maria sueli rodrigues de souza

Transcrição

maria sueli rodrigues de souza
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
SUMÁRIO
Introdução: sobre o estudo realizado e sua metodologia.........................................................
Capítulo I – Sobre imaginário social e construção de saberes ambientais:
teóricos.....................................................................................................................................
1.1 A instituição imaginária do social......................................................................................
03
delineamentos
17
24
1.2 Campesinato, desenvolvimento e sustentabilidade...........................................................
Capítulo
II
Imagens
de
lugar:
semi-árido
e
Várzea
Grande:
reinvenções
espacialidade?...........................................................................................................................
2.1 Prolegômenos: sobre a construção social do Nordeste.....................................................
17
de
32
32
2.2 Semi-árido – nova invenção ou reinvenção de identidade espacial?................................
38
2.3 O contexto semi-árido: aspectos físicos............................................................................
43
2.4 O semi-árido no Piauí, território Várzea Grande..............................................................
44
2.4.1 Aspectos geomorfológicos e históricos..........................................................................
44
2.4.2 Ordenação territorial......................................................................................................
50
2.5 Território: ancestralidade e localismo na construção da identidade sertaneja...................
54
2.5.1 As conquistas de Vitorino e a relação de parentesco na memória mítica......................
54
Capítulo III – O sistema do lugar e suas interlocuções nos labirintos semi-áridos da vida
59
sertaneja....................................................................................................................................
59
3.1. Habitus e os princípios sistêmicos....................................................................................
3.2 A instituição social da cultura camponesa no semi-árido piauiense: inícios....................
61
3.3 De camponês a peão maniçobeiro......................................................................................
65
3.4 A mundialização do território Várzea Grande – de camponês a preservador ambiental: a instituição do
72
Parque Nacional da Serra da Capivara...........................................................
Capítulo IV – Imaginário social de semi-árido em construção: identidades em diálogo intercultural – o sertão
86
e o nordeste.........................................................................................
86
4.1 Imaginário social de sertanejo a nordestino: de secas e retiradas.....................................
4.2 O imaginário social de semi-árido: das retiradas à convivência.......................................
92
4.3 Símbolos do processo instituinte do imaginário social de semi-árido: arquitetura de uma nova
95
síntese?.....................................................................................................................
4.3.1 Imagens gráficas e sua análise estrutural.......................................................................
95
4.3.2 Análise de papéis e simbologias.....................................................................................
101
Conclusão.................................................................................................................................
110
Referências Bibliográficas.......................................................................................................
121
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
ILUSTRAÇÃO 01 – Processo estrutural instituinte do imaginário social de semi-árido
pág. 101
LISTA DE TABELAS
TABELA 01 - Itinerário das práticas produtivas...................................................................pág. 71
TABELA 02 - AT-9 Representação, função e simbolismo...................................................pág. 106
LISTA DE QUADROS
QUADRO 01 - Registro de imagens gráficas......................................................................pág. 96
QUADRO 02 - Sujeitos e regimes de imagens....................................................................pág. 96
QUADRO 03 - Relatos de regime diurno............................................................................pág. 98
QUADRO 04 - Relatos e imagens do regime noturno.........................................................pág. 99
QUADRO 05 - Estruturas do imaginário no regime diurno.................................................pág.100
QUADRO 06 – Estruturas do imaginário no regime noturno...............................................pág.100
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Maria Sueli Rodrigues de Sousa
INTRODUÇÃO: SOBRE O ESTUDO REALIZADO E SUA ABORDAGEM
METODOLÓGICA
O indivíduo, ao nascer, é apenas uma possibilidade. E, no processo de vir a ser do indivíduo,
emerge o imaginário social como força fundante e instituidora da cultura, através da qual o ser humano dá
significado ao mundo por suas experiências, ao fazer história, tecnologia, arte e a si próprio, construir a
sociedade, criando imagens e representações (CASTORIADIS, 1982).
Dentre as representações construídas no referido processo de instituição e fundação, estão as
que o ser humano faz de si próprio, do outro, dos vínculos sociais, da natureza, de si com a natureza, do outro
com a natureza, da relação entre cultura1 e natureza e das relações sociais no processo de apropriação da
natureza, pela simbolização, o que faz com que o mundo sócio-histórico-natural figure indissociavelmente
entrelaçado com o simbólico, numa rede de relações na qual não se esgota. Esta rede é tomada como
indispensável e fundamental para a existência e expressão do imaginário, através de suas imagens que atuam
como memória afetivo-social. Tais imagens possuem uma função simbólica e, inversamente, esta mesma
função pressupõe a capacidade imaginária de evocar uma imagem (CASTORIADIS, 1982).
Nesse sentido, a capacidade de simbolizar se expressa pelo estabelecimento de vínculos entre
termos, seres, coisas, de forma que um representa o outro em um processo no qual se estabelece um
significante, um significado e o vínculo entre os dois, resultando numa relação simbólica, que supõe a função
imaginária (CASTORIADIS, 1982). Nesta, a representação e a imagem são a semântica, ou seja, o
significado, que reagrupado, condensa a multiplicidade de sentidos que evoca (DURAND, 2002).
Desta forma, a capacidade de simbolizar favorece o estabelecimento dos vínculos que
permitem às pessoas o desenvolvimento do sentimento de pertença, numa espécie de continuum inatingível,
num tipo de compulsão para tornar-se semelhante às demais e a cada ser que compõe o ambiente2 em que se
encontram: os móveis, os imóveis, as árvores, os animais, num tipo de culturalização da natureza e
naturalização da cultura (MAFESOLI, 2000).
No referido processo de pertencimento, dão-se as relações entre as pessoas, as relações sociais
e destas com a natureza. Essas relações se encontram em movimento, transformam-se, numa espécie de
continuum processo crísico, em que há mais ou menos deslocamentos, cisões e conflitos, o que não se
confunde com o binômio equilíbrio/desequilíbrio. Nesse sentido, os momentos de menos conflitos e menos
cisões não são necessariamente de equilíbrio. Também uma situação de desequilíbrio não é simplesmente
1
Cultura aqui é tomada como a forma própria de um povo viver (MORAIS, 1992) e como sistema simbólico
formado pelas interações entre os indivíduos e destes com o conjunto social, considerando condições
históricas de sua organização social, o envolvimento afetivo, o papel do indivíduo e suas necessidades
básicas, não como o resultado de mecanismos cognitivos internos e sim como produto das relações sociais,
por isso não é uma entidade abstrata ou superorgânica, mas algo concreto, dinâmico, mutante, processual,
vivo (GEERTZ, 1989).
2
Ambiente aqui é tomado como o conjunto, a um momento dado, dos agentes físicos, químicos, biológicos e
os fatores sociais suscetíveis de ter um efeito direto ou indireto, imediato ou a prazo, para os seres vivos e as
atividades humanas, ou seja, a sociedade toda: instituições, cultura, natureza, cidades, habitat, economia,
técnica
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superada pela construção de uma situação de equilíbrio, mas pode sê-lo por uma espécie de estabelecimento
de outros lugares sociais no tecido crísico, em que o processo e os sujeitos parecem acomodar-se.
Nesse sentido, o processo crísico é permanente, havendo momentos em que os deslocamentos
são mais intensos, numa espécie de pico da crise, e momentos em que os sujeitos sociais se acomodam,
encontram ou definem seus lugares no referido processo, revitalizando os laços da relação de pertencimento.
Em termos mais amplos, o tecido social produzido pelo conjunto de relações urdidas no
percurso da sociedade industrial e pós-industrial vivencia um desses momentos de pico da crise ou policrise,
em que muitas facetas do fenômeno se entrelaçam e se sobrepõem: crise do desenvolvimento; crise da
modernidade; crise de todas as sociedades; uma espécie de agonia planetária, não apenas como a adição de
conflitos tradicionais de todos contra todos, mas como crises de diferentes tipos somadas ao surgimento de
problemas novos, sem solução, configurando-se num todo que se alimenta de ingredientes conflituosos,
crísicos, problemáticos e que os engloba, ultrapassa-os e torna a alimentá-los (MORIN, 2002).
Na atual situação crísica, ganham notoriedade as ameaças produzidas pelo percurso da
sociedade industrial, configurando-se a era pós-industrial como sociedade de risco (BECK, 1997), em que se
vivencia a possibilidade de perigo com conseqüência de alta gravidade para cultura e natureza. Tais perigos
são gerados pelo desenvolvimento da ciência e da técnica, produzindo os conflitos bads3, em que a destruição
ecológica é provocada pelo desenvolvimento industrial. Além disto, há os riscos NBC (nuclear [nuclear],
biological [biológico], chemical [químico]), as armas nucleares, biológicas e químicas e, especialmente, os
riscos relacionados à pobreza, que vinculam habitação, alimentação, perdas de espécies e diversidade
genética, energia, indústria e população.
O contexto macro é a sociedade moderna ou semi-moderna, ou seja, a sociedade industrial
impregnada com elementos de contramodernidade, como nazismo, comunismo, opressão das mulheres,
guerras, militarização. De fato, trata-se do autoconfronto da sociedade, num processo de auto-destruição
criativa e numa reinvenção da política, que não mais prega revoluções, desintegrações ou conspirações.
Nesse sentido, a política emerge como se fosse uma renegociação, um redesenho, uma autotransformação, de
modo que a macropolítica dá lugar à subpolítica difusa, moldando a sociedade de baixo para cima, o que
resulta na perda de poder e de encolhimento da macropolítica, assim como substituição clássica da oposição
direita e esquerda por outras como seguro/inseguro, dentro/fora, político/não político (Beck, 1997, apud
GUIVANT, 2001).
Beck (1997), pela idéia de “sociedade de risco”, identifica o contexto em crise no chamado
capitalismo avançado ou sociedade industrial, embora reconheça que o processo crísico é anterior ao referido
contexto. Vale lembrar com Sauer (2002) que a idéia de sociedade em crise está relacionada à dicotomia
urbano/rural, com o urbano sendo associado à modernidade e o rural a atraso ou tradicional, concepção que
remonta a tempos antigos, desde pensadores gregos, com os conceitos de cidadania. No entanto, a própria
dicotomia vai sendo forçada a diluir-se por processos que empurram o consumo do urbano pelo rural, na
e artes; resumidamente, qualquer coisa que o ser humano cria, de que se cerca, das quais se recorda, que
deseja, o que forma a complexidade de suas relações e condições de vida (GROUPES..., 1991).
3
Bad quer dizer o que é ruim, qualidade má. No contexto refere-se aos efeitos do buraco na camada de
ozônio, efeito estufa e os riscos que traz a engenharia genética para plantas e seres humanos (GUIVANT,
2001).
4
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
medida em que avança a modernização da sociedade (SAUER, 2002). Nesse sentido, ao se instalar o
processo de crise, seus efeitos são estendidos ao rural não como outro espaço, mas como continuidade do
espaço urbano, a serviço deste, servindo-lhe de suporte, desconsiderando a existência própria dos territórios
rurais, com suas peculiaridades, suas populações, seu modo de vida, suas experiências e seus saberes.
O objeto de estudo da presente pesquisa situa-se, no contexto crísico referido, na especificidade
da crise eco-social, que brota da relação entre culturas no processo de apropriação da natureza, em um espaço
rural semi-árido. Neste espaço, há uma área de preservação arqueológica e ambiental, o Parque Nacional da
Serra da Capivara, instalado como suporte da vida urbana, com base numa espécie de usurpação de direitos à
terra de populações locais, que lá viviam e onde viveram seus antepassados, em um modo de vida distinto do
urbano-industrial. De fato, preservar neomitos em áreas protegidas com a exclusão total do ser humano voltase para o deleite das populações urbanas, com o conseqüente afastamento forçado das populações
tradicionais, em benefício de uma conservação ambiental que beneficia os visitantes urbanos, numa negação
da tradição de saberes e fazeres (DIEGUES, 1996). Não se nega, aqui, que os problemas ambientais existem
e guardam estreita relação com práticas, representações sociais e políticas que estruturam o universo sócioeconômico-cultural e que isto requeira mudanças no padrão de relação entre cultura e natureza,
especialmente, no que diz respeito ao processo de apropriação da natureza pela cultura. Mas isso não
dispensa o cuidado com a pluralidade cultural, especificamente, a relação entre as diferentes culturas, o que
aponta, por sua vez, para as hierarquias sociais e as relações de poder que aí se instituem.
Considerando a importância do caráter intercultural, foquei a crise relacionada ao processo de
apropriação da natureza, ou seja, o conflito entre culturas na disputa pela apropriação da natureza, a partir do
processo gerador da crise, numa temporalidade cronológica, considerando, no entanto, que ela se funde numa
temporalidade intemporal4 e glacial, em que a relação entre ser humano e natureza é de longo prazo,
projetando-se para trás e para frente (CASTELLS, 2002), fazendo cruzar diversas temporalidades. Nesse
entrecruzamento, de fato, encontram-se o espaço-tempo mundial, cenário das relações internacionais no
emergir da questão ambiental5; o espaço-tempo doméstico, o das relações familiares; o espaço-tempo da
produção, o das relações sociais através das quais se produzem bens e serviços que satisfazem as
necessidades efetivas; o espaço-tempo da cidadania, constituído pelas relações sociais entre Estado, cidadãos
e cidadãs. Neste contexto, configuram-se relações de poder, em que a dominação estabelece a desigualdade
entre cidadãos, cidadãs e Estado, e entre grupos de interesses contrastantes e conflitantes, no seio da
comunidade, como conjunto de relações sociais por via das quais se criam identidades coletivas de
vizinhança, região, raça, etnia, religião, que vinculam indivíduos a territórios físicos ou simbólicos e a
temporalidades partilhadas, passadas, presentes ou futuras (SANTOS, 2001).
Nessa direção, entendo que o processo gerador da crise, no caso em estudo, é marcado pelo
encontro entre culturas, nos marcos de uma dada relação entre cultura e natureza já estabelecida. Intervenção
4
A referida temporalidade ocorre quando elementos de um determinado contexto, a saber, o paradigma
informacional e a sociedade em rede, provocam uma perturbação sistêmica na ordem seqüencial dos
fenômenos, acelerando processos (CASTELLS, 2000), por exemplo, a comunicação em rede, a internet, que
acelera processos e isso reduz espaços temporais entre os fatos.
5
Por questão ambiental refiro o fenômeno associado aos desequilíbrios sistêmicos ocasionados pela
persistência de padrões reducionistas de regulação da dimensão econômico-política da vida social e pela
natureza exponencial das curvas globais de crescimento demográfico (FREIRE, 2001).
5
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
esta que não acontece no sentido de potencializar a relação já estabelecida, mas de substituí-la, o que marca o
processo por um caráter de violência.
Como estratégia analítica, privilegio determinados momentos históricos, paradigmáticos do
referido processo, apreendido em três temporalidades na região estudada: o encontro entre as culturas
indígena e colonizadora portuguesa; o encontro entre cultura camponesa e a da exploração da maniçoba
[Manihot piauhyensis]6 e o encontro entre cultura camponesa e a de preservação ambiental. Referir-se a esses
eventos usando a palavra “encontro” é eufemizar a violência objetiva e simbólica envolvida no processo.
A primeira temporalidade resultante do encontro intercultural entre nativos e colonizadores, no
Brasil colonial, é guiado, dentre outras finalidades, pela de limpeza étnica, de forma a permitir a instalação
das fazendas de bovinos, no sertão, atividade empreendida em primeira mão, como suporte para a economia
canavieira, desenvolvida no litoral e, depois, como centralidade econômica. A forma de conduzir o intento
resultou num obstinado processo de construção de hegemonia cultural, econômica e política, que redundou
numa colossal perda demográfica de populações nativas, denominadas indígenas e em uma situação de
anomia7 causada pela desorientação cultural produzida pelo deslocamento da cultura tradicional e pela
introdução da cultura colonizadora. O caldo cultural resultante fez-se com muito sangue, numa vertiginosa
agonia das populações dominadas, em que a cultura colonizadora muda as regras e o jogo das relações entre
cultura e natureza (GRUZINSKI, 2003).
Às populações nativas que sobreviveram ao processo violento da colonização restou adotar, em
certa medida, a cultura hegemônica, até como forma de manter suas identidades ameaçadas. Assim, formas
de reinterpretação e ressignificação cultural podem ser vistas, também, como resistência. Historicamente, no
entanto, isto implicou, inclusive, em não se reconhecerem como parte da cultura original, cujos vestígios, no
entanto, vão ressurgindo, na medida em que se vão consolidando novas identidades culturais, como a
camponesa (GRUZINSKI, 2003).
A segunda temporalidade refere o encontro entre cultura camponesa e da exploração da
maniçoba, no final do século XIX, com o início da referida exploração, que, no Piauí, surgiu de maneira
episódica (MARTINS et al, 2003), com a oportunidade de exportação do produto. De fato, esta exploração
teve o seu ponto alto no início do século XX, fase esta que durou algo em torno de vinte a trinta anos, quando
acontece a crise internacional do látex de origem vegetal, em função de descoberta do látex sintético e de
vários centros fornecedores na Ásia. Mas a exploração no Piauí se estendeu até os anos 60, mesmo em
situação de crise.
Com efeito, o desempenho da exploração da maniçoba, no contexto da economia piauiense,
provocou uma corrida às regiões produtoras, o que fez ocorrer significativas intervenções na conformação do
tecido social, especialmente, na composição das populações locais, que receberam grande número de
migrantes, oriundos de Estados vizinhos como Bahia e Pernambuco. De fato, esta dinâmica econômica
transformou camponeses em extratores ou comerciantes de látex da maniçoba e permitiu a “entrada de gente
6
Exploração da maniçoba aqui se refere ao contexto de extração e cultivo da maniçoba [Manihot
piauhyensis].
7
A idéia de anomia aqui é utilizada no sentido de indicar uma situação de desregramento social, em que os
indivíduos deixam de seguir normas compartilhadas, em que as estruturas sociais locais não conseguem fazer
6
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
de fora” na estrutura de parentesco local, através dos casamentos (OLIVEIRA, 1998) e de outras formas de
parentesco ritual. É um período marcado por violência e perturbação no habitus8 que norteava as relações
sociais locais e destas com a natureza, o que gerou uma situação de crise sócio-ecológica, com grande
elevação da exploração do ecossistema.
Passado o boom da maniçoba, a atividade permaneceu em pequena escala, integrada ao modo
de vida dos camponeses de forma que no período no qual estes não estavam na roça, iam “furar maniçoba”.
Assim, a atividade se integrou ao conjunto da cultura camponesa, como complemento de renda, até se exaurir
totalmente nos anos sessenta por falta de mercado consumidor, embora ainda faça parte da flora local.
O terceiro momento das temporalidades aqui referidas remete ao encontro entre cultura
camponesa e cultura de preservação ambiental9, nos anos 80 do século XX, com a instituição do Parque
Nacional da Serra da Capivara. O referido parque foi criado para proteger a área considerada de interesse
arqueológico, em razão da existência de um grande número de sítios pré-históricos, que abrigaram
assentamentos humanos, e para proteger flora, fauna e belezas naturais (FUNDHAM, 1998).
Por se tratar de uma área de proteção integral, a criação do parque exigiu a retirada das
populações locais daquele espaço, vedando-lhes o acesso para qualquer tipo de produção ou extração,
resultando numa violação, de imediato, em caráter material e simbólico de um modo de vida instituído
naquele ambiente.
Nesta análise, o processo de intervenção na relação entre natureza e cultura, nas três
temporalidades referidas, relaciona-se com o processo histórico da profunda crise ecológica (MORAES,
2000) de populações camponesas em determinados ambientes, no presente. Crise, esta, marcada por conflitos
sociais, problemas ecológicos, problemas econômicos, num descompasso entre suporte natural e formas de
apropriação de suas potencialidades. Nesse contexto, impõe-se considerar o processo histórico que produziu
e mantém a cultura dos flagelados da seca, presente não apenas no local investigado, mas em todo o semiárido brasileiro, onde prevalece uma visão, historicamente construída, de seca como a grande tragédia que
castiga as populações locais do semi-árido, reduzindo-as à condição de indigentes que dependem da cesta
básica para minorar a fome e de carro-pipa para o abastecimento de água. Sem dúvida, esta é uma imagem
unificadora da diversidade existente no território semi-árido no Brasil e naturalizadora do problema da
cultura da seca, mostrando-o como provocado por forças naturais às quais o ser humano não consegue
enfrentar. Efetivamente, tal concepção oculta processos provocadores da crise, sendo útil à implementação de
políticas assistencialistas que têm servido para manter a histórica concentração de poder numa estrutura de
Estado patrimonialista10 que agasalha os velhos e novos coronéis do sertão11.
valer sua força, seja por encontrar outras práticas mais fortes ou por incompatibilidade com o meio
(DURKHEIM,1996).
8
Habitus aqui entendido como um sistema de disposições duráveis e transponíveis que integra as
experiências passadas e funciona como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações, tornando
possível a realização de tarefas diferenciadas pela transferência analógica de esquemas, produzindo, desta
forma, práticas que tendem a reproduzir as regularidades (BOURDIEU, 1994).
9
Cultura de preservação ambiental aqui se refere ao processo de educação ambiental introduzido com a
criação do Parque Nacional da Serra da Capivara.
10
Estado patrimonialista entendido como aquele que surge a partir da hipertrofia de um poder patriarcal
original, que alarga a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extra-patrimoniais,
passando a administrá-las como propriedade familiar ou patrimonial, gerando uma estrutura estatal que
7
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De fato, o sertão semi-árido nordestino, desde a colonização, foi tomado como sinônimo de
seca (FURTADO, 1998). Esta concepção, embora fundada em severas experiências de longas estiagens,
acaba por revelar-se parcial por não permitir que se perceba o ecossistema em sua totalidade, com as
estiagens, as cheias, o verde, o cinza, a escassez, a abundância, a fauna e a flora. Além disto, confere uma
falsa unidade ao que é rico em diversidade, desconsiderando especificidades dentro do bioma. Esta lente
distorcida tem levado os fazedores de políticas públicas a defini-las em forma de receituário generalizado,
com a mesma estratégia e tecnologia para todo o semi-árido. E ainda culturaliza o fenômeno da natureza por
processos políticos através de discurso que cria uma imagem de natureza impiedosa, com força e vida
própria, retirando da órbita política a responsabilidade pelo drama social da seca. Assim, nesse discurso, a
irregularidades das chuvas no tempo e no espaço saem da órbita da natureza12 para a da cultura, ou melhor,
como conseqüência desta, criando, assim, as secas como discurso sócio-político-cultural.
Vale lembrar um outro discurso, nesse processo imaginário, no sentido de que, também por um
mecanismo cultural, naturaliza-se a seca como força divina e por isso fora do controle humano,
demonizando-a, ou melhor, vendo-a como castigo de Deus13, idéia originada da visão edênica do colonizador
português sobre as terras colonizadas. Nesse imaginário, o Brasil é o Jardim do Éden e o que altera as bases
desta percepção é fruto do pecado. Com efeito, a visão edênica pode ser percebida desde a Carta de Pero Vaz
de Caminha ao rei de Portugal, nas imagens do gentio inocente e da terra abundante:
E, segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa
para ser toda cristã, senão entender-nos [grifo meu], porque tomavam aquilo
que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde pareceu a todos que nenhuma
idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem
entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados ao desejo de Vossa
Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar,
porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados que
aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram”.
(...)
Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra
ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvesse vista, será
tamanha que haverá nela vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Tem ao longo do
mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra
por cima toda chã e muito cheia de arvoredos. De ponta a ponta, é tudo praia
palma, muito chã e muito fremosa.
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, a entender olhos não
podíamos ver sena terra com arvoredos, que nos parecia muito longo.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma
de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muitos bons ares,
garante o acúmulo de fortunas privadas, graças aos privilégios auferidos pela elite com a proteção do Estado
(WEBER, 1991)
11
Sobre coronelismo no Brasil ver Faoro (1991).
12
No debate sobre a participação humana na alteração dos climas, em se considerando uma temporalidade
glacial, é corrente a concepção de que a ação humana interfere na alteração microclimática, mas não interfere
na esfera macro. É, também, corrente a concepção de que o ser humano é, de fato, grande poluidor do meio
ambiente e destruidor da natureza, mas não determinante das grandes alterações climáticas, que, por
exemplo, resultem na constituição de ecossistemas (PÁDUA, 2002).
13
Embora Deus, a religião, enquanto crença, seja da esfera da cultura para a análise socioantropológica, aqui
a idéia está calcada na concepção teocêntrica de um deus controlador das forças da natureza, fora da órbita
humana, portanto não cultural.
8
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
assim frios e temperados, como os de Entre-Douro e Minho [grifo meu],
porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.
Águas são muitas; infindas [grifo meu] E em tal maneira é grandiosa que,
querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem
(CAMINHA, 1994. p. 180-181).
Como se pode ver, especialmente no segundo grifo, o imaginário edênico nasce,
etnocentricamente, da comparação, por similitude, com as terras do colonizador, produzindo o equívoco de
caracterizar o clima da Bahia, onde primeiro chegaram os portugueses, como temperado, o que redundou no
fato de os colonizadores trazerem consigo animais, plantas, sementes, formas de cultivo e de criar, próprias
do clima temperado da Europa.
A ocorrência da irregularidade das chuvas no tempo e no espaço, transformada em discurso das
secas, nega o imaginário edênico de terra amena e, na ótica popular, aquelas são tomadas como se fizessem
parte do pecado original14, por isso necessitando serem combatidas por meio de rezas, penitências,
promessas, novenas. Já na ótica do Estado e de um corpo técnico científico, o enfrentamento deve se dar com
políticas de combate. A meta, em ambos os casos, é extinguir a condição ambiental de seca.
De fato, a idéia de extinguir o fenômeno natural da seca é uma concepção que moveu e move
pesquisas tecnológicas como, por exemplo, a que recomenda o bombardeamento das nuvens com cloreto de
sódio para fazer chover, largamente divulgada pelos meios de comunicação social, como estratégia para
acabar com as secas no semi-árido. Também foi esta meta que motivou a criação de órgãos de governo como
o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS) [grifo meu], ações governamentais, políticas
públicas e obras de grande porte, de alto custo, sem sustentabilidade e com pouco retorno social, como as
grandes barragens, os poços tubulares, os incontáveis açudes e, atualmente, a proposta de transposição do Rio
São Francisco. Essas obras, em grande medida, foram construídas sem levar em conta as características de
solo, a oferta de água subterrânea, a população beneficiária, a adequabilidade do empreendimento às
condições ambientais. Tal é o caso dos poços tubulares perfurados, geralmente, em períodos eleitorais, a
custos altíssimos, em áreas de subsolo cristalino, em que a água existe em pequena quantidade, sendo salobra
devido ao longo tempo de contato com sais, resultando em poços que não fornecem água ou a fornecem em
qualidade não consumível.
Portanto, a lógica da relação entre humanidade e natureza, trazida para o Brasil pela cultura
européia, desdobra-se historicamente e intensifica a relação de exploração intensiva entre natureza e cultura,
na medida em que os sistemas de exploração agrícola se foram modernizando. Desse caráter introduzido
pelos colonizadores, é parte fundamental a exploração com fins econômicos, o que, cada vez mais, exige a
intensificação do processo de exploração insustentada da natureza. Foi assim que o pau-brasil e tantas outras
espécies vegetais e animais desapareceram e continuam a desaparecer. Processo semelhante aconteceu e
ainda acontece com a cultura tradicional de populações indígenas, camponesas e com o modo de vida dessas
populações.
14
A referência ao pecado original é feita em função do estabelecimento de uma relação por similitude com o
pecado de Adão e Eva, como marca de nascença: todos os que estão nestas terras, o semi-árido, estão sob a
mesma égide, portanto sob os desígnios do pecado original.
9
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Embora o referido padrão hegemônico de relação entre cultura e natureza tenha sido permeado
por processos vários de contradições e conflitos, este é fortalecido na lógica do capitalismo centralizado, que
se estrutura numa espécie de constelação em que os países colonizadores, e depois os industrializados, ficam
no centro e os países colonizados, mais tarde os não industrializados e, atualmente, os economicamente
dependentes, ficam na periferia (PRESBICH, 1981), com o favorecimento do centro, o que faz com que a
inserção da periferia tenha um passivo. O centro apresenta-se aí como produtor de manufaturas, responsável
pelo desenvolvimento industrial e tecnológico, e a periferia como fornecedora de matérias-primas, em virtude
de suas dotações de recursos naturais. Produziu-se, desta forma, tanto um desenvolvimento desequilibrado
entre centro e periferia quanto entre o modo de produção e o ambiente (YOUNG, LUSTOSA, 2003)15.
A chave para compreender este desenvolvimento desequilibrado está nos processos de
industrialização e o progresso tecnológico, que produzem excedentes, gerados pelos ganhos de
produtividade, que não são distribuídos igualmente e os danos ambientais gerados não representam passivo
para nenhuma das partes, nem para o centro nem para a periferia, ou seja, nenhuma das partes da relação
paga a conta e as conseqüências dos danos compõem o cenário em que vivem as populações locais.
Sem dúvida, no que tange à questão ambiental, pode-se dizer que, já no século XIX, o mundo
ocidental experimentou os primeiros reflexos do modelo desenvolvimentista da sociedade industrial
(GIULIANI, 1998), assentado no pressuposto de dois infinitos: a inesgotabilidade da matéria prima e da
energia e a ilimitada capacidade da natureza de absorção dos rejeitos (DUARTE, 1983). O referido modelo
desconsidera a lógica de existência da natureza e sua diversidade, que, por sua vez, garante a existência do
ecossistema.
Como dito por Diegues (2000), a percepção dos primeiros choques entre o modelo industrial e
os ecossistemas naturais fez o mundo das artes e das ciências rebuscarem os mitos do bom selvagem e o da
natureza intocada, que remetem a Jean Jacques Rousseau e que serviram de base para o surgimento da idéia
dos parques nacionais, como áreas de preservação com a exclusão de assentamentos humanos e como
representação simbólica que sustenta a existência de áreas naturais intocadas e intocáveis pelo ser humano,
pela suposição da incompatibilidade entre ação humana e conservação da natureza.
Com efeito, as raízes desses mitos encontram seu substrato nas grandes religiões,
principalmente, a cristã. As marcas dessa concepção povoam obras de arte do estilo denominado
Romantismo, nascido na Europa e espalhado para as Américas, com os seus heróis no modelo bom selvagem
movendo-se num espaço de natureza idealizada, intocada pela ação humana.
Sem dúvida, este ideário acompanha a crise provocada pelo processo de industrialização que
tornou a degradação ambiental muito mais célere e com conseqüências cada vez mais fora do controle
humano. Pode-se considerar com Ferry (1994) que o acirramento da questão veio com a segunda guerra
mundial, que serviu de alerta e alarme voltados para os efeitos das chamadas sociedades urbano-industriais
modernas, a partir do reaproveitamento dos lixos de guerra na mecanização da agricultura, o que deu
impulsão aos movimentos e discursos ambientalistas, que começam a surgir a partir dos anos cinqüenta.
15
A propósito, Santos (2001) desenvolve raciocínio semelhante, empregando em lugar de centro e periferia,
as denominações norte e sul para referir-se às questões das hierarquias entre nações no mundo
contemporâneo.
10
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
A propósito, vale lembrar que a proliferação desses movimentos e a difusão dos discursos
ambientalistas têm despertado a atenção de estudiosos que sobre eles se debruçam. Nesse sentido, Castells
(2002) identifica uma pluralidade de movimentos ambientais, em grandes linhas, com os seguintes perfis: o
movimento de preservação da natureza (grupo dos dez, EUA), com a identidade de “amantes da natureza”,
elegem, como adversário, o desenvolvimento não-controlado, tendo como meta a vida selvagem. Um outro
tipo de movimento ambiental é o de defesa do próprio espaço (“não no meu quintal”), que adota a identidade
de comunidade local, enfrentando os agentes poluidores em defesa da qualidade de vida e da saúde. Há ainda
o movimento Save the planet (Greenpeace), com identidade internacionalista, que luta pela causa ecológica
contra o desenvolvimento global desenfreado em busca de sustentabilidade. Por fim, o autor refere-se ao
movimento da política verde (Die Grünem), que assume a identidade de cidadãos preocupados com a
proteção do meio ambiente e que combate o status quo político, com vistas a fazer oposições ao poder.
Também para Diegues (2000), os movimentos ambientalistas têm como traço característico um
universo plural que conta com várias correntes, dentre elas: os preservacionistas, que defendem a separação
total entre cultura e natureza, com o fito de preservar esta, dentre estes os adeptos da Ecologia Profunda16,
cuja proposição principal se materializa nos parques nacionais. Uma outra corrente é formada pelos
conservacionistas, cujas idéias serviram de base para o ideário da sustentabilidade, ou seja, conservar a
natureza junto com a vida humana. O conservacionismo surge como crítica ao preservacionismo por seu
profundo desinteresse pelos problemas sociais. O autor refere-se ainda a uma outra corrente, a do novo
ambientalismo, produto de forças internas e externas, cruzadas com fatores sócio-políticos, cuja preocupação
básica é com o que se convencionou chamar de qualidade de vida.
De fato, o que se observa é que, no caso em questão, entrecruzam-se diversos discursos
ambientais. A administração do Parque Nacional da Serra da Capivara, por exemplo, anuncia um discurso
mais próximo do preservacionismo.
Por seu turno, organizações não governamentais e governamentais, que atuam na área em
projetos que enfrentam a situação de crise eco-social, demonstram, em seus planejamentos, uma preocupação
mais centrada no ser humano do que na natureza. Por exemplo, num projeto empreendido numa parceria
entre entes governamentais e não governamentais, o “Projeto Fecundação”, as linhas de ação do
planejamento são: gestão, iniciativas produtivas, recursos hídricos, divulgação e educação. As linhas estão
centradas nas necessidades humanas, embora leve em conta o que a natureza pode ofertar e quais são os seus
limites. A meta é atingir melhor qualidade de vida para o ser humano, o que indica um distanciamento entre
políticas de desenvolvimento voltadas para as populações e para o meio ambiente.
Com efeito, na análise sobre os movimentos ambientalistas, Castells (2002) argumenta que a
questão ambiental encontra dificuldade para se inserir no cotidiano das populações, alegando que, por muito
tempo, esteve esta restrita às elites dos países dominantes, formadas por remanescentes de uma aristocracia
esmagada pela industrialização e por outros que adotavam como núcleo comunal e utópico a associação entre
ecologia e anarquismo, assumindo para si a tarefa de despertar a consciência de indivíduos poderosos, que
acabariam promovendo a criação de uma legislação conservacionista ou doando suas fortunas em prol da
11
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
causa da natureza. Embora havendo pioneiros como Raquel Carson, a questão ambiental só vai chegar às
massas nos anos 60.
Reconhece, ainda o autor, haver conflitos e desavenças no seio do movimento ambientalista,
mas atribui essas ocorrências à discordância quanto às estratégias, e não devido à idéia básica. Isto significa
que, apesar da diversidade dos movimentos ambientalistas, é possível identificar linhas gerais de um
“discurso ambientalista”, tais como: relação estreita e ao mesmo tempo ambígua com a ciência e tecnologia –
revolta com a ciência e movimento com base na própria ciência – criticam a ciência e valem-se desta;
conflitos sobre a transformação estrutural como sinônimos da luta pela redefinição histórica das duas
expressões fundamentais e materiais da sociedade: o tempo e o espaço17; a questão do controle sobre o tempo
em jogo na sociedade em rede: o movimento ambientalista é, provavelmente, o protagonista do projeto de
uma temporalidade nova e revolucionária, com tempo cronológico, intemporal e glacial, que estende as
preocupações das populações do presente com as populações do futuro (CASTELLS, 2002).
Nesse sentido, é por meio das lutas por apropriação da ciência, do tempo e do espaço, que os
ecologistas inspiram a criação de uma nova identidade, uma identidade biológica e social, que não implica
em negação das culturas históricas, mas dificilmente poderá conviver com a identidade do Estado nacional,
visto que essa nova identidade estende-se para além de suas fronteiras (CASTELLS, 2002).
Situar, nesse contexto, um estudo sobre imaginário social de semi-árido impõe a necessidade
de mergulhar nesta realidade para conhecer os seus processos instituidores, para isso exigindo o descortinar
deste território, sua gente, habitus e a ética que conduz a relação dessa gente com a natureza.
Para isso, a pesquisa, realizada em 2004, no semi-árido piauiense, com área de adensamento no
município de Coronel José Dias, nas comunidades rurais Barreiro Grande, Barreirinho e São Pedro,
metodologicamente, adotou a concepção de que o fenômeno social é passível de objetivação, sem deixar-se
guiar, exclusivamente, por metodologias objetivistas ou probabilísticas, por meio de hipóteses estatísticas.
Assim, buscaram-se instrumentos de análise compatíveis com o objeto de estudo. Nesse sentido, primou-se
pelo contato direto com os sujeitos investigados, com ênfase na observação participante e na produção de
narrativas orais, através de entrevistas semi-estruturadas, fundadas nos pressupostos teóricos da história oral
(THOMPSON, 1998, FERREIRA, AMADO, 1996, JUCÁ, 2003) e história de vida (BOURDIEU, 1996),
empregados num estudo de caso para compreender, descrever e analisar, em termos de uma descrição densa,
o imaginário social de semi-árido, na área investigada, com destaque para o papel da memória (BOSI, 2003),
com vistas a reconstituir, no ato de relembrar, pela recriação apresentada do passado através da lembrança, o
caminho que conduz à representação desse passado. Nesse sentido, memória narrativa foi tomada como
dimensão cultural, composta de símbolos que demarcam a identidade de um grupo social, nele comportando
memória individual e coletiva (TEDESCO, 2002).
16
Ecologia Profunda é uma vertente do movimento ambientalista norte americano que se espalhou pela
Europa e prega a defesa do amor à terra, do crescimento zero; aversão ao cosmopolitismo, ao moderno, na
luta contra o capitalismo e em defesa dos poderes locais. (FERRY, 1994).
17
O espaço de lugares privilegia a interação social e a organização institucional tendo por base a
contigüidade física. O traço distintivo da nova estrutura social, a sociedade em rede, é que a maioria dos
processos dominantes, concentrando poder, riqueza e informação, é articulado nos espaços locais
(CASTELLS, 2002).
12
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Os pressupostos da oralidade como instrumento socializador da memória permitem aproximar
num mesmo espaço histórico e cultural, a imagem lembrada do passado e a do presente (BOSI, 2003). Para
isso, busquei nos relatos orais, através das entrevistas, as imagens que compõem o imaginário social
investigado, por entender que o método da oralidade possibilita um encadeamento de fatos e imagens que
foram traduzidos pela memória que os seleciona, interpreta e reinterpreta-os e, com isso, o narrador também
interpreta a si próprio pelas lentes do tempo presente, numa espécie de poética da vida social, que resulta em
quadros interpretativos da sociedade da qual emergem (LIMA, 2003).
A contribuição teórica do enfoque da história de vida, perspectiva que está na base da análise
das entrevistas, corresponde à construção de relatos de narradores e narradoras sobre sua existência através
do tempo, com vistas a reconstituir os acontecimentos vivenciados e transmitir significados. Isto significa
que, através desta experiência narrada, delineiam-se as relações sociais com o grupo, profissão, camada
social a que pertence na sociedade global, assim como suas relações com o meio ambiente (SIMPSON,
1988).
Vale lembrar que, embora a técnica da história de vida esteja, teórica e metodologicamente,
orientando as entrevistas realizadas, não se trabalhou, até pela escassez do tempo, no mestrado, com a
construção de histórias de vida, propriamente, mas, sim, com entrevistas semi-estruturadas. A referência à
história de vida, portanto, deve-se aqui à ênfase na narrativa e, nesta, ao mínimo direcionamento e imposição
da problemática.
A condução das entrevistas baseou-se nos objetivos e hipótese geral da pesquisa, numa
situação de atenção flutuante, buscando evitar o questionamento forçado, o que contribuiu para que
entrevistados e entrevistadas permitissem deixar emergir o seu universo cultural nas falas (THIOLLENT,
1987).
As entrevistas foram transcritas literalmente e seu conteúdo, posteriormente, organizado nas
categorias de análise, juntamente, com o produto da observação participante. As categorias de análise
surgiram do roteiro de pesquisa, composto de forma a captar os aspectos do modo de vida camponês do sítio
pesquisado, considerando: território, história da ocupação, aspectos da economia, imagens de seca, relação
com a política, lazer, relação com o parque, organização, relações entre cultura e natureza, saberes
ambientais, problemas principais. A pesquisa de campo foi, no seu conjunto, organizada em relatórios
sistematizadores de dados para análise e elaboração desta dissertação.
Numa perspectiva multidimensional do sujeito, o trabalho com as narrativas orais foi associado
ao trabalho com imagens gráficas tomadas em oficina, com sujeitos selecionados pelo recorte de geração e
gênero, num total de nove pessoas. No recorte de geração participaram duas crianças, dois jovens, duas
pessoas adultas e três pessoas idosas. E no recorte de gênero, cinco mulheres e quatro homens. Com exceção
das duas crianças, todos já haviam participado do processo de entrevistas.
A referida oficina foi conduzida pela técnica AT – 9, teste arquetipal com nove elementos, com
base em Yves Durand (1988) e Pitta (1995). O teste consiste na produção de um desenho com os arquétipos:
personagem, animal, fogo, água, algo circular, uma queda, refúgio, espada e monstro. A referida técnica é
assim denominada por trabalhar os nove arquétipos, compostos individualmente e acompanhados de um
relato sobre o desenho e de um questionário sobre o papel e significado de cada arquétipo na narrativa.
13
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
O referido método arquetipal foi aqui adotado para analisar os fatos simbólicos materializados
na expressão gráfica, o desenho, a organização dos referidos fatos, no relato, bem como o procedimento de
racionalização da simbolização através do questionário. O teste, desta forma, é composto de um estímulo
central, o personagem; de dois estímulos da ansiedade, a queda e o monstro; de três estímulos de resolução da
ansiedade, a espada, o refúgio e o elemento cíclico e de três estímulos complementares, a água, o animal e o
fogo. A análise do desenho, história e respostas ao questionário foram classificadas de acordo com as
estruturas do imaginário: heróica, mística e sintética. Também foi realizada a análise das simbologias
atribuídas pelos sujeitos a cada elemento do seu relato, com vistas a perceber a coesão do imaginário através
da ação desenvolvida pelo personagem e da relação entre os elementos (PITTA, 1995).
A associação dessas diferentes concepções metodológicas originárias de quadros de referência
(BRUYNE, 1991), como o da compreensão e do estruturalismo, foi assumida nesta pesquisa com base na
perspectiva da complexidade do sujeito que aqui se expressa nas dimensões discursivas conscientes e
inconscientes e na própria ciência do imaginário que propõe pensar as coisas simultaneamente e não
simplesmente por oposição. Nesse sentido, com a contribuição da antropologia do imaginário, busca-se a
compreensão do objeto pesquisado, a partir das narrativas, que não obedecem a uma linearidade na forma de
dedução lógica, mas, sim, através da estruturação simbólica do imaginário, pressupondo o caráter
pluridimensional do mundo simbólico, com base na concepção de que, se o mito fundamenta a cultura, cada
pessoa vive dentro de várias mitologias como a teoria e o método da pesquisa do imaginário permitem
compreender e explicar.
Os sujeitos da pesquisa foram selecionados, inicialmente, pela indicação de técnicos de uma
organização não governamental, a Cáritas Brasileira – Regional Piauí, que atua na área, e por mim própria
em função de conhecimento prévio da área como técnica da já citada organização. A partir das primeiras
indicações, a seleção foi feita espontaneamente ou por auto-seleção. Os únicos critérios observados foram
quanto à campesinidade (WOORTMAMM, 1990 e MORAES, 2000) e quanto ao recorte de geração e
gênero. O recorte de geração foi adotado com o fim de ir além do universo social do presente e o recorte de
gênero, com o fim de chegar aos universos do mundo do trabalho produtivo e reprodutivo já que, na tradição
camponesa investigada, o imaginário social de mundo do trabalho aponta para a presença masculina no
trabalho produtivo e a feminina no trabalho reprodutivo, em consonância com outros grupos camponeses
estudados, como aponta a literatura socioantropológica sobre o tema (MORAES, 2000).
O território de adensamento da pesquisa foi o município de Coronel José Dias no Estado do
Piauí, situado no semi-árido e onde se vive um visível conflito eco-social relacionado à presença do Parque.
Ali, nos anos de 2001 a 2003, atuei como extensionista rural, o que me proporcionou uma certa intimidade
com o lugar. No processo de pesquisa, selecionei, como sítio de adensamento, o território em que se originou
a já referida crise eco-social, a antiga sede da Fazenda Várzea Grande, composto por três unidades: bairro
São Pedro, comunidade Barreiro Grande e comunidade Barreirinho. Foram entrevistadas vinte e quatro
pessoas, num universo de oitenta e duas famílias, sendo sessenta e nove no bairro São Pedro, seis no Barreiro
Grande e dezessete no Barreirinho. Do total de pessoas entrevistadas, foram sete homens adultos, três no
Bairro São Pedro; dois no Barreiro Grande e dois no Barreirinho; cinco mulheres adultas, sendo três no São
Pedro; uma no Barreiro Grande e uma no Barreirinho; três homens idosos, sendo dois no São Pedro e um no
Barreirinho; cinco mulheres idosas, sendo quatro no São Pedro e uma no Barreirinho; duas mulheres jovens,
14
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
sendo uma no São Pedro e uma no Barreirinho; quatro homens jovens, sendo dois no São Pedro e dois no
Barreirinho. Num recorte de gênero, foram entrevistados treze homens e onze mulheres.
Para viabilizar o estudo sobre imaginário social de semi-árido, construí como objeto de
investigação o imaginário social que institui as representações sociais ambientais de semi-árido concernentes
às práticas e saberes de populações camponesas locais, orientando-me pelas seguintes questões de pesquisa:
qual o imaginário social que embasa a situação de desequilíbrio ambiental no semi-árido piauiense e qual o
imaginário social aponta para o restabelecimento de uma relação sustentável entre natureza e cultura, naquele
ambiente?
Como hipótese teórica ou pressuposto teórico mais amplo tem-se que a relação entre cultura e
natureza é instituída pelo imaginário social e orientada pelas representações sociais, visto que o
conhecimento sobre a natureza é empreendido socialmente, compreendido e compartilhado pelas pessoas. A
forma como chega aos grupos ganha o significado de sua subjetividade, de sua realidade psicossociológica,
afetiva e axiológica, sendo o imaginário social um sistema de interpretações aberto e fechado para a realidade
social (SILVA, 2002).
Ancoradas nesta pressuposição, as hipóteses operacionais que orientaram o trabalho de campo
podem ser assim anunciadas, embora abertas à reelaboração no ato da pesquisa: as situações de desequilíbrio
ecológico, econômico e social, vivenciadas no semi-árido piauiense, contêm estruturas que permitem
estabelecer um novo equilíbrio em função da sobrevivência de elementos culturais e estruturais tradicionais,
bem como pela mediação de valores culturais de convivência com o semi-árido, via educação popular e de
preservação ambiental pela administração do parque. Levou-se em conta que os resíduos de relação
predatória com o meio ambiente semi-árido tanto se materializam nas práticas de queimadas, caça, criatório e
plantio não apropriado às condições climáticas, quanto subsistem nas formas simbólicas (suave e invisível),
que são representadas pelas vias da comunicação, do conhecimento e do sentimento.
Num processo de elaboração e reelaboração, estabeleceu-se como objetivo geral da pesquisa
analisar as imagens de semi-árido que norteiam as relações entre natureza e cultura neste ecossistema, em
suas dimensões éticas, simbólicas e práticas, através de um estudo de caso no semi-árido piauiense. Como
objetivos específicos decorrentes, visou-se conhecer o modo de vida camponesa no semi-árido piauiense a
partir das práticas culturais; identificar e classificar os saberes ambientais de relação predatória e os de um
novo equilíbrio com o meio-ambiente, do ponto de vista do discurso ambientalista, do discurso de
desenvolvimento, dos mediadores que atuam na educação popular e do ponto de vista das populações locais
camponesas; captar os elementos culturais tradicionais que se relacionam com a possibilidade de
estabelecimento de um novo equilíbrio. Numa perspectiva não-positivista do fazer científico, vale lembrar
aqui que, assim como as hipóteses, os objetivos traçados inicialmente estiveram abertos ao diálogo com a
realidade observada e sujeitos a sofrer modificações.
No que tange à sua estrutura, a presente dissertação está composta de quatro capítulos. O
primeiro capítulo analisa os delineamentos teóricos e metodológicos norteadores da presente investigação. O
segundo apresenta a discussão do semi-árido brasileiro, como território macro em que está inserido o
município pesquisado, com o foco nas comunidades Barreiro Grande, Barreirinho e bairro São Pedro, ligadas
por uma mesma tradição oral de fundação (GODOI, 1999) e inseridas num mesmo ambiente natural no que
tange a vegetação, fauna e flora, regime de chuvas e clima. O terceiro capítulo apresenta o modo de vida das
15
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
populações camponesas e o quarto capítulo versa sobre o imaginário social de semi-árido, a partir do diálogo
intercultural das identidades sertaneja e nordestina e das imagens gráficas acompanhadas de relatos. Na
conclusão, há a retomada do objeto de pesquisa, através do problema investigado, hipóteses e objetivos para
relacioná-los ao processo de pesquisa, permitindo aproximar realidade empírica observada e teorias, no
processo de interpretação socioantropológica que aponta para os resultados alcançados.
Vale lembrar, ainda, o esforço empreendido na tentativa de uma construção analítica de caráter
interdisciplinar, com o concurso de áreas científicas como a sociologia (BECK, 97; CASTELLS, 2002;
FOUCAULT, 1986; GIULIANI, 1998; GUIVANT, 2001; ABRAMOVAY, 1992; DIEGUES, 1996 e 2000;
BOURDIEU, 1994 e 1996; MENDRAS, 19976; SANTOS, 2001; MORAES, 2000 e 2003; VIEIRA, 2003;
VEIGA, 2003; RIBEIRO; 1992; LEIS, 2001), a antropologia (WORTMANN, 1990; SHANIN, 1976;
MAFFESOLI, 1984 e 2000; GEERTZ, 1989 e 2003; GODOI, 1998 e 1999; CASTORIADIS, 1982, 1987 e
1999), ecologia (VIOLA, 2001; TUAN, 1980; McCORMICK, 1992; LEFF, 2002), a história (THOMPSON,
1998; BOSI, 2003; QUEIROZ, 1994), a geografia (PELLERIN, 1991; AB’SABER, 2003; LIMA, 2000),
direito ambiental (AGRELLI, 2003; SILVA, 2002), a física (PRIGOGINE, 1996), a biologia (EMPERAIRE,
1991), a economia (SACHS, 1986 e 1995; PRESBICH, 1981; FURTADO, 1998) e a psicologia social
(MOSCOVICI, 1995; MINAYO, 1995; ROQUETTE, 2000; SILVA, 2002). Ainda contando com o aporte da
filosofia (MORIN, 1998, 2001, 2002; CHAUÍ, 1994) e da arte (TAUNAY, 1986; ROSA, 1986; PAIVA;
1981; IBIAPINA, 1998; DOBAL, 1998; MELO, 1997; ALENCAR, 1992; CUNHA, 1999; GONZAGA,
2004). Nesta perspectiva, a interdisciplinaridade atua como diálogo profícuo, na tentativa da apreensão,
compreensão explicação do objeto de estudo em sua complexidade irredutível a uma abordagem
monodisciplinar.
Enfim, todo o texto, bem como o trajeto de pesquisa ora apresentado, centrou-se no enfoque do
delineamento de imaginário social de semi-árido com vistas a compreender o processo de crise eco-social
estabelecido no referido ecossistema por força de dimensões culturais e políticas que delineiam políticas
públicas e comportamentos na relação entre natureza e cultura e entre Estado, sociedade e natureza.
16
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
CAPÍTULO I
SOBRE IMAGINÁRIO SOCIAL E CONSTRUÇÃO DE SABERES AMBIENTAIS:
DELINEAMENTOS TEÓRICOS
Este capítulo está organizado em duas seções, focalizando os delineamentos teóricos utilizado
na presente abordagem. A primeira seção apresenta os fundamentos teóricos do imaginário social que orienta
e dá sustentação à condução da pesquisa, em estreita vinculação com a hipótese teórica que ela desenha. A
segunda seção fundamenta teoricamente as categorias campesinato, desenvolvimento e sustentabilidade
como parte substantiva da pesquisa.
1.1. A instituição imaginária do social
O mundo sócio-histórico está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Isto significa
que as instituições, suas ações, seus efeitos, os atos reais, individuais e coletivos, assim como os produtos
materiais estão dispostos num conjunto de relações simbólicas em rede. O imaginário social faz parte da
referida rede, exprimindo-se e existindo a partir do simbólico, sendo composto de imagens e de relações entre
estas, que atuam como memória afetivo-social, portadora de significados. Como função que existe devido à
capacidade imaginária de evocar imagens, o simbolismo implica a capacidade de estabelecer vínculos de
modo a permitir a representação do que se mostra vinculado, numa relação que supõe a função imaginária
traduzida pela linguagem em suas múltiplas e variadas expressões (CASTORIADIS, 1982).
Castoriadis (1982) chama de imaginário radical a parte fundamental, o âmago do ser e do modo
de ser da psique do ser humano tanto singular quanto social-histórico. Nesse sentido, o imaginário radical,
individual e social, cria o mundo em que se estabelecem.
Há uma vasta literatura sobre simbolismo e imaginário social, que emerge no processo de
maturação de estudos sobre estrutura, vista por Bobbio (1993) como o conjunto simbólico de elementos,
dotado de propriedades que lhes garantem coesão, com a possibilidade de se converter em outro conjunto de
elementos.
A propósito, Marcel Mauss (1979) desenvolve a concepção de um princípio estruturante de
trocas que apresenta uma interdependência entre morfologia e fisiologia social, que constrói um sistema
orientado através de estruturas hierarquizadas. Para o autor, trata-se de uma totalidade com um sentido
aparente e um velado, cabendo ao princípio estruturante revelar o sentido velado da totalidade. O sentido
velado é o que aparece em forma de símbolo, no qual há uma coincidência entre significante e significado,
em que sua definição acontece pelo gesto e sua eficácia reside na capacidade de fazer o fenômeno social
reproduzir-se.
Já para Lévi-Strauss (1970), a noção de estrutura refere-se aos modelos construídos em
conformidade com o empírico, visão que permite separar duas noções parecidas e facilmente confundidas: o
modelo construído e a estrutura social. O modelo é dotado das condições de manifestar a estrutura em forma
de sistema. Além disto, as propriedades anteriores devem provar a reação do modelo em caso de alteração e
sua construção deve explicar os fatos observados. Sendo, assim, o modelo remete à estrutura, e está na
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Maria Sueli Rodrigues de Sousa
realidade que o estrutura, mas não corresponde a esta. E, portanto, em conseqüência da observação, o modelo
coincide com o fenômeno e é capaz de reduzir realidades diferentes a algo comum. Nesse sentido, o referido
modelo sistematiza as representações coletivas e contém a totalidade da estrutura social. Esta estrutura não se
encontra no comportamento, mas no pensamento, sendo encontrável no modelo, como invenção puramente
simbólica.
Nesse sentido, o imaginário visto como “o conjunto de imagens e de relações de imagens que
formam o capital pensado do homo sapiens” (DURAND, 2002, p. 18) é instituído pelas práticas sociais, ao
tempo em que institui práticas sociais, sendo, portanto, uma norma fundamental, ainda que o pensamento
ocidental, especialmente, a filosofia francesa, tenha a tradição de desvalorizar ontologicamente a imagem e
psicologicamente a função da imaginação. Entretanto, é o imaginário um tipo de denominador comum a
todas as criações do pensamento humano, numa espécie de encruzilhada antropológica que permite esclarecer
um aspecto por um outro aspecto, tendo como força estruturante materiais axiomáticos (DURAND, 2002).
Nesse contexto, a imagem é portadora de um sentido que não deve ser procurado fora da
significação imaginária por haver homogeneidade de significante e significado no seio de seu dinamismo
organizador. Este dinamismo faz a imaginação ser fonte de libertação para além da formação de imagens.
Como potência dinâmica, na verdade, a imaginação simbólica deforma e reforma as cópias pragmáticas
fornecidas pela percepção. Processo este em que as leis da representação são homogêneas e metafóricas e
provocam uma coerência entre o sentido e o símbolo numa dialética, em que o símbolo situa-se no domínio
de uma semântica especial, com um essencial e espontâneo poder de repercussão (DURAND, 2002).
Gilbert Durand (2002) vê, como conseqüência dessa visão de símbolo, a anterioridade tanto
ontológica quanto cronológica do simbolismo, sendo o símbolo imaginário o vínculo afetivo-representativo
que liga um locutor a um alocutário num plano locutório, o do símbolo, que assegura uma certa
universalidade nas intenções de linguagem e que coloca a estruturação simbólica na raiz de qualquer
pensamento, produzindo um semantismo do imaginário que é a matriz original, a partir da qual todo o
pensamento racionalizado e o seu cortejo semiológico se desenvolvem. Uma outra conseqüência da já
referida visão de símbolo é a quebra da linearidade significante, ou seja, da explicação linear na forma de
dedução lógica ou narrativa introspectiva, num determinismo do tipo causal, o que faz emergir a necessidade
de um método compreensivo das motivações e do caráter pluridimensional e espacial do mundo simbólico.
Classificar pode ser um dos caminhos da busca dessa compreensão, porém a classificação dos
grandes símbolos da imaginação em categorias de forma a fugir da linearidade e a cobrir o semantismo das
imagens é um caminho tortuoso, segundo Durand (2002). Nessa busca, é importante considerar que os dados
sociológicos fornecem quadros primordiais para os símbolos, situando o imaginário no trajeto antropológico,
visto este como “a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e
assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social” (DURAND, 2002. p. 41). É
na emoção da criação das imagens que se vai construir o conhecimento.
Nesse sentido, o imaginário é visto como “esse trajeto no qual a representação do objeto se
deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito e no qual, reciprocamente, as
representações subjetivas se explicam pelas acomodações anteriores do sujeito ao meio objetivo”
(DURAND, 2002, p. 41). Nesse sentido, a relação que o ser humano estabelece com a natureza pode ser
apreendida através do simbolismo.
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Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Na busca de compreender esse caráter pluridimensional e espacial do mundo simbólico,
Durand (2002) elege o método pragmático e relativista de convergência, que agrupa constelações de imagens
organizadas por um certo isomorfismo dos símbolos convergentes. Sendo convergência aqui diferenciada de
analogia e aproximada de homologia, visto que não se constelam grupos análogos (A é para B o que C é para
D), mas grupos homólogos (A é para B o que A’ é para B’), em que há um caráter semântico que se localiza
na base de todo o símbolo, fazendo com que a convergência se exerça, sobretudo, na materialidade de
elementos semelhantes, resultando numa equivalência estrutural, em que os símbolos constelam por serem
variações sobre um arquétipo18, desenvolvido a partir de um mesmo tema arquetipal, o que permite
classificar o método como microcomparativo. Isso evidencia dois aspectos do método comparativo: o aspecto
estático e o dinâmico, que resultam numa organização de constelações ao mesmo tempo em torno de imagens
de gestos, de esquemas transitivos e em torno de pontos de condensação simbólica, em que se cristalizam os
símbolos.
A análise das constelações exige o uso do discurso, o que conduz o método ao risco de cair
numa linearidade evolucionista, visto que o discurso tem um fio condutor, que pressupõe início, meio e fim.
Durand (2002) anuncia esse risco e, para fugir dele, adota a concepção de que, se é forçado a começar de um
princípio, esse princípio será apenas metodológico e não ontologicamente o primeiro. Para isso, vai buscar o
princípio de sua classificação no estudo dos reflexos ou reflexologia, que evidencia a trama metodológica
sobre a qual a experiência de vida, a adaptação positiva ou negativa ao meio virão inscrever os seus motivos
e especificar o polimorfismo pulsional e social da infância, a partir de duas dominantes: a dominante de
posição, que coordena e inibe todos os outros reflexos e a dominante da nutrição, que se manifesta por
reflexos de sucção labial e de orientação correspondente à posição da cabeça, nas crianças, ao alimentar-se.
Durand (2002) acrescenta uma terceira dominante, supondo ser esta de origem interna,
desencadeada por secreções hormonais e só aparecendo em período de cio. É esta a dominante cíclica e
sexual. Enfim, Durand (2002) opta pelas três dominantes como matrizes sensório-motoras nas quais as
representações se integram, especialmente, se esquemas (schémas) perceptivos enquadram-se e assimilam-se
aos esquemas (schémas) motores primitivos, caso as três dominantes estejam em concordância com os dados
de certas experiências perceptivas. Importante destacar que os objetos simbólicos nunca estarão numa
dominante pura, mas constituem tecidos com a imbricação de várias dominantes e que estas fornecem os três
grandes gestos que desenrolam e orientam a representação simbólica e, com isso, fornecem as três estruturas
do imaginário. Uma tripartição que pode ser vista na perspectiva de uma bipartição: dois universos de
classificação, já que a segunda e a terceira estrutura estão apenas em um dos universos da classificação, em
função da proximidade entre o alimentar-se e o reproduzir-se (DURAND, 2002).
18
“Arquétipo é o ponto de junção entre o imaginário e os processos racionais, de forma universal e sem
ambivalências. É a força da coesão compreensiva comum a vários símbolos, é a substantivação dos esquemas
(schémas), que é a generalização dinâmica e afetiva da imagem, formando o esqueleto dinâmico e funcional
da imaginação” (DURAND, 2002, p. 59-60). Convém lembrar que a noção de arquétipo foi trabalhado por
Karl Jung e que Mircea Eliade (1995) a emprega em sua obra sobre a história das religiões, quando estuda
imagens por tema e as agrupa. Para este autor, os arquétipos estão presentes nas mais diversas culturas o que
não ocorre por difusionismo, o que é aprofundado por Gilbert Durand (2002) cujo método permite refletir
sobre as imagens nas diversas culturas, numa perspectiva que abrange, simultaneamente, as dimensões
universal/particular.
19
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
E com base na reflexologia, Durand (2002) anuncia o princípio do seu plano de análise do
imaginário: ao mesmo tempo bipartida e tripartida. A bipartição se dá nos regimes diurno e noturno e a
tripartição, oriunda da reflexologia, resulta nas estruturas heróica, mística e sintética.
Os regimes noturno e diurno são tomados em oposição. O regime diurno está estruturado na
dominante postural de elevação e estrutura heróica, com suas implicações manuais e visuais de agressividade,
tendo relação com os rituais da elevação e da purificação, com a tecnologia das armas e a sociologia do
soberano, mago e guerreiro. Este regime funda-se na oposição: para ver o diferente necessita-se de luz. Já o
regime noturno subdivide-se nas dominantes digestiva e cíclica (sexual), respectivamente, relacionando-se
com as estruturas mística e sintética. A primeira, agrupando as técnicas do continente e do habitat, os valores
alimentares e digestivos, a sociologia matriarcal e alimentadora. A segunda, por sua vez, agrega as técnicas
de ciclo, do calendário agrícola e da indústria têxtil, os símbolos naturais ou artificiais do retorno, os mitos19
e os dramas astrobiológicos (DURAND, 2002). Neste regime, diferentemente do que ocorre no diurno, vê-se
o mundo por complementaridade.
As estruturas, vistas não como formas vazias, e sim como portadora de um rico semantismo,
além da tripartição em heróica, mística e sintética, subdividem-se em quatro aspectos distintos, cada uma
delas.
As estruturas heróicas ou esquizomorfas, pertencentes ao regime diurno de imagens, são
portadoras de constelações que se organizam em torno de dois grandes schémas: o ascensional, da dominante
postural e o diairético que consiste em separar, discernir e impor o poder, ligado às imagens da espada e do
gládio (PITTA, 1995).
A subdivisão das estruturas heróicas consiste em quatro aspectos: a idealização ou recuo
autístico, que é uma espécie de distanciamento da realidade, em que o pensamento é tomado como um
significado restrito ao subjetivo pelo sujeito que se coloca fora do mundo; a spaltung é uma espécie de
separação generalizada em que o eu está cindido do mundo e o mundo, em si, também se encontra cindido; o
geometrismo é uma espécie de esquematização do universo numa geometria simétrica, o que provoca uma
gigantização dos objetos e, finalmente, o pensamento por antítese, que é a manifestação do conflito entre o
sujeito e o mundo, provocando uma lógica organizativa por antítese (DURAND, 2002). Nesse sentido, as
estruturas heróicas do imaginário falam do combate ao outro, ao diferente. Impõem a competição, a
perspectiva de vencer, de passar à frente.
Por seu turno, as estruturas místicas do imaginário têm como núcleo organizador o schéma da
fusão com a intenção de construir uma harmonia, em que se conjugam uma vontade secreta de união e um
certo gosto pela intimidade, distanciados do sentido religioso da palavra e estando subdivididas em quatro
aspectos: redobramento e perseverança, em que os símbolos relacionam-se à inversão e à intimidade, com
tendência à simetria no sentido de similitude; viscosidade e adesividade, percebida no apego a certas imagens
ou a determinadas relações entre estas imagens; realismo sensorial, pela união de cor e movimento, baseada
na intuição e sensibilidade e, por último, a guliverização, pela miniaturização fundada na concepção de
quanto menor o objeto, mais concentrada a sua essência (DURAND, 1969 apud PITTA, 1995).
20
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Já a estrutura sintética busca reconciliar as antinomias, procurando dominar o tempo através da
repetição, por isso é cíclica e também sexual, ligada às concepções de tempo e progresso, de modo a
assegurar a continuidade da vida. Organiza-se nas seguintes subestruturas: harmonização dos contrários,
composição pelo diálogo harmônico entre elementos opostos; dialética ou contraste, pela composição a partir
de contrários em que estes mantêm sua composição original; subestrutura historiadora, construída a partir de
uma sucessão de fases de tese e antítese, de forma dialética com um esforço de síntese e, finalmente, a
subestrutura progressista, que consiste em acelerar a história para aperfeiçoar a história e o tempo (Durand,
1969 apud PITTA, 1995).
Na verdade, Gilbert Durand (2002) fala de três formas de tratar o diferente: destruir, fundir,
dialogar. Essas três formas representam atitudes culturais a que o autor denomina “trajeto antropológico”, ou
seja, o percurso cultural que rodeia e envolve o indivíduo. Nesse sentido, a teoria do imaginário permite
apreender a dinâmica cultural, no caso, as relações entre cultura e natureza.
Interessa reter, para fins da presente análise, que o imaginário social foi tomado como uma
produção coletiva, depositária da memória que os grupos sociais recolhem dos seus contatos cotidianos. Por
meio do imaginário, podem-se atingir as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. Efetivamente,
tanto as criações dos indivíduos quanto eles próprios, como criações sócio-históricas, compõem o conjunto
das significações imaginárias e da sua instituição na sociedade, que se desenvolvem sempre em duas
dimensões, a lógica e a propriamente imaginária. A primeira é a dimensão objetiva e a segunda é a da
significação, definição que pode ser demarcada, mas não determinada, visto que ambas as dimensões se
conectam uma a outra como uma cadeia infinita e não previsível, portanto fluida. Ressalte-se então que tanto
as criações quanto os indivíduos são elementos culturais, por que são criados pelas significações imaginárias
sociais e por que são instituídos socialmente (CASTORIADIS, 1982).
Nesse sentido, tanto as representações sociais quanto o interfluxo entre as duas dimensões
referidas, a objetiva e a subjetiva, são parte do imaginário social. O fluxo representativo (afetivo e
intencional) não é um conjunto de elementos distintos, também não é puro e simples caos, faz-se como
alteração do sujeito por ele mesmo pela aposição de imagens ou figuras. As representações são figuras,
esquemas de imagens, de palavras, não sendo acidental, nem exterior, nem apoio, mas o próprio do
pensamento. Não há pensamento sem representação. Como alude Cornelius Castoriadis:
A representação não é um quadro preso no interior do sujeito (...). A
representação é a apresentação perpétua, o fluxo incessante no e pelo que quer
que seja se dá. Ela não pertence ao sujeito, ela é, pra começar, o sujeito. (...) A
representação não é decalque do espetáculo do mundo; ela é aquilo em que e
porque se ergue, a partir de um momento, o mundo (CASTORIADIS, 1982, p.
375).
Em consonância com o exposto, as representações sociais são tomadas, nesta pesquisa, como
suporte para compreender as práticas e saberes técnicos, científicos, populares, tomando-as como modalidade
19
Mito é um sistema dinâmico de arquétipos, símbolos e esquemas que sob o impulso de um esquema tende
a compor-se em narrativa (DURAND, 2002. p 62-63). Antropologicamente, o mito é tido como fundamento
da cultura, inclusive, das sociedades modernas.
21
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
de conhecimento que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos
(MOSCOVICI, 1995).
Vale lembrar que a teoria das representações sociais foi desenvolvida a partir da crítica ao
conceito de representações coletivas de Durkheim (MINAYO, 1995). Os elementos fundantes da crítica
assentam-se na consideração de caráter geral, abrangente e pouco dinâmico da teoria durkheimiana das
representações coletivas, o que dificulta a análise da produção do pensamento, como forma de ação no tecido
social. Para Moscovici (1995), portanto, as representações sociais referem-se ao posicionamento individual
nos espaços sociais na formação do tecido social através do processo que se dá pelo encadeamento de
fenômenos interativos. O termo social assume uma dimensão dupla no conceito de representação: a forma
como o conhecimento é socialmente empreendido, constituído e compartilhado pelas pessoas e a dimensão
subjetiva, psicosociológica, afetiva e axiológica relacionada com o conhecimento.
Consoante com este quadro teórico, a abordagem do imaginário social de semi-árido, neste
estudo, procura focar os elementos subjetivos, afetivos e axiológicos nas duas dimensões acima referidas:
dimensão subjetiva e objetiva. Sendo esta última, também, referente à forma como o conhecimento é
socialmente empreendido, numa perspectiva sociológica, com base em Castoriadis (1982, 1999) e Durand
(2002). Isto significa que os elementos subjetivos, afetivos e axiológicos foram tomados como imaginário
social na análise da relação entre indivíduo e sociedade e, especialmente, entre indivíduo, sociedade e
natureza, ou seja, entre natureza e cultura. Isto equivale a considerar esta relação como portadora de uma
ética, inscrita num habitus (BOURDIEU, 1994), este, tomado como uma espécie de matriz que transpõe a
vivência social e integra as experiências passadas, informando ao processo de instituição imaginária suas
percepções, apreciações e ações, o que possibilita a realização de tarefas diferentes pela transferência
analógica de esquemas, produzindo, desta forma, práticas que tendem a reproduzir as regularidades.
Vale lembrar que, nesse processo, os indivíduos ocupam no espaço social, uma posição
determinada pela sua origem de classe ou grupo social. É a partir da sua posição social que elaboram suas
representações e agem pelo habitus que permite aos seus portadores operar um senso prático da vida, como
um esquema de percepção e de apreciação. Com efeito, o sujeito social se expõe e é exposto, num processo
em que se encontram um habitus e uma situação, circunstância ou campo social, que orienta as suas ações e
representações. Campo social é aqui entendido como campo de forças e campo de lutas, que visa transformar
o campo de forças, que se particulariza como espaço em que se manifestam as relações de poder e que se
estrutura a partir de uma distribuição desigual de um quantum social (BOURDIEU, 1994).
Nesse sentido, é importante destacar que Moscovici (1995) aponta para as conversações dentro
das quais se elaboram os saberes populares e o senso comum, como fenômeno social que permite identificar
de forma mais concreta as representações sociais e de trabalhar sobre elas, embora não se limite a esta forma,
pois, de fato, as representações sociais também se manifestam nas ciências, nas religiões, nas ideologias e em
circunstâncias diversas.
A referida teoria apresenta duas faces interligadas para o fenômeno das representações sociais:
o figurativo (a imagem) e o simbólico, engendradas em processos da comunicação e das práticas sociais:
diálogo, discurso, rituais, padrões de produção, arte, a cultura em geral (MOSCOVICI, 1995).
Convém lembrar, ainda, que as relações entre ser humano e natureza são mediadas pelas
representações sociais de meio ambiente, indicadoras das diferenças culturais entre regiões e populações, nos
22
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
diferentes espaços históricos, como uma imagem mental, composta de elementos centrais e secundários que é
referencial porque retorna a outras imagens conotativas e que se organiza como um sistema de relações onde
cada elemento tira o seu significado do conjunto dos outros elementos (GROUPES..., 1991).
As representações sociais identificadas e analisadas, neste estudo, referem-se às práticas e
saberes relacionados ao modo de vida camponês, no ecossistema semi-árido. Nesse sentido, saberes são
concebidos como conjunto de conhecimentos adquiridos no entrelaçamento dos elos sociais de seres
humanos entre si e com a natureza não-humana, mais ou menos sistematicamente organizados e suscetíveis
de serem transmitidos de geração a geração (JAPIASSU, 1997). Já as práticas são tomadas como fenômenos
que abrangem dois aspectos, quais sejam: a realização de uma ação (conduta efetiva) e a freqüência dessa
realização. Analiticamente, a prática pode ser decomposta em duas vertentes: a maneira de fazer e as
conseqüências percebidas desse fazer, o que faz emergir outros aspectos, tais como: a prática como passagem
ao ato, recorrência, maneira de fazer e como cálculo (ROQUETTE, 2000), a partir de um habitus
(BOURDIEU, 1994), no caso, o modo de vida camponês.
Acrescente-se a isto que a produção e reprodução da cultura se realizam através da informação,
sendo, portanto, as práticas sociais, também, práticas informacionais, em que significados, símbolos e signos
culturais são assimilados, rejeitados e transmitidos através das representações e ações dos indivíduos, como
sujeitos sociais, na construção de suas identidades. Assim é que no dizer de Mendes (2002) os processos de
construção das identidades são relacionais e múltiplos, situacionais e históricos, baseados no reconhecimento
por outros atores sociais e, na diferença.
A construção da identidade, então, tem o suporte de que necessita para encontrar-se na
memória coletiva, que funciona como auxiliar na definição dos laços de identidade dos sujeitos, ou seja, é na
inter-relação entre presente e passado feita pela memória coletiva que a identidade vai-se compondo. A
memória coletiva compõe-se da memória individual, familiar, linguagem, nome, moradia, território, posição
social, aspirações, valores sociais, visões de mundo, comportamentos, parentescos, que se expressam nas
representações sociais, nas imagens e discursos, no imaginário social. Envolve memórias individuais, porém
não se confunde com elas, visto que estas são reconstruções psíquica, intelectual e seletiva de um indivíduo,
inserido num contexto familiar e social, com dupla característica: as lembranças/imagens e as representações
(TEDESCO, 2002).
No processo de construção identitária, dá-se também a construção e desconstrução de saberes
que orientam as práticas sociais. Construção do latim construere quer dizer dar estrutura, e desconstrução
tem o sentido de desestruturação (FERREIRA, 1986). Porém, construção e desconstrução não são tomadas
como processos diferentes ou etapas diversas de um mesmo processo, mas como aspectos simultâneos deste,
como percebido por Prigogine (1996) na sua análise de sistemas dinâmicos instáveis, em que equilíbrio e
desequilíbrio não constituem exclusão, mas complementaridade entre fenômenos desordenados e fenômenos
organizadores. A situação de equilíbrio representa a nova organização, ou seja, a nova ordem que se instaura
após o desequilíbrio:
(...) equivalência entre o que se faz e o que se desfaz, entre uma planta que nasce,
floresce e morre e uma planta que ressuscita, rejuvenesce e retorna para sua
semente primitiva, entre um homem que amadurece e aprende e um homem que
23
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
se torna progressivamente criança, depois embrião, depois célula (PRIGOGINE,
1996: 158).
Para Prigogine (1996), o fenômeno refere-se à existência de relações entre estrutura e ordem,
de um lado e, dissipação, do outro. As novas estruturas formadas são chamadas de estruturas dissipativas,
sendo que, em sistemas abertos (os que interagem com o meio), a dissipação torna-se uma fonte de ordem.
Isso é o mesmo que dizer que estruturas dissipativas representam sistemas, os quais, após passarem por
desequilíbrios, são bem sucedidos no estabelecimento de uma outra ordem ou, como diz Neves (1996), no
estabelecimento de relações de homeostase20.
A respeito da percepção de sociedade em equilíbrio, Neves (1996) chama atenção para o fato
de não ser apropriado investigar bases materiais de sustentação das sociedades locais como sistema fechado,
em equilíbrio com meio ambiente circunjacente, em função da existência de relação de absorção das
sociedades tradicionais pelas sociedades circundantes, fazendo com que aquelas façam parte do cenário
regional ou mesmo mundial.
Tudo isso implica em que as inferências empíricas foram analisadas como um sistema, ao
mesmo tempo aberto e fechado, em que as pessoas se situam em reciprocidade, consideradas as situações de
conflitos e crises, sendo que suas relações e interações guardam obediência às instituições, às normas
também fruto de tais relações e interações.
1.2. Campesinato, desenvolvimento e sustentabilidade
Como exposto na seção anterior, a teoria do imaginário é a ancoragem teórica que permite
tratar o conjunto da vida social camponesa, para efeitos desta investigação, tomado como um sistema em rede
simbólica. Esta rede remete à busca de compreensão da escolha dos símbolos, das suas significações e à
compreensão de como e por que consegue, como dito por Castoriadis (1982), autonomizar-se, alienar-se da
instituição do social, no indivíduo, numa espécie de socialização da psique e psicologização do social, em
que sociedade e psique são inseparáveis e irredutíveis uma à outra, numa indissociação dos mundos social e
privado.
Com isto, trazemos à tona mais uma dimensão do modo de vida camponês, lembrando, ainda,
que este ganha relevância analítica ante o fato de a categoria campesinato não encontrar espaço nas teorias
explicativas das sociedades capitalistas, não se enquadrando na estrutura lógica dessas teorias. Isto se deve,
em grande medida, ao fato de que a atividade produtiva, que garante a reprodução do campesinato, não tem o
estatuto de trabalho social, como acontece na estrutura capitalista, não possuindo, portanto, a universalidade
teórica das classes sociais (ABRAMOVAY, 1992).
Essa temática remete a Alexander Chayanov (apud ABRAMOVAY, 1992), um dos primeiros
teóricos a buscar compreender o campesinato em sua lógica econômica interna, e não a partir da lógica do
sistema social, fundamentando sua concepção a partir de uma teoria dos sistemas econômicos não
20
Homeostase foi utilizado no sentido de “manutenção de um estado por alguma capacidade de autoregulação” (NEVES, 1996, p. 76).
24
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
capitalistas, que lhe permitiu analisar as leis de reprodução do campesinato e o seu desenvolvimento,
tomando o camponês como sujeito que cria sua própria existência. Na perspectiva chayanoviana, os
camponeses são vistos movendo-se pela lei básica do balanço entre trabalho e consumo, com o trabalho
tendo como meta fundamental a satisfação das necessidades familiares que definem a intensidade com a qual
a família tem que trabalhar. Trabalho este que crescerá conforme o tamanho da família e de suas
necessidades de reprodução (ABRAMOVAY, 1992)21.
Vale lembrar com Martins (1981) que campesinato, como conceito, ganha força sob influência
da revolução russa, como forma de relacionar trabalhadores e trabalhadoras do campo no contexto da luta de
classes, expressando homogeneidade onde havia diversidade. O referido conceito passou por uma espécie de
exportação política, levando consigo as dificuldades inerentes ao processo de homogeneização de
diversidades e devido às transformações culturais que alteraram as condições e características dos referidos
sujeitos, não se enquadrando, desta forma, nas concepções de nenhuma sociedade contemporânea em função
do seu caráter histórico, nem mesmo nas sociedades em que o conceito foi construído, em função de sua
heterogeneidade, forçosamente homogeneizada, o que justifica a utilização da categoria como generalização
combinada com especificação. Mas, embora correndo o risco de extrapolação das semelhanças, é importante
utilizá-la, especialmente, por permitir a utilização de métodos de pesquisa já testados, como por exemplo, a
possibilidade de desenhar um campo de análise (SHANIN, 1976).
Nesse sentido, Shanin (1976) indica que há pelo menos seis categorias de características
identificadoras de camponês. Na primeira caracterização, campesinato é visto como economia em formas de
ocupação extensiva pelo trabalho familiar, com controle dos próprios meios de produção, uma economia de
subsistência com qualificação profissional multidimensional e padrão de organização, incluindo, por
exemplo, planejamento da produção e cálculo do desempenho diverso da empresa capitalista. Uma segunda
categoria consiste nos padrões e tendências de organização política dos camponeses, incluindo os sistemas de
intermediação e apadrinhamento, a tendência à segmentação vertical e ao faccionismo como lugar do
banditismo e guerrilha.
A terceira categorização consiste nas normas e cognições típicas, em que se destaca a
racionalização tradicional e conformista22, o papel da tradição oral, mapas cognitivos específicos, por
exemplo. Em quarto lugar, há a organização social com suas unidades básicas, em que se destaca a posição
21
Ainda nos marcos da compreensão da economia camponesa, porém distanciando-se de Chayanov no que
concerne a auto-exploração como limite, autoras como Godoi (1999) e Moraes (2000) apóiam-se em Shalins
para referir uma agricultura de aprovisionamento como atividade agrícola em que nem a produção doméstica
se define exatamente como voltada estritamente para o consumo direto da família nem esta é auto-suficiente,
sendo a troca um meio de conseguir aquilo de que a família necessita e não produz.
22
Chauí (1994) utiliza as categorias conformismo e resistência no contexto da cultura popular para analisar
os vínculos de dependência e submissão das categorias populares no âmbito em que se processa a luta para
quebrar tais vínculos. A autora vê a cultura popular “como um conjunto disperso de práticas, representações e
formas de consciência que possuem lógica própria (o jogo interno do conformismo, do inconformismo e da
resistência), distinguindo-se da cultura dominante exatamente por essa lógica de práticas, representações e
formas de consciência.” (CHAUÍ, 1994, p. 25). Por essa ótica, as categorias conformismo e resistência são
vistas como a marca da ambigüidade na cultura popular, não como falha, defeito, carência, mas como “forma
de existência dos objetos da percepção e da cultura (...) também, ambíguas, constituídas não de elementos ou
de partes separáveis, mas de dimensões simultâneas” (CHAUÍ, 1994, p. 123). É possível, portanto, uma
mesma ação ser revestida do duplo caráter: uma resistência como manutenção do conformismo ou um
conformismo para manter a resistência.
25
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
subserviente das populações camponesas, no interior de rede mais ampla de dominação política, econômica e
cultural e características da organização social, o que aponta, como lembrado por Moraes (2000), para a idéia
redfeldiana de part-society [parte da sociedade]. A quinta categorização conta com a dinâmica social
específica da sociedade camponesa pelos padrões de produção em função das necessidades materiais, de
reprodução dos atores humanos e do sistema de relações sociais. Finalmente, a categorização a partir das
causas e padrões fundamentais de mudança estrutural, que pode ser percebido, por exemplo, pelos padrões
diferenciais de produção no espaço doméstico em oposição à área coletiva e seu impacto sobre as demais
dimensões sociais da agricultura (SHANIN, 1976).
A análise conduz Teodor Shanin a indicar o campesinato como:
um processo e necessariamente parte de uma história social mais ampla, trata-se
da questão da extensão da especificidade dos padrões de seu desenvolvimento,
das épocas significativas e das rupturas estratégicas que dizem respeito aos
camponeses (SHANIN, 1976, p. 75).
Nesse sentido, é importante considerar a caracterização que Mendras (1976) faz de
campesinato, como um grupo que possui autonomia, ainda que relativa, frente à sociedade global; em que os
grupos domésticos, as famílias têm importância estrutural; um sistema econômico relativamente
autosuficente; uma sociedade de interconhecimentos, com a função decisiva de mediadores entre a sociedade
local e a global.
O paradigma funcionalista da Antropologia analisa a construção da identidade social do
campesinato como um modo de vida, reproduzido material e culturalmente, sendo que a lógica econômica se
adequa a padrões culturais específicos, portanto uma sociedade incrustada numa formação social, ou seja,
uma sociedade parcial, atuando em mercados incompletos, tendo as seguintes particularidades: os laços
comunitários locais, o caráter extra-econômico das relações de dependência social e vínculos de natureza
personalizada (ABRAMOVAY, 1992).
O camponês em que se centra o presente trabalho é o do semi-árido piauiense, identificado
como sertanejo, camponês do sertão, aqui tomado como um modo de vida, analisado a partir do seu
imaginário, apreendido pelas representações sociais nos saberes e práticas cotidianas, considerando-as
permeadas pelo universo simbólico, pelas categorias e regras pelas quais pensam e vivem sua existência. É
aqui, portanto, considerado, teoricamente, como um modo vida que se orienta a partir de “um conjunto de
normas e obrigações recíprocas, idéias de justiça e bem estar social, enfim uma ética a orientar as condutas,
uma economia moral a orientar os direitos relativos à ocupação da terra” (GODOI, 1998, p. 120).
Nessa economia moral, no caso em estudo, há os imperativos de ordem ética expressos na terra
de comum, que encontram sua efetivação prática nas terras de conjunto, terra de ausentes e terra do
padroeiro, como estudado por Godoi (1998) nessa região. De fato, o camponês não é dono das terras de
conjunto, visto que a apropriação individual, pelas famílias, se dá pela realização das roças e, desde que
respeite os limites das roças dos demais, pode fazer quantas roças quiser. Também fazem parte desta
economia moral os direitos de sucessão, ou seja, os serviços e benfeitorias, condição para a manutenção da
condição camponesa, que são transferidos aos herdeiros e podem ser vendidos, não as terras, mas o direito
26
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
aos serviços e benfeitorias. As terras de ausentes se localizam nas chapadas, a fonte dos recursos naturais e
nas terras do padroeiro, também se dá a apropriação comum:
Gérson: tinha boa parte, essa aqui pertencia a ele. Aqui existia as terras de
ausentes e tinha as terras de conjunto, as pessoas era posseiro e quando queriam
trabalhar tinham direito, tinha as posses, podiam localizar uma roça onde dava
melhor, eles eram posseiros. Então as pessoas iam adquirindo aquelas posses e
iam tirando daquelas terras de ausentes. (...), ainda existe também os posseiros,
né, naquelas terras devolutas, de ausente, as pessoas tem a posse, aí faz a roça
naquela posse garante aquela terra que ele tira, né. Todo mundo é dono de terra.
Sueli: e quem era o ausente.
Gérson: era justamente aquele foi embora, mas a família ficou... tem a fazenda
então pertence a quem tem posse. Aquela terra não está sendo beneficiada, mas
não tem posse eu vou tirar lá na fazenda. O posseiro só pode mandar naquele
pedaço de terra se ele fosse demarcar. Ele demarca, aí ele pode mandar. A posse
garante quem trabalha. Mas antes de demarcar não conta como dele
(comunicação oral) 23.
A referida ordem ética indica campesinato como categoria construída socialmente, o que
remete à discussão de cultura dentro de uma análise interpretativa, como dito por Geertz (1989):
O conceito de cultura que eu defendo (...) é essencialmente semiótico.
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu, assumo como sendo essas teias e sua análise;
portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma
ciência interpretativa, à procura de significado. É justamente uma explicação
que eu procuro, ao construir expressões enigmáticas na sua superfície
(GEERTZ, 1989, p. 4)
Geertz (1989) compreende a cultura como uma teia de significados e suas interpretações, na
qual os símbolos e significados são partilhados pelos sujeitos sociais, parte do sistema cultural. A cultura é
concebida não como poder, mas como um contexto, dentro do qual os sujeitos são inscritos, não sendo algo
dado, posto, mas algo composto, investido de novos significados na dinâmica de produção cultural, sendo,
portanto, passível de mudanças e transformações, devendo ser compreendida no seu contexto de significação
e ressignificação
O presente processo de investigação, ao realizar o estudo do imaginário social a partir da
cultura camponesa, procurou expressar o saber popular do campesinato, suas representações, formas de
pensar, agir e falar, ou seja, a construção e percepção de sua própria realidade, seus saberes associados à sua
prática social expressa nas relações de trabalho, na prática política e na apropriação dos saberes através dos
agentes educativos.
Essas práticas referidas incidem no modo de vida camponês e faz-se necessário refletir a
respeito da identidade camponesa, constituída a partir de suas relações sociais e expressões culturais, num
processo que consiste na maneira de recriar, combinar e utilizar símbolos e valores de cultura, que resulta na
instituição das representações analisadas pelo ângulo da sustentabilidade, concepção que emergiu como
qualificação de um tipo de desenvolvimento e que ganha força no debate contemporâneo sobre meio
27
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
ambiente. No caso em questão, o tema da sustentabilidade é axial, visto que, nas regiões semi-áridas,
questões relacionadas à viabilidade econômica e à reprodução camponesa, estão na ordem do dia24.
De fato, o tema desenvolvimento em tempo algum se constituiu terreno firme, de acepção
única, para o cenário social, uma vez que são os interesses sócio-políticos que delineiam os modelos de
sociedade e suas dinâmicas. Com efeito, é na correlação de forças desses interesses que se definem o
interesse ou interesses hegemônicos e, com isso, o sistema sócio-político hegemônico. Desenvolvimento,
portanto, está associado a processo histórico, a questões estruturais, institucionais e culturais.
Como dito por Ribeiro (1992), há dois aspectos macro integrativos da noção de
desenvolvimento: um como hierarquia funcional que alimenta a crença de que há um ponto que pode ser
alcançado por uma receita seguida e guardada pelos países que lideram a corrida pelo desenvolvimento;
outro como uma noção, universalmente, desejada, rotulada de neutralidade para se referir ao processo de
acumulação em escala global. Os dois aspectos estão imbuídos da idéia de progresso fundada na crença de
que o futuro será melhor do que o presente e o passado, por melhoramentos, invenções e inovações dos seres
humanos. Nesse sentido, segundo o mesmo autor, desenvolvimento tem notável poder, como
ideologia/utopia, na organização das sociedades e o reflexo desse poder emerge do discurso das duas
importantes concepções de organização da sociedade: a capitalista liberal e a socialista.
No discurso capitalista, desenvolvimento está centrado nas forças de mercado, que tem poderes
corretivos e regularizadores, portanto é algo a ser atingido com menor intervenção do Estado. No discurso
socialista, o mercado é uma ilusão, visto que a sociedade é dividida em classes com diferentes condições de
acesso a ele, devendo, portanto, as forças do mercado ser reguladas pelo Estado para atingir justiça social.
As duas percepções apresentam visão economicista de sociedade, em que desenvolvimento implica em
crescimento, inovação tecnológica, modernização e uma suposta relação com o bem-estar humano
(RIBEIRO, 1992, GIULIANNI, 1998). Em sua essência, nenhuma destas concepções engloba preocupações
ambientais. Ambas, como muito bem acentuou Giulianni (1998), concretizam-se, historicamente, no modelo
urbano-industrial.
Com efeito, o ambientalismo surge relacionado a modelos alternativos de desenvolvimento e
recentemente conquistou grande visibilidade entre os principais agentes do campo do desenvolvimento face
aos graves problemas ambientais que emergem de todos os cantos do mundo.
23
Comunicação oral com Gérson Dias dos Santos, realizada no Bairro São Pedro, em 28/05/2004.
Importante destacar que a acepção de viabilidade econômica baseia-se em Moraes e Vilela (2003, p. 118),
que vêem a referida categoria como “dimensão relativa à constituição da renda da família, formada pelo
conjunto das atividades agrícolas e não agrícolas, incluindo transferências, encargos públicos e produção para
auto-consumo. (...) Com acúmulo suficiente de recursos num “ano bom” para as possíveis dificuldades num
“ano ruim”, capacidade de manutenção do patrimônio (sem sofrer perdas irreparáveis); manutenção da
capacidade produtiva; manutenção das condições de vida digna da família, com os resultados obtidos pela
produção agropecuária e atividades complementares afins, como extração vegetal, artesanato, indústria rural,
etc (sem excluir a pluriatividade), que, como se sabe, contribui para a atividade agrícola”.
A referida categoria faz parte do que Moraes e Vilela (2003, p. 117) categorizam como sustentabilidade,
correspondendo à “reprodução ampla das diversas unidades de produção (família, terras e patrimônio),
garantindo a integração econômica, social e cultural das novas gerações e a manutenção dos
agroecossistemas, devendo ser encarada mediante quatro vertentes: viabilidade econômica, viabilidade social
ou vivabilidade, transmissibilidade do patrimônio e reprodutibilidade ambiental ou agroecológica dos
ecossistemas cultivados”, havendo entre estas categorias uma relação de interdependência entre os domínios
econômico, social, cultural e político.
24
28
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
De fato, no século dezenove, o mundo ocidental experimentou os primeiros reflexos do
modelo desenvolvimentista da sociedade industrial, assentado no pressuposto de dois infinitos: a
inesgotabilidade da matéria prima e da energia e a ilimitada capacidade da natureza de absorção dos rejeitos
(DUARTE, 1983). Um modelo antropocêntrico que desconsiderava a lógica de existência da natureza, sua
diversidade e suas exigências para permanecer viva.
Convém lembrar que, nesse contexto, emerge a proposição de preservar ecossistemas naturais
para deleite das sociedades industriais, estressadas pelo caos urbano, como forma de amenizar os graves
problemas provocados pelo modelo industrial moderno, fundado na perspectiva de ruptura entre cultura e
natureza. No entanto, a instituição desses espaços de preservação orientada por esta concepção e com este
compromisso, na verdade, tanto deixam intocadas as estruturas provocadoras dos desequilíbrios ambientais
quanto provocam outros desequilíbrios entre natureza e culturas locais. Embora as justificativas
preservacionistas sejam biocêntricas, de igualdade de direitos humanos e naturais, elas, de fato, centram-se
nos interesses humanos, essencialmente, nos urbanos, desconsiderando outras formas de percepção e de
relação com a natureza, inclusive aquelas desenvolvidas por populações rurais locais.
As conseqüências da perspectiva ocidental de desenvolvimento instituída, historicamente,
apresentam, portanto, suas seqüelas. Diante disto, as visões biocêntricas do ambientalismo e a
antropocêntrica do desenvolvimento convergem para uma nova proposta, a de desenvolvimento sustentável,
buscando conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação ambiental e o fim da pobreza no
mundo, ou seja, procurando desenvolver-se em harmonia com as limitações ecológicas do planeta, o que
quer dizer, sem destruir o meio ambiente, inclusive para que as gerações futuras alcancem melhoria da
qualidade de vida e das condições de sobrevivência (DUARTE, 1983).
Este ideário de desenvolvimento, portanto, pressupõe uma relação equilibrada entre tecnologia
e meio ambiente, em consideração e respeito às diversidades e a busca de equidade e justiça social, sendo
possível, com base em Sachs (1995) identificar pelo menos seis aspectos prioritários na proposição: a
satisfação das necessidades básicas da população (educação, alimentação, saúde, lazer, etc); a solidariedade
para com as gerações futuras (preservar o ambiente de modo que elas tenham chance de viver); gestão
participativa da população envolvida (todos devem se conscientizar da necessidade de conservar o ambiente
e fazer cada um a parte que lhe cabe para tal); a preservação dos recursos naturais (água, oxigênio, etc); a
elaboração de um sistema social garantindo emprego, segurança social e respeito a outras culturas
(erradicação da miséria, do preconceito e do massacre de populações oprimidas, como, por exemplo, os
índios) e a efetivação dos programas educativos. Importante destacar que as citadas proposições
permanecem, em grande parte, no campo do devir.
De fato, sustentabilidade e desenvolvimento sustentável surgiram como preocupação mundial,
na publicação do relatório Nosso Futuro Comum (CMMAD, 1991). Na visão de Sachs (1995), são aspectos
do discurso de desenvolvimento sustentável: a dependência humana em relação ao ambiente natural; a
preocupação com a existência de limites naturais externos sobre a atividade econômica humana; a
consideração dos efeitos perniciosos de certas atividades industriais sobre ambientes locais e globais; a
consideração da fragilidade desses ambientes locais e globais frente à ação humana coletiva; o
reconhecimento de que iniciativas de desenvolvimento devem ser ligadas às suas próprias precondições
29
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
ambientais e a tentativa de considerar, nas decisões, sobre o desenvolvimento as conseqüências para as
gerações futuras e para aqueles que vivem em outras partes do planeta.
Como se pode notar, as definições de desenvolvimento sustentável tendem a eliminar posições
conflitivas dos processos econômicos, sociais e políticos, aproximando-se de uma perspectiva harmônica,
não conflitiva. Nesse sentido, a economia política em que se assenta a discussão de desenvolvimento
sustentável, é “muito pouco elaborada, para não dizer ingênua e omissa” (Ribeiro, 1992, p. 28). Como
exemplifica o autor em passagem sobre o cenário provável de uma sociedade sustentável, em 2030:
Devido à extenuante pressão que exerce sobre os recursos, o materialismo
simplesmente não conseguirá sobreviver à transição para um mundo sustentável.
(...) À medida que o acúmulo de riquezas nacionais venha a se tornar um
objetivo pessoal e menos importante, a lacuna entre ter e não ter gradualmente se
fechará, eliminando muitas tensões sociais. Diferenças ideológicas também
poderão desaparecer pouco a pouco, à medida que as nações forem adotando a
sustentabilidade como uma causa comum (...). Com as tarefas cooperativas
envolvidas na restauração da Terra, de tantos modos e tão amplamente, a idéia de
travar uma guerra poderá se tornar um anacronismo (RIBEIRO, 1992: p. 28).
Para Ribeiro (1992), portanto, esta percepção além de revelar-se excessivamente romântica,
desconsidera as contradições do sistema capitalista e homogeneíza o que é diverso, por desconsiderar as
peculiaridades, as especificidades de cada povo, de cada cultura, uniformizando as identidades e
subjetividades culturais num mesmo anseio de padrão de produção e de consumo e de acesso a determinados
bens. De fato, considera desenvolvido, sustentavelmente, o país que estiver num determinado padrão de
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), tiver renda per capita e crescimento equiparado aos países ricos,
desconsiderando que um povo pode desenvolver-se com padrão de produção e consumo diferente do adotado
pelos países ricos25.
Nesse rastro e ampliando o debate, a concepção de sustentabilidade, com base na Declaração de
Manila sobre Participação Popular e Desenvolvimento Sustentável (1990), adota o modelo de
desenvolvimento alternativo como forma de alcançar sustentabilidade. Desenvolvimento entendido, então,
como processo de mudança econômica, política e social, não necessariamente envolvendo crescimento,
estando centrado nas populações que controlam os recursos, conforme as condições e possibilidades
ambientais, para serem utilizados na satisfação de suas próprias necessidades a partir do seu próprio padrão
de produção e consumo.
Tomando como base a concepção de Manila para pensar o semi-árido, o presente delineamento
teórico foi adotado como suporte de análise do modo de vida das populações camponesas do semi-árido
25
Redcliff (2002) faz uma abordagem sobre os novos discursos de sustentabilidade no contexto que o autor
considera como pós-sustentabilidade. Identifica que a força do conceito está mais nos discursos que o cercam
do que qualquer valor heurístico, destacando que o conceito foi se desgarrando do meio ambiente e foi se
confundindo com justiça social, eqüidade, governabilidade, como uma espécie de sufixo para todas as coisas
julgadas boas e desejáveis, tornando as ligações entre meio ambiente, justiça social e governabilidade vagas
no discurso de sustentabilidade O autor reconhece que os discursos de sustentabilidade atingiram o centro da
política ambiental internacional. E aponta duas questões específicas como evidência dos novos discursos, em
torno da sustentabilidade e da tentativa de incorporar nas preocupações ambientais as questões maiores da
justiça social, da governabilidade e da equidade: a primeira questão está ligada ao mantra da globalização e a
segunda questão se refere à maneira pela qual a ciência vem sendo utilizada para conferir legitimidade ao
nosso conhecimento sobre o que está acontecendo com o meio ambiente.
30
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
piauiense, apreendido pelo seu imaginário social, através das representações sociais, com vistas a
compreender a crise eco-social vivenciada no sítio de pesquisa, o que será desenvolvido nos capítulos
seguintes, iniciando-se pelo tema da construção social da espacialidade, no capítulo II.
31
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
CAPÍTULO II
IMAGENS DE LUGAR: SEMI-ÁRIDO E VÁRZEA GRANDE - REINVENÇÕES DE
ESPACIALIDADE?
Neste capítulo, abordam-se os processos de instituições territoriais, partindo da construção
social do Nordeste, passando pelo semi-árido e afunilando para o semi-árido piauiense. Com isto,
desnaturaliza-se o processo territorial, fazendo emergir o processo de instituição social dos territórios e os
símbolos que correspondem ao conjunto de imagens presentes nessa construção.
2.1. Prolegômenos: sobre a construção social do nordeste
Medir tempo e delimitar espaço faz parte do processo instituidor e fundante do ser humano,
na busca de dar sentido ao universo construído (CASTORIADIS, 1982). Desta forma, o ser humano
inventa temporalidades e espacialidades, em diferentes contextos históricos, produzindo uma dimensão
multiforme, que permite vê-las econômica, política, jurídica e culturalmente, num feixe de imagens e
discursos, que formulam um arquivo de uma dizibilidade e de uma visibilidade, que as sustentam, como
produto de uma rede de relações entre agentes que se reproduzem e agem em diferentes dimensões
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001).
A delimitação de um espaço ou criação de uma espacialidade, como percepções que habitam
o campo da linguagem e se relacionam diretamente com um campo de forças que as institui, é o processo
de construção de uma identidade espacial junto com uma identidade temporal. O agrupamento de
conceitos e experiências cotidianas representa e, principalmente, institui realidades, dispostas em tramas,
redes e falas tecidas nas relações sociais (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001).
A identidade espacial esboçada sobre uma área é vista por Stroh (2003) como categoria
analítica, definida pela presença do Estado, correspondendo a uma categorização de lugar que define seus
limites físicos a partir de uma deliberação externa pelo Estado, como forma de intervenção política e
econômica.
Entretanto, apesar da intervenção oficial, a instituição de identidades espaciais não se esgota
no campo da oficialidade e as regiões são criadas como um legado que existe em função das relações
estabelecidas a partir da mediação do trabalho e das relações sociais, com as marcas do afeto e do trabalho
investido (STROH, 2003). Como um grupo de enunciados, símbolos e imagens, as representações sociais,
que, com uma certa regularidade, repetem-se nos mais diversos discursos, nos seus diferentes estilos, em
períodos diferentes, ligados diretamente às relações de poder e sua espacialização, expõem uma política de
saber, que apresenta regiões não como uma homogeneidade contendo uma diversidade, mas como produto
de uma operação de homogeneização. Convém lembrar que a referida operação se dá na luta com as forças
que dominam outros espaços regionais, com fronteiras móveis, atravessadas por diferentes relações de
poder (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001).
Com efeito, o regionalismo brasileiro que resultou na criação do Nordeste, como região, é
fruto da crise da espacialização norte e sul que dividiu o Brasil e que usava, como critério de classificação
32
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
regional, as diferenças como reflexo imediato da natureza, do meio e da raça, num determinismo que
atribuía as diferenças de hábitos, costumes, práticas sociais e políticas, às variações de clima, vegetação e
composição racial da população (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001). A crise da concepção naturalista se
deu junto com a crise da primeira guerra mundial, que provocou profundas alterações no tecido social
mundial e brasileiro. Especialmente, São Paulo recebeu migração em massa e teve acelerado o processo de
urbanização, complexificando-o, profundamente, a ponto de as lentes deterministas do naturalismo não
darem conta de explicar a nova história e geografia surgidas.
O referido contexto desfocou o pólo de desenvolvimento do Nordeste, que era, então,
chamado de Norte. Esse tinha como centralidade um modelo econômico delineado pela monocultura agroexportadora, fornecedora de matérias-primas que alimentava um mercado forjado pelas grandes
navegações (FURTADO, 1998).
A perda de status de região pólo de desenvolvimento e a correspondente perda de poder
econômico dos coronéis do sertão, bem como as especificidades climáticas diferenciadas da Amazônia,
fizeram emergir a necessidade de diferenciação entre Norte e Nordeste, especialmente, após a seca de
1877, uma hecatombe com meio milhão de mortos que tratou, pela primeira vez, o referido fenômeno da
natureza como provocador de calamidades sociais (FURTADO, 1998). Tomou-se, com isto, a seca como
tema central de mobilização, que provoca emoção e serve de alimento principal para o discurso de
políticos que exigem verbas, obras, cargos e criação de estruturas oficiais. Estava lançada, assim, a base
para a indústria da seca e a necessidade de um redesenho regional, de forma a diferençar o norte das secas
do Norte da Amazônia.
Nesse itinerário, a seca de 1877 foi erigida como marco da derrota do Norte diante do Sul, ou
seja, da economia centrada na produção canavieira e do algodão do atual Nordeste para o mercado
emergente no Sul do país. Configurou-se assim, como o marco zero da instituição do Nordeste, num
momento de transferência de poder do Norte para o Sul. O instrumento utilizado pela solidariedade
escravista para enfrentar o seu desfalque fatal de poder foi tomar a seca como lente de interpretação para
todas as questões que abalaram os poderes instituídos: as manifestações de descontentamento dos
dominados (banditismo e revoltas messiânicas) e o atraso econômico e social. Essa criação imagéticodiscursiva delineou um quadro de horrores que mobilizou sentimentos de piedade e verbas, transformandose na atividade mais lucrativa do Norte/Nordeste, depois da decadência de sua base econômica
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001).
Com a referida demanda, somada à crise do naturalismo que norteava a antiga geografia
regional, à substituição da matriz de desenvolvimento da agropecuária para a indústria e, especialmente, o
antagonismo entre progresso do Sul (São Paulo) e atraso do Norte (Nordeste), estavam dadas as tinturas
para o redesenho da espacialidade no Brasil. Na região das secas, é urdida uma identidade espacial, mais
centrada nas relações sociais de poder e saber do que naturais. Por isso, é que o redesenho, embora leve em
conta a existência das secas, não se limita à espacialidade destas. Por exemplo, inclui o Estado do
Maranhão, em que não há secas, e não inclui o norte do Estado de Minas Gerais, que é acometido por
freqüentes estiagens. Desta forma, nasceu o Nordeste como região.
Esta identidade espacial de Nordeste resulta do encontro de interesses, constituindo muito
mais uma espécie de zona de solidariedade de populações marginalizadas pelos poderes públicos, do que
33
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
propriamente uma zona sujeita ao fenômeno climático das secas. Como se fosse uma espécie de aliança,
ante a exigência de ser bem forte para pleitear tratamento igual dado ao Sul pelo governo federal,
adotando, como instrumento de pressão, o discurso da seca.
A nova identidade, o Nordeste, portanto, desponta como totalidade político-cultural que
reage à sensação de perda de poder na correlação de forças com outras identidades espaciais,
especialmente, o Sul, por parte dos agentes movedores do pólo econômico centrado no açúcar e no
algodão, bem como de intelectuais e comerciantes a eles ligados, com vistas a dar visibilidade e
dizibilidade como códigos de leitura, que permitissem ordenar olhares, que demarcassem contornos,
tonalidades e sombreados (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001).
A exigência de visibilidade e dizibilidade da identidade espacial de Nordeste se dá no sentido
de construir um estereótipo que forjasse uma unidade, para isso, envolvendo, nessa construção, os mais
diversos segmentos: política, literatura, intelectualidade, música, de forma a construir uma identidade una
para o espaço e para a gente do Nordeste, como retratada por Euclides da Cunha, no início do século XX,
produzindo uma imagem que viria a fazer parte desse repertório de símbolos identitários:
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos
mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Faltalhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações
atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a
fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e
sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura
normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de
humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao
primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar
duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando
sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória
retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que
parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na
marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro,
ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo – cai é o termo - de cócoras,
atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu
corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares,
com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável (CUNHA, 1999, p. 95 ).
De fato, a literatura, a música, a pintura, as artes em geral, os meios de comunicação, e a
política evocam a caracterização euclidiana como estereótipo das pessoas que vivem na espacialidade oeste
do Norte do Brasil. A identidade da gente é o sertanejo e a do lugar é o Nordeste, este descrito como sertão
das secas.
Nesse processo de construção identitária, o estereótipo mescla concepções de identidade como
fonte de significados para o próprio ator, construída por meio de processo de individuação (CASTELLS,
2002), bem como a concepção de processualidade em que se constrói a identidade, que, no dizer de Mendes
(2002) é relacional e múltipla, situacional e histórica, baseada no reconhecimento por outros atores sociais e
na diferença. Nesse sentido, o estereótipo se projeta no processo de autoprodução identitária, numa tentativa
de reificação e de fixação de identidades e numa produção constante de novas realidades, produzidas num
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Maria Sueli Rodrigues de Sousa
diálogo multivocal e na intersecção de forças centrípetas (de fora para dentro) e centrífugas (de dentro para
fora), marcadas por tensões e contradições tanto na auto-representação quanto na ação social.
A análise do referido processo que constituiu/constitui este estereótipo aponta para
intencionalidades no sentido de uma construção social e econômica de significados com base no atributo
cultural ou conjunto de atributos culturais inter-relacionados que prevalecem sobre outras fontes de
significados (CASTELLS, 2002). Um processo delineador da consciência ou alheamento de cada indivíduo
quanto à sua autoprodução identitária. Geralmente, mais consciente para segmentos hegemônicos e menos
para segmentos subalternos que, no entanto, sentem-se aí, também, representados e identificados, muitas
vezes, como disse Cuche (1976), até como estratégia identitária.
Os primeiros registros, no campo da literatura, de elementos que compõem o referido
estereótipo, foram feitos pelo grupo regionalista, formado por escritores românticos como: Franklin Távora,
Visconde Taunay e Bernardo Guimarães, no período literário denominado Romantismo, na primeira metade
do século dezenove, como contraposição ao tipo sertanejo descrito no mesmo estilo de época pelo escritor
cearense José de Alencar, que se assemelhava ao modelo de herói europeu. Como, por exemplo, o romance
“Inocência”, escrito em 1872 por Visconde Taunay (1986), que sistematiza elementos, os quais serão depois
tomados como matriz para a constituição do estereótipo de identidade sertaneja, como a definição do que seja
o sertanejo:
O legítimo sertanejo, explorador dos desertos, não tem, em geral, família.
Enquanto moço, seu fim único é devassar terras, pisar campos onde ninguém
antes pusera pé, vadear rios desconhecidos, despontar cabeceiras e furar matas,
que descobridor algum até então haja varado (TAUNAY, 1986, p.5).
Constitui sua fala:
— Vassuncê não credita! protesta então com calor. Pois encilhe o seu bicho e
caminhe como eu lhe disser. Mas assunte bem, que no terceiro dia de viagem
ficará decidido quem é cavouqueiro e embromador. Uma coisa é mapiar à toa,
outra andar com tento por estes mundos de Cristo (TAUNAY, 1986, p. 5).
A construção dessa identidade sertaneja prossegue no período literário seguinte, identificado
como Realismo-Naturalismo, na segunda metade do século dezenove, ou seja, sob influência da simbologia
da seca de 1877, pelo acréscimo do elemento ambiental das secas. O início da construção do protótipo de
identidade do sertanejo do semi-árido ganha, assim, uma marca, que permanece, até os dias atuais, muito
forte: o seu caráter migratório em função das secas, tema recorrentemente trabalhado por muitos e diversos
autores :
Entre os retirantes passou um da Serra do Martins, Rio Grande do Norte, com a
mulher, seis filhos e dois cunhados, cada um destes com quatro filhos e mulher.
Tipo acabralhado, alto, corpulento, de topete caído sobre a testa como crista de
peru. Já vinha muito roto o seu chapéu de couro. A camisa e a ceroula já não
tinham mais cor.
Ao cair da tarde, arranchado ele com a sua gente em uma casa abandonada, ao pé
do alto, perto da trempe de pedras onde fervia o feijão com arroz, recortava de
uns tampos de couro cru umas palmilhas para as alpercatas; pois, coitado, as suas
estavam roídas e sem correias.
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Maria Sueli Rodrigues de Sousa
A apregata, aos sertanejos, lhes é tão indispensável como o cachimbo e a faca no
quarto (PAIVA, 1981, p. 18).
Mas foi com a obra de Euclides da Cunha, “Os Sertões”, que a idéia de sertanejo ganhou um
formato mais nítido, servindo de fonte para tantos outros escritores, roteiristas e dramaturgos do teatro e das
telenovelas da atualidade, que focalizam o processo de criação para além do sujeito: uma identidade sertaneja
para uma identidade de lugar – o Nordeste.
Posterior a Euclides da Cunha, o movimento intitulado “Romance de 30” ou regionalismo, a
obra de Gilberto Freyre e a música de Luiz Gonzaga alçaram vôos para além do espaço artístico e intervieram
na política, fornecendo ao processo de instituição de identidade, já referido, elementos necessários para o
delineamento da regionalização do Brasil, no caso, pela associação da região Nordeste à seca.
Sem dúvida, a idéia de Nordeste é recente e forjada no mundo político, intelectual e das artes
como forma de realçar a auto-estima e, especialmente, constituir identidade diferenciada da do Sul/Sudeste,
embora mantendo a dominação das elites locais. Nesse processo, a região é institucionalizada com a
proposição do Conselho Nacional de Geografia, em 1941, através do geógrafo Fábio de Macedo Soares de
Guimarães (ANDRADE, 1998). Se a proposição oficializou-se, porém nunca se consolidou consenso sobre
sua delimitação, inclusive no que toca a atuação de órgãos governamentais, como a Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE, criada por pressão da conjunção de forças formadas na zona de
solidariedade, e que estendeu a sua área de atuação regional do Maranhão a Minas Gerais, portanto, fora do
desenho de Nordeste. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE contribuiu fortemente para a
consolidação da atual conformação do Nordeste ao utilizá-la, a partir de 1968, como referência para suas
pesquisas.
A zona de solidariedade não só conseguiu institucionalizar a região Nordeste, como conseguiu
fazer com que a “questão Nordeste” passasse a ser do Brasil. Teve intervenção tão decisiva que emplacou
política assistencialista de combate à seca até mesmo na Constituição Federal de 1891 que, no artigo 5º,
obrigava a União a destinar verbas especiais para o socorro de áreas vítimas de flagelos naturais, incluindo,
aí, as secas (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001).
O Departamento Nacional de Obras contra a seca – DNOCS e a SUDENE, dentre outros, são
frutos da atuação na zona de solidariedade. A SUDENE surgiu com uma proposta reformista, não incorrendo
no risco de mudanças estruturais, ameaçadas por governos estaduais, como o de Pernambuco. Assim, com o
ideário de reformar para não transformar, o DNOCS, a SUDENE e assemelhados, na verdade, configuraramse como um braço do governo federal intervindo nas estruturas do poder estatal, o que foi profundamente
capitalizado pelo regime autoritário (BACELAR, 2003).
De fato, o regime autoritário, dos anos setenta até meados dos anos oitenta, sob o comando do
Estado, promoveu um processo de desconcentração produtiva, através do movimento do capital produtivo
dinâmico para outras áreas, atingindo o Nordeste, principalmente, através das políticas da SUDENE. No
entanto, nesse período, o Nordeste foi atingido pela crise da dívida, o que interrompeu o processo e
desacelerou o crescimento econômico da região.
As políticas regionais de desenvolvimento dos anos sessenta, setenta e meados de oitenta,
centradas nos instrumentos financeiros e fiscais voltados para o desenvolvimento, produziram resultados
positivos no quesito crescimento, especialmente, da renda, de forma a reduzir a pobreza absoluta no país,
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Maria Sueli Rodrigues de Sousa
principalmente, no Nordeste, possibilitando que a região se atrelasse ao desenvolvimento do país, diminuindo
a distância entre seus indicadores econômicos e sociais das médias nacionais.
Nas três últimas décadas no século vinte, o Nordeste cresceu, em alguns aspectos, a taxas, às
vezes, superiores às nacionais, o que não eliminou a existência de vastos redutos de pobreza e atraso
econômico convivendo, na atualidade, com modernos pólos de desenvolvimento, o que fortalece as
desigualdades entre as regiões e intra-regional e torna mais saliente a existência não de um, mas de vários
nordestes (BACELAR, 2003).
Nos anos oitenta e noventa, a economia brasileira cresceu pouco. Primeiro, em função do
processo de hiper-inflação e depois devido às políticas de controle para a estabilização. A crise também
assola a SUDENE, acirrada pelo desvelamento de processos de corrupção no interior do órgão, o que resulta
na sua fragilização e esvaziamento da proposta de planejamento regional e seu fechamento em década
posterior, deixando a região à deriva, ou melhor, a zona de solidariedade, que adotava a SUDENE como sua
institucionalização, ou seja, a institucionalização da indústria da seca.
Nesse contexto, os estados nordestinos, em concorrência entre si, passam a adotar mecanismos
de atração de grandes empresas, conseguindo alocar alguns empreendimentos com comprometedoras
isenções fiscais, que promovem a modernização da agricultura, a fruticultura irrigada, a implantação de
indústrias que exigem muita mão de obra, como calçados, roupas e outras, aproveitando as isenções, a mão
de obra barata, a fragilizada organização de classe trabalhadora e o pouco controle por parte das autoridades
ambientais (ZAIDAN FILHO, 2001). Isso não implica o fim da referida zona de solidariedade, muito menos
da indústria da seca, mas uma crise numa de suas formas de institucionalização que, aliás, começa a ser
rearticulada, num indício de que persistem interesses em manter a articulação, a invenção.
Teoricamente, interessa reter que o desenho das regiões brasileiras deu-se por força de processo
sociais, embora a questão natural tenha sido utilizada como instrumento de pressão e como símbolo. Nesse
processo, a preocupação em definir e reificar o que é o Nordeste produziu uma imagem da região que nega
sua diversidade, tanto natural quanto social, substituindo-a por paisagens típicas, personagens como o
sertanejo, que são vistos ambiguamente tanto pela beleza de sua peculiaridade quanto pelos problemas
sociais. Com isto, a reificação imaginária escamoteia que as identidades produzidas são dinâmicas,
relativamente estáveis, socialmente distribuídas, construídas e reconstruídas nas relações sociais por forças
internas e externas, num processo contínuo de atividade social (MENDES, 2002).
Efetivamente, a identidade una de Nordeste favorece interesses de controle por parte dos
indivíduos e grupos do espaço social e físico circundante, porquanto o imenso e diverso espaço físico e as
múltiplas identidades, nos nove estados nordestinos da federação brasileira, dificultam o exercício do
controle cuja necessidade é atendida com a construção da identidade espacial de Nordeste e de uma
identidade pessoal de nordestino. Ambas, na verdade, contêm uma multiplicidade de identidades, originadas
nos acidentes, fricções, erros, caos, ou seja, no ruído social dos conflitos entre os diferentes agentes e lugares
de socialização e não na mera reprodução (MENDES, 2002).
Entretanto, o processo de criação desta identidade una para o Nordeste e sua gente não é
exercício de mera ficção. É uma invenção sim, mas parte de matéria-prima fornecida por unidades espaciais
que compõem o todo constituído, através de sua história, geografia, biologia, instituições produtivas e
reprodutivas e memória (BOSI, 2003) e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho
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Maria Sueli Rodrigues de Sousa
religioso, adotando o suporte local, capaz de dar a legitimidade de que necessita para o encontrar-se na
memória coletiva. No caso do Nordeste, esse suporte veio da cana-de-açúcar, das secas, do cangaço, dos
aspectos rurais, do falar de pronúncia demorada, arrastada, cantada. E, desta forma, inventam uma tradição
pela escolha de imagens, lembranças, experiências, que funcionam como auxiliares na definição dos laços de
identidade dos sujeitos, ou seja, é na inter-relação entre presente e passado, feita pela memória coletiva, que
essa identidade vai-se compondo através da memória individual, familiar, da linguagem, do nome, da
moradia, do território, da posição social, das aspirações, dos valores sociais, das visões de mundo, dos
comportamentos, dos parentescos, com suas lembranças/imagens e representações (TEDESCO, 2002).
Na análise da identidade nordestina, pode-se perceber que a referida construção é fruto de uma
tentativa de generalização das especificidades, ou seja, unificação dos diversos nordestes e da diversidade de
sujeitos que ali vivem. Enfim, trata-se de uma espécie de generalização com a intenção de firmar uma
identidade regional26. A cultura nordestina é, de fato, uma interseção entre os localismos e o universal, entre
o Nordeste da cana-de-açúcar, do cacau, do semi-árido, do litoral, da pecuária, da abundância e da fome, da
miséria e da riqueza, em jogo de opostos que se casam ou não. Nesse sentido, o sertanejo de Euclides da
Cunha pode até existir localmente, mas nem de longe consegue sintetizar a multiplicidade que comportaria as
identidades nordestinas ou das secas, ou do semi-árido, ou do cacau, ou da cana-de-açúcar27.
2.2. Semi-árido – nova invenção ou reinvenção de identidade espacial?
Como exposto, o amplo acordo tácito que resultou na criação do Nordeste, como região, incluiu
interesses de diversos segmentos, muitas vezes antagônicos, como por exemplo, os dos antigos coronéis da
cana-de-açúcar e dos flagelados da seca, como se ambos fossem vítimas do fenômeno da natureza e do
descaso das políticas públicas que beneficiavam o Sul em detrimento do Nordeste. De fato, enquanto as
populações subordinadas constituíam os flagelados, os coronéis instrumentalizavam a seca como força de
pressão para conseguir verbas federais, as quais, em grande parte, abasteciam os cofres desses coronéis que
haviam perdido a posição de cabeça do pólo econômico para o Sul. Eis a lógica da chamada indústria da
seca.
Esta, a indústria da seca, interfere, historicamente, em todas as esferas do cotidiano do Nordeste
e sempre se manifesta acompanhada dos mecanismos que lhes garantem a permanência. Desta forma, a sua
ação implementa a construção de meios de abastecimento de água em terras privadas, quando grande parte da
população não possui terra ou a possui em pouca quantidade; faz grandes açudes na extensão e sem
profundidade, que resultam em obras que impressionam pelo tamanho, possibilitando a alteração dos seus
verdadeiros custos e mantendo populações na dependência do carro-pipa, uma das fontes garantidoras de
votos. Um outro exemplo de ação da indústria da seca tem-se dado na perfuração de poços onde não há água
subterrânea, encontrando-se com isto justificativas para desvios de verbas públicas sem a solução do
26
A propósito ver com Albuquerque (2003) quando trata da identidade nordestina como um processo
discursivo de construção do macho.
27
De fato, convém lembrar, com Moraes (2000) entre outros, que o Nordeste contemporâneo não se reduz a
configurações tradicionais, visto que há áreas em franca expansão econômica que constituem os chamados
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Maria Sueli Rodrigues de Sousa
problema da escassez de água, e mantendo, desta forma, a fonte da dependência política. Enfim, ao longo da
história, a indústria da seca tem reinventado suas táticas para sugar verbas públicas federais e para a
manutenção dos vínculos de patronagem-dependência entre as populações locais e os velhos e novos coronéis
do Nordeste que também se reinventam, inclusive, com a combinação de poder acadêmico e político.
Esta situação perdurou até a segunda metade do século XX quando, a partir do final dos anos
oitenta e início dos anos 90, populações camponesas e movimentos sociais se organizam e atuam
contradizendo a indústria da seca. Nesse contexto de lutas e enfrentamentos, emerge da concepção
convivência com o semi-árido, como resistência a este processo histórico no que tange ao fenômeno das
secas.
A expressão “convivência com o semi-árido” surgiu, efetivamente, no âmbito das organizações
não governamentais – ONGs, que atuam no semi-árido, no enfrentamento aos problemas sociais advindos da
relação entre estiagens e indústria da seca neste ecossistema. No caso em questão, materiais didáticos como
cartilhas, cartazes, vídeos, produzidos por duas destas organizações, a Cáritas Brasileira – Regional Piauí e o
Instituto regional da Pequena Agropecuária Apropriada - IRPAA, denotam o percurso da categoria
convivência, que se originou, nesse discurso, como convivência com a seca e, depois, ampliada para
convivência com o semi-árido. A propósito, o fundador do IRPAA, Harald Schistek, diz:
Eu atuava na cepetê [CPT], em Juazeiro – Bahia, no final da década de setenta e
início de oitenta. Nos cursos de agropecuária que dávamos, percebíamos que o
centro dos problemas não estava nas secas ou apenas na falta de terras. As
famílias que já estavam assentadas continuavam a passar por muitas
dificuldades, chovesse ou não, sua qualidade de vida não havia mudado. Então
ter chuva e terra não era suficiente. Verificando o quanto chovia, percebíamos
que havia um bom volume de precipitação. Começamos a dizer, nos cursos, que
chovia muito no semi-árido e as pessoas reagiam, mas apresentávamos o quanto
chovia em outros lugares, inclusive onde não faltava água, e elas se convenciam.
E com isso começamos a descentralizar o foco do problema, do natural para o
social, e mais precisamente para o cultural, ou seja, o jeito de fazer e o que fazer.
O problema não era acabar com a seca, mas plantar e criar conforme as
condições do clima. E desta forma, começamos falar em convivência com a seca.
Depois percebemos que não se limitava a conviver com a seca, mas com a
diversidade que era ecossistema todo, por isso evoluímos para a proposta de
convivência com o semi-árido e para isso nasceu o irpa [IRPAA] (comunicação
oral)28
Pelo que se percebe, na intencionalidade da proposta, segundo a comunicação oral acima, um
dos mecanismos utilizados na idéia de convivência é o de romper com uma concepção naturalista dos
problemas vividos na região das secas, para adotar uma concepção fundada na natureza sociocultural dos
problemas.
Seria então uma proposta de reterritorialização para a região das secas? Se o foco é a natureza
sociocultural dos problemas, por que chamar o novo território de semi-árido, uma denominação que expressa
um aspecto que se fecha no universo natural?
pólos de desenvolvimento, como ocorre, por exemplo, com as regiões Sudoeste do Piauí, Oeste da Bahia e
Sul do Maranhão, já identificados como o novo Nordeste dos cerrados.
28
Entrevista realizada em Teresina – Piauí, no dia 15 de janeiro de 2004.
39
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Se é uma proposta de reterritorialização, quais seriam suas identidades tanto espaciais quanto de
sujeitos? Sua identidade espacial seria toda a área de clima semi-árido? Então o que faz o Maranhão dentro
desta nova identidade? Quem seria o sujeito do semi-árido?
Convém lembrar que a expressão semi-árido, como identidade ou proposta de identidade
espacial para a região sujeita às estiagens, surge com a intencionalidade de problematizar a indústria da seca
que marcava sua atuação com as macro-obras: grandes barragens, grandes açudes, poços a altos custos,
grandes projetos de irrigação, chuvas artificiais com o bombardeamento das nuvens com cloreto de sódio,
que resultaram, como já referido, no beneficiamento dos latifúndios, daqueles que menos sofrem com as
secas.
A denominação semi-árido surge, portanto, como diferenciação no âmbito da identidade
Nordeste, para designar o espaço em que ocorrem as secas, ou seja, o espaço de clima semi-árido, e não em
torno dos esquecidos pelas políticas públicas federais, como os da zona de solidariedade, que constituiu o
Nordeste, embora seja, de fato, o semi-árido esquecido pelas políticas públicas federais. Agora, o outro não é
o Sul, como aconteceu no processo de construção do Nordeste. O outro a que se opõe a identidade de semiárido, embora dialogue diretamente com ela, é o próprio Nordeste, ou melhor, o Nordeste da indústria da
seca, cuja lógica de vitimização resultou na dependência de verbas federais.. Trata-se, agora, então, de
estabelecer as fronteiras de diferenças entre as identidades, a começar pelos limites físicos.
Nesta área, fisicamente identificada como semi-árido, análises biogeoquímicas sugerem a
existência de ambiente seco, característico de climas semi-áridos, desde muito cedo, provavelmente desde o
terciário. Os índices de semi-aridez, de um ano para outro, apresentam desvio de até 200% (ARRUDA,
1997). Análise climatológica sugere que a semi-aridez é causada por mecanismos de circulação geral da
atmosfera, conhecida como circulação de Hadley-Walker, sendo que a interação entre suas células é que seria
responsável pela variabilidade e a intensidade de aridez (SILVA, 1980).
Na definição do que seja o semi-árido brasileiro, delineiam-se as suas negações, ou seja, os seus
outros: é identificado como não sinônimo de Nordeste e não sinônimo de polígono das secas, este, delimitado
em 1936 pelo decreto-lei 175/36, abrangendo oito estados do Nordeste e parte do norte de Minas Gerais, num
total de 962.299,8 km², definidos pelo critério de menor precipitação, compreendidas pela isoieta de 800 mm.
Já o semi-árido apresenta reservas insuficientes de água em seus mananciais, o que é produzido pelo balanço
hídrico negativo entre precipitação e evapotranspiração, o que não quer dizer, necessariamente, que chova
pouco. Assim, o semi-árido brasileiro abrange também oito estados do Nordeste, num total de 803.328,9 km²
e o norte de Minas Gerais, uma área de 54.670,4 km² (SCHISTEK; ARAÚJO, 2003). Como se pode ver, são
muito semelhantes as delimitações do que se entende por semi-árido e por polígono das secas, porém o
critério de definição de ambos é diferente: um é instituído, socialmente, em um processo de construção com a
participação das populações subalternas, o outro se fez por decreto governamental, sem a participação dessas
populações e com a contribuição de peritos.
De fato, a delimitação do semi-árido não é consenso entre os que defendem a proposta de
convivência. A Articulação do Semi-Árido Brasileiro – ASA-Brasil, por exemplo, amplia o recorte de semiárido de forma a acrescer parte dos Estados do Maranhão e do Espírito Santo. Já ONGs, como o IRPAA, por
exemplo, não consideram os dois Estados acrescidos pela ASA como semi-árido, como se pode conferir na
ilustração 01. Num primeiro olhar, no critério utilizado pela ASA, aparenta haver a repetição da constituição
40
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
da zona de solidariedade, que aconteceu com o Nordeste, formada pelos esquecidos pelas políticas federais e
com isso adotando um critério social e não natural, ao incluir o Maranhão e o Espírito Santo dentro dos seus
limites.
Porém, isso requer um olhar mais pormenorizado. Vejamos: a instituição do Nordeste se deu
com a crise mundial do paradigma naturalista, após este ter conduzido o mundo aos desígnios do nazifascismo, por isso o foco deixa de ser o natural e passa a ser o social, ou sócio-político, já a instituição do
semi-árido dá-se num contexto não de ruptura de paradigmas, mas de diálogo entre estes. Nem o natural nem
o sociocultural são determinantes, mas o conjunto delineia o social. Além de que, a partir de critérios
naturais, é inegável a existência de áreas com as especificidades de semi-árido para além do espaço em que o
referido ecossistema é hegemônico (KELLER, 1984).
Com efeito, o exercício de instituição da identidade semi-árido busca construir uma visibilidade
e uma dizibilidade para sua definição a partir do estabelecimento de diferenças de outras identidades já
instituídas, o que não quer dizer que não dialogue ou não guarde semelhanças com aqueles a que se opõe.
Nesse processo, buscam-se os semelhantes, ou seja, outros semi-áridos do mundo, como fonte de referências
naturais e socioculturais.
Na criação de fronteiras entre semi-árido e seus outros mais próximos com os quais dialoga, o
Nordeste e o polígono das secas, o processo de construção da dizibilidade sobre o semi-árido busca escapar
da armadilha da criação de estereótipo, ao reconhecer a diversidade do semi-árido, dos seus problemas, de
sua gente e de sua espacialidade:
Essa imensidão não é uniforme: trata-se de um verdadeiro mosaico de ambientes
naturais e grupos humanos. Dentro desse quadro bastante diversificado, vamos
encontrar problemáticas próprias à região (o acesso à água, por exemplo) e
outras universais (a desigualdade entre homens e mulheres). Vamos ser
confrontados com o esvaziamento de espaços rurais e à ocupação desordenada
do espaço urbano nas cidades de médio porte. Encontraremos, ainda, agricultores
familiares que plantam no sequeiro, colonos e grandes empresas de agricultura
irrigada, famílias sem terra, famílias assentadas, muita gente com pouca terra e
pouca gente com muita terra, assalariados, parceiros, meeiros, extrativistas,
comunidades indígenas, remanescentes de quilombos, comerciantes,
funcionários públicos, professores, agentes de saúde. O que pretendemos com
essa longa lista, é deixar claro que a problemática é intrincada e que uma visão
sistêmica, que leve em consideração os mais diversos aspectos e suas interrelações, impõe-se mais do que nunca (ASA, 1999, p. 2).
Porém, no processo de instituição das novas imagens de semi-árido, de certa forma cai-se nas
armadilhas do estereótipo. De fato, apresentam-se como imagens gráficas (cartazes, folders, folhetos, etc) de
semi-árido: ruralidade, mulheres e crianças apanhado água suja em barreiros com pouca água e
transportando-a na cabeça, animais de transportes carregando água, aguadas secando, cactos, cisternas em
casas humildes, homens com enxadas no roçado, cabras, umbuzeiro, sol. Isso faz ver que a instituição da
identidade semi-árido ainda está em processo e, especialmente, muito há de diálogo aproximativo com a
identidade estereotipada de Nordeste. Assim, embora a intencionalidade seja construir uma identidade com
base na crítica à identidade espacial Nordeste, especialmente, às políticas ali aplicadas, isto se mostra muito
mais na dizibilidade, ou seja, no discurso, do que nas imagens selecionadas para referir a identidade.
41
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Vale ainda considerar que a crítica enunciada no discurso de semi-árido não se fecha em si, mas
vai além, com proposição de políticas consideradas adequadas ao semi-árido, o que permitiria às populações
locais se libertarem das medidas emergenciais, geradoras da dependência da cesta básica e do carro-pipa.
Com efeito, a carta política da ASA (2003), elenca a referida proposição em vários segmentos:
acesso à terra; acesso à água; fortalecimento da agricultura familiar; preservação e uso sustentável dos
recursos naturais; educação para convivência com o semi-árido; atenção à criança e ao adolescente;
segurança alimentar; democratização dos processos de comunicação sobre o semi-árido. Cada um desses
segmentos comporta diversas propostas, dentre as quais se destacam:
- Programa de Formação e Mobilização Social para Convivência com o Semi-Árido: um milhão
de cisternas rurais – P1MC, em forma de política pública de democratização e acesso à água de qualidade
pelas famílias do semi-árido brasileiro;
- Demanda de incorporação, nas políticas públicas governamentais, das várias propostas e
experiências de captação, armazenamento, aproveitamento e manejo da água, desenvolvidas pela sociedade
civil no semi-árido brasileiro;
- Posicionamento contra a transposição de bacias e a favor da revitalização e da gestão
participativa das mesmas;
- Posicionamento contra a privatização das águas e a internacionalização da Amazônia;
- Defesa de uma reforma agrária que leve em conta as especificidades e diversidades regionais;
- Posicionamento de reforço à desapropriação como principal instrumento para se empreender
uma reforma agrária que garanta a mais ampla inclusão social;
- Afirmação da posição contra a reforma agrária de mercado;
- Apoio ao imediato reconhecimento das terras das comunidades quilombolas;
- Apoio à demarcação e proteção das terras indígenas e das unidades de conservação e à
implantação de sistemas sustentáveis de assentamentos, garantindo o reassentamento aos posseiros
agricultores familiares;
- Reivindicação da implementação de uma política agrícola voltada para os assentados da
reforma agrária, que privilegie as ações com enfoque agroecológico e de convivência com o semi-árido, com
linhas de crédito adequadas, a partir de interesses e aptidões das realidades locais (ASA, 2003).
O conjunto de propostas acima, se implementado, de fato, quebraria a espinha dorsal da
identidade de Nordeste fundada na indústria da seca, visto que transfere o foco da dimensão natural para a
social e política, o que, potencialmente, quebra a lógica da vitimização do nordestino, fazendo emergir tanto
uma consciência de que ele próprio é partícipe da construção do drama social em que está imerso, quanto das
novas relações possíveis entre cultura e natureza, no âmbito de uma perspectiva de sustentabilidade em seu
sentido amplo. Assim, numa outra demarcação das diferenças, adota-se o princípio das pequenas obras, como
estratégias para enfrentar as estiagens, o que possibilita a cada família cuidar da solução do problema na sua
órbita familiar e, ao Estado, ganhar aliados na solução do abastecimento de água, por exemplo. Vale lembrar
que a quebra dos monopólios sobre terra e água alteraria profundamente a distribuição de poder na
espacialidade semi-árida ou nordestina, já que mais da metade do nordeste é semi-árida.
De fato, há uma proposição de redesenho de espacialidade e de identidade, que se materializa,
não necessariamente contra a identidade de Nordeste, mas a partir de seleção de discursos e de imagens, no
42
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
caso, ainda mais de discursos do que de imagens, tendo como referências as experiências, práticas sociais,
histórias de vida, músicas, ritmos, danças, simbologias condizentes com o propósito de gestar uma cultura de
convivência com o semi-árido, que negue a cultura de combate à seca e da indústria da seca. E esta
visibilidade e dizibilidade do semi-árido partem de substratos comuns ao de Nordeste. Em muitos aspectos,
há convergência e não oposição. Por exemplo, evitam-se as músicas lamurientas gravadas por Luiz Gonzaga,
como “Triste Partida” e “Asa Branca”, mas adotam “A volta da Asa Branca” e “O xote das meninas”, que
dão um tom de esperança, de proposição e não de tragédia. No entanto, continua sendo Luiz Gonzaga, o
porta-voz dos sentimentos populares por excelência e continua o sertanejo como vítima da natureza, a
imagem por excelência.
Com efeito, na letra “Asa Branca”, há uma paisagem de morte: nem mesmo “um pé de
plantação” nem mesmo a “asa branca” compõem o cenário. Na outra letra, “A volta da asa branca”, há uma
abundância de vida, porém nas duas há a vitimização humana pela natureza.
Portanto, é possível afirmar que se identifica, na proposta de instituição do semi-árido, o
delineamento de uma identidade cultural de espaço e de sujeito num substrato natural, o bioma, com seu
clima, sua vegetação, fauna, solos, regime de chuvas, reservatórios de água, insolação, com seus limites e
possibilidades para o processo de apropriação na relação entre cultura e natureza, que embora dialogue com a
identidade estereotipada de Nordeste, procura abandonar o lugar construído pela indústria da seca,
transcendendo a caracterização única do bioma e dos problemas climáticos.
2.3 O contexto semi-árido: aspectos físicos
O semi-árido, marcado pelo fenômeno natural das secas, apresenta, como uma de suas
paisagens mais comumente retratadas, vegetação característica de cor cinza, em períodos de estiagens, por
isso chamada de caatinga, que significa mata branca ou cinzenta. Assim denominada pelos primeiros
habitantes destas terras, a caatinga tem como característica a caducifolia, capacidade de perder as folhas,
na estação seca, mecanismo de que a planta se utiliza para economizar água.
Além da caducifolia, a caatinga apresenta outras características apropriadas às condições
climáticas como a retenção de água da chuva, seja no tronco, como a popular barriguda [Chorisia
glaziovii], nas raízes, como o umbuzeiro [Phytolacca dióica], no caule, como as cactáceas [Cactus sp] ou
como o popular juazeiro [Ziziphus joazeiro] capaz de captar água no subsolo através de sua raiz profunda e
pivotante. Caracterizam, também, a vegetação de caatinga os troncos e galhos retorcidos e revestidos de
espinhos (SCHISTEK, 2001).
Este tipo de vegetação, existente apenas no Brasil, foi tratado de forma preconceituosa pelo
eurocentrismo da colonização, que o tomou como vegetação marginal, ou seja, não típica ou oriunda de
outra espécie, como dito no jargão científico, produto da degeneração de formações vegetais mais
exuberantes, como a Mata Atlântica ou a Floresta Amazônica. Isto se deu por que a caatinga fugia aos
padrões até então conhecidos, inclusive, sendo considerada como natureza morta no período de estiagens,
em que apresenta a cor típica que lhe deu o nome, o cinza. Portanto, emerge daí uma idéia preconceituosa
sobre a vegetação caatinga, que apenas recentemente começa a ser desconstruída por pesquisas científicas
voltadas para a biodiversidade desse bioma.
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Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Com efeito, atualmente, sabe-se que a caatinga é um bioma próprio, típico do semi-árido
brasileiro, rico em biodiversidade, endemismos e bastante heterogêneo. Ocupa uma área de cerca de
800.000Km², englobando de forma contínua parte dos Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte,
Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais, ou seja, o semi-árido brasileiro
(SCHISTEK, 2001).
No que tange à fauna, a do semi-árido é marcada pela presença de animais de pequeno e
médio porte, compatíveis com as condições de vegetação e clima.
Com efeito, dentre as principais adversidades que enfrenta o semi-árido, destaca-se a falta de
conhecimentos sobre suas limitações e potencialidades, o que tem norteado a ação antrópica de forma a
provocar perdas irreparáveis de material genético insubstituível, que deixam solos desprotegidos e, com
isso, mais suscetíveis à erosão irreversível, a assoreamento dos rios, a mudanças microclimáticas e à maior
suscetibilidade à desertificação.
Na maior parte do semi-árido, o subsolo é cristalino, com pouca água que, na maioria das
vezes, é salobra. Água de boa qualidade e quantidade se encontra somente numa área restrita de subsolo
sedimentar. Daí a inadequação à realidade das políticas eleitoreiras de, cada vez mais, perfurar poços a
custos altíssimos.
No semi-árido brasileiro, em relação a outras regiões semelhantes do mundo, chove muito
(PORTO, 2002). As chuvas ocorrem de maneira irregular e concentram-se em poucos meses, tendo uma
evapotranspiração superior às precipitações, o que resulta num balanço hídrico negativo (chove uma média
de 800 mm e evapora uma média de 2000 mm), o que por si só não é problema. A forma como tem sido
tratada, historicamente, a questão, é que se constitui em problema. Desde o Império, há registro de ação
política que se estrutura no paradigma de combate à seca, como se fosse possível combater uma condição
climática. Embora se possa falar de semi-árido brasileiro, convém lembrar, ainda, que não se pode pensálo de forma homogênea. Nesse sentido, é importante retratar o semi-árido no Piauí, especialmente, na
região estudada.
2.4. O semi-árido no Piauí, território Várzea Grande
2.4.1. Aspectos geomorfológicos e históricos
O Estado do Piauí situa-se numa área de transição marcada pela passagem do domínio
morfoclimático da região, o semi-árido, para o da Amazônia ocidental. Enquanto há características
amazônicas a noroeste do rio Mearim, a sudeste do Piauí, há superfície aplainada cristalina do sertão semiárido e, a sudoeste, surgem aspectos morfológicos do Brasil Central (FIBGE, 1977)29.
A região sudeste do Piauí está embasada em cristalino pré-cambriano e segundo classificação,
apresentada por Moreira (1977 apud LIMA, 1987), enquadra-se na cuesta formada por um semicírculo, com
destaque para dois grandes conjuntos de formas separados pelo canyon do Poti: a Serra da Ibiapaba e a Serra
Grande, escudo cristalino, com litologia predominantemente formada por arenitos e conglomerados que
compõem as formações Serra Grande e Pimenteiras. A caracterização da referida área é semelhante para todo
29
A propósito da diversidade e riqueza ecossistêmica no Piauí conferir Vilela (1999).
44
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
o semi-árido, diferindo apenas na porção piauiense onde a estrutura geológica é, predominantemente, de
rochas sedimentares.
A área em estudo pertence ao compartimento regional de depressões periféricas do conjunto do
relevo piauiense, que se limita com a porção sul da cuesta da Ibiapaba, conhecida como Serra Grande, ao
norte; a leste com a Chapada do Araripe; a oeste com os Chapadões do Médio-Baixo Parnaíba; a sudeste com
a Serra Dois Irmãos e a sul com a Serra da Tabatinga (Moreira, 1977 apud LIMA, 1987).
É a referida área, tipicamente, semi-árida, porém, nem sempre se constituiu como se apresenta
atualmente. Entre 50.000 e 60.000 anos, havia uma floresta úmida tropical que cobria todo o Estado do Piauí,
inclusive a área de São Raimundo Nonato, sudeste do Piauí. Entre 10.000 a 12.000 anos, iniciou-se a
formação da atual modelagem, que resultou num clima semi-árido e a mudança morfo-climática, com o
desaparecimento de espécies de tamanho gigantesco e fortalecimento de outras apropriadas ao novo clima e
geomorfologia (FUNDHAM, 1998).
Os primeiros habitantes foram povos caçadores e coletores, que chegaram à região, por volta
de 50 mil a 60 mil anos atrás, conforme material datado na Toca do Boqueirão da Pedra Furada, em mais de
48.000 (FUNDHAM, 1998). Depois da mudança climática, entre 10 e 12 mil anos do presente, diferentes
culturas passaram a dividir o espaço, com populações mais numerosas do que antes (FUNDHAM, 1998).
Durante o Pleistoceno, período que vai de há 2 milhões de anos até
12.000/10.000 atrás, na região do Parque Nacional reinava um clima tropical
úmido. Portanto, no início da aventura humana, esta região era verde, com
muitos rios e lagos. Na grande planície imperavam os campos, por onde corriam
cavalos, mamutes e lhamas, com bosques de árvores e lagos cobertos de
vegetação, onde comiam os tatus gigantes, capivaras e toxodontes (animais
parecidos com rinocerontes). Na serra, a floresta tropical úmida, imponente com
suas árvores altas e frondosas, escondia preguiças gigantescas e o temido tigrede-dente-de-sabre (FUDHAM, 1998, p. 15).
A questão da aparente descontinuidade de ocupação humana na região deve ser vista com
cautela, por ser mais provável que não haja uma descontinuidade, e sim uma falta de vestígios culturais,
especialmente, a presença física do ser humano, em função de serem ainda muito recentes as pesquisas
realizadas (MARTIN, 1999).
As populações de 10 mil anos eram racialmente mongolóides, fato comprovado com a presença
física humana, como todos os habitantes das Américas anteriores à colonização européia. Já as de 50 mil
anos poderiam tratar-se de grupos pré-mongolóides que evoluíram já nas Américas ou que se extinguiram
(MARTIN, 1999). As populações de 3.500 a 3 mil anos são as primeiras a se apresentarem com vestígios da
cultura agrícola, o que não quer dizer, necessariamente, que não tenham existido, antes, povos agricultores.
Na verdade, há carência de dados (FUNDHAM, 1998).
Pesquisas arqueológicas indicam que as populações do intervalo 3 mil a 1.600 anos viviam em
aldeias circulares, grandes, localizadas próximas às fontes de água, com aproximadamente dez ou onze casas
circulares em volta de uma praça central, ocupando vales da planície da depressão periférica ou o alto da
chapada, nas formações sedimentares, utilizando utensílios como pilão, potes de cerâmica, machados
lascados semi-polidos, discos polidos perfurados. Adotavam, como costume funerário, o sepultamento
secundário em cova ou em urnas, em que a cabeça recebia um tratamento diferenciado, sendo separada das
45
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
outras partes do corpo e enterrada, coberta com vasilha de cerâmica ou metade da cabaça (a cuia), sobre o
arranjo feito com os outros ossos, em algumas situações, vinte ou trinta centímetros acima dos ossos longos
(FUNDHAM, 1998) o que indica a existência de uma cultura elaborada.
Com relação às práticas culturais de sua base econômica, há poucas evidências de práticas
agrícolas, com vestígios de cultivo de milho [Zea mays], feijão [Vigna unguiculata], cabaça [Lagenaria
sericea] e amendoim [arachis hypogea], provavelmente, as secas limitassem essas práticas e exigissem
deslocamentos temporários nos períodos de dificuldades de acesso à água (FUNDHAM, 1998).
Nessa região, há cerca de 300 anos, o violento encontro entre as culturas européia e autóctone
provocou quase um etnocídio, uma vez que esse se estabeleceu sob a hegemonia cultural dos colonizadores.
Isso provocou quase o desaparecimento da cultura local que, ao que tudo indica, subsistiu como cultura
ameaçada e assimilada à dominante para não sucumbir totalmente.
De fato, a colonização do Piauí, como parte do sertão do gado, deu-se mais tarde em relação a
outras partes do país, por que o interesse imediato do colonizador focalizou-se na área litorânea, onde seria
possível a exploração do cultivo da cana de açúcar. Só com a Carta Régia de 1701, em que o rei de Portugal
proibiu a criação de gado bovino na faixa de dez léguas a partir do litoral e como a pecuária era atividade
subsidiária da economia canavieira, é que se iniciou a colonização do sertão e o Piauí foi uma das últimas
áreas procuradas pelos colonizadores. O sudeste do estado foi de ocupação posterior30 às outras áreas (DIAS,
2001).
As populações existentes, na área em estudo, quando o colonizador lá aportou, eram os índios
Pimenteiras, que, juntos com os Acroás, Macoazes, Cherens, Gueguêz, Kamakam e Jeicó, formavam a etnia
Jê. Os índios Pimenteiras ocupavam grande extensão das terras do Piauí, dominando toda a região do alto
Piauí e alto Gurguéia, eram guerreiros e lutaram muito em resistência à ocupação de suas terras (MOTT,
1979). Se tomado o critério de classificação pela língua que falavam, eram provavelmente da família Caribe,
visto que são os Pimenteiras os únicos falantes desta língua (FUNDHAM, 1998).
Como parte do sertanismo de contratos, Victorino Paes Landim, como enunciam os
entrevistados, “tomou parte na conquista dos índios que habitavam essas caatingas” (GODÓI, 1999). Na
verdade, o tomar parte é eufemismo, pois ocorreu de fato um massacre. Victorino Dias Paes Landim, o
ancestral comum “no mais fundo da memória genealógica” (GODOI, 1999) da área em estudo, integrou essa
ação violenta, sendo recompensado com terras.
De fato, do século XIII ao XIX, ocorreu quase uma dizimação dos povos nativos e a
transformação das terras em lavouras e fazendas de gado, como a Fazenda Várzea Grande, originada daquilo
que o documento classifica como Sítio Serra Nova. Na verdade, essa grande extensão de terra (mais tarde,
também, chamada de Fazenda Serra Nova) foi considerada sítio apenas como artifício para driblar a
Resolução de nº 76 de 17/7/1822, que extinguiu o regime de sesmarias e definiu a ocupação da terra pelo
critério do tipo de trabalho empreendido: fazenda destinava-se à criação de bovinos, o sítio destinava-se à
agricultura e à criação de miunças e posses eram as terras destinadas aos camponeses, mas, de fato, esse
30
Há uma polêmica entre pesquisadores e historiadores quanto ao processo de ocupação do Piauí. A
divergência está na lógica ou direção dessa: se do litoral para o sertão ou do sertão para o litoral. Essa
polêmica não será objeto do presente estudo.
46
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
critério acabou servindo apenas para nomear de outra forma as antigas sesmarias. Assim, era possível
encontrar grandes extensões de terras classificadas como posses ou sítio (GODOI, 1999).
A Fazenda Várzea Grande originou o município de Coronel José Dias, sendo que a sede
resultou no bairro São Pedro, antiga Rua velha. O fundo de pasto da fazenda deu origem às atuais
comunidades Barreiro Grande e Barreirinho, formando um território contíguo, locus da presente pesquisa.
Após a chegada do colonizador e até se tornar município, o processo gerador da crise eco-social
na área estudada contou, ainda, com um outro aspecto significativo, agregador de outros elementos na sua
composição atual, a extração da maniçoba. Esta atitude teve início no final do século XIX, com apogeu no
início do século XX.
Seu declínio como atividade central ocorre no início da década de vinte do século XX e como
prática cultural, agregada ao modo de vida das populações camponesas locais, na década de sessenta.
Quanto ao processo de sua emancipação, sua construção política como município teve três
momentos de definição: em 1916, a Fazenda Várzea Grande passou à condição de povoado do município de
São Raimundo Nonato, mantendo o nome. Em 1962, o povoado passou a município com o nome de Coronel
José Dias. Seis meses depois, foi cassada esta condição, sob a justificativa de não ter havido plebiscito para a
criação do município, motivo alegado pelo então deputado estadual Edson Ferreira. Finalmente, em 29 de
abril de 1992, outra vez, o povoado foi desmembrado do município de São Raimundo Nonato pela Lei nº.
4.477, votada na Assembléia Legislativa e sancionada pelo, então, governador Antônio de Almeida Freitas
Neto. O processo de desmembramento foi movido pelos, então, deputados Marcelo Castro e Valdemar
Macedo, o primeiro tendo papel fundamental na decisão sobre o nome do novo município que fica sendo
Coronel José Dias (SECRETARIA ..., 2003).
Segundo Raimundo Coelho, morador do lugar, em comunicação oral31, teria havido apenas
uma reunião para decidir sobre o nome do novo município, em que foram apresentadas três propostas. Uma
delas defendia o nome de Coronel José Dias, em homenagem a um filho do lugar, do tronco do véio Vitorino,
que se tornou Coronel da Polícia Militar, o qual viveu do final do século XIX ao início do século XX. Uma
outra opção apontava o nome Várzea Grande dos Oliveiras, aproveitando a primeira parte do antigo
topônimo Várzea Grande (que não podia ser mantido em função de já existir, no Piauí, um município com
este nome) e a outra parte em homenagem a uma das famílias locais. E uma terceira opção propunha o nome
Serra da Capivara, em homenagem à serra nas proximidades do novo município e que deu nome ao Parque
Nacional. Não houve consenso, naquela reunião, e o deputado decidiu, por si, manter o antigo nome de
Coronel José Dias, que era também uma homenagem a um familiar seu. Conseqüentemente, quando
aconteceu o plebiscito, já foi com opção única de nome.
O referido nome tem gerado muitas controvérsias e críticas, visto ter havido no sertanismo de
contrato, que quase dizimou os nativos locais, um certo capitão José Dias Soares, que viveu entre o final do
século XVIII e século XIX, sendo de São Paulo e tendo ação localizada na região do município de Caracol,
Piauí (DIAS, 2001). Embora o homenageado tenha sido o Coronel José Dias de Sousa, um personagem da
história mais recente do que o primeiro, o topônimo não deixa de confundir os personagens e, assim,
47
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
rememora a carnificina praticada contra as populações nativas locais, embora a memória coletiva, como
veremos adiante, elabore aproximações de José Dias de Souza com o grande ancestral mítico Vitorino Dias
Paes Landim.
O novo município, que resultou do referido processo de desmembramento, está a 33 km de São
Raimundo Nonato, no sopé da Serra da Capivara, a 548 Km de Teresina, capital do Estado do Piauí,
dispondo de uma área de 1.796,30 km². Limita-se ao norte com o município de João Costa, ao sul com
Dirceu Arcoverde, no Estado da Bahia, ao leste com Dom Inocêncio e, a oeste, com São Raimundo Nonato e
São Lourenço do Piauí (figura 9). Pelo lado oeste, Coronel José Dias é ladeado por serras, com destaque para
a Serra da Capivara, onde está situado o Parque Nacional Serra da Capivara, Patrimônio Cultural da
Humanidade. Está localizado em 08º48'59" de latitude Sul e em 42º40'45" de longitude Oeste de Greenwich e
encravada no semi-árido, com um clima seco e quente e índices pluviométricos numa média de 550 mm/ano
(INMET, 1990).
A temperatura anual média compensada, no período de 1978 a 1989, foi de 26,8°C,
considerada elevada. As médias mensais apresentaram uma reduzida amplitude de oscilação no período
observado. Variaram entre 25,6°C, em março e 29,1°C, em outubro, com uma amplitude de 3,5°C. Nos
meses de agosto e novembro, oscilaram entre 27,1°C (agosto) e 29,1°C (outubro). A temperatura máxima
média foi de 33,9°C. Os valores apresentaram oscilações entre 32,1°C (fevereiro) e 36,3°C (outubro). A
temperatura mínima média foi de 20,9°C. A temperatura máxima absoluta registrada foi de 40,6°C em
21/12/82. Os valores da temperatura máxima absoluta oscilaram entre 37,3°C, em 28/07/83 e 40,6°C em
21/12/82. A temperatura mínima absoluta foi de 11,9°C em 08/01/92. As oscilações foram entre 11,9°C e
17,9°C em 20/04/78 (ARRUDA, 1997).
Já a temperatura média anual, no período de 1931 a 1990, ficou entre 24° e 27°; a mínima entre
21° e 24° e a máxima, entre 30° e 33° (INMET, 1990). A análise deste mesmo recorte apresenta dados
pluviométricos numa média entre 900 e 600 mm/ano, o que mostra que a média caiu, nos últimos anos, visto
que atualmente a precipitação média é de 550 mm/ano.
Os dados pluviométricos de São Raimundo Nonato, no período de 1978 a 1989 indicam que a
precipitação média anual chegou a 757,7mm. As precipitações anuais absolutas, entre 1978 a 1989, oscilaram
entre 418,7mm (1983) e 1.096,2 mm (1988), o que corresponde a uma amplitude de variação de 677,5mm,
ocorrendo ciclos de anos secos, com déficits; seguidos de anos chuvosos (ARRUDA, 1997).
A insolação no período de observação apresenta-se numa média de 2.738,3 horas por ano, num
regime em período de inverno seco (julho a setembro) a insolação média mensal atinge a maior média, 281,5
horas, com a média mensal máxima em agosto, 287,8 horas. Durante o período chuvoso (novembro a abril),
ocorre uma notável redução na insolação média mensal, que se limita a 119,9 horas, com a média mensal em
fevereiro de 164,2 horas (ARRUDA, 1997).
Nos meses de seca, a estação de São Raimundo Nonato registra umidade relativa de até 35%
em agosto. O balanço hídrico médio anual (1978-1989) observado na área de estudo foi de 866 mm. A
evaporação registrada de abril a janeiro permaneceu acima dos valores registrados para a precipitação, ou
31
Comunicação em diálogo estabelecido, durante o percurso entre o município de Coronel José Dias e São
Raimundo Nonato, entre pesquisadora e o então Secretário Municipal de Educação Raimundo Coelho de
48
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
seja, o balanço hídrico é negativo durante dez meses. Os déficits de água foram superiores a 100 mm de
junho a outubro, registrando 143 mm em setembro. Somente nos meses de fevereiro e março não houve
déficit, apenas reposição de água do solo (ARRUDA, 1997).
Os cursos de água nas áreas semi-áridas são intermitentes, sazonais, extensivas e irregulares,
dotados de fraquíssimo poder energético, relacionado ao ritmo desigual e pouco freqüente das precipitações.
Aí está localizada a área em estudo, na bacia do rio Piauí que corre de oeste para nordeste e tem por afluentes
os seguintes riachos: Umbuzeiro, Canário, Veredão, São Lourenço, Cavaleiro, Santa Tereza, Tanque Novo,
Bom Jesus, Angical, Lages, Mulungu, Boqueirão e Pedra Branca. E situada na confluência da Bacia
Sedimentar do Maranhão com a Depressão Periférica do Médio São Francisco. A área em estudo pertence à
região do pedimento, ao sul e a leste da Serra da Capivara, uma vasta planície, em vales suaves que correm
para a calha do rio Piauí (AB’SABER, 2003).
Segundo Pellerin (1991), a referida área se estende por três conjuntos geomorfológicos cujas
redes hidrográficas apresentam fisionomias, diferenciadas:
1. Os planaltos areníticos (chapadas) do reverso da Cuesta, com rede hidrográfica larga, vales paralelos
orientados no sentido norte-sul (riachos da Serra Branca, Boqueirão e Bom Jesus).
2. A zona cuesta (Serra Nova, da Capivara, Talhada), situada no reverso arenítico duro, apresenta uma rede
de canions dendriformes, em forma de estreitos corredores, que terminam em boqueirões, que são inundados
com chuvas intensas.
3. A região do pedimento, ao sul e a leste da Serra da Capivara, uma vasta planície, vales suaves que correm
para a calha do rio Piauí.
Essa última fisionomia, onde se localiza a área em estudo, dentre as três apresentadas, é a
melhor servida por águas superficiais, com várias lagoas, açudes, poços, cacimbas não perenes e captação de
água de chuva pelas cisternas.
Com efeito, o município de Coronel José Dias está localizado no contato de duas grandes
unidades morfo-estruturais: o escudo metamórfico sedimentar pré-cambriano e o planalto sedimentar
paleozóico do Piauí-Maranhão. Uma depressão de características semi-áridas, com altitude média de
400/300m, denominada pelo Radambrasil (1973) de Depressão Periférica do Médio São Francisco, com
superfície em forma de pedimento regular, com fraca declividade. Localizado a sul, o escudo está modelado
em terrenos cristalinos. Próximo à sede do município, encontram-se maciços calcários que são explorados
para a produção de cal.
Ao norte, está o Planalto da Bacia Sedimentar Piauí-Maranhão, uma superfície monótona com
estrutura predominantemente arenítica, altitude média de 500/600m e bordas em forma de escarpas
cuestiformes, representando o relevo mais importante da região (RADAMBRASIL, 1973).
Os solos, em geral, são areno-argilosos, ácidos, pobres em matéria orgânica e de baixa
fertilidade. Nos vales cortados pelo rio e por caldeirões, os terrenos são arenosos. Estão assim classificados:
metade é de latossolos; 20% são podzólicos; 20% são litólicos e 7% são bruno. Nos lugares, em que aflora o
cristalino, encontram-se depósitos naturais de água de chuva, escavados nas rochas pela erosão
(RADAMBRASIL, 1973).
Oliveira Filho, em 01/07/2004.
49
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
As formações de vegetação identificadas são: a Caatinga Arbustiva Densa do Reverso da
Cuesta; as Formações Arbóreas da Frente da Cuesta e das Ravinas: a Caatinga Arbustiva Aberta das Bordas
da Chapada; as Caatingas Arbustivas Arbóreas dos Vales e a Caatinga do Tabuleiro Estrutural (ARRUDA,
1997). A depressão periférica conta com as formações: Caatingas das áreas de Micaxisto; Caatingas dos
Batólitos Graníticos; Caatingas Degradadas dos Gnaisses e Migmatitos e Caatinga Arbórea Aberta dos
Maciços Calcários (ARRUDA, 1997).
A fauna do município de Coronel José Dias é marcada pela presença de animais de pequeno e
médio porte, compatíveis com as condições de vegetação e clima, como tatu bola [Tolypeutes tricinctus],
preá [Galea spixii], cotia [Dasyprocta cf. prymnolopha], mocó [Kerodon rupestris] e veado catingueiro
[Mazama gouazoubira]. Nas áreas mais úmidas, são encontradas: felinos como gato-macambira [Felis
tigrina], onças [Felis concolor e panthera onça], jaguatirica [Felis pardalis], também pacas [Cunniculus
paca], jacarés [Caiman crocodilus], cascavéis [Crotalus durissus cascavella], araras vermelhas [Ara
chloroptera], papagaios [Amazona aestiva] e outras. Na fauna de vertebrados do Pleistoceno, já foram
identificadas, aproximadamente, cinqüenta espécies, das quais trinta fazem parte da fauna atual da América
do Sul (GUÉRIN, 1996).
2.4.2.
Ordenação territorial
O município de Coronel José Dias possui perfil rural, o que o situa dentre as chamadas cidades
imaginárias, fenômeno da dupla ficção estatística e histórica, segundo o qual há uma crença de existência de
um intenso processo de urbanização no Brasil, que transforma a população rural em mera relíquia e por isso
há a falsa concepção de que são desnecessários estudos sobre estas populações, por que seria “gastar vela
com mal defunto” (VEIGA, 2003). De fato, o autor lembra a exigência de um olhar mais acurado sobre o que
se chama de cidade no Brasil, bem como sobre as fronteiras entre o rural e o urbano.
Nos marcos da definição de cidade do Decreto-Lei 311, de 1938, como sendo a sede dos
municípios (BRASIL, 1938), a política piauiense de retalhamento do estado em micro-municípios, conforme
os interesses circunstanciais deste ou daquele grupo político, como forma de distribuição do poder político,
transformou grande parte da população rural em urbana, a toque dos decretos-lei. Assim se pode considerar o
município de Coronel José Dias, com 4.416 habitantes, sendo que 1.012 moram na sede do município e 3.404
fora da sede, com densidade demográfica de 2,15 hab/km, que tem sua principal fonte de renda na agricultura
e pecuária. De fato, só a força de um decreto-lei para chamar a sua sede de cidade, pois não há ali vestígios
de traços estruturais e funcionais que façam lembrar urbanização.
Já quanto à estrutura fundiária, esta não mantém as feições do início da colonização, com
estrutura latifundiária. Atualmente, é formada, em sua maioria, por micro e pequenos imóveis, sendo que
cerca de 80% destes possuem área de até 100 hectares. Somente um proprietário tem área superior a 2 mil
hectares, totalizando a estrutura agrária do município em 37.724 hectares (SECRETARIA..., 2003).
Efetivamente, quanto à economia local, esta se alicerça na tradição agrícola e pecuária, mais de
médios e pequenos animais do que de grande e com produção agrícola de sequeiro. O gado vacum é criado de
forma extensiva.
50
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
De fato, as características rurais e agrícolas do município contribuíram na definição da
população e área de adensamento da pesquisa: as comunidades rurais de Barreiro Grande, Barreirinho e a
antiga Rua Velha, sendo que esta última, atualmente, faz parte da sede do município, embora se mantenha
com aspectos rurais. O critério para a escolha se funda no fato de as três unidades territoriais partilharem uma
mesma origem, a fazenda Várzea Grande, uma mesma tradição oral explicativa da história do grupo, um
mesmo ancestral, conforme atesta Godoi (1999). Especialmente, a escolha se deu por a população se
caracterizar como camponeses do sertão do semi-árido, tema central deste trabalho.
A sede do município é composta por duas comunidades Barragem e Bairro São Pedro, embora a
população se refira sempre à sede como sendo só a Barragem.
A denominação da comunidade do centro se dá em função de uma barragem que há na entrada
da comunidade, na direção do acesso a São Raimundo Nonato. A comunidade Barragem possui em torno de
duzentas residências de alvenaria, cobertas de telhas, a maioria ligada uma à outra, com cores amenas, em
tom envelhecido, embora denuncie uma idade recente. Com efeito, são cores desbotadas pela força do sol ou
pela qualidade inferior da tinta. Essas casas estão distribuídas ao longo da BR 020, em que fica a avenida
central, muito larga, que nem aparenta ser uma avenida só, mas duas ruas, cada uma limitando-se com a BR,
com um jardim de plantas, algumas da caatinga e um chafariz entre a fileira de casas e o limite com a BR. O
referido jardim é fruto de um projeto financiado pelo poder público para arborização da avenida, movido
pelas concepções de convivência com o semi-árido, trabalhadas no Projeto Fecundação32. É recente e já conta
com dificuldade de manutenção pela escassez de água no período sem chuvas. Nos festejos do padroeiro (São
Pedro), que acontece no mês de junho, esta área serve para acolher as barracas dos diversos comércios que ali
se instalam.
No festejo de 2004, havia dez barracas, duas com paredes de varas e oito com paredes de palhas
ou rodeadas por cercas de arame. Tetos recobertos por uma fina camada de palha, de forma que não vedava,
apenas dava uma proteção parcial, permitindo ver lua e estrela, no horário mais freqüentadas. Todas com
venda de bebidas alcoólicas, refrigerantes e comidas típicas: carne de sol, galinha, carne de bode refogada,
beijus, dentre outras. A freqüência era grande. Muitas pessoas – homens, mulheres, jovens, crianças,
sentavam-se ao redor de pequenas mesas, consumindo bebidas alcoólicas, refrigerantes e comidas ou
trafegavam entre as barracas e a fileira de casas da avenida, num movimento contínuo nos clubes dançantes,
cada um deles com uma banda tocando ritmos baianos e forrós, numa mistura de sons que se somava à
música mecânica das barracas (forrós e ritmos baianos). Esse desconforto auditivo era multiplicado pelo
barulho de motos, que circulam pelo local.
De um lado da avenida central, além das residências, há o Sindicato de Trabalhadores Rurais,
dois clubes dançantes, uma pensão, Igreja, casa paroquial, centro de formação, escola e estabelecimentos
comerciais, entre estes, bares, mercearias e outros. Do outro lado, também há residências, pensão,
estabelecimentos comerciais, um posto de gasolina em construção, roças e currais. Atrás de cada um dos
lados da avenida, há residências, uma pequena praça, a prefeitura, um outro clube dançante e
32
O Projeto Fecundação é uma atuação de ONGs: Cáritas Brasileira – Regional Piauí e Instituto Regional da
Pequena Agropecuária Apropriada – IRPAA em parceria com o poder público municipal e financiado pela
Cáritas Alemã, que está sendo desenvolvido no município desde 2001. O projeto é composto de três linhas de
ação: iniciativas produtivas, recursos hídricos e educação para convivência com o semi-árido.
51
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
estabelecimentos comerciais. A praça é muito pequena, murada com uma grade acima do muro, com
bastantes plantas e algumas flores vermelhas e amarelas.
As residências são modestas, de adobe cru e algumas de tijolos de cerâmica, cobertura de
telhas, tamanho mediano, com dois ou três quartos, pisos de cimento grosso e algumas com piso de cimento
liso. Os tetos das casas, nesta comunidade, revelam uma adaptação às condições climáticas: são construídos
com os dois lados confluindo para uma bica central, que serve para escoamento da água e sua devida
captação para uso doméstico. Justificam que, assim, economizam com as bicas para colher água da chuva,
sendo que em vez de duas, fazem apenas uma. Algumas poucas casas demonstram nível social diferenciado,
sendo maiores e construídas com material de custo alto.
No sentido norte-sul, à direita, há um acesso à Cerâmica Serra da Capivara e ao percurso
boqueirão da pedra furada do Parque Nacional da Serra da Capivara. O referido acesso é feito em estrada de
terra, que se encontra em estado crítico de conservação, com muita poeira, disposta num beco entre duas
roças com cercas de arame, passando por uma baixada, na verdade, um leito seco por onde corre um riacho
em períodos chuvosos. Há relatos de que, quando as chuvas são intensas, a passagem fica impedida.
Este é o acesso de ligação entre a comunidade Barragem e a comunidade bairro São Pedro,
antiga Rua Velha, que compõe a sede do município, embora haja uma nítida separação física e social entre
ambas, sendo o segundo considerado de origem popular.
O bairro São Pedro começa a partir do beco do acesso já referido, que se bifurca em dois, após
três casas, confluindo ambos para a área central da comunidade. Esta é uma área retangular com uma igreja
no centro, um grande espaço vazio, onde, segundo contam, havia uma feira em tempos antigos. Esta área é
ladeada por residências, um clube dançante e uma escola desativada, a primeira escola da comunidade. O
lado esquerdo do retângulo (sul-norte) segue rumo norte, com diversas casas e roças, sendo que, numa destas
roças, há as marcas da antiga sede da Fazenda Várzea Grande.
Ao todo, a comunidade possui setenta e cinco casas, dentre estas seis desabitadas, um delas em
ruínas, num total de sessenta e nove famílias. Além da referida escola desativada, há dois chafarizes e um
“tanque” (açude).
Do lado esquerdo da comunidade, ladeando o açude, há uma via de acesso ao parque e a outras
comunidades do município. É uma estrada de chão, em bom estado de conservação, disposta num beco entre
roças. No percurso, há um pequeno barreiro, que seca logo no primeiro mês de sol, vários pés de juazeiros, de
um verde mais intenso ainda ao contrastar com o cinza da caatinga mais herbácea e arbustiva no início do
percurso e mais arbustiva e arbórea nas proximidades do Parque Nacional da Serra da Capivara.
O tipo herbáceo da área pesquisada, segundo pesquisa da FUNDHAM (1998), é pouco
desenvolvido, mede de 0 a 0,5 metro, cobertura inferior a 10%; o tipo arbustivo baixo é uma espécie que
mede de 2 a 4 metros, com cobertura de cerca de 30%; o tipo arbustivo alto é composto de arbusto e muitas
trepadeiras, medindo de 2 a 4 metros, com taxa de cobertura da área em torno de 75% e o estrato arbóreo
baixo tem cobertura menor, em torno de 10%, composto por árvores de 6 a 8 metros. Consiste numa
formação vegetal característica de caatinga arbustiva densa, em que se podem encontrar, nos terrenos planos,
manchas de caatinga arbustiva e arbórea, nas vegetações das proximidades dos vales. A cobertura do solo
pela vegetação e folhas secas e outros detritos é de 5%, já a cobertura por seixos é significativa entre 15 a
25%. Todos os estratos herbáceos perdem as folhas na estação das secas pelo processo de caducifolia, dando52
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
lhe um aspecto de mata seca, garranchenta e espinhosa. Tais espécies têm aproximadamente de 10 mil a 12
mil anos de história de adaptação ao calor e a muitas horas de insolação durante o ano.
Depois de aproximadamente 2,5 km de percurso, encontra-se a primeira residência da
comunidade Barreiro Grande. Ao todo, são dez residências conjugadas com roçados, todas de tijolos e telhas.
Três delas estão desabitadas, uma habitada parcialmente (a família mora na sede do município, só a figura
masculina do casal vem diariamente cuidar da roça e dos animais), totalizando seis famílias residentes. As
casas estão distantes uma das outras, ao longo do vale, encaixadas nos micaxistos sobre os solos mais férteis.
Há ainda um total de dezesseis roças a partir do acesso, incluindo a comunidade, além das roças
vizinhas às residências; dois apriscos; uma casa de mel desativada; um “tanque” (açude), dois “caldeirões”
(cisternas).
Na seqüência, encontra-se a comunidade Barreirinho, disposta na mesma conformação física da
comunidade anterior: um corredor, uma espécie de zona intermediária33 entre o “baixão” e a “chapada”34. A
estrada passa muito próximo das casas, ficando pouco espaço para os quintais, já que no fundo estão as roças
e, mais adiante, a Serra da Capivara.
São dezenove residências conjugadas com roças, sendo que duas estão desocupadas e uma delas
em ruínas. Há ainda três casas com currais e uma cerâmica onde se trabalham os motivos baseados nas
inscrições rupestres do Parque.
A terra está loteada em parcelas entre vinte e quarenta hectares, todas compostas das três
especificidades: área de baixão, zona intermediária e chapada. As roças são feitas, preferencialmente, nos
baixões, mas também nas chapadas.
Sueli: o senhor tem terra?
Manoel Lourenço: tenho, tenho dez hectares de terra.
Sueli: Já tá toda explorada?
Manoel Lourenço: tá não, tem muita caatinga ainda. Só trabalha aqui onde você
tá vendo aí. Nesse trecho que você tá vendo aí.
Sueli: é de chapada ou de baixão?
Manoel Lourenço: tem chapada e tem baixão. Planta mais no baixão, mas planta
também na chapada, faz uma rocinha e planta milho, feijão, melancia, mandioca.
No baixão, também planto feijão, milho, melancia, mandioca, abóbora. Tudo dá
bastante, mas no baixão dá melhor. (comunicação oral)35
Como se pode notar, a ordenação territorial do sítio apresenta um modo de vida amplamente
permeado por aspectos tipicamente rurais. Seja nas moradias conjugadas com as roças, nas práticas culturais
no processo de apropriação da natureza, seja nas imagens, discursos e representações sociais, o que
fundamenta a escolha para o adensamento da pesquisa.
33
O que chamo aqui de zona intermediária é uma espécie de transição entre as chapadas e os baixões,
contendo características de ambos, ou seja, contém focos de umidade, típica dos baixões, mas também de
terras mais secas, características das chapadas. As práticas também se mesclam: plantam e criam.
34
Para Godoi (1999) a espacialidade referida organiza-se claramente num par de oposição – baixão/chapada
– que assim se estabelece devido à forma diferenciada de ocupação. No baixão, há mais umidade, o que
favorece a agricultura e as chapadas são utilizadas como fonte de recursos naturais. No trabalho de pesquisa,
também constatei o par de oposição e entre os dois opostos há o que chamo de zona intermediária, referida na
nota acima.
35
Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com Manoel Lourenço Paes.
53
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
2.5. Território: ancestralidade e localismo na construção da identidade sertaneja
2.5.1. As conquistas de Vitorino e a relação de parentesco na memória mítica
Todo esse conjunto forma um território único, que tem origem no povoamento da região. A
comunidade bairro São Pedro foi a sede da fazenda, o primeiro povoamento da área, a partir da ação
colonizadora. As duas comunidades Barreiro Grande e Barreirinho formavam o fundo de pasto da fazenda,
área de pastagem dos animais, como já referido, embora haja quem diga que a sede da fazenda era mais
próxima da serra que era para espantar os índios: “E aí se estabeleceu por aí. Ele ficou onde é hoje a sede,
onde fica hoje o sítio do Mocó36, ficou pra lá com a esposa. E nesse tempo que ele chegou, os habitantes
ainda eram os índios” (comunicação oral).37 Ficando a sede da fazenda na barragem, no barreirinho ou no
sítio do mocó, tratava-se de apenas um território, o do processo de colonização do lugar.
Há na memória do lugar, a dizibilidade de que o seu ancestral comum, o véio Vitorino, ganhou
as terras por ter matado os índios, sendo agraciado com três fazendas: Serra Nova, Boqueirãozinho e Serra
Talhada. A Fazenda Serra Nova passou a chamar-se Fazenda Várzea Grande, em 1º de abril de 1855,
conforme documento (figura 8), estando encravada no Distrito Eclesiástico de São Raimundo Nonato.
Sim, era o bisavó de minha mãe. Isso aqui era uma mata, só tinha caboco brabo,
ele morava na lagoinha ali embaixo. Aí depois que ele correu com os cabocos,
tinha muito aqui na Serra Nova, depois que ele foi na Teresina, o governo deu
essa fazenda pra ele da Barragem até o Sítio [grifo meu]. Era o que eu ouvi
falar. Os mais velhos. Aqui era só uma matona, ele queria situar, como assituou,
esse baixão era um rio de água, tinha todo bicho aí. No tempo dos cabocos,
antoce era essa mata aqui, aí disse que mataram um filho dele e foi brigando
mais os cabocos, aí ele botou pra correr, que diz que aqui era uma aldeia
(comunicação oral)38.
A fala acima enuncia a história de ocupação do lugar, o conflito no processo de apropriação,
“correu com os cabocos” (os índios), e a representação das populações locais (os índios) como extensão da
natureza. De fato, como já apontado por Godoi (1999), há uma memória mítica que une as pessoas do lugar:
a história da ocupação original, a do Vitorino Dias Paes Landim, que cada um conta à sua maneira, mas sem
deixar de registrar as marcas da violência em que se deu o processo e sem deixar de se incluir na relação de
parentesco com este ancestral:
Geraldina: o Vitorino chegou aqui, ele foi que desabitou os índios daqui, foi, foi.
Desabitou. Quando ele chegou aqui, só tinha índio. Aí ele chamou a família dele
toda aí começou. Tem muito parente dele aqui (comunicação oral)39.
36
A comunidade Sítio do Mocó fica muito próximo da serra, no reverso da cuesta.
Entrevista realizada na comunidade Barreiro Grande, em 31/05/2004, com Marciano de Sousa Lima.
38
Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com Manoel Lourenço Paes.
39
Entrevista realizada na comunidade Bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Geraldina Dias da Costa.
37
54
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
O relato acima aponta para um tempo da natureza (presença de índios) e outro da cultura
(chegada de Vitorino), naturalizando o processo de ocupação, sem o reconhecimento de apropriação do que
já estava apropriado pelo ato de “desabitar” os índios.
Nesse processo, as falas enunciam uma ancestralidade latifundiária através de uma posse
tomada, nos marcos do sertanismo de contrato:
Naíldes: tinha três fazendas aqui quando o Vitorino tomou posse, era três
fazendas: fazenda boqueirãozinho, fazenda serra talhada e fazenda serra nova.
Essa fazenda serra nova passou a fazenda várzea grande, quando foi criado o
povoado, aqui ainda era a fazenda (comunicação oral)40.
A memória legitimadora traz à tona a “posse tomada” com a desabitação dos índios. Justificase, com a força do documento escrito, o prêmio por heroísmo: o ancestral venceu batalhas por isso ganhou
grande extensão de terra.
Beloniza: esse Vitorino, por que ele foi um dos vencedores da batalha do
jenipapo, ele foi chamado e ele foi se representar lá com o batalhão dele e lá
venceu e aí o governo falou pra ele que escolhesse uma dessas três fazendas
(comunicação oral)41
Naíldes: foi no dia primeiro de abril de mil setecentos e cinqüenta e cinco, tá lá
em casa escrito, quando ele recebeu essas terras, tá tudo escrito (...) do tio
Sancho, tá escrito a data que ele recebeu essas terras e fala na batalha que ele
venceu. Fala que ele expulsou os índios (comunicação oral)42
Com efeito, a representação de uma ancestralidade heróica é confirmada na dizibilidade
comum, o que se confirma no trecho abaixo:
Dona Alta: era. O Marciano, meu marido, era parente do Durão.
Sueli: quem era o durão?
Dona Alta: era o Vitorino. Dizem que era valentão. Eu conheci uma boa parte do
povo dele, mas não foram os velhos de primeiro não. Já foram os novatos. Ainda
conheci (comunicação oral)43
O depoimento abaixo enuncia elementos que modificam a história, mas confirmam as
representações da ancestralidade heróica, violenta, astuta, com fortes laços familiares, com o acréscimo de
legitimação por defesa (“os índios mataram um filho dele”), pelo Estado e pela religião. Alude também o não
extermínio cabal dos índios “quando vieram dar conta que estava era acabando com eles (...) aí
desapareceram”. Nesse sentido, os índios não teriam morrido todos, mas sim ido embora para se salvar44:
A árvore genealógica da gente é muita coisa. O certo é que de acordo com o que
eu investiguei eu sou descendente dele. Eu já ouvi muito falar muita coisa, uma
delas contada pelo Durval, que tá muito doente, não dá mais conta de contar. Eu
vi uma vez ele contando que o Vitorino veio de São Paulo, segundo o Durval.
40
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes.
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Beloniza dos Santos Paes.
42
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes.
43
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Alta Maria dos Santos.
44
Como observação adicional, esta fala pode ser tomada, metaforicamente, como significativa no âmbito da
questão piauiense em torno da existência ou não de remanescentes indígenas no Estado.
41
55
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Diz que ele mexeu com uma moça, que diz que era até freira, aí ele não queria
casar com a moça e ela era de uma família boa de condição. Naquele tempo não
existia nem transporte ainda. Aí arrumaram umas pessoas e jogaram ele de lá pro
Nordeste. Aí ele chegou na Bahia, em Casa Nova, lá casou com uma moça, de
uma família política forte lá da cidade, e aí com o tempo se envolveu numa
revolução, numa guerra aí, foi quando ele veio pro Piauí, lutando pra defender. E
aí quando concluiu, combateu os adversários, o governo procurou o que ele
queria em troca do trabalho dele, aí ele preferiu essa fazenda aqui, a Fazenda
Várzea Grande. E aí chegou por aqui já acompanhado pela esposa, com os filhos,
uma irmã com o esposo também. E aí se estabeleceu por aí. Ele ficou onde é hoje
a sede, onde fica hoje o sítio do Mocó, ficou pra lá com a esposa. E nesse tempo
que ele chegou, os habitantes ainda eram os índios. A história que eu ouvi falar é
que de início ele não mexeu com eles, foi cuidando em trabalhar sem bulir com
eles. E aí, não sei o que aconteceu, os índios mataram um filho dele, aí, a partir
desse acontecido, ele procurou matar os índios, por que eles tinham matado
primeiro o filho dele, enquanto não acabou com eles não parou. Até conta essa
historinha que ele fazia era pegar um bacamarte e entrava pra essa margem aí de
serra, a serra nova, a procura mesmo como o caçador procura as caças no mato.
E aconteceu, um dia, que andava procurando eles quando se encontrou puxou o
gatilho e não funcionou aí, pra se defender, ele correu, mas sabia de uma árvore
que cabia uma pessoa dentro, tinha uma fenda muito grande, ele entrou lá,
conseguiu entrar, aí tava tudo molhado, os índios saíram atrás dele, quando um
chegou pra pegar ele, aí ele matou um, entrou outro, ele matou também, aí eles
desistiram, correram e ele correu pra morada dele, foi se preparar pra combater
com mais afinco. E ele fez foi uma coisa forte, contratou músico pra tocar,
chamaram os índios, o padre, o padre era pra ir consagrando os índios pra morrer
e outros era pra ir degolando. Aí era morrendo índio, os índios admirados com os
preparos da festa e morrendo tudo. E aí quando eles vieram dar conta que estava
era acabando com eles, já tava um número muito pequeno, aí esses
desapareceram, aí o Vitorino ficou a vontade, não teve mais com quem
combater, foi viver sua vida tranqüilo, construindo até morrer, que nem sei o
final como ele morreu. Contam que ele era um homem muito forte, que ele
matava um boi com um murro (comunicação oral)45.
Nas estratégias de reprodução social do grupo que se constitui a parte dessa ancestralidade
heróica, a relação de parentesco é uma forma de inclusão social, pela genealogia, naquele território. Quem
não se vê como parente sanguíneo põe-se numa posição de parente por afinidade, através, por exemplo, da
aliança matrimonial:
Silvera: foi nesse tempo mesmo. No tempo daquelas maniçobas apareceu muita
gente de fora pra trabalhar, os que apareceram, um bando deles ficou por aqui
mesmo.
Sueli: casaram com as moças daqui?
Silvera: é, casaram com as moças daqui e aqui mesmo ficaram.
Sueli: as moças daqui naquele tempo casaram tudo?
Silvera: casaram, muitas casaram. Vinha gente de fora, casava aqui mesmo
ficava, mas agora vem muita gente de fora, se ilude com um com outro e quase
nada dá certo. De primeiro dava tudo certo, agora é que não tá sendo
(comunicação oral)46
Sueli: na época da maniçoba veio muita gente de fora pra cá?
Dona Isabel: a época da maniçoba foi em dezesseis, dezesseis pra vinte, até trinta
ainda tiravam maniçoba. Veio muita gente de fora, da Bahia, do Pernambuco e se
45
46
Entrevista realizada na comunidade Barreiro Grande, em 31/05/2004, com Marciano de Sousa Lima.
Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 30/05/2004, com Silveira Pereira Paes.
56
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
casaram tudo aqui. Mas era pobreza, pobreza, as pessoas que vinham de fora
passavam muita fome, uma fome terrível (comunicação oral)47
O passado comum serve de matriz (habitus) para os atuais laços de uma família só, um
pertencimento comum, a comunidade nessa lógica camponesa:
Dona Isabel: tem. O Vitorino era Paes Landim e Dias. Os mais velhos tudo têm
Dias pelo meio. Aqui é uma irmandade muito grande. Uma família só. O
Vitorino era tataravô nosso, o compadre Sancho é que dizia (comunicação
oral)48.
Sueli: vocês têm parentesco com o Vitorino?
Gérson: sim, meio longe, mas sim. Aqui todo mundo é parente dele de qualquer
maneira. É parente mesmo, eu falei longe, mas não é tão longe assim não, meu
bisavó já vem ser primo dele, por longe, mas de certa forma é da família
(comunicação oral)49
A este passado mítico comum, a memória coletiva procura agregar uma imagem mais recente,
mas devidamente ligada à primeira: o Coronel José Dias, como parente do Vitorino Dias Paes Landim:
Sueli: e o Coronel José Dias?
Dona Isabel: era daqui também. Era parente do Vitorino, da mesma família. O
pai dele chamava-se Mariano. O Coronel José Dias era um velho muito bom,
esse eu conhecia. Era amigo da gente, era muito meu amigo. Era amigo desse
povo todo. Era amigo dos parentes. Esse povo quando ia lá na casa, ele recebia
tudo muito bem. No começo da vida dele, ele vivia de roça. Depois ele virou
promotor, advogado. Era grandão. Casou a família tudo com gente rica e aí foi
levantando.
Sueli: e ainda tem parente dele por aqui?
Naíldes: sim, por que ele foi uma pessoa, um desbravador, lutou muito por essa
terra aqui, como advogado, como promotor, foi promotor de justiça e advogado,
chegava o pessoal daqui, dos familiares deles, qualquer coisa que queriam, ele é
que resolvia tudo pelo pessoal daqui, pros familiares do coronel e foi quem
arrumou pra que aqui passasse a povoado com esse nome Várzea Grande, foi ele,
foi quem criou a primeira escola pública, foi ele, no antigo povoado foi ele. Ele
tinha as raízes dele aqui plantadas, foi quem trouxe o desenvolvimento pra cá, o
desenvolvimento pra que passasse, primeiramente passou, aqui num era
nem....(comunicação oral)50
Sueli: e do Coronel José Dias?
Gérson: mais próximo, meu avó era primo dele (comunicação oral)51
Nesta associação, ressalta-se, no entanto, uma diferença entre as duas imagens: a de Vitorino
associado à violência e a de Coronel José Dias, a de liderança, como se a imagem de um fosse a correção da
imagem do outro:
Naíldes: Até que a Niede Guidon botou aí nos jornais que tinham colocado o
nome da cidade o de um matador de índios, a família do Coronel José Dias até já
47
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira.
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira.
49
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos.
50
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes.
51
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos.
48
57
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
colocou advogado. O Zé Dias não tem nada a ver com isso, quando ele nasceu,
não existia mais índio aqui não. Quem achou índio foi o Vitorino. O Zé Dias era
da época de papai, da era de 1800, papai era de 28 de dezembro de 1879. Então o
Zé Dias era mais velho do que o papai, mas era pouco. Era dessa época também.
E essa história do Vitorino era do outro século, então quando o Zé Dias nasceu,
que ele não foi nem criado aqui, saiu daqui menino, não tinha mais índio aqui
não. Os índios já tinham sido expulsos, ele não tem nada a ver com os índios.
Agora o velho, que foi o primeiro que chegou aqui, esse sim, foi quem expulsou
e tomou conta das terras aí (comunicação oral)52
Pode-se inferir, então, que, de fato, nos níveis local e regional, há uma identidade espacial
construída e em processo de construção contínuo, com passado, presente e perspectiva de futuro, em
imagens, simbologias e discursos, representações no sistema de imaginário social, por ser este, como dito por
Morin (2001) um sistema fechado e aberto. Por um lado, fecha-se, reagindo às intervenções violentas, sendo
a estas ora mais, ora menos vulneráveis. Por outro lado, essa vulnerabilidade é, também, sua capacidade de
abertura para dialogar com outras identidades, o que lhe dá o caráter, permanentemente, processual.
A espacialidade referida entrecruza-se com as temporalidades num processo intercultural que
enuncia as identidades. No caso, as imagens e suas simbologias indicam representações sociais que delineiam
uma territorialidade mais ampla, o semi-árido, a comunidade, o território Várzea Grande, um código de
pertencimento, o passado comum a partir do tronco véio Vitorino, que deu origem à grande família.
Aprofundando os sentidos da construção da espacialidade, a partir dos significados atribuídos localmente,
abordarei, no próximo capítulo, o sistema do lugar.
52
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes.
58
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
CAPÍTULO III
O SISTEMA DO LUGAR E SUAS INTERLOCUÇÕES NOS LABIRINTOS SEMI-ÁRIDOS DA
VIDA SERTANEJA
Neste capítulo, aborda-se o sistema do lugar como algo que possui um eixo norteador e, ao
mesmo tempo, não é estático no tempo e no espaço. Para tanto, analisa-se um itinerário histórico que se pode
denominar cultura camponesa local e sua ancoragem, o sistema do lugar, em suas relações interculturais em
temporalidades diversas.
3.1. Habitus e os princípios sistêmicos
O lugar existe não apenas por sua materialidade, mas também pelo que é dito e visto, ou seja,
pelos discursos e pelas imagens tradutoras das representações sociais que emergem do conjunto de relações
sociais, inclusive, com a natureza. Assim, constituem-se campos de memória, que se entrelaçam formando o
tecido sócio-espacial do sistema do lugar (GODOI, 1999), ao sabor das relações de poder, práticas culturais,
experiências de vida, costumes, imagens dos indivíduos, da natureza e da apropriação da natureza pela
cultura. Enfim uma multiplicidade dinâmica e histórica, em que cada contexto acomoda, em seus campos de
memória, produzidos também pela mesma dinâmica, as estruturas do sistema do lugar.
A concepção de sistema do lugar, no caso, vincula-se estreitamente à relação entre cultura e
natureza e dialoga, teoricamente, com a categoria habitus (BOURDIEU 1994)53 e com a visão sistêmica de
autores como Morin (1982, 1999 e 2001) e Prigogine (1996).
Para Morin (2001), em sua teoria da complexidade, numa perspectiva não-reducionista e póscartesiana, ainda em gestação, a visão sistêmica parte da concepção sobre sistema de idéias, definido como:
Uma constelação de conceitos associados de maneira solidária, cujo
agenciamento é estabelecido por vínculos lógicos (ou com tal aparência), em
virtude de axiomas, postulados e princípios de organização subjacentes. (...) As
idéias reunidas em sistemas (...) podem ser consideradas como unidades
informacionais/simbólicas que se atraem em função de afinidades próprias ou de
princípios organizacionais (MORIN, 2001: 158)
Os sistemas de idéias são dotados de um núcleo com axiomas, regras fundamentais que o
legitimam e de subsistemas dependentes e interdependentes que lhes dão segurança, comportando assim
auto-organização e autodefesa. No corpo da idéia de sistema, constam as noções de ordem, desordem e
organização, intrínsecas a todos os sistemas, de modo que ordem-desordem é uma relação de dimensões
inseparáveis que tende a estabelecer a organização. Nesse sentido, o movimento entre equilíbrio e
desequilíbrio é, de fato, uma espécie de desordem organizadora, visto que a perturbação, o desvio, a
dissipação (fora de equilíbrio) podem produzir uma estrutura, ou seja, uma nova organização e equilíbrio
(MORIN, 1982).
59
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Este autor considera o referido processo como sendo fundamental à evolução do universo, na
medida em que é norteador da relação dialógica e ao mesmo tempo una, complementar, concorrente e
antagônica. Tudo isto aponta para a idéia de sistemas abertos e fechados ao mesmo tempo: fechados para se
proteger e abertos para se alimentar, o que, por sua vez, indica os três princípios sistêmicos que se interrelacionam: o dialógico, o recorrente e o hologramático.
O princípio dialógico consiste em manter a unidade de noções antagônicas, ou seja, unir o que
aparentemente deveria estar separado, o que é indissociável, com o objetivo de criar processos organizadores
e, portanto, complexos. Nesse sentido, retoma-se, como referido por Morais (1992), a questão da relação
entre natureza e cultura, separadas, no mundo ocidental, por um abismo ontológico. Trata-se, portanto, de
repor esses dois termos em sua indissociabilidade e aprofundar a natureza dos seus diálogos, no caso em
questão, envolvendo populações humanas e o ambiente semi-árido.
O princípio recorrente é o que nega a determinação linear, que promove a criação de novos
sistemas, podendo ser esta criação entendida como processos em circuitos, de modo que os efeitos retroagem
sobre as causas desencadeadoras. É mais que um circuito e que uma retroação reguladora, presentes na
cibernética. É um processo organizador necessário e múltiplo que envolve tanto a percepção como o
pensamento. Nesta dimensão, tem-se o próprio objeto de estudo aqui apresentado, tratando-se, portanto, da
recorrência entre imaginário social, habitus e práticas socioculturais no referido ambiente.
O princípio hologramático apresenta o paradoxo dos sistemas em que a parte está no todo assim
como o todo está na parte, como supõe a dialética. É como a totalidade do patrimônio genético que está
presente em cada célula. Concebe a imagem física do holograma, que concentra em si todos os pontos e é
projetada no espaço em três dimensões. Sua projeção remete à imagem do objeto hologramático com
sensações de relevo e de cor. O rompimento de uma imagem hologramática não apresenta imagens mutiladas
ou fragmentadas, mas imagens completas multiplicadas. Nesse sentido, por exemplo, pode-se tomar o estudo
de caso localizado, em suas especificidades, numa determinada região do semi-árido piauiense, para
compreendê-lo em si e em seus diálogos com totalidades mais abrangentes, desconstruindo e reconstruindo
os diversos níveis de totalização que se encontram imbricadas na análise: Brasil, Nordeste, Piauí, Coronel
José Dias e comunidades de adensamento da pesquisa: bairro São Pedro, Barreiro Grande e Barreirinho.
Essas concepções contribuem na fundamentação do que estamos considerando sistema do lugar.
Algo que não é fixo, embora tenha suas estruturas de auto-produção e reprodução, o seu eixo norteador, o seu
habitus. E foi sobre esse sistema do lugar que nos debruçamos na pesquisa, focando-o na sua peculiaridade
relacional entre cultura e natureza, ou melhor, sobre os processos culturais de apropriação da natureza, com o
fito de examinar mais de perto o imaginário social que se encontra presente no processo de condução do
território investigado, numa situação de crise eco-social, assim como de imaginários outros que apontam para
a busca de solução dessa crise.
Para tanto, a pesquisa de campo permitiu focar o objeto sistema do lugar, na sua especificidade
relacional entre natureza e cultura, vivenciando uma crise eco-social com origem em relações de um passado,
que encontrou estruturas no presente para se revitalizar. O conjunto crísico do presente foi analisado em
53
Como referida na introdução e no capítulo I desta dissertação.
60
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
diálogo com dois outros momentos do passado, como parte de um mesmo processo violento de intervenção
no referido sistema do lugar.
Os discursos e as imagens são trabalhados com base nas três conjunturas: a intervenção da
cultura colonizadora, a intervenção da exploração da maniçoba e a intervenção da cultura de preservação
ambiental, no ambiente semi-árido do sudeste piauiense, mas precisamente, no território Várzea Grande.
3.2 A instituição social da cultura camponesa no semi-árido piauiense: inícios
Não há muitos registros de pesquisa sobre cultura camponesa na região investigada. Obra
importante e referencial é a de Godoi (1999) que aborda trajetórias e modo de vida dos camponeses daquele
sertão, como referido no Capítulo I desta dissertação. Como se infere desse estudo, a cultura camponesa local
nasce do assimétrico encontro entre cultura européia colonizadora e o sistema do lugar dos povos nativos,
dando origem à tradição do véio Vitorino (GODOI, 1999) e com ela a tradição camponesa. Assim, com base
na referida autora e retomando a memória local camponesa sobre seus mitos de fundação, foi explorado,
nesta pesquisa, o processo de instituição da cultura camponesa local e seu imaginário da relação entre
natureza e cultura, pensando, então, o sistema do lugar, em sentido amplo, supondo a cultura material e
imaterial.
Como ocorreu em outras partes do território brasileiro, também no sudeste piauiense, através da
violenta intervenção colonizadora, as populações locais, chamadas de índios, foram mortas ou expulsas,
tiveram suas terras usurpadas e, em grande parte, seus saberes ignorados, sendo tomadas como extensão da
natureza e expulsas para espaços selvagens e para um tempo fora da história. Em lugar das relações entre
natureza e cultura pelas quais as populações nativas exerciam baixa predação antrópica no ambiente natural,
estabeleceu-se a espécie de contrato socionatural e político, que vigorou até o final do século XIX, na região,
e que está na origem da territorialização fundada em grandes fazendas de gado vacum.
De fato, esse processo deu-se por confrontos tanto entre natureza e cultura quanto entre
culturas. No primeiro momento, num dos pólos, estão os índios, tidos como natureza, e quase exterminados.
No outro, os colonizadores que impõem um padrão determinado no âmbito do qual os vestígios culturais dos
dominados ganharam o contorno de cultura ameaçada (GRUZINSKI, 2003), por isso assimilada à cultura do
vencedor, em cujo processo de implantação foi sendo estabelecido um outro habitus, que possibilitou o
surgimento da cultura camponesa, uma síntese das culturas originais em confronto.
A quase dizimação das populações locais originais, das quais restam apenas vestígios culturais
de forma submersa, levou consigo, em grande parte, o habitus que permitia criar outras estratégias de
convivência com as condições ambientais. Ao longo de dois ou três séculos, esse processo acabou por gerar
uma cultura de flagelados da seca, fruto do descompasso entre condições ambientais, ações humanas, quer
individuais, quer em forma de políticas públicas, que provocam situações de crise ecológica e social, como
referida na fala transcrita a seguir:
Olha, lá tinha uma velha, eu alcancei, tinha uma velha Beduína, ela contou que a
seca de setenta e sete [1877], ela era menina, a mãe tinha morrido, lá era fazenda,
não tinha cidade não. Aí ela disse que quando ficou com os meninos aí a seca
escanchou. Aí ela disse que ia na casa da iaiá, vou já na casa da iaiá, a iaiá dava
61
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
uma coisinha, dava um jerimum. Quando foi um dia tava tudo acamado com
fome, tudo cum fome, deitado. Aí ela disse, oh, meus filhos, eu vou caçar o que
vocês comerem aí pegou uma faca e uma cuia, uma cuia grande e foi no rumo do
Canto do Buriti. Lá no pé daquela serra, lá morria muito gado, morria muito
gado, chegou lá. Gado gordo, morria de sede, na beira da lagoa não tinha mais
água, só tinha lama. Eles chupavam ali, depois caiam. Aí ela disse que achou
uma vaca morta, o urubu ainda não tinha bulido. Foi com uma faquinha, tirou o
couro, tirou o couro, eu gostava de conversar mais ela por que ela me contava
tudo. Aí ela encheu a cuia de carne e correu pra casa, quando chegou: oh, meus
filhos, vocês comem nesse instante. Aí botou no fogo, só fez aferventar, os
meninos tudo comendo, doido de fome. Aí foi na casa da iaiá pra arrumar um sal
pra salgar o resto. Aí acabou a fome” (comunicação oral)54.
Sem dúvida, o referido contrato socionatural e político que se torna hegemônico, a partir da
colonização, estabelece relações entre cultura e natureza em descompasso com a capacidade do suporte
natural local. Isto se revela, por exemplo, na criação de animais pouco resistentes às condições climáticas de
semi-árido, caso do gado vacum referido, que morre de sede durante as longas estiagens e da plantação de
espécies pouco resistentes às estiagens, como o milho [Zea mays]. A questão tem sido lida, desde 1877, ano
de grande decadência da economia do Norte (no caso o Nordeste atual), quando a seca foi transformada em
grave problema social como um processo de vitimização da cultura pela natureza. Isto significa dizer que,
nesta ótica, a natureza expulsa a população, fechando-lhe todas as possibilidades de subsistência. Assim,
restaria, apenas, a alternativa da migração. Com isto, de fato, procede-se a uma espécie de naturalização da
cultura: a natureza é o outro da cultura, do humano; é hostil e expulsa os humanos do ambiente55. Tal
situação é explorada à exaustão na literatura oral e escrita, na imprensa e no cinema, sobre o Nordeste,
pensando em termos da circularidade (GINZBURG, 1989)56 dessas imagens, vamos encontrá-las também nas
falas das pessoas que vivem na região semi-árida:
Sueli: e nos anos de seca, você se lembra como é? Como que é a vida?
Gérson: lembro, a dificuldade é grande. Quando pesa que não tem pra onde,
procuram sair, trabalhar fora. Trabalhar fora [grifo meu].
Sueli: o senhor passou por isso?
Gérson: passei, na época do denoques [DNOCS], só tinha uma estrada de
rodagem, foi no tempo que fizeram a estrada Fortaleza-Brasília, tem uns trechos
que ainda não tá feito, mas o que feito foi na época de seca. E eu trabalhei lá, não
tinha como trabalhar na roça e o jeito era trabalhar lá.
Sueli: e os bichos que criavam, o que faziam?
Gérson: a maioria, o que não servia pra vender, morria mesmo, porque não tem
pra onde [grifo meu], além do pasto a falta de água (comunicação oral)57.
Dona Alta: foi a de trinta e dois [1932], eu já era moça. O povo tudo nu.
Esquentando fogo no munturo. Morreu muita gente de fome. Morreu de fome e
enterrado nu. Bem aqui nessa Várzea Grande foi enterrado um nu, numa esteira.
Não tinha rede, num tinha roupa. Quem tinha uma camisa dava pro outro. Aí
deus foi ajudando, ajudando, uns pegavam um tatu, outros num pegavam nada.
54
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira.
Sem dúvida, vale considerar as explicações de caráter biológico para as estratégias de reprodução social da
vida nas regiões semi-áridas das quais fazem parte a migração tanto de outras espécies (os sapos, por
exemplo) quanto da humana.
56
Ginzburg (1989) argumenta que não há uma contraposição entre códigos culturais provenientes de grupos
sociais distintos, mas uma circularidade cultural filtrada pelos axiomas e condições de vida.
57
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos.
55
62
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Quando achavam um lapicho num buraco, cadê a mistura pra comer, aí iam
beber um caldinho.
Sueli: e o que é lapicho?
Dona Alta: lapicho é um bicho que tem no mato. Matavam pra beber um
caldinho. Tem lapicho, tem gambá, tem raposa, tem mucura, tem bandeira, tem
viado. Tudo isso tinha, mas não tem mais não. Os bichos morreram tudo.
Sueli: e os bichos morriam também?
Dona Alta: morriam de fome. Pau do mato, que a gente arrancava a raiz. Tu
lembra do croatá [para Rosina – vizinha presente no ato da entrevista]. Tinha a
macambira, aquele redondo, como é que chama? Mucunã. Isso tudo a gente
usava pra comer. E a mucunã é bicho infeliz. Se não soubesse tratar fazia era
inchar. Tinha que lavar em nove água pra fazer aquele cuscuz pra comer. Às
vezes pra misturar num caldinho do preá. Pra poder comer, pra poder escapar. Aí
desabaram o povo no mundo. Foram em riba, foram embaixo, desabaram tudo.
Ainda eu tenho gente no mundo que eu nem sei dizer que é vivo ou se já
morreu. Irmão meu. Nunca mais tive notícia [grifo meu] (comunicação oral)58
Nas falas acima, dois pontos merecem destaque: por um lado, a vitimização pela seca, que, sem
dúvida conforma todo o discurso. Por outro, o anúncio de que saberes da cultura ameaçada dos nativos não
haviam desaparecido completamente, estando, de fato, em situação submersa. Nesta condição, quando se
desenha a configuração de crise eco-social, por ter aumentado o adensamento populacional e as novas formas
de apropriação da natureza semi-árida da cultura colonizadora não garantirem sustentabilidade a todos os
membros do ecossistema, os referidos saberes submersos começam a emergir, como, por exemplo, a busca de
animais, plantas, raízes, ervas e frutos não-domesticados para a alimentação, inclusive, nas formas de tratar
plantas tóxicas, de modo que pudessem ser consumidas por humanos:
José Belisário: nos anos de seca, acontecia tudo que era ruim, o pessoal era
muito pobre, os que tinham as coisas, criação, gado, não resistiam por que não
tinha pasto pra aqueles bichos. Morriam de fome e sede. E gente morria era
muito e as chuvas não tinha, quando dava uma chuva era muito pouco não dava
pra nada, criava umas frutinhas pelo mato, mas só fruta braba, não era de comer,
mas o povo comia. Tem uns paus que tinha raiz, ainda hoje tem, daí o pessoal
mais velho, que fosse pai, parente que criasse, fazia daquelas batatas de pau,
fazer o tipo de uma mistura de qualquer maneira pro pessoal comer. Tinha uma
raiz de pau que chamavam de sipipira, ainda hoje tem ela, e outros mais que eles
faziam, davam um jeito de fazer uma farinha (comunicação oral)59
Nesse sentido, ganha importância o tema da constituição dos saberes e práticas camponesas
locais, caudatários de universos culturais distintos: dos colonizadores e dos nativos. No entanto, no âmbito
das hierarquias sociais, a cultura dominante hegemoniza sua racionalidade na relação estabelecida entre
cultura e natureza.
Assim, visto, em termos de longa duração, o processo de redescoberta de saberes das
populações nativas não constituiu hegemonia até uma outra intervenção marcante, já no século XX, também,
violenta. Efetivamente, esta nova intervenção vinha violar códigos já estabelecidos, na relação entre cultura e
natureza que, no entanto, já se encontrava em situação de crise eco-social gerada pela implementação de
58
59
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Alta Maria dos Santos.
Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com José Belisário de Miranda.
63
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
formas não sustentáveis de apropriação da natureza semi-árida. Desta feita, a intervenção se deu em dois
vetores: a indústria da seca, em caráter mais amplo e a extração da maniçoba em termos mais restritos.
Sueli: aconteceu de em alguma seca a senhora não ter o que comer?
Silvera: aconteceu, ave-maria! Aconteceu demais! Em cinqüenta e três [1953]
mesmo, em cinqüenta e três, foi ruim aqui, foi ruim, foi a primeira filha que eu
ganhei foi em cinqüenta e três. Meu marido saía daqui, eu fiquei de resguardo.
Vou lhe contar a vida do meu resguardo da minha filha mais velha. Oh, eu
ganhei ela quase que morro, passei três dias sentindo, nunca fui em doutor não,
médico nunca olhou pra mim. Aí quando foi pra ganhar ela, no dia de ganhar
quase que morro, mas Deus ajudou que eu não morri não. Mas quando disse
assim acabou de ganhar, ele botou o saquinho nas costas e entrou pra essa serra,
pro Zabelê, pra essa serra aí. Foi furar maniçoba, furar uma maniçobinha pra
trazer um quilinho assim [fazendo gesto com as mãos para mostrar tamanho
pequeno], pra quando fosse no final de semana vender pro mode comprar o
açúcar, uma farinhazinha, um pedacinho de carne pra eu comer no resguardo e
eu cá, a coisa que eu tinha ganhado da roça nesse ano, era um pote de feijão.
Panhei da roça, disbuei, uma mulher disse “o fulana, guarda pra tu comer de
resguardo, que não faz mal, que é fejão ligeiro”. Eu guardei esse feijão, mas que
o feijão eu não comia, ele furando a maniçoba, comprava uma carninha, eu
comprava um litro de leite, botava pra coalhar, a mulher dizia “pode comer
coalhada, que não faz mal”. Depois, esse litro de leite eu almoçava, quebrava o
jejum e jantava, que eu nunca fui comedeira não, nunca fui de gostar muito de
carne não. Na verdade, eu não gostava de carne não, minha comida de carne é
muito pouco, eu não gosto de carne não. Aí passava. Ele ia, eu passei o
resguardo, minha sogra, eu sozinha dentro de casa, mais essa criança e minha
sogra morava assim perto. Com sete dias, quando ela saía, pegava uns pauzinhos
de lenha, esta lenha, ela acendia um foguinho, botava ali a carne ali, ele pegava
os pauzinhos de lenha, quando era de noite quando acordava acendia o fogo,
podia precisar fazer um chá. Aí acendia uma velinha. Quando o menino
acordava, eu acendia o fogo, e fazia o chá e dava o menino pra tomar
(comunicação oral)60.
Com efeito, pela circularidade referida, o imaginário que dá sustentação à indústria da seca
ganha guarida nesta visualização do ecossistema, pelo prisma das secas como instituidoras do mal, da fome,
da sede, da miséria, castigo de Deus, em oposição ao imaginário edênico, de muito verde e muita água e
clima temperado, instituído desde a carta de Pero Vaz de Caminha. Nesse processo, ocorre a naturalização
dos efeitos das secas, a culpabilização da natureza, a isenção da cultura e culturalização da natureza. Mas
tudo isso é produção cultural, ou seja, ver os efeitos das secas como causados pela natureza é uma visão
produzida pela cultura, de modo que o clima é manuseado pela fé, como instrumento punitivo a quem
desobedece às normatizações culturais.
Com efeito, o processo instituinte da cultura desenrola-se em um contexto sociocultural
entrecruzado por imaginários sociais diversos. Dentre estes, o processo de pesquisa permitiu perceber um
habitus eivado de representações sociais que dialogam com duas matrizes: a das populações locais originais e
a externa, a européia. Diálogo esse estabelecido com base em uma relação violenta, que submeteu a cultura
local à condição de cultura ameaçada.
60
Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 30/05/2004, com Silveira Pereira Paes.
64
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
3.3. De camponês a peão maniçobeiro
No final do século XIX, após o marco zero da indústria da seca, o ano de 1877, surgiu a
exploração da maniçoba [manihot piauhyensis], em larga escala. E, nas primeiras duas décadas do século
XX, como referido, deu-se o boom da borracha da maniçoba no Piauí, com maior concentração na região da
Serra da Capivara, inclusive no território em estudo (OLIVEIRA, 1998).
A maniçoba pertence ao gênero manihot, da família das euforbiáceas, que são resistentes às
condições climáticas de semi-árido, acumulando água no caule e nas raízes e perdendo as folhas no período
das secas. Sendo nativa na região, a maniçoba era conhecida antes mesmo de sua entrada triunfal no
mercado, mas sua exploração em larga escala se deu com a descoberta de sua utilidade como fornecedora de
látex para a indústria de borracha, bem como pelo conhecimento do método de extração pela incisão na raiz
para a extração (OLIVEIRA, 1998).
Dona Isabel: não, a maniçoba era assim uma lapa assim [fazendo gesto com as
mãos para apresentar o tamanho da fatia], eles furam o pé, um buraquinho no pé,
sabe, aquele buraquinho e bota areia naquele buraco e dão uns gulepes na
madeira aí ela corre naqueles gulepes. No outro dia é que o miserável vai
apanhar pra botar num saquinho, eles tinham uns saquinhos, uns saquinhos
pretos. Uns saquinhos pra botar maniçoba. Aí eles vendiam pra fazer a feira pra
comer (comunicação oral)61
Sueli: e o que é lega?
Naíldes: Era um arame, num pau, que usavam pra furar o pé de maniçoba.
Sueli: e quem ensinou fazer isso aqui?
Naíldes: foi a necessidade de fazer. Papai dizia que apareceu alguém de fora pra
comprar e pra furar e os daqui aprenderam. Eles pegavam esse arco, amarravam,
botavam assim, sobrando um pedaço pra cima. Aqui eles colocavam dois anéis
nessa parte que descia, um aqui, mais embaixo prendia aqui e outro que prendia
aqui. Um anel fechado. O pau era curto e aqui em baixo era o cavador e lá
quando eles chegavam no pé de maniçoba, cavavam, fazia um buraco redondo,
pra chegar na batata, por que o pé dá leite, mas não é como na batata não. Aí eles
cavavam um buraco bem fundo até dá na batata e quando dava na batata, fazia
aquele buraco, tirava aquela terra e cobria com um barrinho vermelho
(comunicação oral)62
A produção da maniçoba em larga escala, no entanto, na região, durou poucos anos. O ponto
alto não durou três décadas, mas foi tão intenso que conseguiu abalar definitivamente as práticas produtivas
camponesas já estabelecidas. Esse abalo teve suas marcas de violência tanto simbólica quanto materializada.
José Belisário: teve o tempo da maniçoba, naquele tempo, dizem que era mais o
pessoal revoltoso. Uns matavam os outros pra tomar o dinheiro da maniçoba
[grifo meu]. Matavam os revoltosos. Passavam a semana toda trabalhando
quando era domingo se ajuntavam nas feiras pra tomar uns goles, e aí
brigavam muito, se matavam pra tomar o dinheiro uns dos outros [grifo
meu].63
61
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira.
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes.
63
Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com José Belisário de Miranda.
62
65
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Com efeito, a introdução da economia maniçobeira, na área em estudo, provocou alterações que
foram incorporadas pelo tecido socionatural já estabelecido, com a marca da campesinidade64. Entre tais
alterações, registra-se a entrada massiva de migrantes de Pernambuco, Bahia, Ceará e até Alagoas. As
cidades de Bodocó e Caruaru, ambas no Estado de Pernambuco, eram os centros de migração (OLIVEIRA,
1998). As alterações ocorreram num processo brusco, no âmbito do interesse em extrair o látex que a região
produzia de forma nativa ou por cultivo. Isto trouxe para a região problemas trabalhistas no âmbito das
relações de patronagem-dependência (FORMAN, 1979) e, até mesmo, com características do que se
considera, hoje, trabalho escravo, nos moldes ocorridos na região amazônica brasileira.
Nesse processo, a principal forma de exploração se dava através da relação barraquistamaniçobeiro. O barraquista era, em geral, um comerciante que, em terras devolutas, demarcava uma área e
arregimentava trabalhadores. Estes mantinham com seu contratante uma relação de hipossuficiência, na qual
eles próprios eram hipossuficientes não só por serem subordinados, mas por que sempre estavam em dívida
com seu contratante, visto que este sempre lhes fornecia os suprimentos para a exploração da maniçoba e
para sua subsistência pelo já referido sistema do barracão (OLIVEIRA, 1998).
Também os fazendeiros cultivavam a maniçoba em suas propriedades nos moldes da relação
barracão-maniçobeiro, em que o barracão era do fazendeiro e a relação de hipossuficiência do maniçobeiro se
repetia (OLIVEIRA, 1998).
Havia ainda os independentes tidos como os que viviam em situação pior que os demais por que
tinham que assumir todos os custos da produção sozinhos e nunca dispunham de dinheiro. Por isso, era
comum que estes buscassem um barraquista ao qual se submetiam “voluntariamente” (OLIVEIRA, 1998).
A maniçoba produzida na região era escoada para Remanso (Bahia) e de lá para Juazeiro,
(Bahia) e Petrolina, (Pernambuco) onde era comercializada. No início era transportada por tropas de animais
e, mais tarde, por caminhões.
Foi uma época de grande efervescência na Fazenda Várzea Grande, com muitos conflitos e
mudanças no modo de vida das populações locais. A população com condições de enfrentar o trabalho
pesado largou a roça e o criatório para a peonagem na maniçoba. Nesse processo, ocorreu a ampliação da
população, pelos casamentos, que aconteceram em larga escala entre membros das populações locais e
migrantes maniçobeiros empobrecidos, que já não tinham condições de retornar à sua terra natal por sempre
estarem em dívida com o barraquista, fosse este comerciante ou fazendeiro.
Sueli: na época da maniçoba veio muita gente de fora pra cá?
Dona Isabel: a época da maniçoba foi em dezesseis [1916], dezesseis [1916] pra
vinte [1920], até trinta [1930], ainda tiravam maniçoba. Veio muita gente de
fora, da Bahia, do Pernambuco e se casaram tudo aqui. Mas era pobreza,
pobreza, as pessoas que vinham de fora passavam muita fome [grifo meu],
uma fome terrível (comunicação oral)65.
64
Ao utilizar a categoria campesinidade, refiro-me à concepção trabalhada por Woortmann (1987) como uma
qualidade presente em maior ou menor grau em grupos diversos e específicos, consistindo numa espécie de
valor fundado na família e no parentesco, a partir de uma ética constitutiva de uma ordem moral, tomada
como a forma de percepção das pessoas entre si, e destas com as coisas, dentre elas a terra.
65
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira.
66
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Naquele contexto, as populações locais, através do parentesco ritual, ampliavam-se pelas
alianças matrimoniais na medida em que os “de fora” se adaptavam ao sistema do lugar, o que lhes dava
identidade local. Nesse sentido, os casamentos possibilitavam a ligação dos “de fora” com a tradição do
sistema do lugar referida ao tronco do véio Vitorino Dias Paes Landim:
‘Sueli: ah, então teu avó veio pra cá na maniçoba?
Beloniza: veio, ele era pernambucano, veio acompanhado de outros
companheiros de lá, era solteiro, rapazinho novo, veio acompanhado de um tio e
aí chegou nessa maniçoba, terminou de se criar e aqui se casou, casou até com
uma Dias, pertenciam aos Dias. E aí ele casou e criou a família. Chegou e
subiu pro Zabelê [grifo meu], ele foi morador de lá. Era proprietário de lá.
Beloniza: meu avô materno era da Bahia e o paterno de Pernambuco.
(comunicação oral)66
Naíldes: ei, Sueli, meus dois avós, tanto materno quanto paterno eram tudo
da Bahia e vieram de lá pra cá por causa da maniçoba [grifo meu]. E casaram
aqui todos os dois. As moças nessa época arranjaram tudo marido, desencalhou
todo mundo. Aqui tem muita gente que casou com esse povo, vindo da Bahia ou
de Pernambuco (comunicação oral)67.
Sem dúvida, a atividade de extração da maniçoba também interveio nos códigos da relação
entre cultura e natureza, dentre estes, a ocupação de um lugar mantido até então sob os desígnios da natureza,
o “centre” (GODOI, 1999), área onde posteriormente foi instalado o parque.
Com efeito, as terras disponíveis se tornaram insuficientes para suportar a exploração da força
de um boom econômico que chegou a representar 51,54% das receitas de exportação do Estado e 23,28% da
receita total, chegando, em 1910, a atingir a cifra de 62% do valor total das exportações (QUEIROZ, 1994).
A necessidade de ampliar as terras para a extração e exploração da maniçoba fez camponeses de dentro e de
fora do sistema do lugar romperem uma espécie de contrato socionatural e simbólico, em que a área da serra
estava sob regramento da natureza, enquanto o seu sopé era do domínio da cultura. Sobre as áreas tidas como
reservadas aos desígnios da natureza, estas eram:
(...) o espaço selvagem, o centre situado além das serras: morada de bicho e de
seres sobrenaturais como o gritador e a dona do mato, o encantado, onde
habitavam os índios no tempo da história do começo da vida aqui. O centre
compreende os espaços que não são e nunca foram cultivados pelo homem, mas
se constituem ocasionalmente um lugar de caça e de coleta de plantas
medicinais. Nele, os seres estão subordinados à boa vontade dos seres do lugar
(GODOI, 1998, p. 102).
Nesse sentido, o imaginário local traduzia, simbolicamente, a ordenação do espaço natural
efetivado socialmente num contrato que sucumbiu à expansão da exploração da maniçoba que se efetivou
com a subida da serra para “furar maniçoba”, processo pelo qual fundaram a comunidade Zabelê.
Só compreenderemos a subida da serra pelos ancestrais do povo do Zabelê
ultrapassando os limites da própria fazenda, se a relacionarmos com o contexto
histórico bastante precioso da atividade extrativa da maniçoba (GODOI, 1999).
66
67
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Beloniza dos Santos Paes.
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes.
67
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Esse rompimento de fronteiras está vivo na memória, como se pode constatar na narrativa
abaixo:
Silvera: (...) ele botou o saquinho nas costas e entrou pra essa serra, pro Zabelê,
pra essa serra aí. Foi furar maniçoba (comunicação oral)68
Efetivamente, o referido processo deu suporte para uma extração e exploração predatórias, que
provocaram grande desmatamento da área e a quase extinção da espécie nativa, visto que tanto eram
exploradas as nativas quanto eram cultivadas grandes roças de maniçoba. Caracterizaram-se ali relações
predatórias tanto em aspectos naturais quanto sociais, sendo perversas as relações com a natureza e as sociais,
especialmente, as trabalhistas estabelecidas pelo vínculo barracão-maniçobeiro69.
A crise da maniçoba, pelo surgimento de fonte de látex em outras regiões do mundo,
especialmente, na Ásia, e o surgimento da borracha sintética, fez os maniçobeiros enfrentarem a brusca
diminuição da demanda pelo produto. Diante disto, vão-se estabelecendo estratégias de resistência e
sobrevivência à crise como o retorno ao cultivo de roças e até mesmo a inclusão de pedras na maniçoba, a
chamada “maniterra”, para aumentar seu peso e, com isso, compensar a queda de preço:
Sueli: e a maniterra?
Naíldes: ah, teve esse negócio mesmo, que tinha gente que botava terra e até
pedra, por que tinha um negócio de dobrar, depois por conta de tanta sabotagem
que tavam fazendo, os compradores não compravam mais a maniçoba dobrada.
Por que eles dobravam a maniçoba que era pra ficar mais grossa. Eles furavam
como hoje, amanhã num vinha, depois de amanhã eles vinham de novo. Aí
chegavam, tiravam aquela massa que estava espalhada, cavava mais um
pouquinho se precisasse, tornava botar outro barro e aí furava de novo e botava
lá pra aquele leite que vinha coalhava em cima daquele que já estava coalhado.
Aí o que faziam botavam barro ali, botavam até pedra pra pesar mais e o leite
vinha e cobria. A maniçoba era vendida pelo quilo, já no final das contas os
compradores já não compravam mais maniçoba dobrada, tinha que furar só uma
vez (comunicação oral)70.
Passada a fase áurea da maniçoba, a sua exploração não se exauriu por completo, permanecendo
agonizante até a década de sessenta. Na fase agonizante, atendendo ao mesmo mercado, agora com pouca
demanda, integrou-se ao sistema do lugar, como complemento nos períodos de entressafra e nos períodos das
estiagens. O período de extração foi estabelecido em época não concorrente com a roça (março a setembro),
como indicam as falas abaixo:
68
Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 30/05/2004, com Silveira Pereira Paes.
Como observado pela Profª Dione Moraes, do DCS/CCHL/UFPI, em comunicação oral, observa-se que a
nova racionalidade que passa a conduzir as relações entre natureza e cultura na região, em certa medida,
destrona uma representação mítico-social do “centre”, e inaugura uma nova prática produtiva pela qual o
espaço do “centre” é, em parte, dessacralizado. Esse processo guarda importância simbólica na instituição do
imaginário, com conseqüências significativas para um outro processo que será analisado adiante: a instituição
do Parque Nacional da Serra da Capivara, cujos fundamentos, em um outro universo mitológico – como diria
Diegues, pelo mito moderno da natureza intocada – apontam para uma re-sacralização da natureza. Isto traz
novos desafios às populações locais: re-sacralizar um espaço dessacralizado pela prática econômicoextrativista da maniçoba. Isto aponta para o próprio desafio da sociedade moderna: como reencantar um
mundo desencantado?
70
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes.
69
68
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Sueli: e a maniçoba?
Manoel Lourenço: ah, a maniçoba a gente ia furar ela. Eu trabalhei muito com a
maniçoba.
Sueli: e não atrapalhava o serviço da roça não?
Manoel Lourenço: num deixava de atrapalhar, mas a gente tirava o tempo, por
que a maniçoba tinha tempo pra gente furar, no inverno quando tava chovendo,
ninguém ia pra maniçoba, era só desse tempo pra frente, furava no inverno, só
quando faltava a chuva [grifo meu]. Furava na semana, mas quando chovia o
cabra ia pra roça. Começava em maio.
Sueli: então a maniçoba era no intervalo da roça.
Manoel Lourenço: era (comunicação oral)71
Dona Isabel: aqui todo mundo vivia de roça, de maniçoba. Tinha a maniçoba.
Nesse tempo, todo mundo ia furar as maniçoba pra puder fazer a feirinha pra
puder comer. Isso aqui já foi muito pobre. Era uma pobreza grande. Muita
pobreza (comunicação oral)72.
É interessante observar que a dinâmica cultural é, ao mesmo tempo, um sistema fechado e
aberto como diria Edgar Morin. De fato, as experiências forasteiras vão, no processo intercultural, sendo
assimiladas e adicionadas, pelo crivo do habitus local, ao repertório das práticas do sistema do lugar. Assim,
a extração da maniçoba se incorpora, nas proporções permitidas por um mercado mais ou menos efusivo, ao
calendário agro-extrativista das populações locais.
Vale considerar que, além da extração da maniçoba, combinada com a roça, outras extrações
foram retomadas, como a da resina de jatobá [Hymenaea courbaril]:
Dona Maria: (...) ele trabalhou só na maniçoba. Quando chovia trabalhava na
roça e quando não chovia era na maniçoba. E no jatobá, tirava a resina e vendia.
Apanhava a resina do jatobá e vendia. Era de que ele vivia aqui. Quando não
tava chovendo, pra trabalhar na roça, tinha esse refrigério. A maniçoba, depois
tinha esse trapucá, eles tratavam trapucá, ainda alcancei, eles traziam aquela
resina de jatobá, eles exportavam, não sei pra servia ela. Eu acho que era, eles
diziam que era pra fazer aqueles discos. Eu ainda hoje tenho uma radiola que usa
esses discos. Minha família não tinha muita dificuldade não, o povo pra aí tinha,
mas aqui em casa não (comunicação oral)73
Com a crise da maniçoba, foram retomadas outras práticas produtivas, que haviam sido
abandonadas. Aproveitando o interregno das secas, a atividade da agricultura retomou posição de
centralidade na vida das famílias camponesas, especialmente, pelo cultivo da mamona [Ricinus communis
L.], do algodão [Gossypium hirsutum] e do fumo [Nicotiana tabacum], como produtos destinados à
comercialização:
No Zabelê, pra acolá, os meus parentes era lá, eu ia instalar fumo. As mulheres
daqui só iam se eu fosse. A gente ia instalar fumo.
Sueli: e o que é instalar fumo?
Dona Isabel: o fumo é um pezão, com uma folhona, a gente tem que instalar ela
pra fazer o fumo. Dava muito dinheiro. O fumo e o algodão.
Sueli: vocês vendiam onde?
71
Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com Manoel Lourenço Paes.
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira.
73
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Maria Alves Dias.
72
69
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Dona Isabel: vendia até no Maranhão. Aqui tinha gente que ia vender no
Maranhão. Os brotenses, aqueles brotense ia vender lá. Iam vender em
Aparecida, em Uruçuí, vendiam em Teresina. Em Teresina é que vendia muito
(comunicação oral)74.
Beloniza: Mas o que dava dinheiro mesmo era mamona, algodão e fumo
(comunicação oral)75.
Se a crise da maniçoba, por um lado, fechou uma das alternativas de sobrevivência da
população local, por outro lado, permitiu a maturação do sistema do lugar após a incorporação das
populações migrantes pelo casamento, pela retomada dos laços sociais com o lugar, no sentido de que quem
não veio para ficar foi embora e quem quis ficar já estava alocado num espaço familiar, ampliando a tradição
do Vitorino.
Sueli: e depois que acabou a maniçoba, de que passaram a viver?
Naíldes: a maniçoba veio acabar, deixa eu ver se me lembro: na década de
sessenta, até cinqüenta e nove tinha maniçoba, aí em sessenta acabou. Só que
quando me entendi, já não tinha mais essa gente de fora não, era só o pessoal
daqui, ou os de fora que tinha casado com gente daqui, já era daqui [grifo
meu], já tinha vindo há muitos anos (comunicação oral)76
Vale lembrar ainda que, se o processo de peonagem foi abandonado com a o fim da extração da
maniçoba, ele deixou marcas na cultura local, tanto na ampliação da relação de parentesco quanto no seu
habitus. A matriz em que se configurou o universo cultural do maniçobeiro deixou, como uma de suas
marcas, as práticas extrativistas intensivas através de relação predatória com a natureza, além de relações
trabalhistas, em condições análogas às escravas, como as que aconteceram com a extração da cal nos anos
oitenta e noventa e da madeira, na atualidade, para abastecer as fornalhas de uma cerâmica77, situada no
município78.
74
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira.
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Beloniza dos Santos Paes.
76
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes.
77
No município, há duas cerâmicas: uma que funciona à lenha e a outra a gás. A que funciona a lenha,
segundo Arruda (1997), extrai seu abastecimento do entorno, tendo consumo anual estimado em 1.120 st e
teve 112 ha desmatadas ao ano, em 1991. As espécies mais usadas são: favela [Cnidoscolus phyllacanthus],
angico de bezerro [Piptadenia oblíqua], pau-de-rato [Caesalpinia bracteora], marmeleiro [Croton
sonderianus], pau-de-casca [Tabebuia spongiosa]. Outro dano causado é a destruição do solo.
78
A extração da cal, segundo Arruda (1997), constituiu-se num dos principais problemas das populações
locais. O início da extração começou em fins da exploração da maniçoba, em 1958, mas foi intensificada
entre os anos 80 e 90. Os maciços calcários mais importantes foram: o Boqueirão da Pedra Furada, Morro do
Garrincho (onde já se produziu cimento) e os Serrotes do Antonião e do Artur, em que se localizavam as
caieiras. O processo de extração da cal se dava nas seguintes fases: extração de calcário, amarração,
enchimento, queima e carregamento. A fase de extração, a mais longa, demandava maior trabalho,
consistindo em quebrar blocos no alto do maciço calcário e empurrá-los para a base. A quebra era facilitada
com dilatação dos blocos em fogueiras no interior das galerias, que os rompiam e estes eram deslocados por
alavancas. Na base do maciço, os blocos eram fragmentados em pedaços menores, com uso de marretas. A
amarração era a construção e manutenção de muro no entorno da caeira. O enchimento era o preenchimento
do espaço entre o muro e o teto da caieira, pedra sobre pedra, até a caieira tomar a sua configuração cônica. A
queima se dava com a introdução de lenha pelas três janelas da caeira, até o ponto de a caeira ser golpeada
em seu teto e, com isso, ocorrer o desprendimento da cal para o fundo, finalizando o processo, deixando o
produto pronto para carregamento para os centros consumidores.
75
70
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Porém, depois da crise da maniçoba e dos bons anos de inverno, a atividade que se destacou
mesmo foi a retomada da tradição camponesa da agricultura e da pecuária, como centralidade da economia
local, embora a extração da cal tenha substituído a extração da maniçoba para algumas famílias.
Sueli: e passada a maniçoba?
Beloniza: aí na década de sessenta [1960] começou um inverno que choveu por
dez anos, aí a agricultura deu muito dinheiro, era muita fartura [grifo meu]
(comunicação oral)79.
Como se pode deduzir da fala transcrita, acima, o itinerário das práticas produtivas das famílias
camponesas locais [ilustração 12] foi retomado. Esse itinerário cíclico se encontra, no presente, percebido
Práticas
Meses
como representado no quadro abaixo:
Meses:
mai/jun80
Meses:
jul/ago
Colheita
do
milho,
desmancha
(mandioca),
armazenament
o e venda.
Escolha
de
área e broca81
da nova roça
Colheita do
milho,
desmancha
(mandioca)
Broca,
derruba82 da
nova roça
Meses:
ago/set.
Meses:
set/out
Colheita do cerca da
milho,
nova
desmancha
(mandioca)
Aceiros
e
queima
da
nova
roça.
Extração do
caju
e
castanha
e
venda
das
castanhas.
Meses:
out/nov
Meses:
dez/jan/fev
Destoca e
início de
plantios:
milho,
feijão
e
mandioca.
Plantio
e
limpa.
Colheita
e
venda de mel.
Extração do
umbu
e
comercializaç
ão.
Mês mar
Últimos
plantios,
limpas
e
início
de
colheita
verde83.
Colheita e
venda
do
mel.
Extração do
umbu
e
comercializ
ação
Meses:
abr/mai
Colheita
de feijão,
armazena
mento e
venda.
Tabela 01 - Itinerário anual das práticas produtivas camponesas
O referido itinerário é também constituído de práticas com a criação de animais: bovinos,
caprinos, ovinos, suínos e aves. As aves e os suínos são criados nos quintais das moradias e os demais são
tratados em dois regimes com base no período das chuvas e os meses de seca. No período das chuvas, os
Arruda (1997) identificou, em 1991, no atual município de Coronel José Dias, 90 pessoas empregadas e
estimou que 350 dependessem economicamente das caieiras que produziram 1.814m³ de cal. Dos caieireiros,
90% eram arrendatários dos serrotes calcários e pagavam uma renda ao proprietário referente ao calcário
extraído para cada fornalha, sendo que alguns proprietários de serrotes também produziam cal, cerca de 10%.
O grupo que trabalhava numa caieira geralmente era familiar. O caieiro mantinha uma relação de meeiro com
o madeireiro pelo serviço de carregamento e os madeireiros também eram proprietários de mercearias e
vendiam víveres e outros produtos aos caieiros tendo como moeda a cal. A exploração da cal se intensificava
nos períodos de estiagens.
79
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Beloniza dos Santos Paes.
80
Considerei o início do ciclo pelo início da nova roça que se dá com o processo de escolha da área e broca,
entre os meses de junho e julho.
81
Broca na linguagem local refere ao processo de derrubada das árvores mais finas.
82
Derruba ou “derriba”na linguagem local quer dizer derrubada das árvores mais grossas.
83
Colheita verde na linguagem local refere ao processo de colheita de feijão e milho verdes.
71
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
animais são soltos na chapada para se alimentarem de pasto nativo e, nos meses de seca, são postos nas roças
com os restos da cultura colhida84. Em ambos os regimes, todos os finais de dia, os animais: gado vacum,
ovelha e bode são tocados ou vêm espontaneamente para os chiqueiros ou currais, para dormirem em área
protegida. Nos períodos de estiagens, os animais são conduzidos até as aguadas para lhes dar de beber. Essa
atividade se repete até duas vezes por dia, nos casos em que não há aguada na roça que acolhe os animais.
A comercialização também faz parte das práticas tanto agrícolas quanto pecuárias, sendo que o
pico da venda dos produtos agrícolas e de extração se dá na colheita, mas prossegue durante todo o ano, a
cada feira semanal, no processo de abastecimento da família naquilo que não é produzido na roça e na
criação de animais. E quanto mais distante do tempo de colheita, mais a comercialização, nas feiras,
restringe-se à venda de animais.
Segundo a trajetória histórica dos processos aqui analisados, foi na retomada da centralidade de tradição
camponesa, pós-boom da maniçoba, que foi instituído o Parque Nacional da Serra da Capivara, trazendo uma
outra racionalidade de apreensão, compreensão e relação entre natureza e cultura.
3.4. A mundialização do território Várzea Grande – de camponês a preservador ambiental: a
instituição do Parque Nacional da Serra da Capivara
No início da década de 70, a área em estudo foi palco de mais uma intervenção na cultura
camponesa local e na natureza semi-árida, intervenção orientada agora, por um paradigma de preservação
ambiental amparado pela ciência e pela legislação ambiental pátria. Sem dúvida, esse ideário de preservação
ambiental traz as marcas da ambigüidade provocada pelo divórcio entre natureza e cultura, que marcou o
surgimento da sociedade moderna. Com efeito, na legislação brasileira, a relação entre natureza e cultura se
traduz por um processo de apropriação da natureza, monetarizando esta, transformando-a em recursos, ou
seja, em bens patrimoniais, com usos e relações de propriedade normatizados pela via jurídica.
Por outro lado, no âmbito dessa mesma legislação, o resultado da depredação provocada por
essa relação deve ser enfrentado com a constituição de espaços privilegiados, verdadeiras ilhas da fantasia
que permitam respirar os pulmões urbanos inflados pela poluição e prejudicados pelos dejetos provocados
pela vida moderna, em que, definitivamente, cultura e natureza aparecem divorciadas. Nesse sentido, a
legislação prevê que:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
[grifo meu] de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 1996, p. 100-101).
Artigo 1º - Constitui o patrimônio [grifo meu] histórico e artístico nacional o
conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja
de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do
Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico
ou artístico (AGRELLI, 2003, p. 462).
84
Essa forma de articulação entre baixões e chapadas e áreas cultivadas lembra, como já referido, a relação
entre baixões e chapadas analisada por Moraes (2000) na vizinha região dos cerrados e por Godoi (1999) na
região semi-árida, especificamente, no território aqui estudado.
72
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
§ 1º - Os bens [grifo meu] a que se refere o presente artigo só serão considerados
parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional depois de inscritos
separada agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o Art.
4º
desta
lei.
§ 2º - Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também
sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens
que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido
dotados pela Natureza ou agenciados pela indústria humana (AGRELLI, 2003, p.
462).
Definido o meio ambiente como bem público, estão configuradas as competências
administrativas, legislativas e judiciárias que responsabilizam o Estado quanto à proteção, fiscalização, tipo e
forma de punição para quem burlar as regras de proteção ambiental. Esta é a base que fundamenta a política
nacional de criação de áreas de proteção ou unidades de conservação. Essas são definidas pela União
Internacional para Conservação de Natureza e seus Recursos “como áreas definidas pelo Poder Público, com
o objetivo de proteger e preservar ecossistemas, em que os recursos naturais são passíveis de um uso indireto
sem consumo” (AGRELLI, 2003, p. 10).
Nesse contexto, para a legislação brasileira, na lei que instituiu o sistema nacional de unidades
de conservação, unidade de conservação é:
Art. 2º, I - espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas
jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo
Poder Público com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime
especial de administração ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção
(AGRELLI, 2003, p. 695 ).
O conceito adotado pela legislação brasileira define a relação entre cultura e natureza nas
unidades de conservação como “sem consumo” e de “proteção”, o que pode ser lido como exclusão da
possibilidade de consumo nas unidades de conservação, embora conste, dentre os objetivos do sistema
nacional de unidades de conservação, a disposição de
Art. 4º, I - Proteger os recursos naturais necessários à subsistência de
populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua
cultura e promovendo-as social e economicamente [grifo meu] (AGRELLI,
2003, p. 697).
De fato, essa não possibilidade de consumo tem-se traduzido, na prática, pela total
desvinculação das populações locais, contrariando as próprias diretrizes previstas para o sistema: “assegurem
a participação efetiva das populações locais na criação, implantação e gestão das unidades de conservação”
(AGRELLI, 2003, p. 697).
Com efeito, a referida lei diz respeito a dois tipos de unidades de conservação: unidades de
proteção integral e unidades de uso sustentável. As de proteção integral são as que admitem apenas o uso
indireto dos seus recursos naturais, não permitindo a permanência das populações locais. E as unidades de
uso sustentável são as que visam compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela
dos seus recursos naturais, ou seja, admitem a permanência das populações locais, sob condições de educálas para uso sustentável.
73
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
São unidades de proteção integral: estação ecológica, que tem como objetivo a preservação da
natureza e a realização de pesquisas científicas; reserva biológica, que tem por objetivo a preservação integral
da biota e demais atributos naturais existentes em seus limites, sem interferência humana direta ou
modificações ambientais, excetuando-se as medidas de recuperação de seus ecossistemas alterados e as ações
de manejo necessárias para recuperar e preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos
ecológicos naturais; parque nacional, que tem por objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de
grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o
desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, na recreação em contato com a
natureza e de turismo ecológico; monumento natural, que tem como objetivo básico preservar sítios naturais
raros, singulares ou de grande beleza cênica; refúgio de vida silvestre, que objetiva proteger ambientes
naturais onde se asseguram condições para a existência ou reprodução de espécies ou comunidades da flora
local e da fauna residente ou migratória (AGRELLI, 2003).
São unidades de uso sustentável: área de proteção ambiental, em geral, extensa, com um certo
grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais, especialmente,
importantes para a qualidade de vida e o bem das populações humanas, que tem como objetivos básicos
proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos
recursos naturais; área de relevante interesse ecológico, em geral, de pequena extensão, com pouco ou
nenhuma ocupação humana, com características naturais extraordinárias ou que abriga exemplares raros da
biota regional, que tem por objetivo manter os ecossistemas naturais de importância regional ou local e
regular o uso admissível dessas áreas, de modo a compatibilizá-lo com os objetivos de conservação da
natureza; floresta nacional, uma área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas, que
objetiva disciplinar o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, especialmente, a
pesquisa de métodos para a exploração sustentável de florestas nativas; reserva extrativista, área utilizada por
populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na
agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, objetivando proteger os meios de vida e
a cultura dessas populações e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade; reserva de fauna,
área natural com populações animais de espécies nativas, terrestre ou aquáticas, residentes ou migratórias
adequadas para estudos técnico-científicos sobre o manejo econômico sustentável de recursos faunísticos;
reserva de desenvolvimento sustentável, área natural que abriga populações tradicionais cuja existência tem
base em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e
adaptados às condições ecológicas locais, que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e
na manutenção da diversidade biológica; reserva particular do patrimônio natural, área privada, gravada com
perpetuidade, que objetiva conservar a diversidade biológica (AGRELLI, 2003).
A referida legislação expressa diferentes concepções quanto à relação entre natureza e cultura.
A concepção que está na base da unidade de proteção integral é a dos preservacionistas que consideram a
natureza selvagem como intocada e intocável e que uma unidade de conservação não pode proteger a
diversidade ecológica junto com a diversidade cultural. As populações tradicionais que foram desapropriadas
são consideradas, então, caso de polícia, após serem expulsas da terra para criação de parques e reservas
(DIEGUES, 1996).
74
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Já as unidades de uso sustentável assentam-se na concepção do conservacionismo oposta à do
preservacionismo e propõem a proteção da diversidade da natureza junto com a diversidade cultural, ou seja,
conservar a natureza junto com a vida humana. De fato, o conservacionismo surge como crítica ao
preservacionismo diante do profundo desinteresse deste pelos problemas sociais (DIEGUES, 1996).
A intervenção ocorrida, na área em estudo, no início da década de 70, fundou-se nos marcos
legais das áreas de proteção integral, ou seja, na concepção preservacionista que regula a instituição dos
parques. O Parque Nacional da Serra da Capivara foi criado através do Decreto nº. 83.548 de 5 de junho de
1979 que, em seu artigo 2º, determina sua finalidade:
Art. 2° - O Parque Nacional da Serra da Capivara tem por finalidade precípua,
proteger flora e fauna e as belezas naturais, e os monumentos arqueológicos, no
local existentes e fica sujeito ao regime especial do Código Florestal, instituído
pela Lei n° 4.771, de 15 de setembro de 1965 (FUNDHAM, 1998, p. 58).
Esse Parque foi inscrito no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, em 1993,
sendo elevado a Patrimônio Mundial pela UNESCO, em 13 de dezembro de 1991 (FUNDHAM, 1998).
A razão central para a criação da referida unidade de conservação era a existência de vários
sítios arqueológicos, entendidos como locais ricos em evidências de vida e cultura de populações antigas,
propícios para a realização de pesquisas e coletas, num total de 462 sítios, dispostos em área de quatro
municípios piauienses: Coronel José Dias, abrigando 218 sítios arqueológicos (47,19%); São Raimundo
Nonato, 156 sítios arqueológicos (33,77%); João Costa, 47 (10,17%) e Brejo do Piauí, 41 (8,87%)
(FUNDHAM, 1998).
Em consonância com a legislação referida, por se tratar de uma área de proteção integral, a
criação do parque exigiu a retirada das populações que ali trabalhavam ou residiam e trabalhavam. Essas
populações passaram a viver em São Raimundo Nonato ou permanecem no entorno do parque com acesso
vedado à área protegida, incluindo-se aí a área onde se realizou esta pesquisa, o município de Coronel José
Dias.
Na pesquisa de campo, todas as pessoas entrevistadas têm alguma relação com o parque, numa
amostra de uma população que passou pela experiência da interdição de uma área concebida pelo sistema do
lugar como região de caça e coleta, o “centre”, como referido por Godoi (1999). Além disto, há também
aqueles que passaram pela experiência da perda da terra de moradia e trabalho ou só de trabalho. Para alguns,
estas perdas prejudicaram suas vidas e de seus familiares, embora já reconheçam a importância do parque:
Sueli: nunca mais voltou lá?
Dolores: não, só fui na festa da despedida.
Sueli: quem fez a festa?
Dolores: o pessoal lá do zabelê, até minha mãe, tiraram foto dela, em cima do
carro, ela discursou. Ela foi professora também, a primeira professora. Ela era
daqui e o marido era de lá. Aí depois que ela foi pra lá não queria mais sair de lá,
gostou de lá.
Sueli: mas quem fez a festa?
Dolores: o povo de lá e muita gente de São Raimundo Nonato, tinha uma mulher
que morava lá, que era professora, convidou o pessoal (...).
Sueli: como foi a festa?
75
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Dolores: foi alegre, mas foi muito triste, muita gente chorava.
Sueli: todos saíram nesse dia?
Dolores: teve uns que ficaram lá ainda, não tinha sido indenizados ainda, mas
depois saíram85.
De fato, a comunidade Zabelê mantinha relações de moradia e trabalho na área que se tornou
parque. A forma como foi desapropriada e desalojada traz a força da injustiça social e da violência, forçando
a quebra daquela relação de pertencimento, sem a compensação por outras formas de pertencer:
Sueli: aí as casas foram derrubadas?
Dolores: foram, a Niède [arqueóloga, que coordena os trabalhos de pesquisa no
parque] mandou passar até o trator, acho que era pro povo não voltar lá, ela não
indenizou todo mundo de uma só vez, tinha uns que diziam que se ela não
pagasse iam voltar pra lá. Tinha um tanque, um açude muito grande, aí vinha o
pessoal, as meninas tomavam banho, passavam o dia lá, gostavam de lá. Final de
semana, faziam festa lá, ia muita gente daqui.
Sueli: e a senhora nunca mais andou lá?
Dolores: não, nunca mais fui não.
Sueli: e sua mãe?
Dolores: morreu e nunca mais voltou lá. Voltou não, ela já tava velhinha, se
impressionou com o prejuízo que teve [grifo meu], com o lugar dela, lá criava
muita fruta, criava muita galinha, tinha criação, tinha tudo, o dinheiro que deram
só deu pra comprar uma casinha lá em São Raimundo Nonato, aí faltava tudo pra
ela, aí impressionou, quando faltava uma coisa ela ficava com as mãos na
cabeça, pensando como era que ia conseguir, aí ela teve amnésia, depois atacou o
derrame, aí faleceu. O pessoal xingaram muito, pressionaram muito a Niède
Guidon (...) (comunicação oral)86
A instituição de uma outra forma de pertencimento para as populações camponesas expulsas do
Parque deu-se através da política de assentamentos da reforma agrária, numa espécie de reparação dos
prejuízos. Por um lado, essa ação não fez parte da política de administração do Parque nem por esta é
apoiada, sendo as entidades representativas de trabalhadores rurais, sindicato e federação, as que buscaram
formas compensatórias para os prejuízos sofridos.
Por outro lado, a administração do Parque também não implementa nenhuma ação de educação
ambiental na área de reassentamento, o que tem contribuído para a intensificação de uma relação predatória
com a natureza. E aqui, é necessário compreender que essa mesma natureza que já fora “centre”, depois lugar
de extração de maniçoba, agora volta a ser espaço de interdição. Nesse processo, a própria natureza é
simbolizada, entre os desalojados, como razão maior do desalojamento e desapropriação das terras com as
quais tinham vínculos afetivos, culturais e identitários:
o pessoal daqui gosta muito de caçar, tem a mania de caçar tatu e agora com esse
parque aqui, o pessoal não pode mais caçar, por que se pegar vai pra cadeia, por
que às vezes muitos caçam com fome. E tão judiando com o pessoal. E outra, o
Zabelê era um povo com quase 70 pessoas morando e esse pessoal era todo
lavrador, trabalhador, esse pessoal ficou nas periferias das cidades, passando
fome, aí depois com muito sacrifício é que nós conseguimo, o sindicato
conseguiu com o incra, não foi nem o parque, foi o sindicato, o sindicato com a
federação do sindicato, que é a fetagui, conseguimos uma fazenda pra eles
85
86
Entrevista realizada na comunidade Barreiro Grande, em 30/05/2004, com Maria Dolores Dias Santos.
Entrevista realizada na comunidade Barreiro Grande, em 30/05/2004, com Maria Dolores Dias Santos.
76
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
trabalharem lá, que é a lagoa, hoje o assentamento Novo Zabelê. O pessoal de lá
passou cinco anos passando fome na periferia de São Raimundo Nonato, eles só
sabiam trabalhar de roça, viviam morrendo de fome, não tinha emprego e não
tinha roça, então nessa parte não foi bom. E outra, a indenização também, eles
era despreparados naquela época e aí quando eles pegaram esse dinheiro, aí
mudou a moeda mudou imediatamente, eles não tinham conhecimento, aí eles
perderam, eles botaram foi em poupança. E ainda tem gente sem indenização.
Daqui muita gente e de João Costa quase ninguém recebeu, continuam morando
na área, mas não podem cortar nem um cipó, que o guarda tá em cima, nunca
foram indenizados e o ibama [IBAMA] não deixa eles cortarem um pau, nada. E
fica num empurra pra lá, empurra pra cá. Não deixa nada de raiz, só mandioca,
feijão e milho. Já chamei a fetague [FETAG] umas três vezes pra reunião lá,
trazendo gente do governo e eles prometeram que vão pagar, aqui também têm
muitos, tem uns vinte e tanto, pra aqui pra baixo, pra barra, lá eles cercaram sem
pagar, só por que tinha umas pedras de cal lá dentro, eles cercaram sem
autorização do dono, tá lá cercado, sem indenizar o pessoal, isso é errado, eles
tinha que pagar o que eles cercaram. Pagando é dono, mas enquanto não pagar
não é dono, aqui ninguém pode caçar, ninguém pode tirar madeira, não pode
fazer nada (comunicação oral)87.
Como indica a narrativa, as populações camponesas que viviam na área, agora de proteção
integral, viraram, de fato caso de polícia: tiveram suas terras desapropriadas, muitos não foram indenizados
ou o foram de forma injusta, além de serem impedidos de plantar, criar, coletar e caçar. Esta situação tem
gerado graves problemas sociais, como conflitos que resultam em prisões; agravamento da pobreza, devido à
perda de postos de trabalho, da terra, de moradia e de raízes. Com efeito, ocorre um processo de profundas
alterações em função de extinção de culturas tradicionais – que já haviam desenvolvido formas de relacionarse com a natureza local, ou seja, perdas de saberes sobre a relação entre cultura e natureza local que, embora
já profundamente marcadas pelos encontros interculturais referidos, ainda guardavam elementos de uma
relação de certo equilíbrio, até pelo fato de a exploração da natureza pelas populações locais não ser maciça,
em função da baixa densidade populacional e, por isso, de um menor raio de ação antrópica.
De fato, os saberes locais foram ignorados, na profunda cisão entre natureza e cultura, operada
pela instalação do parque, justificando, com isso, a ausência humana nos espaços de preservação, em relação
aos quais, efetivamente, as populações locais referidas são tidas como predatórias pela administração do
Parque:
E a gente viu que é uma sociedade completamente destrutiva, por que, por
exemplo, eles caçam, caçam na época da reprodução, caçam fêmeas, eles não
tem aquilo que um verdadeiro caçador tem, de preservar as fêmeas, por que sabe
que se não preservar vai acabar com elas. Eles cortaram toda a madeira e
venderam, então o que acontece, eles (...) florestas inteiras de pau d’arco, aroeira
foram devastadas, venderam tudo pras fazendas do sul. Aí eles pegam aquele
dinheiro e não trabalham, eles não aplicam o dinheiro, enquanto eles têm
dinheiro, é a farra e a bebida. Isso nós verificamos muitas vezes, raras são as
pessoas que a gente conheceu se dedicou ao trabalho e conseguiu fazer um
capital e viver decentemente (comunicação oral)88.
87
Entrevista realizada na comunidade Barreiro Grande, em 01/06/2004, com José Rodrigues do Nascimento.
Entrevista realizada na cidade de São Raimundo Nonato, em 01/07/2004, com Niède Guidon, arqueóloga
que coordena as pesquisas no Parque e que solicitou sua implantação.
88
77
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Esse discurso talvez homogeneíze, sob o rótulo de sociedade, numa referência à sociedade
local, seus vários e distintos segmentos, numa operação que não permite perceber a peculiaridade das práticas
camponesas locais nem os processos de hegemonia social e cultural nos quais estas populações são
subalternas. Nesse sentido, trava-se uma guerra santa entre os defensores do ambientalismo e a “sociedade
local” reificada. Nesse contexto, o drama social (POMPA, 1997) do qual fazem parte as populações
camponesas locais pela forma como o parque foi instituído, aprofunda as fraturas do tecido social
comunitário, chegando a ponto de os seus próprios membros se porem uns contra os outros, em graves
cisões:
Ferreira: Eu tenho um sobrinho meu que matou a irmã dele e ela [Niède Guidon]
tá com ele na prisão, diz que num solta mais.
Rosina: será que ela não solta?
Ferreira: me diz um sobrinho meu, que é delegado de polícia, o Salvador, me
disse bem aqui na noite passada que o Paulo num tá solto porque a família é
muito pobre. Num tem dinheiro, se tivesse já tava solto. Já tá com três anos. E a
pobre da mulherzinha dele aí lutando, trabalhando pra criar a filhinha. E ele lá
pra Bom Jesus, tá preso pra lá. Ele matou ela aí dentro do parco, mas a prisão do
Paulo mais é porque ele matou ela dentro do parco, ele matou a mulher dentro do
parco, uma vigia do parco. Se ele queria matar, eu ia ensinar a ele como fazer,
sair fora do parco, mas no parco, ave-maria, dentro da propriedade do
governo, como é que pode ser solto [grifo meu]? A mulherzinha dele passou
aqui, eu perguntei pra ela “como é, tu tá com fé de ver o Paulo ainda?” ela “tou,
se não morrer”. Ele era dono dessa casa, saiu por causa do acontecido, me
vendeu, eu comprei. Fiz um puxado, também aqui é perto do sítio (comunicação
oral)89
De fato, a cisão ou conflito entre as duas culturas dá-se pelo choque entre a cultura urbana
industrial moderna, que aparece sob a forma de cultura de preservação ambiental e cultura local. A cisão se
concretiza pela substituição, com força de lei, do paradigma de relação das populações locais com a natureza
não-humana, pelos paradigmas preservacionistas, orientados pelos interesses da cultura urbano-industrial.
A crítica a esse paradigma não significa desconsiderar os graves problemas de degradação
ambiental frutos da relação antropocêntrica entre cultura e natureza. Entretanto, não se pode desconsiderar a
pluralidade cultural e, assim, as formas próprias, específicas de os grupos sociais conceberem a natureza e de
estabelecerem relações com ela. Nesse sentido, ao enfrentar os problemas produzidos na relação entre cultura
e natureza, a partir de outra racionalidade e universo simbólico, sem considerar as culturas locais, corre-se o
risco de violentá-las e, com isso, tornar mais profundos, ainda, os problemas relativos à relação destas com a
natureza.
Com efeito, no âmbito do paradigma referido, as cisões entre natureza e natureza são também
notórias: retiram o caráter de natureza do ser humano de tal modo que o ser humano deixa de ser visto como
natureza, não fazendo parte do grande ecossistema da vida. De fato, essa ruptura provoca a impossibilidade
de buscar a integração entre natureza humana e não humana, com vistas a atingir a convivência entre as duas
partes do ecossistema. Isso fortalece a imagem das populações locais como degradadoras, destruidoras do
meio ambiente, representação que merece ser analisada mais detidamente e mais largamente, tomando-se,
89
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Norberto Pinto do Nascimento.
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Maria Sueli Rodrigues de Sousa
inclusive, elementos de antes da criação do parque, no âmbito do próprio discurso de representantes da
proposta preservacionista, quando aí se fala de um meio ambiente conservado:
A cidade de São Raimundo Nonato tinha dez lagoas, aquela barragem que tá lá,
em Coronel José Dias, que na época chamavam de Várzea Grande, aquela
barragem enchia que a água ficava por cima. E o parque era completamente
conservado, tinha uma vegetação de florestas [grifo meu], então foi isso que
nos levou em setenta e oito a apresentar ao governo federal a proposta de criar
um parque. Primeiro por causa dos sítios arqueológicos e segundo por conta
dessa riqueza da vegetação. Então nós chamamos atenção do governo federal da
importância de preservar esta floresta dentro do que era então o parque, em que
tinha muitas nascentes de águas. A situação era bem diferente do que é hoje.
Havia pobreza, mas não como hoje, era sempre aquilo que continua até hoje,
umas famílias muitas ricas e depois a mão de obra que trabalhava para estas
famílias, na verdade, como é a organização social do nordeste até hoje. Então nós
fizemos este pedido e o parque foi criado em setenta e nove (comunicação
oral)90.
Como indica a fala acima, antes da criação do parque a relação entre natureza e cultura local
não era tão predatória, o que pode ser testemunhado pelo estado de conservação da área que não era habitada
ou o era em pequena escala, pois “havia um povoado só dentro do parque” (comunicação oral)91. Como
referido ali, era o espaço sagrado, a morada dos seres protetores da natureza.
Aquele espaço, enquanto fez parte da tradição do véio Vitorino, permaneceu sagrado, ou seja,
até a criação do Parque, vigoravam regras do contrato socionatural, que fundou o sistema do lugar,
determinando a relação com aquele espaço sagrado que fazia parte do patrimônio simbólico desses
camponeses do sertão (GODOI, 1998). No território conquistado, a Fazenda Várzea Grande, os humanos
dominavam, enquanto que no “centre”, os humanos eram subordinados, mantendo uma espécie de contrato
de convivência. Então, se a exploração da maniçoba exigiu mais terras para ampliação do cultivo, o que
resultou na criação da comunidade Zabelê, dentro da área sob os desígnios da natureza, esta foi uma
iniciativa que não se ampliou. Assim, houve um avanço sobre o regramento do contrato, mas este não teve
continuidade, prevalecendo o acordo tácito anterior.
Com efeito, se a extração da maniçoba abrira brechas no referido contrato, as interdições com a
criação do parque parecem rompê-lo mais ampla e profundamente e, com a ruptura, vão-se as regras que
garantiam à área um bom estado de conservação, pois o “centre” fora definitivamente dessacralizado, agora,
pelo governo:
E aí o parque foi criado e foi passando um ano, dois anos, três anos e nenhum
funcionário era nomeado, não acontecia nada e a população, a reação deles foi a
seguinte “ah o parque é do governo, a gente pode matar, pode queimar”
[grifo meu]. Daí começou todo um processo de desmatamento muito grande no
parque. Em oitenta e seis, houve um incêndio muito grande, por que eles iam
caçar e faziam fogo para achar as caças, faziam fogueira e o vento espalhava o
fogo. Houve um incêndio que durou mais de três meses, só parou por que
choveu. Então houve uma degradação muito grande tanto na flora quanto na
90
Entrevista realizada na cidade de São Raimundo Nonato, em 01/07/2004, com Niède Guidon, arqueóloga
que coordena as pesquisas no Parque e que solicitou sua implantação.
91
Entrevista realizada na cidade de São Raimundo Nonato, em 01/07/2004, com Niède Guidon, arqueóloga
que coordena as pesquisas no Parque e que solicitou sua implantação.
79
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
fauna, por que quando ocorre um incêndio assim os seres bióticos tudo morre
(comunicação oral)92.
Na análise aqui empreendida, a criação do parque se configura como terceira ruptura na relação
entre natureza e cultura ou, no caso em apreço, no meio ambiente como um todo, se tomarmos ambiente
como a sociedade toda: instituições, cultura, natureza, cidades, habitat, economia, técnica e artes,
resumidamente, qualquer coisa que o ser humano crie, de que se cerque, das quais se recorde, pelas quais
sofra e deseje.
Essa terceira ruptura se faz com uma tradição de saberes que permitiam a existência de relações
que manteve esse ambiente, até o final da década de 70, em bom estado de conservação. Isto leva a pensar
que a relação estreita das populações locais com as condições ambientais por longos anos, desde a
colonização, no âmbito das sucessivas fricções interculturais, permitiu, em certa medida, o restabelecimento
de códigos dialogais ancestrais entre cultura e natureza (CASTELLS, 2002), de forma que, na instituição do
parque, a região foi percebida em bom estado de conservação e as pessoas que ali habitavam, numa
melhorada situação de pobreza, como referido (comunicação oral)93.
Mas, uma vez mais, após mais uma situação de crise sócio-ecológica local, com a criação do
parque no final dos anos 70, quando se entrelaçam e sobrepõem várias crises locais, somadas a uma situação
de policrise mais ampla, houve ruptura dos códigos e emergência de sinais que enunciam, pelo menos, três
processos: uma nova racionalidade, cujos sinais são perceptíveis nas imagens típicas da cultura urbana que
passaram a fazer parte do discurso das populações locais; a assimilação do discurso ambiental e a assimilação
da proposta intermediada de convivência com o semi-árido.
A nova racionalidade referida é indicada nas narrativas pela enunciação de imagens tais como:
emprego, dinheiro, arruados, escolas e fama, como compensações pelas perdas sofridas:
Dona Isabel: comprou isso aí, desarrranchou o povo de lá, mas deu dinheiro
[grifo meu] pro povo, tão tudo em São Raimundo [São Raimundo Nonato].
Sueli: e esse povo hoje tá vivendo bem?
Dona Isabel: viviam de roça, plantavam algodão, mandioca, tinha muita batata,
muita fartura.
Sueli: e agora?
Dona Isabel: tão tudo bem. Disse que lá no caminho da serra, quando desce a
serra, num tem? Eles moram lá. Fizeram um arruado, um arruado que é uma
beleza [grifo meu]. Eu passo lá só quando vou no ônibus. Aí eu enxergo [uma
referência ao assentamento Novo Zabelê] (comunicação oral)94
Sueli: o parque melhorou a vida por aqui?
Marilu: por umas partes sim, por outras não.
Sueli: em que melhorou?
Marilu: na parte de trabalho[grifo meu], ajudou muito as pessoas, não falo
minha família. Todos aqui, agora mesmo com esse problema da crise da fundã
[FUNDHAM] ficou muita gente desempregada. E acho ruim por causa dessa
questão lá do olho d’água, por que de lá papai tirava tudo, dava pra gente comer
e vender pra comprar outras coisas.
92
Entrevista realizada na cidade de São Raimundo Nonato, em 01/07/2004, com Niède Guidon, arqueóloga
que coordena as pesquisas no Parque e que solicitou sua implantação.
93
Entrevista realizada na cidade de São Raimundo Nonato, em 01/07/2004, com Niède Guidon, arqueóloga
que coordena as pesquisas no Parque e que solicitou sua implantação.
94
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira.
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Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Sueli: vocês viviam melhor antes?
Marilu: é, com certeza (comunicação oral)95
Genival: O nosso município ficou famoso no mundo todo, vive aparecendo
na televisão e a gente fica orgulhoso disso [grifo meu] (comunicação oral)96.
Por sua vez, o processo de assimilação do discurso ambiental é percebido na enunciação, pelas
populações locais, de imagens de interdição na gestão do parque: não desmatar, não caçar, não queimar:
Ferreira: a doutora Niède é uma mulher sabida e malvada, mas ela fez uns
benefício aqui bom, como a caça mesmo se ela não tem proibido a caçada
aqui [grifo meu], já era uma fome terrível e hoje, não, tá cheio de tudo quanto
é coisa boa [grifo meu], nesse parco dela. Mas vejo dizer que o Lula quer
diminuir esse parco, mas tem um chefe aí que não aceitou diminuir o parco. Diz
que é por que é muito grande. Mode a indenização, mas ele disse que vai pagar
todas as custas do parco, ela gasta muito, a doutora Niède, gasta demais, o parco
é grande. Mas ela, se ela não tivesse feito isso, aqui tava uma pobreza horrível de
grande. Justamente que tinha muita caça. Agora ela não deixa matar de jeito
nenhum (comunicação oral)97
Sueli: você gosta do parque?
Genival: eu gosto por que é coisa que preserva a nossa história e a nossa
fauna. Acho que se não existisse esse parque hoje já não existia mais
nenhum desses animais que existe hoje aqui. É uma boa forma de preservar
o que já teve no nosso município [grifo meu] (comunicação oral)98.
Por seu turno, o discurso de convivência com o semi-árido é enunciado através das seguintes
imagens: o sol como positivo, a captação de água da chuva, a criação de animais e tecnologias apropriadas às
condições climáticas:
Gérson: o sol é nossa riqueza [grifo meu]. No semi-árido, o sol por umas partes
pode até atrapalhar, mas por outras não atrapalha muita coisa não. Quando tem
chuva, tem que ter o sol pra controlar, mas o sol às vezes mata as plantas, mas
por outro lado é bom também. Por que onde tem só inverno sem sol não produz e
a gente tem que aprender a conviver com isso [grifo meu]. Uma hora quebra,
outra se recupera.
Sueli: vocês fazem aproveitamento do sol pra alguma coisa?
Gérson: sim, aqui, por exemplo, a gente cria o bode [grifo meu]. A criação do
bode não se dá com muita chuva, se não tiver o sol, não produz nada, não cria.
Adoece, não dá. Então como a criação é criar bode mesmo, então o sol não
atrapalha não. Desde que tenha controle, com a chuva criar o pasto [grifo
meu] e ter o sol também. A criação de bode se dá bem com o sol (comunicação
oral)99
É importante perceber que os referidos processos mediam o restabelecimento de códigos das
populações camponesas com o suporte natural, num contexto complexificado. Com efeito, pode-se
vislumbrar, aí, indícios de relações que permitem vida à natureza e à cultura, na configuração de um sistema
95
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 02/07/2004, com Marilu Sanches Antes.
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 02/07/2004, com Genival Nascimento Pereira.
97
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Norberto Pinto do Nascimento.
98
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 02/07/2004, com Genival Nascimento Pereira.
99
Comunicação oral com Gérson Dias dos Santos, realizada no Bairro São Pedro, em 28/05/2004.
96
81
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
auto-organizador ou auto-eco-organizador, isto é, autônomo/dependente em relação aos seus ecossistemas
(MORIN, 2002), que pode ser percebido na forma como falam da importância do parque, inclusive já
moderando problemas havidos durante o pico da crise.
Dos três processos em análise, dois tratam da relação entre natureza e cultura e surgem,
aparentemente, sem dialogar entre si: preservação ambiental e convivência com o semi-árido. O terceiro
surge a partir dos outros dois, visto que ambas as mediações são conduzidas por sujeitos e projetos da cultura
urbana.
Entretanto, vale salientar que uma diferença básica entre o processo de assimilação do discurso
ambiental e o da proposta de convivência com o semi-árido reside nas metodologias adotadas nos dois
processos: o primeiro não partiu dos saberes locais:
Sueli: o senhor acha que com a vinda do parque melhorou a vida das pessoas?
José Belisário: bom, eu acho que melhorou, não melhorou pra mim, por que eu
nunca trabalhei lá, também ninguém me ofereceu nada. Num fiz parte, nem
ninguém [grifo meu], nem nunca me deram parte.100
Quanto ao segundo processo, este abordou as populações locais em interlocução permanente em
todas as suas etapas, o que resulta numa assimilação mais rápida do discurso mediado. De fato, a mediação
pelas ONG’s, especialmente, a Cáritas Brasileira e o IRPAA teve início em 2001. Como se pode ler, abaixo,
conteúdos da proposta já se mostram integrados ao discurso local, especialmente, a desmistificação da
natureza semi-árida, no que tange à culpabilidade humana pelas secas:
Sueli: por que você acha que tem seca?
Gérson: acho que a seca tem os fenômenos que trazem, não sei se é isso mesmo.
Não sei porque nuns lugares chove, noutros não. É fenômeno da natureza
[grifo meu]. Nele girar, naquelas áreas a que pertence o fenômeno acontece a
seca.
Sueli: pode ser castigo de Deus?
Gérson: não, não é não. Deus não vai castigar assim todo tempo não. Pode dar
um castigozinho, mas não é assim todo tempo não. É mesmo a natureza, sei que
é Deus que manobra a natureza, mas a seca não é castigo de Deus não. É um
fenômeno que acontece. Aqui o semi-árido vem de muitos anos, não foi
criado por a gente aqui não [grifo meu] (comunicação oral)101
Nesse processo, a metodologia de trabalho consiste em tomar decisões, realizar atividades e
prestar contas da gestão do processo, em conjunto com as populações locais. Em alguns momentos com
representantes, noutros, direto com as comunidades102.
100
Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com José Belisário de Miranda.
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos.
102
Os momentos de decisão são realizados com representantes das comunidades, por suas associações, do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais, da Igreja Católica e do poder público municipal. A execução do projeto
é feita diretamente com as populações locais em forma de cursos, palestras, seminários, encontros, visitas às
roças, mutirões, intercâmbio com outros municípios e outros Estados, com base nas concepções freireanas de
educação popular. O processo de capacitação apresenta dentre seus resultados: escolas municipais e
estaduais, no município, executando o plano decenal de educação, que foi elaborado em oficinas pedagógicas
de capacitação do corpo docente e técnico em contextualização do ensino no ecossistema semi-árido. O
101
82
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Com efeito, essas idéias se concretizam, na prática, com experiências de recuperação da
valoração de plantas e animais típicos do semi-árido, como o umbu [Spondias tuberosa Arruda Câm] e o
bode [Capra hircus]. De fato, havia preconceito com os dois espécimes: a carne de bode era tida como de
qualidade inferior, comparada à carne bovina e a de ovelha, sendo, às vezes, vendida como carne de ovelha
pela semelhança com esta e pelo preço melhor. Atualmente, ocorre exatamente o inverso: carne de ovelha é
vendida como sendo de bode, por esta encontrar-se mais valorada na região.
O umbu era tido como alimento só para os porcos. Atualmente, o fruto é colhido e processado
em doces, geléias e sucos, vendidos como produto exótico em eventos de feiras e negócios na capital do
Estado e noutras, como produto apropriado às condições de semi-árido. A árvore foi simbolizada como ícone
da convivência com o semi-árido e nos cursos, agentes das referidas ONG’s apresentam o umbuzeiro como
exemplo a ser seguido pelas populações do semi-árido, por ser uma árvore que muda seu comportamento
conforme a oferta de água: perde as folhas, quando há escassez, ganha cor cinzenta para reduzir a perda de
água e capta água de chuva em suas raízes.
Sem dúvida, esses processos instituintes de uma nova convivência com o semi-árido constroem
imagens atenuantes para os problemas existentes na relação das populações locais com o Parque. Entretanto,
não se pode desconsiderar que essa relação é facilitada pelos empregos que a administração do Parque
possibilita para membros de muitas famílias. De fato, uma pessoa empregada no parque provoca mudança na
forma de representá-lo no conjunto da família:
Sueli: você pensa trabalhar em que?
Marilu: aqui mesmo em Coronel, o único ponto da gente trabalhar com essas
coisas é o Parque.
Sueli: você tem vontade de trabalhar no parque?
Marilu: eu tenho (comunicação oral)103.
José Belisário: mas eu vejo muitas e muitas partes de gente que fizeram parte.
Quando ela [Niède Guidon] chegou aqui todo mundo acompanhou ela, iam
mostrar as tocas, os carreiros, as caatingas, ela foi tomando pé, foi tomando
conhecimento, e foi se melhorando a vida de muita gente. Tem muitos que tão é
rico, ela dá emprego, outros são empregados de guarda, de escola, de hotel, tudo
ela tem (comunicação oral)104.
Além da geração de empregos, outras formas de atenuação vinculam-se ao processo educativo
das crianças, quando funcionava uma escola dentro do Parque, e ao fato de a região se tornar famosa
mundialmente:
Sueli: você acha que o parque melhorou ou piorou sua vida?
Genival: bem, a minha vida, ele ajudou em algumas partes e piorou em outras.
Ajudou na seguinte forma, por que eu tive, minha educação básica foi com a
vinda desse parque, por que a doutora Niède, assim que chegou, ela educou
muitas pessoas aqui. Agora, a parte que prejudicou foi, além da gente viver da
agricultura, ela neutralizou o nosso forte, aí, neutralizou o nosso forte e não deu
produto das oficinas, ao todo 08 oficinas, realizadas ao longo de três anos, materializou-se na primeira lei
municipal de educação para convivência com o semi-árido, constante no anexo V.
103
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 02/07/2004, com Marilu Sanches.
104
Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com José Belisário de Miranda.
83
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
outra maneira de sobreviver para os que tavam lá dentro do parque, isso foi o que
prejudicou (comunicação oral)105.
Nesse processo de harmonização, até mesmo a interdição das práticas de caça, extração e
queimadas, motivo central dos conflitos, é atenuada e vista como positiva. O mesmo se pode dizer da
extração da cal de forma predatória, uma das alternativas econômicas também interditada, mas essa
interdição também é vista de forma atenuada:
Sueli: e na exploração da cal, matava, prejudicava a natureza?
Manoel Lourenço: aí acabou com a caatinga. Foi a coisa melhor que Niède fez
foi acabar com isso. Proibir isso. Esse mundo era desmatado, tiraram as
madeiras tudo, queimaram tudo, você andava umas cinco léguas, era tudo
desmatado, pra queimar o cal [grifo nosso] (comunicação oral).106.
Efetivamente, percebe-se que o parque começa a fazer parte da vida das pessoas do lugar, que,
por sua vez, enunciam saberes ambientais de preservação da natureza. Assim, embora reconheçam os
prejuízos provocados em suas vidas com a criação do parque, conseguem perceber a importância de preservar
a caatinga, não caçar, numa espécie de reconhecimento dos direitos da natureza (REDCLIFF, 2002), no
âmbito de uma nova condição ético-comunicativa, capaz de orientar ações de forma convergente em
contextos diversos e com atores de interesses divergentes. Anuncia-se, talvez, uma ação comunicativa que
orienta os membros da comunidade em direção ao entendimento e à integração (LEIS, 2001). Inclusive, no
que diz respeito à relação com as condições ambientais específicas de semi-árido, demonstram conhecer
melhor as possibilidades e limitações do ecossistema, sinais de desmistificação das secas e uso apropriado de
estratégias de convivência com o ambiente semi-árido:
Sueli: vocês aproveitavam o umbu?
Silvera: aproveitava sim, antigamente, era um refrigério do pobre pra comer.
Tirava pra comer, pra fazer a umbuzada pra dar pros filhos, que tinha o leite,
quem não tinha chupava mesmo.
Sueli: como é que faz a umbuzada?
Silvera: se for do umbu verde, você tira ele, cozinha, depois de cozinhado você
espalha bem espalhadinho numa corda, peneira o que você quiser se não quiser
pode fazer sem peneirar. Cozinha bem cozinhado, você pode bater bem batidinho
ele e botar o leite e bota o doce. E se for maduro, você espreme e faz daquela
água, bota o leite e o doce.
Sueli: e esse leite pode ser de cabra?
Silvera: pode ser leite de cabra, do leite que for que você quiser.
Sueli: a senhora já tomou com leite de cabra?
Silvera: já, aqui pra nós aqui, a gente já labutou muito com leite de cabra, agora
não labuto mais não. Quando os meninos eram pequenos, eu labutei muito com
criação, eu era vaqueira. De gado é que eu não tenho costume, nunca criei. Leite
de gado eu tou labutando agora por que eu compro.
Sueli: a senhora acha que a seca é castigo de Deus?
Silvera: eu não sei não, eu nunca pensei que fosse castigo, pode até ser mais eu
não sei não. Por que eu vejo tanta coisa aí, que o povo faz e não é castigo, é por
moda (comunicação oral)107
105
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 02/07/2004, com Genival Nascimento Pereira.
Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com Manoel Lourenço Paes.
107
Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 30/05/2004, com Silveira Pereira Paes.
106
84
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Com efeito, as relações ambientais, no presente, com a natureza semi-árida são vistas,
comparadas com as do passado, como melhores, com mais possibilidades de acesso à água:
Dona Isabel: lá bebiam água de caldeirão, desciam no pé de pau, o jatobá,
desciam pra encher o barril, enchiam o barril, enchiam as cabaças e eu recebia na
corda. Eu passava tempo lá mais eles. Ainda tem um vivo, ele acha muita graça
que eu ando de moto, na garupa de moto, ele mora no Paraná, ele fala no
telefone, acha graça de eu andar em garupa de moto. Ele morava lá, ele descia
para panhar água e puxava na corda. Lá mais adiante tinha outro, eu não descia
não que eu tinha medo, eu só fazia ajudar. Lá mais adiante tinha outro caldeirão,
que descia na pedra. Esse de cá era no pé de pau e o de lá era na pedra. Da pedra
tinha escada. Tinha a Zefa que subia a escada. A Zefa do Cancador subia com o
barril na mão na carreira, ligeiro. A água lá é caldeirão fundo.
Sueli: ainda tem esses caldeirões lá?
Dona Isabel: agora hoje tem muita água, depois fizeram um açude, não sei se foi
o Neuton ou o Bitoso que fez açude lá, aí não faltou mais água (comunicação
oral)108.
Sueli: e sua água vem de onde?
Manoel Lourenço: agora eu tou pegando na cacimba que eu tenho ali. Quando
chove é muita água. E quando não chove, a gente cava no chão e sempre
consegue água. Acho que esse rio que passava aí, que secou, mas secou e ficou
água embaixo. Quando a gente não tem água é só cavar dez palmos que dá água.
Agora é salgada, não serve pra beber não. Pra beber a gente tem o caldeirão que
a gente pega a água da chuva. Tem pra ali cacimba, poço, os caldeirão [grifo
meu] [cisterna de captação de água da chuva]. No outro tempo bebia salgada
mesmo, no tinha outro meio, agora não (comunicação oral)109.
Sem dúvida, podem-se perceber, nos novos discursos, indícios de estabelecimento de um novo
diálogo entre cultura e natureza, como base para uma nova relação entre formas de vida humana e condições
sócio-ambientais. Um diálogo que engloba e considera as relações entre ciência e saberes tradicionais locais,
entre tradição e modernidade, que implica num processo de hibridação cultural, produzido por diferentes
culturas, possibilitando ressignificar as identidades individuais e as sociais (LEFF, 2001). A propósito desse
imaginário, como processo em construção, o capítulo 4 aborda o imaginário sertanejo com ênfase nas
populações locais da área estudada.
108
109
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira.
Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com Manoel Lourenço Paes.
85
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
CAPÍTULO IV
IMAGINÁRIO SOCIAL DE SEMI-ÁRIDO EM CONSTRUÇÃO: NOVOS DIÁLOGOS ENTRE
NATUREZA E CULTURA?
Neste capítulo, o imaginário social de semi-árido é abordado como em processo de instituição,
a partir do habitus das culturas sertaneja e nordestina, considerando-se que a própria cultura nordestina se
institui a partir da cultura sertaneja. De fato, trata-se de como conjunto de artefatos (linguagens, palavras,
conceitos, técnicas e regras), originalmente, construído por sujeitos diversos no contexto crísico da
colonização e que segue em sua dinâmica histórica, na produção e reprodução da vida material e simbólica
pelas relações e práticas sociais.
4.1. Imaginário social de sertanejo a nordestino: de secas e retiradas
No imaginário social, processo e produto funcionam como uma memória, transmitida de
geração em geração, na qual se encontram conservados e reproduzíveis todos os artefatos simbólicos e
materiais que mantêm a complexidade e a originalidade da sociedade, depositária da informação social, em
que pesem as atualizações decorrentes da dinâmica do processo cultural. Trata-se, assim, de um processo que
alimenta as maneiras próprias de ser, representar e estar em sociedade (GEERTZ, 1978).
Nesse sentido, o que se entende por cultura sertaneja, como cultura, em geral, funciona pela
engrenagem sócio-histórica que permite a produção e a reprodução cultural pela sua institucionalização na
sociedade. Esse processo conta com sujeitos do universo político, assim como do sócio-artístico-cultural, em
contexto amplo e local. A primeira delimitação contextualiza-se, em termos amplos, no cenário da
colonização, uma espécie de aventura da conquista e ocupação do sertão, as terras americanas, que, para os
colonizadores portugueses, significavam um imenso vazio a ser preenchido com seus interesses, concepções
e valores. Em diálogo com Ricardo (1959 apud MORAES, 2000), um grande deserto, um desertão, como era
representado110, que tanto exercia atração quanto gerava medos quer de seres reais, quer de imaginados, de
animais e plantas, dos índios considerados bárbaros e selvagens, dos caminhos e grotões. A ocupação
gradativa daquele espaço faz emergir duas imagens: a do lugar, como uma espécie de fronteira em
movimento e a do sujeito social, que adentrava o sertão, como pessoas rudes e fortes.
No contexto regional do que hoje se conhece como Nordeste, a concepção de sertão se forja nas
dimensões econômica e política, mediante o estabelecimento de fronteiras entre a área de cultivo da cana-deaçúcar, o litoral, e a de criação de bovino, o sertão. Dessa bipartição territorial resultou a base conceitual,
profundamente enraizada nos discursos relativos à construção da nacionalidade brasileira: o sertão é o que
não se configura como litoral (MORAES, 2000). Esta representação, de fato, ultrapassa as dimensões
espaciais e ganha contornos políticos e culturais no imaginário do Brasil como nação.
Esta construção original desdobra-se em outras que apontam para o universo artístico-sóciocultural que, por sua vez, conta com adesão, apoio, consenso, legitimidade e crença. Dessa forma, os
110
Como apontado por Moraes (2000), o termo sertão seria, de fato, uma corruptela do termo “desertão”.
86
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
artefatos culturais e os próprios indivíduos são criações culturais e históricas que, uma vez instituídas, dão
coesão e unidade interna à “instituição total da sociedade”, como visto por Castoriadis (1987, p. 230),
funcionando como um tecido imenso e complexo de significações que “impregnam, orientam e dirigem toda
a vida de ‘uma dada’ sociedade e todos os indivíduos que, corporalmente, a constituem”.
Obras literárias como, por exemplo, “Grande Sertão Veredas” (ROSA, 1986), “O Sertanejo”
(ALENCAR, 1992) e os “Os Sertões” (CUNHA, 1999), pertencem a esse universo de criações culturais que
contribuem com a instituição do imaginário social de sertão. Essas criações são, como dito por Castoriadis
(1987), imaginárias, porque introduzidas na sociedade por um processo criativo e por não corresponderem
nem se esgotarem nos elementos racionais ou reais. São sociais, porque só têm existência enquanto
instituídas e compartilhadas por um coletivo impessoal e anônimo.
Nesse sentido, as criações sócio-históricas, dentre elas as identidades dos indivíduos e dos
territórios, formam o conjunto das significações imaginárias que, juntamente, com o processo de sua
instituição, constituem o imaginário social. Este se desenvolve sempre em duas dimensões, que não podem
ser dissociadas: a dimensão lógica e a dimensão propriamente imaginária.
Pela primeira dimensão, a sociedade opera, age e representa, por meio de elementos, categorias,
propriedades e relações tidas como distintas e definidas. Neste aspecto, para a instituição do imaginário
sertanejo, foram-se mesclando a localização geográfica – distante do litoral, atividades rurais - agricultura,
pecuária, o aspecto físico das pessoas, suas vestimentas, a forma de plantar e criar, as relações sociais
estabelecidas, o modo de vida, enfim.
Na dimensão propriamente imaginária, o esquema dominante é o da significação, que se
conecta uma a outra como uma cadeia infinita e não previsível, funcionando a partir do remetimento-renvoi
(CASTORIADIS, 1987). Nesse sentido, o imaginário sertanejo inclui crendices, modo de vestir, de agir, de
falar. A instituição básica desse imaginário é a língua, transformada em linguagem pelos seus usos instituídos
e narrativos em contextos e situações diversificadas. Os sujeitos são emoldurados como indivíduos com
direitos e deveres, ou seja, como sujeitos formados e informados por um processo constante de aprendizagem
social.
A informação, instituída pela memória, gestão, distribuição e recepção de cultura, liga as
dimensões lógica e imaginária, garantindo a produção e reprodução da cultura. Isto dimensiona a prática
social informacional pelos mecanismos através dos quais os significados, símbolos e signos culturais são
transmitidos, assimilados ou rejeitados pelas ações e representações dos sujeitos sociais, em suas formas de
participações nos espaços instituídos (GEERTZ, 1978).
A referida participação dos sujeitos efetiva-se em determinados campos111 e depende do habitus
de cada agente social que, por sua vez, representa o esquema de percepção e de ação de cada indivíduo,
esquema esse adquirido e formado pela história social de cada um deles e resultante de um longo processo de
aprendizagem formal e informal. O habitus, funcionando no estado prático da vida social, permite aos seus
111
O conceito de campo está relacionado à forma de estruturação do espaço social e associado às subdivisões
do contexto cultural mais amplo. Os diferentes campos existem em uma dada formação cultural e gozam de
relativa autonomia na sua maneira de funcionar e existir. É uma situação institucionalizada em que os agentes
desenvolvem suas ações como atividades regidas por regras válidas para cada campo, especificamente. Os
87
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
portadores operar um senso prático da vida, como um esquema de percepção, de apreciação e de ação que é
acionado em determinadas situações sociais (BOURDIEU, 1980).
Nesse sentido, é importante reconhecer que os agentes ocupam no espaço social uma posição
determinada pela sua origem de classe ou grupo social. E, a partir da sua posição neste espaço, esses agentes
elaboram representações e executam ações estruturadas pelas diferenciações entre eles próprios. Portanto,
trata-se de um campo de forças onde os agentes se enfrentam com meios e fins diferenciados, de acordo com
sua posição numa estrutura de posições, contribuindo desse modo para conservá-la ou transformá-la
(BOURDIEU, 1989 e 1994).
Nessas condições, o agente social se expõe e é exposto num encontro entre habitus e campo
social de modo que, numa dimensão inconsciente112, através de suas práticas sociais, aciona o seu esquema
perceptivo, o que orienta as suas ações e representações sobre as estruturas objetivas e sobre a sua posição e
dos outros agentes, no sistema de posições sociais constituído pelos diversos campos sociais.
Bourdieu (1982) identifica dois traços básicos comuns aos diferentes campos sociais: o
primeiro deles refere à geração da cultura como matéria de trabalho ou de uma prática colocada sob a esfera
da produção; o segundo, à sua organização em campos sociais que classificam os sujeitos como produtores e
receptores dos bens culturais, dentre a camada social dotada de meios sociais (origem e pertencimento de
classe) e instrucionais (cognitivos), para manejar os códigos de deciframento das mensagens contidas nos
bens culturais.
Nesse sentido, a geração da cultura pelas práticas sociais e sua organização, nos campos sociais,
constituem o universo simbólico sertanejo que, subdivido em campos de produção cultural, transforma o
capital cultural em privilégios e distinções, criando bens culturais, dispostos num mercado simbólico, em que
o valor de uma produção cultural é determinado no funcionamento dos campos sociais, sendo os bens
culturais o objeto da informação/comunicação. Importante salientar, em diálogo com Bourdieu (1996), que os
bens culturais não são compartilhados socialmente, mas distribuídos conforme as instâncias de produção,
reprodução, transmissão e aquisição, compondo o modo de funcionamento dos campos sociais, que
funcionam pela informação/comunicação e pelas condições de produção transmissão e aquisição dos próprios
bens.
O processo informativo/comunicativo em que se situam os campos sociais e as condições de
produção transmissão e aquisição dos bens culturais dão dinamicidade ao imaginário social, permitindo
novas configurações simbólicas a partir de matriz imaginária, ou imaginário radical, como considera
Castoriadis (1982). Nesse sentido, pode-se considerar que o universo simbólico sertanejo comporta-se como
matriz instituidora de outros imaginários sociais, como os de Nordeste e semi-árido.
campos exigem investimentos que implicam a posse e utilização de um capital cultural adquirido na família e
reforçado pela experiência escolar e pelas práticas sociais (BOURDIEU, 1980).
112
Por ser forjado no interior de relações sociais exteriores, necessárias e independentes das vontades
individuais, o habitus possui uma dimensão inconsciente para os sujeitos, uma vez que estes não detêm a
significação da pluralidade de seus comportamentos e nem dos princípios que estão na gênese da produção
dos seus esquemas de pensamentos, percepções e ações: “...o habitus tende a assegurar sua própria
constância e a sua própria defesa contra a mudança através da seleção que ele opera entre as informações
novas, rejeitando, em caso de exposição fortuita ou forçada, as informações capazes de colocar em questão a
informação acumulada e sobretudo desfavorecendo a exposição a tais informações...” (BOURDIEU,
1980:102)
88
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Desse imaginário sertanejo faz parte um cenário no qual as categorias são imagens sociais que
acompanham os indivíduos para além de seus vínculos orgânicos nos seus campos sociais. De fato, estas
deixam de ser apenas referência distante para se caracterizarem como interlocutor privilegiado no
estabelecimento das identidades sociais a partir dos vínculos dos indivíduos aos campos sociais bem
definidos e permanentes - família, vizinhança, etnia, trabalho – associados a grupos sociais categoriais,
menos constantes, mais claramente submetidos à ação do tempo, da história, das circunstâncias, resultado da
expansão da quantidade de referentes sociais produzidas pelas sociedades. Tais referentes trazem, como
conseqüência, o surgimento, cada vez mais novas, de categorias que, se produzem um aparente esvaziamento
do imaginário, são, de fato, o processo de reconfiguração e ressignificação de outros universos simbólicos
imaginários pela consolidação das novas categorias (CASTORIADIS, 1982).
O referido cenário conta com imagens representativas das identidades sociais e do território,
encontráveis na literatura, nas artes plásticas, na música popular, nos discursos locais e amplos, como se pode
perceber no fragmento abaixo de um dos clássicos da literatura sobre o sertão:
O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é
por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas,
demais do Urucuia. (...). Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de
fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador;
e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O
Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá –
fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes;
culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens
dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim,
cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... o
sertão está em toda a parte (ROSA, 1986 : 1).
João Guimarães Rosa fala dos sertões de Minas Gerais, Bahia e Goiás, apresentando o
território sertanejo como lugar distante, interiorizado, pouco povoado, com muitas terras, onde predomina a
natureza e onde há terras sem proprietários “onde os pastos carecem de fechos”, fora dos raios do poder
coercitivo do aparato estatal e com fronteiras não delimitadas.
A forma pela qual o autor descreve o sertão denuncia o que Tuan (1980) chama de topofilia, ou
seja, “o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico” (TUAN, 1980, p.106), com a memória
cultural sendo construída pelas relações entre cultura e natureza. Esse elo afetivo referido remete a relações
que podem ser estéticas, prazerosas, táteis - sentir a água, o ar, a terra, enfim, através dos sentidos, pelas
formas, cores, sons, odores, movimentos corporais, sabores do comer e beber e nos sentidos de reflexão e
reação, num “trivium” de sensação, percepção e representação, em que as sensações recebidas e percebidas
se comunicam para a construção das imagens que se agregarão ao imaginário social. Tais imagens
proporcionam o enraizamento humano no lugar e os valores do espaço habitado constituem a concha
protetora e criadora de imagens que permanecem guardadas escondidas na base do imaginário social, o que
atribui um valor simbólico ao meio ambiente vivido. A topofilia dialoga com o que Castoriadis (1982)
considera valor do lugar, como espaço de posse, espaço proibido, forças adversas, espaços amados.
Nessa direção, o ambiente construído pela narrativa de João Guimarães Rosa é um nicho, um
abrigo no qual o laço se torna lugar, como visto por Maffesoli (1987), ao tratar imaginário territorial, como
89
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
lugar em que os objetos naturais ou construídos, diretamente relacionados com a existência humana, estão
guardados na memória. E a memória, por sua vez, alimenta-se de uma materialidade, uma espécie de coleção
de imagens em relação ao lugar, aos elementos da natureza como rios, montanhas, campos, florestas. Estas,
por sua vez, emergem na linguagem de Rosa (1986) através do personagem Riobaldo, ao descrever o seu
modo de ser, o das outras pessoas, no falar da terra. Nesse sentido, a terra, a vida e o ser humano formam
complexo físico, biológico e antropológico (MORIN, 2002), como se pode perceber no trecho abaixo:
Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. (...) Inveja minha pura é de
uns conforme o senhor, com leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja
analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive
mestre, Mestre Lucas (...) eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou
nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo... Eu quase que
nada sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para
pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira,
e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém! (ROSA, 1986, p. 7-8).
O universo simbólico do imaginário sertanejo acima representado conta com imagens de uma
identidade social portadora de autonomia, força, consciência, o que a diferencia das demais identidades,
especialmente, as da cultura urbana.
O imaginário de sertão na obra referida não se refere exclusivamente ao Nordeste, mas engloba
parte deste território. E é em diálogo com este imaginário que se esboça o imaginário de sertanejo nordestino,
especificamente, no que diz respeito ao caráter de fortaleza e autonomia. Nesse sentido, num estreito diálogo
com Euclides da Cunha, incorporam-se
imagens trágicas das secas, fruto da natureza e da história,
lembrando, inclusive, que este autor contribui para pensar o sertanejo, em si, como sujeito social e histórico.
A reunião desses elementos: a força do sertanejo e o drama das secas são a fonte do que se
materializa tanto em linguagem quanto em imagem, na composição do imaginário que por sua vez, dialogam
no processo de ressiginificação e redefinição das identidades, fazendo coexistirem três universos, como dito
por Castoriadis (1982), um linguageiro, outro imagético e um terceiro, o qual se apresenta no entrelaçamento
dos dois primeiros, submetido à história. De fato, historicamente, a produção do imaginário nordestino tem
como um de seus motores a mistificação das secas como geradoras de todos os males sócio-econômicos, num
processo de culturalização da natureza e naturalização da cultura, em que as imagens e linguagens de
humanos se entrelaçam com o mundo natural:
Chape-chape. Os três pares de alpercatas batiam na lama rachada, seca e branca
por cima, preta e mole por baixo. A lama da beira do rio, calcada pelas
alpercatas, balançava.
A cachorra Baleia corria na frente, o focinho arregaçado, procurando na catinga
a novilha raposa.
Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a
família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de
um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos
tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos
sofrimentos passados esmorecera.
Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas
sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o ao binga, pôs-se a fumar
regalado.
- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
90
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se
ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era um homem: era apenas um
cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os
olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava
de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgavase cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a
frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
- Você é um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de orgulho.sim senhor, um bicho, capaz de vencer
dificuldades.
(...)
- Um bicho, Fabiano.
Era. (...) não tinha onde cair morto, passara uns dias mastigando raiz de imbu e
sementes de mucunã.
(...) Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes,
estava plantado. Olhou as quipás, os mandacarus e os xique-xiques. Era mais
forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. (...).
(...)
Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era
correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um
vagabundo empurrado pela sêca.
(...). A cachorra Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe as mãos grossas e cabeludas.
Fabiano recebeu a carícia, enterneceu-se:
- Você é um bicho, Baleia.
Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animais. Os seus pés duros
quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se
com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica
e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem.Pendia para
um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações
com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos - exclamações,
onomatopéias. Na verdade, falava pouco. Admirava as palavras compridas e
difíceis da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram
difíceis e talvez perigosas (RAMOS, 1977, p. 18-21).
No texto de Ramos (1977), a identidade social do personagem Fabiano experimenta uma
relação de aproximação e distanciamento com o mundo animal. Homem e cadela são tomados um pelo outro
e, ambos, são produtos das condições climáticas, na especificidade das secas. A relação topofílica apresentase carregada de sentimentos que denotam uma identidade cuja força vem da natureza – ser bicho, árvore, mas
numa condição subalterna marcada fortemente pelas secas. Estas representadas como a tragédia que faz do
sertanejo nordestino um errante, que migra massivamente a cada período de seca, portador da carga
simbólica trágica, como expressa o trecho abaixo.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
91
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história da minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra (MELO NETO, 1977, p. 21-25)
Severino busca identificar-se, inicialmente, pela forma primeira e mais explícita de ser, pelo
nome, no que falha por haver tantos outros com o mesmo nome e iguais não apenas no nome, mas “em tudo
na vida”. Apresenta-se, então, como um ser inscrito num universo lingüístico, situado em primeira pessoa,
quem fala, e agente da ação social – migrar - presenciada pela segunda pessoa do discurso, com quem ele
fala. Assim, o que é acrescido à falta de contorno, adquire caráter de identidade, isto é, afirmar-se a si mesmo
para um outro que o escuta é absolutamente necessário para a afirmação de um eu com desvalia evidente.
Desvalia esta, de fato, provocada por relações de poder, configuradas na espacialidade social das condições
climáticas que provocam as secas, as quais condicionaram a anulação do indivíduo humano como ser
individual e coletivo que, pela ação de migrar, busca reverter a situação, reinventando e ressignificando a si
próprio.
Esta imagem e linguagem de tragédia se agregam ao imaginário sertanejo e, depois, ao
nordestino na segunda metade do século XIX, como fruto da crise econômica por que passava a região que, a
partir de então, tem as condições naturais tomadas como principal causa dos seus problemas. Isto seria
amplamente utilizado no discurso das elites regionais para obtenção de maiores benefícios, na forma de
recursos públicos, resultando no estabelecimento de uma imagem do Nordeste pela qual a região e seu povo
são condenados à pobreza e ao sofrimento por uma natureza difícil de ser domada.
Daí fazerem parte do imaginário nordestino as imagens de sertanejo bravo, forte, que não
declina, que sonda o céu freqüentemente, amedrontando-se quando este se mostra limpo de nuvens e cheio de
esperanças ao enxergar as nuvens cinzentas (CUNHA, 1999)113. Há ainda as imagens de moribundos,
esfaimados, analfabetos e rudes; imagens de sofrimento, resignação e desespero frente a um mega poder da
natureza; imagens de retirante, que deixa o lugar dos seus afetos, imagens de roceiros simples e
113
A propósito, é comum encontrar na literatura sobre sertão, inclusive na piauiense, a presença constante do
movimento cíclico da natureza, águas e secas, descrevendo a vida social (DOBAL, 1998; IBIAPINA, 1998 e
CASTELO BRANCO, 1988).
92
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
visceralmente ligados a terra; imagens de uma linguagem fortemente ritmada; imagens místicas e religiosas
nas inúmeras promessas e crendices para fazer chover e, especialmente, a imagem de vítima, percebidas nas
representações sociais, na forma de inscrição, marca, traço, significante, face material, visível, palpável, que
os próprios grupos sociais externos e os próprios nordestinos utilizam para forjar a sua identidade e as
identidades dos outros grupos sociais (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003).
4.2. O imaginário social de semi-árido: das retiradas à convivência
A imagem de vítima atribuída/assumida pelo sertanejo nordestino se, por um lado, alimenta a
instituição de uma identidade social marcada pela passividade, servindo de combustão para piedade e
compaixão, por outro, também serve de base para a delimitação e instituição de outras imagens, porquanto o
imaginário social é dinâmico, movimenta-se, dialoga. Com efeito, como dito por Castoriadis (1982), o
imaginário corresponde à existência de uma sociedade instituída. E como há sociedades e sociedades na
composição do tecido social, ele, o imaginário, está submetido às modulações sociais, ao movimento
determinado pelas relações sujeitas à história e à presença de outros imaginários.
Nesse sentido, o processo de instituição imaginária dialoga com a teoria da identidade, esta, a
identidade, considerada como “celebração móvel: formada e transformada continuamente em relação às
formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL,
1998, p. 13), comportando, inclusive, identidades contraditórias, externadas conforme o contexto sóciohistórico-cultural.
Com efeito, o imaginário social de semi-árido é um conjunto imagético de relações composto,
inclusive, pelas imagens referentes ao território114 assim identificadas pelos grupos sociais115 que se
organizam em torno da proposta denominada “Convivência com o Semi-Árido”, referido no capítulo III. Esta
tem como proposição instituir um paradigma de relações entre cultura e natureza de modo que as ações
antrópicas considerem as condições naturais nos seus limites e possibilidades, na região acometida pelas
secas típicas de clima semi-árido.
Assim, é, na esteira do encontro de diversos símbolos, que os discursos do conjunto imagético de
semi-árido, em construção, trazem imagens de solidariedade, pobreza, fome, miséria, ou seja, são mantidas as
imagens trágicas atribuídas às secas, ao lado de imagens indicativas de sujeitos ativos, que compreendem as
limitações naturais e desenvolvem estratégias apropriadas às condições ambientais, como referido no capítulo
III. Emergem, então, novos discursos camponeses sobre o parque e sobre a “convivência com o semi-árido”,
como se pode ler abaixo:
Dona Isabel: aqui todo mundo vivia de roça e de maniçoba. Tinha a maniçoba.
Nesse tempo, todo mundo ia furar as maniçoba pra puder fazer a feirinha pra
puder comer. Esse aqui já foi muito pobre. Era uma pobreza grande. Muita
pobreza. Eu cheguei aqui, o meu marido tinha o ordenado, me chamavam era de
114
Segundo Raffestin (1993), o território se forma a partir do espaço em que é alocada uma ação conduzida
por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível, que se apropria do referido
espaço concreta ou abstratamente, territorializando-o, ou seja, é um locus para onde se projeta um trabalho,
orquestrado em relações de poder.
115
Chamo de grupos sociais as organizações não governamentais (ONG’s), movimentos sociais e sindicais.
93
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
grande. Eu servi a muita gente. Tinha uma pessoa passando precisão, eu
mandava chamar. E quem não tinha morada, eu pegava e botava dentro de casa,
pra dar de comer. Essas meninas sabem [apontando as netas] que eu gosto de dar
de comer o povo. Gosto de dar de comer a quem tem fome. Teve outra seca em
quinze, outra em trinta e dois. Ah, em trinta e dois morreu foi gente. Morreu
gente de fome. Pra escapar comiam maniçoba, croatá116, arrancavam raízes,
cascas pra pisar pra tirar os farelos pra comer. A mucunã117, botavam de molho,
no outro dia pisavam, tiravam a casca, aquela casca grossa aí pisavam, torravam
e ia pisar no pilão pra fazer o cuscuz (comunicação oral)118
Gérson: aqui antes de aparecer todo esse pessoal [grifo meu] pra cá, a gente era
quase ... que não tinha noção do que podia acontecer. As pessoas não tinham
assim ... o método de trabalho era muito difícil, num procurava fazer no sistema
que a gente tá fazendo hoje. Antigamente a gente achava que só em derrubar a
mata e queimar já tava suficiente e hoje não com os conhecimentos que a gente
já tá tendo já, depois dessas reunião, desses projetos [grifo meu] que têm
aparecido. Melhorou muito. A gente teve um entendimento, um conhecimento
do que era antes. Hoje a gente já tá com uma instruçãozinha de saber como
levar a vida no semi-árido [grifo meu] (comunicação oral)119
Os discursos estão pontuados de imagens do universo simbólico do imaginário nordestino:
roça, extrativismo como complemento de renda, as feiras como fonte de abastecimento do que não é
produzido na roça, imagens de seca, fome, pobreza, estratégias de sobrevivência pela extração de raízes,
cascas de pau, frutos silvestres, como a mucunã, junto com imagens avaliativas de relação equivocada com a
natureza, estas, embora, aparecendo em menor freqüência. Tudo isto aponta para um processo instituinte de
imaginário que, como dito por Castoriadis (1982), interfere no jogo que produz e mantém o imaginário social
através dos grupos que têm participação de fato na dinâmica das sociedades, funcionando como elementos
que marcam a continuidade do cenário social.
A presença de mediadores no processo instituinte de imaginário emerge nas narrativas acima,
referidos como “todo esse pessoal” e “projetos” indicados como responsáveis por trazer novos
conhecimentos sobre a relação entre natureza e cultura, especialmente, no que diz respeito à natureza em
sentido mais amplo120, bem como à especificidade semi-árida121, o que aponta para um processo instituinte,
reconhecido pelas populações locais, inclusive, com identificação de alterações provocadas pela mediação,
em relação ao como era antes “Antigamente a gente achava que só em derrubar a mata e queimar já tava
suficiente”122 e como se encontra atualmente “e hoje não, com os conhecimentos que a gente já tá tendo (...)
Melhorou muito. A gente teve um entendimento, um conhecimento (...) Hoje a gente já tá com uma
instruçãozinha de saber como levar a vida no semi-árido”123.
116
[Bromelia sp]
[Mucuna pruriens]
118
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira.
119
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos.
120
Os projetos que tratam a relação entre natureza e cultura, tomando a natureza no sentido mais amplo
referem-se à intervenção da FUNDHAM – Fundação Museu do Homem Americano.
121
A mediação que diz respeito a semi-árido é realizada por ONG’s que desenvolvem a proposta de
convivência com o semi-árido, especialmente, a Cáritas Brasileira.
122
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos.
123
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos.
117
94
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Nessa direção, pode-se dizer que o imaginário social de semi-árido se institui em estreita
relação com saberes ambientais124, no sentido atribuído por Leff (2002). Nesta perspectiva, o ambiente semiárido não é apenas um mero circundante, mas uma categoria sociológica referente a uma racionalidade social
que se configura por comportamentos, valores, saberes e novos potenciais produtivos. Isto equivale a dizer
esse ambiente sociológico institui potenciais e limites às formas e ritmos de exploração das potencialidades.
4.3. Símbolos do processo instituinte do imaginário social de semi-árido: arquitetura de uma nova
síntese?
O processo instituinte do imaginário social de semi-árido que emerge das falas dos
entrevistados foi também apreendido a partir das imagens gráficas produzidas por nove sujeitos, pela técnica
do AT-9, com base em Yves Durand (Apud PITTA, 1995), com recortes de gênero e geração. Dentre estes
sujeitos, sete haviam sido entrevistados125.
Esta análise de cunho estruturalista busca apreender a simbologia que, junto com os elementos
narrativos apreendidos pela análise de conteúdo das entrevistas, numa perspectiva compreensivista,
compõem o processo instituinte de imaginário social de semi-árido. Nesse sentido, assim como feito com as
falas conscientes, podem-se analisar o que Bourdieu (1980) denomina dimensão inconsciente subjacente ao
encontro do habitus e o campo social, aqui apreendidas através da técnica AT-9. Nesse sentido, como
referido no capítulo I desta dissertação, as estruturas são tomadas como portadoras de um rico semantismo,
corroborando, a riqueza e a complexidade dos sujeitos e do imaginário social e a análise estrutural fica, então,
circunscrita a uma perspectiva hermenêutica.
4.3.1. Imagens gráficas e sua análise estrutural
Como se sabe, através da técnica do AT-9, trabalha-se a produção de imagens - o desenho, com base
em nove elementos arquetipais: queda, espada, refúgio, monstro, personagem, água, animal e fogo, bem
como com o relato do desenho e sua análise estrutural. No que tange às imagens gráficas arquetipais
produzidas pelos sujeitos interpelados na pesquisa, estas podem ser descritas126conforme registro no quadro
01.
124
Saberes ambientais aqui são tomados como os próprios das populações camponesas locais, considerando
que a relação entre natureza e cultura em que se alocam as referidas populações é mediada por um imaginário
social que dialoga com um habitus que eiva a ética que orienta a referida relação. E a proposta de
convivência com o semi-árido busca dialogar com estes saberes enquanto faz a mediação dos novos
conhecimentos sobre a natureza semi-árida.
125
Os referidos sujeitos serão identificados apenas pelo número. A relação com os nomes consta no anexo II.
126
Reprodução das imagens no anexo III.
95
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Queda: três casas caindo; três quedas d’água, uma pessoa caindo de bicicleta, um prato caindo da mesa e uma pessoa triste.
Espada: quatro espadas em tamanho médio, em relação aos outros desenhos; três pequenas e duas grandes. Sendo quatro para
cima; quatro para baixo e uma deitada. Apenas uma espada está associada a outro desenho, enfiada na árvore.
Refúgio: três tocas, lugar de esconderijo perdido na mata; um esconderijo em casa; uma casinha para o pinto; uma oca de índio;
uma casa velha no mato; uma árvore; uma moita.
Monstro: Um animal de forma não identificada de tamanho pequeno, com traços humanos – o bob esponja; um morcego de
tamanho pequeno; um animal de forma não identificada em forma circular de tamanho pequeno; um fantasma com
características humanas de tamanho mediano; um gato de tamanho mediano e formas circulares; um animal de tamanho
mediano, e formas arredondas e assemelhadas a humanos; uma pessoa com caracteres deformados de tamanho pequeno; uma
pessoa de tamanho pequeno; uma onça em traços retilíneos de tamanho pequeno.
Personagem: Uma mulher jovem de tamanho pequeno; uma criança masculina de tamanho pequeno – o próprio autor; um
homem adulto – de tamanho pequeno; um homem jovem de tamanho grande – próprio autor; uma menina pequena; um homem
de tamanho pequeno; um homem de tamanho pequeno em forma de rabisco; um caçador; um homem em forma de rabisco –
pequeno.
Água: Água numa vasilha para apagar o fogo; um copo de água; 04 lagos de tamanho pequeno; uma vasilha de água; uma
queda d’água; um poço.
Animal: Um cachorro – em tamanho pequeno; um hipopótamo em miniatura; um cavalo – em tamanho pequeno; um cachorro
– em tamanho pequeno; um pinto – em miniatura; um cavalo em tamanho grande; um pato em tamanho mediano; um gato em
tamanho mediano; um jumento em tamanho mediano.
Fogo: Cinco fogueiras em tamanho pequeno e arredondado; um sol tamanho grande; três fogos que se alastram.
Quadro 01 - Registro de imagens gráficas
A análise estrutural permite identificar imagens nos regimes diurno e noturno e, no caso, com
predominância da quantidade de sujeitos no regime diurno127, conforme quadro 02
Os relatos de número 1, 2, 3, 5, 6, 7 e 8 são do regime diurno, o regime das antíteses, em que os
opostos se enfrentam e encontram-se separados, enquanto os de número 4 e 9 são do regime noturno,
conciliador dos opostos. Os relatos do regime diurno, exceto o de número 3, mesmo se classificando como
tal, mostram-se numa estrutura não-consolidada, o que aponta para a existência de processo instituinte de
imaginário, ou seja, para uma transição entre os regimes, melhor dizendo, o regime diurno em transição para
uma estrutura de regime noturno, o que, no contexto da pesquisa, configura o estar em crise, na qual se
opõem natureza e cultura, mas, em transição para uma situação em que os pólos conflitantes deixam de se
enfrentar e passam a se relacionar, ou seja, a conviver, conforme transcrição dos relatos no quadro 03.
Regimes
Diurno
Sujeitos
Um (criança feminina), sete (mulher idosa) e oito (mulher idosa)
Dois (criança masculina) e cinco (mulher adulta)
Três (mulher jovem)
Seis (homem adulto)
Noturno
Nove (homem idoso)
Quatro (jovem masculino)
Quadro 02 - Sujeitos e regimes de imagens
127
As imagens gráficas dos relatos um, dois, três, cinco, seis, sete, oito e nove são imagens que apresentam
estruturas defeituosas, na subcategoria pseudo-desestruturado, visto que as imagens são apresentadas em
seqüência, sem relação entre si, o que se deu em função de dificuldade de compreensão da senha da técnica,
em primeiro tempo. Porém, a narração mostra-se coerente e integra os nove elementos ou quase todos eles,
havendo a recuperação posterior, o que permitiu a análise estrutural dos casos.
96
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Os sete relatos apresentam imagens no regime diurno dispostas em oposição e centradas na luta,
num maniqueísmo de imagens que opõem o bem ao mal, a ordem à desordem, o ser ao não ser, ausência à
presença. Os relatos falam do enfrentamento vencido por um dos pólos e com a eliminação do outro, num
gesto diairético e ascensional, que se esforça para separar, discriminar, dissociar, num constante estado de
vigília, sempre de armas prontas. No entanto, nos relatos de números 6, 5 e 2, as imagens transitam entre os
regimes diurno e noturno. Com efeito, nos relatos de números 5 e 6, a luta é anunciada, mas sempre protelada
e no de número 2, a luta é anunciada, o personagem toma a espada, mas não faz uso desta e usa a água para
espantar o monstro, ou seja, procura evitar a luta e, depois, tenta enganar o monstro também para que a luta
não aconteça.
Vale destacar ainda a oposição entre água e fogo que acontece nos relatos de números 1, 5 e 6,
que também anuncia o regime diurno, em que os opostos se enfrentam e um vence o outro. No entanto, nos
relatos 2, 3 e 8, os elementos água e fogo não figuram com simbologias opostas, não se enfrentam, aparecem
justapostos, o que confirma o caráter transitório para o regime noturno que, na empiria, configura-se na
simbologia de estar numa crise, a crise entre natureza e cultura, mas em regime de transição para uma
estrutura imaginária em que os opostos deixam de se opor.
Com efeito, a centralidade de cada relato é a defesa da vida humana, em detrimento de outras
espécies, o que significa uma elevação do ser humano com vistas a dominar, com um poder teocêntrico de
separar o bem do mal e dominar a natureza, embora haja em três relatos, os de números 6, 7 e 8, um monstro
com semelhança humana, ou seja, um monstro compósito, uma espécie de fusão entre natureza e cultura.
As imagens dos sete relatos indicam, como concebido por Durand (apud PITTA, 1995), a
estrutura heróica, subdividida nas subcategorias super heróica, heróica integrada, heróica impura e heróica
descontraída o que, mais vez, indica a presença de uma estrutura imaginária não-consolidada, seja por que
ainda não se estruturou, caso da estrutura super heróica, seja por apresentar já simbologias do regime
noturno, que é a superação da situação conflitual entre os opostos.
Os relatos de números 1, 7 e 8, caracterizados como estrutura super heróica, são assim
classificados por apresentarem o monstro hiperbolizado, o que leva o personagem a estar sempre a postos
com a espada na mão para enfrentá-lo, vencendo-o em dois casos e, num deles, sendo vencido. A estrutura
super heróica difere das demais por apresentar elementos não coesos, até mesmo disfuncionais para a
heroicidade (Durand apud PITTA, 1995) o que significa, no contexto da pesquisa, que há um imaginário
social ainda não estruturado, com elementos não coesos, em que a realidade resume-se a dois arquétipos, um
da cultura outro da natureza, respectivamente, monstro e personagem, e que não há espaço no mesmo
97
Relato 1
Maria
Sueli Rodrigues
de Sousa
Um homem achou uma espada e queria, com ela, matar um monstro. Um índio estava com
o homem
e eles estavam
procurando o monstro. Eles eram muito valentes. Apareceu um cachorro. Eles encontraram o monstro, o cachorro
mordeu o monstro, mas o monstro venceu o cachorro e o homem e o índio. Eles saíram correndo e botaram fogo na
floresta para espantar o monstro, mas o monstro veio e comeu eles e a floresta pegou fogo, mas o riacho apagou
(relato do sujeito um, criança feminina).
Relato 2
Era uma vez, eu me assustei com o mostro. Eu vi e corri pra o esconderijo e peguei minha espada. O monstro
estava no esconderijo e peguei um copo de água para jogar no monstro. Tive uma idéia de chamar o monstro para o
fogo e chamei o bob esponja para ver o monstro. Fui ver as horas no meu relógio, que estava em cima da mesa e
fui pegar o prato no armário e quebrei, fui dar água ao hipopótamo (relato do sujeito dois, criança masculina)
Relato 3
Um certo dia, um homem foi passear numa cachoeira, chegando lá, ele ouviu um barulho diferente, correu e se
escondeu entre as árvores e de longe viu que era um monstro, um bicho muito feio. Ele teve a idéia de desenhar um
círculo pra ver se isso chamava a atenção do monstro, mas não funcionou. Então ele saiu correndo e o monstro
atrás, chegou num lago d’água, pulou dentro dele, pensando que o monstro tinha medo de água, mas não tinha,
então continuou a correr, quando ele chegou mais na frente, tinha um cavalo, montou no cavalo pra continuar a
fugir do monstro, pois já estava muito cansado de correr e o monstro não cansava. Quando o homem já não sabia
mais o que fazer, encontrou uma espada encravada numa árvore, ele pegou ela e matou o monstro, fez uma
fogueira e jogou o monstro dentro dela e foi embora cansado, mas feliz por sair vivo e não ter virado comida para
aquele bicho feio (relato do sujeito três, jovem feminina).
Relato 5
Um dia ela saiu para ir ao circo, na estrada encontrou um gato que estava querendo pegar um pintinho, que estava
escondido numa casinha. A menina saiu correndo e pegou a espada para matar o gato, mas viu uma casa caindo. A
mesma parou e ficou admirada com aquela ocorrência que estava acontecendo.
No dia seguinte, ela lembrou do pintinho e foi atrás, mas quando chegou perto, viu o fogo queimando a mata. Saiu
apressada, foi até um lago que havia ali e apagou o fogo e salvou a mata. Mas ainda não esqueceu o pintinho. Foi
até lá e encontrou o pintinho escondido em sua casinha, pois o gato não conseguiu pegar o pintinho. O gato ficava
olhando, mas não conseguia pegá-lo (relato do sujeito cinco, mulher adulta).
Relato 6
Eu ia numa viagem e me perdi na mata. Não tinha o que comer, matei uma águia e comi, segui adiante e encontrei
com o monstro. Em luta, Deus me ajudou que venci o monstro. Quando dei por mim, estava dentro de um círculo.
De repente, o círculo pegou fogo, veio uma pessoa montada no cavalo, trazendo água e apagou o fogo. Depois fui
com ele para o seu refúgio e me livrei desta batalha (relato do sujeito seis, homem adulto)
Relato 7
Era uma vez um monstro que se escondia numa casa velha, um dia, passando por perto do esconderijo, um homem
com sua espada mata o monstro. O homem se chamava João e, quando voltou para sua casa, que caía aos pedaços,
na última reserva de água que tinha, lá estava o pato, banhando e bebendo. Vendo aquilo João, muito zangado,
matou o pato e assou no fogo. O pato deu prato delicioso (relato do sujeito sete, mulher idosa).
Relato 8
Um caçador estava no mato, caçando e encontrou o monstro. Ele pegou a espada e deu uns golpes no mostro, aí eu
fiquei com medo. Aí eu me escondi no esconderijo. Eu estava muito cansada, aí veio uma pessoa que me deu um
copo com água, aí veio um vento forte, aí pegou fogo no círculo, que tinha perto e dentro do círculo estava o gato
que morreu queimado (relato do sujeito oito, mulher idosa)
Quadro 03 – Relatos do Regime Diurno
universo para os dois, um tendo que ser eliminado. Não há também espaço para os demais arquétipos, isto
simbolizando que o imaginário social da relação entre cultura e natureza, ali, encontra-se desestruturado,
mantendo a oposição entre cultura e natureza, como pólos situados numa relação pouco coesa. Nesse sentido,
a estrutura imaginária que se encontra em processo de ressignificação não está ainda estruturada nesses
relatos.
No relato de número 3, há uma estrutura do tipo heróico integrada, em que o monstro é
hiperbolizado, persegue o personagem que, no entanto, foge, encontra a espada e mata o monstro. A ação
acontece num cenário que integra todos os elementos de forma pertinente (Durand apud PITTA, 1995), o que
significa que o imaginário da relação entre cultura e natureza estrutura-se numa oposição perfeita: mantém o
jogo de oposição na referida relação, e todos os arquétipos integram-se no referido binômio, numa estrutura
98
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
rígida, portanto mais difícil de se modificar. Este é um indicador de presença forte da simbologia conflitual
consolidada entre natureza e cultura, o que não inviabiliza a simbologia processual de instituição de um
imaginário em que ambas deixem de figurar como pólos que se enfrentam, já que a estrutura diurna
consolidada se mostra apenas num dos relatos.
No relato de número 6, há uma estrutura heróica impura, a luta predomina, mas não há a
espada, o herói vence o monstro sem a espada e o refúgio ganha funcionalidade, é o anúncio da estrutura
mística (Durand apud PITTA, 1995), o que significa, no contexto pesquisado, um processo instituinte de
imaginário, em que a cultura domina a natureza sem com ela lutar, em que cada arquétipo ganha sua
funcionalidade no processo de simbolização, ou seja, o aspecto conflitual está em processo de
ressignificação.
No relato de número 2, há uma estrutura heróica descontraída, visto que a luta é anunciada,
mas não acontece de fato. Há o monstro, há o personagem com a espada, mas ele não a usa, estando
anunciada uma estrutura não heróica, como também se encontra no relato do sujeito referido pelo número
cinco. Nesta há uma estrutura heróica descontraída em função de a luta estar anunciada, mas sempre
protelada (Durand apud PITTA, 1995) o que, na realidade empírica, simboliza que o processo instituinte de
imaginário aparece mais consolidado pela presença mais intensa de uma estrutura imaginária em que cultura
e natureza não se opõem, convivem, mesmo havendo sempre uma luta anunciada, mas que nunca acontece.
Os dois relatos do quadro 04 se caracterizam como regime noturno. O relato de número
nove, a princípio, mostra-se desestruturado, sendo, na verdade, não um relato, mas vários. Porém, é possível
perceber, em cada um deles, coesão e coerência, o que leva à presença de uma estruturação.
O regime noturno é percebido em função de os relatos apresentarem imagens que
consideram a condição mortal dos humanos, ou seja, o ser humano não é sempre fortaleza e sua existência
está dotada de circularidade, em que tudo é passageiro e a espécie humana é apenas uma das espécies. Nos
referidos relatos, há uma eufemização do monstro, que aparece como um belo animal, como mostra o relato
de número 9. Aqui se evidencia a perspectiva de construir um todo e não a de discernir, de separar, como no
regime diurno. A luta é metaforizada. Aliás, em um dos casos, não há uma luta de fato, mas a busca humana
de reparar o excesso de antropocentrismo. No outro caso, a luta ganha um caráter lúdico: o personagem e o
monstro não se enfrentam em luta, não há perigo, e o monstro simboliza beleza.
99
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Relato 4
O círculo simboliza tudo o que não tem fim, por isso representei com o sol, que brilha, um lago com muitas águas onde as pessoas e os
animais saciam sua sede, depois se refugiam em uma toca com a primeira invenção do homem, o fogo, que, ao passar do tempo, tudo que
ele mesmo criou, passa a destruir. Esse é o monstro, o fantasma do tempo, que todo mundo tem medo de enfrentar. Mas com muita fé o
homem pode se levantar e erguer sua espada e tentar começar tudo de novo (relato do sujeito quatro, jovem masculino).
Relato 9
O jumento saltou na roça e comeu o milho todo, a pessoa botou ele pra fora e ficou no prejuízo. O cabra foi pegar água e caiu, mas
conseguiu se salvar por que tinha as raízes de pau e ele pegou e subiu. O cabra ia na estrada de bicicleta e caiu dentro da areia, mas não se
machucou, só se emburralhou. O cabra foi tocar fogo na roça e queimou a cerca toda e ficou só a terra e ele sapecou o cabelo, as pernas.
Quanto mais jogava água, o fogo subia. O tempo tava muito quente
O cabra ia correndo, o outro ia atrás para tomar um pedaço de beiju, aí ele se escondeu dentro da moita (ele pediu o pedaço de beiju e o
outro não quis dar, por isso correu atrás dele). O cabra caçou o outro, mas não encontrou. Ainda maginou em tocar fogo na moita, mas fez
foi passar. E o outro ficou escondido comendo o beiju.
O cabra tava tirando umas mangas no pé de manga alheio. Aí o dono do pé chegou e futucou ele com a espada. Ele desceu do pé de
manga e correu e o dono ficou só olhando.
A onça tava pegando as criações, o cabra chegou e a onça ficou só rosnando pra ele. Ele ficou com medo. Ele voltou e chamou os
companheiros, quando voltou, ela tinha matado cinco criações, levado uma e deixado quatro lá, sangradas. Ele e os companheiros
aproveitaram as quatro e comeram (relato do sujeito nove, homem idoso).
Quadro 04 - Sujeitos e estruturas do imaginário no regime diurno
As estruturas do regime noturno dividem-se em mística lúdica e sintética simbólica, o que
indica a existência de um processo em vias de consolidação da estrutura imaginária nesse regime. Aí, os
opostos perdem sua força opositora e passam a conviver fora da situação de conflito.
Estruturas imaginárias
Super heróica
Sujeitos
Um (criança feminina), sete (mulher idosa) e
oito (mulher idosa)
Heróica descontraída
Dois (criança masculina) e cinco (mulher
adulta)
Quadro 05 - Estruturas do imaginário no regime diurno
No relato de número 9 que, de fato, como já referido, não se reduz a um só relato, é possível
perceber uma estrutura, visto que, nos vários relatos que o compõem, há o envolvimento dos nove elementos.
A estrutura aí percebida caracteriza-se como mística lúdica, porquanto a espada ganha uma função apenas
alegórica e o monstro é transformado num objeto desejado para animal de estimação, o que significa, na
realidade empírica, que o que figurava como inimigo, como pólo oposto, deixa de o sê-lo, ganhando novo
sentido, deixando, assim, de existir razão para a luta.
O relato e imagem gráfica de número 4 apresentam imagens que se enquadram na estrutura
sintética simbólica por tratar-se de uma reflexão a respeito do universo em forma diacrônica de eterno
retorno. É desenhado um homem com sua espada tentando vencer o monstro devorador, representado por um
100
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
fantasma, que é a própria ação humana de destruição da natureza, ou seja, a luta é a tentativa do homem de
retornar e corrigir os seus próprios erros, personificado no monstro devorador.
Estruturas imaginárias
Sujeitos
Mística lúdica
Nove (homem idoso)
Sintética simbólica
Quatro (jovem masculino)
Quadro 06 – Estruturas do imaginário no regime noturno128
O conjunto pesquisado, no seu todo, apresenta uma estrutura de imaginário social, que pode ser
visualizada no gráfico abaixo:
super heróico
heróico
descontraído
heróico
integrado
heróico
impuro
místico
integrado
sintético
simbólico
Ilustração 01 - Processo estrutural instituinte do imaginário social de semi-árido
No seu conjunto, a estrutura imaginária pesquisada mostra-se não-consolidada, em duas
direções: uma se dá rumo à consolidação de uma estrutura heróica no regime diurno, é o super heróico, em
que não há coesão na situação conflitual nem funcionalidade para todos os arquétipos. A outra direção é de
superação da estrutura heróica, rumo às estruturas do regime diurno, de superação da situação conflitual.
Havendo estrutura consolidada em amostragem equivalente: heróico integrado, consolidação da situação de
crise, e sintético, processo em que os elementos crísicos encontram-se ressignificados.
Fazendo dialogar este imaginário com a realidade empírica referente, pode-se aduzir que a
estrutura imaginária – regime diurno, estruturas: super heróico, heróico descontraído, heróico integrado e
heróico impuro - que alimenta a situação de pico da crise eco-social, vive, embora conviva com outras
estruturas imaginárias que prenunciam a transição para situação de acomodação crísica ou, como diz Neves
(1996), trata-se do estabelecimento de relações de homeostase, em que a crise não foi substituída por uma
128
Nestes dois casos, tanto o desenho quanto o relato apresentam coesão, portanto a análise foi feita a partir
da imagem gráfica e do seu respectivo relato.
101
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
situação de equilíbrio, mas os elementos crísicos continuam a viver numa situação de ressignificação com a
perda da força opositora entre estes.
4.3.2. análise de papéis e simbologias
Os papéis e simbologias aqui analisados referem-se aos nove arquétipos desenhados e, por
escrito, relatados por seus autores e autoras, conforme tabela 04, a partir da própria compreensão dessas
pessoas, o que estabelece um vínculo hermenêutico desta análise com a escrita e interpretação dos sujeitos
através das entrevistas cujos conteúdos foram apresentados em capítulos anteriores.
No processo de análise, os nove arquétipos foram organizados conforme entrevistas com os
autores, em: estímulo central (o personagem) como foco antropocêntrico da análise; estímulos da ansiedade
(a queda e o monstro) como o que conflita com a cultura, ou seja, com o ser humano, que lhe provoca medo e
instabilidade; estímulos de resolução da ansiedade (espada, refúgio e elementos cíclico) como as opções de
superar a situação de pico da crise, e estímulos complementares (água, animal e fogo) como elementos que
definem a categorização da estrutura imaginária.
a) estímulo central
O estímulo central, o personagem, é simbolizado de forma positiva, no pólo do bem e como
vencedor, exceto, no caso do sujeito referido pelo número um, que o simboliza como perdedor, por não ter
vencido o monstro nem protegido a natureza. O personagem recebe as simbologias da esperteza, da coragem,
da proteção aos indefesos, da valentia. Em todas as simbologias, com exceção dos sujeitos quatro e nove, há
a confirmação do regime diurno da imagem, a estrutura heróica e o antropocentrismo anunciado pela
estrutura. Isto se aplica até mesmo para aquele que não o vê como vencedor, visto que, até mesmo aí, o
personagem é posto no centro da luta.
Por seu turno, os sujeitos referidos pelos números nove e quatro apresentam o estímulo central
com importância relativizada. Num caso, o do sujeito identificado pelo número quatro, o ser humano é
simbolizado com parte da vida e, no outro, o do sujeito referido pelo número nove, o ser humano é
simbolizado como esperto, por aproveitar o que sobrou da luta, da qual ele não participou, ficando o relato
apenas no reino animal, confirmando, desta forma, o regime noturno da imagem.
b) estímulos da ansiedade: a queda e o monstro
A queda é simbolizada como negativa pelos sujeitos identificados pelos números um, dois,
quatro e sete, por não garantir proteção, por representar prejuízo. A queda é, assim, um símbolo catamórfico,
que simboliza o tempo vivido, resume e condensa os aspectos temíveis do tempo, imagem inibidora de toda e
qualquer ascensão, relembrando constantemente a condição humana terrestre. A imagem da queda, com esta
simbologia, indica o regime diurno da imagem (DURAND, 2002).
Por seu turno, os sujeitos referidos pelos números três, cinco, seis, oito e nove eufemizam a
simbologia da queda, que aparece como: “bonita, mas perigosa” (sujeito três); “positiva, por evitar a morte
102
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
do gato” (sujeito cinco); “positiva por evitar o incêndio da floresta” (sujeito seis); “positiva” (sujeito oito)
“não negativa, por que a queda não machuca” (sujeito nove). A eufemização é uma espécie de
enfraquecimento de uma representação através de sua banalização, como, por exemplo, o faz o sujeito
identificado pelo número nove; ou pela atribuição do seu sentido contrário, como ocorre com os sujeitos
referidos pelos números cinco, seis e oito. Ou ainda pela atribuição de aspectos positivos ao lado dos
negativos, como expressado pelo sujeito referido pelo número três. O processo de eufemização anuncia a
transitoriedade do regime diurno para o noturno (DURAND, 2002). Isto significa que, empiricamente, a
transitoriedade na situação de pico da crise entre cultura e natureza para uma situação de acomodação dos
arquétipos na situação crísica, em que os mesmos perdem a sua força de oposição, indica o processo
instituinte de imaginário social.
Outro elemento da ansiedade é o monstro, simbologia teriomórfica, se representada por animal
que, por sua vez, é constituído pelo esquema do animado, ou seja, do movimento, que se manifesta sob
diferentes formas. Uma das formas mais primitivas do animado é a do formigamento, a imagem fugidia no
esquema da agitação, do fervilhar, que dá aura pejorativa à multiplicidade que se agita, provocando a
repugnância primitiva anunciada no esquema da animação que o arquétipo do caos constitui. A projeção
assimiladora da angústia diante da mudança é a primeira experiência do tempo expressando sua passagem
que conduz à morte, por isso valorada de forma negativa, por ser o medo diante da fuga do tempo, que, na
verdade, é o medo da morte, simbolizado pela mudança e pelo ruído. Uma outra forma é o movimento
agressivo que dá à animalidade o caráter da crueldade, de algo devorador, devastador (DURAND, 2002).
Os sujeitos representados pelos números um, dois, três e nove simbolizam o monstro em formas
de animais não domesticados, mais próximos do esquema de animação acima referido, portanto mais
próximo da simbologia da angústia pela passagem do tempo e condução à morte129 e, conseqüentemente, do
regime diurno da imagem. Os sujeitos referidos pelos números quatro, cinco, seis, sete e oito simbolizam o
monstro, respectivamente, como fantasma (aspecto humano), um gato (animal doméstico), animal com
formas humanas, pessoa deformada, numa espécie de eufemização da representação, imprimindo um caráter
dialogal entre regimes de imagens diurno e noturno, ou seja, há mais sujeitos no imaginário de regime
noturno do que diurno, o que remete para uma presença mais forte de realidade processual de instituição do
imaginário, em que natureza e cultura se opõem para uma situação de convivência entre ambas.
c) os três estímulos de resolução da ansiedade: a espada, o refúgio e o elemento cíclico:
Os três estímulos de resolução da ansiedade indicam os seguintes regimes de imagem: a espada,
o regime diurno; o refúgio, o regime noturno, na estrutura mística; e o elemento cíclico, o regime noturno, na
estrutura sintética (DURAND, 2002).
Nos relatos de números 1, 2, 5, 6 e 8, confirma-se o regime diurno das imagens e a estrutura
heróica, embora esta se apresente com representação enfraquecida. No relato do sujeito referido pelo número
um, o personagem usa a espada, mas esta não resolve o problema, ou seja, há a espada, o personagem faz uso
129
A morte aqui, diferentemente, do regime noturno, não é tomada como condição da circularidade das
espécies, mas como o inimigo que abate, a ameaça constante ao antropocentrismo, por isso sempre motivo de
angústia.
103
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
desta, mas a mesma não é capaz de resolver o que provoca a angústia do personagem; já, no relato do sujeito
identificado pelo número dois, o personagem pega a espada, mas não faz uso desta, e sim procura distrair a
atenção do monstro para não enfrentá-lo. Também no relato do sujeito representado pelo número cinco, o
personagem pega a espada, mas não a usa para lutar, sendo a luta sempre protelada. Ainda no relato do
sujeito representado pelo número seis, o personagem enfrenta o monstro, vence-o, mas não faz uso da espada.
E no relato do sujeito identificado pelo número oito, o personagem toma a espada enfrenta com ela o
monstro, mas não o mata.
Por seu turno, nos casos três e sete, confirma-se o regime diurno e a estrutura heróica, visto que
o personagem, nos dois casos, usa a espada com sucesso, tomando dela e matando o monstro.
Já no caso quatro, a espada aparece metaforizada e desfuncionalizada do seu papel de
solucionador da ansiedade. E, no caso nove, também, a espada aparece desfuncionalizada, visto que aparece
fora do cenário da luta, sendo usada apenas para alertar uma pessoa de algo que ela não deve fazer, o que
leva a concluir que a luta tende a desaparecer, ou seja, há a transitoriedade de uma visão polarizada de mundo
para uma posição dialogal.
No que tange ao refúgio, nos casos dois e três, este foi a primeira procura para a resolução do
conflito, embora não se tenha conseguido solucioná-lo. No caso cinco, o refúgio é que protege o animal e
evita a luta. No caso seis, o esconderijo protege o personagem no segundo desafio que encontra. No caso
sete, o personagem, ao buscar o refúgio, encontra um outro desafio: a falta de água para beber. No caso oito,
o personagem busca o refúgio por estar com medo do monstro, mas, neste, pega fogo. O refúgio não aparece
no caso um e, no caso quatro, ele é metaforizado como algo que protege e proporciona descanso. No caso
nove, o refúgio é uma moita que esconde o personagem, não havendo luta, mas, apenas, uma brincadeira.
Como se constata, apenas em um dos casos, o refúgio não aparece. Nos demais, ele é de
fundamental importância. Na maioria dos casos, secunda a espada e, noutros, substitui-a, confirmando a
transitoriedade entre os regimes noturno e diurno, sendo que, no regime diurno, há uma estrutura atenuada
enquanto no regime noturno é a estrutura mística que se destaca.
No que concerne ao elemento cíclico, este é representado por imagens de circo, relógio, círculo
desenhado no chão, sol, a mata em círculo, um prato, a mata em roda. No caso um, o elemento cíclico não
entra no relato; nos casos dois, cinco, seis, sete e oito, esse elemento entra apenas na composição, uma
indicação de ausência da estrutura sintética do regime noturno. Apenas, no caso quatro, há a presença da
estrutura sintética.
Analisando o conjunto dos estímulos de resolução da ansiedade, confirma-se a presença de uma
circularidade imaginária, ou seja, um processo em instituição transitando de uma estrutura polarizada entre
extremos para uma ressignificação dos elementos antitéticos (heróico descontraído e impuro), possibilitando
diálogos entre estes (místico integrado) e já indicando a direção do itinerário imaginário: a síntese dos
opostos.
d) os três estímulos complementares, a água, o animal e o fogo:
Dos elementos complementares, a água e o fogo fazem parte das técnicas simbólicas da
purificação, uma espécie de purificação da ascensão, desde que com os aspectos, respectivamente, limpidez
104
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
da água e fogo como luz. Porém, os dois possuem simbologia dual: o fogo tanto pode ser luz, vida, ligado ao
ciclo agrário, quanto destruição. E a água, se limpa, purifica; se escura, é um símbolo nictomórfico da
impureza e, se corrente, é o que não tem fim, por isso cíclica, mas é a que anuncia o fim, por seu movimento
rápido (DURAND, 2002).
A água é representada, nas imagens produzidas, como: água numa vasilha, copo d’água, lago.
Em nenhum caso, há água corrente e não há referência à qualidade da água, o que pode ser atribuído ao fato
de não haver espaço para este tipo de preocupação no universo pesquisado e representado, em virtude da
grande escassez. Assim, a água é representada sempre como algo bom, sem ambivalência, com as valorações
de bondade, pureza, salvação, o que se confirma pela simbologia dada à água por todos os sujeitos: proteção,
arma para se proteger do monstro, vida, salvação e satisfação.
Com efeito, a água não é só um elemento complementar de purificação, mas ganha o destaque
do elemento de resolução da ansiedade, como a espada, por exemplo.
Já o fogo é representado como fogueira, feita intencionalmente por humanos ou como fogo que
se alastra queimando a mata, sem origem especificada. Em três casos, o fogo representa salvação,
purificação, luz, respectivamente, nos relatos dos sujeitos referidos pelos números dois, três e quatro. No
relato do sujeito identificado pelo número sete, o fogo é usado no cozimento de alimentos, o que remete para
a análise de Lévi-Straus (2204) sobre o cru e o cozido, mais propriamente para a relação entre natureza e
cultura, sendo o fogo o elemento que transforma natureza em cultura. Nos demais, a simbologia traz
valoração negativa, como destruição, morte, perigo, o que leva a pensar no diálogo intercultural entre cultura
local e a de preservação ambiental130, esta que, por sua vez, demoniza o fogo.
Outro estímulo complementar, o animal, pertence ao universo da simbologia teriomórfica sendo
representado por figuras de cachorro, hipopótamo, cavalo, pintinho, pato, gato e jumento, todos
domesticados, exceto o hipopótamo. As figuras falam do processo de domesticação que eufemiza a valoração
teriomórfica, numa espécie de domesticação do elemento da ansiedade, movida pelo temor à morte.
Em seu conjunto, os relatos analisados confirmam a hipótese de um imaginário social em
processo de instituição através de um universo simbólico com elementos estruturais que dialogam com
regimes que se opõem, isto é, um regime antitético, do enfrentamento entre pólos oponentes, e um regime
que ressignifica os elementos de conflito e o processo conflitual, fazendo-os perder o caráter antitético. No
entanto, aí, a resolução não se dá pelo estabelecimento de uma situação de equilíbrio, mas pela convivência
entre os arquétipos. Isto significa dizer que uma estrutura que se organiza de forma antitética vê o mundo
divido em bem e mal e encontra-se eivada por muitas atenuações, seja pela eufemização de imagens
negativas, pela desfuncionalização de estímulos que reforçariam a estrutura dual, pela banalização de
elementos que deveriam assumir importância numa estrutura bipolar ou pela transformação de elementos
centrais de conflitos em imagens lúdicas.
130
Importante destacar que a mediação das ONG’s na proposta de convivência também vêem o fogo como
negativo, diferindo da posição da administração do parque na forma como aborda a questão junto aos
camponeses: não apresenta de imediato a exigência de acabar com o fogo nas roças, mas adota uma
metodologia processual para abordar a questão: primeiro, trata de controlar o fogo nas roças, depois, em
cursos, apresenta alternativas de produzir sem o fogo para que, gradativamente, haja convencimento e
abandono da referida prática.
105
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Empiricamente, tem-se uma situação também transitória: um imaginário que transita de uma
situação conflitual de separação entre natureza e cultura, para uma relação dialogal entre ambas. Melhor
dizendo, a instituição do imaginário semi-árido emerge pelo processo de ressignificação dos elementos da
natureza e da cultura, pela interface dos processos locais com a mediação exercida por processos externos da
cultura de preservação ambiental a saber: numa linha mais geral, a do Parque e, ainda, a da proposta de
convivência com o semi-árido, focada especificamente nas relações humanas com o ecossistema local.
106
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Elementos
Queda
Representação
Papel/função
Lugar de morar;
Sujeito um
casa caindo
Sujeito dois
um prato caindo da mesa Não tem função
Sujeito três
cachoeira
Sujeito quatro uma pessoa triste
Simbolismo
Negativo – não protegeu
Negativo
Lugar de passeio
bonito, mas perigoso
castigo
negativo - perda
Sujeito cinco
casa caindo
Desviou a atenção da menina que positivo – evitou a morte do gato
ia matar o gato
Sujeito seis
queda d’água
Apagou o fogo
positivo – evitou o incêndio da
floresta.
Sujeito sete
casa caindo
Moradia
Negativo – não protege a água
Sujeito oito
queda de água
Não entrou no relato
positivo
Sujeito nove
uma pessoa caindo de Mostra que é forte, caiu e não se não é negativo – cai e não
machuca.
machucou
bicicleta
Espada
– Alertar o ladrão de mangas
Sujeito nove
espada
pequena
apontada para cima
Sujeito oito
espada média – apontada Golpear o monstro
para baixo.
Sujeito sete
espada
pequena
inclinada
Sujeito seis
espada média –
posição deitada.
Sujeito cinco
espada
grande
apontada para baixo.
– Mata o monstro
em Enfrentou e matou o monstro.
Não negativo – apenas alerta e não
fere.
Protege o caçador do monstro.
positivo – mata o monstro.
Salva o personagem.
– Tentou matar o gato, mas não foi Não necessária, há outros meios de
preciso, o pinto já estava protegido. defesa.
Sujeito quatro espada média – apontada Instrumento para reinício.
para cima.
Começar de novo.
Proteção
–
personagem.
Sujeito três
espada
grande
– Matar o monstro.
encravada numa árvore.
Sujeito dois
espada
pequena
apontada para cima.
– Não serve de defesa para o Sem utilidade.
personagem.
Sujeito um
espada
pequena
apontada para baixo
– Não tem função.
salvação
do
-
Refúgio
Sujeito um
Uma toca
Não entrou na história.
-
Sujeito dois
casinha.
Esconder o monstro.
negativo
–
não
protege
107
o
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Sujeito três
Uma árvore.
Sujeito quatro Uma toca.
Esconder o homem.
personagem.
Não dar conta de proteger o
personagem.
Lugar de reflexão.
Proteção.
Proteção.
Sujeito cinco
casinha.
Escondeu o pintinho.
Sujeito seis
oca de índio.
Moradia de
natureza.
Sujeito sete
casa velha.
Esconderijo do monstro.
Não protegeu o monstro.
Sujeito oito
toca.
Esconderijo dos caçadores.
Acolhida do personagem.
Sujeito nove
Monstro
moita.
Escondeu o homem com o beiju.
Proteção.
Sujeito um
animal
pequeno
arredondado
Sujeito dois
morcego pequeno e com Ataca o personagem.
formas arredondadas.
Sujeito três
animal
pequeno
arredondado
Sujeito quatro fantasma.
um
protetor
e Come o personagem.
e Perseguiu o homem.
da Acolhida do personagem.
Morte.
Não venceu nem foi vencido.
Perigo.
Provoca medo.
Medo.
Tenta matar o pintinho.
Perigo.
Sujeito cinco
gato.
Sujeito seis
animal com
humanas.
Sujeito sete
pessoa deformada.
Ataca o personagem.
Mal
Sujeito oito
pessoa deformada
O caçador ataca o monstro
Mal.
Sujeito nove
Cíclico
onça.
Matou as cabras e não comeu tudo. Beleza.
Sujeito um
circo
Lugar de diversão.
Lazer.
Sujeito dois
relógio.
Mostra as horas.
Desfoca o conflito.
Sujeito três
01 círculo desenhado no Usado para distrair a atenção do Não funcionou.
monstro.
chão.
Sujeito quatro Sol
formas Ataca o personagem.
Perigo.
Começo sem fim.
Luz
Objetivo não alcançado.
Sujeito cinco
01 circo
Diversão.
Sujeito seis
a mata em círculo
Lugar em que o personagem se Perigo.
perde.
Sujeito sete
01 prato
para comer o pato.
Vingança e saciar a fome.
Sujeito oito
a mata em roda
Pega fogo.
Perigo.
108
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Sujeito nove
Personagem
01 roça
Pegou fogo.
Perigo relativizado.
Sujeito um
O homem
Enfrentar o monstro
Negativo – não se salvou nem
protegeu a natureza.
Sujeito dois
homem – o autor
Foge do monstro.
esperteza.
Sujeito três
homem
É perseguido pelo monstro e mata Coragem.
o monstro.
Sujeito quatro homem
Reflete sobre a vida.
Faz parte da vida.
Sujeito cinco
menina
Protege o pinto.
Protetora dos indefesos.
Sujeito seis
homem
Salva o autor do fogo.
Proteção.
Sujeito sete
homem
Mata o monstro e o pato
Valentia.
Sujeito oito
caçador
Caça e fere o monstro.
Valentia.
Sujeito nove
homem
Comeu as cabras que a onça Esperteza.
(monstro) matou.
Sujeito um
Água numa vasilha
Usada pra apagar o fogo na floresta Proteção.
Sujeito dois
copo de água
Foi jogada no monstro.
Arma pra se proteger do monstro.
Sujeito três
lago
Buscado como proteção
Não protegeu
monstro.
Água
Sujeito quatro lago
o
homem
Sacia a sede do homem e dos Vida
animais.
Sujeito cinco
um lago
Apagou o fogo na mata.
salvação.
Sujeito seis
água numa vasilha
Apagou o fogo.
salvação
Sujeito sete
água numa vasilha
O pato se banha nela.
Vida, mata a sede.
oito
copo com água
O personagem bebeu a água.
Satisfação.
nove
Animal
água numa vasilha
Apagou o fogo na mata.
Salvação.
Sujeito um
cachorro
Morde o monstro e é vencido pelo Coragem e pouca resistência.
monstro.
Sujeito dois
hipopótamo
Bebe
a
água
personagem.
Sujeito três
cavalo
Serviu para a fuga do homem
Ajuda.
Sujeito quatro cachorro
Bebe água no rio
Amigo do homem.
Sujeito cinco
Era perseguido do gato
Indefeso.
pintinho
do
dada
pelo Distrai o personagem da luta com o
monstro.
109
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Sujeito seis
cavalo
Sujeito sete
pato
Sujeito oito
gato
Morreu queimado no círculo.
Vítima do fogo.
Sujeito nove
Fogo
jumento
Saltou na roça e comeu o milho.
Ajuda o homem.
Sujeito um
fogueira
Incendiou a floresta
Mal, morte.
Sujeito dois
fogueira
O monstro foi jogado no fogo.
Salva o homem.
Sujeito três
fogueira
O homem jogou o monstro dentro Salva o homem.
do fogo.
Sujeito quatro fogueira
Serve para trazer o homem com a
água para apagar o fogo.
Auxílio.
Se banhou na água e foi morto pelo Vítima do homem.
homem.
A 1ª invenção do homem.
Luz, positivo.
Sujeito cinco
fogo
Queima a mata
Negativo, morte
Sujeito seis
fogo
Pegou fogo na mata.
Perigo.
Sujeito sete
fogo
Assou o pato
Auxílio para preparar alimento.
Sujeito oito
fogo
Queimou a mata
Perigo.
Queimou a roça
fogo
Sujeito nove
Tabela 02 – AT-9 – Representação, função e simbolismo
Perigo relativo, queima pouco.
110
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
CONCLUSÃO
Um trabalho com vistas a apreender, compreender e explicar o universo das relações objetivas e
subjetivas entre população e meio ambiente, especialmente, referindo ao imaginário social, ou seja, às
construções do imaginário humano sobre o real, através das quais os indivíduos elaboram a compreensão do
seu universo e nele agem, como dito por Ruscheinsky (2000) exige repensar o caráter atribuído à relação
entre mundo material e simbólico, entre dimensão objetiva e subjetiva, entre os fatos e a respectiva
compreensão destes, para compreender as construções imaginárias a partir do material, do objetivo e dos
fatos.
Com efeito, o trabalho de tentar ver o mundo a partir do imaginário, faz emergir aspectos
subterrâneos que, por sua vez, levam à compreensão da instituição do social, sua normatização, os processos
de construção do tecido social ou dos tecidos sociais e, especialmente, as rugosidades do tecido social para
ajustar-se às demandas do cotidiano. Enfim, contribui para a compreensão das práticas sociais.
Com esse intuito, o presente trabalho de pesquisa buscou traçar um itinerário que possibilitou
enxergar trajetos na instituição de identidades espaciais, temporais, subjetivas e coletivas. Trajetos estes que
percorreram temporalidades não apenas cronológicas, buscando fundindo o espaço-tempo cronológico, com
o espaço-tempo mundial (na questão ambiental que enfrenta) com o espaço-tempo doméstico (as demandas
familiares ante o redesenho de preservação ambiental), com o espaço-tempo da produção (como ser
camponês numa área de proteção integral?) e com o espaço-tempo da cidadania (no âmbito de uma relação
conduzida pelo poder estatal que tira o acesso à produção sem se responsabilizar pelos efeitos da sua
normatização).
O cruzar e o entrecruzar destes diversos trajetos permitiram enxergar um modo de vida cuja
relação com o suporte natural se encontra em situação de crise. Crise particular que, no entanto, entrelaça-se
nos meandros do contexto crísico mais amplo.
O problema investigado permitiu perceber que o imaginário social que se imbrica em uma
relação de desequilíbrio ambiental no semi-árido piauiense deve ser compreendido como fruto de relações
interculturais assimétricas, instituídas historicamente, no próprio processo de expansão da civilização
moderna ocidental européia, pelo qual culturas externas violentam o habitus de culturas locais. Um
imaginário que, em seus itinerários históricos de instituição e reelaboração, na atualidade, conta, a partir de
novos diálogos interculturais, com representações sociais que apontam para a busca de instituir relações
sustentáveis entre natureza cultura. Pode-se afirmar isto, devido às imagens e significados que transitam de
uma estrutura dual, de separação para uma estrutura de diálogo com traços de atenuação do
antropocentrismo, da valorização da natureza e de reconhecimento dos limites e potencialidades das
condições naturais para a vida humana e, conseqüentemente, da importância do estabelecimento de novas
relações de convivência entre natureza e cultura.
O processo instituinte, no entanto, é lento, especialmente, porque a administração do Parque
Nacional da Serra da Capivara mantém e difunde a representação que faz das populações locais como
predadoras e assim continua a tratá-las. Nesse sentido, ao invés de ação educativa, ações policiais. Com
efeito, como a pesquisa traz à tona, torna-se necessária a compreensão antropológica dos sentidos subjacentes
às condutas das populações locais camponesas em relação à área do parque, a partir da própria trajetória da
111
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
relação dessas populações com a referida área, em diversos contextos históricos nos quais o “centre”, ou
parte dele é ressignificado, seja pelo extrativismo da maniçoba, seja pela instituição do parque, seja pela
mediação da proposta de convivência com o semi-árido.
Nessa direção, o objetivo geral da investigação levou a perceber o imaginário norteador das
relações entre natureza e cultura nas suas dimensões éticas, simbólicas e práticas, pela análise dos elementos
simbólicos subjacentes ao modo de vida com seus saberes e práticas culturais. Nesse sentido, emerge o modo
de vida da população investigada eivado por representações sociais indicadoras de campesinidade: atividades
agrícolas, criação de pequenos animais, laços familiares fortalecidos, comunidade como a grande família do
tronco do Véio Vitorino, relações de solidariedade e reciprocidade, marcando a sociabilidade de uma
sociedade de interconhecimento, o que não se confunde com ausência de conflitos.
Nesse modo de vida, tanto há saberes pautados pelas práticas predatórias, quanto os que
indicam o estabelecimento de novas relações entre cultura e natureza. Dentre os primeiros, estão, por
exemplo, as práticas tradicionais de desmatamento e queima:
Sueli: e com ele, como o senhor aprendeu a lidar com a terra?
Gérson: como eu falei, era só derrubar, queimar, que ele [o pai] também não
tinha o conhecimento, ele já tinha mais um sistema de trabalhar que ele zelava a
terra, a roça (comunicação oral)131.
Por seu turno, dentre os saberes de uma relação entre cultura e natureza ressiginificada, com um
caráter integrador, emergem imagens, como as transcritas abaixo:
Gérson: foi, no tempo que ainda era rua velha. E aí hoje a gente já tem um certo
conhecimento, já procura fazer dentro da lógica, do que pode dar, e a gente já tá
vendo um pouco de resultado. Antigamente a gente trabalhava só na força bruta.
Não tinha meio de nada, hoje já tem. Já aparece os meios, as tecnologias como
tratar a terra, trabalhar menos, como evitar a erosão, os estragos que a erosão faz
na terra. Essas coisas assim que antes não existia (Comunicação oral)132
Como resultados da investigação, delineia-se a identificação de um processo instituidor de
identidades, em curso, com a agregação da matriz de preservação ambiental e de convivência com o semiárido. Na perspectiva da análise estrutural do imaginário, isto significa que está em processo a saída de um
regime diurno do imaginário, na direção da busca de estruturas místicas e sintéticas, ou seja, o movimento
crísico caminha para um processo de acomodação dos elementos interventores. A esse processo instituidor de
novas estruturas no imaginário social, soma-se uma outra matriz, com menor visibilidade, mas já aparente, a
de vida e convivência com o semi-árido, em lugar da tradicional identidade de vítima das secas.
Finalmente, no que diz respeito à temática camponeses sertanejos do semi-árido piauiense,
creio oportunizar, com este trabalho, lentes para que sejam visualizados em profícua atividade cultural de
elaboração e reelaboração do seu universo objetivo e simbólico na busca de assimilar as diversas dinâmicas
do tecido sócio-cultural em que estão inseridos e de nelas intervir. Carecendo ainda pesquisar aspectos
131
132
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos.
Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos.
112
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
fundamentais dos sujeitos referidos, de seus territórios e, especialmente, das relações entre natureza e cultura
ali empreendidas, tais como: estudo sobre os sistemas de produção do lugar, balanço sócio-ambiental
provocado pela maneira de instituir o Parque Nacional da Serra da Capivara, estudo sobre a sustentabilidade
e viabilidade da agricultura familiar no semi-árido piauiense, estudo sobre a diversidade do semi-árido no
Piauí, mapeamento das perdas sofridas pelas populações camponesas do entorno do Parque e análise das
questões sócio-jurídicas provocadas pela instituição da referida área de preservação integral.
113
Maria Sueli Rodrigues de Sousa
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