se à sentença judicial para resumir o conteúdo do sistema delirante de
Schreber que se considera “chamado a redimir o mundo e devolver-lhe a bem-aventurança
perdida. Porém crê que somente conseguirá após ser transformado de homem em mulher”
(1911, p.17). Portanto, a fase final do delírio de Schreber assume um caráter místico, cujo
conteúdo é o da transformação de seu corpo em um corpo feminino para poder procriar, com a
intervenção divina, uma nova geração que salve a humanidade.
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Freud posiciona-se diferencialmente em relação aos psiquiatras que assistiram
Schreber ao afirmar que “a mudança em mulher (emasculação) foi o delírio primário, julgado
no começo como um ato de grave dano e de perseguição, e que somente secundariamente
entrou em relação com o papel de redentor” (1911, p.18). Enquanto para o Dr. Weber, por
exemplo, o papel de redentor é que seria o principal no delírio schreberiano, a emasculação
vindo a ser apenas um meio para alcançar aquele fim.
Portanto, o psiquiatra correlaciona o delírio de Schreber ao mito religioso cristão – um
dos vetores da própria constituição do Ocidente – diluindo com esse procedimento a
particularidade do sujeito ao generalizar a construção delirante a um dado que se dispõe como
universal: a encarnação do Messias. Enquanto Freud opera no sentido de escutar a
singularidade do sujeito em detrimento de um dado universal a priori que generalize
justamente a questão do sujeito.
Então, para Freud, houve a transformação de um delírio persecutório de cunho sexual
em um delírio religioso de grandeza, sendo o Dr. Flechsig, seu primeiro médico, quem
originalmente ocupava a função de perseguidor, depois substituído por Deus. E Freud articula
a natureza primária da fantasia de emasculação à representação já citada acima – o prazer de
ser uma mulher submetida ao coito – que aflorara em Schreber entre o estado de sono e
vigília, previamente ao desencadeamento do surto psicótico.
Esta fantasia sustenta toda a construção delirante de Schreber como o punctum saliens
até se desdobrar em sua transformação em mulher, sobrevivendo inclusive no período de seu
restabelecimento. Em momentos íntimos, Schreber apresentava-se travestido de mulher diante
do espelho, verificando a sua feminização oriunda da intervenção dos nervos divinos em seu
corpo (1911).
Freud articula a presença de uma fantasia com a produção do próprio delírio como um
“ponto saliente” que perpassa todo o processo do sujeito ao se deparar com o real. Dessa
forma, uma fantasia privilegiada encontra-se no bojo do próprio delírio, sustentando-o;
mesmo quando um longo desbastar se opera na torrente delirante, algo dessa presença real se
perpetua. Problemática que será retomada pelo GIFRIC em sua abordagem da clínica da
psicose, como veremos no terceiro capítulo.
No texto freudiano, há um aspecto muito intrigante a ser ressaltado que é a utilização
do termo fantasia também para nomear a necessidade lógica da emasculação no processo
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delirante de Schreber. Esse significante tão crucial na constituição do delírio schreberiano é
veiculado por Freud através da expressão: “fantasia de emasculação” (1911).
Mas, afinal, um delírio consiste em quê? Um desdobrar incessante de fantasias? Como
em Schreber poderíamos constatar o deslizar desse movimento através da seguinte seqüência
de fantasias fundamentais: a cena do coito, a emasculação, a redenção da humanidade,
engendrando uma narrativa delirante que transforma o homem Schreber em mulher de Deus
para gerar produtos imaculados?
Em relação à etiologia da paranóia, Freud imputa como fator desencadeante do surto
psicótico de Schreber a irrupção de uma moção homossexual através da emergência da citada
fantasia de desejo, na qual ocupa uma posição feminina. Com o desdobrar de sua psicose,
Schreber infere que o Dr. Flechsig é quem ocupa a posição masculina de sua fantasia. Freud
reconhece em seu texto o desconhecimento a respeito das razões pelas quais uma fantasia
homossexual passiva derivou-se em um delírio persecutório. Entretanto, introduz o complexo
paterno no mecanismo da paranóia justamente ao relacionar uma transferência de moções
pulsionais ao perseguidor Dr. Flechsig oriunda da série de figuras de autoridade que remonta
ao pai, ao único e mais velho irmão, que se suicida, e a Deus.
Mas, Freud, mesmo articulando o complexo paterno à fantasia de desejo homossexual,
admite que não há nesta a especificidade necessária para dar conta da distinção entre a
paranóia e as outras formas de neuroses. Para tal, pressupõe que a formação do sintoma e o
próprio recalque são distintos na paranóia, quando, devido à fantasia central de desejo, o
sujeito reage através da formação de um delírio persecutório. A partir da frase nuclear da
fantasia de desejo homossexual: eu (um homem) o amo (a um homem), Freud constrói a
gramática pulsional do delírio persecutório, da erotomania, do delírio de ciúmes e da
megalomania (1911).
Além disso, a reação que engendra o delírio paranóico não se restringe mais ao
mecanismo de projeção, como considerava Freud em seus primeiros textos. No caso Schreber,
reconsidera a sua primeira abordagem em relação à projeção ao afirmar que: “não era correto
dizer que a sensação interiormente sufocada é projetada para fora; mas melhor inteligirmos
que o cancelado de dentro retorna desde fora” (1911, p.66). Afirmação muito bem lida por
Lacan, a ponto de lhe permitir fundamentar o conceito de foraclusão do Nome-do-Pai como o
mecanismo gerador específico da psicose, como veremos no segundo capítulo.
32
E Freud realmente avança a teoria psicanalítica a respeito do delírio ao considerar que
o desarranjo subjetivo que ocorre na paranóia – “a catástrofe do mundo” – se deve a um
processo particular de recalque que produz um desatamento da libido em relação às pessoas e
coisas antes amadas. Processo mudo que somente admite sua aferição no ruidoso
desdobramento subseqüente: o restabelecimento que reconduz a libido em direção aos objetos
outrora abandonados através justamente do delírio (1911).
Dessa forma, Freud propõe a inovadora concepção da psicanálise em relação ao delírio
ao afirmar que “o que nós consideramos a produção patológica, a formação delirante, é, na
realidade, o intento de restabelecimento, a reconstrução” (1911, p.65). Ou seja, o delírio
propriamente dito, o trabalho de construção do delírio, Wahnbildungsarbeit, encontra-se em
um segundo tempo em relação à falha particular que estrutura o paranóico: o radical
desinvestimento pulsional que se processa em um dado momento da história do sujeito.
Assim, a posição freudiana, ao escutar o delírio de uma outra perspectiva, diferencia-se
da concepção psiquiátrica tradicional, que detecta nele apenas um índice patológico, nunca
reconhecendo que, na própria dinâmica do discurso delirante, há a possibilidade de se resgatar
a trilha na qual emerge o sujeito.
1.3 Perspectivas da produção freudiana a respeito da psicose
A trajetória freudiana a respeito da psicose talvez possa ser lida através dos três
grandes momentos que caracterizam o próprio desenrolar da invenção da psicanálise: a teoria
da defesa como o ponto de partida, a primeira e a segunda tópicas. São momentos que podem
ser recortados como distintos, embora mantenham uma articulação orgânica, confundindo-se
com a própria construção da metapsicologia freudiana.
No primeiro tempo, Freud já está determinado a delimitar o mecanismo gerador
específico da psicose diferentemente do que ocorre na neurose, tarefa que, aliás, o
acompanhará em todo o seu percurso sem que alcance, no entanto, o sucesso desejado. Mas
lançará uma inovadora perspectiva, como já encontramos em sua primeira tese: na psicose
33
haveria uma rejeição (Verwerfung) muito mais radical da representação sexual, insuportável
em contraponto ao recalque (Verdrängung) da mesma representação na neurose.
No segundo tempo, que compreende a produção teórica dentro da perspectiva da
primeira tópica, Freud não só articula a psicose com a sua original teoria dos sonhos –
portanto, com o desejo e a fantasia – como também nos oferece a sua concepção a respeito do
delírio como uma tentativa de cura que não será suplantada no restante de sua obra.
O terceiro tempo é o efeito da introdução da pulsão de morte na teorização da clínica
que a renova e lhe confere mais capacidade lógica para enfrentar os desafios que vão sempre
surgindo no caminho da psicanálise. Então, neste terceiro e último item do capítulo dedicado a
Freud, abordaremos, inicialmente, algumas formulações na transição entre a primeira e a
segunda tópicas, como também questões mais específicas do período que compreende a
segunda tópica.
Em 1915, Freud escreve diversos textos que foram agrupados por Strachey como
“artigos sobre a metapsicologia”. Dentre eles, encontramos O Inconsciente, no qual Freud
aborda a esquizofrenia justamente para ampliar o alcance de seu propósito teórico deste
momento por que passa sua obra. Reconhecendo, juntamente com Abraham, que nesta
manifestação da psicose haveria uma antítese entre o eu e o objeto, não se encontrando
nenhuma relevância a esse respeito nas neuroses de transferência: fobia, histeria e neurose
obsessiva.
Nas neuroses de transferência, haveria uma renúncia ao objeto “real” devido a uma
frustração, acarretando com isso um retorno da energia libidinal ao objeto “fantasiado” e até
mesmo ao objeto “recalcado”. Uma grande parcela do investimento objetal permanece
inalterada nas neuroses, a ponto de Freud afirmar que justamente por haver essa energia ligada
ao objeto que a transferência analítica é possível (Freud, 1915).
Na esquizofrenia, após o “recalque”, a libido retirada do objeto “real” não é mais
investida em um novo objeto, mas retorna para o próprio eu. Portanto, o investimento objetal
é abandonado e, neste caso, reconfigura-se um narcisismo primitivo. Gerando uma série de
conseqüências devido à incapacidade de transferência na esquizofrenia, tais como:
inacessibilidade ao processo analítico, repúdio ao mundo exterior, hipercatexia do eu, e por
fim, completa apatia em relação aos objetos em geral (1915).
Freud observa que muito do que é expresso por um esquizofrênico está recalcado em
um neurótico. Para desvendar essa peculiaridade da psicose – o famoso “inconsciente a céu
34
aberto” –, Freud apóia-se abertamente na fala do esquizofrênico por ser muitas vezes
construída de forma “afetada”. Identifica a “fala dos órgãos” ou “fala hipocondríaca” como
uma característica marcante entre os esquizofrênicos, deduzindo daí uma fórmula:
“na esquizofrenia as palavras são submetidas ao mesmo processo que desde os pensamentos
oníricos latentes cria as imagens do sonho, e que temos chamado o processo psíquico
primário. São condensadas, e por deslocamento se transferem umas às outras seus
investimentos completamente; o processo pode avançar até o ponto em que uma só palavra,
idônea para isso por múltiplas referências, tome sobre si a subrogação de uma cadeia íntegra
de pensamentos” (1915, p.196).
Assim, Freud não só descreve acuradamente um fato clínico muito importante da
esquizofrenia como também afina a sua primeira consideração a respeito do retraimento do
investimento objetal na psicose. A representação consciente que compõe o sistema Pcs é
dividida em uma representação de coisa (Sachvorstellung) e uma representação de palavra
(Wortvorstellung), enquanto no sistema Ics encontram-se apenas as representações de coisa:
oriundas dos restos mnêmicos. Portanto, o que diferencia os dois sistemas não é conteúdo
representacional propriamente, mas a localização da representação, sendo necessária uma
ligação entre uma representação de objeto inconsciente com uma representação de palavra
pré-consciente para que a “coisa” se articule (1915).
Dessa forma, o processo primário que caracteriza o inconsciente é transposto ao préconsciente em uma organização mais elaborada através da palavra. O recalque opera
justamente impedindo a tradução das representações de coisa em representações de palavra. A
representação de coisa mantém-se em estado de recalque ao haver a instauração de uma
barreira entre os sistemas Ics e Pcs .
Entretanto, Freud, em relação à psicose, se interroga se o processo de recalque que
acabamos de citar procede da mesma forma. E sugere que a representação de palavra
permanece hipercatexizada em detrimento da representação de coisa em decorrência da busca
de reinvestimento do mundo, como já propusera no caso Schreber. “Esses empenhos
pretendem reconquistar o objeto perdido, e muito bem pode suceder que com este propósito
empreendam o caminho até o objeto passando por seu componente de palavra, devendo não
obstante conformar-se depois com as palavras no lugar das coisas” (1915, p.200). Freud, ao
concluir o texto, aproxima de forma inquietante o pensar filosófico que toma as coisas
concretas como abstratas, ao pensamento esquizofrênico.
35
Em 1917, Freud, ao retomar a sua construção a respeito da teoria dos sonhos, utiliza
em larga medida a clínica da psicose para poder esclarecer determinados pontos do tema em
questão. Aqui, deter-nos-emos em um de seus comentários sobre o delírio nesse texto
intitulado Complemento Metapsicológico à Doutrina dos Sonhos.
Freud relaciona o delírio como um dos três caminhos possíveis ulteriores ao encontro
de uma moção de desejo que se formou no Pcs como um desejo onírico (uma fantasia que
cumpre um desejo), que permite a expressão de uma moção inconsciente dentro do material
dos restos diurnos pré-conscientes. Os outros dois caminhos posteriores a esse momento do
processo de formação do sonho seriam uma descarga motora direta e o próprio desdobrar de
um sonho noturno. Portanto, o delírio seria a irrupção na vida de vigília de uma moção
pulsional que parte do Pcs, cujo conteúdo é o cumprimento de um desejo inconsciente.
Freud compara os dois aspectos fundamentais do trabalho de um sonho – a formação
da fantasia de desejo e sua marcha regressiva até a alucinação – ao que ocorre na confusão
alucinatória aguda (“amência de Meynert”) e na fase alucinatória da esquizofrenia. “O delírio
alucinatório da amência é uma fantasia de desejo claramente reconhecível, que amiúde se
ordena por inteiro como um cabal sonho diurno. De um modo geral poderia falar-se de uma
psicose alucinatória de desejo, atribuindo-a ao sonho e à amência por igual” (Freud, 1917, p.
228).
Assim, Freud mantém ao longo de sua trajetória a perspectiva de que o delírio em sua
formação relaciona-se estreitamente com um desejo inconsciente através de uma fantasia que
cumpriria a função de ponto de ligação. Ou seja, entre uma moção pulsional inconsciente e a
sua expressão delirante propriamente dita, a fantasia estaria envolvida nesse desenrolar. E
nesse desdobramento, a própria fantasia seria submetida ao processo de censura que,
secundariamente, produz como resultado o delírio em sua forma acabada.
Em 1920, como frisamos acima, instaura-se uma torção na obra freudiana com a
escritura da pulsão de morte através da publicação do texto Além do princípio do prazer, que
se desdobra três anos depois na formulação da segunda tópica. Quando a partir de uma nova
tripartição da estrutura subjetiva – eu, supereu e isso – como Freud escreve em O eu e o isso,
decanta-se uma releitura da clínica psicanalítica no que tange também à psicose.
Em 1924, Freud produz dois textos sob a influência desta recente construção
metapsicológica, entretanto, não abandona totalmente as contribuições da primeira tópica –
consciente, pré-consciente e inconsciente. Assim, Neurose e Psicose e A Perda da Realidade
36
na Neurose e na Psicose são, de alguma maneira o coroamento, embora inacabado, da
trajetória freudiana a respeito da psicose.
Em Neurose e Psicose, Freud propõe, logo de saída, como a mais importante diferença
entre a neurose e a psicose, os desenlaces do conflito, que, na neurose, ocorrem entre o “eu” e
o “isso”, e na psicose, entre o “eu” e o “mundo exterior”. Nas neuroses de transferência
(histeria, neurose obsessiva e fobia), o “eu” não permite o escoamento motor de uma moção
pulsional do “isso” através do recalque, embora o recalcado retorne pela via do compromisso
que é o sintoma. Contudo, o “eu” age sob os ditames do “supereu”, cuja origem se encontra
nos influxos vocalizados pelos pais, ou seja, como herança do complexo de Édipo (Freud,
1924a).
Assim, o “supereu” é produto de uma dupla herança: tanto a paterna quanto a materna,
sendo não menos herdeiro do “isso” pulsional. Em um primeiro tempo, constitui-se um
“supereu” mais arcaico que se refere ao primeiro Outro do sujeito – a mãe – por esta
introduzir o infans na linguagem. A lei aqui é da linguagem, e ao submeter o sujeito ao
capricho materno não lhe garante a entrada no discurso. Este seria o caso da psicose.
Somente com a intervenção da função paterna, em um segundo tempo, através da
metáfora paterna, que o sujeito submete-se à lei do discurso, concluindo assim a travessia
edípica. No entanto, como a lei paterna é falha, permite a irrupção da voz do supereu que, no
fantasma, impera como mandato de gozo.
Enfim, não avançaremos com os desdobramentos da questão do supereu para a clínica
psicanalítica, porque escaparia ao nosso tema. O importante é frisar que, nas neuroses de
transferência, o “eu” leva a cabo um conflito com o “isso” a favor do “supereu” e da realidade
dita exterior.
Todavia, a diferença clássica entre uma realidade psíquica e uma realidade objetiva,
37
afrouxamento no limite entre as duas realidades. Ainda assim, Freud utiliza dois significantes
para designar a realidade de que se trata em psicanálise: Wircklichkeit e Realität. O primeiro
termo é traduzido por Lacan como operatividade, enquanto o segundo por realidade psíquica.
A operatividade relaciona-se tanto à operação simbólica do significante na estrutura como
também à operatividade do real, ou seja, ao resto inassimilável produzido pela própria cadeia
significante, mas que, por estar fora da simbolização, retorna como causa (Souza, 1996).
A realidade psíquica é fruto da transformação dos signos de percepção –
Wahrnemungszeichen, isto é, o real – em uma realidade regida pelo significante, efeito da
própria estrutura de linguagem. Desse modo, relacionada ao fantasma. E a realidade psíquica
não estaria subordinada a uma verificação que a confrontaria a uma realidade empírica
considerada mais verdadeira. Porque quem se divide é o próprio sujeito diante de uma
realidade que se presentifica defasada entre o real e o significante. Assim, a realidade psíquica
é justamente a construção do fantasma como resposta à divisão do sujeito (1996).
Quanto à psicose, Freud reporta-se novamente em Neurose e Psicose à confusão
alucinatória aguda, cuja característica principal é a não-percepção do mundo exterior.
Contudo, manteremos a terminologia empregada por Freud em nossas considerações apesar
das ressalvas realizadas acima em relação tanto ao supereu como à realidade.
Freud recapitula, então, que o mundo exterior governa o “isso” por duas vias:
percepções atuais, que são sempre renováveis; e o tesouro mnêmico das percepções anteriores
que formam o “mundo interno”, componente do “eu”. E na amência de Meynert haveria tanto
a recusa das novas percepções como dos traços mnêmicos armazenados, criando-se a partir de
moções de desejo do “isso” um novo mundo, efeito da ruptura do “eu” com o “mundo
externo” devido a uma grave frustração (Freud, 1924a).
Freud compara a gênese das formações delirantes a um remendo colocado no lugar
onde originariamente se produziu um rasgo no vínculo entre o “eu” e o “mundo exterior”. E
reafirma que os fenômenos do processo patógeno que caracterizam esse conflito são ocultados
pelo intento de cura ou reconstrução, tese a respeito do delírio já exposta na análise do
presidente Schreber, embora se encontrando aqui sob a luz da segunda tópica.
Poderíamos pensar que o delírio é construído justamente para ressuturar a fronteira
entre o “aparelho” psíquico e o real? Isso porque a realidade dita exterior é exterior ao
"aparelho” anímico, ou seja, pertencente ao registro do real. O delírio proporcionaria então
uma amarração entre as três dimensões do sujeito? Uma ficção totalizante, portanto,
38
imaginária, estruturada obviamente pelos significantes que compõem o simbólico no qual o
sujeito está imerso, em resposta à irrupção de um fora-sentido?
Freud também ordena em Neurose e Psicose a “nosografia” psicanalítica ao considerar
a neurose de transferência correspondente ao conflito entre o “eu” e o “isso”; a psicose, ao
conflito entre o “eu” e o “mundo exterior”, e por distinguir, no campo das psicoses, a
melancolia como o paradigma da neurose narcísica, cujo conflito ocorre entre o “eu” e o
“supereu”. Freud considera a possibilidade de deformações, partições e até mesmo
segmentações do “eu”, para dar conta de uma não-ruptura total do “eu” em relação às outras
instâncias psíquicas na situação em que o sujeito não adoece, apesar de os conflitos que
sempre se apresentam (1924a).
Freud conclui o texto questionando-se a respeito de qual mecanismo ocorre afinal na
psicose, análogo ao recalque, que produziria o desenlace entre o “eu” e o “mundo exterior”. E
adianta, pelo menos, que estaria relacionado a um débito do investimento enviado pelo “eu”
aos objetos.
Em A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose, Freud avança suas considerações,
afirmando que a perda da realidade (Realität) transcorre em ambas as formas clínicas, com o
diferencial de que, inicialmente, o “eu”, na neurose sufoca um fragmento do “isso” a favor da
realidade; e na psicose, o “eu”, a serviço da vida pulsional (isso), se retira de um fragmento da
realidade. Entretanto, na constituição da própria neurose, após o recalque de uma moção
pulsional, ocorre uma reação contra este gerando um certo fracasso no recalcamento devido à
busca de ressarcimento dos setores prejudicados do “isso”. Portanto, na neurose, há também
um afrouxamento do nexo com a realidade (Freud, 1924b).
A psicose também se estrutura em dois tempos lógicos, segundo Freud. No primeiro,
há a perda do vínculo com a realidade, e no segundo tempo, apresenta tentativas de reparação
do laço com a realidade, embora não limitando o “isso” como é o intento da neurose, mas,
sim, criando uma nova realidade. Assim, em ambas estruturas clínicas, há um reinvestimento
do “isso” em detrimento da realidade, diferenciando-se apenas na organização do processo – a
neurose não desmente a realidade, limita-se a não querer saber nada dela, enquanto a psicose a
rejeita e busca substituí-la (1924b).
O fato estrutural ressaltado por Freud é a cisão do eu – Ichspaltung – presente em
ambas estruturas clínicas: neurose e psicose. E mesmo visando uma completude, que é sempre
ilusória, o eu constitui-se submetido ao descompasso entre a realidade e as exigências
39
pulsionais. Em Lacan, a cisão do eu é tratada como divisão do sujeito, que, cindido, divide-se
entre moi e je.
O moi representa a consistência imaginária do eu, e o je, a partícula do código
lingüístico que apenas aponta a pessoa que enuncia “eu”, necessitando de um complemento
para emitir a mensagem do sujeito. Portanto, o sujeito se divide entre uma instância
imaginária que busca a completude e outra instância que denuncia sempre a falta constituinte
do sujeito em psicanálise (Souza, 1996).
E quanto ao material utilizado para o remodelamento da realidade – tarefa do delírio –
Freud indica que são os sedimentos psíquicos que marcaram a trajetória do sujeito através de
traços mnêmicos, representações, juízos. Acrescenta que as próprias alucinações que ocorrem
na psicose são radicais produções perceptivas para ratificar a nova realidade construída.
Entretanto, esse processo de plasmar a realidade via o delírio não transcorre sem angústia e
resulta também em um certo fracasso que gera insatisfação, como o recalque na neurose.
Freud, em seu esforço em delimitar os pontos de contato e de fuga entre neurose e
psicose, assinala uma convergência importante ao ressaltar que a neurose também busca
substituir a realidade indesejada por outra mais de acordo com o seu desejo, recorrendo, para
tal, ao “mundo da fantasia”, definido por Freud como uma espécie de reservatório segregado
do mundo exterior real quando da instauração do princípio de realidade. Assim, a partir deste
“mundo da fantasia”, a neurose se abastece do material mnêmico de uma pré-história real
mais satisfatória para instituir suas neoformações de desejo (Freud, 1924b).
A psicose também recolhe material desse “mundo da fantasia” para edificar sua neorealidade, embora desloque o mundo exterior de uma forma mais radical, enquanto a neurose
conserva um fragmento de realidade. Portanto, ambas estruturas clínicas relacionam-se ao
campo da fantasia não só no que se refere à perda da realidade como principalmente à
construção de um substituto para esta perda.
Ao concluir este capítulo, constatamos que Freud mantém em aberto o enigma a
respeito das relações entre o delírio e a fantasia. Enigma soterrado pela escolástica
psicanalítica ao consagrá-los como excludentes – delírio e fantasia – por pertencerem a
campos distintos: psicose e neurose. Esta questão, como veremos no capítulo três e quatro,
será retomada pelo GIFRIC em sua proposta teórico-clínica na direção de tratamento a
psicóticos.
40
2 LACAN
2.1 O diálogo de Lacan com a psiquiatria a propósito do delírio
Lacan, ao iniciar sistematicamente seu ensino na década de cinqüenta do século XX, já
havia acumulado uma longa experiência como psicanalista – e porque não dizer como
psiquiatra, uma vez que nunca desmereceu o valor que concedia à sua formação médica.
Tanto que no início da década de trinta, Lacan encontrava-se no centro do debate psiquiátrico
francês através de alguns textos a respeito da psicose paranóica – como, por exemplo, O
problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranóicas da experiência e
Motivos do crime paranóico: o crime das irmãs Papin, e, principalmente, através da
publicação de sua tese em 1932, intitulada Da Psicose Paranóica em suas relações com a
Personalidade, na qual apóia-se no caso Aimée para sustentar sua proposta a respeito da
paranóia de autopunição, dentre outras contribuições.
Em 1953, Lacan, ao realizar “o retorno a Freud” através do comentário crítico do texto
freudiano, utilizando inúmeras referências teóricas, iniciou seu primeiro Seminário já
apresentando a estrutura triádica do real, simbólico e imaginário para abordar o sujeito de que
se trata na experiência psicanalítica (Lacan,1979 [1953-54]). Assim, desde o princípio, a
démarche lacaniana caracteriza-se por construir a tese de que o inconsciente é estruturado
como uma linguagem, utilizando, por exemplo, as figuras de retórica: metáfora e metonímia –
termos oriundos da lingüística de Jakobson – para delimitar os mecanismos de condensação e
de deslocamento, propostos por Freud como processo primário inconsciente.
Nasio, em relação a essa questão, reforça a concepção lacaniana de que os fenômenos
de linguagem não são tributários da retórica, pelo contrário, a condensação e o deslocamento
do sujeito do inconsciente é que proporcionam as figuras de retórica – metáfora e metonímia –
presentes na escritura literária. A metáfora, por exemplo, “é, por ser linguagem, o estilo de um
sujeito que só existe no e pelo seu representante” (Nasio,1997, p.10). Assim, o inconsciente se
estrutura como cadeia significante recalcada e se presentifica no discurso do ser falante
41
através de suas ditas formações: sonho, ato falho, chiste e sintoma; delimitando-se aqui o
recalque como mecanismo fundador dessa posição subjetiva que é a neurose.
Quanto à clínica da psicose, Lacan, em seu Seminário de 1955-56, intitulado As
Psicoses, comenta, inicialmente, que abordará a “questão” das psicoses e não o “tratamento”
das psicoses, e salienta que Freud também não aborda a questão do tratamento da psicose. E
concede maior ênfase à paranóia em relação à esquizofrenia tanto como Freud, porque aquela
forma clínica apresenta uma situação um pouco mais privilegiada que é a de um nó, questão
que se desdobrará ao longo de todo seu ensino não se restringindo apenas ao tema da paranóia
como reconhece nesse Seminário (Lacan, 1988 [1955-56]).
Lacan critica a concepção psiquiátrica que busca uma compreensibilidade
psicogenética dos fenômenos psicóticos, como a noção caracteriológica de anomalia da
personalidade, que tenta definir a paranóia. A crítica se refere especialmente à noção de
“relação de compreensão” instituída pela psicopatologia de Jaspers (1988 [1955-56]).
Embora
a
crítica
lacaniana
recaia
acertadamente
sobre
o
excesso
de
compreensibilidade que Jaspers propõe em sua análise dos fenômenos psíquicos em geral, não
podemos deixar de reconhecer, como vimos no primeiro capítulo, que a respeito do delírio
primário – Wahn Ideen – Jaspers postula a ocorrência, neste caso, de um limite ao método
compreensivo. Aliás, o posicionamento de Jaspers, quanto a essa constatação, foi duramente
criticado por vários dos seguidores da escola fenomenológica de Heidelberg, dentre eles, Kurt
Schneider (Leme Lopes, 1982).
Lacan retoma o ensino de Clérambault por este ter tido o cuidado de demonstrar o
caráter fundamentalmente anideico – não conforme o trilhamento de uma seqüência de idéias
– dos fenômenos que se apresentam na psicose. Aspecto que Lacan valoriza por estar em
consonância com o próprio movimento estrutural da psicanálise, que afirma não haver
psicogênese.
Lacan ressalta que mais importante do que o inconsciente na psicose encontrar-se na
superfície a céu aberto, ou seja, não articulado pelo sujeito, é o fato de ele aparecer no real.
Ponto fundamental da clínica com psicóticos que levará Lacan articular tanto a contribuição
de Freud – especialmente através do caso Schreber – como a de Clérambault – através da
síndrome do automatismo metal – para ordenar a sua concepção a respeito do
desencadeamento da psicose, assim como seus principais fenômenos (1988 [1955-56]).
42
A assunção do sujeito ao campo do Outro é conquistada através de uma afirmação
primordial – Bejahung – na ordem simbólica, que pode faltar – como no caso da psicose. Isto
é, o sujeito na psicose rejeita o acesso ao seu mundo simbólico de um elemento estrutural
diferenciador que é a castração, enquanto na neurose não a rejeita, mas a recalca. E o que é
rejeitado pelo sujeito no simbólico reaparece no real. Sendo esta a tese fundamental de Lacan
a respeito tanto da estruturação como do próprio desencadear da psicose.
E retornando à paranóia, Lacan faz uma crítica contundente à definição de Kraepelin,
que a caracteriza por apresentar um desenvolvimento insidioso que produz um sistema
delirante de evolução contínua, durável e impossível de ser abalado, conservando a clareza e a
ordem do pensamento. Em relação aos dados da clínica, nada mais falso, afirma Lacan, por
conta da evolução em acessos, fases, pontos de ruptura no próprio delírio, em decorrência de
abalos que o sujeito apreende na rede significante na qual está imerso (1988 [1955-56]).
Para refutar as ambigüidades da tradição psiquiátrica, Lacan toma emprestado de
Clérambault o termo “fenômeno elementar” para sustentar a tese a respeito da estranheza que
ocorre tanto na alucinação como no delírio em relação a qualquer dedução ideica –
compreensibilidade que escapa também ao próprio psicótico (Schaustz, 2000).
Entretanto, Lacan se distingue de Clérambault por discordar da hierarquização que este
propõe ao situar o delírio como uma dedução intelectual consciente, construída
secundariamente a partir dos fenômenos elementares. Ou seja, o delírio constituir-se-ia em um
“romance” acrescido aos fenômenos elementares, considerados por Clérambault bem mais
antigos que o delírio. Para Lacan, “o delírio não é deduzido, ele reproduz a sua própria força
constituinte, é, ele também, um fenômeno elementar” (Lacan, 1988 [1955-56], p.28).
Lacan assinala no Seminário III que, num certo momento do delírio, o que está em
primeiro plano é uma significação que se impõe ao próprio sujeito, mesmo sem ele saber qual
a sua motivação. No entanto, para o delirante, essa significação se torna perfeitamente
compreensível, a partir de um certo momento, ganhando o estatuto do que identificamos como
certeza delirante.
Neste momento do percurso de Lacan, podemos reconhecer a influência do conceito de
“significação pessoal” – Eigenbeziehung – proposto por Neisser como o mecanismo primário
responsável pela geração do delírio. E não nos esqueçamos de que a influência de Neisser
ressoa em Lacan desde a sua tese de medicina (1932), quando se apropriou da contribuição do
43
psiquiatra alemão para delimitar o que estava em jogo tanto na irrupção dos fenômenos
elementares como no próprio delírio em Aimée.
Lacan também ressalta que a questão “Quem fala?” deve dominar a investigação a
respeito da paranóia, e retoma, para avançar esse questionamento, a contribuição de Séglas
quanto às alucinações psicomotoras. Estas são descritas como uma articulação verbal que o
próprio alucinado produz no momento em que está se referindo às vozes como externas
durante o episódio alucinatório. Ou seja, não tendo a sua origem no exterior, a alucinação é
articulada verbalmente pelo próprio sujeito mesmo sem reconhecer, aspecto ressaltado por
Lacan como a pequena revolução séglasiana (1988 [1955-56]).
Ao dialogar com os mestres da tradição psiquiátrica – embora, reconheça apenas
Clérambault como o seu verdadeiro mestre em psiquiatria –, Lacan avança em seu projeto em
cernir a estrutura de que se trata na psicose. Mesmo havendo importantes diferenças na
concepção a respeito de vários aspectos ligados à psicose, a contribuição da psiquiatria
considerada clássica na obra de Lacan é inquestionável.
2.2 O diálogo de Lacan com Freud a respeito do delírio
Reler minuciosamente os significantes freudianos ao longo de seu percurso é uma das
principais tarefas a que se propôs Lacan. No Seminário III, o relevo é dado ao caso Schreber uma retradução de Freud do fio condutor da “língua fundamental” do magistrado alemão.
Neste Seminário, Lacan aborda, a partir do delírio schreberiano, noções estruturais que podem
ser reconhecidas em outros casos, como a questão da verdade que ali “não está escondida,
como acontece nas neuroses, mas realmente explicitada, e quase teorizada” (1988 [1955-56],
p.37).
Lacan subverte as categorias lingüísticas de significante e significado formalizadas por
Saussure e as utiliza também para elucidar a sua concepção a respeito do delírio, definindo o
significante como o material da linguagem e o significado como a significação, e neste
momento de seu ensino relaciona a linguagem a esse movimento que sempre remete a uma
nova significação.
44
Então, a partir desses pressupostos, Lacan distingue o delírio da linguagem comum por
aquele apresentar o neologismo, no qual há uma significação que só remete a ela própria,
significando alguma coisa de inefável, impedindo assim o próprio desenrolar de novas
significações. Portanto, é no ponto de ruptura do encadeamento das significações que Lacan
apreende o delírio como distinto da linguagem comum, em que há de certa forma uma maior
articulação entre as significações (1988 [1955-56]).
Em 1957, ano seguinte ao Seminário III, Lacan, em seu escrito A instância da letra no
inconsciente ou a razão desde Freud, reformula suas considerações a respeito da supremacia
da significação em relação ao significante, enfatizando que a cadeia de que se trata é a
significante. E somente no enlaçamento dos significantes que se produz a significação como
produto, “donde se pode dizer que é na cadeia do significante que o sentido insiste, mas que
nenhum dos elementos da cadeia consiste na significação de que ele é capaz nesse mesmo
momento” (1998 [1957], p.506).
Mas, no próprio Seminário III, Lacan, ao trabalhar as noções de metáfora e metonímia,
define um ponto no discurso como ponto de basta, um significante organizador da cadeia
significante que possibilita situar retroativamente o que se passa no discurso através deste
ponto de amarração entre o significante e o significado. E relembra que a insistência de Freud
em encontrar o complexo de Édipo por toda parte é decorrente de se ter aí um nó, ou seja, de
que a noção de pai estaria ligada ao ponto de basta.
Lacan compara esse significante “pai” a uma estrada principal que, se faltar ao ser
evocado, desorganiza a estrutura de linguagem devido à perda desse ponto de convergência
significativo. Portanto, no cerne de todos os fenômenos psicóticos encontra-se a
impossibilidade de abordar esse significante como tal em decorrência do que Lacan nomeia
forclusão do Nome-do-Pai, tradução que sugere ao termo freudiano Verwerfung (1988 [195556]).
“A forclusão é o nome da fratura que os enclausurou fora de toda inscrição, fora dos
traços da rota de nossos sonhos, do céu de nossos pensamentos, da casa de nossa dor ou de
nossa alegria: longe de nosso heimlich” (Rabinovitch, 1998, p.8).
Em 1958, Lacan retoma esses pontos a respeito da psicose ao escrever o texto
intitulado De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, no qual, apoiado
na topologia geral ou combinatória, segundo Eidelsztein, constrói os esquemas “R” e “I” que
se apresentam como superfícies. No primeiro esquema, articula a função paterna ao
45
enodamento RSI que caracteriza a neurose, e no segundo esquema, localiza o processo
delirante final de Schreber (Eidelsztein, 1992).
Joël Dor propõe que o esquema R é construído em diferentes etapas lógicas para que
se possa apreender a articulação dos três registros – RSI – ao Édipo freudiano. No primeiro
tempo, a criança encontra-se presa à dinâmica desejante da mãe ao ocupar o lugar de falo que
a esta falta. Portanto, a criança identifica-se ao objeto de desejo da mãe (falo imaginário).
Compondo-se assim, através desses três elementos – mãe, criança e falo – a triangulação que
organiza o espaço do registro do imaginário, célula base do esquema R (Dor, 1995).
Em um segundo tempo, há a intrusão do pai no triângulo imaginário, resultando em
uma reconsideração da identificação fálica por parte da criança, ao constatar o interesse da
mãe pelo pai, assim como a percepção de que nunca chegará a preencher totalmente a falta da
mãe. O pai ocupa então uma posição de rival fálico imaginário. Portanto, é o discurso materno
que indica o pai como o objeto de desejo da mãe e não a criança. Com isso, abre-se para a
criança a possibilidade de possuir o falo e não ser o falo.
No segundo tempo do Édipo, o discurso materno introduz o pai como o que porta uma
lei onipotente que priva a mãe. Com o avançar do processo em direção ao terceiro tempo do
Édipo, a criança reconhece que o pai é o suporte, o representante da lei e não a lei em si, ou
seja, a criança percebe que o pai possui o falo e não é o falo. E o pai, por possuir o falo, pode
concedê-lo ou não à mãe por intermédio da doação, do dom (1995).
Nesse momento, o pai é um pai potente – ele tem o falo –, não é mais o pai onipotente
do segundo tempo, isto é, “... por intervir no terceiro tempo como aquele que tem o falo, e não
que o é, que se pode produzir a báscula que reinstaura a instância do falo como objeto
desejado da mãe, e não mais apenas como o objeto do qual o pai pode privar” (Lacan, 1999
[1957-58], p.200). Nesse último tempo, trata-se também da saída, do declínio do Édipo, no
qual a criança se identifica ao pai que intervém como aquele que tem o falo. Lacan nomeia
essa identificação como Ideal do eu.
Portanto, ao atravessar os labirintos da castração, a criança assume a condição de
sujeito desejante. Nesse processo, deslocamentos ocorrem na construção do esquema R tanto
em relação ao lugar que a criança ocupava até então, assim como ao de sua mãe, produzindose o esboço do triângulo simbólico. No lugar originário, permaneceram os vestígios de uma
representação imaginária do objeto fundamental do desejo (a mãe), ou seja, a imagem
especular “i” e uma representação imaginária da própria criança: eu (moi), “m”.
46
Em oposição ao vestígio imaginário, a nova posição da criança refere-se ao que pode
vir a ser, regulada pela instância do Ideal do eu “I”, que por sua vez, é tributária da incidência
simbólica do pai. Ou seja, a conclusão de todo esse processo de translação do imaginário ao
simbólico é decorrente da intervenção da metáfora paterna que introduz o significante Nomedo-Pai no Outro do sujeito como falo simbólico (Dor, 1999).
Os triângulos imaginário e simbólico são entremeados pela faixa da realidade que é
delimitada pelas representações do outro imaginário através do vetor iM expresso pelo
símbolo i (a) – imagem especular. E as representações imaginárias formadoras do eu,
assujeitadas ao Ideal do eu, compõem o vetor mI, expresso pelo símbolo a’, correlato de a na
relação imaginária do sujeito com seus objetos. Portanto, a faixa da realidade, que será
renomeada posteriormente por Lacan como o real, forma um quadrângulo composto pelos
vetores MimI, permitindo unir os triângulos imaginário e simbólico.
Em 1966, quando publica os Escritos, Lacan acrescenta uma famosa nota de rodapé ao
texto De uma questão preliminar... realizando um denso tratamento topológico ao esquema R,
principalmente no que se refere ao quadrângulo da realidade. Ao partir da recente teorização a
respeito do objeto pequeno a, Lacan propõe que a realidade barra o real, e como o objeto a
também é real, encontra-se, portanto, barrado. E aproxima a realidade à estrutura da fantasia,
que, por sua vez, sustenta o campo da realidade justamente pela extração do objeto a que dá o
seu enquadramento (Lacan, 1998 [1958]).
Lacan constrói o esquema I para abordar a psicose, tendo como ponto de partida a
seguinte enunciação em De uma questão preliminar... : “no ponto em que, veremos de que
maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um puro e simples furo, o
qual, pela carência do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da
significação fálica” (1998 [1958], p.564). Com isso, produz uma distorção na configuração do
esquema R tanto em relação aos triângulos simbólico e imaginário como à própria faixa da
realidade.
Ao construir o esquema I, Lacan baseou-se no caso Schreber de Freud para realizar
uma análise estrutural da psicose por se caracterizar como a melhor via na condução do
fenômeno à estrutura que se trata na posição subjetiva psicótica. Relembra também que,
quando analisou os fenômenos da paranóia em sua tese, de 1932, acabou atingindo a
psicanálise em seu limiar, por esta possibilitar a apreensão dos “mais radicais determinantes
da relação do homem com o significante” (1998 [1958], p.543).
47
No esquema I, os dois buracos existentes correspondem a uma geometrização da falta
e não a uma topologização da falta, decorrente da ausência de toda elaboração simbólica da
mesma (Eidelsztein, 1992). Sendo esses dois buracos representados como P, índice zero, e
Falo simbólico, também como índice zero. Portanto, a foraclusão do significante Nome-doPai no registro simbólico é condição de produção da falha na significação fálica. Porém, não
exclusivamente porque a elisão do falo simbólico também é necessária para haver a falha no
registro imaginário que acarreta a regressão tópica ao estádio do espelho.
Segundo Eidelsztein, a distorção produzida no esquema R, desdobrando-se no
esquema I, provoca as seguintes conseqüências para a psicose:
– desaparecimento do sujeito sob a significação fálica, sendo substituído pela imagem
narcísica (regressão tópica ao estádio do espelho);
– desaparecimento da função do Outro como inconsciente, sendo substituído pelo
ideal do eu;
– imobilidade de M – primeiro Outro do sujeito. É o único termo do esquema I que
não modifica de lugar em relação ao esquema R, devido à não incidência da castração no
Outro;
– ausência da borda do fantasma na estrutura psicótica gerando a infinitização das
retas encontrada no esquema I – hipérbole e assíntota (1992).
Portanto, a leitura rigorosa desenvolvida por Eidelsztein, utilizando elementos da
matemática para trabalhar o esquema I de Lacan, conclui que tanto o fantasma como o sujeito
estão excluídos da estrutura psicótica. Concepção bastante diferente da teorização do GIFRIC
a respeito da psicose, que, como veremos no próximo capítulo, aposta justamente no
contrário: há sujeito e fantasma na psicose.
E lançamos à posição de Eidelsztein a seguinte questão: a “morte do sujeito” e a
impossibilidade de se construir um fantasma na psicose são efeitos da foraclusão do Nomedo-Pai durante o surto psicótico ou se apresentam cristalizados irreversivelmente na estrutura
da psicose?
A foraclusão do Nome-do-Pai – impossibilidade de inscrição do Pai ao nível simbólico
– apresenta-se como precondição para o desencadeamento da crise psicótica quando o sujeito,
neste momento, se confronta com alguma injunção que desarranja o par imaginário a - a’, no
qual encontra-se apoiado. Um elemento terceiro se interpõe ao eixo imaginário desencadeando
a manifestação fenomênica da psicose.
48
O delírio seria uma resposta possível por parte do psicótico ao não fechamento do
quadrângulo da realidade que se encontra aberto devido às ausências do Nome-do-Pai e do
falo. Portanto, segundo Freire, “o delírio tem como função ‘costurar’, reconstruir esse campo
da realidade, ligando os pontos do esquema R em sua origem: do lado do falo, o ponto i (as
imagens especulares do esquema) liga-se ao eu do sujeito; do lado do Nome-do-Pai, o ponto
M (significante do objeto primordial) liga-se ao I (ideal do eu)” (Freire, 1999, p.119 - 120).
Em 1958, Lacan, ao esclarecer a questão preliminar de que se trata no manejo da
transferência no tratamento com psicóticos – a foraclusão do Nome-do-Pai –, avança em
relação à obra freudiana ao delimitar o mecanismo gerador da psicose. E sinaliza para um
possível tratamento psicanalítico para o psicótico, diferentemente do que havíamos citado de
sua posição no início do Seminário III, quando afirmara que abordaria, como Freud, apenas a
“questão” da psicose e não o “tratamento” da psicose.
Schreber, em suas alucinações, apresenta fenômenos de código e de mensagem,
conforme a apropriação que Lacan realizou da lingüística. Os primeiros fenômenos
apresentam-se como vozes através de neologismos que pertencem à língua fundamental –
Grundsprache – significantes cuja composição é modificada na forma ou por empregos
inusual e particular inseridos na “língua fundamental” do sujeito em questão (Lacan, 1998
[1958]).
E Lacan sublinha que o significante é o indutor de significação, ou seja, a significação
é um efeito do significante para todo ser falante. Na psicose, em decorrência da ausência do
significante paterno – foraclusão do significante Nome-do-Pai –, não se produz a significação
que confere uma posição sexuada do sujeito no discurso. Entretanto, a falta de uma
significação fálica é ocupada por uma “significação” extremada em seu grau de certeza, como
escutamos no delírio (1998 [1958]).
Portanto, o psicótico, defrontando-se com a ausência do significante primordial,
apresenta uma extrema dificuldade em se ancorar em um dos dois campos possíveis da
sexuação humana: homem ou mulher. A posição sexual do ser falante é tributária da
significação fálica, que, na psicose, encontra-se rechaçada em decorrência da rejeição do
Nome-do-Pai. Ou seja, a não-inscrição do significante paterno no Outro do sujeito – ternário
simbólico – corresponde a uma falha na significação do sujeito apreendida no ternário
imaginário, como nos aponta o esquema R.
49
Lacan situa os fenômenos de mensagem nas frases interrompidas proferidas pelo
interlocutor de Schreber, no caso Deus, que o obriga a completá-las para conferir-lhes, então,
algum sentido. Essas frases são interrompidas justamente no ponto onde a posição do sujeito
estaria indicada a partir da mensagem provinda do Outro. Na condição de enunciado do
sujeito, a mensagem recebida do Outro apresenta-se como invertida, na medida em que o ser
falante a emite como se fosse uma produção própria (1998 [1958]). Na neurose, existe a
possibilidade de se fazer desses enunciados recebidos do Outro alguma enunciação que
implique a diferença que caracteriza o sujeito do desejo. Na psicose, geralmente o que se
constata é a impossibilidade em se realizar tal dimensão da linguagem devido à quebra da
ordenação simbólica pela foraclusão do Nome-do-Pai.
Em relação à “etiologia” da paranóia, Freud aponta para a irrupção de uma moção
homossexual em Schreber – a idéia hipnopômpica descrita em suas Memórias – como a causa
da enfermidade. Lacan, de certa forma, refuta a posição freudiana ao localizar a
“homossexualidade, pretensamente determinante da psicose paranóica” como “um sintoma
articulado em seu processo” e não a causa em si da paranóia (1998 [1958], p.550).
Lacan, ao escrever a respeito do desencadeamento da psicose, afirma que o
significante Nome-do-Pai, jamais advindo no lugar do Outro, ao ser invocado, produz a
fenomenologia psicótica. Entretanto, um dos contornos possíveis aos efeitos da foraclusão, em
oposição à passagem ao ato suicida ou homicida, é a constituição de uma metáfora que se faz
delirante, como podemos ler no texto de Lacan: “É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que,
pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de
onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que
significante e significado se estabilizam na metáfora delirante” (1998 [1958], p.584).
A metáfora é uma operação que supõe a primazia do significante sobre a significação e
a significação que o sujeito neurótico obtém da referência paterna é o ganho da sua filiação, já
o sujeito psicótico não dispõe desta referência, ele erra num saber metonímico, embora, nessa
errância, produza algum efeito metafórico ao construir uma significação através do delírio.
Então, a partir desse momento do ensino de Lacan, a construção da metáfora delirante
é o que se visa em um tratamento psicanalítico com psicóticos. Como acompanharemos a
seguir em alguns autores de orientação lacaniana. Talvez a única exceção a essa orientação no
tratamento da psicose seja o que se desenvolve no “388”, como veremos no próximo capítulo.
50
Segundo Caligaris, “quando o sujeito psicótico encontra uma injunção a referir-se a
uma metáfora paterna, que não está simbolizada por ele, o que acontece é que um tal lugar
organizador volta para ele, mas não volta no Simbólico, porque nesse Simbólico não há essa
função, então volta no Real” (Caligaris, 1989, p.9). Portanto, um delírio é isso: “o trabalho de
constituir uma metáfora paterna, então uma filiação e a sua relativa significação, lidando com
uma função paterna não simbolizada, mas sim no Real” (1989, p.22).
Silvestre afirma, nesse sentido, por exemplo, que o delírio advindo a partir da
instauração do trabalho analítico “será utilizado pelo sujeito para produzir a significação que
lhe falta – quer dizer, para construir uma metáfora substitutiva da metáfora paterna, metáfora
que tenha efeito de significação. (...) Por certo fala-se habitualmente, neste caso, de metáfora
delirante” (Silvestre, 1991, p.129).
Soler, ao apresentar em linhas gerais o tratamento de uma psicótica sob transferência,
afirma que o efeito da construção do delírio é manifestamente tranqüilizador, mas enfatiza
também que a estabilização psicótica é frágil. Apesar de haver nesse caso um processo
artístico sublimatório importante, mesmo assim depende fortemente da presença de um
homem e da analista. Donde conclui que essa estabilização não está vinculada a um final de
análise. Portanto, segundo Soler, o trabalho da psicose será sempre para o sujeito uma maneira
de tratar os retornos no real – efeito da foraclusão do Nome-do-Pai – buscando formas de
contornar o gozo não submetido à ordem fálica através de uma metáfora de suplência: a
metáfora delirante (Soler, 1993).
Laurent aponta que o que se consagrou como metáfora delirante num determinado
momento da obra de Lacan carece da posterior teorização a respeito do objeto a. Ele propõe
que a não-operação do pai gera um lugar vazio na estrutura psicótica, que deve se manter
assim porque o desencadeamento do surto psicótico caracteriza-se pela ocupação, por “Um
Pai”, desse lugar vacante (Laurent, 1989).
Laurent propõe que o lugar do delírio é dado pela lógica do “todo”, embora um todo
sempre parcial, em que algo falta; como, por exemplo, “A Mulher” que falta aos homens é
encarnada por Schreber em seu delírio de mulher de Deus, permitindo-o sustentar-se fora do
discurso. O sujeito se produz como o objeto que falta no universo do discurso, trata-se, pois,
de fazer-se representar neste universo pela invenção de um significante novo para enfrentar o
gozo que sempre se opõe ao funcionamento do significante na psicose (1989).
51
Apesar de a trajetória de Lacan se desdobrar a respeito da psicose como, por exemplo,
no Seminário XXIII, O Sinthoma (1976), no qual aborda a escritura de James Joyce e a
psicose, não observamos nenhuma mudança na posição dos lacanianos em relação ao caráter
definitivo da constituição da metáfora delirante como direção da cura na psicose.
A clínica da psicose nos reserva o fato de que mesmo constatando o sucesso da
constituição da metáfora delirante como direção de tratamento em alguns casos clínicos –
guardando-se necessariamente a particularidade de cada caso – observamos que nem sempre é
possível não só a sua construção como também a própria sustentação da metáfora delirante.
Schreber, mesmo sendo o exemplo princeps por ter construído a célebre metáfora
delirante, cujo ponto culminante era a missão de redimir o mundo através de sua
transformação em mulher de Deus, fracassou em sustentar essa metáfora por muito tempo. A
estabilização se sustenta, ao que parece, por cinco anos.
Carone, em introdução à edição brasileira de Memórias de um doente dos nervos,
relata-nos que Schreber, após sua alta hospitalar – conquistada judicialmente com o auxílio de
seus escritos publicados –, retoma durante cinco anos sua “vida civil”: retorna ao laço
conjugal, assim como à advocacia privada; constrói uma casa em Dresden; adota uma
adolescente como filha. Ou seja, mantém-se estabilizado graças à borda ante o real que a
metáfora delirante lhe permitia (Carone, 1995).
Mas, após um episódio transitório de afasia em sua esposa e a morte de sua mãe,
Schreber recai em um novo e derradeiro surto psicótico, no qual há um desmantelamento da
sua metáfora delirante, levando-o a uma reinternação hospitalar até o final de seus dias. Nesta
última internação psiquiátrica, que perdura por quatro anos, Schreber apresenta um quadro
clínico que se assemelha a um estupor melancólico.
No entanto, a correlação tradicional entre o desencadeamento do terceiro surto, a
doença da mulher e a morte da mãe pode ser modificada a partir de várias pesquisas realizadas
na década de 50, quando pós-freudianos debruçaram-se novamente sobre o caso Schreber.
Segundo Carone, Baumeyer (1955) reúne os três dossiês de internação de Schreber, que
contêm preciosas informações a seu respeito como também de sua família (1995).
Tais pesquisas nos permitem sugerir como hipótese para o desencadeamento desse
terceiro e último surto psicótico o fato de membros das Associações Schreber convocarem
Daniel Paul a ratificá-los como os legítimos representantes para prosseguirem com os ideais
higienistas de seu pai, Daniel Gottlieb Moritz Schreber. O famoso médico e pedagogo, como
52
se sabe, pregava uma doutrina educacional implacavelmente rígida, experimentada
orgulhosamente entre os próprios filhos, mas, com resultados bastante nefastos em sua própria
família – dois filhos psicóticos e um suicida – o que não era levado em conta pelos membros
das Associações Schreber.
Assim, Schreber - um sujeito desprovido do Nome-do-Pai para apelar diante do real –,
quando convidado a falar a partir de um lugar não simbolizado por ele – a posição que
ocupava na linhagem a qual pertencia –, responde novamente com um surto psicótico. Foi o
que se constatou em seu primeiro surto após a disputa por uma vaga no Parlamento, e no
segundo, quando teve que ocupar a cadeira de presidente do Tribunal de Apelação da Saxônia.
Então, observamos em Schreber três momentos clínicos distintos: um delírio
hipocondríaco na primeira internação; a construção de um delírio paranóico a partir do surto
esquizofrênico na segunda internação; e, por fim, a avassaladora desconstrução da metáfora
delirante que perduraria por todo o último período de sua vida. É interessante constatarmos
que o segundo momento clínico da psicose de Schreber é caracterizado por um início
esquizofrênico que se desdobra em uma paranóia, como o próprio título do artigo de Freud
ressalta: Pontuações psicoanalíticas sobre um caso de paranóia (Dementia paranoides)
descrito autobiograficamente.
E, justamente, por haver esse tipo de impasse a respeito da construção da metáfora
delirante como acabamos de verificar até mesmo no caso no qual Lacan se apoiou para a
elaboração deste conceito, o GIFRIC busca um novo caminho ao propor a desmontagem do
delírio e a concomitante construção da fantasia como direção da cura para a psicose, como
veremos no terceiro capítulo.
2.3 Alguns aspectos da obra mais tardia de Lacan
A psicanálise, desde o ato fundante de Freud até a sua formalização pelo ensino de
Lacan, tem a linguagem como a estrutura por excelência, que cifra e decifra uma Outra Cena –
ein anderer Schauplatz –, constitutiva de todo ser falante. Caminho bastante diferente este da
psicanálise em relação à psicologia e à psiquiatria, que consideram a linguagem apenas como
53
uma das funções cognitivas do ser humano, podendo ou não vir a apresentar algum tipo de
transtorno psicopatológico.
Então, para a psicanálise, a constituição de todo ser falante se processa em relação à
linguagem, ou seja, no laço entre o sujeito e o significante. Enlaçamento que apresenta o
estatuto de um axioma para a psicanálise (Milner, 1996). Portanto, há sempre um sujeito
implicado
na
estrutura
de
linguagem,
independentemente
de
sua
manifestação
fenomenológica, como a clínica pode nos revelar através da neurose, perversão ou psicose.
Nesse sentido, a partir dos percursos de Freud e Lacan, um sujeito na psicose encontrase aí implicado e não, excluído, apesar de todas as dificuldades em teorizá-lo e principalmente
em manejar a transferência psicótica na direção de tratamento. Portanto, o que difere nos três
arranjos subjetivos – neurose, perversão e psicose – é a posição tomada pelo sujeito ante a
diferença sexual, isto é, a castração.
A constituição do sujeito apresenta precisamente duas encruzilhadas estruturais: o
estádio do espelho e o complexo de Édipo. O estádio do espelho é o momento lógico de
formação da imagem narcísica unificada do sujeito, quando, a partir do espelhamento com o
semelhante, o infans assume uma imagem de completude corporal em contraponto à
precariedade motora real na qual se encontra imerso. Entretanto, mesmo sendo um processo
que se desenrola no registro imaginário, o estádio do espelho encontra-se apoiado desde
sempre no simbólico: é a palavra do Outro que corta e recorta a imagem do sujeito no espelho.
O estádio do espelho revela as relações do sujeito com o seu semelhante, o outro
imaginário. Essas relações apresentam um caráter de dualidade e ambivalência, na medida em
que amor e ódio se mesclam nesse encontro especular entre a incompletude do sujeito e a
plenitude imaginária do outro. Território das paixões, o eu do sujeito encontra-se enredado por
um movimento que o lança incessantemente “do amor ao ódio, da completude à falta, da
submissa captura erótica ao ímpeto de destruição, da exclusão à intrusão e à dependência do
outro, do aniquilamento ao júbilo” (Souza, 1999, p.31).
Segundo Souza, em suas elaborações a partir dos anos sessenta, Lacan não se restringe
mais a uma conceituação do imaginário apoiada apenas na ambivalência irredutível entre o
amor e o ódio: hainamoration. A nova concepção de Lacan a respeito do imaginário desloca o
espelho plano em benefício do nó borromeano. Portanto, Lacan vai da geometria
bidimensional à topologia do nó que, por sua vez, caracteriza-se, no caso desse tipo de nó, por
consistir-se em três elos equivalentes atados de uma forma tal, que, se um deles se romper, os
54
outros dois também se desatam. Os elos do nó borromeano são nomeados por Lacan como
real, simbólico e imaginário (1999).
“A cadeia borromeana, esse nó feito de buracos – os elos são vazios contornados por
uma borda –, é a condição de possibilidade de um novo espaço não mais referido à
completude da figura do espelho, mas à potência do vazio” (Souza, 1999, p.32). Portanto, a
partir dos furos que compõem os elos do nó borromeano, esvazia-se a imagem aparentemente
completa do outro semelhante que se encontra no primeiro imaginário.
Assim, a partir do vazio da imagem, por um processo contínuo, sem rupturas, uma
nova imagem simétrica e invertida vem se produzir como imagem do eu. A topologia geral,
segundo Eidelsztein, estuda as propriedades de um objeto que, mesmo sofrendo deformações,
não apresenta roturas (Eidelsztein, 1992). Então, Lacan utiliza a topologia para dar conta de
propriedades invariantes a despeito de transformações contínuas, como podemos observar
metaforicamente, no exemplo do reviramento de uma luva que, a partir de sua abertura,
transforma a “luva da mão esquerda” na “luva da mão direita”.
O vazio da abertura da luva é que gera a consistência da imagem. Nesse sentido, o
imaginário apresenta como efeitos a consistência e a efetividade. Consistência que propicia
corpo ao espaço do falante, efetividade que mantém os três elos unidos borromeanamente
(Souza, 1999).
O nó borromeano articula os três registros através do imaginário, que doa corpo com
seus disfarces, velando tanto a aridez da combinatória significante como a radical ausência de
sentido que caracteriza o real para o falante. O imaginário consiste, o simbólico insiste e o real
ex-siste. Portanto, a realidade psíquica de cada sujeito se constitui a partir do modo particular
de enodamento borromeano (1999).
Agora, comentaremos brevemente a outra encruzilhada estrutural que se apresenta na
constituição do sujeito: a travessia do complexo de Édipo – momento lógico articulado ao
complexo de castração. Nesse momento, o que há de fundamental é a castração que se
presentifica como o operador estruturante para qualquer experiência subjetiva. Todavia, o que
difere as estruturas clínicas é a resposta dada à castração: recalque, recusa ou rejeição.
Freud depreende de sua experiência clínica que o sujeito, em um primeiro tempo na
infância, constrói uma teoria sexual na qual todos os seres humanos possuem o mesmo órgão
genital: o pênis. Freud denominou este primeiro tempo como o da primazia do falo, não
concedendo primazia propriamente aos órgãos genitais. No entanto, em um segundo tempo na
55
infância, o sujeito é confrontado com a diferença sexual anatômica, experiência
desconcertante que o lança à difícil tarefa de produzir algum sentido diante dessa constatação.
Assim, a castração é abordada pelo sujeito através da fantasia de que o pênis fora
castrado nas mulheres, e nos homens, pode vir a sê-lo. Portanto, o que pesa sobre o sujeito que
ocupa a posição masculina é a ameaça da castração, que o leva a ressignificar as ameaças
recebidas até então, principalmente a respeito da interdição de seu objeto privilegiado: a mãe.
No coração da triangulação edípica – desejos amorosos e hostis que a criança vivencia em
relação aos pais –, a letra da Lei é clara: o incesto é proibido e, se houver desobediência, punese com a castração. Em se cumprindo a lei, declina-se o Édipo – o sujeito abandona a mãe
como objeto de desejo e identifica-se com o pai –, instaurando-se o devir da sexualidade
masculina.
Em relação ao sujeito que ocupa a posição feminina, a constatação da diferença sexual
repercute de outra maneira: impera a reivindicação de um pênis. Portanto, na posição
feminina, manifesta-se a inveja do pênis como efeito do complexo de castração, conduzindo o
sujeito a buscar uma via diferente da masculina nos labirintos do Édipo. Busca-se aí um
ressarcimento pela falta do pênis, que pode vir através de um filho do pai. Obviamente que
esta saída do Édipo será realizada com um parceiro não-interditado.
A fantasia da castração é construída para dar conta da diferença sexual anatômica,
tendo como premissa o primado universal do falo. Portanto, o falo é tomado pela psicanálise
não como um órgão corporal – pênis ou clitóris –, mas sim como um significante que nomeia
o desejo organizador da sexualidade infantil. E a castração é tomada como a Lei que ordena o
desejo do falante. Dessa forma, a castração é formulada, segundo Lacan, não como uma
fantasmagoria imaginária, mas como Lei (Souza, 1999).
Portanto, o Édipo – como segunda encruzilhada estrutural na constituição do sujeito –
é articulado à estrutura de linguagem através do significante Nome-do-Pai. O significante
paterno tanto produz a interdição do incesto como barra o desejo da mãe em reintegrar o seu
produto. Assim, a metáfora paterna possibilita a amarração da cadeia discursiva através do
ponto de capiton que articula significante e significado.
Prosseguiremos no avanço de Lacan a respeito da concepção de estrutura na
psicanálise.
Souza assinala que, ao escrevermos, falarmos sobre estrutura neurótica ou estrutura
psicótica, por exemplo, estamos fazendo uma distinção no sentido relativamente lato a
56
respeito da estrutura em psicanálise. Rigorosamente não seguimos o que Lacan nos propôs no
Seminário inédito D’un Autre à l’autre, em que afirmou que, para qualquer construção de
uma organização subjetiva, “a estrutura é S (A), só isso” (Lacan, 1969).
“Dizer que a estrutura é S (A) é dizer os quatro termos que a constituem: S1, S2, a, S. É que S
(A) é o significante da falta de significante, o significante por excelência, condição de
possibilidade da cadeia, da articulação significante. Dizer, portanto, S(A) é enunciar pelo
menos dois significantes: S1 – S2. E porque esta articulação implica necessariamente uma
perda, algo que escapa sempre, dizer S(A) é também dizer a. E mais, como entre o que se
articula e o que escapa sempre emerge um efeito, efeito sujeito dividido entre, dizer S(A) é,
por último, dizer S” (Souza, 1999, p.79).
Portanto, Lacan formaliza a estrutura mínima presente na experiência psicanalítica
através desse matema: S(A). Com essa fórmula enuncia um limite à cadeia simbólica – a
incompletude do Outro – como discurso inconsciente. Ao condensar nesse matema da
estrutura os quatro elementos que a constituem, como bem explanou Santos na citação acima,
o ensino de Lacan toca nesse ponto de impossível que a linguagem impõe a todo ser falante.
O próprio sujeito é efeito do trauma que a estrutura de linguagem confere ao vivente,
mas é justamente por sujeitar-se à linguagem que o sujeito pode transitar no possível do
humano. A questão é como o sujeito acolhe esse “convite” que a estrutura lhe faz, e a
diferença reside na resposta possível de cada sujeito. Nesse sentido, ante a incompletude do
Outro, o sujeito pode “escolher” uma das três vias para lidar com essa inconsistência: recalcar,
recusar ou foracluir. Portanto, neurose, perversão e psicose são configurações diferentes da
inserção do sujeito na estrutura, estrutura essa que, todavia, apresenta os mesmos elementos:
S1, S2, a, S.
O encontro entre o sujeito e o Outro como estrutura de linguagem é sempre faltante, a
própria estrutura é marcada pela incompletude; portanto, desencontros assinalam a
desproporção entre o sujeito e o Outro. Segundo Souza, a fantasia é o que permite mediar de
certa forma o descompasso entre o sujeito e o Outro, a ponto de afirmar que “os sujeitos,
neuróticos e psicóticos, respondem ao real com a fantasia” (1999, p.80). Ou seja, reporta-se à
posição de Lacan que sustenta que a fantasia é a resposta do sujeito perante o S(A).
Dessa maneira, a fantasia é afirmada como o recurso principal que o sujeito possui
para lidar com o real da linguagem. E a diferença entre os arranjos neurótico e psicótico reside
mais no estilo como cada fantasia é construída do que em considerá-la apenas um fato de
estrutura exclusivo da neurose; na medida em que a questão a respeito do que o Outro quer do
sujeito está para todo ser falante.
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A fantasia neurótica responde a questão a respeito do Outro ao elevá-lo à condição de
enigma. Então, a própria resposta neurótica é a colocação de uma pergunta que, por ser
enigmática, não aceita resposta fácil. Dessa forma, o enigma sempre mantém aberta uma
lacuna entre a pergunta e a resposta, sendo da ordem do impossível que a resposta preencha
totalmente o que lhe é questionado (1999).
Assim, na construção da fantasia neurótica, um vazio perpassa o intervalo entre a
pergunta e a resposta, vazio que constitui o desejo como indestrutível para a neurose. Mas o
neurótico quer se defender justamente dessa fissura que se apresenta tanto para o Outro –
vivida pelo neurótico como desejo do Outro – quanto para o próprio sujeito.
E o neurótico se defende do desejo reduzindo-o à demanda, que, por sua vez, é sempre
demanda de amor. Neste momento da construção da fantasia neurótica, o amor é vivido como
uma obturação do vazio constitutivo do ser falante, desfazendo, assim, a precariedade que lhe
é própria. Portanto, ao oferecer-se como objeto que completa à demanda do Outro, o neurótico
ilusoriamente se completa aí também.
Mas como a resposta neurótica claudica, é incompleta, porque é impossível suturar
tudo que tange a não-proporção entre o sujeito e o Outro, resta um saber inacessível ao
próprio sujeito, que inventa essa saída ante o enigma do desejo do Outro. O saber não sabido é
justamente o que é da ordem do inconsciente. Assim, “com a fantasia neurótica, o sujeito
inventa o inconsciente” (1999, p.81).
Em relação à psicose, Souza pinça o termo “fantasia delirante” do texto de Freud
intitulado As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade para demarcar um outro
tipo de posicionamento ante a questão do Outro. A fantasia delirante, então, não se estrutura,
conservando um certo enigma a respeito do desejo do Outro – pressupõe de antemão uma
resposta certeira que não vacila em afirmar que “o Outro quer o meu mal” (1999, p.81).
A fantasia delirante pauta-se não apenas em ser uma resposta assustadora, como se
constata em muitos casos, mas apresenta-se principalmente como uma certeza que não vacila,
não deixa dúvida alguma para o sujeito, ou seja, é vivida como um bloco compacto que
aglutina a pergunta à resposta – operação que não deixa resto.
Embora, a fantasia delirante não admita falhas, brechas, incertezas, dúvidas – como a
fantasia neurótica comporta –, é considerada por Souza uma fantasia porque cumpre a função
maior de “oferecer ao sujeito uma significação absoluta ao desejo do Outro e, assim, obturar
no sujeito sua falta-a-ser” (1999).
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Nesse sentido, a fantasia delirante, por constituir-se marcada por um saber sem
vacilação a respeito do que o Outro deseja – o mal do sujeito –, apresenta-se até mais bem
sucedida do que a fantasia neurótica, que porta sempre uma certa inconsistência do próprio
sujeito e do Outro. A fantasia delirante não só justifica a existência do sujeito como objeto da
maldade do Outro como produz por isso a consistência tanto de si como de um Outro
perseguidor.
Contudo, como esclarece Souza, a fantasia delirante apresenta uma carência em sua
construção. Carece do próprio furo que constitui o inconsciente, ou seja, carece de um saber
não-todo, justamente por sempre se dotar de um saber sem fissura, sem lacuna. O saber da
fantasia do psicótico confunde-se aqui com a verdade toda, compacta, não se desvelando
como a verdade ficcional do neurótico, que se deixa apreender como meio-dizer nas pulsações
do inconsciente (1999).
Em Televisão, Lacan afirma que o psicótico rechaça o inconsciente (1993). Rechaça,
rejeita, foraclui justamente um saber que não se fecha em si mesmo, um saber que apresenta
uma precariedade porque algo sempre se perde no furo do turbilhão que constitui o seu
próprio umbigo. O psicótico, com a sua fantasia delirante – que nos parece nada mais que o
próprio delírio –, demonstra que não suporta a operação de linguagem que o divide como a
todo ser falante.
O Outro – o inconsciente, a linguagem, a máquina significante – é apreendido
diferentemente pelas configurações neurótica e psicótica. A neurose, em decorrência do
recalque que barra o Outro, esvazia o gozo do Outro, que então se apresenta silencioso,
discreto, revelando-se apenas em momentos fugazes como uma das formações do
inconsciente. Na psicose, devido à falha em barrar o Outro, este se presentifica barulhento,
ensurdecedor, atormentando o sujeito através dos fenômenos elementares quando se constata
que o Outro goza do sujeito.
Segundo Souza, o gozo do Outro está intimamente relacionado à questão do saber: “O
saber todo do lado do Outro é um dos nomes de Seu gozo” (Souza, 1999, p.85). Na psicose,
tem-se o saber do lado do Outro, e nenhum, do lado do sujeito, indicando a sua precariedade.
Portanto, para o psicótico, sobreviver é crucial que se defenda criando um saber que faça
barreira ao gozo do Outro, ou seja, a esse saber completo provindo do Outro.
Nesse sentido, o delírio pode ser definido como um saber metafórico porque, mesmo
constituído por significações não vinculadas à metáfora paterna e à significação fálica –
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portanto, excluído da norma fálica –, transforma o caos significante em uma ordem
sistematizada. Dessa forma, o delírio na condição de metáfora também opera uma substituição
significante e se confronta com uma temática comum também ao saber neurótico, isto é: as
questões a respeito da origem, do sexo e da morte.
Assim, a posição sustentada por Souza, a partir de sua leitura de Freud e Lacan, se
aproxima em alguns aspectos das postulações do GIFRIC a respeito do delírio e da fantasia,
como veremos nos próximos dois capítulos.
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3 A QUESTÃO DO DELÍRIO NA EXPERIÊNCIA TEÓRICO-CLÍNICA DO GIFRIC
3.1 O Centro psicanalítico para jovens psicóticos: uma breve apresentação
A obra de Jacques Lacan foi introduzida em solo canadense, mais especificamente a
partir da cidade de Québec, por Willy Apollon, em 1970, após seu doutoramento em filosofia
pela Universidade de Paris (Sorbonne) e formação psicanalítica realizados concomitantemente
na França.
Como fruto dessa transmissão da psicanálise de orientação lacaniana que se
desenvolveu no Canadá ao longo da década de 70, foi constituído o Grupo Interdisciplinar
Freudiano de Pesquisa e Intervenção Clínica – GIFRIC –, que, desde o princípio, voltou-se
muito para o desafio sempre renovador que a clínica da psicose desperta, entre os
psicanalistas, desde Sigmund Freud.
Em 1982, foi criado pelo GIFRIC, em Québec, um Centro psicanalítico de tratamento
para adultos jovens psicóticos denominado “388”, ou seja, uma instituição extra-hospitalar,
em colaboração com o Centro Hospitalar Robert-Giffard, que intervém junto à clínica da
psicose através da palavra como primeiro e principal instrumento a partir da ética da
psicanálise em contraponto às práticas biologizantes tão difundidas atualmente tanto na
América do Norte como em todo mundo.
O eixo principal que rege o “388” está em possibilitar uma psicanálise junto aos
psicóticos que procuram a instituição a partir de uma demanda espontânea ou indicada por
algum profissional da área de saúde mental, sendo acolhidos somente após entrevistas junto a
uma comissão de admissão. Assim, o trabalho desenvolvido no Centro é norteado pela
psicanálise nas dimensões clínica, teórica e administrativa, não havendo uma primazia
médica. No entanto, a psiquiatria se encontra presente e articulada ao tratamento psicanalítico
dos psicóticos.
E, para que haja a sustentação desse desafio de conduzir uma cura psicanalítica junto a
psicóticos, foram criados alguns dispositivos no “388” para possibilitar o trabalho analítico.
Em função disso, o Centro é estruturado basicamente por duas modalidades de suporte ao
tratamento psicanalítico individual: equipes compostas de um interveniente clínico, um
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psiquiatra, um trabalhador social e o próprio usuário; ateliês dirigidos por artistas ou
profissionais – de determinada especialidade – inseridos na própria cidade de Québec.
Então, ao sujeito que ingressa na instituição é ofertada, inicialmente, a participação em
uma equipe de acompanhamento e nos ateliês até que haja uma demanda explicitada por parte
do usuário a se engajar em uma cura analítica num segundo tempo.
O diferencial observado no trabalho da equipe de acompanhamento, realizado em
conjunto entre o usuário e os técnicos, está no papel do interveniente clínico, que se
disponibiliza a acompanhar o usuário tanto no dia-a-dia do “388” como no espaço
comunitário quando necessário, com exceção das atividades nos ateliês de arte.
Nos ateliês de criação, o caráter de intervenção clínica não está presente, mas sim a
oportunidade de uma prática estética nos seguintes campos: escultura, pintura, escritura,
música, teatro, a produção de um jornal, culinária, passeios pela cidade, esporte (badmington)
e o ateliê de viagem no qual os usuários vendem os alimentos produzidos na cozinha para
angariar fundos para a realização de viagens pelo país e mesmo pelo exterior.
3.2 O Lugar do Delírio na Produção Teórico-Clínica do GIFRIC
Os principais autores que integram o GIFRIC – Apollon, Bergeron e Cantin –, em
decorrência de todas as iniciativas realizadas no “388” que permitem a sustentação de uma
clínica psicanalítica da psicose há praticamente 20 anos, decantaram em suas publicações uma
certa ousadia em teorizar a direção de tratamento aos psicóticos, embora se mantendo “fiéis”
tanto à obra de Freud como à de Lacan.
Entretanto, a fidelidade a Lacan apresenta-se de uma maneira peculiar em Apollon,
que, mesmo tendo o ensino de Lacan como o eixo de sua prática e de suas pesquisas,
paradoxalmente faz uma crítica ao ensino lacaniano como verificamos na seguinte afirmação:
“não encontramos nesses ensinamentos, trabalhos e pesquisas nenhuma linha diretriz nem
uma orientação eficaz para a clínica das psicoses que respondessem à situação pela qual
somos confrontados” (Apollon, 1999, p.80).
Apollon sustenta um caminho próprio quando considera as neurociências o novo
interlocutor ao qual somos hoje confrontados no debate a respeito da pesquisa, da clínica e do
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financiamento junto aos gestores públicos (1999). Isso marca uma diferença em relação aos
interlocutores de Lacan que lotavam seu anfiteatro durante seus Seminários, pois, se apoiando
em diversos saberes como a filosofia, lingüística, antropologia, psiquiatria, literatura,
matemática, topologia, etc., buscava testemunhas tanto entre sua audiência quanto alhures
para tecer da forma mais radical possível a originalidade do passo freudiano.
Mas a afirmação de Apollon nos faz refletir e interrogar a respeito da proposta do
GIFRIC em manter-se apoiado nos conceitos fundamentais desenvolvidos por Freud e Lacan,
mesmo que reivindicando para si um avanço teórico-clínico, tributário da experiência no
“388”, no que se refere à direção de tratamento propriamente dita junto à psicose. E é
justamente este “avanço” em relação ao legado de Freud e Lacan que constitui um dos pontos
centrais desta pesquisa, priorizando-se o lugar que o delírio ocupa em toda a concepção
clínica da psicose desenvolvida pelo GIFRIC.
A crítica, já mencionada, que Apollon faz ao lacanismo oficial recai também sobre a
postura intelectualizante dos discípulos de Lacan em relação ao que seria uma psicose, isto é,
uma compreensão teórica que, mesmo trazendo algum progresso discursivo, não toca na
questão decisiva quanto ao tratamento da psicose. “Os melhores discursos teóricos sobre a
psicose, tanto quanto os fragmentos clínicos que pretendem esclarecê-la, nunca fizeram mais
que mostrar a inteligência do clínico, senão o saber pretenso do psicanalista” (1999, p.17).
Segundo Apollon, levar a sério a palavra do psicótico é sair da postura clínica da
psiquiatria, que não reconhece nesta palavra a presença de um sujeito nem mesmo a
possibilidade do advento de uma enunciação subjetiva como efeito de uma escuta analítica.
Ponto fundamental a se sustentar sempre que nos encontramos na função de analistas diante
de qualquer ser falante, ainda mais o psicótico (1999).
Mas, o problema é que Apollon posiciona-se como se essa escuta da palavra do
psicótico fosse um privilégio exclusivo do trabalho deles, desvalorizando um pouco a
contribuição de Lacan ante a psicose ao considerá-lo ainda como o secretário do alienado
numa menção indireta ao Lacan do caso Aimée. Como se toda a produção lacaniana tivesse se
estagnado no momento de sua tese de medicina (1932), quando Lacan nem se dedicava ao
ofício de psicanalista.
Entretanto, mesmo afirmando que “Lacan não nos deixou uma problemática clínica
para o tratamento das psicoses, e ainda menos uma estratégia para guiar sob transferência a
experiência psicótica até produzir um saber que faça suplência ao delírio” (1999, p.21),
63
Apollon reconhece que os seus próprios avanços se dão no campo aberto pelo ensino e prática
de Jacques Lacan, como já foi dito acima. No entanto, ele se apóia nos resultados clínicos
obtidos no “388” para sustentar um caminho próprio.
A produção de um saber que faça suplência ao delírio é o aspecto fundamental a ser
investigado em nossa pesquisa em relação à prática clínica desenvolvida pelo GIFRIC. Mas a
direção conferida à cura psicanalítica no “388” não prescinde, muito pelo contrário, é
tributária também de todo o avanço que representa a obra de Lacan a respeito da psicose. A
começar pela própria questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, a que Lacan se
ateve no final dos anos 50, quando delimitou a foraclusão do Nome-do-Pai como o passo
definitivo na distinção estrutural entre neurose e psicose, na medida em que o recalque
concernente ao campo das neuroses já havia sido muito bem definido por Freud.
A partir dessa preciosa contribuição de Lacan, abre-se uma maior possibilidade de
tratar a psicose pela psicanálise. A ponto de o próprio Apollon partir dessa pedra angular para
definir a psicose como residindo “essencialmente na perda do laço social causado pela
foraclusão dos Nomes-do-Pai” (1999, p.225).
Assim, em um tempo primeiro, fundamental na constituição do sujeito – o da entrada
no universo simbólico através das primeiras marcas significantes herdadas da rede que
habitamos – ocorre um tipo de falha quando se trata da psicose. Os primeiros significantes
identificadores e constituintes do sujeito são rejeitados, indicando-se nisso o mecanismo da
Verwerfung freudiana, traduzido por Lacan como foraclusão (1999).
A rejeição desses significantes primordiais da cena inconsciente do sujeito implica,
principalmente a partir do desencadeamento do surto psicótico, não uma perda da realidade,
como ainda se escuta fora dos meios lacanianos, mas uma perda do laço social. Levando-se
em conta que o laço social é definido por Apollon como “a capacidade do sujeito em negociar
a satisfação e a coexistência com o outro na língua da sociedade que, por seus valores e suas
leis define as regras em jogo nessa negociação” (1999, p.225). Leitura de Apollon a respeito
do laço social que cruza as abordagens antropológica e psicanalítica de sua formação
intelectual.
A psicose solicita outras soluções, diferentes daquelas encontradas para a neurose; e, a
partir do legado freudiano que sustenta a questão do pai como o determinante estrutural na
instauração do psiquismo humano, Apollon delimita as relações entre paternidade e psicose
para abordar o delírio e o lugar que este ocupa na direção de tratamento. Nessa trajetória,
64
Apollon afirma que Lacan desloca o acento que Freud concede ao Édipo na problemática da
psicose, não o atrelando às soluções encontradas para abordar a psicose, o que amplia o seu
campo de investigação clínica.
Como podemos acompanhar na seguinte citação: “esse deslocamento se opera da
questão do Édipo como mito da castração e da impossível satisfação do desejo, em direção ao
‘mal-estar na civilização’, a questão da morte do pai como mito fundador da articulação do
sujeito humano, à ordem infundada do simbólico” (1999, p.130). E Apollon enfatiza que essa
passagem que a leitura lacaniana proporciona nos permite fazer uma distinção entre os dois
mitos construídos por Freud: o do Édipo e o do Pai-Morto. O primeiro referindo-se ao mito
individual da castração, habitualmente relacionado à neurose; o segundo, apresentado,
principalmente, em Totem e tabu e Moisés e o monoteísmo, relacionado à morte do pai como a
possibilidade de instauração da própria ordem simbólica humana (1999).
O mito do Pai-Morto que funda a própria ordem simbólica é essencial para a
possibilidade de constituição da metáfora paterna para cada sujeito falante em particular, na
medida em que introduz a questão fundamental da autoridade. A produção mítica do pai
encontra-se na busca da origem, do fundamento da própria ordem simbólica, dotando-se o pai,
portanto, de uma autoridade para selar uma origem fundadora.
O mito do pai surge no lugar em que não há nada, não havia nada, sendo por isso “o
Símbolo por excelência”, uma produção ex-nihilo. Assim, o pai significa o fundamento, a
origem, autorizando-se a portar uma verdade, numa tentativa de suplantar justamente o que
havia antes da instauração do mito. Isto é, o “Infundado” do simbólico como designa Apollon
para nomear o hors-sens na qual encontra-se a impossibilidade real de saber sobre a origem
(1999).
“O Pai é assim a figura do começo simbólico que o mito produz no lugar da ausência
de Fundamento ou de Verdade em última instância” (1999, p.134). Portanto, o Pai é gerador
de sentido. Significante privilegiado que vetoriza na maior parte das vezes as manifestações
da cadeia discursiva do ser falante. Essa busca pelo fundamento primeiro também pode ser
observada, por exemplo, nos fenômenos religiosos ao longo das histórias e na própria
metafísica iniciada pelos gregos.
Apollon depreende do texto freudiano Totem e tabu a construção de um mito fundador
da ordem simbólica e do real, decorrente da abordagem da questão do pai pela psicanálise. E,
na instauração do simbólico, haveria dois tempos. Em um primeiro tempo imaginário, o pai da
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horda, todo poderoso e gozador de todas as mulheres, fruto da lei do mais forte, encontrar-seia no reino do gozo absoluto. E é justamente essa satisfação total e imediata em que se
constituirá o impossível após a sua morte pelos filhos. Convém lembrarmos que Apollon
considera que esse pai da horda é o Outro imaginário ao qual o psicótico é muitas vezes
submetido da forma mais cruel (1999).
Em um segundo tempo, a morte engendra o símbolo. O parricídio promove a lei de que
nenhum dos filhos usufruirá desse lugar de gozo sem limite; um vazio, portanto, se produz no
lugar do Pai-morto. O significante funda-se diretamente sobre esse vazio, esse furo, ausência
do pai como fundamento último da ordem simbólica. Com isso, produz-se, a partir desse
impossível, um real, o que impossibilita um gozo que seria total.
É o advento do simbólico que torna real uma impossibilidade, ou seja, um real
instituído pela própria produção do simbólico e, não, fruto de estruturas físicas de uma
realidade sensível. Com a promoção da Lei, o gozo é mediatizado e parcial, restando no que
Freud definiu como o inconsciente, das Ding, essa “Coisa” inapreensível pela malha
significante.
Apollon pluraliza o Nome-do-Pai – talvez, fruto da leitura do ensino mais tardio de
Lacan – considerando os Nomes-do-Pai como os significantes “guardiões” do real, e este é
efeito da própria construção do psiquismo humano. O que confere sentido à existência
humana é produto de um discurso mítico que, por sua vez, repousa sempre sobre o
“Infundado” do simbólico. Então, os Nomes-do-Pai, por invocarem a credibilidade da palavra
e da boa fé, garantiriam arbitrariamente um sentido (1999).
E é dessa forma que os Nomes-do-Pai estão implicados na metáfora paterna,
veiculando um sentido na estrutura da neurose, justamente o que fracassa quando se trata da
psicose, devido à foraclusão dos Nomes-do-Pai, como poderemos acompanhar nos casos
clínicos do próximo capítulo.
Constatamos na clínica que a foraclusão da metáfora paterna gera um desarranjo
simbólico no psicótico, sendo o delírio uma tentativa de reparação dessa falta da metáfora
paterna. Portanto, Apollon parte da enunciação freudiana de que a tentativa de cura
espontânea da psicose já é a construção do delírio, é o que aponta ao escrever que “a psicose
coloca imediatamente o sujeito ao trabalho da produção de uma solução que diagnosticamos
delirante” (1990, p.78). Mas o analista, sustentado por seu desejo, confrontaria eticamente o
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psicótico a buscar uma solução diferente do delírio ante os fenômenos elementares
desencadeados pelo surto psicótico.
Então, perante os fenômenos de automatismo mental, tão bem descritos por
Clérambault no resgate realizado por Lacan, o psicótico constrói o delírio. Assim, segundo
Apollon, o analista não trabalharia na produção de uma metáfora delirante como se preconiza
tradicionalmente entre os lacanianos, mas a direção de tratamento visaria uma desconstrução
da solução delirante.
A tese central de Apollon quanto ao tratamento psicanalítico da psicose baseia-se “no
esforço de penetrar o trabalho do delírio para desembaraçar a fantasia que o sustenta,
modificar esse trabalho e acompanhá-lo até o ponto onde deixa seu espaço próprio ao sujeito
do desejo, na busca de um novo laço social” (1990, p.79). Podemos observar, então, nessa
tese, uma proposta bastante ambiciosa de Apollon, ao preconizar a desmontagem do delírio,
ao desembaraçar a fantasia que o sustenta. Entretanto, os esclarecimentos teóricos a respeito
dessa afirmação não são amplamente desenvolvidos em suas publicações, como veremos ao
longo desse capítulo.
Retornando à questão do delírio como nos propõe Apollon, observa-se que, no lugar
do buraco deixado pela foraclusão da metáfora paterna, um Outro arcaico irrompe na psicose.
E a postura desse Outro ante o psicótico é de imposição de gozo. O Outro do psicótico
empresta corpo à lógica do delírio que identifica aí o imperativo de gozo numa busca de
produzir consistência ao discurso que tenta reparar as falhas da rede simbólica.
O psicótico necessita reparar a falta de fundamento que compromete a ordem
simbólica; para tal, o delírio o lança na empreitada de fundação de uma nova ordem, de um
novo sentido, através de uma “missão”. Portanto, segundo Apollon, o delírio estrutura-se ao
redor de uma “missão” em que o psicótico encontra-se como objeto de um Outro. Essa missão
singulariza o psicótico na medida em que se identifica com a eleição proveniente do Outro.
Assim, a missão que o delírio concede ao psicótico cria uma barreira aos fenômenos psíquicos
ou vocais intrusivos na cadeia discursiva, possibilitando uma ordem ao caos do universo
psicótico (1999).
Apollon delimita três tempos na construção do delírio para orientar a posição do
analista no tratamento. Esses três tempos relacionam-se essencialmente à função princeps da
linguagem, a metafórica, na constituição do sujeito habitado pela palavra. Portanto, o que está
em jogo no tratamento da psicose é a tentativa de (re)constituir um sujeito enunciador, na
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medida em que o psicótico encontra-se geralmente privado da dimensão metafórica,
permanecendo muitas vezes preso apenas ao deslizamento metonímico da linguagem (1999).
No primeiro tempo, o delírio organiza-se como uma maneira de interromper a irrupção
alucinatória de significantes destrutivos vindos do Outro e que esvaziam e veiculam a morte
do sujeito. Como a função metafórica da linguagem está comprometida no psicótico – o que o
dificulta a se representar e se metaforizar para um outro a partir de uma posição subjetiva
própria –, instaura-se um lugar vazio onde seu ser é capturado por um Outro devorador. Então,
ou o psicótico sucumbe a esse sacrifício ou busca construir uma nova linguagem que escape a
esse aniquilamento, residindo aí talvez a “esperança” que orienta toda a construção delirante.
No segundo tempo, o delírio tem como tarefa reorganizar a linguagem para neutralizar
as ingerências desse Outro não castrado. E, nesta empresa, os neologismos vêm em socorro
para tomar o lugar desse “inaudível” que o Outro profere. Os neologismos, como novas
formas semânticas ou combinações sintáticas, fazem-se presentes no discurso delirante em
forma de aparições lingüísticas destacadas de seu conjunto, quando se esperaria algum tipo de
enunciado metafórico. Mas essa forma de pagamento ao Outro, através de manifestações
neológicas, não é suficiente. Nesse caso, segundo Apollon, objetos ocupam o lugar dos
neologismos sempre onde a metáfora paterna faz falta.
Finalmente, no terceiro tempo, como já mencionado acima, um objeto particular ocupa
esse lugar vazio deixado pelo significante. Algum objeto como um “órgão interno”, na
terminologia de Apollon, é investido pelas palavras do Outro, que apontam a morte do sujeito.
Então, o psicótico se identificaria com esse objeto, podendo representar-se, inclusive, como já
morto, numa tentativa de fundar seu ser a partir desse objeto impossível. Talvez numa busca
de colocar em ação a morte do pai, que não se deu para o psicótico, para elevá-lo à categoria
de significante. Essa é a forma como o delírio se orienta para construir uma alternativa à falha
estrutural presente na simbolização primeira do psicótico (1999).
3.3 A Direção de Tratamento da Psicose no “388”
O GIFRIC sustenta que, para que a psicanálise possa se lançar ao tratamento da
psicose com melhores resultados, é necessário fazer algumas mudanças teóricas e técnicas
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dentro do seu próprio campo, sem perder o rigor da invenção de Freud. Com isso, pretende-se
a contraposição aos enormes preconceitos do atual ensino oficial relativo às neurociências,
que não reconhece qualquer possibilidade de tratamento psicanalítico da psicose.
Apollon postula quatro vias pelas quais os psicóticos podem transitar no laço social:
– a prática artística que promete um espaço ao desejo do sujeito;
– a religião ou a ciência, situados no campo do saber, numa tentativa de fundar um
laço social, não importando que esse saber seja revelado ou tecnologicamente adquirido;
– a psicanálise, cuja ética requer o retorno do sujeito do desejo ao campo do saber e ao
laço social;
– e, por fim, a escritura, na qual o psicótico se implica em cada uma das vias
precedentes, sustentando a escolha do seu delírio (1990, p.78).
Dentre essas vias de possível retomada do laço social pelo psicótico, obviamente o
“388” é o lugar onde o sujeito se endereça à psicanálise para reestruturar-se através de um
longo percurso. Em relação à atividade artística propriamente dita, esta participa ou não como
efeito de uma cura analítica no “388”. O fundamental é que Apollon aposta basicamente na
constituição de um sujeito do desejo como resultante de uma psicanálise, ou seja, a restituição
do desejo pelo sujeito.
Aspecto intrigante, que necessitará melhor enquadramento por nossa pesquisa, na
medida em que tradicionalmente entre os lacanianos não se afirme que haja um sujeito do
desejo na estrutura psicótica, mas, ao contrário, o psicótico estaria fadado a ocupar o lugar de
objeto de gozo de um Outro, enquanto a possibilidade do desejo se referiria apenas à estrutura
neurótica.
Assim, mesmo mantendo-se uma distinção estrutural entre neurose e psicose –
recalque e foraclusão – Apollon pressupõe a presença das mesmas categorias tanto para uma
como para a outra estrutura subjetiva. Como notamos em relação ao desejo, a fantasia, o
sintoma (o delírio é considerado por ele um sintoma psicótico). Entretanto, a diferença está no
arranjo dessas categorias teóricas que são depreendidas da experiência clínica em cada
posição subjetiva.
O tratamento analítico, segundo Apollon, regularia em última instância o trabalho da
psicose, que é o delírio, pressupondo, para tal, quatro momentos lógicos em que o sujeito
psicótico, eticamente implicado em seus dizeres, o remanejaria, na medida em que o
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remanejamento mesmo do delírio é o que constitui o cerne do tratamento desenvolvido pelo
GIFRIC.
O remanejamento do delírio produz uma fantasia fundamental que melhor posiciona o
psicótico ante o “Infundado” do simbólico, que, por sua vez, encontra-se presente para todo
ser falante, independentemente da estrutura clínica. De acordo com Apollon, poderíamos
pensar que o que varia entre as três grandes estruturas clínicas – neurose, psicose e perversão
– é a resposta que cada uma delas fornece à questão fundamental do ser falante: qual o
fundamento último que justifica a “ex-sistência” humana?
É interessante observar que, praticamente em nenhuma passagem dos textos do
GIFRIC, se menciona o termo “metáfora delirante” desenvolvido por Lacan em seu texto De
uma questão preliminar. Talvez pelo fato de o grupo canadense considerar que a metáfora
delirante em si já faça parte do processo de estabilização espontânea da psicose, não
pertencendo, portanto, a uma cura analítica propriamente dita, que se dispõe a produzir uma
mudança na posição subjetiva do psicótico diante do delírio.
Apollon diferencia em sua teorização o que é da ordem de um tratamento e o que
pertence à cura analítica. O tratamento corresponde à psicoterapia que visa “apenas” à
estabilização pela via do próprio delírio (metáfora delirante), enquanto a cura analítica
proporciona um remanejamento do delírio (1999).
Seria, então, a metáfora delirante um sinônimo de delírio para Apollon?
Talvez possamos responder que sim porque a omissão sistemática do termo “metáfora
delirante” nos textos do GIFRIC e a exclusiva consideração a respeito do delírio representem
para eles que ambos os termos se equivalem. O próprio delírio, inclusive, é considerado como
um sintoma da estrutura psicótica. Aspecto delicado de se sustentar quando se levam em conta
as teorizações de Freud e de Lacan a respeito do sintoma e do fenômeno elementar. E não
podemos desconsiderar que o delírio apreendido como um sintoma é o procedimento da
psiquiatria.
Consideramos que há uma diferença entre delírio e metáfora delirante. O delírio,
mesmo representando uma tentativa espontânea de cura, se caracterizaria mais por fragmentos
não ordenados decorrentes do deslizamento da cascata significante do que uma produção de
significação metafórica, mesmo que delirante, mas que interromperia a cascata significante
desencadeada pelo surto, estabilizando, assim, o sujeito, como nos define Lacan a propósito
da metáfora delirante.
70
Reconhecemos que é muitas vezes problemático calcar o tratamento exclusivamente
nessa significação delirante que a metáfora delirante construída pelo psicótico fornece.
Todavia, a construção dessa metáfora exige um enorme trabalho do psicótico quer seja
espontâneo ou sob transferência.
Surgem, portanto, questões: é possível a todos os psicóticos construírem uma metáfora
delirante? E, se bem constituída, esta metáfora não facilitaria um certo laço no social,
dependendo da particularidade da situação? O tratamento proposto pelo GIFRIC alcança um
remanejamento tão positivo assim do delírio?
Apollon sugere quatro tempos lógicos para que haja o remanejamento do delírio na
cura analítica proposta aos psicóticos do “388”:
– tempo da reconstrução de uma história subjetiva;
– tempo da reconstrução da imagem corporal;
– tempo do objeto interno;
– tempo de uma ética do laço social (1990).
Analisaremos detalhadamente cada um desses tempos, não sem antes os resumir.
No primeiro tempo lógico do tratamento, haveria a produção de um limite, este teria
por função suprir a falha do significante paterno em relação a um gozo mortífero que, por não
estar barrado, invade o espaço subjetivo. É o tempo da (re)construção de uma história
subjetiva assentada na palavra do psicótico.
O segundo tempo lógico do tratamento implica a reconstrução da imagem corporal, na
medida em que o sujeito psicótico habita seu corpo como um escrito do Outro que se desdobra
como o pivô de sua relação com o outro e com a sua própria gestão do espaço e do tempo.
O terceiro tempo – talvez a proposta mais enigmática de Apollon – é o tempo do
objeto interno, nó de gozo louco, ao redor do qual o desejo do sujeito é tomado pelo gozo do
Outro, mas que é considerado também o momento da saída dos fenômenos psicóticos.
E, por último, o quarto tempo lógico, que se caracteriza pela exploração dos
fundamentos estéticos de uma ética do laço social quando o sujeito já se encontra em posse de
um saber para constituir um laço social (1990).
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3.3.1 Primeiro tempo lógico: reconstrução da história subjetiva do psicótico
Inicialmente, para que haja a produção de uma posição subjetiva, é de fundamental
importância que o psicótico tome para si a responsabilidade do seu tratamento, engajando-se
aí tanto o seu desejo na cura quanto o desejo do analista em sustentar essa cura. E, para que o
trabalho analítico possa ser abordável na clínica da psicose, é necessário, primeiro, que se
produza uma brecha na certeza delirante, possibilitando, assim, um mínimo de laço
transferencial. Então, é a partir dessa brecha que o psicanalista deve manter aberta que se
instaura uma demanda de tratamento.
O trabalho analítico parte do próprio delírio quando este já está implicado, inclusive,
na demanda de tratamento que o paciente formula, como podemos acompanhar em alguns
exemplos dados por Apollon: um paciente procura o “388” “para ser sacerdote”; um outro,
“para recomeçar uma nova civilização”; e mais um, ainda, para “desembaraçá-lo dos
pensamentos parasitários” (1990, p.82). Assim, o sujeito é tomado em sua palavra justamente
no ponto em que esta é parasitada pela voz do Outro.
Apollon também faz uma distinção entre o fenômeno e a estrutura da psicose. Os
fenômenos da psicose – a doença – englobam as particularidades de cada um, como o
sofrimento, o delírio e os perigos físicos que o sujeito pode vir a ter. Enquanto a estrutura da
psicose relaciona-se ao rapport singular do sujeito psicótico com o Outro. Relação essa
caracterizada como pulsão de morte que ele experimenta como um gozo desse Outro: uma
perseguição ou uma possessão (1990).
Embora Apollon proponha uma grande modificação na fenomenologia da psicose em
decorrência do tratamento, mantém-se lacaniano ao afirmar que a estrutura não se modifica,
ao contrário, é a partir dela e do fantasma posto em cena no trauma que o sujeito poderá
reorganizar a sua presença no mundo e seus laços com o outro. Portanto, a teorização de
Apollon pressupõe a presença da fantasia na estrutura psicótica a ponto de articular a
desmontagem do delírio à construção do fantasma.
Ao se escutar a palavra delirante como ponto de partida do tratamento analítico,
permite-se que a estrutura e a significação singular do delírio sejam desdobradas para o
próprio sujeito psicótico. A maioria dos tratamentos a psicóticos se propõe a estabilizar o
delírio para que um certo alívio do sofrimento seja possível, no entanto, para Apollon “o
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delírio é precisamente a resposta do sujeito psicótico à descompensação psicótica a às vozes
que a determinam” (1990, p.84).
Nesse sentido, o sujeito, ao ser convocado a tomar uma posição em seu nome próprio,
é conduzido ao limite do que lhe faz sentido, necessitando, então, construir uma barreira ante
as vozes, ao gozo do Outro, que o invade até a possessão de seu espaço subjetivo. E, para
evitar esse momento de profunda vacilação que o sujeito vivencia, procura-se abafar o delírio
através, por exemplo, da medicação, que, no entanto, não suprime as vozes, impedindo com
isso a única oportunidade que o sujeito psicótico tem para elaborar e integrar essas vozes nisso
que lhe parece ser o universo de sentido, ou seja, o delírio.
Como pontuamos no item anterior desse capítulo, segundo Apollon, o delírio se
estrutura em torno de uma “missão” na qual o psicótico é o objeto por parte de um Outro, na
medida em que o delírio permite ao sujeito psicótico elaborar uma identificação a partir da
eleição de um Outro. Através desse processo, o psicótico ordena os fenômenos psíquicos e
vocais que fazem intrusão na sua consciência, dando um sentido a seu universo subjetivo.
Assim, é na ordem da linguagem e do sentido que o delírio do psicótico procura organizar-se
ao redor da certeza onde se funda sua psicose (1999).
Segundo Apollon, o neurótico, às vezes, pode delirar para reparar um erro subjetivo,
um sofrimento pessoal, um mal que lhe foi feito, ou seja, aspectos relacionados à castração.
Enquanto para o psicótico, mais do que a perda mesma que a linguagem impõe a todo ser
falante, é a própria falha da linguagem em representar o real, fundando a ordem do sentido,
que lhe aparece como um mal absoluto. Em relação a essa falha estrutural da própria
linguagem, o neurótico responde escolhendo o pai, ou seja, uma autoridade que garante a lei,
já para o psicótico essa escolha pelo pai está de partida foracluída, conduzindo-o, portanto, à
tentativa de construir um fundamento privado através do delírio (1990).
O tratamento analítico colocará em causa a certeza delirante do sujeito psicótico sob
transferência ao levar a sério a sua palavra. De fato, é através da palavra delirante mesmo que
o analista escuta os significantes a partir dos quais pode interpelar o delírio até reconstituir os
fragmentos da história subjetiva do psicótico. Desse modo, esses fragmentos são colocados
em oposição aos aspectos do delírio, produzindo-se assim novas referências à identificação do
sujeito, podendo-se com isso modificar os suportes de sua psicose.
Contudo, essa demanda pela palavra do psicótico remete a construções anteriores de
suplência em relação à falha da linguagem, desencadeando-se como resposta uma
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descompensação psicótica. Mas essa crise não terá as mesmas características de uma crise
acompanhada apenas por medicação dentro de um panorama hospitalar, por exemplo. Nesse
caso, a diferença se encontra na presença do desejo do analista e da equipe de intervenientes
clínicos.
Nesta primeira fase do tratamento, Apollon constata a ocorrência de três crises
psicóticas, nas quais a posição de sujeito é mantida graças ao trabalho do analista e da equipe
de intervenientes ao longo do labirinto em que o sujeito se encontra para modificar
radicalmente a sua relação com os fenômenos da psicose. Proporcionando-se com isso a
criação de novos laços sociais.
As três crises que ocorrem neste primeiro tempo do tratamento são consideradas
lógicas, mesmo que inúmeras crises psicóticas possam acontecer nesta etapa da cura. O
importante para Apollon é detectar as passagens lógicas que caracterizam cada uma das três
para se evitar inclusive uma leitura cronológica a respeito desses momentos. Porque isso
reduziria enormemente o alcance inovador da proposta de Apollon, na medida em que,
tradicionalmente, procura-se evitar qualquer tipo de crise no transcurso dos tratamentos aos
psicóticos, tanto o psiquiátrico como até mesmo o psicanalítico.
Assim, na direção de tratamento traçada por Apollon, a ocorrência de crises é esperada
como resultado do convite oferecido aos psicóticos para que tomem a palavra. Como podemos
reconhecer na própria nomeação concedida à primeira delas: “crise de inscrição” no “388”
(1990).
Entre o momento de entrada do psicótico nas atividades do Centro e o surgimento da
primeira crise, pode transcorrer um bom espaço de tempo. Na maioria das vezes, ele ainda não
se encontra em análise porque a demanda de análise geralmente se efetua em um segundo
tempo em relação à participação do psicótico nos ateliês de criação e na equipe de
acompanhamento. Mas, somente a partir dessa crise que o sujeito se inscreve verdadeiramente
no “388”, porque até então não se conhece realmente a posição do sujeito perante a sua
psicose. Ou seja, os significantes privilegiados que compõem a “missão” delirante do
psicótico se encontram velados.
A primeira crise é um ponto de partida decisivo tanto para um engajamento definitivo
do sujeito em seu tratamento como para que a equipe de intervenientes possa recolher desde
os sinais precursores até a perda do laço social, a desorganização têmporo-espacial, os
74
fenômenos de intrusão na estrutura de linguagem do sujeito. Enfim, durante a crise, é
composto um vasto dossiê sobre as etapas e a evolução da crise.
A presença da equipe ao lado do sujeito, em um acompanhamento contínuo e
particularizado, evitando-se situações de perigo tanto para ele como para o outro, permite aos
poucos a saída da crise. Como também a identificação dos significantes maiores que regem o
sujeito, as vozes às quais encontra-se subjugado, os tipos de injunções superegóicas que ele
crê estar obrigado a responder. Enfim, toda a gama fenomenológica decorrente da posição do
psicótico ante o gozo do Outro.
Nas semanas seguintes, o sujeito é convidado a falar sobre o que lhe ocorreu durante a
crise, numa tentativa de analisá-la, buscando produzir alguma ordem para o que foi vivido. Os
intervenientes não falam no lugar do sujeito sobre o que este vivenciou, mas utilizam alguns
pontos apreendidos durante a crise para ajudarem o psicótico a corrigir a percepção da própria
crise, permitindo-se com isso uma certa limitação nas interpretações delirantes. Ou seja, um
certo saber sobre a crise é empreendido para se conter a perda do lugar do sujeito gerada pelas
manifestações da psicose (1990).
A segunda crise se caracteriza por um maior estreitamento na relação entre o psicótico
e a equipe que o acompanha, assim como pelo reconhecimento dos elementos que estão em
jogo em seu arranjo subjetivo. E para tal, o objetivo mais imediato é manter o psicótico em
posição de sujeito em face dessa nova crise.
Durante a segunda crise, os significantes privilegiados da história subjetiva do
psicótico são orientados ainda mais para limitar as interpretações delirantes. Atendo-se mais
aos fragmentos de sua história do que às injunções do supereu e das vozes que comandam as
passagens ao ato.
Assim, a (re)construção de uma história subjetiva a partir desses significantes até então
esparsos para o sujeito permite uma distinção entre o discurso delirante que o incita a
desempenhar uma “missão” e a produção de uma narrativa histórica por meio da qual se
protege dessa invasão do Outro.
Portanto, uma certa distância começa a ser traçada entre o delírio e o sujeito,
decorrente de uma nova interrogação – escritura – no fechado campo de linguagem do
psicótico. Possibilitando, por exemplo, discutir com a equipe a respeito das injunções que o
atravessam e obter uma assistência para gerar melhor sua vida, mesmo durante os momentos
críticos.
75
Entretanto, não há o abandono das certezas delirantes por parte do psicótico, mas o
início de uma torção em relação ao uso e à mestria que essas certezas concedem ao sujeito.
Apollon salienta que isso representa uma primeira aproximação sobre o que está em jogo no
tratamento da psicose pela psicanálise: “constranger o trabalho e a criatividade próprios à
psicose na produção de um limite” (1990, p.90). Mas o gozo do Outro começa a ser limitado
não apenas pelo significante, mas pela borda que uma escritura produz através da letra.
Embora, não tratemos, nessa pesquisa, a respeito da distinção entre letra e significante.
Após a segunda crise, o psicótico detém um certo saber sobre a fenomenologia de sua
psicose, continuando, no entanto, a conferir um valor de verdade as suas certezas delirantes.
Mas esse saber que começa a ser construído sobre si e sua psicose, assim como a gestão de
sua crise, possibilita pela primeira vez a distinção entre as montagens delirantes do restante de
sua subjetividade.
A terceira crise psicótica apresenta-se em um momento em que o psicótico já pode
gerir seus horários de atividades tanto no Centro como em seu dia-a-dia, por exemplo, em seu
trabalho ou em seus estudos, dependendo do caso.
Esta é a primeira crise que o sujeito controla sozinho, embora tenha o apoio dos
intervenientes, do psiquiatra e do seu analista. Em algumas vezes, somente o analista toma
conhecimento da crise; em outras situações, o psiquiatra fornece um apoio maior através de
medicação específica.
Entretanto, entre a maioria dos usuários do “388”, os intervenientes reconhecem a
crise através da lentidão no ritmo do psicótico, da dificuldade em respeitar os horários de suas
atividades, da desorganização em sua moradia, com a alimentação, o sono, etc.
Nesta ocasião, os elementos delirantes retornam, mas o que está em profunda mudança
é a posição do sujeito diante das manifestações da psicose. Trata-se de passar “de uma posição
passiva em relação à escritura que trabalha seu ser a uma posição de criatividade e de
produção, em que o psicótico recupera uma parte dessa escritura para produzir um “objeto
interno” em suplência à foraclusão do Nome-do-Pai, e daí rearticular o significante para fazer
sentido” (1990, p.91-92).
Um gozo Outro se escreve no ser do sujeito psicótico através dos fenômenos de
linguagem, como as alucinações e os delírios nos indicam na clínica. Mas, segundo Apollon,
uma fração desse gozo pode ser subtraída se houver uma outra tomada de posição subjetiva
por parte do psicótico.
76
A questão fica por conta do estatuto desse “objeto interno” teorizado por Apollon.
Seria um novo significante produzido em decorrência da subtração de gozo do Outro? O
psicótico, por não se balizar no Nome-do-Pai, produziria uma suplência à foraclusão ao
delimitar esse “objeto interno”? Mas se for um novo significante, efeito do reposicionamento
do sujeito, perante a psicose, por que, então, o nomear de “objeto interno”?
Então, a partir dessa terceira crise, ou o sujeito se engaja ainda mais no trabalho de
análise, que proporciona uma reconstrução em sua vida ao criar novos laços sociais ou, em
alguns casos, há uma desistência no processo de remanejamento do delírio.
3.3.2 Segundo tempo lógico: a reconstituição da imagem corporal
Apollon propõe a reconstituição da imagem corporal como o segundo tempo lógico na
direção de tratamento à psicose, na medida em que o psicótico, tomado pelas vozes e
injunções do supereu, apresenta uma relação particular com o corpo. Este é atravessado por
um Outro que exerce um controle, possuindo seu próprio espaço-tempo. Na medida em que o
significante paterno que delimita a amarração imaginária do corpo claudica, encontra-se um
corpo perseguido, vigiado, possuído por um Outro real, muitas vezes obsceno (1990).
O corpo, para a psicanálise, é uma escrita traçada a partir do sujeito do inconsciente,
que porta a marca da história deste sujeito. Pulsional por excelência, o corpo é uma construção
em que o corte do significante, o recobrimento da imagem e o furo do real se enodam para dar
suporte ao sujeito do inconsciente. Portanto, o corpo da psicanálise não é o dos órgãos nem o
da carne (1990).
Enquanto o organismo ocupa um lugar Outro. O organismo parece ser um dos nomes
da alteridade radical que “co-habitamos”, impossível de se apreender pelo sujeito, “real cru”,
como propõe Rabinovitch (1998) para diferenciar do real pulsional já marcado pelo
significante. No entanto, o organismo, para ser nomeado como tal, necessita da própria
estrutura de linguagem que mortifica, desnaturaliza a coisa. Por isso, não escapamos da lógica
do significante, embora, mesmo ao nos aproximarmos de seus limites, possamos pressupor
um para-além do significante.
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Assim, o corpo da psicanálise é uma longa construção correlativa à própria
estruturação da linguagem, nunca um dado a priori para o ser falante. E a clínica da psicose
nos aponta muito radicalmente em alguns exemplos o quanto a desestruturação da linguagem
é acompanhada por uma desestruturação da representação do corpo. Então, a realidade, o
corpo e o sujeito passam a ser habitados, povoados, atravessados pelo inaudito de um Outro
não castrado (Schaustz, 2000).
Apollon busca articular nessa segunda etapa do tratamento a reconstrução de uma
história subjetiva com a reconstituição da imagem corporal, para que haja uma mudança na
relação do psicótico com seu corpo. Assim, o psicótico, ao começar a sair do campo
fenomenológico, em que o delírio domina toda sua subjetividade, tende a buscar uma
reapropriação de seu corpo no campo particular da sexualidade, como espaço de investimento
do desejo.
Segundo Apollon, uma inquietação a respeito dos efeitos da psicose no corpo passa a
ocorrer com os psicóticos nesta etapa do tratamento. Assim como um questionamento sobre a
posição que ocupam ou possam vir a desempenhar como homens ou mulheres no espaço
comunitário. Entretanto, nesse momento, o exercício de uma vida sexual propriamente dita
ainda não acontece para a maioria dos usuários do “388”.
Apollon aposta que o início do remanejamento do delírio através da reconstituição de
uma história subjetiva mais ou menos fictícia, a partir dos fragmentos da história do próprio
sujeito, limita de alguma forma os efeitos da psicose sobre o corpo. O psicótico, ao ser
interpelado pelo analista através dos elementos do seu delírio – principalmente, a partir dos
significantes colhidos do discurso do sujeito durante as crises – possibilita a reconstrução de
uma história subjetiva na primeira etapa da cura analítica (1990).
No segundo tempo lógico, é mantida pela análise a exigência de limitar o gozo e
transformá-lo em outra coisa por parte do sujeito. Trata-se, então, de produzir uma articulação
da pulsão em produções que engajem o sujeito no laço social através de manobras da
transferência. Lembremos que, para Apollon, a fenomenologia da psicose se estrutura na
perda do laço social como negociação da satisfação e coexistência com o outro.
Desse modo, intensificam-se os dispositivos estruturados no “388” que possibilitam
um melhor engajamento do psicótico no laço social. O interveniente, por exemplo, interroga o
psicótico no sentido da sustentação de seu desejo na retomada e gestão de algum projeto,
como os estudos; o trabalho, quando houver; ou mesmo a busca de um novo trabalho ou o
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aprendizado de algum ofício – assim como a reinserção do psicótico em seu espaço
domiciliar.
Um acompanhamento médico de clínica psiquiátrica também se faz necessário para
assegurar a saúde psíquica do psicótico, garantindo o repouso, o sono, a alimentação para que
o sujeito suporte o trabalho analítico dessa fase.
Mas, neste momento, a prática estética nos ateliês de criação é muito importante por
possibilitar um espaço particular que permite ao psicótico, afetado pelo gozo do Outro no
corpo, produzir um objeto. Nesse sentido, a prática estética conduz o sujeito a lidar com o real
de outra forma ao investir o seu desejo em outra coisa que não somente em sua psicose.
Apollon considera a estética como “um espaço aberto no significante ao real do sujeito
e aos aspectos do seu desejo, quando a referência da linguagem às coisas encontra-se
abandonada”, compreendendo-se então a necessidade de uma prática estética no “388” (1990,
p.96). Não cabendo considerar essa experiência como arte-terapia ou uma prática artística
necessariamente, porque somente um pequeno número de usuários apresenta talento suficiente
em transformar essa prática estética em uma prática artística.
O objeto resultante dessa prática enoda os três registros do sujeito: no imaginário,
produz uma significação que articula a experiência real do corpo fragmentado às regras
simbólicas que geram a construção de um objeto estético. Ao mobilizar o desejo do sujeito em
uma produção criativa que permite reescrever o gozo do Outro que trabalha o corpo do
psicótico. Resulta daí, um certo recuo do Outro perseguidor, uma limitação do delírio e uma
transformação de seus objetos, permitindo-se, conseqüentemente, a formação de uma fantasia
que venha estruturar o imaginário do sujeito.
A prática estética gera um sentido frente o vazio ao qual o psicótico é confrontado
quando sai dos estados de crise do primeiro tempo do tratamento. Assim, a aposta ética do
analista conduz o psicótico ao espaço estético onde o significante delirante é golpeado,
permitindo-se um esboço de metáfora, relançando o sujeito a reinvestir a libido nos objetos na
medida em que participa do laço social.
Contudo, mesmo sendo considerada a restauração do laço social pelo psicótico o eixo
principal na direção de tratamento, não se exclui a persistência real de um “núcleo do delírio
em que se situa a estrutura do trauma que sustenta a psicose” (1990, p.95). A própria retomada
do laço social se funda a partir desta estrutura traumática que particulariza a psicose. Nesse
sentido, o texto de Apollon concede uma relevância ao significante trauma do discurso
79
freudiano, obviamente não como trauma sexual empírico, mas como o real traumático
desencadeado pela sexuação inerente à constituição de todo ser falante.
Assim, o que ocorre com a psicose, durante o tratamento no “388”, é uma
reestruturação da relação do sujeito com gozo do Outro. Apollon preconiza que o “núcleo
delirante” toma a forma de “objeto interno”, objeto esse que vem demonstrar a insistência da
estrutura psicótica para além do fenômeno psicótico (1990). Ou seja, não há mudança de
estrutura, mas, sim, mudança subjetiva ante a própria estrutura, na medida em que a
manifestação da estrutura de linguagem pode se modificar, mas não ser suprimida totalmente,
porque aí se aloja o próprio sujeito, quer seja psicótico, neurótico ou perverso.
Enfim, o trabalho conjunto dos psiquiatras, dos intervenientes clínicos e dos ateliês
produz uma modificação importante na relação do sujeito com o corpo. O psiquiatra
minimiza, através da medicação, os efeitos da psicose no ritmo do sono, na nutrição, etc. Uma
melhor gestão do espaço e do tempo é trabalhada pelos intervenientes nas atividades do dia-adia e a prática estética mobiliza o desejo do sujeito a uma criatividade artística. Com isso,
inicia-se, juntamente com a análise, a reapropriação de um lugar de desejo e de satisfação com
o outro até então inéditos para o sujeito.
3.3.3 O terceiro tempo lógico: a produção do fantasma
A produção do fantasma, considerada a terceira fase lógica do tratamento, é
denominada por Apollon como a externalização do objeto. O “objeto interno” é apreendido,
então, como uma fonte de elementos significantes para uma fantasmatização na estrutura
psicótica, em que o desejo apresenta uma modalidade particular. A mobilização do desejo na
prática dos ateliês de criação, no momento em que o sujeito se reapropria de seu corpo, “é um
tempo de passagem da sintomatização (escritura do gozo do Outro) à fantasmatização
(estruturação do trauma e subjetivação do sentido no objeto interno)” (1990, p.98).
O delírio é lido por Apollon como um sintoma psicótico, um escrito do gozo do Outro
que habita o sujeito. Leitura que nos intriga por localizar na psicose um sujeito sintomático,
dividido, portanto, e por não privilegiar o delírio como um fenômeno elementar, como nos
ensina Lacan.
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A questão é como pensar a constituição de um sujeito psicótico dividido pelo recalque
originário, obviamente uma proposição contrária ao avanço que o próprio conceito de
foraclusão engendra. Ou seria possível pensar que, ao longo do tratamento desenvolvido pelo
GIFRIC, uma certa barra em relação ao gozo do Outro é construída em ambos os campos: o
do sujeito e o do Outro?
Apollon propõe, em decorrência do remanejamento do delírio através das intervenções
realizadas no “388”, a passagem do sintoma (delírio) à construção de um fantasma
fundamental na psicose. Proposta bastante complexa, que requer que discorramos de forma
sucinta a respeito da fantasia fundamental em nossa dissertação, embora saibamos de antemão
que não esgotaremos essa questão no âmbito dessa pesquisa, principalmente ao articulá-la à
psicose.
A clínica inventada por Freud, ao escutar inicialmente as histéricas, é um trabalho que,
segundo Vidal, possibilita aproximações e afastamentos entre as formações do inconsciente e
a estrutura do fantasma a ser produzida em análise. Portanto, o fantasma é fundamental no
campo psicanalítico, não sendo um dado a priori, mas algo a ser construído no transcurso de
uma análise (Vidal, 1991).
O ponto que articula uma formação do inconsciente e o fantasma é o sintoma –
sintoma como divisão do sujeito e em estreita relação com um gozo silencioso. O sintoma tem
uma articulação com o fantasma, uma vez que ele representa um gozo. Esse gozo implica uma
posição de punição do sujeito ante o Outro que é a encarnação, no sintoma, da estrutura do
fantasma fundamental do sujeito: ser batido pelo pai –, como Freud decanta ao longo de seu
percurso clínico no texto Bate-se em uma criança.
O ponto de afastamento entre as formações do inconsciente e o fantasma diz respeito à
própria diferença entre o inconsciente – lugar do Outro, cadeia significante – e o isso – lugar
do silêncio da pulsão e da dimensão real do gozo. O sujeito fala em análise causado por algo
que é disjunto do inconsciente, embora se constitua como sujeito do inconsciente. E o
fantasma se separa das formações do inconsciente por ser um ponto onde não há mais nada a
dizer (1991).
Segundo Vidal, o fantasma é, pois, sempre uma construção a posteriori em que os
restos das cenas primárias encontram um suporte. Um real primeiro, excluído do significante,
é matéria do fantasma. Processa-se, então, uma passagem do acontecimento traumático real ao
81
real indizível do trauma. E a teoria analítica recorre à construção do mito do fantasma para
dizer em metáfora a respeito desse real impossível (1991).
A construção tem a função de estabelecer um texto ali onde há algo impossível de ser
dito. Texto construído a partir das coisas vistas e ouvidas, porém não compreendidas pelo
sujeito. Portanto, a necessidade da construção se desprende da impossibilidade que o recalque
primário instaura: algo que nunca teve acesso à consciência, à palavra. Por esta
impossibilidade radical, a verdade é condenada à estrutura de ficção (1991).
Segundo Forbes, uma análise implica a travessia do fantasma, embora os fantasmas
não estejam ali no inconsciente à espera de interpretação. Na cura, é produzida a frase que
articula o fantasma. O fantasma é, justamente, resposta à não relação sexual. É a articulação
lógica de que não há proporção sexual (Forbes, 1984).
Uma vez estabelecida a primazia do fantasma na direção da cura, é necessário relançar
a discussão que rege a estática do fantasma por um lado e a dinâmica do sintoma pelo outro. E
abordar a clínica do sintoma é falar de uma clínica do supereu. Um supereu que, ao impor o
mandato do gozo, se opõe à lei do desejo (1984).
A vertente do sintoma é a que é operada na associação livre, na articulação do S1 com
S2. Sabemos que um sintoma se altera em uma análise pela mobilização das cadeias
significantes e, por essa vertente, que é a do significante, a análise torna-se interminável, pois
falta o significante último que daria a significação absoluta e final (1984).
A vertente do fantasma, pelo contrário, mostra que há algo estático em uma análise –
diferentemente da vertente do sintoma, que articula o sujeito à cadeia dos significantes. Aqui,
a fórmula de Lacan S<>a põe juntos dois elementos de natureza diferente: o sujeito sintomal,
intersticial, efeito da ordem significante, e o a da ordem do objeto (1984).
De um lado do algoritmo, está o sujeito do inconsciente – atravessado pelo significante
–, mas também, numa acentuação própria ao fantasma, vacilante e confrontado com seu
próprio desaparecimento. Um “não-eu” se perfila em seu horizonte mais ou menos próximo.
Do outro lado do algoritmo, o sujeito, mais-além de seu desaparecimento, se sustenta em um
objeto, o a (1984).
No algoritmo, o que liga o sujeito e o objeto, a “punção”, indica todas as relações
possíveis, menos a igualdade. O estabelecimento dessa relação (do sujeito do inconsciente e
do objeto a) aparece como o mínimo constitutivo do fantasma.
82
O fantasma fundamental é o lugar onde o sujeito consiste como objeto do Outro. Nesse
sentido, o “momento” do fantasma é aquele do eclipse do sujeito e de sua passagem para o
objeto. Trata-se igualmente, para o sujeito, de “um ser ou não ser” o objeto quanto de um “têlo e não o ter”. Assim, o fantasma é fundamental, ou seja, um fundamento, a saber: um
axioma (1984).
Cosentino realiza uma leitura da clínica que aborda a estrutura do fantasma nas três
posições subjetivas. Tornando-se interessante cotejar um pouco a sua abordagem com a do
GIFRIC.
“A direção da cura não implica até onde, senão desde onde se conduz uma psicanálise.
Situado isto, pensamos que o fantasma é um dos lugares que permite uma diferenciação das
estruturas que, enquanto tais, são irredutíveis umas às outras. Neurose, Perversão, Psicose.
(...) Para a neurose, no sintoma, o supereu fala do fantasma. Para a perversão, no sintoma, fala
o fantasma do supereu. Para a psicose, a alucinação fala no delírio, do fantasma impossível,
como verdade histórica. A castração é alucinatória” (Cosentino, 1984, p.95).
Na neurose, o recalque fracassa, sendo o sintoma a presentificação desse fracasso
como retorno do recalcado. A partir daí, o sintoma fala do fantasma ou, mais precisamente, o
supereu como mandato imperativo de gozo vocifera o fantasma no sintoma (1984).
Quanto à psicose, Cosentino também atribui um tratamento possível, assim como o
GIFRIC, levando-se em conta a determinação do fantasma nesta estrutura, ou seja, um “passo
a mais” do que foi a instauração da foraclusão do Nome-do-Pai como uma preliminar a toda
abordagem possível da psicose realizada por Lacan, em 1958. E, talvez, não tivesse ocorrido
esse “passo a mais” realizado tanto pelo GIFRIC como por Cosentino, por exemplo, sem o
próprio avanço do ensino de Lacan, como veremos a seguir.
Cosentino realiza uma leitura do matema da fantasia proposto por Lacan (S<>a),
substituindo o S por um sujeito do delírio articulado a um supereu no real, sendo a alucinação
uma encarnação do objeto a enquanto uma “voz”. Portanto, a psicanálise reconhece nesse
“objeto” a materialidade real da alucinação, diferindo-se da psiquiatria, que sempre
considerou a alucinação como uma “percepção sem objeto” (1984).
A alucinação é uma voz imperativa – eis aí talvez a dimensão real do supereu que
Cosentino articula ao “sujeito do delírio” – contudo, totalmente cortada do simbólico. Essa
exclusão do simbólico proporciona uma grande diferença em relação à clínica da neurose,
que, por não o ter, pode em um final de análise alcançar uma dimensão ética do supereu, ao
elaborar a dimensão imperativa do supereu do início do tratamento (Fernández, 1997).
83
No entanto, na psicose, a alucinação encontra-se como uma frase-objeto, frase-voz,
causa gozante do delírio que tenta cerzi-la ao produzir um texto. Assim, a alucinação é a
ordem insensata que se constitui em objeto no real, situando um dos termos do fantasma na
psicose. Poderíamos, então, reconhecê-la como a verdade histórica não simbolizada, a perda
da realidade psíquica, o núcleo do delírio?
Por outro lado, segundo Cosentino, o delírio é um tempo de pressa, um apressamento
da estrutura como resposta à foraclusão. Escutar o delírio será então estabelecer um tempo de
suspensão na certeza. Certeza delirante decorrente de um modo particular de o psicótico entrar
na linguagem: “o paranóico não pergunta quem é, isto é, pelo seu ser, senão pergunta por que
não lhe crêem, se ele, identificado no lugar da verdade, a diz” (Cosentino, 1984, p.234).
Portanto, a análise com o psicótico não pode prescindir de produzir uma fissura na certeza
delirante como ponto de partida de uma mudança subjetiva.
Segundo Apollon, na neurose, o fantasma que oferece um objeto ao desejo está
regulado pela subjetivação do gozo como gozo fálico, enquanto na psicose, o objeto que
alimenta o fantasma vem como sustentação de um sentido retirado do delírio. O núcleo do
delírio toma a forma de um “objeto interno” que marca, inclusive, o fim do período
precedente. Portanto, o delírio se concentra, se localiza nesse “objeto interno”, permitindo,
assim, que o sujeito disponha do resto de seu espaço subjetivo. O gozo se encontra, então,
limitado, localizado e ao mesmo tempo dividido, deixando para o sujeito um resto no universo
psíquico (Apollon, 1990).
Então, haveria uma parte “sã” no psiquismo do psicótico, livre dos efeitos foraclusivos
de sua constituição?
Apollon apresenta como exemplos de “objeto interno” os seguintes fragmentos de
casos clínicos: um paciente cujo núcleo delirante se centra na perda de um órgão interno; em
um outro, trata-se de uma microcâmera, instalada pelo dentista, sob o seu dente; e, ainda, um
paciente que relata a presença de uma agulha em sua cabeça. Todos exemplos de um
enxugamento da fenomenologia do delírio a ponto deste se concentrar apenas nesse “nó de
gozo louco” (1990).
Quando da delimitação do delírio através da construção de uma posição subjetiva e da
reconstituição da imagem corporal, o “objeto interno” é a testemunha do que não se desfaz na
estrutura do trauma para além da fenomenologia da psicose. Assim, uma parte importante da
estrutura da psicose, que é a relação do sujeito ao gozo do Outro que escapava ao início do
84
tratamento, será abordada nas terceira e quarta fases visando à gestão dessa parte perdida do
ser. E, segundo Apollon, nestes momentos ocorrerá a entrada da fantasmatização na clínica da
psicose, ao mobilizar esse real do delírio na produção de um espaço para a “externalização do
objeto interno” (1990).
Esse termo “externalização do objeto interno” foi escolhido devido a uma observação
clínica encontrada nesse momento do tratamento, quando a psicose no espaço simbólico do
desejo e do laço social expulsa esse objeto interno já produzido pela fantasmatização. Por
exemplo, o paciente, anteriormente citado a respeito da “agulha”, iniciou um modo de
articulação social que incluía seu pai – com o qual não falava há anos – em uma atividade
esportiva semanal cujo nome – jogar “quilhas” em um mastro de madeira – apresenta um
fragmento do significante decantado de seu delírio: aguilles e quilles (1990).
Inicialmente, o objeto interno é vivido como aquele que destrói o sujeito do interior,
estrutura mínima de possessão do Outro, mas esse real delirante é transformado
simbolicamente através da fantasmatização que a ética psicanalítica pode obter do sujeito
psicótico. No entanto, o próprio texto de Apollon se esquiva em aprofundar a descrição do
processo de fantasmatização na psicose como podemos acompanhar na seguinte afirmação
dele: “evidentemente a questão clínica da maneira como se opera essa fantasmatização é uma
questão psicanalítica fundamental. Ela articula o sujeito a isso que ele pode retirar de vida e de
sentido do gozo do Outro. Não trataremos disso aqui, está fora de nosso propósito” (1999, p.
229).
Entretanto, Apollon, em nota de rodapé, se refere a uma futura publicação do GIFRIC,
em preparação, que abordará de forma mais detida os aspectos lógicos da cura psicanalítica
com psicóticos (1999).
No momento atual, Apollon sugere que a produção de um fantasma na psicose
resultaria na retirada de um sentido do delírio, permitindo ao sujeito produzir algum sentido
em relação ao gozo do Outro. A fantasmatização, como retomada da estrutura do trauma, vem
dar forma e conteúdo imaginários à pulsão proveniente do gozo do Outro, ou seja, à pulsão de
morte. Cabe ressaltar que Apollon identifica o gozo do Outro à pulsão de morte freudiana.
Assim, graças à ética psicanalítica, esse processo de fantasmatização na psicose produz
três aspectos fundamentais para um contorno ao gozo do Outro: limitar, dividir e transformar
em manifestações de desejo o retorno do gozo na pulsão.
85
Mas será que Apollon não reduz a questão do fantasma apenas à sua dimensão
imaginária? Quando o fantasma é apresentado em termos de roteiro “forma e conteúdo”? Não
estaria, assim, seguindo uma maneira freudiana “clássica” como na definição de fantasia por
Laplanche e Pontalis no Vocabulário de Psicanálise: “um roteiro imaginário em que o sujeito
está presente, e que figura, de maneira mais ou menos deformada pelos processos defensivos,
a realização de um desejo e, em última análise, de um desejo inconsciente?” (Laplanche e
Pontalis, 1991, p.169)
Contudo, na elaboração inicial de Lacan, o fantasma também se revela a partir de uma
dimensão imaginária como podemos destacá-lo na estrutura do esquema L: o objeto e o eu
marcados para sempre pela alienação e a rivalidade. O fantasma corresponderia ao eixo a-a’,
eu-outro do esquema L, eixo que se interpõe e obstaculiza a mensagem proveniente do Outro.
Mas no esquema R, Lacan não se restringe à dimensão imaginária do fantasma, mas o
localiza sustentando o campo da realidade, que, por sua vez, é delimitado pelo simbólico e
pelo imaginário. Em nota de rodapé ao esquema R, Lacan especifica o estatuto real do objeto
a ao desvelar a borda topológica que sustenta o campo da realidade.
O fantasma vela e desvela o real da castração quando o objeto se faz limitado pelo
imaginário e pelo simbólico em relação à falta no Outro, mantendo a ilusão da proporção
sexual. Então, para Lacan, o fantasma não se reduz a sua versão imaginária, na medida em que
o Outro está castrado e é disto que não se quer nada saber.
Então, nos parece que Apollon não toma o fantasma em sua dimensão real.
Apollon, não só reconhece a produção de um fantasma na psicose – retirada de um
sentido do delírio –, como também propõe, surpreendentemente, o seu ultrapassamento por
considerá-lo frágil. No momento, então, do ultrapassamento do fantasma, o sujeito está
susceptível a um “acidente psíquico”: “fenômeno particular em que o sujeito vive um
desmoronamento global aparentemente do novo universo que começa apenas a se criar”
(1990, p.101). É como se fosse uma “quarta crise” – rápida, embora profundamente violenta –
que decorre da tentativa de enquadrar o vazio vivido pelo sujeito ao se separar desse Outro
que o coloca no lugar de “abjeto” (1990).
O psicótico permanece extremamente lúcido e embora vivencie um grande sofrimento
psíquico, seu cotidiano profissional ou estudantil é preservado. O sujeito se depara com a
seguinte questão: “Não tenho mais a psicose... Então o que faço de minha vida?” (1990, p.
101)
86
Apollon compara esse momento crítico vivido pelo psicótico quando sai do círculo
infernal da psicose ao episódio depressivo que pode ocorrer no final de uma análise de um
neurótico. Entretanto, não se trata, ainda, de um final de análise propriamente para o psicótico,
há ainda um caminho a se percorrer que é designado como a instauração do desejo no laço
social: o quarto momento lógico do tratamento.
3.3.4 O quarto tempo lógico: o desejo no laço social
Segundo Apollon, ao psicótico que chegou a ponto de fantasmatizar o objeto resta uma
satisfação oculta que permanece no gozo silencioso do fantasma. E a retirada do sujeito dessa
posição de gozo – que, inclusive, o dificulta a estabelecer laço social – não mais por causa do
delírio, é a última questão a ser enfrentada pelo tratamento no “388”. Pois o objetivo final do
tratamento na psicose requer do sujeito do desejo a criação de um novo laço social (1990).
Assim, o quarto momento do tratamento visa a que o sujeito se articule ao outro na
busca de uma certa satisfação sob uma Lei comum. E, ao abordar o desejo no laço social,
Apollon faz uma distinção entre o laço social e a sociabilidade. “A sociabilidade refere-se aos
diferentes modos de relações e de articulações dos sujeitos em uma dada sociedade que por
suas crenças, seus mitos (científicos, ideológicos ou religiosos) e seus rituais (políticos,
culturais ou simplesmente profissionais) funda as leis que regulam essas relações” (1990, p.
103). Produzindo-se assim o estamento em que se localiza a organização do “bem comum”
compartilhado pelos membros de uma dada sociedade.
Segundo Apollon, a sociabilidade encontra-se na base do laço social na medida em que
este legitima os discursos que nela são reconhecidos. Como resultante desse processo de
enlaçamento social, tem-se a construção do próprio fundamento da “realidade” para a maioria
dos membros da sociedade. Justamente esse fundamento que organiza os laços sociais é que
está perdido para o psicótico. E o delírio, ao contestar essa “realidade”, na busca de corrigir
suas falhas, cria uma “neorealidade” mais satisfatória, dentro da perspectiva do psicótico, para
todos os membros da sociedade (1990).
A psicanálise é um discurso que problematiza e resiste ao posicionamento sempre
recorrente da cultura dominante que, de forma totalizadora, exige de seus membros um
87
assujeitamento aos seus ideais e imperativos. Portanto, o discurso analítico ao operar através
da lógica do não-todo, interroga inclusive os significantes fundadores de nossa cultura quando
revestidos de um caráter unitário: Deus, Pai, Ciência, Capital, Revolução, etc. (1990)
Contudo, para Apollon, a psicanálise não se apresenta como uma simples contestadora
dos valores sociais, mas reconhece a fragilidade dos fundamentos sociais na medida em que o
próprio significante Nome-do-Pai, ao suportar a Lei, aí também falha de certa forma em todas
as estruturas subjetivas. Portanto, não se trata de alçar a psicanálise ao lugar de uma ideologia,
ou um novo mito, buscando reparar as falhas na sociabilidade, porque isso seria uma empresa
delirante também. O fundamental é o desejo do sujeito como essencial à consistência mesma
da Lei. Ou seja, a postura ética do sujeito ante o real que está em jogo (1990).
Assim, é a partir de sua posição na estrutura em relação à pulsão de morte (como gozo
do Outro) que o sujeito deve se articular socialmente ao negociar a sua própria satisfação. “A
psicanálise exige um novo laço social, que mobiliza inicialmente a criatividade do sujeito a
produzir sua articulação ao Outro (outro e/ou a linguagem) numa relação ao gozo, e não em
conformidade à crença comum” (1990, p.104).
O delírio não faz laço na sociabilidade comum porque submete o sujeito como objeto
do gozo do Outro. O psicótico sacrifica seu ser em proveito de um Outro todo-poderoso
(perseguidor) ao qual imputa a responsabilidade última por seu sofrimento. Diferentemente do
neurótico, o psicótico não tem a mestria da metáfora a ponto de sustentar sua própria palavra
em relação ao Outro. Sua gestão da metáfora é delirante, na medida em que o sujeito psicótico
não suporta o seguinte ponto de partida: remeter-se à boa fé da palavra mesmo que esta não
possa conferir toda garantia (1990).
Mas o Outro com o qual o psicótico se relaciona é exclusivamente um Outro
imaginário? Ou a dimensão real do Outro – que exclui todo e qualquer sentido – não estaria
também presente no caso da psicose de uma maneira muito crua?
Retomando a questão a respeito da (re)instauração do desejo na psicose, o analista, na
direção de tratamento, “exige uma palavra verdadeira que sustenta o desejo do sujeito além do
fantasma como fonte de sua criatividade” (1990, p.106). Mas o que seria essa superação do
fantasma na psicose?
Segundo Apollon, o tratamento do psicótico chega a termo quando o paciente
consegue criar um espaço estético para “fundar o risco de viver e/ou morrer a partir de seu
próprio desejo, numa sociedade onde as relações sociais são fundadas sobre crenças comuns”
88
(1990, p.107). O trabalho no “388” requisitaria do psicótico, segundo seus autores, uma ética
nova que não é fundada sobre nenhuma verdade última, nenhum mito nem ideologia coletiva,
mas sobre um desejo assumido quanto a suas conseqüências pessoais e sociais.
O quarto tempo é considerado por Apollon o momento mais difícil na cura do
psicótico, porque o sujeito deve sustentar o espaço onde o vazio é enquadrado, assumindo o
desejo mesmo de criar seu próprio espaço de vida em uma sociedade sem um projeto definido
(1990).
E para tal, o sujeito encontra-se apoiado em um saber, conquistado no tratamento, a
respeito da falta de fundamento das crenças sociais; de outra parte, o sujeito passa a ter a
capacidade de criar novos laços sociais a partir da letra de seu desejo reconquistado (1990).
Assim, um final de análise para a psicose é proposto pelo GIFRIC – aposta enorme
calcada no desejo do analista – quando um certo saber a respeito da falta no simbólico é
produzido em análise. Entretanto, é uma confrontação com a falha de estrutura da própria
linguagem, mas que não gera mais o horror nem a inércia no psicótico, levando-o sim a
produzir algo com isso no seu exercício particular com outros sujeitos no laço social.
89
4 CASOS CLÍNICOS
O quarto e último capítulo dessa dissertação de Mestrado apóia-se em dois casos
clínicos publicados por Lucie Cantin e Danielle Bergeron na seção “Problemática Clínica” do
livro Traiter la psychose em que abordam mais de perto a clínica desenvolvida no “388”, a
partir da teorização proposta principalmente por Willy Apollon. Nesse capítulo, apresentamos
também um caso de nossa experiência clínica acompanhado no Hospital Psiquiátrico de
Jurujuba, Niterói.
Embora reconheçamos uma diferença muito grande em termos de organização social,
institucional e teórico-clínica existente entre a experiência canadense e a nossa aqui no Brasil,
aventuramo-nos a cotejar alguns aspectos da clínica com psicóticos, a partir desses três casos
clínicos, com o intuito de melhor problematizar a questão que perpassa a nossa pesquisa a
respeito do lugar do delírio na direção de cura da psicose.
Aproveitamos esse momento do texto para mencionar uma viagem que fizemos à
cidade de Québec em outubro de 2000, quando não só acompanhamos o dia-a-dia do “388”
como também mantivemos uma curta, mas, proveitosa, interlocução com os autores acima
referidos, assim como com outros técnicos, coordenadores de ateliês e usuários do “388”.
Durante três semanas que lá estivemos, apesar de uma certa dificuldade com a língua francesa,
foi possível constatarmos a seriedade – e ao mesmo tempo uma leveza incomum – com que o
árduo trabalho com psicóticos é realizado no “388”.
Tivemos em nossa viagem a oportunidade de participar das reuniões clínicas semanais,
das entrevistas psiquiátricas, dos encontros com as equipes de intervenientes. Freqüentamos
também alguns ateliês com os próprios usuários e os artistas locais, sendo esta última uma
vivência muito especial.
Foi enriquecedor conhecer um lugar estruturado para receber o psicótico como sujeito,
no qual o exercício diário com e entre os usuários se desenrola em um ambiente com muita
tranqüilidade, fruto talvez, não só da análise pessoal dos participantes, mas da própria base
teórica na qual se apóia o savoir-faire do GIFRIC no “388” em relação à psicose.
90
4.1 O caso Phillip
Cantin, ao escrever o texto intitulado Le psychotique, malade au père no livro acima
citado, baseia-se em um caso clínico para delinear as suas considerações a respeito da psicose
e de seu estilo na condução da clínica psicanalítica orientada para os psicóticos que buscam o
“388”.
Inicialmente, Cantin refuta a idéia consagrada em muitos meios do campo da saúde
mental de que a psicanálise não é apropriada para tratar a psicose, restringindo-se apenas à
clínica da neurose. Ela reconhece que a psicose desencadeia um mal-estar no social por
estampar cruamente, em muitos casos pelo menos, a despossessão egóica infligida ao sujeito
que a vivencia, justamente em uma sociedade que tanto elogia a ilusão narcísica do
personagem social. Esse mal-estar chega a provocar um medo entre os profissionais da área da
saúde mental em relação à psicose, a ponto de a corrente dominante atual – “biológica” –,
preconizar que a psicose se restringe apenas a um “acidente da natureza” ao nível molecular
(Cantin, 1990).
Obviamente, a psicanálise desde a sua criação por Freud, percorre um outro caminho
ao constatar que o sonho, o lapso de linguagem, o sintoma, o delírio, a alucinação são as
produções mais profundamente humanas por apontarem radicalmente algo da verdade do
sujeito. Assim, Freud busca um sentido para essas experiências ao desvelar o que definiu
como inconsciente. Portanto, tais produtos relacionam-se aos percalços sempre presentes de
uma forma ou de outra no golpe que faz do vivente um sujeito ao ser inscrito no campo da
linguagem.
Com efeito, a criança já existe no discurso parental mesmo antes de seu nascimento.
Então, o discurso do Outro – constituído pela rede significante que cerca o sujeito – é o
próprio inconsciente, marcando a vida e a carne do infans desde a sua entrada no mundo. O
neurótico, devido ao recalque, pode-se mostrar, até certo ponto, surdo a esse discurso que o
atravessa através das formações do inconsciente. O psicótico já não pode compartilhar da
surdez neurótica porque o seu discurso é radicalmente capturado por isso que nele fala
sozinho através das palavras impostas, das alucinações, do delírio.
No percurso freudiano, o delírio, mesmo aparentemente apresentando-se como um
interminável sem sentido, é apreendido por Freud como uma invenção de sentido por parte do
91
psicótico para poder sair de uma situação de impasse. No caso da psicose, podemos pensar
que o impasse relaciona-se ao aspecto sempre parasitário da palavra, que nessa posição
subjetiva se autonomiza a céu aberto, enquanto na neurose esse fato de estrutura para todo ser
falante não ocorre tão manifestamente, porque o neurótico dispõe da ilusão que o eu lhe
confere ao acreditar que é ele quem fala.
Cantin inicia o relato do caso de Phillip, como denomina seu paciente, aproximando os
ditos do paciente ao legado de Freud e Lacan que concede à função do significante o
condicionamento da paternidade do sujeito: “É por causa do meu pai que estou doente. Sou
um acidente da natureza. (...) Não compreendo o que vim fazer nesse mundo porque ele nunca
me significou nada a esse respeito.” E prossegue: “Cada vez que me chega um problema, me
sinto quase obrigado a remontar a Adão e Eva e às origens do planeta para resolvê-lo. (...)
Nesses momentos, tenho a impressão de ser uma espécie de fantasma. Como se tivesse um
câncer em meu espírito” (1990, p.13).
Phillip tem 23 anos quando chega ao “388”, é solteiro e mora com a sua mãe, vive da
seguridade social há três anos após o primeiro surto psicótico, quando abandonou a faculdade
de Direito. Foi hospitalizado por cinco vezes com o diagnóstico de esquizofrenia paranóide.
Realizou várias tentativas de suicídio.
Um mês após a sua chegada ao “388”, Phillip faz uma demanda de análise. A primeira
intervenção da analista é demandá-lo a contar o que lhe ocorreu durante os seus episódios
psicóticos. É, portanto, um estilo bastante ativo de acolhimento por parte do analista que,
desde o princípio, instiga o sujeito a se posicionar diante do real de sua estrutura.
“Há três anos, eu fazia parte de um grupo de teatro amador na universidade. Ensaiávamos
uma peça que deveríamos representar um mês mais tarde. Fazia parte de um projeto de
intercâmbio cultural com possibilidade de representá-la na Inglaterra. Então, não conseguia
mais dormir. De repente, estava muito inquieto por ter que tomar um avião, a gente não fica
mais com os dois pés na terra e não conhece o piloto. Eu via uns signos do bem e do mal.
Uma noite, fui andar pelas ruas e procurar as estátuas e os monumentos históricos. Andei por
toda noite. De manhã, fui procurar meu pai, não era o meu verdadeiro pai que eu procurava,
mas Um pai. Refugiei-me em uma igreja, depois ao sair da igreja, fiz uma oração e desmaiei.
Levaram-me até o hospital” (1990, p.114).
Alguns meses depois, Phillip apresentaria um segundo episódio psicótico quando
dirigia uma peça de teatro infantil intitulada “É o tempo da União”. Nessa ocasião, achava que
todo o espetáculo repousava sobre ele, até um dia que lhe ocorreu:
92
“eu estava no posto de piloto de uma nave espacial enviada por extraterrestres que me
escolheram para cumprir uma missão. Então, deixei o teatro e fui andar pelas ruas, até me
pegar rodeando o edifício do jornal Le Soleil pensando que era o edifício da Bolsa e que era o
centro vital, o lugar onde tudo se decidia e de onde emanavam as ondas negativas” (1990,
p.114-115).
Cantin reconhece que Phillip, pela primeira vez, teve a oportunidade de relatar o que
vivera como catastrófico, buscando em sua errância desesperada um sentido que o orientasse.
E em seus repetidos relatos a respeito de sua psicose, acrescenta, às vezes, novos elementos,
mas os principais significantes da sua narrativa sempre retornam, proporcionando, então, à
analista, o material significante suficiente para “sustentar a construção da história que
empreende em sua cura” (1990, p.115).
Nesse primeiro tempo do tratamento, o sujeito, em resposta ao desejo do analista, tenta
dizer o que era posto em cena no real da crise psicótica. Dessa forma, graças ao convite da
analista em colocar em palavras o que se passara na crise, torna-se possível a entrada do
psicótico no campo da representação, em que uma primeira história se organiza a partir de
fragmentos esparsos liberados durante a crise psicótica: pedaços de lembranças, as vozes, o
delírio (1990).
A própria elaboração do delírio por Phillip conduz ao crucial de que se trata para a
psicose: a questão do pai. Ele busca “Um pai” e não o confunde com o homem que se figura
como seu pai em sua vida. Phillip busca desesperadamente algo que possa substituir o que
Lacan designou como o Nome-do-Pai, significante privilegiado que condiciona a filiação
simbólica do sujeito, engendrando por isso um lugar para o sujeito na cadeia simbólica como
desejante e que, na psicose, se encontra foracluído.
O psicótico não obtém a resposta demandada pela procura do significante paterno
justamente porque este se encontra foracluído desde sempre na psicose. Por isso, Phillip, ao
longo das sessões, lembra-se de alguns fatos que ratificam a sua percepção de que fora sempre
“uma criança sem pai”.
“Quando era criança, tinha medo da noite. Um dia, coloquei os meus brinquedos sobre
a escrivaninha e durante a noite, meus brinquedos caíram sozinhos do móvel. Pensei que
alguém os derrubara. Fiquei aterrorizado. Chamei o meu pai mas ninguém veio” (1990,
p.117).
Em outra sessão, Phillip recorda um outro fato ocorrido em sua infância durante uma
exposição em Montreal. A sua tia e seu irmão mais velho seguravam as suas mãos, de repente,
eles o largaram, quando então foi atropelado por um carro. Cantin considera essas lembranças
93
de Phillip como fenômenos elementares que apontam o buraco ocasionado pela foraclusão do
Nome-do-Pai, na medida em que não associa essas lembranças a nada em sua história,
apresentando-se como um fora de sentido inassimilável para o sujeito.
Cantin demarca o primeiro tempo da cura de Phillip através dos seguintes processos: a
narração dos episódios psicóticos; o início da elaboração de uma história do sujeito e, por
último, a produção de um sonho em análise: “sonhei que meu pai é qualquer um” (1990,
p.119). Quanto ao sonho, a analista demanda ao paciente que associe a partir de algum
elemento do sonho ou de algum fato ocorrido nos últimos dias. Então, Phillip lhe conta que
dois dias antes vira seu pai sendo levado ferido a um carro de polícia após um tumulto em
frente a um hotel. E acrescenta também que uma garota lhe comunicara que estava grávida e
que ele era o pai da criança que estava esperando, entretanto, lhe avisa que só ela pode decidir
se terá a criança ou não.
Esses fatos se sucedem no mesmo período em que Phillip começa a trabalhar em um
curta-metragem cujo tema versa sobre querubins que querem perseguir a história e o passado
do Bom Deus. Então, devido à confluência desses fatores que se desenrolam em sua vida,
Phillip apresenta um novo episódio psicótico. Desta vez não é internado em um hospital
porque já avisara a seus familiares que em caso de alguma recaída o levassem ao “388”, local
onde pôde continuar endereçar as suas questões ao permanecer por um tempo como residente
temporário.
Cantin afirma que essa crise psicótica de Phillip decorre da entrada do sujeito em
análise, ou seja, é o tempo de instauração da transferência analítica. A crise psicótica é lida
pelo GIFRIC como uma resposta do sujeito ante o desejo do analista, representando um
momento fecundo de abertura que permite um acesso à verdade do sujeito. Portanto, a crise
psicótica encena de uma maneira muito particular como o sujeito encontra-se comandado pelo
Outro através das imposições, das alucinações, e também permite reconhecer a resposta que o
sujeito produz através do delírio, da passagem ao ato, para minimizar os estragos da intrusão
do Outro.
Uma crítica muito freqüente ao trabalho desenvolvido no “388” recai basicamente
sobre a desestabilização desencadeada pelo convite para que o psicótico fale em análise.
Cantin refuta essa reprovação à psicanálise que visa tratar psicóticos, porque verifica que os
elementos significantes liberados durante a crise permitem um acesso privilegiado a
fragmentos da história do sujeito que, de outra forma, não seria possível alcançar.
94
Significantes, que quando elaborados posteriormente em análise, permitirão ao psicótico
aceder a um lugar de sujeito e não permanecer apenas como objeto dessas crises (1990).
Segundo Cantin, a crise psicótica é considerada como uma produção do inconsciente,
assim como o sonho ou o sintoma, fornecendo os significantes privilegiados que marcam a
posição do sujeito na estrutura parental. Contudo, a partir da crise, o psicótico tem a
oportunidade de dizer alguma coisa, tentar representar em palavras justamente isso que
submerge nos momentos críticos, buscando reconstituir uma história subjetiva.
Nesse sentido, Cantin recorreu às seguintes manobras após a crise de Phillip: contoulhe alguns aspectos que se passaram durante a sua crise, retomando o que o sujeito dissera, ou
seja, a partir dos próprios significantes do sujeito, assim como indicou também algum
material que o sujeito deveria trabalhar em análise (1990).
Portanto, mesmo que o sujeito não possa dizer muito a respeito da crise, a analista o
reconduz a alguma lembrança já contada em outra ocasião, como também assinala um
elemento em comum entre um sonho e o delírio, com o intuito de que o sujeito possa
inscrever a crise em uma cadeia associativa. Enfim, a analista facilita uma certa ordenação da
história do sujeito a partir de pedaços de cadeias significantes, permitindo que o sujeito
construa algo no lugar deixado vazio pela foraclusão.
Acreditamos que através desse tipo de intervenção da analista possamos reconhecer a
principal modalidade de técnica analítica desenvolvida no “388” nos momentos que se
sucedem à crise psicótica. A analista exerce uma função ativa na cura do psicótico, como já
assinalamos acima, embora nos pareça realmente necessário que se trabalhe assim em alguns
momentos da clínica com psicóticos. Entretanto, para que esse tipo de intervenção analítica
possa conduzir bem o tratamento, conta-se com muita análise pessoal, muita experiência
clínica e um referencial teórico bastante claro de quem dirige a cura.
Retornemos ao caso clínico. Cantin nos revela que Phillip, no momento em que
precede a sua última crise psicótica – a crise que marca a sua inscrição no trabalho analítico –,
associa que se recusa a assinar um contrato com o Sr. X a propósito de sua participação no
curta-metragem. Ele justifica que estaria inscrito na “União” e que isso lhe era impossível
porque “o único contrato que um homem pode assinar é com uma mulher” (1990, p.120).
A questão a respeito de um contrato de casamento entre um homem e uma mulher já
havia sido mencionada por Phillip no início de seu tratamento. Naquela ocasião, afirmara que
um tal contrato não se consumara entre os seus pais, levando-o a dividir a sua família em dois
95
clãs compostos por três pessoas mais velhas e por três pessoas mais jovens; no entanto, não se
localizava em nenhum deles. Phillip já havia afirmado também que era ambidestro e bilíngüe
porque a sua mãe era francesa e seu pai era escocês, assumindo para si a missão de unir as
duas partes da família.
Ele relata também que, quando tinha seis anos, seu pai falira a empresa que havia
herdado, obrigando a família a emigrar para o Canadá. E, a partir dessa data, sua mãe “passou
a portar os culotes, a trabalhar e tudo controlar” (1990, p.122). Nesse momento, a analista
intervém: “a ter os cordões da bolsa”, aludindo ao primeiro surto do sujeito, quando, devido à
“falência” paterna, ele dava voltas em torno da Bolsa de Valores buscando desativar as ondas
negativas que dali emanavam.
A analista utiliza uma expressão idiomática para interpretar o sujeito, possibilitando a
ligação entre alguns significantes desconectados até então. Dessa forma, lembranças, fatos
ocorridos em sua vida, fragmentos do delírio são religados; como, por exemplo, o poder de
controle da mãe na família, a trapaça que a mãe realizou para adquirir uma bolsa de estudos
para Phillip, o elemento real vivido nas crises (girar em torno da Bolsa de Valores), etc. Sem
contar que a própria expressão idiomática, por estar inscrita no simbólico, obedecendo,
portanto, a uma lei, aponta para o sujeito um lugar outro que pode recorrer para dizer,
prescindindo do corpo ou da passagem ao ato para se colocar (1990).
Cantin afirma que, após a sua intervenção, segue-se um tempo em que Phillip fala da
inexistência de seu pai na família, considerado pelo discurso materno um “homem acabado e
doente” (1990, p.123). Nesse período, relata um sonho no qual desenterra um túmulo que
apresenta um monumento vazio, assim como a presença de alguns índios. Apesar de a
dificuldade de Phillip fazer a associação a partir do sonho, a analista relembra que ele havia
dito anteriormente que tinha “sangue índio” proveniente da linhagem paterna, retomando do
discurso do sujeito a possibilidade de inscrevê-lo em uma filiação mítica.
Após um breve período de férias, Phillip produz um sonho que Cantin utiliza para
delimitar o primeiro tempo da cura, ao mesmo tempo em que inaugura o próximo momento.
Inicialmente, Phillip recorda uma ocasião em que viu a sua mãe lendo uma carta do seu pai
quando este se encontrava em viagem, e pela primeira vez, observa um sentimento amoroso
de sua mãe em relação a seu pai. Em seguida a esta lembrança, ele relata um sonho no qual os
seus pais estavam na casa da analista, esta por sua vez, dirige-se ao seu pai e lhe permite falar.
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Portanto, a primeira etapa da cura, caracteriza-se por resgatar a palavra do psicótico.
Nesse sentido, Cantin afirma que se deve terminantemente evitar enquadrá-lo em critérios
preconcebidos a respeito de um “paciente ideal”, que possa usufruir de uma psicanálise. O
fundamental é interpelar o psicótico como sujeito, além das manifestações de sua psicose, na
medida em que ele também se endereça ao analista como sujeito em alguns momentos (1990).
Na segunda etapa da cura, Phillip não responde mais ao desejo do analista através de
uma crise psicótica, mas através da produção de sonhos e de alguns sintomas. Neste momento
da cura, Cantin reconhece um “enquistamento da pulsão de morte por meio de um sintoma,
enquistamento do gozo do Outro no qual o psicótico é tomado como objeto” (1990, p.124125). Portanto, a analista escuta Phillip alcançar uma posição de sujeito, porque, até então,
ocupava o lugar de objeto do Outro. Durante essa mudança, pela primeira vez, ao retomar um
trabalho, ele pôde concluí-lo. Neste trabalho, cria uma história fantástica em que uma criança
inventa um pai.
Cantin retoma três sonhos de Phillip: “Eu vou porque há um outro Phillip atrás de
mim”; “Eu estou em um outro universo, ou melhor, é o mesmo, mas o vejo de uma maneira
diferente”; “Eu trabalho para um espetáculo, mas, desta vez, trabalho nos acessórios”. Apesar
dessa produção inconsciente, Phillip tem medo de uma recaída e relata que escutara as
seguintes vozes: “você é um vagabundo, você é nada, você é repugnante” (1990, p.125). A
analista pergunta novamente o que lhe ocorrera nos últimos dias. Ele responde que encontrou
a sua mãe bêbada em casa, assim como a jovem que esperava um filho dele, embora tivesse
percebido que ela não estava mais grávida.
Dessa maneira, Phillip não só relacionou de alguma forma esses últimos fatos com as
vozes, como também falou muito a respeito de suas crises anteriores, produzindo com isso um
certo sentido ao que estava vivendo, sem que ganhasse um caráter de verdade absoluta. Então,
o que lhe ocorria sob a forma de um delírio nos momentos críticos passou a apresentar-se
através de sonhos ou sintomas. Em vez de encarnar uma crise, submetendo-se ao real que
retorna de fora e o persegue, ele pôde produzir uma palavra na medida em que um espaço para
a representação começou a ser construído. E segundo Cantin, o próprio sonho é uma resposta
ao desejo do analista, ou seja, uma “outra cena” regida pelo significante que passa a ocupar o
espaço subjetivo de Phillip (1990).
Phillip relata mais um sonho no qual estava em uma cabana comprada pelo “388”,
perto de um riacho. Pensa que Jean-Pierre Ferland se inspirou ali para compor a sua canção
97
que se chama Maria Clara. Phillip menciona que o sonho não estava muito claro para ele.
Cantin em sua escuta leva em conta que o significante “claro” pertence ao patronímico da mãe
de Phillip e lhe pergunta então se ele conhece a canção. Phillip responde que é uma canção de
amor. E a analista cantarola um trecho da letra: “Ela me levou até um riacho. Ela me disse, eu
gostaria de ser mãe. Faça como se deve. Faça como é preciso” (1990, p.126).
Cantin aponta, através desse tipo de intervenção, que uma mulher pede a um homem
que seja pai de seu filho, mas ao nível simbólico foi justamente o que falhou na constelação
parental de Phillip, levando-o a errar em busca de um pai. E Cantin aponta também que o
sonho coloca uma representação significante no lugar do evento real que precipitou a sua
última crise: quando uma moça o designou como o pai do bebê que estava esperando (1990).
Segundo Pommier, não basta uma mulher desejar um homem por procurar aí o falo, ou
seja, restringi-lo à função falófora, cessando de demandar o falo à criança, para que esse
homem seja considerado pai pela criança. “É preciso ainda que essa última passe este homem
pela engrenagem edipiana segundo os arcanos da morte do pai. Sua função de nominação será
assim acompanhada, o nome sendo tudo isso que resta do pai após essa operação” (Pommier,
1993, p.11).
Phillip continua produzindo sonhos para contornar de uma outra maneira o que a sua
missão delirante o incumbia, ou seja: ser “ambidestro”, ser “a língua que toca o palato” para
poder soldar a família, ser o que une o pai e a mãe como um casal. Assim, tenta reaproximar
os pais para que possa nascer simbolicamente, isto é, ter um pai. Um dos sonhos desse
período de seu tratamento relata que ele não tem passaporte; em outro sonho, fala uma outra
língua – russo. E associa que, quando está em surto, fala uma língua que não conhece, algo
fala nele, mas lhe é estranho. Cantin reconhece nessa associação de Phillip que um “alhures”
como Freud designou o inconsciente, começa a ser tecido, algo lhe fala, mas está nele,
prescindindo da crise psicótica que admite apenas um “de fora” como causa de suas vivências
(Cantin, 1990).
Então, o real começa a ser enquadrado a partir das construções sustentadas pela
analista, ou seja, o retorno do real – o trabalho da pulsão de morte, segundo Cantin –, começa
a ser trilhado por outras vias. Nesse momento da cura, Phillip produz um sintoma –
furúnculos no rosto – a ponto de o dificultar a falar em algumas ocasiões. É um período que
transcorre com muita depressão. Ele associa que esse problema de pele é freqüente na família
98
do seu pai, passando a falar de um tio paterno preferido, que compara a um pai (furoncle /
oncle).
A questão a respeito da filiação de Phillip em relação a seu pai também retorna porque
no discurso da mãe este se ausentara de casa por um ano antes do nascimento do filho devido
a uma internação hospitalar em decorrência de um grave acidente automobilístico. Phillip
sempre acreditou que era a prova viva de que o pai não ficou estéril como os médicos
afirmaram na época do acidente. Portanto, o insabido a respeito de sua filiação que até então
era veiculado somente pelo delírio começa a se circunscrever no corpo.
Cantin, a propósito dessa etapa do tratamento de Phillip, cita uma intervenção de
Apollon em um seminário não publicado de março de 1986:
“A interpretação na cura do psicótico visa a obter o sintoma em um primeiro tempo, ou seja,
que concentre e enode o gozo do Outro sobre um objeto constituído nos significantes do
Outro. O sintoma (...) conjuga o significante do Outro ao real de um gozo em que o sujeito
padece. Essa produção do sintoma oferece ao analista um ponto de trabalho no qual pode ser
requisitada a produção da cadeia aí onde estava o gozo do Outro” (1990, p.128-129).
Portanto, o sintoma no corpo de Phillip se oferece como uma via pela qual o real faz
seu retorno.
Nesse sentido, Cantin afirma que o que era produzido pelo delírio e os fragmentos da
história de Phillip – “ser ambidestro”; “falar duas línguas”; “dever fazer o laço entre os dois
clãs da família”; “dever unir a família”; “não estar na União”; “desarmar a Bolsa” – retorna
como sintoma no corpo através dos furúnculos. Phillip escuta de seu médico que o seu
problema de acne é proveniente de uma taxa de colesterol elevada, determinada
hereditariamente. Nesse caso, tal herança provém da família da mãe. Assim, o furúnculo une
em seu corpo as famílias do pai e da mãe ao suprir a falha da aliança parental.
Phillip, em sua tentativa de enodar o casal parental – “je noue” –, passa também a
apresentar um problema no joelho (genou), ou seja, em uma articulação. E ele menciona, a
partir de seu problema articular, que sua mãe também apresenta bursite. Quando, então, a
analista intervém: “le site de la Bourse”, elevando esse pedaço do corpo ao estatuto de
significante justamente por focalizar aí falha na articulação entre os pais de Phillip em desejálo como sujeito. Entretanto, Cantin reconhece que o sintoma corporal mantém o sujeito ainda
preso a uma alienação mortífera, na medida em que a analista considera esse sintoma uma
produção do inconsciente da mãe, na qual Phillip encontra-se capturado. Portanto,
interrogamo-nos se esses significantes ditos pelo paciente – je noue, genou, boursite –, ao
99
serem enodados a partir da intervenção da analista – le site de la bourse –, permitem
realmente uma significação para o sujeito ou permanecem restritos ao saber da analista
(1990).
Citamos acima que na segunda etapa de seu tratamento, Phillip havia não só
conseguido, mas concluído um trabalho, tratando-se de uma participação como cenógrafo em
um espetáculo teatral. Cantin observa que a cenografia se decompõe em um dispositivo cênico
e em uma grafia, isto é, o desenho, um traçado como forma de escritura. Phillip utiliza então
uma maquete, um dispositivo no qual se grafa o texto, prescindindo de uma escritura no
corpo, como Cantin define o sintoma físico. Portanto, “uma outra cena” é produzida em vez
da crise psicótica, do delírio, da lesão corporal.
Phillip compõe uma história na qual um garoto de 10 anos que se chama Sully cria o
seu pai, e, nesta história, a mãe é posta de lado. Cantin reconhece que o nome do personagem
é uma inversão dos fonemas do nome da analista. Com esse “conto”, como Phillip o designa,
a ausência de um mito a respeito do pai é suprida temporariamente. Após a conclusão desse
trabalho, interessa-se por escultura. E abandona o tratamento por não saber até onde este pode
levá-lo (1990).
Após seis meses de abandono do tratamento, Phillip busca novamente o “388” por
apresentar um novo episódio psicótico em decorrência de um retorno ao mesmo meio que
vivia antes de seu primeiro surto. Tinha passado cinco anos e meio sem nenhuma crise
psicótica. Cantin considera que essa crise marca o final de um tempo, porque Phillip decide
definitivamente não retornar ao teatro, ao cinema, assim como buscar aqueles velhos amigos.
Phillip, após um hiato de quatro anos, volta a demandar uma cura analítica no “388”.
Nesse período, não apresentou nenhum episódio psicótico, mas se entregou ao uso de drogas
para conter a angústia que o avassalava, destruindo todas as suas possibilidades de laço social.
Reconhece sua capacidade em trabalhar com teatro, cinema, como o fez antes de abandonar o
“388”, mas admite que não é isso que deseja, seu interesse volta-se para a escultura, apesar do
voto contrário de sua família que ridiculariza seu talento. “Quero retomar a cura para chegar a
produzir alguma coisa minha e que me permita viver” (1990, p.133).
Cantin afirma que Phillip circunscreve em seu corpo – através do sintoma de acne e
colesterol – a “coisa” que até então capturava todo seu ser como objeto nos momentos das
crises psicóticas. Nessa mesma linha, a droga é uma tentativa de conter a pulsão de morte.
Contudo, não responsabiliza mais os extraterrestres por lhe infligirem um mal, mas sim a
100
própria droga que buscou como solução para suas dificuldades. Como a droga é uma solução
inviável, por não lhe permitir viver nem criar no laço social, ele busca então a arte.
Cantin propõe, como terceiro e último tempo do tratamento de Phillip, a produção de
um objeto no lugar do sintoma, isto é, “qualquer coisa que seja externa e destacada de seu
corpo” (1990, p.134); coisa que permita o retorno do real não mais com o mesmo efeito
destrutivo sobre o corpo, a vida, e o próprio sujeito. Até então, Phillip produzia vozes,
delírios, sintomas corporais, fenômeno toxicômano, buscando suprir a falha em produzir uma
significação para a sua existência.
Cantin retoma mais uma vez uma indicação de Apollon em um dos seus seminários,
no qual afirma que o objeto produzido nessa etapa do tratamento apresenta as seguintes
características: composto por um material que não tenha sentido em si, mas, ao ser trabalhado,
delimita um corpo; seja tomado como um objeto do desejo, deslocando assim um pedaço do
corpo a ser consumido pela “coisa”. Apollon prossegue afirmando também que o gozo que
está em jogo na “coisa” se satisfaz no próprio objeto.
Dessa forma, Phillip passa a produzir objetos de arte, desejando que eles também
sejam expostos publicamente: “A arte abre um campo para a metáfora, um lugar onde se
escuta isso que não se pode dizer, onde pode ser aprendido o inapreensível ou tornar-se visível
o imperceptível” (1990, p.135). A arte proporciona que o pulsional dirigido para o corpo até
então seja transformado em obra, vindo a metaforizar de alguma forma “o vazio de sentido”
que perpassa a vida do psicótico.
Cantin conclui o caso clínico de Phillip observando que na terceira etapa da cura não
encontramos mais a reconstrução de uma história nem mesmo a produção de uma ficção que
gere algum sentido a partir da falha significante, mas uma “estética do agir”. Ela indica que a
função do analista é manter um lugar por onde o real possa se deslocar para um objeto
artístico produzido pelo sujeito, prescindindo com isso de utilizar o corpo ou a vida como
ocorre freqüentemente no sintoma ou na crise psicótica. Assim, o sujeito constrói uma
existência que, mesmo sem recorrer ao pai compartilhado pelo mito edipiano, produz uma
escritura e uma possibilidade de expressar a pulsão de morte em uma estética que se articula
no laço social (1990).
Então, através das principais vertentes do caso clínico de Phillip – a reconstrução da
história do sujeito, a constituição de um sintoma corporal e a produção do objeto artístico que
rearticula o sujeito no laço social –, percebemos como se desenrolou o processo analítico
101
sustentado por Lucie Cantin no “388”. Entretanto, permanecemos com a interrogação a
respeito de uma melhor correlação entre essas etapas do tratamento de Phillip e a produção do
fantasma na psicose, como acompanhamos na teorização de Apollon no capítulo precedente.
4.2 O caso André
Danielle Bergeron, em seu texto Enjeux de la cure du psychotique, publicado também
no livro Traiter la psychose, nos apresenta um caso clínico acompanhado por ela no “388”. O
seu texto articula a descrição do caso clínico com as suas considerações a respeito da psicose
dentro do estilo desenvolvido pelo GIFRIC. Portanto, não abordaremos todos os aspectos
ressaltados por ela, na medida em que vários pontos já foram trabalhados no capítulo três e no
item anterior do atual capítulo. Focalizaremos apenas os posicionamentos que acrescentam
algo à concepção clínica do GIFRIC.
O caso clínico em questão baseia-se na análise de André, como Bergeron nomeia o
paciente, que lhe chega com a seguinte interrogação: “Eu me pergunto por que se vive. Se eu
não tivesse tido a minha depressão, penso que teria encontrado a resposta a esta questão. Eu
perguntara ao meu tio doente como, por que se vivia, e ele morreu no dia seguinte” (Bergeron,
1990, p.139). O paciente acredita que esta pergunta precipitara a morte do tio, mas, mesmo
assim, insiste em respondê-la, porque, segundo Bergeron, questionar o sentido da vida é uma
questão de vida ou morte para o psicótico.
A invenção do delírio é a resposta privilegiada que o psicótico dispõe para explicar a
vida. No caso de André, a sua busca pelo sentido derradeiro da existência o conduz às
religiões, à parapsicologia, aos avanços tecnológicos, à física nuclear. Ele supõe também que
“forças atravessam o seu corpo; seres maléficos dirigem seus comportamentos; que ele seria o
único a regular os conflitos entre as grandes potências; uns objetos teriam sido colocados nele
na ocasião de intervenções cirúrgicas” (1990, p.140).
Bergeron nota que o psicótico não justifica a sua vida como o neurótico, porque não
compartilha das mesmas leis e mitos fundantes da sócio-cultura que compõem a ordem
simbólica na qual também está imerso. A dor de existir do psicótico não se refere ao
sofrimento provocado pela “fantasmatização da falta de um objeto” como ocorre com o
102
neurótico, que acredita que, se encontrar o objeto, a sua falta-a-ser estará abolida. O psicótico,
segundo Bergeron, apresenta uma “consciência aguda”, que nenhum objeto poderá preencher
a falta de base do simbólico, mesmo que se construam todas as divindades para que o homem
aceite melhor o seu destino (1990).
O psicótico não transita satisfatoriamente no laço social devido a uma falha na função
paterna que se encontra em jogo na constituição do sujeito, tendo como efeito a foraclusão do
Nome-do-Pai, fato de estrutura já suficientemente desenvolvido em passagens anteriores de
nossa dissertação. Entretanto, gostaríamos de ressaltar que Bergeron, ao considerar o lugar
que o psicótico ocupa na constelação familiar, retoma também a teorização que correlaciona o
psicótico ao objeto que satisfaz a demanda do primeiro Outro – imaginariamente identificado
à mãe –, mas, além disso, faz menção a um Outro real na psicose que até então não havia sido
apontado por Apollon ou Cantin.
Segundo Bergeron, o psicótico se oferece em sacrifício ao Outro em sua dimensão
imaginária, abdicando de uma posição de sujeito por crer que deve ser o objeto que tampona a
falta do Outro – momento em que tanto o corpo como o próprio delírio expressam justamente
a captura do sujeito pelo gozo do Outro. O real desse gozo não permite que o sujeito se enode
metaforicamente às leis e às regras da ordem simbólica. Esse gozo permanece como energia
não ligada na estrutura psíquica, na falta do significante paterno para ligá-la, constituindo
assim o Outro real que persegue o sujeito (1990).
E Bergeron acrescenta que se o enodamento dessa energia ao simbólico puder se fazer,
“no vazio deixado pela impossível adequação do real ao simbólico”, o psicótico “chegaria a
ocupar uma posição imaginária de sujeito” (1990, p.144). Portanto, a autora reconhece que o
Outro para o psicótico não se restringe à dimensão imaginária, mas presentifica-se
persecutoriamente como Outro real através dos fenômenos elementares. Afirma também que
se o gozo se deixar enlaçar pelo significante de alguma maneira na psicose, ou seja, um
enlaçamento entre o real e o simbólico, encontramos uma posição imaginária de sujeito.
Mas qual será o estatuto dessa posição imaginária de sujeito?
Afirmação intrigante que nos faz pensar que Bergeron a utilizou para dar conta de um
provável enodamento borromeano: Real do gozo, Simbólico do significante e Imaginário do
sujeito. Mas será que ela está propondo que o “imaginário do sujeito” se refere à significação
que ocorre no imaginário como efeito de alguma metáfora, mesmo que delirante? O sujeito é
efeito da articulação entre dois significantes – um significante representa um sujeito para
103
outro significante –, mas ele em si não é simbólico. Ou haveria um sujeito simbólico, um
sujeito imaginário e um sujeito real também? Por fim, será que a assunção a uma posição de
sujeito na psicose através do tratamento analítico ocorre pela via imaginária, egóica? Ou será
que esse “imaginário” estaria mais referido à noção de “semblante”? As questões ficam em
suspenso.
Bergeron sugere que a análise se constitui em um espaço onde o sujeito pode escapar
da captura do Outro – imaginário e real –, porque as próprias regras que regulam a sessão
analítica não são estipuladas pelo outro em decorrência de uma relação de força nem o espaço
da análise é invadido pelo gozo do Outro:
“Na cura do psicótico, esse buraco criado pela disp
104
Rabinovitch trabalha também na perspectiva de que, em um primeiro tempo, o retorno
do foracluído faz endereço no psicótico. Em um segundo tempo, há uma elaboração desse
“percebido” – como “vindo de fora” – através do delírio. Entretanto, o que ela propõe é que o
analista ocupe o intervalo entre o retorno do foracluído e a significação delirante, ou seja, “o
dispositivo do tratamento consiste em reproduzir o momento do desencadeamento da psicose”
(Rabinovitch, 1998, p.23).
Nessa perspectiva, ante a fragmentação do tecido psíquico desencadeada pela
foraclusão, a transferência deve responder. O analista deve se fazer de endereço do que vem
de fora e “completar o tecido esburacado.” Segundo Rabinovitch, o analista “é esse outro
qualquer” (ocuparia, então, o lugar do outro imaginário?) para responder “a essa figura de um
Outro nem suposto, nem buscado, nem desejado, mas conhecido como o que goza do sujeito”
(1998, p.24).
Portanto, algum tipo de crise também pode ser deflagrada pela proposta clínica de
Rabinovitch, ao sugerir que o analista intervenha reproduzindo justamente o momento do
desencadeamento da psicose para que algo possa ser nomeado de outra forma que delirante.
Bergeron parte do delírio como a via mestra pela qual a análise com o psicótico pode
ser possível. É a partir da matéria significante do delírio que se constrói uma história mais
relativa, contudo, sem a pretensão de compor uma narrativa bem organizada em torno de fatos
vividos na realidade. A ficção construída em análise recolhe os significantes dispersos que
atravessam o discurso do sujeito. E essa nova ficção, por sua vez, permite ao psicótico utilizála em sua relação com o outro, quando, até então, o delírio colocava o psicótico fora das trocas
sociais (Bergeron, 1990).
André, o paciente apresentado por Bergeron em seu texto, oscila entre períodos em que
prevalece o pensamento de se suicidar porque não vale a pena viver em um mundo repleto de
bombas atômicas que a qualquer momento podem destruir tudo e, em outros períodos, tenta
dar conta da origem do mundo através de uma construção delirante. Assim, no início do
tratamento, a analista solicita que André escreva a respeito de sua teoria que busca um sentido
para a vida.
Então, André escreveu para a analista:
“A vida começou por uma esfera e um vazio. Havia uma grande pressão sobre a esfera a
explodindo. Dessa forma, nasceu o primeiro átomo (um nêutron, um elétron e um próton). A
vida também começou com duas forças que se juntaram como o próton e o elétron, foi uma
explosão e fizeram o nêutron, e o elétron que gravitava. O nêutron é o sol. O próton gira sobre
105
si mesmo, então é a terra, e o elétron é a atmosfera. Entre o próton e o elétron há uma força de
atração ou uma força centrífuga em relação ao nêutron (o sol). Mas quando se segue os
símbolos químicos, constata-se que o hidrogênio não tem nenhum elétron enquanto que o
hélio tem dois. A vida começou entre o negativo e o positivo, duas forças contrárias” (1990,
p.150-151).
André relatou também para a analista que se sentia manipulado por forças que não só
se batiam contra ele como também se apresentavam sob a forma de vozes. Bergeron observa
que todo o empenho de André em forjar uma origem para a vida, ou seja, para a questão a
respeito do pai, encontrava-se atrelada ao fato de que sempre ouviu o seu pai xingar a sua mãe
de puta, portanto, “quem é o meu pai se a minha mãe é uma puta?” (1990, p.151)
Bergeron reconhece na teoria delirante de André, um primeiro grupamento significante
– próton/terra; elétron/atmosfera; nêutron/sol –, que tenta criar uma ordem de representação,
embora, o considere delirante porque não há deslizamento entre os significantes, todas as três
duplas estão coaguladas pela força de atração que as mantém na mesma relação entre si.
Segundo Bergeron, não há a possibilidade de um quarto termo que marcaria um vazio entre os
elementos significantes, permitindo com isso uma circulação entre eles. Assim, o próprio
delírio aponta a falta do quarto termo na estrutura – o Nome-do-Pai – para “enodar no
simbólico, o imaginário do sujeito ao real do gozo” (1990, p.152).
A partir do percurso do paciente em análise, que instaurou a primeira bateria
significante, a analista tenta produzir uma abertura no sentido fechado do delírio ao interrogar
o sujeito relacionando o próton/terra à mãe, o elétron/atmosfera ao filho e o nêutron/sol ao pai,
que, por sua vez, reúne os outros dois. No entanto, nesse novo trio significante introduzido
pela analista – pai, mãe e filho –, arbitrário em si mesmo e sem valor de verdade, o pai reforça
a atração entre mãe e filho, não ocupando o lugar de separador. Assim, nessa intervenção da
analista, o pai não destaca a mãe e o filho, ou seja, não introduz o significante que suporta o
vazio deixado pela hiância entre os dois (1990).
Neste caso, a direção de cura proposta por Bergeron recai justamente em produzir um
separador que livre o paciente da “compacidade alienante do delírio”, permitindo que se porte
como sujeito e não mais como objeto alienado ao gozo do Outro. Nesse caminho, o paciente
associa que tem medo de novas recaídas, assim como não conseguir realizar nenhum projeto
profissional porque seu pai também fracassou em sua carreira. Assim, a analista relaciona para
o paciente o fracasso profissional do pai ao fracasso do sujeito em conduzir mudanças em sua
vida.
106
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André, que chegou ao “388” com um diagnóstico de deficiente mental, começou a
partir da análise, a participar dos jogos de quilles com seu pai, com quem não se relacionava
há anos, como também se interessou por badmington, disputando até torneios regionais.
Bergeron ressalva que badmington em Québec leva a designação de jouer au moineau, nome
de um pássaro muito veloz, aproximando dessa maneira moineau/oiseau à série que André
sonhou poisson/chien/oiseau. O paciente também ingressou na universidade para cursar
Ciências, onde poderá, em um quadro aceito socialmente, dar outros sentidos à sua vida.
“Assim, a cura analítica do psicótico tenta lhe oferecer balizas imaginárias em que
hipóteses vão ser possíveis, em que ficções serão propostas para relançar a ação do
significante e desbloquear o impasse do delírio” (1990, p.158). Nesse sentido, o psicótico é
surpreendido com a desmontagem de suas certezas delirantes ao ser confrontado a dar conta
da falha do Outro – mas dentro de um suporte em que uma mudança gradual possa ocorrer e a
angústia ser amenizada –, que até então produzia as desorganizações psíquicas e as passagens
ao ato.
4.3 O Caso “Serquequerser”
Neste último item do capítulo, cotejaremos as propostas de Freud, Lacan e Apollon a
partir de fragmentos de um caso clínico de um psicótico de 30 anos que acompanhamos,
diariamente, há cinco anos, ao longo de três meses de internação no Hospital Psiquiátrico de
Jurujuba, Niterói. Sabemos que a nossa situação clínico-institucional difere em muito da
prática desenvolvida pelo GIFRIC no “388”, no entanto, acreditamos, também, dela poder
tirar conseqüências, observando, por exemplo, que relações existem entre o delírio e a verdade
do sujeito. Aproveitamos também para ressaltar alguns aspectos divergentes entre as
experiências do GIFRIC e do HPJ.
Freud, em seu texto sobre Schreber escreve: “... fica para o futuro decidir se a teoria
contém mais delírio do que eu quisera, ou o delírio, mais verdade do que as pessoas estão, por
enquanto, preparadas para acreditar” (Freud, 1911, p.72). Com esse desafio nos lega essa
peculiar articulação: delírio, teoria e verdade.
108
Lacan, também se refere a esta última articulação ao se reportar ao caso Schreber no
Seminário III:
“(...) nós nos vemos na posição de discernir pela primeira vez as noções estruturais cuja
extrapolação é possível em todos os casos (...) Encontramos também no próprio texto do
delírio uma verdade que lá não está escondida, como acontece nas neuroses, mas realmente
explicitada, e quase teorizada. O delírio a fornece, não se pode mesmo dizer a partir de
quando se tem a chave dele, mas desde o momento em que o tomemos por aquilo que ele é,
um duplo legível, do que aborda a investigação teórica” (Lacan,1988 [1955-56], p.37-38).
O paciente em questão, manifestamente psicótico desde a adolescência, após um grave
desentendimento com sua mãe, passa dois dias na rua, acompanhado apenas por sua cachorra.
Quando retorna à sua casa, encontra a porta trancada porque a sua mãe, muito receosa de sua
agressividade, não lhe permite a entrada. Então, acometido por mais um episódio de ira,
arromba a porta. Nesse momento, a polícia é convocada e o leva até o HPJ, onde é internado.
Portanto, o paciente não procura espontaneamente um tratamento, o que caracteriza uma
situação bastante diferente da prática no “388”, que exige uma demanda clara de tratamento
por parte do psicótico. Mas, como poderemos acompanhar a seguir, algum trabalho subjetivo
é realizado.
Na primeira entrevista, ao ser perguntado pelo seu nome, o paciente responde:
“Serquequerser”. “O que isso significa?”, pergunto-lhe. “Conhecimento universal, todo
conhecimento do corpo e do espírito, corpo são e mente sã”, responde. E continua: “quero sair
daqui no próximo quarto dia útil do mês, eu quero que o Sr. entre em contato com aquela
mulher porque eu não quero voltar para aquela casa”, se referindo à mãe.
No atendimento seguinte, relata: “Eu vou até a Polícia Federal, vou ser o agente especial
Serquequerser, vou fazer uma prova escrita, discriminada, sem documentos, sem identidade,
sem família, sem descendentes. Quero passar na prova para ser o agente Serquequerser. Sou o
senhor mestre Serquequerser do Deus Altíssimo. Eu li na Bíblia que existem muitos senhores,
muitos mestres, muitos deuses, mas só um é o Deus Altíssimo.”
Qual verdade no texto do próprio delírio que nos testemunha o psicótico? Seria “tudo o
que é recusado na ordem simbólica, no sentido da Verwerfung, reaparece no real?” (Lacan,
1988 [1955-56], p.21) Tratando-se, desse modo, de “rejeição de um significante primordial
em trevas exteriores, significante que faltará desde então nesse nível” (1988 [1955-56],
p.174).
109
Outros fragmentos desse tempo: “...sou sozinho, só tenho o Deus Altíssimo, o meu
corpo é do Deus Altíssimo, por isso cuido dele da melhor forma possível: só como frutas,
legumes e verduras cruas. A partir do quarto dia útil do próximo mês, eu vou seguir o meu
caminho guiado por Deus Altíssimo. Eu não tenho nome, eu vim do nada, quero ser a
eternidade. Preciso ir até o juiz para ele me aprovar, soldado comandante agente especial da
Polícia Federal Serquequerser.”
A lógica do delírio demonstra todo o esforço do psicótico em construir “um remendo”
para a falha ocorrida no processo de filiação simbólica e, conseqüentemente, na nomeação do
sujeito, assim como na própria constituição do corpo como erógeno; mesmo que o “remendo”
produzido – como Freud denominou o delírio –, se nutra sempre de alguns elementos
significantes provindos do real.
Nesse caso, o que vemos? Um delírio que permitiu ao sujeito se filiar a um Outro
sagrado – “Deus Altíssimo” –, na busca de superar a ausência radical de laço social em que se
encontra. Em decorrência disso, escutamos tão repetidamente em seu discurso: “sou sozinho,
só tenho o Deus Altíssimo”. O delírio também possibilitou uma nomeação ex-nihilo para o
sujeito, na medida em que, inicialmente, se refere a si mesmo como não tendo nome, vindo do
nada. Mas, curiosamente, a lógica do delírio não prescindiu da aprovação de um outro em
posição de suporte da lei – “um juiz” – para designar o sujeito como: “soldado comandante
agente especial da Polícia Federal Serquequerser.”
O paciente prossegue: “As mulheres gostam de mim, mas eu não as procuro, elas me
procuram para namorar, mas eu não quero, sou Serquequerser, mantenho o meu corpo puro.
Sou formado em Engenharia Naval, Direito, Psicologia, Matemática e Português. Eu sou um
novo ser, uma nova criatura que nasceu 05.09.74, graças à glória do Deus Altíssimo (...)
Serquequerser, tudo junto, não se escreve separado, (...) ser grande, esse é o meu destino. Eu
tenho uma missão até o final de 1995, eu recebi uma mensagem de Deus para eu ser agente
especial da Polícia Federal. Sou muito inteligente, aportuguesado, eu já passei por coisas
inimagináveis, hoje, eu não tenho pressão, nem nervos. Eu renego o meu nome, Carlos
Antônio de Azevedo Colin3, eu me chamo Serquequerser.”
Nesse fragmento do delírio do paciente, podemos escutar precisamente a questão da
“missão do psicótico” como Apollon considera em sua teorização. O sujeito nos relata que
tem uma “missão” porque “recebeu uma mensagem de Deus para ser agente especial da
3
Nome fictício.
110
Polícia Federal Serquequerser”. Em uma das sessões, nos confidenciou que recebeu tal
mensagem (missão) através de uma voz que escutou – “Serquequerser” –, logo que chegou ao
hospital no dia de sua internação. Parece-nos, portanto, que há uma estreita relação entre a
alucinação como fenômeno psicótico primário e o “núcleo” do delírio portador da mensagem
do Outro que redunda em uma “missão”, missão essa amalgamada à própria nomeação do
sujeito, em holófrase, que do real surge: “Serquequerser, tudo junto, não se escreve separado”.
Em uma entrevista na presença de sua mãe, o sujeito nos disse: “Eu gostaria de falar que
essa mulher renegou o pai dela que era um lorde, almirante da Marinha Mercante e da
Marinha de Guerra em Minas Gerais, era do almirantalado, mas só porque ele fumava
cachimbo e bebia uma bela tequila, ela o renegou. Ela era uma cinderela, depois virou uma
serviçal e ficou ao Deus dará. E aí, só porque o homem usava colarinho, achava que ele era
doutor, mas era um analfabeto. Eu renego o meu pai e a minha mãe e o meu nome, Carlos
Antônio de Azevedo Colin. Eu renego o pai da minha mãe, o pai do pai da minha mãe, o pai
do meu pai, o meu pai, o pai do pai do meu pai. Eu sou Serquequerser. Eu vou continuar para
a minha perícia e para a minha aposentadoria sendo Carlos Antônio de Azevedo Colin porque
preciso de dinheiro para habitar e comer, mas minha nova identidade é Serquequerser. Eu
preciso sair daqui e voltar ao C.A., à 1a série, e me alfabetizar com minha nova identidade,
Serquequerser, e fazer até o último grau, voltar no tempo de 30 para 3 anos, porque ao voltar a
ser criança, o Deus Altíssimo me disse que vou viver centenas de anos. O homem que se diz
meu pai dormia com ela, eu via ele levando a filha dele para o quarto e fechando a porta. Ele
conseguia emprego para milhares de pessoas porque tinha uma pica muito grande... Eu tenho
uma mente forte, tenho todo poder, eu hipnotizo as pessoas. Eu quero passar o Natal fora
daqui... não vou mais para a Polícia Federal, vou remanejar, reconstruir minha identidade
porque quem não tem pai nem mãe é... está me fugindo a palavra, o que é? Funabem... O que
é? O que é? É, sou Funabem, mas não vou ficar na rua, vou ser racional...”
Nesse trecho do delírio do paciente, podemos acompanhar todo o drama do psicótico em
relação à questão paterna de uma forma tão cristalina, que nos permitimos retomar as
indicações de Freud e Lacan, que referem que o delírio explicita radicalmente não só a
verdade do sujeito, mas da própria psicanálise, como supracitado: “um duplo legível do que
aborda a investigação teórica”.
Escutamos também na psicose a desarticulação dos três elos do nó borromeano que
sustentam o sujeito da psicanálise – real, simbólico e imaginário. No caso clínico em questão,
111
o paciente se nomeia como Carlos Antônio de Azevedo Colin, quando precisa, por exemplo,
se nomear junto ao médico perito para continuar recebendo o dinheiro do benefício
previdenciário. Nesse sentido, o sujeito, ao se identificar com o nome que o registra na
dimensão simbólica, não abre mão de se manter no laço social para participar de alguma
forma na troca social.
Entretanto, a nomeação calcada na dimensão simbólica do laço social desenrola-se
paralelamente à nomeação que o sujeito sustenta ante o analista – “Serquequerser” –, a sua
“verdadeira” identidade, demonstrando claramente a sua perda de laço social. Portanto, nesse
momento, encontramos muito mais uma nomeação como efeito da presença real de um
fenômeno elementar – ou seja, uma “voz” que irrompe quando chega ao hospital –,
caracterizando com isso a desarticulação do elo do real do nó borromeano, porque este se
encontra todo desatado para o sujeito na psicose. Constatamos também a disjunção do elo
imaginário do sujeito através do indício de uma “regressão tópica do imaginário” quando
relata que precisa voltar aos 3 anos de idade para refazer a sua identidade. Dessa maneira, na
psicose, nos parece que os ditos do sujeito não apontam para uma divisão subjetiva como na
neurose, pelo contrário, apontam muito mais para uma disjunção entre os três registros do nó
borromeano.
Prossegue o paciente: “Eu fui ao futuro, ao presente, estou no passado de 1995. Eu sou
uma reta sem margem, só tempo. (...) Sou casto, não me prostituo com mulheres, só amo o
Senhor Deus Altíssimo. As mulheres são impuras, indignadas, elas não se castram a si
próprias.”
O paciente, ao conjugar seu ser a uma reta – “sou uma reta sem margem” –, nos remete
novamente ao Seminário III As psicoses, de Lacan, que aborda o significante Nome-do-Pai
através da seguinte metáfora: “a estrada principal é um sítio em torno do qual não só se
aglomerou todas as espécies de habitações, de estâncias, mas que também se polariza,
enquanto significante, as significações” (Lacan, 1988 [1955-56], p. 328).
Mas o que se passa quando não se tem a estrada principal, não se tem o Nome-do-Pai?
Quando se é “uma reta sem margem”? Margem pensada aqui como borda, limite, como define
a Matemática, segundo o dicionário Aurélio, “elemento L em cuja vizinhança de dimensão
arbitrária ... estão contidos todos os elementos de uma seqüência infinita ..., a partir de um n0”
(Ferreira, 1975, p.845). Na estrutura psicótica, justamente a referência do Nome-do-Pai como
um limite é que se encontra excluída, implicando, portanto, um desenodamento discursivo
112
tanto em sua versão espacial quanto temporal. O desatamento da dimensão espacial do
discurso pode ser constatado através da própria metáfora do sujeito referida acima: “sou uma
reta sem margem”. E em relação à desarticulação da dimensão temporal do discurso do sujeito
psicótico em questão, evidenciamos que a seta do tempo que ordena passado, presente, futuro
– produto também da significação fálica comum, de certa forma, aos neuróticos – não se
encontra da mesma maneira na psicose, esta, por se apresentar de certa forma fora do laço
social, conduz a outros ordenamentos temporais como, por exemplo, a eternização do tempo
ligada ao ser: “eu sou ..., só tempo”; “vou viver centenas de anos”; assim como “eu fui ao
futuro, ao presente, estou no passado de 1995”; “voltar no tempo de 30 para 3 anos.”
Em outra sessão, nos diz: “... quando era internado, ficava num quarto no subterrâneo,
ficava num buraco. Até um dia que eu caí no chão e um grupo dos melhores especialistas em
Medicina me pegou e me fizeram uma circuncisão no meu pênis, eu fiquei com um pênis de
menino e agora sou admirado, mas não tocado, fui escolhido pelo Deus Altíssimo como o
Deus da beleza, o Deus da saúde e o Deus da sabedoria. Eu passei por várias transformações,
quando fui circuncidado, gritei muito de dor, eles me seguraram e isso não é fantasia,
nem...nem é um fato real. Freud morreu dizendo que não sabia nada, só o Deus Altíssimo que
tem toda a sabedoria, todo conhecimento. Naquela época, eu lia a Bíblia porque eu não tinha
todo o conhecimento ainda, realmente as outras pessoas não sabem de nada, eu li Freud,
Lacan, Jung e Jung, 4 até Platão, posso ser um psicanalista. Eu já passei por provas duríssimas,
mas, hoje, sou o escolhido, eu, resoluto, não quero ter, quero ser. Este mundo vai acabar, mas
só eu ficarei pra sempre, porque Deus disse que um se salvará, mas as pessoas copulam e o
mundo proliferará, proliferará.”
O discurso delirante do sujeito não abdica de se referir à “castração” como escutamos
no trecho acima, tanto em relação à “castração” das mulheres como a dele próprio.
Inicialmente, o delírio faz uma menção ao fato de que as mulheres não se castram a si
mesmas. Poderíamos pensar que ele está fazendo alusão à não castração da mãe – primeiro
Outro do sujeito – como ocorre na psicose? Porque nos parece verdadeiro que a mulher que
sustenta a função materna na constituição de um sujeito necessita ser “castrada” pelo pai, ou
seja, a função paterna opera intervindo como um elemento terceiro tanto em relação à mãe
como em relação à criança. E no caso, o sujeito qualifica as mulheres de “impuras,
4
Inicialmente, o paciente pronunciava corretamente o sobrenome suíço-alemão de Jung ao substituir o j por i: “iung”, mas
em seguida pronunciava o j, ou seja, como se escreve: “jung”.
113
indignadas”, justamente por não se castrarem, permitindo-nos constatar, então, que nesse
delírio há um saber que de alguma forma aponta para a necessidade fundamental da castração
do Outro na constituição do sujeito.
Poderíamos também nos perguntar a respeito da relação entre a não-castração das
mulheres – como o discurso delirante do paciente aporta – e a questão da existência da
Mulher. Lacan, ao enunciar que “A Mulher não existe”, remete à questão de que dentro da
lógica da sexuação do ser falante só existe um sexo – o masculino, na medida em que o
significante “falo” permite a constituição de um conjunto fechado compreendido pelos seres
fálicos; entretanto, para que isso se sustente logicamente é necessária uma exceção à regra, ou
seja, que ao menos um elemento do conjunto não se encontre submetido à castração. O “sexo”
feminino não se inscreve na linguagem, proporcionando com isso, um conjunto aberto,
indeterminado, no qual se localizam os seres femininos. O conjunto é aberto porque não há
exceção à regra para fundar o universal de todas as mulheres como temos no conjunto que
compõe os homens.
Assim, o sujeito que se posiciona como homem encontra-se todo submetido à
castração, à norma fálica, edípica, com exceção de um “homem” – o Pai da horda primeva,
segundo o mito freudiano –, o que possibilita justamente a consistência de um agrupamento
universal; enquanto o sujeito que se posiciona como mulher, na partilha dos sexos, também
está referido à castração simbólica, mas não o está totalmente, a mulher é não-toda em relação
à norma fálica. O homem está preso ao gozo que o significante proporciona – gozo fálico –,
enquanto a mulher, por não ser toda, não estar totalmente submetida ao significante, isto é, ao
gozo fálico, apresenta um gozo suplementar ao fálico. E Lacan aproxima o gozo feminino ao
gozo místico, por situá-lo também do lado do não-todo submetido à regra fálica – ou seja, um
gozo fora do significante, como tão bem ilustra Teresa d’Ávila.
No Seminário XX, Lacan formula que “A mulher” não existe porque só se pode
escrever “A Mulher”, barrando-se o artigo definido “A”, na medida em que este artigo sem a
barra da castração confere um caráter universal a um determinado conjunto – o que não ocorre
entre as mulheres, elas não formam um conjunto fechado. As mulheres só podem ser tomadas
uma a uma, no particular de cada uma, porque em “essência” – A mulher – é não toda (Lacan,
1982 [1972-73]).
Portanto, para o neurótico, “A Mulher” ex-siste, ou seja, só pode existir fora do
simbólico. Entretanto, o psicótico, por se constituir levando-se em conta a não-castração da
114
mulher, em uma tentativa de abolir a diferença sexual, tenta fazer existir “A Mulher”,
completa, fálica, sem barra.
O delírio do paciente também explicita uma cena traumática na qual o sujeito é
circuncidado, castrado, mas que resulta em “um pênis de criança”, ou seja, não operante como
falo, apresentando-se apenas para ser “admirado, mas não tocado”. Aspecto que, inclusive, o
conduz a ser “o escolhido pelo Deus Altíssimo” e coroado megalomanamente como o Deus da
beleza, da saúde e da sabedoria. E o interessante também é que o sujeito ressalta que a cena da
circuncisão não é uma fantasia nem um fato real como realidade “objetiva”. A circuncisão se
processou em uma dimensão do real, portanto, não articulada a uma ordenação na cadeia
simbólica. A “castração” para o sujeito psicótico se localiza fora da cadeia significante como
retorno do foracluído, cristalizando-o na posição de ser o falo e não ter o falo, como o sujeito
nos afirmou resolutamente: “não quero ter, quero ser”.
E qual a relação entre este sujeito e o Outro como “Deus Altíssimo”?
Lacan, em De uma questão Preliminar, escreve que “o Nome-do-Pai reduplica no lugar
do Outro o significante ele mesmo do ternário simbólico, enquanto ele constitui a lei do
significante” (Lacan, 1995 [1958], p.559). Reduplicação esta que instaura, portanto, dois
lugares – M, Mãe, como o Outro primordial, lugar do tesouro dos significantes – e – P, Pai,
lugar da lei significante. Na psicose, como já salientado várias vezes, o significante Nome-doPai é rejeitado, produzindo todo o acidente na história do sujeito quando solicitado. E o que se
presentifica no buraco deixado pela falta do Pai como Lei que ordena a cadeia significante são
os fenômenos elementares.
Desse modo, na psicose, o lugar do Outro é presentificado diretamente através dos
fenômenos elementares, que ocupam, portanto, o lugar da simbolização primordial como o
primeiro Outro materno. Outro este não barrado pelo significante da castração, que impõe ao
sujeito um gozo, além de deter todo saber, não havendo possibilidade na psicose para
vacilação, dúvida diante de um saber absoluto, mas apenas certeza, a certeza delirante
proveniente desta relação com um Outro sem falta.
O paciente continua: “Eu estou em condições de conduzir a minha vida, mas não
dentre a família. Quero sair pelo mundo, pelas ruas sem ser importunado, sem matar o pai.”
“O quê?”, pergunto-lhe. “Matar, matar, matar ... não está vindo a palavra, gostaria que o Sr.
não me importunasse quando eu estivesse falando.”
115
“Eu gostaria de dizer para o Sr. que o meu nome é Carlos Antônio de Azevedo, porque
Colin existem milhares por aí, mas todos registrados, e só sei que sou o primogênito de
Enarzina... Ela é minha única família. De um e de dois se chega lá, de um e de dois se chega
lá. Deus Altíssimo proverá. Já li Freud, Lacan, Jung e Jung, Sócrates e Platão. Todos
morreram sem saber nada. De um e de dois se chega lá, de um e de dois se chega lá. O enigma
concernente aos familiares eu resolvi, por isso não tenho mais porque falar... Fui escolhido
pelo Deus Altíssimo como superior a Jesus Cristo, ele se casou e teve filhos.”
Mais uma vez, o texto delirante do paciente aponta para elementos cruciais na
constituição do sujeito. Neste último fragmento do delírio, escutamos um ponto fundamental
que não pôde ser elaborado simbolicamente pelo sujeito, ou seja, o parricídio – “quero sair
pelo mundo... sem matar o pai” –, retornando, portanto, pela via do delírio. E quando o sujeito
foi interpelado pelo analista para melhor enunciar essa questão, o que encontramos foi a
repetição do verbo “matar”, embora, sem o complemento verbal, isto é, o significante “pai”
que foi expulso da própria cadeia associativa do psicótico.
Em seguida a essa associação, ou melhor, à falha na associação referente ao pai, o
paciente não só especificou a retirada do sobrenome do pai de seu nome próprio, não sendo,
portanto, registrado pelo pai como os “milhares” de “Colin” que existem pelo mundo – como
também especificou o lugar que ocupa junto à mãe – “sou o primogênito de Enarzina ... Ela é
minha única família”. E repete várias vezes a fórmula que o enreda no duplo especular: “de
um e de dois se chega lá” – a ponto de ser eleito pelo Deus Altíssimo, como superior a Jesus
Cristo! “Ele se casou e teve filhos.”
Podemos pensar o desdobramento desse caso clínico em três tempos: no primeiro,
ocorre a irrupção de uma voz alucinada – “Serquequerser”; no segundo, a multifacetada
construção delirante; e, no terceiro, um certo remanejamento do delírio que permitiu algum
enlaçamento social. Mas, antes de delimitarmos os três tempos do tratamento do paciente, é
importante também que frisemos um pouco a respeito do lugar que o analista ocupa no
desenrolar desse processo.
A partir das indicações de Freud e Lacan, Alberti demarca muito claramente alguns
pontos a propósito da posição que o analista ocupa na direção de tratamento de adolescentes
esquizofrênicos. Então, poderíamos estender essas orientações para o sujeito que abordamos
em nosso caso clínico, na medida em que ele também apresentou o desencadeamento de sua
psicose na adolescência e por tratar-se ainda de um adulto jovem.
116
O primeiro ponto abordado por Alberti consiste em que, para o psicótico, “o analista
sabe do real” (Alberti, 1999, p.127). O psicótico não supõe, como o neurótico, um saber ao
analista, este “presentifica o próprio saber do real” (1999, p.127). Portanto, não há idealização
nem identificação em relação ao analista na psicose, pelo contrário, “o sujeito esquizofrênico
escancara a verdade que os neuróticos tanto fazem para velar: não há intersubjetividade na
relação psicanalítica” (1999, p.127).
O segundo aspecto ressaltado por Alberti, refere-se ao fato de que, para o psicótico, o
analista não difere dos outros com os quais o sujeito se relaciona, “o verdadeiramente
diferente é ele próprio, sujeito a e de experiências que os outros não têm” (1999, p.127).
Entretanto, o terceiro ponto indicado por Alberti, considera que o analista, mesmo sendo
semelhante aos outros, ao exercer a sua função, “intervém sobre o próprio gozo do sujeito”
(1999, p.127).
O paciente que apresentamos, em nosso caso clínico, era muito implicado com o
trabalho realizado: quando chegávamos na enfermaria, ele nos aguardava; depois, entrava no
consultório, sentava-se e falava sucintamente um trecho de seu delírio; poucas intervenções
eram feitas e, na maioria das vezes, o corte da sessão era dado por ele ao esgotar o que queria
dizer naquele dia. Dessa maneira, a partir das indicações acima, podemos reconhecer que
realmente não havia relação intersubjetiva e, conseqüentemente, os efeitos imaginários daí
advindos. O que estava em jogo na análise, era a oportunidade do sujeito decantar de alguma
maneira o gozo que se excedia demasiadamente, como nos afirmara: “já passei por coisas
inimagináveis, hoje, não tenho pressão, nem nervos.”
Então, em relação ao primeiro tempo do tratamento, constatamos que a não-inscrição
simbólica do Pai no Outro do sujeito afeta-o na cadeia geracional, retornando
alucinatoriamente no real através da enigmática autonomeação: “Serquequerser”. Nomeação
que permite uma pluralidade de interpretações a partir da própria teoria psicanalítica, assim
como do Deus, por exemplo, da tradição judaico-cristã. Portanto, no primeiro tempo, inicia-se
o engendramento do delírio que situa o sujeito em uma ordem dual, embora como objeto no
gozo do Outro, na medida em que a possibilidade do terceiro elemento comparecer está
foracluída.
No segundo tempo, a construção delirante renomeia o sujeito como “Carlos Antônio
de Azevedo” porque “Colin existem milhares por aí”, tempo em que o discurso nos oferece
exemplarmente o significante do qual se trata na foraclusão, ou seja, o Nome-do-Pai. Embora
117
não haja necessariamente uma correspondência entre o significante Nome-do-Pai e o
sobrenome do pai.
E retomando o caso como um terceiro e último tempo: “Depois que nós chegamos a
um denominador comum, eu gostaria que o Sr. tirasse aquelas cifras de remédios, eu sei que o
que penso se transforma em realidade, que Amplictil é vitamina A, que Haldol é vitamina C,
que tudo o que penso o Deus Altíssimo transforma, mas sempre fica uma toxina que não
deixa os funcionamentos do meu corpo não acontecerem direito. Chegamos a uma harmonia,
a uma união, gostaria que o Sr. retirasse a cifra de medicação por causa da singular simpatia
que há entre o Sr. e eu, o Sr. é igual a mim, porque o Sr. é formado e eu sou formado
também.” “Mas eu não sou igual a você, existem diferenças”, intervém o analista.
“Eu gostaria que o Sr. reduzisse as cifras dos remédios porque há uma sintonia cada
vez maior entre a gente. Ao longo desse percurso e decurso dessa trajetória que estou aqui,
estou melhor e no próximo quarto dia útil de março vou sair. Deus Altíssimo em quem penso
o tempo todo, ele é por quem o sentimento de que só um se salvará.”
No final de seu período de internação, nos disse: “Entre mãe e filho há sintonia,
reciprocidade, nós nos perdoamos. E, então, hoje encerram as duas cifras de clorpromazina?”
“O que significa cifra?”, pergunto-lhe. “Ah, são controvérsias, cifris de money e cifris de
inexatidão, uma harmonia, uma comunhão entre o Sr. e eu, um diálogo”, responde.
Nesse momento da escuta do sujeito, recolhemos o significante “cifra” que insiste em
seu discurso, o que nos leva ainda a uma breve menção da questão da “cifra” em psicanálise.
Freud inventa a psicanálise ao decifrar um saber – o inconsciente, até então cifrado para
o falante –, e como toda operação de decifração, produz como efeito um sentido. E ele
descobre que o sentido da estrutura é sexual. Embora não haja um signo com o qual se possa
escrever a relação sexual. Dessa maneira, segundo Vidal, “na cifra do saber inconsciente está
o gozo sexual que impossibilita que a relação sexual se escreva. No gozo se trata pois, de algo
diferente ao sentido” (Vidal, 1993, p.44).
O saber inconsciente é o ciframento do gozo sexual. A cifra, por sua vez, remete ao real
do número, na medida em que “no enraizamento do sujeito ao significante encontra-se o
número” (1993, p.41). O filósofo Badiou nos interpela afirmando que sabemos para que
servem os números – “eles normatizam o Tudo” –, mas o que são, nós o ignoramos (Badiou,
1993, p.11). E sustenta que, por não sabermos o que são os números, não sabemos o que
somos. Restando-nos, então, a árdua tarefa de subtrairmos, da “idéia” de número, um sujeito.
118
Contudo, não podemos nos esquecer que a psicanálise parte do seguinte axioma: há
sujeito. Segundo Elia, “o sujeito com que opera a psicanálise – o sujeito do inconsciente – é
precisamente um sujeito sem qualidades” (Elia, 2000, p.22), quer sejam, “sensoriais,
perceptuais, anímicas, enfim, numa palavra, empíricas” (2000, p.21). Ou seja, retomando o
ensino de Lacan, Elia sugere que o sujeito da psicanálise é coextensivo ao sujeito da ciência,
que por sua vez, foi instaurado pelo passo cartesiano.
Então, a psicanálise sempre supõe um sujeito no saber inconsciente – cifrado, nãosabido –, porque, antes de qualquer possível deciframento, o inconsciente representa uma
escritura. Segundo Vidal, “o inconsciente é uma escritura efetuada pelo recalque originário, a
operação que representa o sujeito por um significante para outro sem com isso revelar ao
sentido a cifra do desejo” (Vidal, 1993, p.41).
A palavra cifra, antes de significar o signo numeral, como empregamos hoje em dia,
transporta em sua história etimológica o vazio – e, é correlativa à introdução do zero no
Ocidente pelos árabes no séc. V. Os árabes traduziram a palavra hindu synia pela palavra sifr
para designar o vazio, que depois foi latinizada como zephirum (séc. XIII), até alcançar o
vocábulo zero (1993).
Assim, a operação de ciframento que caracteriza o trabalho do inconsciente está
intimamente relacionada a um lugar vazio do qual o sujeito da psicanálise emerge. No
entanto, como podemos pensar essa operação de ciframento na psicose? Pois, o recalcamento
originário – instaurador do “zero como verdade da falta” –, não se processa na psicose, o que
encontramos aí é a foraclusão (1993).
Todavia, a clínica nos testemunha que quando se desenrola um percurso analítico –
quer se trate de uma neurose ou de uma psicose – algum ciframento de gozo, algum
esvaziamento desse “a mais” que caracteriza o gozo, se opera na estrutura do sujeito.
Retornando à última sessão do paciente – que não se deu no quarto dia útil do mês!
Porque esse ponto do delírio também se enxugou no percurso do tratamento –, escutamos:
“Depois de tanto tempo de dissertação sobre a minha vida, hoje, volto para casa, e a propósito,
o Sr. não vai tirar mais uma cifra de clorpromazina, hoje?” “Não, não vou tirar nenhuma
cifra”, digo-lhe. “É, vou estudar Gramática; primeiro, estudo Gramática, Português, depois,
secundariamente, Matemática, preciso sempre me aportuguesar, vou estudar Gramática
porque Gramática é fundamental, a gente tem que estudar Gramática todo dia pra não
esquecer.”
119
A psicose, por não produzir o recalque originário devido à foraclusão de um
significante primordial em detrimento de uma afirmação primeira, acarreta efeitos na
constituição do sujeito. No terceiro tempo do tratamento, sobressai, então, devido à elisão do
significante “falo”, o duplo imaginário que sustenta a psicose num convite a uma união sem
barreiras, reunião essa com o outro imaginário como nos testemunha as seguintes referências:
“entre mãe e filho há sintonia, reciprocidade”, “chegamos a uma harmonia, a uma união”, “o
Sr. é igual a mim”, etc.
A psicose ao rechaçar a impossibilidade da proporção sexual numa tentativa de anular a
diferença, devido à precária condição do sujeito de se confrontar com a sua incompletude,
assim como com a incompletude do Outro, obtura o furo do Outro num retorno a uma mítica
completude primordial, como se esboça no discurso do paciente através da demanda de
retirada das “cifras”: “por causa da singular simpatia que há entre o Sr. e eu”.
Nesse terceiro tempo do tratamento, a estrutura psicótica, mesmo não apresentando a
divisão subjetiva como se encontra na neurose, introduz uma pequena fissura nesse discurso
tão esférico. Haja vista que o sujeito define “cifra” como “controvérsias” – “cifris de money e
cifris
120
possível da psicose, a partir das seguintes experiências: alguns aspectos do caso Aimée
revalorizados posteriormente; a sua experiência clínica privada; o seu rigoroso
empreendimento em escutar psicóticos nas “apresentações de doentes” ao longo de toda a sua
carreira; além das inúmeras linhas teóricas que caracteriza a sua obra. Portanto, esses fatores
articulados permitiram que o ensino de Lacan avançasse em relação à clínica da psicose,
estendendo, inclusive, alguns aspectos desses avanços para outros pontos da teoria
psicanalítica.
A experiência clínica sustentada pelo GIFRIC no “388” permitiu principalmente a
Apollon, produzir uma teorização própria a respeito das etapas de um tratamento psicanalítico
de psicóticos. Nesse sentido, apesar das críticas que pudemos levantar quanto à sua
abordagem teórica, Apollon busca um caminho singular para orientar a cura analítica com
psicóticos ao cruzar vários elementos das obras de Freud e Lacan, como, por exemplo, a
construção de um fantasma na psicose. Os casos clínicos relatados por Bergeron e Cantin nos
reportam ao estilo trilhado pelo GIFRIC.
Em relação à nossa experiência clínica, mesmo diferindo em muito do contexto
canadense, pudemos também perceber que, ao privilegiarmos os principais significantes do
delírio, alguma construção pôde se esboçar malgrado o estreito “raio de ação” que tínhamos
para intervir junto ao paciente. A posição dual – aliás, fato de estrutura na psicose – na qual o
sujeito se encontra desde sempre, pouco se modificou ao longo do período de internação,
tendo prevalecido mesmo depois no atendimento de ambulatório, onde o acompanhamos
ainda por um ano.
Então, constatamos que houve uma superação do surto, produzida pelo tratamento, ao
estabilizar o sujeito, a ponto de certa forma permitir um resgate do laço social – tanto em
termos familiares, como através de um projeto em seguir uma carreira no serviço público. No
entanto, uma mudança subjetiva tão radical na psicose, como aquela em que aposta o GIFRIC,
obviamente não foi atingida, apesar de o sujeito não estar mais acossado pelo imperativo
delirante – “Serquequerser” – verificado no princípio do tratamento.
Reconhecemos que a posição do sujeito, ao final de sua internação, ainda era muito
precária, como constatamos, por exemplo, através do retorno da cumplicidade especular com
a sua mãe, ao nos dizer, pouco antes de sua alta hospitalar, que “entre mãe e filho há sintonia,
reciprocidade”. Contudo, alguma “toxina”, alguma “cifra”, atrapalha essa completude
imaginária.
121
Assim, mesmo havendo uma modificação na produção delirante do sujeito, não
tivemos elementos clínicos para avaliar a questão da construção de um fantasma na psicose –
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao finalizar a nossa dissertação, gostaríamos de lançar algumas questões.
Em nossa viagem ao Québec, ouvimos dos integrantes do GIFRIC, que, ao longo da
análise com o psicótico, a produção de sonhos pelo sujeito é fundamental, no sentido
freudiano de “via régia ao inconsciente”. Eles sustentam que o saber oriundo da “Outra cena”
é sempre utilizado na cura do psicótico para se contrapor ao saber do delírio. Ou seja, o saber
inconsciente até então disperso, fragmentado, a céu aberto, é posto em funcionamento para
que o delírio seja remanejado, desmontado, permitindo com isso um (re)enlaçamento social.
Nesse sentido, poderíamos pensar que o fundamental da experiência do GIFRIC é a
“instauração” do inconsciente na psicose? Por apostarem que a análise conduziria o psicótico
em direção à falha no saber irredutível a toda estrutura de linguagem – S(A) –, prescindindo,
então, do saber total que o delírio desesperadamente almeja? Produzindo-se, assim, o sujeito
do desejo na psicose?
Ainda gostaríamos de ressaltar três aspectos em relação à direção da cura na psicose.
Um primeiro aspecto refere-se à posição de Apollon que sustenta que a atividade
delirante estaria intimamente relacionada a uma “missão”, no sentido de produzir um saber
para dar conta do real desencadeado pela foraclusão do Nome-do-Pai. Ou seja, o delírio se
constituiria em uma tentativa de restauração de uma ordenação subjetiva, mesmo que
mantenha o sujeito fora do laço social. Depreendemos da concepção de Apollon ressonâncias
tanto das posições de Freud – o delírio como “tentativa de cura” –, como de Lacan – a
construção da “metáfora delirante”.
O segundo aspecto diz respeito à delimitação do discurso delirante do psicótico – a
partir dos próprios significantes produzidos pelo delírio do sujeito –, permitindo um novo
posicionamento do sujeito ante o seu delírio; na medida em que a intervenção analítica
propiciaria uma reordenação da economia de gozo do psicótico, proporcionando alguma
modalidade de laço social.
O terceiro aspecto que gostaríamos de destacar refere-se à teorização de Apollon que
pressupõe a produção de um fantasma na psicose em decorrência da desmontagem do delírio.
A proposta dele não tem como intuito localizar o delírio no lugar da fantasia – como ocorre na
neurose, isto é, ocupando a faixa da realidade, como podemos ler, por exemplo, no esquema R
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de Lacan. Entretanto, Apollon não deixa de relacionar o delírio à fantasia, assim como Freud,
ao sugerir que em todo delírio há uma fantasia que o sustenta.
A proposta de Apollon é mais ousada, ele não só preconiza uma construção
fantasmática na psicose, mas o próprio ultrapassamento desse fantasma no desdobrar do
percurso analítico do sujeito. Esse aspecto da teorização de Apollon deixa várias questões em
aberto porque a própria fundamentação apresentada por ele, até o momento, não consegue dar
conta desta hipótese, como pudemos analisar no terceiro capítulo.
Então, perguntamos: o próprio remanejar do delírio ao longo da escuta analítica não
corresponderia, em linhas gerais, a uma travessia do fantasma? Ao se enxugar a “floresta
delirante”, não se estaria construindo um “fantasma” com o qual o sujeito lidaria com o real
que o causa de uma outra maneira? Verificar-se-ia, assim, algum tipo particular de mudança
na posição subjetiva do psicótico?
Nesse momento, encerramos a nossa dissertação, mas não encerramos as questões. A
clínica psicanalítica da psicose, assim como toda clínica, não admite o fechamento das
interrogações que fazem o próprio saber avançar. As indagações abordadas por nossa pesquisa
exigir-nos-ão, em um futuro próximo, maiores desdobramentos no âmbito da universidade.
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