Edmar Guirra dos Santos

Transcrição

Edmar Guirra dos Santos
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
A TRAJETÓRIA DE JULES VERNE; A ARTE, O ESCRITOR E SEU EDITOR
Edmar Guirra dos Santos
RIO DE JANEIRO
FEVEREIRO DE 2016
EDMAR GUIRRA DOS SANTOS
A TRAJETÓRIA DE JULES VERNE; A ARTE, O ESCRITOR E SEU EDITOR
1 volume
Tese de doutorado submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Letras
Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos Opção: Literaturas de Língua Francesa).
Orientador: Professor Doutor Pedro Paulo
Garcia Ferreira Catharina.
RIO DE JANEIRO
FEVEREIRO DE 2016
FICHA CATALOGRÁFICA
Santos, Edmar Guirra dos.
A trajetória de Jules Verne; a arte, o escritor e seu editor/ Edmar Guirra dos Santos.
Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2016.
233 f.; il.; 31 cm.
Orientador: Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina
Tese (doutorado) – UFRJ/ FL / Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, 2016.
Referências bibliográficas: f. 18
1. Jules Verne. 2. Viagens extraordinárias. 3.Campo literário. 4.Trajetória. 5. Arte
I. Catharina, Pedro Paulo Garcia Ferreira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas. III. Título.
A TRAJETÓRIA DE JULES VERNE; A ARTE, O ESCRITOR E SEU EDITOR
Edmar Guirra dos Santos
Orientador: Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina
Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos Opção: Literaturas de Língua Francesa). Orientador: Professor Doutor Pedro Paulo
Garcia Ferreira Catharina.
Examinada por:
______________________________________________________________________
Presidente, Professor Dr. Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina - UFRJ
______________________________________________________________________
Professora Dra. Celina Maria Moreira de Mello – UFRJ
______________________________________________________________________
Professora Dra. Rosa Maria de Carvalho Gens – UFRJ
______________________________________________________________________
Professor Dr. Armando Ferreira Gens Filho – UERJ
______________________________________________________________________
Professora Dra. Lúcia Granja – UNESP
______________________________________________________________________
Professor Dr. Fabiano Dalla Bona - UFRJ
______________________________________________________________________
Professor Dr. Leonardo Pinto Mendes - UERJ
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
AGRADECIMENTOS
É com muita satisfação que expresso o meu agradecimento a todos aqueles que
tornaram a realização deste trabalho possível. Sem o empenho dos professores que me
guiaram até aqui, sem o auxílio financeiro da CAPES, o acolhimento e as ricas indicações
do professor Jean-Yves Mollier, a disponibilidade dos colegas do Centre International
Jules Verne e a ajuda fraterna de Adriana e Alban Lamaison, estou certo de que meu
trabalho teria tido outros resultados.
Ao final desse período de pesquisas, que inclui uma enriquecedora estada na
França, a lista de agradecimentos seria bastante longa, pois entendo que muitos que
cruzaram o meu caminho têm relação direta comigo, com o meu trabalho, com o que pude
aprender e, portanto, sinto o dever em agradecer-lhes. Mas não o farei aqui. Preferi
memorizar na retina os incontáveis bons momentos desses anos de pesquisa e guardar as
discussões na minha memória de canceriano.
No entanto, não posso deixar de dizer minha gratidão a algumas pessoas.
Aos membros que aceitaram participar da avaliação da Tese – Celina Maria
Moreira de Mello, Lúcia Granja, Rosa Maria de Carvalho Gens, Armando Ferreira Gens
Filho, Fabiano Dalla Bona e Leonardo Pinto Mendes, envio o meu respeito e os mais
sinceros agradecimentos.
Aos colegas de pesquisa, Gisele Batista, Marianna Vasconcelos, Fernanda Lima
e Luiz Paulo Monteiro, obrigado pelos momentos de discussão e de entusiasmo
compartilhados.
Às amigas Luana Monçores e Lucienne Leão agradeço as palavras prudentes e o
suporte que, junto daquele da minha família compreensiva me ajudou a seguir em frente.
Não posso deixar de aproveitar o espaço menos acadêmico que o expediente dessa
página permite para fazer alguns agradecimentos específicos.
Obrigado, Celina, por acompanhar de perto minha pesquisa, pelos auxílios muito
enriquecedores e pontuais que sempre renderam vontade de ir além, de descobrir mais.
Merci beaucoup d’avoir éclairé ma lanterne!
Muito obrigado, Pedro, pela confiança, pelo companheirismo, por diversas vezes
saber como me impulsionar para ir mais longe. Obrigado pelo investimento do seu tempo,
pela sua atenção, paciência e pelo carinho dispensados. Ao longo desses anos de trabalho,
você contribuiu muito para eu ser uma pessoa melhor. Merci infiniment d’avoir posé les
rails!
SANTOS, Edmar Guirra dos. A trajetória de Jules Verne; a arte, o escritor e seu editor.
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos
literários neolatinos, opção Literaturas de língua francesa. Rio de Janeiro, 2016, 233 fls.
RESUMO
Estudo da trajetória de Jules Verne no campo literário francês, realizado através da análise
dos diversos momentos de sua carreira, enfocando os questionamentos feitos pelo escritor
acerca do lugar da literatura e da arte, do escritor e do artista na sociedade industrial da
segunda metade do século XIX. Inserido em uma abordagem sociodiscursiva, o estudo
baseia sua discussão nos conceitos de campo literário, habitus, capital, espaço dos
possíveis estéticos e trajetória, propostos pelo sociólogo Pierre Bourdieu, e nos aportes
da Análise do Discurso de Dominique Maingueneau, através da abordagem do discurso
literário e dos conceitos de posicionamento discursivo, paratopia, ethos discursivo e
cenografia enunciativa. A Tese endossa a ideia de que a produção literária de um escritor
está intrinsecamente relacionada a seus sucessivos posicionamentos enunciativos e às
posições assumidas no campo literário. Além disso, distante da ideia do gênio romântico
solitário, consideramos a produção literária como um processo coletivo que implica
diversos agentes e suas negociações. Assim, a Tese destaca, no caso da obra e da carreira
de Jules Verne, o papel fundamental de seu editor, Pierre-Jules Hetzel, e dos contratos
firmados por eles, na determinação das escolhas estéticas e dos posicionamentos do
escritor.
SANTOS, Edmar Guirra dos. A trajetória de Jules Verne; a arte, o escritor e seu editor.
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos
literários neolatinos, opção Literaturas de língua francesa. Rio de Janeiro, 2016, 233 fls.
RÉSUMÉ
Étude de la trajectoire de Jules Verne dans le champ littéraire français, menée à travers
l’analyse de plusieurs moments de sa carrière, mettant en évidence l’ensemble des
questions posées par l’écrivain concernant la place de la littérature et de l’art, de l’écrivain
et de l’artiste dans la société industrielle de la seconde moitié du XIXe siècle. Dans une
démarche sociodiscursive, l’étude s’appuie sur les concepts de champ littéraire, habitus,
capital, espace de possibles esthétiques et trajectoire proposés par le sociologue Pierre
Bourdieu, et sur les apports de l’Analyse du Discours de Dominique Maingueneau par
l’approche du discours littéraire et des concepts de positionnement discursif, paratopie,
ethos discursif et scénographie énonciative. On défend l’idée que la production littéraire
d’un écrivain est directement liée à ses successifs positionnements énonciatifs et aux
positions prises à l’intérieur du champ littéraire. En outre, loin de l’idée du génie
romantique solitaire, on considère la production littéraire comme un processus collectif
dépendant de plusieurs agents et leurs négociations. Aussi cette thèse met-elle en relief,
dans le cas de l’œuvre et de la carrière de Jules Verne, le rôle fondamental de son éditeur,
Pierre-Jules Hetzel, et des contrats qu’ils ont signés pour la détermination des choix
esthétiques et des positionnements de l’écrivain.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
ILUSTRAÇÃO 1
ILUSTRAÇÃO 2
ILUSTRAÇÃO 3
ILUSTRAÇÃO 4
ILUSTRAÇÃO 5
ILUSTRAÇÃO 6
ILUSTRAÇÃO 7
ILUSTRAÇÃO 8
ILUSTRAÇÃO 9
ILUSTRAÇÃO 10
ILUSTRAÇÃO 11
ILUSTRAÇÃO 12
ILUSTRAÇÃO 13
ILUSTRAÇÃO 14
ILUSTRAÇÃO 15
ILUSTRAÇÃO 16
ILUSTRAÇÃO 17
ILUSTRAÇÃO 18
ILUSTRAÇÃO 19
ILUSTRAÇÃO 20
ILUSTRAÇÃO 21
ILUSTRAÇÃO 22
ILUSTRAÇÃO 23
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p.47
p.47
p.50
p.50
p.52
p.54
p.56
p.60
p.61
p.63
p.67
p.67
p.70
p.79
p.122
p.135
p.148
p.150
p.165
p.172
p.172
p.177
p.181
SUMÁRIO
1-
INTRODUÇÃO ........................................................................................
1
2-
QUESTÕES METODOLÓGICAS ........................................................
10
2.1 Sobre a teoria do campo literário ................................................................
2.2 Por uma abordagem discursivo-literária .....................................................
2.3 Da picturalidade das descrições ..................................................................
10
17
22
JULES VERNE E O CAMPO LITERÁRIO .........................................
26
3.1 Os possíveis estéticos para Jules Verne ......................................................
3.2 A revista-vitrine de Hetzel e a colaboração de Jules Verne .......................
3.3 A “hetzelização” de Jules Verne .................................................................
26
46
73
3-
4-
AS REPRESENTAÇÕES DA ARTE E DO ARTISTA NA OBRA
DE JULES VERNE: POSICIONAMENTOS NO CAMPO
LITERÁRIO ............................................................................................
4.1 As comédias La Guimard e Monna Lisa ....................................................
4.2 Jules Verne, crítico de arte ..........................................................................
4.2.1 A instituição Salão e a figura do crítico ............................................
4.2.2 Jules Verne, crítico do Salão de 1857 ................................................
4.2.3 O exemplo de Courbet .......................................................................
4.3 Paris no século XX .....................................................................................
4.3.1 Fracasso de um romance e romance do fracasso ...............................
4.3.2 A literatura e o personagem paratópico na Paris “futurista”...............
4.4 Representações artísticas nas Viagens extraordinárias ..............................
4.4.1 O gabinete de curiosidades do capitão Nemo .....................................
4.4.2 Os personagens pintores de O Raio verde e de O segredo de Wilhelm
Storitz .........................................................................................................
84
84
107
109
112
120
126
127
131
147
147
173
5-
CONCLUSÃO .......................................................................................... 187
6-
ANEXOS ................................................................................................... 192
6.1 Contratos ....................................................................................................
6.1.1 Contrato para Cinco semanas num balão (1862) ..............................
6.1.2 Contrato para Viagens e aventuras do capitão Hatteras (1864) ........
6.1.3 Contrato de 1865 ...............................................................................
6.1.4 Contrato de 1875 ...............................................................................
6.2 Paratextos do Magasin d’Éducation et de Récréation ................................
6.2.1 À nos lecteurs ………………………………………………………
6.2.2 Avis de l’éditeur ………………………………………………...….
6.2.3 Avertissement de l’éditeur ………………………………………….
192
192
193
195
197
202
202
204
205
6.2.4 Prospectus .........................................................................................
6.3 Imagens ......................................................................................................
6.3.1 Érasistrate découvrant la cause de la maladie d’Antiochius ou Les
Amours de Stratonice et d’Antiochus .........................................................
6.3.2 Mademoiselle Guimard en Terpsichore ............................................
6.3.3 Le Serment des Horaces ....................................................................
6.3.4 Combat de Mars contre Minerve .......................................................
6.3.5 La Joconde ou Portrait de Mona Lisa ..............................................
6.3.6 La Cène .............................................................................................
6.3.7 Léonard de Vinci peint Monna Lisa ...................................................
6.3.8 Romains de la décadence ...................................................................
6.3.9 Appel des dernières victimes de la Terreur à la prison Saint Lazare
à Paris.........................................................................................................
6.3.10 Le supplice de Jane Grey ................................................................
6.3.11 Cromwell et Charles I .....................................................................
6.3.12 Dante et Virgile aux enfers ou La Barque du Dante ........................
6.3.13 La justice de Trajan .........................................................................
6.3.14 Le Martyre de Saint-Symphorien .....................................................
6.3.15 Homère déifié ou L’Apothéose d’Homère
6.3.16 Les Demoiselles des bords de la Seine (été)......................................
206
207
BIBLIOGRAFIA .....................................................................................
216
De Jules Verne ...........................................................................................
Sobre Jules Verne .......................................................................................
Bibliografia Geral ......................................................................................
Periódicos e Boletins consultados ..............................................................
216
221
225
233
77.1
7.2
7.3
7.4
207
208
209
209
210
210
211
211
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212
213
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214
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215
215
1 – INTRODUÇÃO
Jules Verne (1828-1905) é até hoje um nome conhecido no seu país e no mundo
inteiro. Segundo os últimos dados do Index Translationum - repertório das obras
traduzidas organizado pela UNESCO -, ele é o segundo autor mais traduzido no mundo,
ficando atrás somente de Agatha Christie. Verne escreveu sessenta e três romances
conhecidos como As Viagens extraordinárias. Frequentemente desprezada pela
Academia Francesa, sua obra foi recomendada e chamada de “viagens imaginárias” pelo
escritor romântico Théophile Gautier, em artigo publicado no jornal Le Moniteur
Universel, de 1866, em que faz uma curta análise dos quatro romances de Jules Verne já
publicados à época - Cinq semaines en ballon (1863), Voyages et aventures du capitaine
Hatteras (1864), Voyage au centre de la Terre (1865), De la Terre à la lune (1865):
O melhor a se fazer em tal situação é fechar tudo, persianas, venezianas
e cortinas, estender-se numa poltrona de moleskine, enrolado num
albornoz argelino, e ler a meia-luz, à qual o olho se adapta rapidamente,
algum livro agradável e refrescante, as viagens imaginárias do senhor
Jules Verne, por exemplo, cujos títulos, apenas, já fazem correr um leve
frisson sobre a pele.1
Nesse texto, sem incluir Verne explicitamente em uma escola literária específica,
Gautier afirma ainda que o segundo romance é uma narrativa “[...] exata, minuciosa como
um livro de bordo que faz surgir a absoluta sensação da realidade. A tecnicidade marítima,
matemática e científica empregada sobriamente imprime uma realidade a esse fantástico
Forward”,2 indicando assim as balizas que determinaram o gênero “romance científico”
para Jules Verne.
O defensor da arte pela arte ainda caracteriza a obra de Verne como sendo do mais
alto grau de perfeição, comparando-a àquelas de Edgar Allan Poe e Daniel Defoe: “Há
mais no senhor Jules Verne de Edgar Poe e de Daniel de Foe que de Swift ou, para melhor
dizer, ele encontrou seu próprio método e o trouxe, de uma só vez, ao mais alto grau de
“Ce qu’il y a de mieux à faire, c’est de fermer tout, persiennes, stores, rideaux, de s’allonger sur un fauteil
de moleskine enveloppé dans un burnous algérien, et de lire dans la sémi-obscurité à laquelle l’oeil se fait
bien vite, quelque livre agréable et rafraîchissant, les voyages imaginaires de M. Jules Verne par exemple,
dont les titres seuls vous font courir sur la peau un léger frisson. Texto crítico de Théophile Gautier
intitulado “Les voyages imaginaires de M. Jules Verne”, publicado em Le Moniteur Universel, nº 197, 16
juillet 1866. Consultado nos arquivos da Bibliothèque nationale de France (BNF) referência BN. GD. Fº2,
p. 114.
2
Forward é o nome da embarcação do Capitão Hatteras. “[récit] exact, minutieux comme un livre de bord,
fait naître l’absolue sensation de la réalité. La technicité maritime, mathématique et scientifique employée
sobrement imprime uune vérité à ce fantastique Forward.” GAUTIER, 1866.
1
1
perfeição”.3 Essa excelência talvez não tivesse sido alcançada se não fossem as relações
estreitas entre Jules Verne e Pierre-Jules Hetzel (1814-1886), seu editor, com suas ações
empreendedoras no mundo da edição e no campo literário.
No entanto, embora muito se conheça sobre os bem-sucedidos romances de
aventura destinados ao público juvenil de Verne, sabe-se muito pouco sobre a fase da
carreira que antecede as Viagens extraordinárias. Esta Tese pretende lançar luz sobre
esse período de produção literária de Verne, levando em conta igualmente sua relação
com o editor Pierre-Jules Hetzel e as tensões do campo literário nos diversos momentos
da trajetória do escritor.
No ano de 1851, Jules Verne desejava abandonar seus estudos de Direito em Paris
e seguir carreira no mundo das Letras. Frequentando alguns Salões da época, conhecerá
Alexandre Dumas Filho. Em 1852 desiste de um cargo de advogado e se engaja como
secretário no Théâtre-Lyrique, em Paris, que conta com a direção de Jules Seveste. Nesse
momento, já havia escrito tragédias, vaudevilles e comédias. O jovem Verne inspirava-se
em Victor Hugo, chef de file da escola romântica, que via como um semideus. Desejava
conhecê-lo e, para isso, confiava em seus contatos sociais. Aguardava que o Conde de
Coral, redator do jornal La Liberté e amigo de Madame de Barrère, proprietária da casa
onde Verne morava, os apresentasse.4 O desejado encontro com Victor Hugo permiti-nos
cogitar em uma tentativa da parte de Verne de filiação ao grupo romântico. Um dos
primeiros traços discursivos de um Verne romântico em potencial aparece no fim da
comédia Quiridine et Quidinerit. Escrita em 1850 e nunca encenada, Jules Verne, através
das palavras do personagem do boticário, deixa claro a tentativa de filiação ao grupo
romântico:
Au public
Mesdames et Messieurs,
La pièce que ce soir nous avons eu l’honneur
De jouer devant vous, n’est ni d’un grand seigneur,
Ni d’un poète, ni d’un faiseur dramatique,
Mais d’un pauvre amoureux dans le genre romantique
Qui n’affriande point l’appât des droits d’auteur,
Et qui se dit ici votre humble serviteur.5
“Il y a plus chez M. Jules Verne d’Edgar Poë et de Daniel Defoë, que de Swift, ou pour mieux dire il a
trouvé son procédé lui-même et l’a porté du premier coup au plus haut degré de perfection.” GAUTIER,
1866.
4
“Elle me fera connaissance avec un jeune homme ami intime de Victor Hugo. Lequel jeune homme pourra
réaliser le plus cher de mes rêves. Ce Coral, ami de Hugo, me conduira chez lui dès que ce demi-dieu pourra
me recevoir.” VERNE, apud PROUTTEAU, Gilbert. Le grand roman de Jules Verne, sa vie. Paris: Stock,
1979, p. 89.
5
VERNE, Jules. Quiridine et Quidinerit. (1851) In: ___. Théâtre inédit. Sous la direction de Christian
Robin. Paris Le Cherche midi, 2005, p. 566.
3
2
Além dessa comédia, Jules Verne escreveu mais vinte e nove textos dramáticos
entre os anos de 1845 e 1867. A maioria das peças escritas por ele nunca foi encenada. A
publicação de alguns desses textos foi feita em Manuscrits nantais pela Biblioteca
Municipal da cidade de Nantes, em 1991. A tiragem muito pequena não permite que se
encontre essa compilação à venda.6 No entanto, uma nova publicação foi realizada em
2005. Organizadas por Christian Robin, algumas dessas peças foram compiladas e
publicadas com o título Théâtre inédit pela editora Cherche midi. Os dramas vernianos
também podem ser encontrados na biblioteca de Nantes e na casa de Jules Verne, situada
na mesma cidade.
Analisaremos nesta Tese as peças La Guimard, comédia em prosa escrita em
1850, e Monna Lisa, comédia em verso escrita em 1851 “no gênero das peças de
Musset”,7 ambas nunca encenadas, mas que, por tratarem do tema “arte e artista”, foram
privilegiadas pela análise. Além dessas duas peças, a fim de pontuar a trajetória de Jules
Verne no campo literário, estudaremos brevemente também aquelas que foram encenadas
e seriam, portanto, responsáveis pela legitimação de Verne como escritor para as artes do
espetáculo. São elas: Les Pailles rompues, comédia em versos escrita em colaboração
com Alexandre Dumas Filho e encenada em 1850 no Théâtre-Historique, célebre sala
situada no “Boulevard du crime”; Le Colin-Maillard e Les compagnons de la Marjolaine,
escritas em 1852 e 1853 respectivamente, ambas óperas-cômicas encenadas no ThéâtreLyrique; Monsieur de Chimpanzé de 1857, opereta encenada no Théâtre des BouffesParisiens; e ainda, Onze jours de siège, comédia em prosa escrita entre os anos de 18541860, que contou com apresentação única em 1861 no Théâtre Vaudeville.
No mesmo período que Verne tem representadas essas peças, também escreve
algumas novelas e artigos para a revista Musée des familles como Les Premiers navires
de la marine mexicaine (1851), Maître Zacharius ou l’horloger qui avait perdu son âme
(1854) e Edgard (sic) Poë et ses oeuvres (1862). Embora não façam parte de nossas
análises, dois carnês de poemas, iniciados em 1847-1848 e descobertos no final dos anos
de 1980, e algumas letras de música também têm espaço nesse momento da carreira do
escritor.
6
Informação já assinalada por William Butcher na biografia de referência que dedica a Jules Verne. Cf.
BUTCHER, William. Jules Verne; The definitive biography. New York: Thunders mouth press, 2006, p.
320.
7
TOUTTAIN, Pierre-André (dir.). Jules Verne. Paris: 25, L'Herne, 1974, p. 23.
3
No ano de 1857, o jovem Verne publica um estudo substancial sobre o Salão do
mesmo ano. Visto sua extensão – trinta e duas mil palavras –, sua unidade temática e seu
título único, Salon de 1857 – o estudo é considerado por William Butcher, especialista na
obra de Jules Verne, como a primeira longa obra em prosa de Verne:
Sem nenhum esforço aparente, ele publicou oito longos artigos relativos
ao “Salon de 1857”, resultando num total de surpreendentes 32.000
palavras. Levando em conta a extensão e, sobretudo, a unidade do tema,
podemos legitimamente considerar esses estudos coletivamente como
um livro. O Salon de 1857representa, assim, o primeiro grande trabalho
verniano em prosa terminado sem grandes esforços [...] O livro foi
publicado sob a forma de artigos na Revue des beaux-arts: La tribune
des artistes.” 8
Nenhum pesquisador da obra de Verne havia anteriormente suspeitado do
interesse do escritor pela crítica de arte, já que a existência desses artigos críticos só veio
a público no ano de 2006, divulgada por Butcher, e publicados no fim de 2008.9 A
importância desses artigos para o desenvolvimento artístico e intelectual de Jules Verne
é significativa, pois nos anos que se seguirão, depois de muitas decepções – literárias,
artísticas, profissionais –, Jules Verne parece alcançar seu objetivo de legitimar-se como
escritor. Em 1862, depois de um encontro cuja origem nunca foi esclarecida pelos
biógrafos de Verne, ele apresenta ao editor Pierre-Jules Hetzel o manuscrito de um
romance intitulado Voyage en l’air – une découverte de l’Afrique inconnue, survolée par
un ballon manœuvrable. Escrito como um autêntico relato de viagem, o texto leva Hetzel
a pensar ter encontrado o escritor para seu futuro projeto editorial-pedagógico, o Magasin
d’Éducation et de Récréation – revista de publicação quinzenal composta por textos
agradáveis e divertidos e textos didáticos e instrutivos, com o objetivo de formar o capital
intelectual da juventude de seu tempo.
O editor aceita publicar o romance e a obra aparecerá em 1863 com o título Cinq
semaines en ballon – Voyage de découvertes en Afrique par trois Anglais. Devido ao
sucesso de vendas, um outro contrato é assinado e Jules Verne pôde, finalmente, começar
a viver da sua literatura. Esboçam-se assim as diretrizes gerais fundadoras da obra de
“With no apparent effort he published eight long review articles of the 1857 Salon, an amazing total of
32.000 words. Given their scope and unity of theme, we should undoubtedly consider the articles
collectively to be a book. The Salon 1857 thus constitutes Verne’s first completed prose endeavor of any
length. […] Verne’s book appeared as individual articles in the Revue beaux-arts: Tribune des artistes […]”
BUTCHER, 2006, p. 129-130.
9
VERNE, Jules. Salon de 1857. Éd. Établie, présentée et annotée par William Butcher. [S.L.]. Acadien,
2008.
8
4
Jules Verne, dentre as quais se destaca a utilizaçãode fontes temáticas extraídasdos
domínios científicos e das descobertas da sua época.
Para cumprir com o número de três volumes anuais, como rezava o terceiro
contrato assinado em 1864 entre Verne e Hetzel, Verne submete ao seu editor, em 1864,
o romance Paris au XXe siècle, escrito em torno de 1860-1861, portanto anterior a Cinq
semaines en ballon. O texto foi fortemente criticado por Hetzel em carta datada de 25 de
abril de 1864. Nessa carta, Hetzel critica ferozmente a atitude infantil e ingênua de Jules
Verne ao retratar uma Paris ambientada no futuro com a finalidade de mostrar os
resultados negativos dos avanços científico-tecnológicos da época. O editor se recusou
então a publicar o romance. O texto foi, portanto, abandonado e reencontrado
aproximadamente cento e trinta anos depois.
A saga da descoberta do manuscrito de Paris au XXe siècle no cofre do bisneto de
Jules Verne, em 1989, e sua publicação na França, no outono de 1994, foram amplamente
difundidas em todo o mundo. Caracterizado por Piero Gondolo Della Riva, colecionador
e especialista da obra de Jules Verne, como um texto que não tem as mesmas qualidades
dos romances que sustentaram a reputação do autor por mais de um século, Paris au XXe
siècle apresenta traços originais da fase inicial da carreira de Jules Verne, isto é, sem as
recorrentes intervenções do seu editor.
Em linhas gerais, Paris au XXe siècle é caracterizado por sua descrição da idade
moderna. A trama ambientada na Paris do ano 1960 é composta por descrições dos novos
costumes e de uma cidade marcada pelas descobertas tecnológicas. O tom do romance já
é apresentado no título do primeiro capítulo - “A sociedade geral do crédito instrucional”
- que “respondia perfeitamente às tendências industriais do século: o que se nomeava
Progresso, há cem anos, teve um enorme desenvolvimento”.10
Protagonista do romance, o jovem Michel Dufrénoy mostra-se um indivíduo
atordoado diante das modificações tecnológicas proporcionadas pelo desenvolvimento
científico. Poeta, com dedicação aos estudos clássicos, Michel se sente deslocado em um
mundo “futurista”, onde só a escrita tecnológica é favorecida e onde o “artista só serve
para distrair a digestão alheia”.11 O protagonista de Paris au XXe siècle poderia ser
caracterizado como um romântico perdido num mundo industrial, um poeta solitário que
termina sua carreira jogando violetas no túmulo de Musset, no encerrar da trama.
10
11
VERNE, Jules. Paris au XXe siècle. Paris: Hachette, 1995, p. 27.
VERNE, 1995, p. 52.
5
Cronologicamente, esse texto situa a linha de partida do percurso romanesco de
Jules Verne, seu posicionamento em início de carreira e a interrogação que lhe parece
fundamental: o questionamento sobre o papel da literatura e do escritor na sociedade
industrial.
A recusa de Hetzel em publicar o romance é sintomática: ela permite identificar
uma mudança estética em Jules Verne, que havia aderido ao projeto de Hetzel, ao qual o
romance não se adequava. Hetzel no “Aviso do editor” na ocasião da publicação em
fascículos das Voyages et aventures du capitaine Hatteras (1866) afirma: “é necessário
dizer que a arte pela arte não é mais suficiente na nossa época e que a hora chegou em
que a ciência tem seu lugar reservado na literatura.”12 Nesses moldes modernos, Jules
Verne escreveu as suas Viagens extraordinárias, abandonando a orientação primeira de
uma tentativa de filiação ao Romantismo, aquela da desconfiança face ao progresso, da
nostalgia e da concepção da arte e do artista em filiação romântica que aparece em Paris
au XXe siècle.
Para a Tese, entendemos que a tentativa de desenvolver uma carreira no
Romantismo se estende também para quase toda a produção literária que antecede Paris
au XXe siècle. Portanto, afim de analisar as sucessivas escolhas de Jules Verne, levaremos
em consideração o conjunto de textos dramáticos que produziu, as novelas que publicou
e a crítica que fez ao Salão de 1857. Esses textos compõem o momento anterior ao
encontro com o editor Hetzel. Somando essa produção ao romance fronteiriço Paris au
XXe siècle e a obras que integram as Viagens extraordinárias definimos o corpus desta
Tese de Doutorado. A opção de recorte proposta para a Tese - o estudo das concepções
da arte pensadas na perspectiva da trajetória de Jules Verne no campo literário da segunda
metade do século XIX francês - delimita a vastidão desse corpus.
Ao decidirmos estudar a carreira de Jules Verne, as relações entre o escritor e seu
editor e as representações da arte, selecionamos da obra de Verne os trabalhos que
apresentam dados para esta discussão. Para contemplar o momento anterior à associação
do escritor com o editor Jules Hetzel, priorizaremos os textos dramáticos La Guimard,
comédia publicada no Théâtre inédit, em 2005, por trazer como personagem o pintor
Jacques-Louis David e por ser ambientada em seu ateliê; e Monna Lisa, publicado no
“Il faut bien se dire que l’art pour l’art ne suffit plus à notre époque et que l’heure est venue où la science
a sa place faite dans la littérature.” HETZEL, Jules. “Avertissement de l’éditeur” In: MACÉ & STAHL,
Magasin d’Éducation et de Récréation. Tome II, 1867, p. 1-2.
12
6
Cahier L’Herne, em 1974. Escrita ao “gosto das peças de Musset”, a comédia Monna
Lisa se passa na Florença do Renascimento e traz o pintor Leonardo da Vinci e a modelo
do famoso retrato como personagens, além da menção a gêneros da pintura e a quadros
diversos.
A crítica do Salão de 1857, escrita por Jules Verne e publicada em 2008 pelo
pesquisador William Butcher, também integrará o corpus desta pesquisa. A crítica de arte,
gênero literário, será analisada a fim de se delinearem traços do projeto estético do autor.
Confrontaremos, quando possível, algumas semelhanças ou dissonâncias dos artigos
críticos com a obra romanesca de Verne.
Por se situar no momento fronteiriço em que Jules Verne conhece seu editor e
passa a escrever os trabalhos mais conhecidos de sua carreira, o romance Paris au XXe
siècle será privilegiado na análise. Nesse romance, em que vemos encenados os impasses
de carreira aos quais Verne se via confrontado, o narrador se vale do personagem
principal, o poeta Michel Dufrénoy, para sair em defesa da arte em filiação romântica em
detrimento de uma arte industrial que utiliza a ciência e os avanços da tecnologia para se
legitimar.
Não deixaremos de lado a referência à arte ou ao artista que apareça nos romances
que compõem as Viagens extraordinárias de Jules Verne. Priorizaremos a análise de
Vingt mille lieues sous les mers (1870) e o salão-museu de Nemo, o capitão-esteta; e, para
alimentar a discussão, utilizaremos igualmente os romances Le Rayon vert (1882) e Le
Secret de Wilhem Storitz (escrito em 1898 e publicado postumamente em 1910), por
envolverem na trama personagens pintores.
Destacando as representações artísticas presentes nas obras, pretendemos
apresentar a trajetória do autor e investigar sua importância no campo literário francês.
Ao fazê-lo, definiremos em que medida existe uma ambivalência na carreira de Jules
Verne “antes e depois” do encontro com o editor das Viagens extraordinárias.
Buscaremos também investigar como o autor apresenta na sua obra o questionamento
sobre o papel da literatura e da arte, assim como do escritor e do artista na sociedade
industrial da segunda metade do século XIX. Investigaremos ainda, como são discutidos
os valores estéticos veiculados na sua crítica de arte.
Tentaremos provar que a fase da carreira que vai até o primeiro romance escrito
de Verne, Paris au XXe siècle, diferencia-se consideravelmente do restante da sua obra
romanesca, já que o autor hesita entre duas orientações contrárias quanto a seus ideários,
um majoritariamente romântico e o outro completamente cientificista e “futurista”, para
7
usar um termo ulterior. Isso não significa que a primeira orientação não se manifestará
mais na obra verniana após o contrato que restringe o autor à produção das Viagens
extraordinárias. Existe certo grau de ambivalência dos romances e este pode ser
verificado, sobretudo, através das representações da arte e do artista presentes na sua
crítica de arte e na produção anterior à sociedade com Hetzel, mas também nas suas
Viagens extraordinárias.
Todos os itens que compõem o corpus da pesquisa serão analisados sob uma
perspectiva sociodiscursiva. O estudo do fato literário enquanto discurso, que leva em
consideração outros fatores que não só o texto em si, permitirá verificar os
posicionamentos de Jules Verne, sua relação com o editor e traçar a trajetória do autor no
campo literário.
Para a investigação dos problemas, lançamos mão da teoria do campo literário do
sociólogo Pierre Bourdieu e os conceitos a ela ligados – capital, habitus, espaço de
possíveis, posição e trajetória. Recorremos à Análise do Discurso proposta por
Dominique Maingueneau – sobretudo aos conceitos de cenografia enunciativa,
posicionamento, paratopia e ethos.
Respeitando a cronologia da trajetória de Jules Verne no campo literário,
estabelecemos a organização dos capítulos e subcapítulos dessa Tese da seguinte maneira:
no capítulo 2, QUESTÕES METODOLÓGICAS, apresentamos a teoria sociodiscursiva
que ampara a pesquisa; no capítulo 3, JULES VERNE E O CAMPO LITERÁRIO,
analisamos a trajetória do escritor no campo literário enfatizando em 3.1 as vias estéticas
que se apresentaram como possíveis para os primeiros investimentos genéricos de Jules
Verne, antes do encontro com seu editor; em 3.2, trataremos da criação da revista-vitrine
da editora Hetzel e da contribuição de Jules Verne para esse empreendimento literário suporte que conformará o recorte genérico para o escritor; na seção 3.3, abordaremos o
processo que chamamos de “hetzelização” de Jules Verne, em uma análise de seus
contratos e suas negociações com o editor.
Com base no que foi apresentado, no capítulo 4, AS REPRESENTAÇÕES DA
ARTE E DO ARTISTA NA OBRA DE JULES VERNE – POSICIONAMENTOS NO
CAMPO LITERÁRIO, estudaremos as concepções artísticas presentes na obra de Verne,
verificando como o escritor apresenta a relação entre a arte e a ciência e os
questionamentos sobre o papel da literatura e da arte, assim como aquele do escritor e do
artista na sociedade industrial da segunda metade do século XIX. Para tanto, enfocamos
alguns momentos de sua trajetória no campo literário. Aprofundaremos na seção 4.1 a
8
análise das comédias La Guimard e Monna Lisa, que trazem para a cena diversas
referências metapicturais; no item 4.2, estudaremos as concepções artísticas de Jules
Verne em sua atividade como crítico de arte; em 4.3, analisaremos o romance desprezado
por Hetzel, Paris au XXe siècle, e o personagem paratópico; e na seção 4.4, focalizaremos
finalmente as representações artísticas nas Viagens extraordinárias, buscando referências
para a discussão no gabinete de curiosidades do capitão Nemo e nos personagem pintores
dos romances Le Rayon vert e Le secret de Wilhelm Storitz. Os itens 5, 6 e 7 da Tese
destinam-se à Conclusão, aos Anexos e à Bibliografia, respectivamente.
A edição das peças que destacamos na Tese será aquela publicada pela editora Le
cherche midi, o Théatre inédit, de 2005, organizada por Christian Robin; para a peça
Monna Lisa, utilizamos o número 25 do Cahier l’Herne, publicado em 1974, dirigido por
André Touttain. A crítica de arte será referenciada com base na edição da editora Acadien,
de 2008, com comentários de William Butcher. Para os romances que usamos para leitura,
análise e citação na Tese, recorreremos principalmente às edições publicadas pela editora
Michel de l’Ormeraie, entre os anos de 1970 e 1980, que reproduz as edições princeps da
editora de Hetzel e, eventualmente, lançaremos mão de outras edições importantes, que
serão indicadas em nota e arroladas na Bibliografia.
No geral, quando não houver uma versão em português das citações usadas nesta
Tese, optamos por traduzi-las. Incluem-se nesse modo de organização as referências
teóricas da pesquisa ou aquelas que dão suporte aos nossos argumentos. Não traduziremos
as eventuais críticas de arte dos outros críticos mencionados, contemporâneos de Jules
Verne, os textos assinados pelo autor e a correspondência entre Verne e seu editor.
Excetuam-se a essa organização os paratextos editoriais dos periódicos que citamos,
traduzidos ao longo do texto e mantidos na íntegra em “Anexos”.
Ainda em “Anexos”, encontra-se em a transcrição dos contratos entre Jules Verne
e seu editor. Quando necessário, remeteremos o leitor aos contratos concernentes à
publicação dos romances Cinq semaines en ballon e Les voyages et aventures du
capitaine Hatteras, assim como aqueles de 1865 e de 1875. Os quadros aludidos ou
referenciados nas peças e na crítica de arte de Jules Verne poderão, igualmente, ser
encontrados em “Anexos”.
9
2- QUESTÕES METODOLÓGICAS
Definimos o aparato teórico para esta Tese refletindo sobre a escassez de
pesquisas que explorem a trajetória de Jules Verne no campo literário. Procuramos
enfatizara relação de Verne com seu editor e observaras representações da “arte” e do
“artista” na sua obra, levando em conta uma análise que priorize o texto e o contexto de
produção.
A fim de destacar os valores estéticos que Jules Verne propõe na sua obra,
pensando no “abandono” de uma orientação romântica, na associação com o editor PierreJules Hetzel, nas “escolhas” genéricas que precisou efetuar e na sua situação no campo
literário francês da segunda metade do século XIX, buscamos os elementos conceituais
na teoria do campo literário desenvolvida por Pierre Bourdieu. Associamos a teoria do
sociólogo à Análise do Discurso de linha francesa pois estapropõe a definição de campo
discursivo como uma rede de relações em que se constrói um espaço discursivo cuja
descrição deve dar conta do dialógico e da relação interdiscursiva sem deixar de
considerar a singularidade da obra. Além disso, a Análise do Discurso oferece
instrumentos para a leitura das marcas discursivas presentes em uma cena que permite
legitimar uma obra. Portanto, para otimizar um estudo que priorize a obra de Jules Verne
relacionando-a à sua instância enunciativa e ao seu campo de produção, servimo-nos dos
conceitos da Análise do Discurso literário desenvolvidos por Dominique Maingueneau
aos quais vêm juntar-se as noções desenvolvidas por Liliane Louvel em seus estudos
sobre a picturalidade de uma descrição.
2.1- Sobre a teoria do campo literário
A teoria social em Pierre Bourdieu orienta-se, ao longo da sua obra, pela
construção de uma sociologia relacional, centrada sobre a ação dos agentes e as instâncias
simbólicas que expressam e realizam a dominação social. Em outras palavras, o sociólogo
tem a tarefa de desvendar os mecanismos da reprodução social que legitimam as diversas
formas de dominação. Grosso modo, tem como estratégia de análise a compreensão da
relação entre as estruturas objetivas presentes nos campos sociais – onde os agentes se
10
dispõem e onde suas práticas estão estruturadas – e as estruturas incorporadas que
informam a prática social dos agentes, os modos de se sentir, pensar, julgar etc.
Para realizar sua teoria sociológica e desvelar o funcionamento do sistema
sumariamente descrito acima, Bourdieu desenvolve conceitos específicos, deslocando os
fatores econômicos do centro das análises da sociedade. O espaço social, para Bourdieu,
deve ser compreendido à luz de dois conceitos fundamentais: campo e habitus. Embora
sejam conceitos apresentados de maneira estanque, devem ser compreendidos na sua
interdependência e na sua articulação com os conceitos de capital, violência simbólica e
trajetória que são secundários, mas nem por isso menos importantes, e que formam a
explicação das relações internas do objeto social.
Campo, na teoria proposta pelo sociólogo, representa um espaço simbólico no
qual as lutas dos agentes determinam, validam e legitimam representações. Nele se
estabelece uma classificação dos signos, do que é adequado, do que pertence ou não a um
código de valores.13Para Bourdieu, tal pressuposição permite entender algumas oposições
como indivíduo/sociedade, desinteressado/interessado, natural/social presentes nas
ciências sociais. No campo da arte, por exemplo, as lutas simbólicas determinam o que é
erudito ou o que pertence à indústria cultural, quais valores e quais rituais de consagração
serão legítimos dentro do campo.
Cada espaço social corresponde, assim, a um campo específico – cultural,
econômico, científico, jornalístico, literário etc –, no qual são determinados a posição
social dos agentes e o espaço em que se revelam, por exemplo, as figuras de “autoridade”,
detentoras de maior volume de capital. Para Bourdieu, o que organiza os agentes sociais
no campo e os estrutura no universo social é a posse de diferentes tipos de capital.
Em uma primeira análise, o conceito de capital está ligado à abordagem marxista.
A analogia se explica pelo significado reconhecido da palavra capital: ele se acumula por
meio de operações de investimento, transmite-se pela herança, permite extrair lucros
segundo a oportunidade que seu detentor tiver de operar aplicações mais rentáveis. No
entanto, como propõe Bourdieu, seu uso não é limitado apenas à área econômica, ou seja,
para o sociólogo, o capital não é apenas o acúmulo de bens financeiros, mas todo recurso
que se manifesta em uma atividade social.
13
Cf. BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Trad. Cássia Silveira & Denise Pegorim. São Paulo: Brasiliense,
1990, p. 149-168.
11
Bourdieu repertoria assim quatro tipos de capital: 1) capital econômico –salários,
imóveis, obras de arte, posse de bens materiais em geral; 2) capital cultural – saberes e
conhecimentos intelectuais transmitidos pela escola ou pela família, ou adquiridos pelos
agentes em outros espaços; 3) capital social – relações sociais que podem ser convertidas
em recursos de dominação; 4) capital simbólico – o que chamamos prestígio ou honra e
que permite identificar os agentes no espaço social. No capítulo em que trata do campo
literário e das lutas simbólicas em pesquisa empreendida sobre a obra de Joris-Karl
Huysmans, Pedro Paulo Catharina menciona este último tipo de capital como sendo
“trunfos usados nos jogos sociais”.14
Compreende-se que todo agente, indivíduo ou grupo, para subsistir socialmente
dentro de um campo, deve participar desses “jogos sociais” que lhe impõem sacrifícios e
escolhas. Nesses jogos, alguns dos jogadores se creem livres, outros determinados. Para
Bourdieu, contrariamente a essa ideia, os indivíduos estão sujeitos a estruturas profundas.
Têm, inscritos neles, os princípios geradores e organizadores das suas práticas, das suas
ações e pensamentos. Por este motivo, Bourdieu não usa o conceito de sujeito, preferindo
o de agente. Os indivíduos são agentes na medida em que atuam socialmente e que são
dotados de um senso prático, um sistema adquirido de preferências, de classificações, de
percepção, o que o sociólogo chama de habitus.15
O habitus é um conceito com uma longa história: de Aristóteles, a Merleau-Ponty
passando por Mauss, Hegel e Heidegger.16 De maneira geral, para Bourdieu, as
disposições que orientam as práticas dos agentes constituem o habitus. Este é construído
durante os processos de socialização nos diferentes espaços sociais nos quais o agente
esteve inserido: familiar, escolar, profissional etc.
Retomado por inúmeras vezes em diversas obras de Bourdieu, o conceito de
habitus, em geral, é o que norteia a percepção da situação, a ação, as preferências e a
visão de mundo dos agentes sociais. Ele fundamenta a resposta dos indivíduos a uma
determinada situação; é passível de mudanças, modificando e sendo modificado pelas
estruturas sociais. O conceito de habitus proposto pelo sociólogo mostra que ele engendra
e é engendrado pela lógica do campo social e que as escolhas e as ações dos agentes em
um determinado campo são produtos da experiência biográfica individual, da experiência
14
CATHARINA, Pedro Paulo Garcia Ferreira. Quadros literários fin-de-siècle; um estudo de Às avessas,
de Joris-Karl Huysmans. Rio de Janeiro: 7Letras/Faculdade de Letras UFRJ, 2005, p. 44.
15
Cf. BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas; sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa. São Paulo:
Papirus, 1996, p. 44.
16
Cf. BOURDIEU, 1990, p. 24.
12
coletiva e da interação entre ambas. Em suma, o habitus constitui uma maneira de
perceber, julgar e valorizar o mundo e conforma a maneira de agir, corporal e
materialmente.
Nas lutas travadas no campo, os agentes investem capitais conquistados em
enfrentamentos anteriores. Esses capitais asseguram ao agente, como vimos, seus direitos
e seu reconhecimento social. Essa nominação oficial é uma das manifestações típicas da
violência simbólica. Esse termo, para Bourdieu, explica a adesão dos dominados em um
campo: trata-se da dominação inconscientemente consentida e da incapacidade crítica de
reconhecer a arbitrariedade das regras impostas por autoridades dominantes de um
campo.
Ainda sustentando a metáfora topográfica do campo como espaço de conflitos
entre posições de investimentos de capitais para modificação ou manutenção de habitus,
Bourdieu trata do conceito de trajetória. Esta é definida como a série de posições
sucessivamente ocupadas por um mesmo agente ou por um mesmo grupo de agentes em
espaços sucessivos.17 Esse conceito é produtivo para compreender a reconstituição do
percurso biográfico, intelectual e profissional de um agente, mapeando suas relações com
outros agentes do campo, seus investimentos ao longo da vida e suas sucessivas mudanças
de posição no campo.
Os conceitos acima descritos têm papel essencial para uma reflexão acerca do
discurso literário, visto que auxiliam a romper as barreiras existentes entre “a obra”, “o
criador” e “a sociedade”, frequentemente vistos como instâncias isoladas. Com os
conceitos de Pierre Bourdieu propomos que, para se compreender a gênese de uma obra
literária, sejam levadas em conta as relações do artista no campo de produção simbólica
a que pertence, bem como as coerções sociais e materiais a que está submetido. Mas, se
por um lado existem leis gerais do campo, por outro, informa Bourdieu, existem
características específicas próprias a cada campo particular. Em cada um deles a luta entre
dominados e dominantes, as definições dos comportamentos legítimos e regras de
pertencimento têm propriedades específicas. Cabe-nos, portanto, fazer reflexões acerca
das particularidades que dizem respeito ao campo literário e o processo de
autonomização.
Para Bourdieu, o campo literário na França, na segunda metade do século XIX,
tem seu funcionamento baseado em uma inversão da lógica econômica. Este
17
Cf. BOURDIEU, 1996, p. 78-79.
13
funcionamento consiste no princípio de recusa do lucro econômico com a vendagem do
produto artístico, ou do capital simbólico, como o reconhecimento do grande público. Em
geral, nos termos de Bourdieu, no campo literário, o critério para julgar se determinada
obra é legítima é o fato de ela estar desvinculada de qualquer coerção material.
O próprio conceito de campo implica em uma noção de sua autonomia em relação
a outros campos. No caso do campo literário, essa luta por autonomia é definida, assim
como para os outros campos, por enfrentamentos entre seus agentes. Esses embates se
dão entre aqueles que se distiguem por produzir para o grande público e estão mais
interessados nos lucros financeiros, e os outros que se apegam ferrenhamente à noção de
autonomia artística. Quanto mais autônomo é o campo em questão, mais poder no interior
do campo têm aqueles que fazem da sua arte um exercício de recusa de interesse,
enquanto os outros dominados no campo gozam de prestígio e poderes de outras espécies,
que não são específicos do mundo artístico, mas de outros setores da sociedade.
Assim, a respeito do campo literário, existem dois eixos de hierarquização que
incidem sobre seus agentes: um princípio de hierarquização interna que define
dominantes e dominados dentro do campo e que favorece os escritores conhecidos e
reconhecidos por seus pares, e um princípio de hierarquização externa que situa o campo
e seus agentes no conjunto do universo social.
Pela lógica de distribuição dos capitais no espaço social, o campo literário ocupa
uma posição dominada no campo do poder:18 “[os campos de produção cultural] por mais
livres que possam estar das sujeições e das solicitações externas, são atravessados pelas
necessidades dos campos englobantes, a do lucro econômico ou político”.19 Por
conseguinte, o campo literário é o espaço de lutas entre os dois princípios de
hierarquização: o da heteronomia, favorável àqueles que dominam o campo econômico e
político – Bourdieu insere aqui os defensores da “arte burguesa” –, e o princípio da
autonomia, no qual Bourdieu inclui os agentes partidários da “arte pela arte”. A essas
duas correntes somam-se a “arte social”, que tem estatuto ambíguo por compartilhar com
a “arte pela arte” a recusa do sucesso mundano, e a “arte burguesa” que o reconhece, em
detrimento dos valores de “desinteresse”.20
Segundo Bourdieu, o campo do poder é “o espaço das relações de força entre agentes e instituições que
têm em comum possuir o capital necessário para ocupar posições dominantes nos diferentes campos
(econômico ou cultural, especialmente). Cf. BOURDIEU, Pierre. Les Règles de l’art. Genèse et structure
du champ littéraire. Paris: Seuil, 1998 (1992), p. 353.
19
BOURDIEU, 1998, p. 355.
20
BOURDIEU, 1998, p. 355.
18
14
No livro As Regras da arte, Bourdieu trata dessas três tendências que formam, em
estrutura triangular, uma relação de oposição entre elas. Ao propor um estudo minucioso
do romance L’Education sentimentale (1869),de Gustave Flaubert, o sociólogo faz uma
análise do campo literário francês do século XIX e de seu processo de autonomização.
Bourdieu explica como os escritores tentam conquistar essa autonomia de pensamento e
ação diante dos poderes político e econômico. A reivindicação da “arte pela arte” é
compreendida como o direito de escrever sem engajamento político nem necessidade
comercial. Bourdieu argumenta que a independência do campo artístico teria sido
assegurada por meio da recusa de duas possibilidades de engajamento cultural,
disponíveis para Flaubert e seus pares, todos participantes de uma revolução estéticopolítica: a “arte burguesa” e a “arte social”. A primeira teria se caracterizado pela
subordinação estrutural aos dominantes, contrastando-se com a dependência do artista em
relação a um mecenas. Esta nova forma de submissão, estrutural, teria sido instituída
através de duas mediações principais, o mercado e o Estado:
De um lado o mercado, cujas sanções ou sujeições se exercem sobre as
empresas literárias, seja diretamente, através de cifras de venda, do
número de recebimentos, etc., seja indiretamente, através dos novos
postos oferecidos pelo jornalismo, a edição, a ilustração e por todas as
formas de literatura industrial; de outro lado as ligações duradouras,
baseadas em afinidades de estilo de vida e de sistema de valores que
especialmente por intermédio dos salões, unem pelo menos uma parte
dos escritores a certas frações da alta sociedade, e contribuem para
orientar as generosidades do mecenato do Estado. Na ausência de
verdadeiras instâncias específicas de consagração, as instâncias
políticas e os membros da família imperial exercem um domínio direto
sobre o campo literário e artístico, não apenas pelas sanções que
atingem jornais e outras publicações [...], mas também por intermédio
dos proveitos materiais e simbólicos que estão em condição de
distribuir [...]. Os gostos dos novos ricos instalados no poder voltam-se
para o romance, em suas formas mais fáceis - como os folhetins,
disputados nas cortes e nos ministérios, e que dão lugar a empresas de
edição lucrativas; ao contrário, a poesia, ainda associada às grandes
batalhas românticas, à boemia e ao engajamento em favor dos
desfavorecidos, constitui objeto de uma política deliberadamente hostil,
em especial da parte do ministério de Estado.21
Os fundadores do campo artístico autônomo, além de se opor a essa arte vendida,
teriam rejeitado a arte social. Os novos artistas abominariam o desrespeito dos colegas
engajados na defesa de uma concepção utilitária da arte, tão moralizadora quanto aquela
a que visavam se opor. A ruptura com esses polos – o da “arte burguesa” e o da “arte
21
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Gênese e estrutura do campo literário. Trad. Maria Lúcia
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 66.
15
social”, – teria fundado o campo artístico autônomo. Em oposição à arte burguesa, a nova
arte pretenderia se libertar da submissão ao Estado, das imposições do mercado e, por
conseguinte, dos gostos burgueses. Bourdieu sublinha que o resultado sociológico desta
atitude teria sido a instalação de um mundo econômico às avessas:
De fato, eles não podem triunfar do burguês na luta pelo domínio do
sentido e da função da atividade artística sem o anular ao mesmo tempo
como cliente potencial. [...] Alguns escritores, como Leconte de Lisle,
chegam ao ponto de ver no sucesso imediato a marca de uma
inferioridade intelectual. [...] Estamos, com efeito, em um mundo
econômico às avessas: o artista só pode triunfar no terreno simbólico
perdendo no terreno econômico.22
Para Bourdieu, a hostilidade à mercantilização da obra de arte acaba
paradoxalmente por favorecer, nessa nova posição, agentes dotados de capital econômico,
o que os libertaria das coerções do campo econômico. Além desta independência
econômica, Flaubert e seus companheiros da arte pura partilhariam mais um traço nessa
tomada de posição: o berço em uma burguesia ilustre ou em uma nobreza tradicional que:
[...] têm em comum favorecer disposições aristocráticas que levam
esses escritores a sentir-se igualmente afastados das declamações
demagógicas dos defensores da “arte social”, que identificam com a
plebe jornalística da boemia, e dos divertimentos fáceis dos “artistas
burgueses” que, oriundos, na maior parte, da burguesia de negócios, não
passam para eles de mercadores do templo.23
É a partir destas coordenadas no espaço social que Bourdieu se propõe analisar as
posturas de Flaubert em relação à literatura, condensadas na máxima “escrever bem o
medíocre”, nas quais se perceberia claramente o mesmo tom de dupla ruptura com os dois
polos literários descritos anteriormente.
Tomamos como base a teoria do campo de Pierre Bourdieu e as peculiaridades do
funcionamento do campo literário descritas acima, visando estabelecer uma linha de
coerência entre as tendências literárias em voga à época de Jules Verne e seu
pertencimento ao campo literário. Investigando a trajetória de Jules Verne no campo,
verificamos como o escritor se posiciona diante da luta pela autonomia do campo literário
e da autodeterminação de sua obra, levando em conta alguns dados pontuais: o seu esforço
para se tornar escritor, o abandono de uma orientação romântica, a sua relação com o
editor Pierre-Jules Hetzel e a participação no projeto pedagógico de sua editora. Para a
discussão trago reflexões sobre temas, gênero, aparelho retórico e o estilo de Jules Verne,
22
23
BOURDIEU, 2006, p. 102.
BOURDIEU, 2006, p. 105.
16
além de análises paratextuais. Lançaremos mão das noções que compõem a estrutura
triangular formada pela oposição entre os três polos de produção da arte que descrevemos.
Sustentamos a hipótese de que o autor se afasta de uma orientação romântica inicial em
sua carreira, para realizar as Viagens extraordinárias, momento mais científico e
“industrial” na sua trajetória, o que marca as imposições que o campo econômico exerce
sobre o campo literário. No entanto, defendemos ainda que as representações artísticas
veiculadas na sua obra poderão provar um vínculo com os valores românticos
identificados no início de sua trajetória.
2.2- Por uma abordagem discursivo-literária
Ampliaremos o eixo teórico privilegiado nesta Tese utilizando conceitos da
Análise do Discurso, aqueles desenvolvidos por Dominique Maingueneau (1993; 2006).
Traremos para a discussão uma abordagem discursiva das obras literárias, aquela que não
considera somente o texto literário em si, mas prefere ver o fato literário na sua
inseparabilidade do contexto social de sua produção e circulação, levando em conta a
situação de enunciação,as condições de vida do escritor, as coerções editoriais, a fortuna
crítica etc.
Com o objetivo de pensar em uma “sociabilidade” constitutiva do texto sem recair
em uma teoria do “reflexo”, em Discurso literário,24 Dominique Maingueneau recusa
tanto a abordagem histórica, para a qual o texto é produto de seu tempo, quanto a
abordagem estilística, que considera o texto como um universo fechado em si mesmo.
Como o próprio título do seu trabalho indica, a noção de “discurso” para uma abordagem
da literatura promove a convergência da ideia da linguística do discurso como “objeto”,
da noção pragmática dos modos de apreensão desse objeto e, ainda, de uma concepção
semântica que prevê que todo discurso é uma forma de ação, contextualizado e assumido
por um sujeito, regido por normas, e só adquire sentido em relação a outros discursos
(princípio da primazia do interdiscurso sobre o discurso). Em suma, considerar o fato
literário como discurso é pôr em xeque a ausência de comunicação com o que seria
considerado externo à obra. Para Maingueneau, as condições do dizer permeiam o dito
que, por sua vez, remete a suas próprias condições de enunciação: o estatuto do escritor
24
Cf. MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. Trad. Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006.
17
vinculado ao seu posicionamento no campo literário, os papéis associados aos gêneros, a
relação com o destinatário, os suportes e os modos de circulação dos enunciados.
Para dar conta das condições de enunciação do dito, Maingueneau se vale da teoria
do campo literário, do sociólogo Pierre Bourdieu, referida anteriormente, considerando
a obra literária como produto e produtora de um espaço discursivo e desenvolvendo os
conceitos de posicionamento e cenografia enunciativa, que articulam a inscrição social
do escritor e a situação de enunciação da obra. Com o conceito de posicionamento
discursivo, rediscutido por Maingueneau em Imagens de si no discurso, livro organizado
por Ruth Amossy, o linguista designa o tom que caracteriza a vocalidade do fiador no
interior de um texto escrito. Esse tom faz parte não só da construção da sua identidade,
que é compatível com o mundo que se supõe que ele faz surgir em seu enunciado, mas
também de um posicionamento discursivo.25
Em uma abordagem discursiva, o conceito de posicionamento define uma
identidade enunciativa e um lugar de produção discursiva específico.Segundo
Maingueneau, o posicionamento designa ao mesmo tempo as operações pelas quais essa
identidade enunciativa se instaura e se conserva em um campo discursivo, e essa própria
identidade. Ele não diz respeito apenas aos conteúdos, mas às diversas dimensões do
discurso, manifestando-se na escolha destes ou daqueles gêneros de discurso e no modo
de citar.26
Respeitando a lógica da significação por oposição, o posicionamento do autor
também é definido por aquilo que se exclui do processo de seleção, isto é, dentre as opções
existentes no campo, as escolhas abandonadas também auxiliam na construção do
posicionamento do escritor. O conceito de posicionamento será produtivo para esta Tese,
na medida em que é apresentado como uma das formas de inscrição do autor, no caso
Verne, no campo literário. Pretendemos mostrar que, em análise à trajetória de Jules
Verne enfocando as representações da arte e do artista na sua obra, o escritor explicita sua
filiação a movimentosestéticos, distingue e classifica escolas artísticas e define seu
projeto literário.
Como dissemos, a noção de enunciação literária que traz a Análise do Discurso
de Maingueneau desestabiliza a representação dicotômica do “dentro/fora” do campo que
Cf. MAINGUENEAU, Dominique. “Ethos, cenografia, incorporação”. In: AMOSSY, Ruth (org.)
Imagens de si no discurso; a construção do ethos. Trad. Dilson Ferreira, Fabiana Komesu e Sírio Possenti.
São Paulo: Contexto, 2008c, p. 73.
26
Cf. CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dictionnaire d’analyse du discours.
Paris: Seuil, 2002.
25
18
se faz habitualmente. Assim, o linguista conceitua paratopia como um traço constitutivo
da posição de artista, marcando seu pertencimento social impossível do campo literário.
Ainda que faça parte do campo, estaria à margem do mesmo, num jogo que gera a sua
existência e do qual se nutre. Em um mesmo movimento, o artista deve reduzir e preservar
uma exclusão que se torna conteúdo e motor da sua criação. Ligado ao processo de criação
artística, o teórico afirma que “a paratopia não é origem nem causa, e menos ainda uma
condição: [...] só existe paratopia elaborada mediante uma atividade de criação e de
enunciação.”27 O conceito será testado na investigação de uma paratopia literária de Jules
Verne ao estabelecermos relação com o personagem paratópico de Paris au XXe siècle,
aquele que não encontra lugar, e de uma “topia” enunciativa depois da associação ao
editor Pierre-Jules Heztel.
Valendo-se da metáfora teatral, Maingueneau propõe igualmente o conceito de
cenografia,28 afirmando que cada gênero discursivo se caracteriza por uma cena, cada
uma requerendo para si uma dramaturgia específica, implicando tempo e espaço
igualmente específicos e uma figura de enunciador e coenunciador. A cena não pode ser
concebida como um quadro simples previamente construído do qual emerge o discurso.
Deve ser entendida como constitutiva do discurso.29 É esse conceito que nos permite
associar o texto ao seu contexto.
Em sua obra Discurso Literário, Dominique Maingueneau propõe uma análise da
cena de enunciação em três cenas distintas: cena englobante, cena genérica e cenografia.30
A cena englobante, comumente entendida como um tipo de discurso (político, científico,
religioso etc.), é aquela que sinaliza um estatuto pragmático ao gênero de discurso de
onde provém o texto, para nós, o texto literário; a cena genérica define-se pelos gêneros
do discurso, é a instituição discursiva; a cenografia, implicando a figura de um enunciador
e uma correlativa de coenunciador, é a cena com a qual o leitor se depara em primeiro
plano, já que as cenas englobante e genérica são deslocadas para o segundo plano.
Ainda no que diz respeito à cenografia, esta não é imposta pelo gênero do
discurso, mas instituída pelo discurso. O discurso determina sua cenografia logo no início
e, no seu desenrolar, busca justificar-se enquanto a constitui, como num processo em
espiral. Assim, a cenografia é considerada a gênese e a finalidade do discurso; legitima e
27
MAINGUENEAU, 2006, p. 109.
Cf. MAINGUENEAU, 2006, p. 253.
29
Cf. CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2006, p. 95-96.
30
Cf. MAINGUENEAU, 2006, p. 251-253.
28
19
é legitimada no e pelo discurso que, por sua vez, estabelece sua cenografia específica.
Como evidencia Maingueneau, a cenografia não é tão somente um cenário no interior do
qual o discurso aparece como um espaço já construído e independente dele; ela é a
enunciação que, ao se desenvolver, constitui progressivamente, e paradoxalmente, o seu
próprio dispositivo de fala; a cenografia é “[...] ao mesmo tempo fonte do discurso e
aquilo que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la
estabelecendo que essa cenografia onde nasce a fala é precisamente a cenografia exigida
para enunciar como convém.”31
Maingueneau explicita ainda que a cenografia implica um momento específico
(cronografia) e em um lugar específico (topografia) de onde o discurso emerge. A
determinação da identidade dos parceiros da enunciação está em estreita relação com a
definição de um conjunto de lugares (saberes partilhados e mundos possíveis) e de
momentos de enunciação (instante da interação). Esses dados, se somados aos conteúdos,
aos níveis de língua, ao ritmo, ao gênero e ao ethos do enunciador, auxiliam na
(re)construção da cenografia em que se inscreve uma obra literária.
Dentre as três cenas, a cenografia aparece como a cena de enunciação mais
propícia aos investimentos de criação do discurso. Nela se formam o simulacro de um
momento, de um espaço e dos papéis sociais conhecidos e compartilhados culturalmente.
Maingueneau ressalta que os indícios que compõem a cenografia enunciativa de uma obra
podem se manifestar no próprio texto, nas informações paratextuais ou de maneira
implícita. Assim, o conceito terá sua produtividade testada na investigação da cenografia
de cada item da obra de Verne que analisaremos: os textos dramáticos La Guimard (1850)
e Monna Lisa (1851) e, a crítica de arte do Salão de 1857, o romance Paris au XXe siècle
(1861) e certos romances que integram as Viagens extraordinárias.
Em “Ethos, cenografia, incorporação”,32 Maingueneau sintetiza o seu tratamento
para o conceito de ethos em consonância com a Análise do Discurso e mediante tênue
diálogo com a tradição retórica, cuja presença é reconhecida na gênese de tal conceito.
Na reflexão do autor, é fundamental a concepção da manifestação do ethos associado à
enunciação em detrimento de um enfoque do “caráter” do orador obtido por intermédio
de concepções prévias a seu respeito. Com tal escolha, o linguista considera desenvolver
um trabalho acerca do ethos capaz de suplantar os limites de teorias da argumentação.
Em outras palavras, Maingueneau pretende demonstrar que sua abordagem propicia uma
31
32
MAINGUENEAU, 2006, p. 253.
Cf. MAINGUENEAU, 2008c, p. 69-92.
20
análise que vai além do aspecto intradiscursivo por contemplar aspectos sócio-históricos,
institucionais e extensivos às condições de produção do discurso. O diferencial da
proposta é marcado pelo exame da atuação do ethos em textos de modalidade escrita ao
invés da oralidade visada no/pelo aporte retórico, desprovidos de uma organização em
sequência argumentativa nos moldes dos estudos de Jean-Michel Adam e desvinculados
de circunstâncias argumentativas ou da funcionalidade de gêneros argumentativos. As
formulações teóricas de Maingueneau a respeito do ethos (2005; 2006; 2008c) viabilizam
a nossa proposta de discutir peculiaridades observadas no texto dramático, em um gênero
discursivo como a crítica de arte e nos textos romanescos que compõem o corpus da tese
por unir a noção de “corpo” enunciador ao discurso.
A relação entre corpo e discurso decorrente de uma “reflexividade enunciativa”33
encerra outro ponto essencial da proposta de Maingueneau que nos interessará neste
trabalho. Essa relação diz respeito às justificativas do linguista para o caminho assumido
no trabalho com o ethos. Para tanto, o autor é categórico ao sublinhar a insuficiência
analítica do estudo da manifestação do ethos através do discurso exclusivamente como
uma posição ou função a ser ocupada. Quanto a essa perspectiva de análise, encontramos
esclarecimento na recuperação que Amossy faz da concepção sociológica de Pierre
Bourdieu, pela qual o enunciador ou locutor desempenham a função de “porta-voz
autorizado”.34 Levando em conta que a eficácia do discursoreside mais na reconhecida
função social de quem profere o dizer, observamos que, a partir desse viés de cunho
sociológico e extradiscursivo, a análise do ethos traria à tona uma representação sempre
previsível para o coenunciador, oriunda de um conhecimento antecipado sobre a fonte da
enunciação. Trata-se do ethos pré-discursivo,35 definição que vai de encontro ao interesse
de Maingueneau, o ethos discursivo. Para este trabalho, confirmaremos ou infirmaremos
que mesmo que o coenunciador não saiba nada previamente sobre o enunciador, o simples
fato de um texto pertencer a um gênero de discurso ou a certo posicionamento ideológico
induz expectativas em matéria de ethos.
Dizer que toda a discussão que gira em torno do conceito de ethos remete à
caracterização do corpo de um enunciador (segundo os estudos de Maingueneau), faz
33
MAINGUENEAU, Dominique. Archéologie et analyse du discours. Texto. Jun/2005, p. 70. Disponível
em: http://www.revue-texto.net/Reperes/Themes/Maingueneau_Archeologie.html.
34
AMOSSY, Ruth. O ethos na interseção das disciplinas: retórica, pragmática, sociologia dos campos. In:
___. (Org.) Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2008, p. 120-121.
35
Cf. MAINGUENEAU, 2006, p. 270.
21
emergir uma “instância subjetiva encarnada”36 que exerce o papel de fiador, aquele que,
“por meio de seu tom, atesta o que é dito”.37 O fiador tem sua figura construída pelo leitor
com base em indícios textuais de diversas ordens e é esse mesmo leitor que o verá
investido de caráter e corporalidade. Queremos dizer que o poder das palavras deriva da
adequação entre a função social do enunciador e seu discurso. Entendemos que o discurso
não pode ter autoridade se não for dito pela pessoa legitimada a pronunciá-lo em uma
situação legítima, portanto, diante de coenunciadores legítimos. Assim, para delinearmos
a concepção de arte e a representação do artista transmitidas nas peças La Guimard e
Monna Lisa, na crítica do Salão de 1857, no romance Paris au XXe siècle e em romances
que compõem as Viagens extraordinárias, reconstituiremos o ethos e a corporalidade do
fiador tentando investigar no dito do autor dramático, do crítico e do romancista: 1) o
papel social da arte; 2) a posição do artista na sociedade; 3) o estatuto da arte em relação
à(s) outra(s) forma(s) de expressão; 4) as qualidades que uma obra de arte deve ter; assim
como 5) temas e procedimentos técnicos apropriados para expressar a arte e alcançar uma
posição legitimada. Conseguindo desenvolver tais problemas de investigação,
acreditamos entender na trajetória de Jules Verne as concepções artísticas que compõem
o seu projeto estético.
2.3- Da picturalidade das descrições
Como mostrado na dissertação de Mestrado Retratos literários: o discurso
científico na obra de Jules Verne,38 os retratos dos personagens que compõem as Viagens
extraordinárias apresentam interdiscursividade com a ciência e a história e são
carregados de sentidos. Para chegarmos a essa conclusão, analisamos as passagens
descritivas concernentes aos personagens de Cinq semaines en ballon (1863), Les enfants
du capitaine Grant (1867-1868) e Le Chancellor (1875),com base na teoria do descritivo
de Philippe Hamon.
Em geral, por se tratar de romances de aventura, Verne recorre à intriga, à
expectativa típica do narrativo, e preenche seus romances de imagens pitorescas, de
36
MAINGUENEAU, 2005, p. 72.
MAINGUENEAU, 2006, p. 271.
38
Cf. SANTOS, Edmar Guirra dos. Retratos literários: o discurso científico na obra de Jules Verne. Rio
de Janeiro: Faculdade de Letras – UFRJ, 2010a. Dissertação de Mestrado.
37
22
passagens que podem ser recriadas visualmente pelo leitor ao elaborar mentalmente a
imagemsugerida pela descrição. Assim, é evidente a importância que o descritivo
assumirá no conjunto da obra. Não são raras as referências picturais nessas passagens na
sua obra romanesca. Elas aparecem ao longo das tramas, seja através de citações diretas,
ou através de passagens de dominante descritiva. Como na Dissertação de Mestrado,
pretendemos, nesta Tese, estudar o descritivo dessas passagens, porém, desta vez, a fim
de identificar as referências picturais que compõem o projeto estético do autor e definir
marcas de seu posicionamento na luta pela autonomia do campo artístico.
Eventualmente evocaremos o aparato conceitual da teoria do descritivo com base
nos estudos de Philippe Hamon (1981 e 1993) e Adam & Petitjean (1989), mas
manteremos o foco nos índices picturais no texto. Para tanto, basearemos a pesquisa nos
trabalhos de Liliane Louvel (1997; 2002; 2013).
Muitas das construções em Jules Verne, mescladas ao enredo pelo mecanismo da
descrição, estão diretamente relacionadas às artes visuais e à pintura. Elas constituem
menções que o leitor experimentado deve deter e ativar, para obter bom desempenho no
ato de fruição da obra. Assim, as teorias do descritivo de Philippe Hamon encontram eco
nos trabalhos de Liliane Louvel e sua proposta de identificação e análise da picturalidade
de uma descrição.
A relação entre os sistemas semióticos adquire configurações diversas nos trechos
em que aparece, uma vez que o emprego da referência pictural no texto literário se dá a
partir de diferentes mecanismos. Em um texto, a representação do pictural pode ocorrer
tanto por meio de uma forma mais subjetiva e rarefeita, como o “efeito-quadro”, quanto
a partir de um adensamento da referência pictórica, com o emprego da descrição pictural
e, enfim, da ekphrasis, representação com maior grau de picturalidade, categorias de que
trataremos a seguir. Para inquirir essa aproximação entre visual e verbal, em que o texto
literário se imbui de pictórico, a metodologia de análise sugerida por Liliane Louvel, que
propõe uma reflexão em torno da presença do pictural no escritural, torna-se bastante
pertinente.
Pesquisadora das relações entre pintura e literatura, Liliane Louvel averigua os
diferentes níveis de saturação pictural das obras literárias.39 Fundamentando sua proposta
e identificando as nuances ou variações do grau de picturalidade do texto, a autora
Cf. LOUVEL, Liliane. A descrição “pictural”: por uma poética do iconotexto. In: ARBEX, Márcia (Org.).
Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-graduação em
Letras/Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006 (1997), p. 191-220.
39
23
estabelece a existência de diversos marcadores picturais, que podem ser diretos ou
indiretos, explícitos ou implícitos. Grosso modo, esses marcadores podem ser definidos
como tudo que abre o texto à imagem pictural. Muitos já sendo reconhecidos nas
propostas de Hamon, Louvel destaca as evidências que marcam a picturalidade de uma
passagem: 1) o enquadramento que limita o espaço (início e fim da passagem) reservado
ao “quadro”; 2) a presença de personagem pintor ou esteta que evidenciam a qualidade
pictural do texto e exercem efeito de real; 3) o uso de dêiticos que designam o lugar e o
tempo da imagem, mas também recupera o focalizador e/ou enunciador; 4) a presença de
mise-en-abyme ou “a narrativa dentro da narrativa”; 5) a presença de personagem em
posição de voyeur; 6) a modalização que marca o ponto de vista daquele que vê e informa
o leitor; 7) os tempos e aspectos verbais com suas propriedades de suspensão da ação e
dilatação que evidenciam o quadro; 8) o uso de léxico especializado como menção a
técnicas da pintura, destaque de cores, formas, luz, claro-escuro, perspectivas etc.; 9) a
presença de temas dos quais a pintura se serve como aqueles ligados à religiosidade, à
mitologia ou à história; 10) a presença de objetos de arte como pinceis, telas, cavaletes
etc., ou objetos caros à pintura como quadros, miniaturas, esculturas, joias, móveis, livros
etc.; 11) as referências metapicturais como a menção a gêneros e escolas de pintura.
Em seu livro Texte Image, de 2002,40 Louvel aborda as eventuais marcas que
indicariam o grau de saturação pictural de um texto. Ela salienta que, em função de sua
dimensão pictural, concretizada ou não a partir de marcadores de picturalidade, podemos
encontrar efeitos que indicariam diferenças no grau de picturalidade.41 Assim, Louvel
classifica os textos em função da quantidade e dos tipos de marcadores observados, assim
como em função dos efeitos que são produzidos. Louvel destaca os possíveis graus de
saturação pictural: 1) efeito-quadro: aparecimento na narrativa de imagens-pintura
produzindo um efeito de sugestão. Sem referências diretas à pintura, esta seria a forma
mais diluída de inscrição pictural no texto (ex.: um barco que aporta sugeriria uma
marinha); 2) vista pitoresca: em diálogo mais próximo com as fontes da pintura, a vista
pitoresca era de fato um gênero pictórico.42 Implicando a presença e identificação de um
nome que evoca um lugar particular, a vista pitoresca, reconstruída pela memória, faz
surgir no pensamento do leitor cenas de lugares que sugerem paralelos com quadros; 3)
40
LOUVEL, Liliane. Texte Image; images à lire, textes à voir. Rennes: Presses Universitaires de Rennes,
2002.
41
Cf. LOUVEL, 2002, p. 33-43.
42
Cf. LOUVEL, 2002, p. 35.
24
hipotipose: citando Fontanier, Louvel explicita que, essafigura de retórica que designa a
ação de descrever uma cena ou circunstância, utiliza cores intensas, afim de fazer com
que o leitor tenha a sensação de que as percebe pessoalmente. Sendo um modo híbrido
entre descrição e narração ou descrição narrativizada,43 Louvel salienta que este grau está
ligado à pintura de história, mas se faz presente sem referências diretas à pintura; 4)
quadros-vivos: grau que se aproxima da cena teatral na qual personagens se encontram
em posição que sugere a ação de falar e, portanto, reproduzem uma cena pictural
específica. Menos sujeito à subjetividade do leitor, os quadros-vivos são criados pela
vontade do narrador; 5) organização estética: inscrito o olhar do personagem ou do
narrador, a organização estética pressupõe uma intenção consciente de que se produza um
efeito artístico. Concentrando-se em um quadro, o narrador funciona como operador de
visão.44 Esse grau permitiria realizar, por exemplo, uma cena de banquete em natureza
morta; 6) descrição pictural: neste grau, os marcadores de picturalidade repertoriados por
Louvel devem necessariamente estar presentes para que o pictural fique evidente; 7)
ekphrasis: mais alto grau na escala de saturação, a ekphrasis é a descrição de uma obra
de arte, ou de um objeto estetizado que valha como tal.45
Além das peças La Guimard e Monna Lisa, com suas referências metapicturais,
da crítica ao Salão de 1857, que surge da observação de obras de arte, Jules Verne, na
maioria de seus romances, se vale do tema da viagem para erguer suas tramas, nas quais
o visual é muito importante. O subtítulo dado ao conjunto da obra – “Viagens
extraordinárias aos mundos conhecidos e desconhecidos” – sugere não só a importância
que o descritivo assumirá no texto, mas a dimensão pitoresca da obra romanesca de
Verne, na medida em que busca apresentar aos leitores personagens e espaços exóticos,
desconhecidos, pouco explorados ou inexplorados à época. No intuito de trazer o quadro
para o texto, ou de fazer do texto um quadro, verificamos em que medida Verne parece
lançar mão da sua única experiência como crítico de arte na composição de descrições
picturais na sua obra romanesca, além de inquirir sobre a função das mesmas. Verificamos
igualmente de que maneira estas descrições estão vinculadas ao projeto estético do autor
e ao seu posicionamento no campo literário.
43
Cf. LOUVEL, 2002, p. 37.
Cf. LOUVEL, 2002, p. 40.
45
Em artigo mais recente, Liliane Louvel revisita seus conceitos, revisa e resume as definições de
Ekphrasis. “Disputes intermédiales: le cas de l’Ekphrasis. Controverses.” Textimage – Nouvelles
approches de l’Ekphrasis. Le conférencier. Revue online: mai/2013. Disponível em:
http://www.revue-textimage.com/conferencier/02_ekphrasis/louvel1.html#_ftnref2>
Consultado
em
17/08/2015
44
25
3- JULES VERNE E O CAMPO LITERÁRIO
Qualquer que seja a pesquisa empreendida sobre a obra de Jules Verne, não se
pode deixar de reservar interesse ao seu encontro com o editor Pierre-Jules Hetzel. As
biografias do escritor inscrevem esse momento da sua trajetória no campo literário, em
1862, como o acontecimento inaugural que conduzirá a carreira de Verne para horizontes
de notoriedade e para a posteridade, engajando o escritor na arte da ficção pelas vias do
“romance científico”, programada através do lançamento das Viagens extraordinárias.
Atribuir um espaço a esse encontro em um trabalho de pesquisa que leva em conta
a trajetória de Verne no campo literário é, portanto, legítimo. Definitivamente, PierreJules Hetzel, editor capaz de verificar o valor literário de Verne, caucionado por um
público ávido pela ciência, será promotor de uma renovação da visão editorial sobre a
literatura para crianças e jovens e integrará Verne à equipe fundadora do Magasin
d’Éducation et de Récréation, em 1864. Em suma, é engajando-se na editora Hetzel que
Jules Verne dispõe de um potencial de publicação que lhe permitirá adquirir status de
“escritor”, garantido pelos sucessivos contratos assinados entre os anos de 1862 a 1871.
No entanto, como apresentado sumariamente na Introdução desta Tese, antes de
1862, data do primeiro contrato de Verne, o escritor já havia realizado diversas tentativas
de entrada no universo da literatura escrevendo poemas, textos dramáticos, novelas para
o periódico Musée des familles e um artigo crítico sobre o Salão de 1857. Neste capítulo,
apreciaremos criticamente, portanto, os possíveis estéticos para Jules Verne até o
momento que caracterizamos como o de sua “hetzelização”, incluindo este último na
análise. Levaremos em consideração as indeterminações do campo literário no Segundo
Império e na Terceira República, relacionando-as à(s) escolha(s) genérica(s) do escritor.
3.1 Os possíveis estéticos para Jules Verne
Até o momento da publicação do manuscrito de Voyage en l’air, nome original de
Cinq semaines en ballon, alguns posicionamentos marcam a trajetória de Verne no campo
literário, todos pouco explorados diante da importância que terá o primeiro contrato de
Verne e suas consequências. Afinal, o contrato atesta juridicamente sua associação a uma
editora, em outubro de 1862, o que lhe permite “tornar-se” escritor (ver 6.1.1).
26
A difusão de Cinq semaines en ballon, em janeiro de 1863, permite cernir, entre
outros, a habilidade comercial de Hetzel em harmonia com as expectativas do público e
os acontecimentos da época, comoa fundação da “Sociedade de encorajamento à
locomoção aérea por aparelhos mais pesados que o ar”, por Félix Nadar, e o lançamento
do balão Le Géant, em Paris, que inspirará inclusive um artigo de Verne para o Musée
des familles.46 No entanto, esses fatos, que alimentaram o sucesso da trama do jovem
romancista, não são suficientes para explicitar a obra literária ulterior, cujo programa será
marcado em 1867 pelo título genérico de Viagens extraordinárias.
Evocar um retorno aos acontecimentos que antecederam a publicação de Cinq
semaines en ballon, articulando-os à teoria do campo literário, é tirar o foco de uma
possível imagem de um Jules Verne de 1848 “determinado, objetivamente e
subjetivamente, à indeterminação.47 Se assim procedêssemos nos nossos estudos,
estaríamos reduzindo nossa análise da trajetória do autor. Neste item, percorreremos
criticamente a obra do aspirante a uma posição literária enquanto se esforça para constituir
sua identidade de escritor, verificando suas negociações com seu editor para a elaboração
de um empreendimento literário.
O encontro entre Verne e Hetzel é frequentemente interpretado pela via das
mediações simbólicas, o que traz um significado intrínseco ao fato: faz-se referência a
esse encontro como se fosse um rito de passagem a partir do qual Jules Verne se torna
escritor, considerado sob a influência do ciclo romanesco. Ao invés de tentar elucidar a
história do encontro entre Verne e Hetzel, interrogamo-nos sobre a importância do editor
para a criação das Viagens extraordinárias, observando a correlação entre as
circunstâncias do encontro e a interação entre os protagonistas. De fato, do ponto de vista
de Jules Verne, esse encontro se apresenta como a oportunidade para a realização da sua
busca de ser (ou de se tornar) escritor. O contrato para a publicação de Voyage en l’air,
que exploraremos no próximo item, legitima sua qualidade de autor confirmado pela
unanimidade do sucesso junto ao público.
VERNE, Jules.“À propos du Géant” Musée des familles, vol. 31, nº 3, décembre 1863, p. 92-93.
Cf. BOURDIEU, Pierre. “L’invention de la vie d’artiste.” Actes de la recherche en sciences sociales, vol.
1, nº 2, 1975, p. 67-93. Disponível em: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arss_03355322_1975_num_1_2_2458 Apesar da interpretação de Jean Chesneaux sobre a influência da tradição
“quarante-huitarde” nos anos de formação parisiense de Jules Verne (CHESNEAUX, Jean. Jules Verne,
une lecture politique de Jules Verne. Paris: Maspéro, 1971.), seria difícil aproximá-lo do personagem
Frédéric Moreau, de Flaubert, que Pierre Bourdieu trabalha para constituir como símbolo dessa
indeterminação do escritor, tomando l’Éducation sentimentale como referência sócio-analítica da
autonomização do campo literário depois de 1848. Cf. BOURDIEU, 1998, p. 17.
46
47
27
Na lógica da exploração de fronteiras que buscamos, o sucesso de Cinq semaines
en ballon constitui, para Verne, um sinal de reconhecimento da consciência de si mesmo
enquanto escritor, que coincide com as representações feitas pela crítica ao fundador do
“roman scientifique”. Para além da originalidade e do sucesso nas vendas, o que confirma
o valor desse romance, fez-se necessário que Hetzel garantisse a Jules Verne condições
de validade de ser (ou tornar-se) escritor, propondo-lhe uma garantia a longo prazo do
seu estatuto de autor através da associação duradoura com sua editora. Para Verne, o
contrato é uma garantia de acesso a uma posição dentro do campo. No entanto, elejá
escrevia e publicava antes desse marcoda sua trajetória. Questionamo-nos, então, a partir
de que momento Verne pode, efetivamente, considerar-se escritor?
No seu estudo sobre a singularidade, Nathalie Heinich propõe pensar balizas de
indeterminação entre as quais, quem quer que seja que esteja relacionado com a criação
literária, transita. Segundo a socióloga, do momento da alfabetização de um indivíduo à
sua eventual atividade de escrita literária, existem dois aspectos a serem considerados.
Segundo Heinich, o primeiro é o interesse de ser um indivíduo da escrita na medida em
que a passagem do “escrever” transitivo ao “escrever” intransitivo sinaliza uma
disposição existencial daquele que escreve. O outro é a efetiva passagem à publicação,
que constituiria uma verdadeira identidade de escritor.48 Esse processo se mostra
importante para analisarmos o caso de Jules Verne, pois ele atribui “superioridade” ao
fato de ser escritor, como atesta a carta de 25 de abril de 1864. Enviada a P.-J. Hetzel,
Verne agradece as duras críticas do editor após submissão e recusa de publicação do
romance Paris au XXe siècle justificando que o editor sabe, melhor do que ninguém, da
sua aspiração de se tornar um escritor: “Vous savez que je veux, avant tout, devenir un
écrivain”.49
Considerando-se a importância dessas balizas de indeterminação para a
constituição de uma identidade de escritor, podemos afirmar que, apesar de ter escrito
diversos textos dramáticos e de assimilá-los inicialmente à sua vocação literária, Jules
Verne não pôde desenvolver uma singularidade e ser reconhecido como autor por sua
atividade de escrita para o teatro, visto o número de peças escritas em diversos gêneros,
sem sucesso no palco ou até mesmo nunca encenadas. De 31 peças escritas, cinco foram
48
Cf. HEINICH, Nathalie. Être écrivain. Paris: La découverte, 2000, p. 61.
VERNE, Jules. Correspondance inédite de Jules Verne et de Pierre-Jules Hetzel (1863-1886). Tome I
(1863-1874). Établie par Olivier Dumas, Piero Gondolo Della Riva & Volker Dehs. Genebra: Slatkine,
1999, p. 28.
49
28
encenadas e somente três tiveram relativo sucesso junto público. Destaca-se a peça Les
Pailles rompues, que contou com a colaboração de Alexandre Dumas filho, e foi
representada no Théâtre Historique, em 12 de junho de 1850. Este foi o primeiro sucesso
de Jules Verne no teatro antes de 1862. Essa peça será reencenada no Théâtre du Gymnase
em dezembro de 1853. As outras duas peças - Le Colin-Maillard et Les Compagnons de
la Marjolaine, foram encenadas no Théâtre-Lyrique, em 1853 e 1855 respectivamente.
Em sua busca por uma posição no campo literário, Verne foi confrontado a uma
outra oportunidade que poderia decidir seu destino nas artes dramáticas. Em 17 de
fevereiro de 1858, a representação de Monsieur de Chimpanzé no Théâtre des BouffesParisiens revelou seus talentos de libretista, em um momento em que as inovações da
opereta estavam em desenvolvimento.50 Com música de seu amigo compositor Aristide
Hignard, essa ópera-bufa, rica em potencialidades, não permite a Verne construir uma
carreira no teatro lírico, mesmo em um momento em que, graças a Offenbach, a opereta
evolui. Robert Pourvoyeur defende que, cogitar a hipótese de uma colaboração de Verne
com o “Mozart dos Champs-Élysées” traz um aspecto de mudança biográfica que levaria
a relativizar o papel fundador do encontro com P.-J. Hetzel. O articulista e especialista
em Verne o afirma, analisando as tentativas de posicionamento de Jules Verne como autor
de óperas-cômicas em busca de um diretor de teatro no campo da arte lírica de boulevard
da Paris dos anos de 1850.51 Ao invés de estudar a atividade de escritor dramático de Jules
Verne adotando uma visão de ruptura entre um antes e um depois de Cinq Semaines en
ballon, Pourvoyeur prefere considerar essa experiência dramatúrgica como uma reserva
mnemônica de técnicas para o romance científico que será criado. O especialista defende
que Verne é um “romancista dramático”.52
É coerente afirmar que as decepções de Verne no teatro podem ter provocado seu
investimento no gêneroromance. Na lógica do campo literário do Segundo Império, as
razões se justificam por sua própria estrutura, cuja hierarquia piramidal foi sublinhada
50
No início da carreira em Paris, Jacques Offenbach procura um teatro que lhe permitisse encenar suas
óperas-bufas. A fundação em 1855 do Théâtre des Bouffes-Parisiens, inaugurado na Exposição Universal,
marca seus primeiros sucessos junto ao Tout-Paris levando à abertura de uma nova sala na passagem
Choiseul na qual Verne tem representada sua ópera-bufa em um ato, sem grande sucesso (quinze
apresentações). Cf. POURVOYEUR, Robert.“Jules Verne aux Bouffes-Parisiens.”Bulletin de la Société
Jules Verne, vol. spécial théâtre nº1, nº 57, 1er trim., 1981, p. 2-10.
51
Verne tem três óperas-cômicas escritas com a colaboração de Michel Carré e música de Aristide Hignard:
Le Colin-Maillard (1853), Les Compagnons de la Marjolaine (1855) citadas acima, e L’Auberge des
Ardennes (1860). Cf. POURVOYEUR, Robert.“Les trois opéras-comiques de Verne.” Bulletin de la
Société Jules Verne, vol. 18, nº 70, 2ème trim., 1984a, p. 71-78.
52
Cf. POURVOYEUR, Robert. “Jules Verne, écrivain de théâtre ou romancier dramatique?”Bulletin de la
Société Jules Verne, vol. 18, nº 70, 1er trim., 1984b, p. 54-57.
29
por Pierre Bourdieu. Dividida do ponto de vista simbólico entre a poesia, no cume, e o
teatro, na base, essa hierarquia, inversa do ponto de vista econômico, reserva ao romance
um lugar intermediário que nos permite organizar um leque de posicionamentos possíveis
por conta da sua dispersão entre os polos consagrados pelo prestígio da tradição ou da
instituição.53 Se, nessa lógica, em função do prestígio ligado ao sucesso comercial, o
teatro tem um atrativo, a busca pelo capital de reconhecimento assegurado pelas
representações em salas de prestígio se torna complexa. Assim, em função das coerções
do campo literário e da sua posição dominada em relação ao campo econômico, Jules
Verne teria optado pela escrita romanesca desviando dos gêneros poéticos que não lhe
traziam mais frutos. Inclui-se aqui também o abandono da poesia de juventude que,
embora Verne nunca tivesse mostrado disposição em publicar, na cronologia da escrita,
é o primeiro gênero no qual o escritor se lança.
Desde 1848, dividido entre a escrita de poemas e o interesse em ser representado
nos teatros, Verne não se mobilizou para desenvolver seus sonetos para além da esfera
íntima dos seus carnês de poemas. Revelados no final dos anos 1980, esses dois pequenos
carnês reúnem coleções de poesias que Jules Verne escreveu entre os anos de 1847-1848.
Inacabado, o segundo carnê atesta a persistência desse gênero na carreira de Verne, visto
que foi regularmente enriquecido com novos trabalhos até o ano de 1891. 54 Cientes de
que estamos tratando de gêneros distintos, poesia e teatro são para Jules Verne, nesse
momento da sua carreira, gêneros que reúne em um mesmo conjunto, como veremos a
seguir.
Em entrevista em 1904, Verne confidencia ao jornalista Gordon Jones que desde
a adolescência não parava de escrever e trabalhava sobretudo a poesia.55 Essa declaração
deve ser vista com cautela pois, em entrevistas anteriores, o escritor deixa entrever que
não estimava seus dons poéticos, denegrindo junto ao jornalista Robert Sherard, em 1895,
seus ensaios de juventude: “J’ai commencé à écrire à l’âge de douze ans. Uniquement la
poésie, de l’affreuse poésie.”56 Atribuindo essa inclinação pelos versos a um atavismo,
Verne considera as extensões da poesia no plano da escrita teatral. Ele reúne os dois
gêneros e afirma em entrevista, em 1895, à Marie A. Beloc, a força que a arte dramática
exerceu em sua geração: “J’ai débuté ma carrière littéraire par de la poésie qui – suivant
53
Cf. BOURDIEU, 1998, p. 193.
Cf. VERNE, Jules. Poésies inédites.Sous la direction de Christian Robin. Paris: Le cherche midi, 1989.
55
VERNE, Jules. Entretiens avec Jules Verne 1873-1905. Réunis et commentés par Daniel Compère et
Jean-Michel Margot. Genève: Slatkine, 1998, p. 214.
56
VERNE, 1998, p. 88.
54
30
en cela la plupart des littérateurs français en herbe – s’est transformée en tragédie en cinq
actes.”57
Com a decepção diante da sua posição de escritor não reconhecido, Verne relega
a poesia e o teatro em verso ao espaço de possíveis improváveis por considerar que suas
primeiras disposições para esses gêneros consagrados pelo Romantismo não se
harmonizavam mais com a constituição de uma posição inovadora no campo literário.
Logicamente, essa tomada de posição não está desvinculada das coerções do campo
literário e da sujeição deste ao campo econômico. Após a apresentação malsucedidada
comédia em prosa Onze jours de siège, em 1861, dá-se a ruptura de Verne com a carreira
dramática na arte burguesa parisiense. Cabe-nos fazer, portanto, algumas observações
sobre a situação do romance naquelemomento, gênero no qual Verne investirá.
É comum ressaltar na história do romance francês sua passagem de gênero popular
a gênero reconhecido pela crítica e pelo público burguês. Antônio Candido sublinha que,
até a meados do século XIX, o romance era visto com certa desconfiança junto aos
homens de letras, sendo considerado uma criação menor, em comparação com as artes
plásticas, o teatro ou a poesia.58 Considerado como arte menor, mas com apelo popular,
o romance será assim caracterizado até a metade do século XIX.59 Na década de 1860,
portanto, o romance já tinha sido alçado ao nível de gênero literário prestigiado e integra
a esfera da literatura reconhecida pelos polos dominantes do campo literário. A respeito
dessa mudança, Albert Thibaudet sinaliza que tudo se passa como se nos anos cinquenta
do século XIX, decisivos para a história do romance, se desenvolvesse de Balzac a
Flaubert uma “lógica interior ao romance” que, a partir da segunda metade do século, lhe
confere estatuto literário às custas de certo caráter ingênuo da criação. Thibaudet explica
que isso acontece quando o gênero abandona, especialmente com os romances de
Flaubert, seu cunho popular e espontâneo adquirindo a condição de obra de arte
moderna.60
Auxiliado pelo desenvolvimento da imprensa, o romance se beneficiou, ainda, da
difusão através do formato folhetim e do progresso da alfabetização para aumentar seu
57
COMPÈRE, 1998, p. 100-101.
Cf. CANDIDO, Antonio. “A timidez do romance”. In: ___. A educação pela noite e outros estudos. 3ª
ed. São Paulo: Ática, 2003, p. 82-99.
59
Como ressaltado por Milner e Pichois, o “maior fenômeno da história literária na metade do século é a
conquista pelo romance de seu reconhecimento como gênero literário”. Cf. MILNER, Max & PICHOIS,
Claude. De Chateaubriand à Baudelaire (1820-1869). Paris: Arthaud, 1990, p. 39.
60
THIBAUDET, Albert. In : RAIMOND, Michel. Le roman depuis la Révolution. 9ª ed. Paris: Armand
Colin, 1988, p. 93.
58
31
público e diversificar seus leitores, fatos que não estão dissociados da evolução imposta
pelo surgimento de estruturas editoriais para a produção e difusão de obras depois da crise
dos anos 1826-1830. Essa crise, ritmada por inúmeras falências, rompe com a era da
“librairie romantique”, o que contribuirá para a emergência dos “novos homens para
novos tempos” – os editores, entre os quais Hetzel, que enfrentará o problema propondo
uma revitalização do mercado através da difusão do novo livro ilustrado.61 Os editores,
“altos barões da feodalidade industrial”,62 investidores no mercado de bens simbólicos,
se situam em um lugar intermediário entre o campo literário e o campo econômico. O
campo editorial poderia ser tratado inclusive como um campo a parte.63 A vulnerabilidade
a riscos financeiros permite-lhes adaptar a profissão à produção romanesca promovida,
entre outros, pelo aumento do mercado com as novas categorias de leitores que surgem
com o progresso da alfabetização. Assim, novas formas literárias resultam dessa situação,
levando autores a criarem suas obras com base em ideias estéticas originais, engajandose em abordagens estratégicas diante das diferentes categorias de editores. Essa inserção
do campo editorial no sistema da comunicação literária motivou a evolução das relações
entre escritorese editores para realizarem uma personalização das associações contratuais
que poderiam - e no caso de Jules Verne pôde - vincular os escritores a uma editora. Esse
sucinto panorama da situação do romance e da sua relação com o campo editorial nos
auxilia a avaliar as circunstâncias da futura associação entre Verne e Hetzel.
Consideramos esse encontro entre Verne e Hetzel como o resultado de duas
trajetórias biográficas que se cruzam no interior do campo literário. Enquanto conjunto
de posições sucessivas ocupadas por um agente no espaço de possíveis, a trajetória
permite interpretar os fatos biográficos como “posicionamentos nos diferentes estados
sucessivos da estrutura na qual se distribuem os diversos tipos de capital em jogo no
campo”.64 É da escolha das bifurcações no caminho biográfico que pode proceder o
sentido e o valor que os acontecimentos terão, como aquele da travessia dos limites que
Cf. MARTIN, Henri-Jean & Odile. “Le monde des éditeurs”. In : CHARTIER, Roger & MARTIN,
Henri-Jean (dir.). Histoire de l’édition française; le temps des éditeurs. Paris: Fayard, 1985, p. 176-244.
62
REGNAULT, Elias. “L’éditeur” In: CURMER, Léon. Les Français peints par eux-mêmes, T. II. Paris:
Omnibus, 2003, p. 952.
63
Embora Jean-Yves Mollier, especialista do mundo da edição, não tenha sistematizado em seus trabalhos,
compreendemos, na esteira de seus estudos, o campo editorial como um campo que se situa na interseção
entre os campos econômico e literário. Para nós, o campo editorial é um lugar de confronto e colaboração:
o editor dita coerções norteadas pela indústria e o escritor reivindica liberdade, arte e ideal. O livro surge
do entendimento entre os dois.
64
BOURDIEU, 1998, p. 425.
61
32
balizam a indeterminação. Queremos dizer que, se Jules Verne não tivesse fracassado na
poesia e no teatro, talvez ele não tivesse tentado uma nova forma do gênero romanesco.
Observando a trajetória de Jules Verne, poderíamos considerar a história de seus
posicionamentos no campo literário como a narrativa de uma escolha diante de uma
alternativa: ela contaria um percurso no espaço de possíveis em forma de idas e vindas a
partir da bifurcação que pode ser definida pela publicação da novela Les Premiers navires
de la marine mexicaine, em 1851, no periódico Musée des familles.65
Jules Verne relata a seu pai que, nessa primeira novela, à maneira do escritor
americano James Cooper,66 conta a história de um desentendimento gerado por um oficial
criminoso que, em 1825, a bordo de dois navios de guerra espanhóis, deseja vender as
embarcações ao governo mexicano. No entanto, uma vez aportados, dois marinheiros fiéis
ao seu capitão e à sua pátria, conseguem eliminar o renegado.
Primeiro trabalho de Jules Verne publicado depois de escrever sete peças e ter
somente uma encenada (Les Pailles rompues) - esse “texto-gênese” da obra verniana, e
não Maître Zacharius67 como apontado por Alain Froidefond-,68 a novela seria a que
define que Verne já teria tomado o caminho que lhe será produtivo em toda a carreira que
se seguirá: o uso dos relatos de viagens, um dos itens previstos no gênero “romance
científico” que desenvolverá.
O vai e vem entre gêneros - a novela e o teatro - só cessará em 1855. Depois de
Les premiers navires de la marine mexicaine de 1851, até 1855, Jules Verne ainda publica
no mesmo periódico a novela Un Voyage en ballon, em agosto de 1851, a comédia em
um ato Les Châteaux en Californie, ou Pierre qui roule n'amasse pas mousse, em junho
de 1852, Martin Paz - nouvelle historique, em julho/agosto de 1852, a novela fantástica
Maître Zacharius ou l'horloger qui avait perdu son âme. Tradition genevoise, em abril
de 1854 e a novela Un Hivernage dans les glaces, em março/abril de 1855.69
65
A novela foi publicada no t.8 do periódico, em julho de 1851, p. 304-312.
“Mon article Pitre-Chevalier n’est qu’une simple aventure que je fais passer à l’intérieur du Mexique à
la façon de Cooper”. Estas correspondências são anexos da biografia editada por Olivier Dumas. VERNE,
Jules. Jules Verne: avec la publication de la correspondance inédite de Jules Verne à sa famille. Sous la
direction de Olivier Dumas. Lyon: La Manufacture, 1988, carta 30, p. 289.
67
VERNE, Jules.“Maître Zacharius ou l’horloger qui avait perdu son âme. Tradition génevoise.” Musée
des familles, T. 21 - avril 1854, p. 193-200, mai 1854, p. 225-231.
68
Cf. FROIDEFOND, Alain. Voyage au centre de l’horloge. Essai sur un texte-genèse “Maître Zacharius”.
Paris: Lettres Modernes, 1988.
69
A seguir, listo os textos escritos por Verne, publicados no periódico, acompanhados de suas referências:
Les Premiers navires de la marine mexicaine, t. 8 - juillet 1851, p. 304-312; Un Voyage en ballon, t. 8 août 1851, p. 329-336; Les Châteaux en Californie, ou Pierre qui roule n’amasse pas mousse, t. 9 - juin
1852, p. 257-271; Martin Paz, nouvelle historique, t. 9 - juillet 1852, p. 301-313 e août 1852 p. 321-335;
Maître Zacharius ou l'horloger qui avait perdu son âme. Tradition génevoise, t. 21 - avril 1854 p. 193-200,
66
33
No mesmo período da publicação dessas novelas, Jules Verne escreve onze textos
para o teatro, e terá somente dois deles encenados: as óperas-cômicas Le Colin-Maillard
e Les Compagnons de la Marjolaine que, como relatamos anteriormente, se unem ao
relativo sucesso de Les Pailles rompues, peça em versos. As duas únicas críticas à carreira
dramática de Jules Verne já encontradas dizem respeito a essas duas peças. Em janeiro de
1853, o Mercure de France, que entre os anos de 1835-1882 se apresentava como um
complemento do Musée des familles, anuncia que no Théâtre-Lyrique “ensaia-se uma
opéra do Senhor Vernes (sic) e do Senhor Ignard (sic) da qual se prediz o sucesso”,70 o
que será confirmado em abril:
Prevendo o sucesso de Colin-Maillard do nosso colaborador, o Sr. Jules
Verne, nós tínhamos certeza de não estarmos enganados. Le ColinMaillard obteve sucesso, com efeito. É uma das criações mais graciosas
que tenham sido dadas à música. O Sr. Hignard, digno aluno do Sr.
Halévy, preencheu essa criação com melodias ao mesmo tempo hábeis
e charmosas, que todo mundo aplaudiu e que cada um repetia saindo da
representação. Não conhecemos elogio mais decisivo para uma obra
musical.71
Em outubro do mesmo ano, o Mercure de France dá novamente notícias sobre as
produções do Théâtre-Lyrique: “Fala-se de uma representação dos Compagnons de la
Marjolaine de M. Jules Verne e Hignard, os espirituosos autores do Colin-Maillard.72
Em 1853, há uma volta de Verne ao gênero breve. Pitre-Chevalier, diretor do
Musée des familles à época, pede ao escritor para escrever um complemento de
“L’Histoire de l’horlogerie”,73 cuja publicação estaria prevista para início de 1854 para
ocupar a rubrica “Science en famille. Mécanique”. Jules Verne concebe, portanto, a
novela fantástica Maître Zacharius ou l’horloger qui avait perdu son âme, na qual um
mai 1854 p. 225-231; Un Hivernage dans les glaces, t. 22 - mars 1855, p. 161-172, avril 1855 p. 209-220;
À Propos du Géant, t.31 - décembre 1863 p. 92-93; Edgard Poë et ses œuvres, t.31 - avril 1864, p. 193208; Le Comte de Chanteleine - Épisode de la révolution, t. 32 - octobre 1864 p. 1-15, novembre 1864, p.
37-51, décembre 1864, p. 73-85; Les Forceurs de blocus, t.33 - octobre 1865, p. 17-27, novembre 1865, p.
35-47; Une Fantaisie du docteur Ox, t.39 - mars 1872, p. 65-74, avril 1872, p. 99-107, mai 1872, p. 133141.
70
Anônimo. “Salons et Théâtre” Mercure de France, 15 janvier au 15 février 1853, p. 9.
71
“En prédisant le succès au Colin-Maillard de notre collaborateur M. Verne, nous étions sûrs de ne pas
être démenti. Le Colin-Maillard a réussi, en effet. C’est un des cadres les plus gracieux qui aient été donnés
à la musique. M. Hignard, digne élève de M. Halévy, a rempli ces cadres de mélodies savantes et charmantes
à la fois, que tout le monde a applaudies et que chacun répétait en sortant de la représentation. Nous ne
sachions pas d’éloges plus décisif pour une oeuvre musicale.” Anônimo. “Théâtres, concerts”, Mercure de
France, 15 avril au 15 mai 1853, p. 15-16.
72
“On parle de la représentation des Compagnons de la Marjolaine de M. Jules Verne et Hignard, les
spirituels auteurs du Colin-Maillard.” Anônimo. “Théâtres”. Mercure de France, 15 octobre au 15
novembre 1853, p. 4.
73
“L’Horloge et la montre. Histoire chronométrique”. Musée des familles, T. 21, février 1854, p. 129-135
et mars 1854, p. 161-168.
34
relojoeiro genebrino se indispõe com um ser demoníaco que bloqueia todos os seus
relógios e ameaça raptar sua filha, levando-o a renegar suas convicções mais nobres e sua
honestidade. A novela termina com a morte do relojoeiro e com o demônio blasfemador
sendo engolido pela terra.
Em 1855, Verne publica a novela Un hivernage dans les glaces, sua última
contribuição à revista nesse período pré-Hetzel. Trata-se de uma publicação
encomendada e “remunerada” por Pitre-Chevalier.74 A história narra uma expedição de
salvamento nos mares nórdicos de um homem desaparecido em condições heróicas. Os
personagens, equipados com peles e trenós, passarão, como o título indica, um inverno
aprisionados em terras geladas. No mesmo ano, o Mercure de France, que acompanha as
novidades teatrais de Jules Verne, informa aos leitores sobre o ensaio no Théâtre-Lyrique
de “Les Compagnons de la Marjolaine - um ato-bijou do Sr. Jules Verne, com música do
Sr. Aristide Hignard, que o Colin-Maillard já havia colocado no topo, e que, como todos
os verdadeiros talentos, se superou, diz-se na sua segunda obra.”75
Ao analisarmos essas idas e vindas de Jules Verne entre o teatro e o gênero
narrativo breve, podemos inferir que há uma tentativa do escritor de abandono das artes
do espetáculo. O sucesso das peças que consegue levar para a cena é relativo. Ora, o único
jornal que dá conta dessas apresentações é justamente o complemento daquele com o qual
Verne colabora – o Musée des familles. Jean-Louis Mongin afirma, nos seus estudos sobre
o trabalho de Verne para o periódico, que as críticas positivas às peças foram publicadas
anonimamente, como pudemos de fato verificar, e, portanto, não descarta a hipótese de
terem sido escritas pelo próprio Jules Verne.76 Além disso, ele tem a comodidade de ter
as peças encenadas no Théâtre-Lyrique – espaço do qual é secretário até 1855. Em suma,
essas razões somadas à possibilidade de Jules Verne não ser pago pelas novelas que
escreve, só as publicando no intuito de se fazer conhecer, nos levam a crer que, naquele
momento de sua trajetória, Verne ainda não se vê como o “escritor” que deseja se tornar,
já que, em certa medida, continua quase desconhecido dentro do campo literário.
Além dessas reflexões, a ideia de que Jules Verne deseja abandonar as artes do
espetáculo poderá ser verificada no problema anunciado em uma carta a seu pai, datada
Verne faz questão de dizer que ele será “remunerado” em carta a seu pai, em 29 de abril de 1853. Isso dá
margem para pensar que ele pudesse não ser pago sistematicamente por suas contribuições ao Musée des
familles. VERNE, 1988, carta 65, p. 337.
75
“Les Compagnons de la Marjolaine - un acte-bijou de M. Jules Verne, musique de M. Aristide Hignard,
que le Colin-Maillard avait déjà placé si haut, et qui, comme tous les vrais talents, s’est surpassé, dit-on
dans son second ouvrage.” “Théâtre, Littérature”. Mercure de France, 15 mars au 15 avril 1855, p. 14.
76
Cf. MONGIN, Jean-Louis. Jules Verne et le Musée des familles. Amiens: Encrage, 2013, p. 118.
74
35
de 19 de abril de 1854. Nela, Verne relata seu descontentamento com o teatro e seu desejo
de deixar a secretaria do Théâtre-Lyrique onde trabalha. Confessa a seu pai que o acúmulo
de capital social não tem ocorrido satisfatoriamente e, portanto, no que diz respeito ao seu
trabalho literário, ele tem estudado muito porque “percebe novos sistemas”:
[...] Cette lettre interrompue est reprise aujourd’hui, jeudi 20, jour où je
reçois la tienne: tu vois donc, mon cher père, que je t’envoie toutes
sortes de renseignements. Je ne crois pas que M. Perrot me soit utile, et
il n’est presque plus rien dans la direction des Beaux-Arts; au surplus,
il est facile de voir que les protections ne sont pas d’une grande utilité.
Dans toutes les boutiques de théâtre, il y a une chose très vraie; on y
arrive quand on y est... j’y suis, donc. J’étudie encore plus que je ne
travaille car j’aperçois des systèmes nouveaux, j’aspire avec ardeur au
moment où j’aurai quitté ce Théâtre-Lyrique qui m’assomme; j’attends
la fermeture.
Sur ce, je vous embrasse tous, sans distinction d’âge, ni de sexe, ni de
nature (ceci est pour le chat). Quand Paul aura 5 minutes, qu’il m’écrive
5 lignes.
Ton fils respectueux.
Jules Verne77
Por mais lacônico que Verne seja anunciando que “percebe novos sistemas”,
compreendemos que, no jogo entre a tradição e a inovação, a noção de “sistema” está
associada ao “novo”. Essa aspiração à novidade condiciona as iniciativas criativas do
século das revoluções para o qual o novo é definido como um absoluto da inovação. É no
século XIX que se multiplicam os movimentos literários - Romantismo ao Realismo,
Naturalismo e Simbolismo - e os debates e conflitos característicos que trazem à literatura
desse século as interrogações quanto à ontologia da própria Literatura. É essa pluralidade
de “sistemas” que dá suas condições de possibilidade estéticas à gênese do campo literário
cuja estrutura organiza os lugares e as posições de acordo com polos concorrentes que
regulam as lutas pela defesa das fronteiras dos modos, gêneros ou formas legítimas. Essas
regras do jogo marcam os embates dos escritores que se posicionam a favor ou contra a
mudança de hierarquias instituídas pela relação de força em razão da rede de coerções
que se podem infligir ao espaço de liberdade literária. Esse espaço é orientado por uma
“rede de potencialidades objetivas”78 na qual se revelam disposições para novos
posicionamentos. Portanto, diante da problemática de um “gênero virtual”, na carta de
abril de 1854, Jules Vernepôde vislumbrar a perspectiva de “novos sistemas”, no sentido
de uma diversidade de escolhas possíveis entre doutrinas literárias, dentro dos limites de
77
78
VERNE, 1988, carta 77, p. 350.
BOURDIEU, 1998, p. 384.
36
um contexto sócio-histórico que evoca uma abordagem de descoberta do génie próprio
ao desenvolvimento do seu interesse em inovar.
A esse respeito, é pertinente caracterizar o período da produção de Verne até 1855,
como um momento de busca criativa que permite localizar, em contraponto com a
atividade teatral de bulevar, o interesse de Verne por gêneros narrativos breves, no caso,
a novela. Mais do que um simples percurso legitimador no universo da imprensa literária,
essas tentativas moldaram uma experiência mais fundamental para Verne na medida em
que levaram o escritor a refletir sobre as perspectivas possíveis para um posicionamento
no campo literário.
Ao observar os títulos da produção de Verne para o Musée des familles, nota-se
uma orientação em direção à aventura ou ao fantástico e ainda a recorrência da utilização
do tema de viagem na elaboração dessas novelas, fator indicativo do desenvolvimento de
um savoir-faire técnico de pesquisas em relatos de viajantes. No entanto, essas novelas
não apontam para a tendência de uma combinação narrativa entre tecnologia científica e
ficção, da qual Jules Verne lançará mão na sua obra romanesca. Por outro lado, a
colaboração do escritor para o periódico já indicaria sua posição em uma região do campo
literário que condicionará os deslocamentos da sua trajetória biográfica. Com a ideia de
difundir a “ciência em família”, Pitre-Chevalier orientava as contribuições feitas à sua
revista no sentido de uma literatura didática que deveria atender a um público tanto social
quanto culturalmente diferente, isto é, leitores de diversas camadas sociais. Com o intuito
de atenderindististamente a todos, o discurso “neutro” da ciência permitia promover a
“arte de divertir e instruir” subordinando a produção dos autores à lógica da utilidade das
lições em família. Desse modo, tornava-se, portanto, incompatível com o perfil da revista
qualquer colaboração que atendesse aos preceitos da “arte pela arte” encerrando a criação
na esfera da “arte útil”. Apesar dos esforços consideráveis de reposicionamento no campo
literário, o jovem novelista do Musée des familles terá dificuldades de emigrar do polo da
arte útil.
Dentro da estrutura dual do campo literário, esse período de buscas de Verne por
“novos sistemas”, anunciado na carta ao pai, só se concluirá efetivamente depois do seu
encontro com Hetzel, quando se associa, em 1864, ao magazine didático-literário para
jovens – o Magasin d’Éducation et de Récréation.
Dessa afirmação - “percebo novos sistemas” -, presente na carta de Verne,
depreendemos uma iniciativa de posicionamento no campo literário em um futuro
indeterminado. A correspondência com sua família não traz informações que permitam
37
confirmar que uma nova via criativa tenha sido tomada depois da sua colaboração com o
Musée des familles de Pitre-Chevalier.
Quando, em 1855, deixa sua função de secretário no Théâtre-Lyrique, Verne não
parece aproveitar essa liberdade para se lançar nesses “sistemas”, distinguindo-se por uma
criação literária original. Nesse momento da sua trajetória, o escritor não destina
imediatamente um interesse ao gênero romanesco que pudesse anunciar a descoberta de
uma forma nova demarcando uma distinção no seu percurso no campo literário.
Caracterizado pelos especialistas como um período de falta de fecundidade
literária, os anos entre 1855 e 1861 podem ser revistos graças a três produções: a primeira,
já conhecida pelos estudiosos da obra de Verne, diz respeito à elaboração dos versos da
peça Monna Lisa; a segunda, a uma descoberta recente - ainda não considerada em
trabalhos de pesquisa até o momento -, a publicação dos artigos críticos que Verne
escreveu sobre o Salão de 1857; e a última, diz respeito à escrita do romance Paris au
XXe siècle nos anos de 1860-1861.
Essa infertilidade literária é frequentemente evocada e justificada pelo casamento
de Jules Verne com a jovem viúva Honorine Deviane.79 Hoje, é possível afirmar que a
redução a esse fato biográfico é um erro de perspectiva, e que o casamento entre o escritor
e a viúva, em janeiro de 1857, não é sinal do fim do período que antecedeu a produção
romanesca de Jules Verne. A duração do processo de escrita da peça Monna Lisa é uma
das evidências. Seguindo o modelo das comédias do escritor romântico Alfred de Musset,
Jules Verne escreveu e reescreveu entre os anos de 1851 e 1855 o texto que, de maneira
jocosa, dramatiza o dilema da relação entre o amor e a arte, interrogando a singularidade
do “criador” à época. A peça aponta, ao mesmo tempo, para a duplicidade das
preocupações sócio profissionais de Verne no campo: sua “fachada burguesa”.80
A segunda produção que nega qualquer tentativa de pontuar uma lacuna literária
nesse período da trajetória de Jules Verne é a existência do seu trabalho como articulista
para o jornal Gazette des Beaux-Arts, em que critica o Salão de 1857. Ano dos processos
de Madame Bovary, de Gustave Flaubert e de As Flores do mal, de Charles Baudelaire,
79
Embora evocada por diversos especialistas, referimo-nos à menção que William Butcher faz na biografia
de referência que escreveu sobre Jules Verne. Cf. “Tribulations of a frenchman in France: 1854-1857”. In:
BUTCHER, 2006, p. 103.
80
Evocamos aqui a expressão de Jean Chesneaux extraída dasua leitura política sobre Jules Verne, arrolada
na bibliografia (CHESNEAUX, Jean. Une lecture politique de Jules Verne. Paris: Maspero, 1971). Na
perspectiva socioanalítica do campo literário que propomos na pesquisa, a expressão cunhada por
Chesneaux nos permite apontar para a evolução do itinerário biográfico de Jules Verne do ponto de vista
social.
38
ambos vítimas de censura, acusados de intentar contra a moral pública, religiosa e os bons
costumes, 1857 é o período em que Verne investe em um gênero nunca antes testado por
ele: a crítica de arte. Isolada dentro da sua trajetória no campo, a crítica ao Salão de 1857
publicada na rubrica “Tribune de artistes” do jornal referido acima, não é aleatória em
sua carreira. Na perspectiva do campo, sabemos que o escritor está construindo o seu
próprio projeto criador em função de sua percepção das possibilidades estéticas
disponíveis, oferecidas pelas categorias de percepção e de apreciação (“novos sistemas”),
inscritas em seu habitus por sua trajetória e também em função da propensão a acolher
ou recusar tal ou qual desses possíveis, que os interesses associados à sua posição no jogo
lhe inspiram.81 Assim, esses seis artigos críticos publicados em dias diferentes podem ser
tomados ao mesmo tempo como um distanciamento dos gêneros aos quais Verne já havia
se dedicado e uma nova tentativa de entrada no campo literário, testando mais um “novo
sistema” - o gênero cuja criação atribui-se a Diderot.
Reportando-nos àquele momento, depois da renúncia de alguns gêneros (teatro,
poesia e novela), o escândalo que envolveu Madame Bovary, de Flaubert, pode ter
reforçado o interesse de Jules Verne em investir no gênero romance em uma visada crítica
da instituição social, como se fosse um desafio. A reconstituição cronológica do processo
de escrita de Jules Verne nos mostra que, depois da peça Monna Lisa, nunca encenada, e
da publicação dos textos que surgem da observação de obras de arte situando-se entre o
literário e o pictural, Verne não só se aproxima do romance como transforma sua literatura
em crítica da instituição social como um todo, no momento em que, depois das desilusões
sobre as chances de deslanchar no mundo do teatro burguês e das publicações esporádicas
das novelas, intenta contra o mercantilismo tecnológico do Segundo Império escrevendo,
em torno de 1860-1861, o romance panfletário Paris au XXe siècle.
O período ao qual se atribui essa esterilidade literária de Verne é, na verdade, um
momento de (re)posicionamentos no campo e de afirmação do caráter irrevogável da sua
vocação literária. Desde 1856, diante das dificuldades financeiras que enfrenta depois de
sair da secretaria do teatro, em cartas a seu pai, Verne debate unicamente sobre o seu
talento, cujo reconhecimento acha provável já que trabalha incessantemente sua escrita:
[...] Il est moins question que jamais d’abandonner la littérature; C’est
un art avec lequel je me suis identifié et que je n’abandonnerai jamais.
[...] Non! J’en reviens à ceci, j’ai du temps et de l’activité à utiliser!
Profitons-en! Si j’ai du talent littéraire, je le verrai bien, et j’arriverai
81
Cf. BOURDIEU, 1996, p. 64.
39
forcément car jamais je ne cesserai de travailler ces oeuvres qui me
séduisent d’autant plus qu’elles deviennent sérieuses.82
Tu parles de découragement littéraire; eh bien, je te jure qu’il n’existe
pas; je vois seulement qu’une situation littéraire ne peut être faite que
par ce temps de ponte et d’éclosion perpétuelles, avant l’âge de 36 ans
au moins.83
Em suma, visto o caráter único da crítica ao Salão de 1857 na trajetória de Verne
no campo literário, podemos afirmar que embora não haja uma tendência do escritor para
um investimento contínuo nesse gênero, é possível verificar relações com sua obra
romancesca. Já sua produção novelística para o Musée des familles, além de ter sido mais
duradoura em comparação à critica de arte, funciona como um período de aquisição de
savoir-faire técnico para Jules Verne. A necessidade de se documentar para escrever suas
novelas o levou a frequentar bibliotecas ricas em informações históricas, geográficas e
científicas. Despertando uma atração pela veia enciclopédica, essas pesquisas
provocaram em Jules Verne uma reavaliação do uso de documentos na escrita literária
que contribuiu para direcionar seu trabalho para a constituição de uma reserva de
conhecimentos sobre os mais diversos temas científicos, servindo-se da tendência do
século de compilação do conhecimento em dicionários, enciclopédias e na imprensa de
vulgarização científica. Na medida em que o discurso enciclopédico é atravessado por
uma linguagem especializada, afirmamos que Verne pôde aproveitar a acumulação desse
conhecimento técnico, o que lhe permitiu, mais tarde na sua carreira, detectar as virtudes
estilísticas quando as exigências do didatismo hetzeliano o levarão a fazer listas e a usar
nomenclaturas genéricas ou específicas para falar de descobertas ou, simplesmente,
descrever espaços ou coisas. Concluimos que sua aptidão em manejar as informações
extraídas de documentos técnicos e científicos contribuiu parainstaurar a reputação de
“savant” que Jules Verne terá -, interessante aos olhos de seu futuro editor, e que,
portanto, sua contribuição ao periódico Musée des familles não se limitou unicamente a
lhe ensinar as técnicas do gênero narrativo breve.
Após suas contribuições para o periódico e sua atividade pontual como crítico de
arte, Jules Verne investirá no romance. Passar da novela ou da crítica de arte para o
romance supõe uma mudança de posicionamento no campo literário na medida em que o
escritor não pôde vislumbrar um investimento nesse gênero sem ter uma ideia literária
82
83
Carta ao seu pai em 29 de maio de 1856. VERNE, 1988, Carta 115, p. 400-401.
Carta ao seu pai em 9 de julho de 1856. VERNE, 1988, Carta 120, p. 408.
40
que oriente seu projeto estético-criativo. Para alcançar o domínio de sua atividade de
escrita foi necessário, para Verne, articular um encontro com alguém que revelasse o
romancista a ele próprio. No entanto, antes do encontro com o editor Hetzel, Verne já se
interessara pela narrativa romanesca, após mais de dez anos como errante no campo
literário, ao se deparar com a obra de Edgar Allan Poe.
Em 1861, se dá um retorno de Verne ao gênero breve: publica À propos du Géant,
novela baseada no voo do balão de Félix Nadar em Paris, e em 1862, Charles Wallut,
diretor do Musée des familles à época, anuncia a publicação na revista de um longo artigo
crítico de Jules Verne sobre a obra de Poe. Efetivamente publicado em abril de 1864, o
artigo é a única contribuição dentro do gênero da crítica literária que Verne tem em sua
obra.84 A elaboração desse texto institui, dentro de uma trajetória biográfica instável, um
marco determinante que aponta para o posicionamento ulterior de Verne no campo
literário em direção ao romance científico.
Mesmo que as traduções das Histórias extraordinárias, As novas histórias
extraordinárias e As aventuras de Gordon Pym feitas por Charles Baudelaire tenham sido
publicadas por Michel Lévy em 1856, 1857 e em 1858, respectivamente, não significa
que Verne tenha se interessado por esses livros no momento de sua primeira difusão. Foi
entre os anos de 1861 e 1862 que Jules Verne parece ter se interessado pelo universo
imaginário da obra de Edgar Allan Poe, quando recebe a encomenda do artigo crítico por
Wallut. O interesse em Poe e a elaboração do artigo coincidem ainda com um possível
início da escrita de Voyage en l’air, romance que será submetido a Hetzel em 1862 e será
publicado em 1863 sob o título Cinq semaines en ballon.
A partir do ano de 1857, a atenção à obra de Poe entra em uma fase de depressão
na França em função do efeito que a crítica burguesa arquitetou contra Charles Baudelaire
com o escândalo provocado pelo processo de As Flores do Mal. A reputação do artista
americano é associada àquela de Baudelaire. Léon Lemonnier sinaliza que é somente em
1862 que o escritor americano ganha novamente a popularidade,85 da qual o mercado
editorial se aproveitará, inclusive P.-J. Hetzel, lançando os Contes inédits, traduzidos por
W. L. Hughes.86 O anúncio de publicação do artigo Edgard Poë et ses oeuvres deve ser
situado, portanto, no contexto de um reinteresse do público e do mercado editorial pela
VERNE, Jules.“Edgard Poë et ses œuvres.” Musée des familles, T. XXXIe, n° 7, avril, 1864. O artigo
crítico pode ser consultado na sua integralidade em: http://jv.gilead.org.il/almasty/aepoe/
85
Cf. LEMONNIER, Léon. Edgar Poe et la critique française de 1845 à 1875. Paris: PUF, 1928, p. 194.
86
POE, Edgar Allan. Contes Inédits. Trad. de W. L. Hughes. Paris: Hetzel, 1862. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2558853/f1.item
84
41
figura literária de Poe, que tinha sido associada àquela de Baudelaire e, portanto,
vilipendiada moral e socialmente. A esse respeito, no incipit do seu ensaio crítico, Jules
Verne dissocia o “homem” da “obra”; Verne opõe a assinatura da obra que identifica a
singularidade do escritor na esfera literária à fama em torno de Edgar Allan Poe enquanto
“autor”, permitida pela circulação do seu nome na crítica francesa:
Voici mes chers lecteurs un romancier de haute réputation; vous
connaissez son nom, beaucoup sans doute, mais peu ses ouvrages.
Permettez-moi donc de vous raconter l’homme et son œuvre; ils
occupent tous les deux une place importante dans l’histoire de
l’imagination, car Poë a créé un genre à part, ne procédant que de luimême, et dont il me paraît avoir emporté le secret ; on peut le dire chef
de l'Ecole de l'étrange. [...] Je vous dirai tout d’abord qu'un critique
français, M. Charles Baudelaire, a écrit, en tête de sa traduction des
œuvres d'Edgard Poë, une préface non moins étrange que l’ouvrage luimême. [...] M. Charles Baudelaire était digne d’expliquer l'auteur
américain à sa façon, et je ne souhaiterais pas à l'auteur français d'autre
commentateur de ses œuvres présentes et futures qu'un nouvel Edgard
Poë. A charge de revanche; ils sont tous deux faits pour se comprendre.
D'ailleurs, la traduction de M. Baudelaire est excellente, et je lui
emprunterai les passages cités dans ce présent article.87
Para o Jules Verne de 1862, na iminência de conhecer seu futuro editor, não há
ainda nenhuma preocupação evidente em escrever uma poética do extraordinário, como
Poe fez, e sobre a qual poderia se basear o romance científico. No entanto, afirmamos que
é dessa leitura de Poe que Jules Verne extrai motivação para investir no gênero romanesco
de maneira a inovar, elegendo uma associação entre arte e ciência, através do
interdiscurso. Não nos causa estranheza, assim, que, dessa leitura de Edgar AllanPoe,
advenha um reforço na experiência de Verne no investimento no relato de viagem
enquanto gênero.
No contexto europeu do século XIX, as representações geográfica e etnográfica
do globo terrestre procuram a legitimidade do gênero literário na arte de narrar a viagem
que oscila entre dois polos: o relato autêntico da pesquisa científica e o divertimento
literário cuja “verdade” só pode ser preservada por uma ficção geográfica verossímel. As
viagens que Verne escreverá serão o exemplo da ficcionalização de relatos de viagem. O
autor que, depois de sua leitura de Poe, reavalia o potencial de renovação que o insólito
do escritor americano pode trazer para a tradição da viagem imaginária, equilibra o relato
de viagem com uma verossimilhança ficcional e toma para si a postura enunciativa do
escritor-viajante, que guiará sua futura obra.
87
VERNE, 1864, s.p.
42
Com a criação de Voyage en l’air, Verne estreia como um romancista que, entre
outros, se debruçou sobre o material da novela de Poe. Surge pela primeira vezuma
montagem ficcional que excede o capital de experiência adquirido no gênero breve
quando escrevia para o Musée des familles. Para esse romance, Verne se vale de três
fórmulas-tema gerais. Afim de explorar o interdiscurso com a ciência, o primeiro
interesse é pelo tema do balonismo, alimentado tanto pelos acontecimentos da época,
quanto pela falsa história de Edgar Allan Poe: Le Canard au ballon (The Balloon hoax),
de 1844. Em seguida, apropriando-se dos relatos de viagem, Verne funde dados históricos
e científicos transformando-os em romance de aventura. Por fim, ambientando o romance
na África das explorações e das expedições coloniais, o romancista dispõe de vasto
material para conceber uma renovação do romance na forma pedagógica da telemaquia,
aquele em que o personagem amadurece ao longo da viagem: Cinq semaines en ballon.
Desde a declaração a seu pai sobre a irrevogabilidade de sua vocação literária, a
trajetória biográfica de Verne mostra que a escolha do romance não se impôs de imediato
ao seu julgamento estético como investimento genérico mais adequado à sua intenção de
inovar, como foi declarado na carta de 1854. Essa tomada de posição se dá pari passu
com o envelhecimento social, que as indeterminações do postulante à profissão de escritor
contribuíram a constituir através dos dez anos de busca de capital simbólico.88 Os
posicionamentos e reposicionamentos de Jules Verne no campo literário, desde os anos
de 1850, são condicionados por questões estéticas, mas igualmente pelas coerções do
campo econômico. Eles desembocam e coincidem, em 1862, com o encontro com Hetzel.
Este, por sua vez, explorará um aspecto que Verne já desenvolvia embrionariamente e lhe
foi apresentado na forma do romance Voyage en l’air. Na trajetória apresentada nesta
Tese, Jules Verne não é, portanto, “inventado” pelo seu editor, o que não diminui a
importância desse encontro na sua carreira. No entanto, é somente a partir dele que Verne
disporá das condições necessárias para se tornar o “escritor” que almeja ser. O esquema
a seguir é uma síntese da cronologia dessa trajetória:
88
Cf. BOURDIEU, 1996, p. 81 e 292.
43
Vocação literária
(1848)
Arte burguesa
Arte útil
Pitre-Chevalier / Ch. Wallut
Imprensa literária
Dumas Filho / Jules Seveste
Teatro
(Novelas)
(Dramas, comédias,Vaudevilles)
Divertimento + Normas morais e sociais
Ciência +Valores familiares
Les Pailles rompues
“systèmes nouvea------Textos-gênese----(1850)
Navires de la marine mexicaine
(1851)
Perspectivas de inovação
“systèmes nouveaux”
(Carta 19/04/1854)
Fracasso na opereta M. de
Chimpanzé (1858)
+
Fracasso em Onze jours de
siège (1861)
=
Abandono das
artes dramáticas
Salon de 1857 (Crit. de arte)
+
Estudo lit. sobre Edgar Poe
(1862)
=
Reposicionamento em direção ao
romance
--- P.-J. Hetzel --1863 – 5 semaines en ballon
1864 – Engajamento no Magasin
Voyages extraordinaires...
A síntese acima permite-nos melhor visualizar duas evidências: a primeira trata
do vai e vem de Jules Verne entre gêneros, dado evidenciado pelas datas, expondo e
ilustrando as tentativas de Verne de entrada no campo literário; a segunda diz respeito à
via da “arte útil” que, desde o “início” se apresentou como mais propícia aos
investimentos de uma carreira de sucesso. Em 1862, portanto, a redação do ensaio crítico
Edgard Poë et ses oeuvrespode ter motivado Jules Verne a percorrer a esfera literária
como romancista, inovando com uma forma de combinação entre ciência e narrativa
ficcional, vinculada a um imaginário geográfico moldado pela experiência da viagem e
sua narrativa.
Embora não tenha sido alocado no esquema acima por não ter sido publicado, o
romance Paris au XXe siècle tem um lugar importante na trajetória de Jules Verne, na
perspectiva desta Tese. Se Voyage en l’air é um romance com cujo gênero e temas o
escritor já se apresenta “tal como será”, é o manuscrito que o precede – Paris au XXe
siècle (1860-1861), que marcará o reposicionamento de Verne em direção ao romance.
Em suma, queremos dizer que o novo investimento genérico, ocorrido em torno de 1860,
44
se impõe a Verne em função das coerções do campo; e a confirmação dos aportes estéticos
– as narrativas de viagem, o insólito e o extraordinário – teria a marca da leitura de Poe,
em torno de 1862.
Não resta dúvida de que a iniciativa de Flaubert de escrever um “livro sobre
nada”,89 que resulta em um primeiro momento em Madame Bovary, somado à publicidade
de seu processo em 1857, são fatores que contribuem para uma revolução romanesca,
pela proposta de combinação inovadora entre a dignidade da forma e a mediocridade do
assunto, produtora de novos esquemas de pensamento sobre as possibilidades criativas
do gênero. Queremos acreditar que existe uma relação entre esses acontecimentos que
movimentaram o campo literário francês no final da década de 1850 e o investimento de
Verne no romance. Não queremos afirmar que, por esse ângulo, Jules Verne teria entrado
em contato com os preceitos da “Arte pela arte”. Ao contrário. As discussões em torno
do gênero romanesco à época só reforçaram a tendência romântica “anacrônica”, por
assim dizer, em Jules Verne quando escreve Paris au XXe siècle - romance panfletário no
qual prevê a ausência de espaço para as artes, sobretudo para a literatura romântica, depois
do pernicioso desenvolvimento tecnológico e científico do século XIX. A discussão em
torno da obra de Flaubert, em 1857, como acontecimento importante no campo literário,
indicaria para Verne a confirmação das mudanças que aconteciam e a perda de espaço do
Romantismo, sobretudo se somado à morte de Alfred de Musset naquele mesmo ano, um
dos expoentes da escola romântica e modelos para Verne. Paris au XXe siècle se configura
na trajetória do escritor, portanto, como um romance de despedida da escola romântica, à
qual nunca conseguiu se afiliar concretamente, e uma abertura ao “novo sistema” que se
apresenta: Voyage en l’air, intitulado na sua publicação, em 1863, Cinq semaines en
ballon.
De fato, a inovação de Voyage en l’air ia modificar a posição literária de Verne
na medida em que o ato de batismo desse novo sistema engajava duravelmente sua
trajetória com sua admissão no círculo restrito de uma editora parisiense, alocando-o em
uma região precisa do campo literário. Essa responsabilidade caberá às negociações e aos
acordos entre o editor P.-J. Hetzel e escritor depois do sucesso de Cinq semaines en
ballon. Se esse encontro com o editor tem o valor de um acontecimento biográfico
“O que me parece belo, o que gostaria de fazer, é um livro sobre nada, um livro sem vínculo exterior,
que se cumprisse (ou conservasse) por si mesmo, pela força internado seu estilo”. Gustave Flaubert em
correspondência com Louise Colet. FLAUBERT, Gustave. Correspondance, T. II. Carta de 16 de janeiro
de 1852. Paris: Louis Conrad Libraire-Editeur, 1926-1933, p. 342-348.
89
45
importante na trajetória de Verne, é primeiramente por que Hetzel soube persuadir o
jovem romancista, que ambicionava ser reconhecido como escritor, usando da sua
autoridade conferida pelo capital simbólico acumulado, quando o contrata para publicar
romances visando um público ávido pela ciência vulgarizada através da ficção romanesca.
Contratos e coerções editoriais constituem somente uma contrapartida desse
posicionamento: é, ao mesmo tempo, garantia de segurança profissional para Jules Verne.
A ambição romanesca do escritor permitirá assegurar a coerência do projeto ideológico
de uma literatura para crianças e jovens, constituído pelo lançamento do Magasin
d’Éducation et de Récréation, em 1864.
3.2 A revista-vitrinede Hetzel e a colaboração de Verne
O Magasin d’Éducation et de Récréation não foi uma criação rapidamente
concebida por Hetzel e seus colaboradores. O projeto de uma revista para o público jovem
ganha forma e amadurece ideologicamente ao longo de quase vinte anos, a partir de 1843.
De imediato, o título do periódico merece esclarecimento. Philippe Hamon explica que o
termo “magasin” (e seu correlativo em inglês magazine) serve para designar o lugar onde
se reúnem e se vendem produtos naturais ou manufaturados; é igualmente um tipo de
publicação descritiva e enciclopédica com intenções claramente pedagógicas.90
Hetzel já havia usado o termo quando propôs seu Nouveau magasin des enfants,
publicado em formato in-18, de 1843 a 1857, que contou com a colaboração de Charles
Nodier, Tony Johannot, Alexandre Dumas e George Sand, e foi ilustrado por Bertall e
Gavarni. Dois anos mais tarde, o editor pensa em fundar com Théophile Lavalée o
Journal d’éducation et de récréation, mas o projeto não terá futuro. Somente depois do
retorno de seu exílio em Bruxelas, em razão do golpe de estado de 1859,Hetzel publicará
a revista-vitrine da sua editora.
Sem adentrar na história da imprensa dos magazines, já amplamente
desenvolvida,91 exploraremos nesse item do capítulo a concepção de literatura para
90
Cf. HAMON, Philippe. Du descriptif. Paris: Hachette, 1993, p. 207.
Aludimos aqui aos trabalhos de LATZARUS, Marie-Thérèse. La littérature enfantine en France dans la
seconde moitié du XIXe siècle. Paris : PUF, 1924; CHARTIER, Roger & MARTIN, Henri-Jean (dir.).
L’Histoire de l’édition française. Le temps des éditeurs, t. III. Paris : Promodis, 1990, capítulos : “Le livre
conquérant”, “L’élargissement du public”, “Des livres pour tous”, “Les nouveaux lecteurs” e “Le livre pour
la jeunesse”; FOURMENT, Alain. Histoire de la presse des jeunes et des journaux d’enfants (1768-1988).
Paris: Éole, 1987 e KALIFA, Dominique, RÉGNIER, Philippe, THÉRENTY, Marie-Ève & VAILLANT,
91
46
crianças e jovens segundo Hetzel, analisando prefácios e editoriais de obras que lançou
antes do Magasin d’Éducation et de Récréation. Compararemos o periódico a outras
revistas, notadamente La Semaine des enfants, seu concorrente direto, situando o todo no
contexto dos magazines ilustrados para a juventude da época.
Na história da edição, o desenvolvimento de uma nova economia do livro ao longo
do século XIX está atrelado ao surgimento de um “tempo dos editores”, tornado possível
graças a conjunturas que tiveram papel de catalisador em um meio profissional ainda em
definição. Na Monarquia constitucional, momento em que a imprensa romântica passa
pela crise de crescimento dos anos 1830,92 Hetzel mostra tato no que diz respeito às
decisões que o conduzem a modificar as práticas da edição tradicional, lançando com
Paulin et Curmer iniciativas-piloto para o desenvolvimento do livro ilustrado. Em 1837,
eles publicam o primeiro impresso ilustrado por uma máquina de imprensa mecânica: o
Livre des enfants (Fig. 1 e Fig. 2).93
Fig.1- frontispício - Le livre des enfants
(1837)
Fig. 2 - contracapa: “Aux enfants - Pour les
récréeren exerçant leur imagination; pour
former leur goût par des modèles de langage.”
Alain (dir.). La civilisation du journal. Histoire culturelle et littéraire de la presse française au XIXe
siècle.Paris: Nouveau monde, 2011, p. 97-140, p. 383-416, p. 565-582, p. 745-772 e p. 1467-1476.
92
Da crise no mundo da imprensa nos entornos dos anos 1830, Henri-Jean Martin estuda as consequências
desastrosas de diversos casos de falência. Lista as causas conjunturais – superprodução dos anos 1820-1826
– e causas estruturais – organização do mundo editorial durante a Monarquia constitucional, para interpretar
a crise que deveria levar a uma tomada de consciência do problema do mercado francês. Cf. “Le cercle de
la librairie” In: CHARTIER & MARTIN, 1990, p. 185.
93
Coleção de contos de fadas, o Livre des enfants das Senhoras Élise Voïart e Amable Tastu foi lançado
em formato in-16, ilustrado por Johannot, Séguin, Gigoux e Meissonier, em 1837.
47
Essa coleção é o primeiro trabalho de Hetzel para o público infantil e juvenil. No
início do século XIX, não se recusa mais à infância e à juventude o direito de se ver
atribuída uma literatura própria. Embora falte um estatuto autônomo dentro da
nomenclatura dos gêneros literários, essa literatura é reconhecida no comércio da edição.
De fato, entre 1820 e 1830, as condições do desenvolvimento do livro para criança
- manuais escolares e abecedários, primeiramente - respondem aos requisitos da ideologia
burguesa pós-revolucionária para uma alfabetização das massas através do ensino do
“saber ler”.94 A publicação do Livre des enfants, naquele momento, sinaliza, portanto, o
interesse de Hetzel por essa idade do ouro da “literatura infantil”. O editor pressentia as
potencialidades do mercado com a expansão do público leitor, o que influirá nos seus
futuros projetos, notadamente na sua associação a J.-B. Paulin.95 No entanto, não deixa
de trabalhar em projetos paralelos que lhe dão renome junto à imprensa ilustrada
romântica dos anos 1840. Para citar dois de seus grandes projetos, depois do Français
peints par eux-mêmes, coleção de Léon Curmer publicada entre 1840 e 1842, Hetzel
também lança sua coleção de fisiologias – trata-se das Scènes de la vie privée et publique
des animaux96 e, ainda, em associação com Charles Furne, publica, entre 1842 e 1848,
dezoito volumes de La Comédie Humaine a cinco francos.97
Cabe-nos aqui um breve parêntese no que diz respeito à sociedade entre Hetzel e
Furne. Além de ilustrar o problema das relações entre editores independentes e o capital
na Monarquia de Julho, marca, em alguma medida, o papel decisivo que ambos têm no
projeto de Balzac. Ora, os editores investem em um conjunto de romances organizados
de acordo com um plano preestabelecido, mas ainda em gestação. O todo, como sabemos,
94
As análises de Maurice Crubellier nos esclarecem sobre a passagem de uma alfabetização generalizada
à leitura: há uma polissemia da expressão “savoir lire” que permite medir a distância entre o aprendizado
escolar e a familiaridade com os livros, dividindo os públicos socialmente em função da sua “arte da leitura”
de acordo com a expressão de Legouvé. Cf.: “L’élargissement du public” In: CHARTIER & MARTIN,
1990, p. 15-41.
95
Hetzel se associa ao cofundadordo jornal republicano Le National e a um outro livreiro, J.-J Dubochet, e
instala uma editora no bairro de Saint-Germain, em Paris. Os três livreiros dispunham de independência
nas suas atividades editoriais (serviço de produção com contabilidades distintas), sendo somente associados
pela livraria (serviço de difusão e distribuição). A sociedade Hetzel-Paulin termina em 1843. Cf.:
PARMÉNIE, A. & BONNIER DE LA CHAPELLE, C. Histoire d’un éditeur et de ses auteurs. P.-J Hetzel
(Stahl). Paris: Albin Michel, 1985 (1953), p. 15.
96
Com o subtítulo de Études de moeurs contemporaines, Hetzel faz um quadro satírico da sociedade de sua
época. Ilustrados com vinhetas de J.J. Grandville, a coleção publicada de 1840 a 1842, dava ao público
leitor retratos maliciosos escritos por uma dezena de nomes conhecidos. Entre eles, destacam-se Balzac,
Paul e Alfred de Musset, George Sand, Charles Nodier, Louis Viardot e Jules Janin. Uma edição completa
e revisada, foi publicada pela editora Hetzel em 1867, em formato in-8. Para um exame da gênese dessa
obra coletiva Cf. PARMÉNIE, A. & BONNIER DE LA CHAPELLE, C., 1985, p. 19.
97
Sobre a publicação da primeira edição de La Comédie Humaine remetemos a “Le monde des éditeurs”
In: CHARTIER & MARTIN, 1990, p. 200.
48
já recebera o título de La Comédie Humaine. Isso nos leva a comparar o caso de Balzac
com aquele de Verne no que tange ao papel de Hetzel na definição do título da obra
verniana (Voyages extraordinaires), descrito no “Avertissement de l’éditeur” do Magasin
d’Éducation et de Récréation (ver 6.2.3), por ocasião da publicação em fascículo do
segundo romance de Jules Verne – Voyages et aventures du capitaine Hatteras (1865).
Definir o nome do conjunto de romances antes que ele exista é não só a confirmação do
acordo feito, mas também a garantia de que os romances sejam escritos dentro dos moldes
que esses paratextos ditam, obedecendo ao gênero, aos temas e visando um potencial
público leitor. Além disso, a troca no eixo paradigmático do termo “Histoires” por
“Voyages” valida a cena98 remetendo o leitor francês do século XIX à obra de Edgar
Allan Poe.
A dissolução da sociedade com Charles Furne quase leva Hetzel à falência.Ele
aproveitará a Revolução de Fevereiro para manifestar seus ideais republicanos, militando
em favor da República de 1848.
Figura emblemática do espírito editorial empreendedor da Monarquia de Julho,
Hetzel adquire, no mercado do livro ilustrado, os capitais necessáriosque o favorecerão
diante das exigências capitalistas da edição moderna, na segunda metade do século. Sem
a contribuição de um capital social, por exemplo, nenhuma editora independente resistiria
ao processo de transformação e de reunião das grandes editoras em sociedades,
característica da indústria do livro no Segundo Império.
No entanto, na dialética da arte e do dinheiro no interior do campo literário,
editores não podiam mais sustentar a imagem de líderes contando somente com suas
relações sociais para realizar boas sociedades em caso de riscos comerciais. Como
sublinha Jean-Yves Mollier, com a complexificação das lógicas industriais, as táticas dos
grandes nomes da extinta imprensa romântica cedem às exigências de pensamentos
estratégicos que forçam os editores a refletir sobre as chances ideais de investimento no
campo, extraindo suas linhas principais de ação de uma política de implantação do
mercado dos bens simbólicos.99
Essa condição da edição moderna se impôs a Hetzel na medida em que, com o
lançamento do Livre des enfants, o editor desenvolverá disposições para o domínio
De acordo com Dominique Maingueneau, a cena validada é uma cena “instalada na memória coletiva”
como antimodelo ou modelo valorizado. O título dado ao conjunto de romances de Verne o vincula à obra
de Poe e constituiria uma apropriação de um modelo de sucesso, portanto, de uma cena validada.
MAINGUENEAU, 2008c, p. 80.
99
Cf. MOLLIER, Jean-Yves. “Posface”. In: CHARTIER & MARTIN, 1990, p. 569-593.
98
49
editorial da literatura para crianças e jovens, levando, a partir de 1842, a se posicionar
contra uma determinada concepção de livros que “ensinam divertindo”, dentro do setor
editorial especializado nessas publicações. Esse posicionamento é notado através da
análise paratextualque se pode realizar em diversos prefácios de obras que Hetzel resgata
de contistas e fabulistas que lhe permitiram assumir um papel de mediador entre autores
e leitores, usando o filtro crítico da sua pena de escritor: em 1842-1843, é publicada uma
série de livros moralistas com o título Voyage où il vous plaira, assinada com pseudônimo
P.-J. Stahl. Será com esse pseudônimo que o autor-editor aproveita a edição de J. J.
Dubochet das Fables de J.J. Claris de Florian (ou Les Fables de Florian – Fig. 3 e Fig.
4) para inserir uma “Notice sur la vie et les ouvrages de Florian”, na qual faz um retrato
resumido do fabulista do século XVIII e reflexões sobre o que é o “bom livro”.
Fig. 3 – Capa- Fables de Florian (1842)
Fig. 4 – Frontispício
Na primeira intervenção crítica no âmbito da literatura para crianças e jovens,
quando escreve o retrato literário de Florian, Hetzel traz argumentos sobre o problema da
diferença entre o livro para crianças e o livro para adultos. A reflexão que faz diz respeito
às condições de criação de obras literárias iguais para todas as idades. Hetzel o afirma
pelo conteúdo da obra:
50
As Fábulas de Florian são um desses livros muito raros em que o
pensamento é tão casto e a forma é tão cuidada que parecem ter sido
escritos quase unicamente para os jovens leitores. E ele não o é.
Entre diversos outros preconceitos há, na França, um preconceito fatal
contra a juventude. Esse preconceito consiste em acreditar que, para ser
conveniente às crianças, um livro deve ser feito em condições tais que a
idade madura não possa tirar proveito.100
Cabe-nos abrir um breve parêntese sobre a ambiguidade que se instala com essa
afirmação. Ao analisar esse prefácio e outras revistas que pesquisamos, inclusive o
Magasin d’Éducation et de Récréation, o discurso de apresentação -, seja um prefácio,
um editorial ou até mesmo um cartaz publicitário, é frequentemente ambíguo ao informar
tratar-se de um empreendimento “para todos” ou “para que os pais leiam e as crianças
aproveitem”, por exemplo. No entanto, é bastante clara a tendência dessas revistas em
lançar uma literatura para crianças e jovens, ou seja, afirma-se que é “para todos”, quando
o conteúdo é estritamente para o público infantil ou juvenil. Nada impede que um leitor
adulto leia tal impresso. Inclusive, essa maneira de enunciar parece convidá-los para ler
para suas crianças, como se a leitura devesse ser uma atividade encorajada a ser realizada
junto à família. Ora, essas informações paratextuais (editorial, prefácio) são destinadas
aos pais. São eles quem compram um exemplar ou assinam uma revista. Além disso, ao
observar outras revistas e jornais com os quais nos deparamos ao longo da pesquisa, que
são de fato para público “adulto”, como Le Journal des débats, Le Temps, L’Artiste ou
Le Tour du monde, não existe o cuidado de dizer que se trata de um impresso “para todos”.
Para as revistas que analisamos, fazer esse tipo de adendo, marca que o impresso é
destinado a jovens ou crianças. Talvez essa seja uma estratégia hetzeliana para angariar
mais leitores. Essa mesma enunciação será explorada quando comentarmos o projeto do
Magasin d’Éducation et de Récréation, em 1864.
Prevendo uma mudança no ramo da literatura para crianças no início da segunda
metade do século, Hetzel contribui para a discussão sobre o lugar e o papel dos “bons
livros” no mercado. Em função do desenvolvimento da arte técnica do livro, muitas obras
se transformam em simples mercadoria, o que é criticado por Hetzel nesse momento.
Além disso, o conformismo do conteúdo recreativo atrai julgamentos negativos de Hetzel
“Les Fables de Florian sont un de ces livres très rares où la pensée est si chaste et la forme si attentive,
qu’ils semblent avoir été écrits presque uniquement pour des jeunes lecteurs. Et pourtant il n’en est rien.
Parmi beaucoup d’autres préjugés, il y a en France un préjugé à la jeunesse. Ce préjugé consiste à croire
que pour convenir aux enfants, un livre doit être fait dans des conditions telles que l’âge mûr n’y puisse
trouver son compte.” STAHL, P.-J. “Notice sur la vie et les ouvrages de Florian”. In: Fables de Florian.
Illustrées par J. J. Grandville. Paris: J.-J. Dubochet et Cie., 1842, p. VI.
100
51
que se questiona sobre o valor simbólico do livro infantil e juvenil. Em La Comédie
enfantine (Fig. 5), livro infantil que Hetzel irá prefaciar sob o pseudônimo de P.-J. Stahl,
lança:
Essas penas mercenárias que só se preocupam em escrever às dúzias esses
livros sem cheiro nem sabor, esses livros rasos e sem brilho, livros bobos
aos quais parece reservado o privilégio indevido de falar em primeiro
lugar ao que há de mais fino, de mais sutil e de mais delicado no mundo,
à imaginação e ao coração das crianças.101
Fig. 5 - Frontispício - La Comédie enfantine
(1861)
Ainda na “Notice sur Florian”, Stahl propõe, portanto, uma primeira discussão
que constitui uma apresentação das condições de base para uma literatura infantil de
excelência. “O que são bons livros?”: o prefaciador traz, nos seus argumentos, uma
questão retórica que visa apresentar o modelo das fábulas de Claris de Florian para
justificar a importância da literatura que será apresentada:
[...] Poderíamos escrever um livro que as mentes mais elevadas
pudessem olhar como uma obra-prima, e que, no entanto, apenas
em virtude de sua pureza, merecesse ser colocada sobretudo nas
mãos da juventude. O autor de Paulo e Virgínia já o provou.
Florian, com suas fábulas, e em uma lógica diferente, provou por
“Ces plumes mercénaires qui font métier d’écrire à la douzaine ces livres sans goût ni parfum, ces livres
plats et sans relief, ces livres bêtes auxquels semble réservé le privilège immérité de parler les premiers à
ce qu’il y a de plus fin, de plus subtil et de plus délicat au monde, à l’imagination et au coeur des enfants.”
STAHL, P.-J. La comédie enfantine. Préface. Paris: Michel Lévy frères, 1861, p. 6.
101
52
sua vez que o que convém aos adultos podia convir também aos
mais jovens.102
Para Stahl, as obras literárias que se empenham em servir aos adultos e às crianças
são modelos de resposta à questão retórica que escreve no prefácio das fábulas de Florian:
O que é necessário para que um livro convenha à juventude é,
primeiramente, que ele seja simples; [...] em seguida, que não se
faça confusão entre o bem e o mal, e que um seja separado do
outro bem escrupulosamente para que um mau espírito não
encontre neles sua justificativa.
Ora, para fazer tal livro, é necessário ser ao mesmo tempo um
grande cérebro e, sobretudo, um honnête homme. E é
precisamente porque a reunião dessas duas condições é essencial,
que esses livros que podem instruir todas as idades e agradar a
todos, sem ferir nenhuma, que os bons livros enfim, como
dissemos, são extremamente raros.103
Através desse julgamento, Stahl revela os valores culturais que vislumbra para
uma nova literatura para crianças. Para se conceberem “bons livros” requerem-se dos
escritores talentos de moralista, caracterizados ao mesmo tempo pela sagacidade de um
grande cérebro e o brio do “honnête homme”.104
Em uma visão ambiciosa, lamentando a carência desses “bons livros” que
correspondem ao credo “instruir e agradar”, Stahl julga que uma literatura infantil de
qualidade tem raras ocorrências na história literária:
É preciso admitir, nossa literatura francesa é, mais do que nenhuma outra,
pobre desses livros que poderíamos chamar de livros de família, nos quais
o que é correto e honesto nunca é sacrificado ao espírito e ao gosto de
agradar.105
“On pourrait écrire un livre que les plus forts esprits puissent regarder comme un chef-d’oeuvre, et qui
pourtant, par la seule vertu de sa pureté, pût mériter d’être mis surtout entre les mains de la jeunesse.
L’auteur de Paul et Virginie l’a prouvé. Florian, par ses fables et dans un ordre différent, a prouvé à son
tour que ce qui convenait à la maturité pouvait convenir aussi au premier âge.” STAHL, P.-J, 1842, p. VI.
103
“Ce qui est nécessaire pour qu’un livre convienne à la jeunesse, c’est d’abord qu’il soit simple [...] c’est
ensuite que dans ce livre il n’y a point de confusion entre le bien et le mal, et que l’un y soit séparé de
l’autre assez scrupuleusement pour qu’un méchant esprit n’y puisse trouver sa justification. Or, pour faire
un tel livre, il faut être à la fois un grand esprit et surtout un très honnête homme. Et c’est précisément parce
que la réunion de ces deux conditions est essentielle, que ces livres qui peuvent instruire tous les âges et
plaire à tous les âges sans en blesser aucun, que les bons livres enfin, sont, comme nous l’avons dit,
extrêmement rares.” STAHL, P.-J, 1842, p. VI.
104
Figura que surge do crescimento da burguesia no século XVII francês, o honnête homme guarda em si
um modelo de humanidade generalista: supõe uma representação unificada do saber. Sintetizado,
frequentemente, pela máxima de Montaigne: “Uma cabeça bem-feita vale mais do que uma cabeça cheia”,
o honnête homme é definido, ainda, por ser dotado de “bom gosto” e ser conhecedor e respeitador das regras
de conveniência social.
105
“Il faut avouer, notre littérature française est, plus qu’aucune autre, pauvre de ces livres qu’on pourrait
appeler des livres de famille, où ce qui est droit et honnête n’est jamais sacrifié à l’esprit et au désir de
plaire.” STAHL, P.-J, 1842, p. VI.
102
53
Aqui, se o prefaciador P.-J. Stahl mostra dificuldades em enumerar trabalhos que
correspondam a seus critérios, o editor P.-J. Hetzel constata, nas Fables de Florian, o
indício de que a literatura francesa deve reunir escritores de talentoem torno da elaboração
desses raros “livros de família”. Nessa perspectiva, a “Notice de Florian” constitui as
premissas de objetivos editoriais ideais para se projetar no futuro uma literatura para
crianças e jovens de qualidade. Somam-se a isso as intenções de produzir uma literatura
para jovens baseada na utilidade e no divertimento. Stahl retoma essa ideia no prólogo
que escreve das Nouvelles et seules véritables aventures de Tom Pouce (1843 – Fig. 6),
livro infantil publicado em sua editora: “Minhas caras crianças, vocês não aprenderão
neste livrinho tudo o que terão que saber um dia, mas encontrarão aqui algumas dessas
lições de que, é preciso dizer, às vezes vocês necessitam.”106
Fig. 6 - Frontispício -Tom Pouce (1843)
Com esses argumentos, a crítica sobre os “bons livros” indica o posicionamento
de Hetzel no campo literário, vislumbrando o desenvolvimento de atividades editoriais
inovadoras, sobretudo no gênero da literatura para crianças, o que desembocará na criação
do Magasin d’Éducation et de Récréation.
“Vous n’apprendrez pas dans ce petit livre tout ce que vous aurez à savoir un jour; mais vous y
rencontrerez, à l’occasion, quelques-unes de ces leçons dont, entre nous soit dit, vous avez bien besoin
quelques-fois mes chers petits.” STAHL, P.-J. Nouvelles et seules véritables aventures de Tom Pouce.
Paris: Hetzel, 1843, p. 13.
106
54
Várias razões motivaram P.-J. Hetzel a criar o Magasin d’Éducation et de
Récréation, projeto destinado a transmitir suas concepções literárias no que diz respeito
aos “bons livros”. Não há dúvidas de que Hetzel tenha sido marcado pelas consequências
de sua participação ativa como republicano, na França da Segunda República, como chefe
de gabinete de Alphonse de Lamartine, então Ministro das Relações exteriores. De 1852
- depois do Golpe de Estado que institui o Segundo Impérioe colocou no trono Luis
Napoleão Bonaparte - a 1860, Hetzel vive seu autoexílioem Bruxelas.107 O contato com
Victor Hugo reforçou a ideologia republicana, cujos primeiros sinais apareceram na sua
trajetória através da relação com os fundadores e colaboradores do jornal Le National.108
Engajado politicamente contra o regime imperial de Napoleão III, Hetzel publica
clandestinamente Les Châtiments, de Victor Hugo, sem, no entanto, tomar qualquer
atitude radical em favor da República que pudesse pôr em risco suas atividades editoriais
no campo literário do Segundo Império. Mesmo que a concepção institucional da
democracia oponha Hetzel ao regime autorirário de “Napoleão – o pequeno”, o editor não
recusa sua volta para Paris nos primeiros sinais de uma liberalização do poder imperial.
Hetzel vê na concessão da anistia em 1859 uma via de reconciliação que, depois de quase
dez anos de afastamento do país, lhe permitirá participar do movimento de modernização
da economia do livro, engendrado pelo clima de prosperidade do Segundo Império. Em
1860, o editor se engaja novamente na edição parisiense e conta com o controle jurídico
da administração imperial, que lhe concede a permissão para o exercício de seu brevê de
livreiro.
Observando o advento do capitalismo industrial durante o Segundo Império,
Hetzel estava atento à popularidade das ciências, ao desenvolvimento do progresso
científico e suas aplicações industriais e ao movimento que essas mudanças traziam para
a sociedade. Para Hetzel, a curiosidade do público voltada para a busca de conhecimento
nessas áreas motiva a pujança de um projeto editoriallegítimopara a literatura para
crianças e jovens. Isso o autoriza a conceber a promoção dos “bons livros” através da
combinação do conto moderno, já testado no Nouveau magasin des enfants, com uma
pedagogia do conhecimento científico. Nesse aspecto, a associação entre P.-J. Hetzel e
107
Sobre o período de exílio de Pierre-Jules Hetzel, indicamos a segunda parte da biografia escrita por seus
descendentes – “L’exil” In: PARMÉNIE, A. & BONNIER DE LA CHAPELLE, C., 1985, p. 161-325.
108
Joëlle Dusseau, em um artigo sobre as opiniões políticas de Jules Verne, faz um panorama sobre o
republicanismo de Hetzel e o papel do jornal na sua concepção liberal da República. Cf. “Les idées
politiques de Hetzel et leur influence sur Jules Verne” In: ROBIN, Christian (dir.). P.-J. Hetzel; un éditeur
et son siècle. Saint-Sébastien: ACL Edition/Société Crocus, 1988, p. 33-44.
55
Michel Lévy para a publicação da coleção intitulada Les bons romans representa uma
etapa essencial na elaboração da estratégia de Hetzel que desembocará na concepção da
política editorial da revista-vitrine da sua editora: o Magasin d’Éducation et de
Récréation.
Diante do desenvolvimento do gênero romanesco no campo literáriofrancês e no
Ocidente, um mesmo objetivo reúne Hetzel e Lévy em um projeto para realizar a
publicação de romances em um contexto sociocultural marcado pelo acesso de todas as
categorias de público à literatura. Da associação Hetzel-Lévy, a partir de 1860, nasce Les
Bons Romans.109 Embora Les Bons Romans não seja um jornal destinado ao público
juvenil, referimo-nos aqui à expansão do público leitor jovem. Desde 1833, esse setor
cresce graças à Lei Guizot. Enquanto Ministro da Instrução Pública, François Guizot
institui que para cada Comuna francesa de quinhentos habitantes deveria haver ao menos
uma escola primária para meninos. A resolução de Guizot teria sido o pontapé inicial para
se voltar a atenção para alfabetização das massas que será desenvolvida ao longo do
século XIX na França e, consequentemente, motor para formação de leitores.
Fig. 7 – Bandeira da capa - Les Bons romans (1860)
Publicado semanalmente, esse jornal de oito páginas, impresso em três colunas,
ilustrado com duas gravuras - uma na primeira e outra na quinta página-, encadernado
semestralmente no formato in-4º, era administrado por Émile Aucante, colaborador de
Michel Lévy à época. Trabalhando desde 1º de fevereiro de 1860 para Michel Lévy
Frères, Émile Aucante nãoeracompletamente desconhecido para Hetzel.110 Estabelecido
109
Para mais informações sobre a associação de Hetzel com Michel Lévy ver MOLLIER, Jean-Yves.
Michel et Calmann Lévy ou la naissance de l'édition moderne - 1836-1891. Paris: Calmann-Lévy, 1984.
110
Como ex-secretário de George Sand, Aucante realizou papel de intermediário entre o editor e Sand
quando da disputa da venda de sua propriedade literária, em 1855. Cf. PARMÉNIE, A. & BONNIER DE
LA CHAPELLE, C., 1985, p. 242 e 344.
56
para um contrato de cinco anos, o jornal, lançado em 8 de maio de 1860, objetivava gerar
uma coleção de obras dignas de serem lidas e perpetuadas. A sociedade aberta entre os
dois previa que cada um investisse cinco mil francos e trouxesse seus autores para o
projeto: Victor Hugo, para Hetzel enquanto Michel Lévy se incumbiria de Alexandre
Dumas e George Sand, por exemplo. O seu “Aviso aos leitores” deixa claro seu suporte
e o público a que visa:
Nosso objetivo, publicando o jornal Les Bons Romans, não foi
acrescentar mais um jornal aos inúmeros jornais, mas tornar
acessíveis aos bolsos menos favorecidos, nessa forma popular, as
obras mais bem-reputadas dos nossos grandes escritores
contemporâneos, aquelas que tinham permanecido, até então, até
mesmopor conta do preço, privilégio de uma certa classe de
leitores.111
Com o jornal, Hetzel e Lévy visavam apostar na aliança entre a política do bom
preço ea estratégia de expansão de um segmento do mercado dos bens simbólicos para
além da classe leitora para a qual o privilégio social valia comoprivilégio cultural: o
periódico tinha como alvo um público menos favorecido visto ser vendido a cinco
centavos de franco cada número.112
A relação entre os editores não duraria pois, contrariamente a Michel Lévy, Hetzel
desejava criar uma estratégia editorial que atribuísse uma marca à sua novíssima editora,
situada no número18 da Rua Jacob, em Paris, posicionando-a no mercado dos bens
simbólicos ao publicar impressos para leitura em família.113 Nesse sentido, o perfil de Les
Bons Romans corresponderia, em parte, à concepção de Hetzel das práticas de leitura pela
eloquência iconográfica do frontispício que ilustra o jornal. Na imagem (Fig. 7), pode-se
“Notre but, en publiant le journal Les Bons Romans, n’a pas été d’ajouter un journal à des journaux déjà
nombreux, mais de rendre accessibles aux plus petites bourses, sous cette forme populaire, les oeuvres les
plus justement réputées de nos grands écrivains contemporains, celles qui étaient restées jusqu’alors, à
raison de leur prix même, le privilège d’une certaine classe de lecteurs.” AUCANTE, Émile. Prospectus.
Les Bons Romans. T. I, 8 mai-2 novembre 1860, quarta capa.
112
Segundo o artigo “De la valeur des choses dans le temps” de Jean Monange mantido no site
http://www.histoire-genealogie.com/spip.php?article398&lang=fr 1 F, de 1860, equivaleria, hoje, a 2 €.
Portanto, 0,05 F corresponderiam a 0,10 €. Para uma comparação mais crível, um dicionário de língua
francesa autorizado pela Instrução Pública custava 8 Francos; um frasco de analgésico poderia ser
comprado por 5 Francos e um avental de cozinha era vendido por 1 Franco, no Magasin Tapis Rouge, em
Paris. Extraimos estas informações dos “Classificados” do Journal des débats, exemplar de 25 de janeiro
de 1860. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k4522306.item.r=journal+des+d%C3%A9bats JeanYves Mollier retoma a discussão sobre o valor do jornal em MOLLIER, Jean-Yves. Un éditeur
emblématique du XIXe siècle. Revue Jules Verne, nº 37. Amiens: Editions du Centre International Jules
Verne, 2013, p. 18.
113
A respeito da patente e da constituição da Société Hetzel et Cie. Cf. PETIT, Nicolas. Éditeur exemplaire,
modèle de père, héros de roman: figures d’Hetzel. In: Bibliothèque de l'école des Chartes. T. 158, S. l.,
2000, p. 197-221. Disponível em: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/bec_03736237_2000_num_158_1_451022 Este artigo sintetiza sua Tese de doutorado: PETIT, Nicolas. Un éditeur
au XIXe siècle. P.-J. Hetzel et les éditions Hetzel (1837-1914). Thèse de l’École de Chartres, 1980.
111
57
notar o círculo familiar em torno da figura moral do pai, fiador do valor instrutivo da
literatura que se conjuga ao momento de diversão das crianças. A esse respeito, mesmo a
noção de “bons romances” do título do jornal poderia ser comparada à concepção de
Stahl, pseudônimo de P.-J Hetzel, de “bons livros” explorada na Notice sur Florian. No
entanto, os títulos publicados pelo periódico nos quatro primeiros anos não revelam
nenhuma atenção à literatura para jovens. Por conta da hegemonia da literatura romântica,
o administrador de Les Bons Romans respeitará o contrato enunciativo do prospecto que
citamos acima em que expressa a ideia de um jornal literário “para todos”, mas esse
“todos” não parece incluir exatamente crianças e jovens. Assim, uma mudança na linha
editorial de Les Bons Romans é vislumbrada por Hetzel no sentido de uma reorientação
do seu perfil à maneira do público que o Magasin d’Éducation et de Récréation terá.
Em 1863, uma discordância notada na confecção de um catálogo para Les Bons
Romans faz P.-J. Hetzel quebrar o contrato com Michel Lévy. A desarmonia entre os
projetos editoriais dos dois sóciosé revelada na carta de Émile Aucante de 6 de junho de
1863. A carta, endereçada aos cuidados de Michel Lévy Frères, reproduz literalmente
uma carta de Hetzel que propõe ao sócio a lista de possíveis títulos a serem lançados em
folhetim. O que segue é a citação integral do texto que Aucante retoma da
correspondência de Hetzel:
Senhores Michel Lévy Frères,
La femme en blanc sendo inteiramente composta, pedi a M. Hetzel que
me fornecesse uma outra obra para colocar em primeiro lugar em Les
Bons Romans.
Eis aqui uma cópia textual de sua resposta:
Eu acho que o que teria de mais simples a fazer para o romance do
primeiro lugar seria aproveitar um corte em Les Puritains para subir
com Les Puritains para o primeiro lugar. Estou certo de que se esse
romance tivesse ficado em primeiro lugar, ele teria tido sucesso. Para o
romance em segundo lugar, tenho:
1º Schniderhan (sic) ou les bandits du Rhin
2º Voyages et aventures du baron Wogan (que seriam muito bons para
nosso público, mesmo em 1º mas isso só dá um volume)
- La cause du beau Guillaume de Duranty
- La mionnette de Muller
- Le fou Yegof – Daniel Rock – Le joueur de Clarinette, de Chartian
- La sorcière de l’ambre (muito bom para nós)
- Gens de bohème
- Une cause secrète
- Récits d’une paysanne
- Histoire d’une bouchée de pain
- Lady Isabelle 2 vol.
- Sans nom 2 vol.
- Les chauffeurs indiens, de Bréhat
58
- Le casse-noisette, de Dumas (se esses senhores não quiseremDumas)
- La princesse Sophie – Adrien Robert – bom para nós
- Cinq semaines en ballon
- Un drame en province – Claude Vignon
- Quelques contes du petit château, de Macé
- Les aventures d’un petit parisien, de Bréhat.
Como não cabe a mim adotar, sem seu consentimento, a combinação
proposta pelo Sr. Hetzel; como eu não saberia escolher entre as obras
que ele coloca à disposição do jornal, eu lhes agradeceria, Senhores, se
me indicassem sua apreciação pessoal. Senhores, recebam os meus mais
devotados sentimentos.
Emile Aucante114
Já publicadas ou não à época, as obras propostas fazem parte do acervo da livraria
de Hetzel. Cabe-nos questionar sobre o que leva o editor a revelar as tramas que
constituirão trunfos para futuras lutas no campo, já que o catálogo proposto na carta prova
a intenção do editor não só em publicar o que foi elencado, mas direcionar LesBons
Romans para a literatura juvenil, contribuindo com alguns romances de temas históricocientíficos em uma visada didática, base do futuro Magasin d’Éducation et de Récréation.
Dessa lista, no qual vemos figurar o romance verniano Cinq semaines en ballon, Hetzel
faz julgamentos de valor que guiariam sua escolha em função do critério de recepção:
“Muito bom para nosso público”. Três referências recebem essa crítica: La princesse
Sophie, La sorcière à l’ambre e Voyages et aventures du baron de Wogan.115 Por que
114
Agradecemos a Jean-Yves Mollier por ter cedido uma cópia da carta da coleção particular de Cécile
Alapetite-Hofer, herdeira dos documentos de Émile Aucante. O documento faz parte, hoje, dos arquivos
Calmann-Lévy. Segue citação do original: “Messieurs Michel Lévy Frères, La femme en blanc étant
entièrement composée, j’ai prié M. Hetzel de me fournir un autre ouvrage pour mettre en premier dans Les
Bons Romans.Voici une copie textuelle de sa réponse:Je crois que ce qu’il y aurait de plus simple pour le
roman en 1e, ce serait profiter d’une coupure dans les Puritains pour faire remonter les Puritains en premier.
Je suis certain que si ce roman eût été en premier, il eût réussi. Comme roman en second j’ai : 1º
Schniderhan (sic) ou les bandits du Rhin ; 2º Voyages et aventures du baron Wogan (qui seraient très bonnes
pour notre public, même en 1e mais cela ne fait qu’un volume) ; - La cause du beau Guillaume de Duranty ;
- La mionnette de Muller ;- Le fou Yegof – Daniel Rock – Le joueur de Clarinette, de Chartian ; - La
sorcière de l’ambre (très bonne pour nous) ; - Gens de bohème ; - Une cause secrète ; - Récits d’une
paysanne ;- Histoire d’une bouchée de pain ; - Lady Isabelle 2 vol. ;- Sans nom 2 vol. ; - Les chauffeurs
indiens, de Bréhat ; - Le casse-noisette, de Dumas (si ces messieurs ne veulent pas donner de Dumas) ; La princesse Sophie – Adrien Robert – bon pour nous ; - Cinq semaines en ballon ; - Un drame en province
– Claude Vignon ; - Quelques contes du petit château, de Macé ; - Les aventures d’un petit parisien, de
Bréhat.
Comme il ne m’appartient pas d’adopter, sans votre assentiment, la combinaison proposée par M. Hetzel;
comme je ne saurais davantage prendre sur moi de choisir parmi les ouvrages qu’il met à la disposition du
journal, je vous serais obligé, Messieurs, de vouloir bien me faire connaître votre appréciation personnelle.
Recevez, je vous prie, messieurs, l’assurance de mes sentiments les plus dévoués.”
115
Segundo Philippe Scheinhardt, em artigo sobre a colaboração Hetzel-Lévy, a primeira trama versa sobre
os trágicos amores de uma princesa; o segundo título é umafarsa literária ambientada no contexto da Guerra
dos trinta anos; já a terceiro romance trata de tema que será diversas vezes explorado por Jules Verne:
narrativa de viagem etnográfica baseada em relato real previamente publicado na revista Le Tour du monde,
59
esses textos têm a preferência de Hetzel para as próximas publicações do jornal? E por
que Michel Lévy não cede aos pedidos de Hetzel, já que a pesquisa revela que nos últimos
meses de 1863 só foram publicados Les chauffeurs indiens e Schinderhannes ou les
bandits du Rhin?116 Uma conjectura que se pode fazer é que os dois sócios não
concordavam mais no que diz respeito à linha editorial dada a Les Bons Romans. P.-J.
Hetzel decide, portanto, quebrar o contrato com Michel Lévy, assinando em 26 de
setembro de 1863 a cessão da sua parte da sociedade por vinte mil francos. Assim, Hetzel,
dispõe do capital necessário para a criação do Magasin d’Éducation et de Récréation (Fig.
8) no ano seguinte, em 1864.
Fig. 8 - Capa - Magasin d’Éducation et de Récréation (1864)
Segundo Jean-Yves Mollier, é legítimo supor que a degradação dessa relação
profissional e da ruptura entre os sócios tenha sido decisiva para que Hetzel lançasse uma
nova revista literária. Em 20 de março de 1864, Hetzel, unido a Jean Macé (1815-1894),
publica o primeiro número do Magasin d’Éducation et de Récréation, oferecendo às
de Édouard Charton. Cf. SCHEINHARDT, Philippe. “Une collaboration insolite? J. Hetzel et Michel
Lévy”. In : COMPÈRE, Daniel & SOUBRET, Robert (dir). Rocambole – Hetzel éditeur populaire, nº 6869, s.l: Concours du Centre International du Livre, 2014, p. 66.
116
Em Les Bons Romans, nº 343 ao nº 357 de 21 de julho a 8 de setembro de 1863; e nº 358 ao nº 365 de
11 de setembro a 6 de outubro de 1863, respectivamente.
60
famílias uma revista cujas concepções ideológicas amadureceram ao longo de anos de
reflexão.117
Frequentemente, a crítica verniana apresenta o encontro entre o editor e Macé
quando este publica L’histoire d’une bouchée de pain, que gira em torno das suas
atividades de vulgarização científica, pela editora de Hetzel, em julho de 1861.
Fig. 9 - Frontispício - L’Histoire d’une bouchée de pain (1861)
Professor de um pensionato feminino em Beblenheim, comuna da região da
Alsácia, à época do encontro com o editor, Jean Macé tenta instaurar uma biblioteca
comunal na região, enquanto Hetzel milita pela instrução pública. Suas características de
vulgarizador científico somadas à sua militância republicana em matéria de política
socioeducativa formaram os trunfos para que Hetzel concebesse com Macé o Magasin
d’Éducation et de Récréation, revista através da qual ele poderá enfim compor e
transmitir sua recente iniciativa no setor editorial, no caso, a constituição de uma
117
O franco-maçon Jean Macé, pedagogo, professor, jornalista e escritor, era um antigo colega de escola
de P.-J. Hetzel. Fundador da “Liga do ensino” em 1866, Macé se posiciona ao longo de sua trajetória nos
campos literário e jornalístico como defensor da laicidade e da instituição de uma escola republicana.
DESHOGUES, Yannick. “Hetzel et Macé: la foi dans le livre”. In : COMPÈRE, Daniel & SOUBRET,
Robert (dir). Rocambole – Hetzel éditeur populaire, nº 68-69, s.l: Concours du Centre National du Livre,
2014, p. 73.
61
Bibliothèque illustrée des familles que se tornará, na verdade, a Bibliothèque d’Éducation
et de Récréation, área do Magasind’Éducation et de Récréation na qualalocará os
romances de Jules Verne.
A revista-vitrine da editora de Hetzel já foi amplamente estudada por diversos
pesquisadores. Recentemente, Philippe Scheinhardt publicou um artigo em que trata
doeditorial do Magasin d’Éducation et de Récréation na sua gênese, recorrendo aos
manuscritos dos arquivos Hetzel da Biblioteca Nacional da França.118 Nesse artigo,
Scheinhardt declara que os suportes necessários para a investigação que permitiriam
esclarecer a duração do processo de produção editorial da revista, cuja primeira ideia teria
sido expressa em 1858, não estão disponíveis ou não existem. No entanto, a volumosa
correspondência entre Hetzel e Jean Macé pode trazer um ponto de apoio à questão graças
às discussões sobre a publicação de L’histoire d’une bouchée de pain.119
Em duas das cartas, Jean Macé defende que o “Prospectus” para o
Magasind’Éducation et de Récréation – brochura impressa que circulou antes da
publicação do primeiro número do periódico – deveria ser publicado ao fim do seu
romanceArithmétique du Grand Papa. Por duas vezes, Jean Macé insiste que seu romance
deveria vir anexado ao Prospectus:
Atribuo agora importância ainda maior à Aritmética pois a vejo
como uma introdução imediata da nossa revista para o público.
Seria necessário apressá-la para sair um pouco antes da Páscoa,
lançá-la rapidamente sem levar em conta os custos com anúncios,
e lançar um mês ou seis semanas depois [o Magasin] no auge do
sucesso do livro. Não é possível que ele fracasse se você
conseguir que falem dele. Coloque o prospecto do Magasin no
final da Aritmética e seus amigos poderão matar dois coelhos
com um artigo só.120
SCHEINHARDT, Philippe. “Genèse et structure du Magasin d’éducation et de récréation.” In :
COMPÈRE, Daniel & SOUBRET, Robert (dir). Rocambole – Hetzel éditeur populaire, nº 68-69, s.l:
Concours du Centre International du Livre, 2014, p. 81-99. O artigo é resultado do remanejamento de um
capítulo da sua Tese de doutorado. Orientada por Philippe Hamon e defendida em 2005 com o título Jules
Verne: génétique et poïetique (1867-1877). A Tese inaugurou uma série de estudos dos manuscritos dos
romances de Jules Verne.
119
BNF, Dépt. de manuscrits, Archives Hetzel – dossier “Jean Macé”. Referências NAF 16073 para a
correspondência e NAF 16074 para documentos diversos. A troca de correspondências informa ainda sobre
sociedade entre Macé e Hetzel a partir de 1862, quando se iniciam as relações contratuais para o lançamento
do Magasin d’Éducation et de Récréation.
120 “J’attache d’autant plus d’importance maintenant à cette Arithmétique que je la regarde comme une
introduction immédiate à notre magasin vis-à-vis du public. Il faudrait la pousser lestement pour arriver un
peu avant Pâques, la lancer rondement sans regarder les frais d’annonces, et paraître un mois ou six
semaines après dans tout le fort du succès du livre. Il n’est pas possible qu’il rate si tu viens à bout d’en
faire parler. Mets le prospectus du Magasin en queue de l’Arithmétique et tes amis pourront faire de l’article
deux coups” (5 de fevereiro de 1863 – BNF, Dépt. de manuscrits, NAF 16073 fº 118).
118
62
De qualquer modo, considero nossa Aritmética como um
prospecto do Magasin e insistirei muito para que ela seja
publicada primeiro, com pelo menos um mês de antecedência.121
Fig. 10 – “Prospectus” do Magasin (1863)
Em função de atrasos no lançamento da revista, o editor não segue a sugestão de
Jean Macé, como veremos a seguir no texto do prospecto lançado a que tivemos acesso
no seu manuscrito (ver 6.2.4).122 O texto do prospecto será ainda reproduzido em um
prefácio publicado com o título “À nos lecteurs” (ver 6.2.1) no volume do primeiro
semestre de 1864-1865.123
As precisões sobre o processo genético desse prospecto e do prefácio da revista já
foram longamente analisadas por Philippe Scheinhardt no seu trabalho com manuscritos
vernianos, em 2005. Embora tenhamos tido acesso ao material, não retornaremos aqui
aos rascunhos que deram origem a esses documentos. Debruçando-nos no que de fato foi
publicado, analisaremos o conteúdo desse discurso de reclame. O início e o fim do texto
“De toute façon je considère notre Arithmétique comme un prospectus du Magasin, et je tiendrais
beaucoup à ce qu’elle parut la première, avec au moins un mois d’avance” (22 de março de 1863 – BNF,
Dépt. de manuscrits, NAF 16073 fº 134).
122
Magasin d’éducation et de récréation – Encyclopédie de l’enfance et de la jeunesse. BNF, Dépt. de
manuscrits, archives Hetzel, dossier “Maison d’édition”, NAF 17062 fº165-168.
123
“À nos lecteurs” In : Magasin d’éducation et de récréation, I, 1er semestre, 1864-1865, p. 3-4.
121
63
são eloquentes no que diz respeito à envergadura do projeto. De imediato o discurso
estabelece um contrato enunciativo com base em um ethos pedagógico:
Ao iniciar a publicação desta Revista de Educação e de Recreação,
temos a consciência de empreender uma obra difícil, e se não recuamos
diante da dificuldade da empresa é porque temos ao mesmo tempo a
consciência da sua grande utilidade.
Aqui, evocando características inerentes ao projeto, o editor declara que o
magazine irá perseverar na ideia da utilidade de sua criação. Perfazendo o discurso
publicitário, o parágrafo final de “À nos lecteurs” implica os assinantes em uma ação
comum. Com o expediente próprio de um correio de leitores, a ideia de solidariedade
intelectual é lançada pelos editores quando convocam os leitores a ajudarem os autores,
participando da sua tarefa didática para com a infância, ponto central da publicação:
Pedimos a todos os assinantes que se considerem nossos colaboradores.
Quando ocorrer-lhes uma ideia que acreditarão útil nos comunicar, nós
acolheremos com gratidão. Uma mão lava a outra. Colocando nossa
boa-vontade a seu serviço, acreditamos poder invocar o seu. É uma obra
de família que abordamos. É somente com a ajuda das famílias que ela
pode obter sucesso.
Certamente, a concepção de uma literatura para crianças não é nova no século
XIX. Inúmeras publicações para esse público podem ser recenseadas entre os anos 18301860, nomeadamente Le Journal des enfants (1832) e La Semaine des enfants (1857) do
qual falaremos mais adiante. Em geral, essas revistas trazem a escola para o seio familiar
com histórias moralistas que visam formar meninos e meninas burgueses nos valores de
sua classe social, ou seja, transmitir e perpetuar um habitus dominante. Se, em alguma
medida, ele não inova nesse aspecto no mundo da imprensa infantil, o projeto do Magasin
d’Éducation et de Récréation reavalia os princípios da união entre a educação e a
recreação. O argumento desenvolvido na passagem do Prospecto citada abaixo pressupõe
uma crítica dos procedimentos comerciais usados nessas revistas destinadas aos jovens
com o “para nós” da instância de enunciação que marca a diferença com as outras revistas,
militando em favor da reabilitação de um “ensino de família no verdadeiro sentido da
palavra”:
Trata-se, para nós, de constituir um ensino de família no verdadeiro
sentido da palavra, um ensino sério e atraente ao mesmo tempo, que
agrade aos pais e seja proveitoso para as crianças. Educação –
Recreação são, em nossa opinião, dois termos convergentes. O
instrutivo deve se apresentar de um jeito que provoque o interesse: sem
isso ele repele e cansa; a diversão deve conter uma realidade moral, ou
seja, útil: sem isso ela se torna fútil e esvazia as cabeças ao invés de
enchê-las.
64
Nisso deverá residir a unidade da nossa obra, que poderá, se obtiver
sucesso, contribuir para o aumento da massa de conhecimentos e de
ideias sadias, de bons sentimentos, de inteligência, de razão e de gosto
que forma o que poderíamos chamar de capital moral da juventude
intelectual da França.
Para Hetzel e Macé, a inovação do Magasin d’Éducation et de Récréation está no
elo evidente que liga Educação à Recreação. O título da revista tem o papel de marcar a
orientação do seu perfil apesar de pecar por um “excesso”, apontado por Macé em
correspondência a Hetzel: “Se você tem realmente razões para insistir no anexo:
recreação, eu não insistirei. Era com intuito de abreviar o título. Os melhores títulos são
um pouco como as melhores loucuras” (Carta do 30 de janeiro de 1863).124 Para P.-J.
Hetzel, excluir do título a palavra “Recreação”, como quisera Jean Macé, seria privilegiar
o perfil pedagógico da revista, não reservando espaço à sua predileção: a literatura infantil
e juvenil. Manter o título completo corresponde, portanto, ao desejo do editor-autor de
manter o duplo objetivo que caracteriza sua associação com Jean Macé.
Com esse dispositivo de interesses, Hetzel e Macé estavam atentos a duas
instituições que condicionam o projeto da Encyclopédie pour l’enfance et la jeunesse,
subtítulo do Magasin d’Éducation et de Récréation: enquanto o editor focava na
imbricação dos campos editorial e literário, o professor mirava no sistema escolar,
considerando a contribuição da revista no movimento de reforma da instrução pública:
Acrescentar à lição forçosamente um pouco austera do colégio e do
pensionato uma lição mais íntima e mais penetrante, completar a
educação pública pela leitura no seio familiar, tornar-nos os amigos da
casa em todos os lugares que pudermos entrar, agir ao mesmo tempo
em todos os elementos de que ela se compõe, responder a todas as
necessidades de aprender que se desenvolvem no lar, desde o berço até
a maturidade, tal é nossa ambição.
Cabe-nos fazer um breve parêntese no que diz respeito à intenção do periódico de
completar a educação pública através da leitura. O propósito mostra-se revelador para a
construção do ethos da revista e, por conseguinte, do ethos e da cenografia enunciativa
dos romances de Jules Verne que serão publicados no periódico. Aqui,mais do que
evidenciar o caráter didático e pedagógico da revista ou de um ou outro romance de
Verne, o projeto se coaduna com o discurso escolar republicano da época que se preparava
para a laicidade da escola francesa, só efetivamente concretizada com as leis de Jules
“Si tu as réellement des raisons pour tenir à l’annexe: récréation, je n’insisterai pas. C’était l‘histoire de
raccourcir le titre. Les meilleurs titres sont un peu comme les meilleures folies.”BNF, Dépt. de manuscrits,
archives Hetzel, dossier “Correspondance Macé-Hetzel”, I, NAF 16073, fº117.
124
65
Ferry, em 1882. Dominique Maingueneau escreveu um artigo sobre o assunto intitulado
“Les Voyages extraordinaires et le discours scolaire républicain”.125 O artigo trata, numa
abordagem discursiva, das fronteiras entre os discursos dos manuais escolares da escola
leigafrancesa e das “Viagens extraordinárias”. Maingueneau conclui que os dois
discursos, o escolar e o verniano, embora não possam ser colocados no mesmo plano - já
que um constitui um corpus extenso, uma enorme massa documental desenvolvida por
um aparelho do estado que deseja inscrever duravelmente seus princípios na sociedade e
o outro um empreendimentoliterário singular -, assemelham-se em objetivos; e que o
discurso escolar contra o qual se estabelece uma relação de distanciamento é o discurso
de um aparelho engajado contra a escola religiosa, num combate incessante e multiforme.
Ora, embora não pretendamos tratar da questão que, cremos, merece análises mais
aprofundadas, cabe-nos levar em consideração o tom laico do discurso de construção da
revista que se posiciona contra a escola confessional, como pretende Maingueneau no
referido artigo.
Dissimuladas no prospecto do Magasin d’Éducation et de Récréation, as
intenções incisivas e pretenciosas trabalham implicitamente o discurso na medida em que
os fundadores da revista desejam impor sua marca no mercado da imprensa infantil e
juvenil. O discurso publicitário do prospecto exibe o desejo de resolver o problema posto
no título em uma abordagem lógica que consiste em inferir uma unidade entre a Educação
e a Recreação. Desse ponto de vista, a combinação do educativo e do recreativo do
Magasin não pode ser considerada original diante do extenso corpus de jornais e revistas
da época, todos mais ou menos destinados à promoção da dita “literatura em família”,
exploradores da fórmula “instrução e diversão” e, sobretudo, da receita do folhetim.
Desde 1833, Jules Janin, que se vale do uso dos romances folhetins para fidelizar
o público leitor do Journal des enfants,126 abre concorrência com diversos outros títulos,
especialmente Le Journal des jeunes personnes (1833), Le Journal des Demoiselles
MAINGUENEAU, Dominique. “Les voyages extraordinaires et le discours scolaire républicain”. Artigo
inédito gentilmente cedido pelo autor no ano de 2010. Algumas discussões desse artigo foram revistas e
publicadas em MAINGUENEAU, Dominique. “Faire adhérer sans argumenter. Manuels scolaires et
“Voyages extraordinaires” à la fin du XIXe siècle”. In: Revue électronique Retor
(Associación Argentina de Retórica), vol.1, n°1, 2011, p. 24-42. Disponível em:
(http://www.revistaretor.org/vol1num1.html)
126
O jornal é lançado em 1832 por Saint-Charles Lautour Mézeray. Trata-se neste magazine da fórmula do
romance folhetim de Illusions maternelles de Louis Desnoyers, primeira versão de Les Aventures de JeanPaul Choppart. Este é considerado o primeiro romance folhetim infantil (Cf.: MARCOIN, Francis. Les
Aventures de Jean-Paul Choppard de Louis Desnoyers; le premier roman-feuilleton. Revue de littérature
comparée, no 304, 2002/4, p. 431-443. Disponível em: www.cairn.info/revue-de-litterature-comparee2002-4-page-431.htm.
125
66
(1833), Cendrillon journal des petites Demoiselles (1850), Le Magasin de l’enfance
chrétienne (1851), para citar alguns aos quais tivemos acesso e quecirculavam na primeira
metade do século. Depois dos anos 1850, a editora Hachette ganha o mercado com os três
magazines: La semaine des enfants (Fig. 11 e Fig. 12), La Poupée modèle e Le Journal
de la jeunesse, lançados respectivamente em 1857, 1863 e 1872.
Circulando desde 1857, La Semaine des enfants, de Louis Hachette é concorrente
do Magasin d’Éducation et de Récréation. A comparação da revista de Heztel com aquela
de Hachette pode auxiliar na compreensão do aporte original do Magasin d’Éducation et
de Récréation em meio a massa de impressos que circulava para o público jovem.
Fig. 11– Frontispício La Semaine des enfants
(1857)
Fig. 12 – Primeira página
Com o subtítulo Magasin d’images et de lectures amusantes et instructives, o
jornal infantil de Louis Hachette custava dez centavos o número e seis francos a assinatura
anual.127 O periódico trazia oito páginas e, como o Magasin, objetivava instruir e divertir:
La Semaine des Enfants, destinado a divertir seus jovens leitores
instruindo-os, excitará vivamente sua curiosidade por relatos
interessantes e por belas gravuras e direcionará seu ardor, assim, para o
prazer em proveito de um ensino bem elementar com certeza, mas útil
para o presente e fecundo para o futuro. Nas nossas histórias tudo será
simples, tudo será curto, e tudo, portanto, será divertido, mas, ao mesmo
tempo, tudo será instrutivo esobretudo moral, e tenderá a incutir
127
0,10 F, hoje, corresponderiam a, aproximadamente, 0,25€; 6 F a 12€.
67
imperceptivelmente nos jovens corações o amor pela religião e pela
virtude.128
Dividido em três partes – relatos históricos; contos, historietas e dramas;
variedades e pequenas crônicas –,o intuito moralista cristãodo jornal é preponderante. Na
primeira história, no primeiro número do periódico, por exemplo, nota-se de imediato
essa diferença: Hachette inaugura sua revista publicando Clotilde – relato histórico sobre
a esposa que converte seu marido Clóvis ao cristianismo. Entre outros traços, a defesa de
uma moral cristã marcará a primeira grande distinção paracom o Magasin de Hetzel, que
responde mais ao movimento de uma moral laica em harmonia com futuros valores da
Terceira República.
Em março de 1864, o Magasin d’Éducation et de Récréation terá a mesma
quantidade de páginas que a Semaine des enfants e será distribuídoatravés de uma
assinatura de doze francos por ano.129 O preço mais elevado talvez se deva ao
investimento de Hetzel na ilustração do seu periódico, no qual a imagem tem lugar
importante. Com esse princípio, ele reúne para o projeto nomes como Eugène Froment
(1820-1900), Lorenz Froelich (1820-1908), Édouard Riou (1833-1900), Yan’Dargent
(1824-1899), todos artistas e futuros ilustradores dos romances de Jules Verne, para a
criação de gravuras e vinhetas decorativas. Constituídoporduas colunas de quarenta linhas
cada, o Magasin d’Éducation et de Récréation é mais rico em imagens, mais legível e
fácil de manusear secomparado ao Semaine des enfants. Os números lançados
quinzenalmente recebiam uma paginação específica para se transformarem em volumes
ao final de um semestre com o objetivo de compor uma biblioteca, formando, assim, a
Bibliothèque d’Éducation et de Récréation – projeto mais amplo da editora de Hetzel
voltado para a reunião de obras para o público jovem.
O Magasin d’Éducation et de Récréation é, portanto, um prescritor de produtos e
bens culturais, isto é, para P.-J. Hetzel, criarum periódico com a finalidade de compor
uma “Biblioteca” é um indício que revela seu investimento no mercado dos bens
simbólicos. Isso configuraria um traço de originalidade da revista em relação às outras do
“La Semaine des Enfants, destinée à amuser ses jeunes lecteurs en les instruisant, excitera vivement leur
curiosité par des récits intéressants et par de belles gravures, et fera ainsi tourner leur ardeur pour le plaisir
au profit d’un enseignement, très-élémentaire sans doute, mais utile pour le présent et fécond pour l’avenir.
Dans nos récits, tout sera simple, tout sera court, et tout aussi sera amusant; mais en même temps, tout sera
instructif et surtout moral et tendra à faire pénétrer insensiblement dans les jeunes coeurs l’amour de la
religion et de la vertu.”“Aux pères et aux mères de famille” La Semaine des enfants. Magasin d'images et
de lectures amusantes et instructives, nº1, 1er semestre. Paris: Hachette, 1857, p. 2.
129
Aproximadamente 24€.
128
68
gênero. Híbrido de revista e livro, a revista-vitrine propõe aos jovens leitores ter acesso a
uma diversidade de textos norteados pelos princípios da Educação-Recreação com a
intenção não só de enriquecer as bibliotecas com os fascículos reunidos no fim de cada
semestre, mas também de inscrever-secomo um aparelho de promoção de uma gama de
produtos editoriais da “marca” P.-J. Hetzel et Cie., na medida em que os textos publicados
na revista, inclusive aqueles de Jules Verne, constituíam um acervo de referência
destinado a compor um conjunto maior: a Collection Hetzel.
Se a preocupação com a estrutura material da revista-vitrine está ligada à
promoção da Coleção Hetzel, o mesmo acontece com a estrutura intelectual do periódico.
Este outro ponto original do Magasin d’Éducation et de Récréation é configurado desde
o momento da realização da sociedade entre Hetzel e Macé. A associação dos dois
subordina a sinergia de obras literárias e de informação histórica e científica a uma
distribuição dos textos de acordo com as rubricas “Educação” e “Recreação” do
periódico. Os talentos de moralista levam Hetzel, com o pseudônimo de P.-J. Stahl, a
ocupar o terreno da literatura recreativa enquanto o espaço reservado para o pedagogo
Jean Macé será o educativo. Esta rubrica que reunirátextos de vulgarização científica ao
longo dos anos de existência da revista será aquela na qual Jules Verne terá alguns de
seus romances publicados em fascículo.
Será o contrato de publicação de Voyage en l’air, cujo título original se
transformará em Cinq semaines en ballon à época da publicação (ver 6.1.1), que permitirá
ao editor pensar ter descoberto um escritor com autoridade enunciativa suficiente para a
escrita de textos de base histórico-científica à altura das pretensões da revista, auxiliando,
assim, Macé na rubrica do educativo. Em 23 de outubro de 1862, pouco mais de um ano
antes do lançamento do magazine de Hetzel, Jules Verne assina o contrato para publicar
o manuscrito. No documento, Pierre-Jules Hetzel prevê imprimir dois mil exemplares no
formato in-18, não ilustrado, e pagar a Jules Verne quinhentos francos (vinte e cinco
centavos por volume) pelos direitos do autor. No caso de reedições, estas não devendo
ser inferiores a mil exemplares, Hetzel recalcularia o valor do exemplar pago a Verne.
Por conta dos preços e gastos mais elevados para a produção de futuras edições ilustradas,
os direitos do autor seriam acrescidos de 5%.130 A publicação e o sucesso do romance,
em 1863, revela Verne, portanto, como um autor digno em auxiliar Macé na rubrica. Essa
130
Essas informações resumem duas páginas do contrato que pode ser encontrado na BNF, Dépt. de
manuscrits, Archives Hetzel, dossier “Contrats, reçus et pièces comptables”, NAF 17007, fº1.
69
foi a porta de entrada de Jules Verne para a editora de Hetzel. O encontro com Jules Verne
tem, portanto, papel crucial no processo genético do Magasin d’Éducation et de
Récréation pela coesão que Verne trará unindo-se à direção da revista e pela coerência
que as potencialidades da sua literatura conferirão à estratégia editorial de P.-J. Hetzel.
Jules Verne adere ao projeto de Hetzel e, como sabemos, escreverá toda sua obra apoiada
nesse perfil.
Fig. 13. Página de apresentação dos colaboradores do Magasin, em 1864
Questionamo-nos, inicialmente, sobre uma possível incongruência na colaboração
de Verne para esta “obra de família”, como descrito no Prospecto que abordamos, a ponto
de gerar um posicionamento paradoxal e, portanto, conflitante para o escritor no campo
literário. O problema consistiria no confronto entre um potencial posicionamento de
Verne, em um momento em que havia concluído a escrita de Paris au XXe siècle (18601861) - romance que denuncia a incursão da ciência e dos adventos tecnológicos na
literatura, e seu efetivo posicionamento quando publica Cinq semaines en ballon e aceita
compor, em seguida, a rubrica educativa e de vulgarização científica da revista de Hetzel
(1863-1864). Esse possível posicionamento paradoxal nos levaria a atribuir a Jules Verne
uma posição de vítima das coerções do seu editor, o que é frequentemente difundido entre
especialistas. Ainda que essa visão se apresente como possível para nós, a vemos com
cautela.
Havíamos considerado a possibilidade de que o primeiro romance publicado de
Jules Verne, Cinq semaines en ballon, pudesse estar isento, em alguma medida, das
coerções ideológicas de Hetzel fixadas para a revista e estendidas, posteriormente, à toda
a sua obra. Isso se deveria ao fato de que este é um romance anterior ao projeto do
70
Magasin e, portanto, o único publicado diretamente em volume, integrando a posteriori
o conjunto das Viagens extraordinárias. No entanto, como vimos, após alguns anos de
tentativas de ocupar um lugar no campo literário, testando diferentes gêneros, Jules
Verne, com as novelas publicadas no Musée des familles, já apresentava a tendência
literária que seria “descoberta” e explorada por Hetzel. Além dessa evidência, o breve
catálogo de Hetzel descrito na carta de Émile Aucante proposto pouco tempo antes da
ruptura da sociedade Hetzel-Lévy, no qual figura o romance, permite-nos notar de que
maneira a relação entre escritor e editor para a publicação desse manuscrito se integra às
estratégias de Hetzel e às coerções ideológicas da sua editora, o que invalida nossa
consideração.
Ainda que não seja extenso diante das obras publicadas por Hetzel em torno de
1860, esse catálogo prova as opções do editor que seleciona autores de acordo com seus
investimentos nos gêneros narrativos adaptados ao desenvolvimento de sua editora em
direção à literatura para jovens. Na lista enviada para seu sócio, Hetzel diversifica as obras
apresentadas. Ora propõe textos para o público jovem como l’Histoire d’une bouchée de
pain e Quelques contes du petit château de Jean Macé, ou Les Aventures d’un petit
parisien, de Alphonse de Bréhat; ora textos que não se limitam somente em promover
uma literatura didática, como por exemplo o romance Maître Daniel Rock, de Emile
Erckmann-Chatrian, que traz reflexões sobre os problemas sociais do progresso. Ainda
assim, essa lista se harmoniza com os princípios do Magasin d’Éducation et de
Récréation cujo objetivo declarado no editorial era “transmitir um ensino de família”.
Portanto, o romance Cinq semaines en ballon já integraria o projeto de Hetzel mesmo
antes do Magasin d’Éducation et de Récréation existir. Uma carta de Jean Macé para
Hetzel, datada de janeiro de 1863, na qual elogia o romance de Verne, também nos auxilia
chegar a essa conclusão: “Leio para as crianças o livro que as diverte muito. Todas estão
com seus atlas abertos e nós acompanhamos no mapa. É a verdadeira maneira de ler o
livro e, desse modo, o interesse por ele dobra”.131
Não obstante sua orientação não exclusiva para um público leitor específico, Cinq
semaines en ballon não escapará à regra, portanto, por fazer parte desta lista de referências
que pretende atender às famílias enquanto romance científico mesclado com o discurso
didático. O catálogo da carta de Émile Aucante nos auxilia a definir que esse momento
“Je lis aux enfants le livre qui les amuse beaucoup. Elles ont toutes leurs atlas ouverts et nous suivons
sur la carte. C’est la vraie manière de lire cela, et l’intérêt en est doublé.” (Carta do 30 de janeiro de 1863).
BNF, Dépt. de manuscrits, archives Hetzel, dossier “Correspondance Macé-Hetzel”, I, NAF 16073, fº117.
131
71
da trajetória do escritor no campo literário confirma a existência de uma intenção prévia
que leva progressivamente Hetzel a impor a Jules Verne um posicionamento coercitivo
no campo literário em função da sua própria interpretação do jogo de lutas entre polos
antagonistas, em proveito da “utilidade da literatura”.
Além do discurso paratextual do prospecto e da apresentação publicitária dos
nomes que compõem o ethos da revista, cada qual ocupando uma rubrica diferente no
periódico, o posicionamento de Jules Verne no campo literário é ainda reforçado quando
da publicação do “Avis de l’éditeur” (ver 6.2.2). O paratexto informa sobre a composição
de uma equipe de redação que estabelece uma hierarquia entre os diversos escritores,
importante para a definição do lugar e do papel atribuído a cada um dentro dessa
cenografia enunciativa:
Comentário do editor
Nós também não teríamos empreendido esta tarefa verdadeiramente
inquietante de publicar esta coleção para a infância e a juventude, se
não tivéssemos contado com a colaboração exclusiva e preciosa do
autor de l’Histoire d’une bouchée de pain, dos Contes e do Théâtre du
petit château, de l’Arithmétique du Grand-Papa; se o jovem e amável
erudito que escreveu Cinq Semaines en ballon, Sr. Jules Verne, não nos
tivesse, como o Sr. Macé, assegurado sua colaboração por longos anos;
se o editor, Sr. Hetzel, não tivesse sido fortemente encorajado, que nos
seja permitido dizê-lo, pelo autor, Sr. Stahl; se ilustres membros do
Instituto, eminentes professores, se distintos escritores, uns já célebres,
outros dignos de se tornarem, para a parte Recreação, não nos tivessem
trazido o apoio indispensável de suas luzes e de seus talentos; se, enfim,
artistas devotados à nossa ideia, uns já apreciados, como o Sr. Froment,
o Sr. Froelich, por suas requintadas habilidades de reproduzirem cenas
da infância e da juventude, outros completamente novos, o que também
tem seu valor, não nos tivessem dado de antemão séries de desenhos
refinados, castos e charmosos, alegres e agradáveis ao mesmo tempo,
cujo sucesso não poderia nos parecer contestável.
O editor
Aqui, o sucesso de Cinq semaines en ballon sugere a popularidade do nome de
Verne entre as famílias, confirmando-opara ocupar o lugar de colaborador da revista que
pressupõe a imagem de um escritor savant que trabalha em prol da instrução da infância
e da juventude. Qualificado como escritor “jovem e amável erudito”, Verne é, portanto,
incluído no corpo organizador do magazine enquanto representante do “romance
científico” na área Educação, parte em que se concentram os textos de vulgarização
científica, o que convém ao plano de difusão enciclopédica de Hetzel, marca do Magasin
d’Éducation et de Récréation.
72
Nesse capítulo, procuramos mostrar como duas trajetórias se cruzaram e como, a
partir de uma interseção de interesses mútuos, definiram-se as bases para a carreira
romanesca de Jules Verne. Distando da perspectiva de “Hetzel descobridor de Jules
Verne”, apresentamos que o escritor já trazia consigo o interesse pelo interdiscurso
científico nas obras literárias desde as novelas publicadas no Musée des familles, quando
ficcionalizava baseando-se em relatos reais de viajantes, o que serviu como meio seguro
para atrair o editor. Depois de um processo que passará, inclusive, por negociações que
envolvem o literário e o econômico, a principal diferença que o escritor irá apresentar
depois do encontro com o editor é a aceitação em participar do projeto ideológico editorial
de Hetzel que prevê, entre outros, a exaltação da ciência e da tecnologia através de uma
literatura escrita pelas vias do didático. Nesta Tese, caracterizamos o abandono de uma
tendência literária romântica da parte de Verne e sua entrada nos modelos literários de
didatização da ciência, assegurados pelo envelhecimento social do escritor, como um
processo que chamaremos de “hetzelização” de Jules Verne.
3.3 A hetzelização de Jules Verne
Após o primeiro contrato que define a publicação de Cinq semaines en ballon,
Jules Verne é pouco a pouco inserido, não sem seu próprio consentimento, nas vias do
romance didático, uma vez que o científico já se apresentara em Jules Verne sendo,
inclusive, o motivo pelo qual ele chama a atenção do editor. Assumindo esse
posicionamento, o escritor não poderá escapar à contaminação da sua criação literária
pelos traços do instrutivo e do divertido, próprios à definição de P.-J. Hetzel da literatura
para jovens. Além de ser qualificado como erudito, como vimos, e de ser designado para
a seção “Educação” do magazine de Hetzel, o discurso que vincula o escritor a uma
colaboração contratual exclusiva “por longos anos” é sintomático. Certamente, essa
projeção a longo prazo assegura ao público assinante da revista a longevidade da
sociedade editorial cuja ambição pedagógica supõe a perenidade de uma equipe de
redação capaz de orientar a revista. Questionamo-nos, assim, se a justificativa editorial
da divisão das responsabilidades é suficiente para atender aos anseios do romancista, cujo
objetivo no campo literário não visava intencionalmente posicioná-lo como um savant
écrivain. De fato, os outros romances de Verne serão publicados no mesmo gênero do
romance Cinq Semaines en ballon, como reza o seu segundo contrato (ver 6.1.2).
73
O contrato de 11 de dezembro de 1865132 (ver 6.1.3) é o divisor de águas na
carreira de Jules Verne. Ele define seis anos de engajamento com a editora a contar do
dia 1º de janeiro de 1866 (o que se estenderá por mais de quarenta anos, com sucessivas
renovações). No artigo segundo do contrato, o editor exige do escritor “três volumes por
ano escritos no mesmo gênero dos romances precedentes (Cinq semaines en ballon e Les
voyages et aventures du capitaine Hatteras), e ainda assinados com o mesmo nome de
autor, feitos para o mesmo público e tendo a mesma extensão”. Pagando ao autor o valor
de três mil francos por cada volume ou setecentos e cinquenta francos mensais, o que
perfaz o total de nove mil francos por ano, Hetzel se autoriza a publicá-los “nos jornais
que melhor lhe convier, com ou sem ilustrações”. O artigo terceiro prevê que cada volume
será propriedade exclusiva da editora de Hetzel pelos dez anos que seguem a contar da
sua data de publicação. Sobre as edições ilustradas, o artigo quarto, que faz referência às
gravuras, prevê que as ilustrações dos romances de Jules Verne poderiam ser reutilizadas
pelo editor. Com essa cláusula, Hetzel poderia republicá-las como e onde melhor lhe
conviesse, de acordo com esclarecimentos do Professor Jean-Yves Mollier, sem ter que
incluir Verne na transação.
O contrato de 1865, proíbe Verne de “publicar qualquer outra obra, em qualquer
outro veículo, suporte ou editora sem o consentimento de Pierre-Jules Hetzel.” No que
diz respeito às novelas que Verne publicou no periódico Musée des familles, a última
cláusula é definitiva: o editor deixa claro que o autor ainda poderá publicar uma por ano,
se assim o desejar; no entanto, só poderão ser republicadas ou serem objeto de um volume
se o forem pela editora Hetzel. Tendo comprado a propriedade dos romances anteriores a
esse contrato por cinco mil e quinhentos francos, em 1865, Hetzel garante para sua editora
o poder total sobre a produção de Jules Verne, enquanto este se beneficia de uma quantia
fixa por volume.
O contrato de 1865 será renovado em 1868, antes mesmo do seu término, que
deveria ser em 1871. Esse documento não existe nos arquivos manuscritos da BNF. Só
sabemos dessa informação através de um contrato-resumo datado de 1875. Nesse
documento, cujo conteúdo transcrevemos no item 6.1.4, Hetzel resumirá e acrescentará
cláusulas que guiarão o futuro da obra de Verne. Desse resumo em 1875, depreendemos
informações sobre negociações contratuais feitas entre o período de 1865 e 1875. Ora, o
contrato de 1875 menciona dois detalhes renegociados até aquele momento: em 1868,
O contrato pode ser consultado na BNF, Dépt. de manuscrits, Archives Hetzel, dossier “Contrats, reçus
et pièces comptables”, NAF 17007, fº17.
132
74
Verne passou a receber 10 mil francos anuais e, em 1871, passou a entregar anualmente
dois volumes ao invés de três, e a ganhar doze mil francos por esse acordo. Era da
preferência de Jules Verne receber o montante fixo por volume desde 1865 e não
depender dos valores aleatórios das vendas, o que poderia lhe garantir mais estabilidade
financeira.
Após esse resumo feito dos detalhes contratuais, Hetzel estabelece as projeções
que guiarão em definitivo a produção de Verne dos anos seguintes. A modificação
contratual mais considerável, entre 1865 e 1875, tange à maneira pela qual Hetzel pagará
Jules Verne. Afirmando estar desejoso em dividir lucros, Hetzel, argumenta que o escritor
deveria aproveitar da excelente vendagem de Le Tour du monde en 80 jours (1874)133 e
convence Verne a rescindir a cláusula de 1871 de receber um valor fixo pela entrega de
volumes. A partir de 1875, o escritor passa a receber somente por venda de exemplar.
Porém, o artigo 10 esclarece que nos dois primeiros anos dessa nova convenção firmada,
Jules Verne ainda receberá mais mil francos mensais. As informações adicionais desse
contrato de 1875 esmiuçam, ainda, os ganhos sobre essas vendas: em 1875, Hetzel, a
pedido de Jules Verne, anuncia um “acerto de contas” que será realizado em 1882 sobre
os volumes in-18 (volumes não ilustrados). Até então, em aproximadamente doze anos
de produção romanesca, Jules Verne não ganhava sobre as vendas desses volumes. A
rubrica “Règlement pour les oeuvres antérieures à ce jour non illustrées” prevê que
somente em 1882 Verne receberá cinquenta centavos por volume vendido do conjunto de
obras publicadas até aquele momento, isto é, 13 romances a contar de Cinq semaines en
Há alguns detalhes que devemos levar em conta para se definir o que foi um “best-seller” na carreira de
Jules Verne. As estatísticas de vendas das Viagens extraordinárias vão variar de acordo com, por exemplo,
o formato do volume (in-18 para as primeiras tiragens), se se inclui ou não nessa contagem as reimpressões
realizadas, ou ainda, se é levado em consideração o número das tiragens das famosas edições ilustradas in8. Isso sem contar com a pré-publicação em folhetim em jornais, caso de Le Tour du monde em 80 jours
que foi publicado, em 1872, no jornal Le Temps, ou no Magasin d'Éducation et de Récréation. Para tentar
chegar a uma resposta, diria que muitos romances de Verne poderiam ser considerados como best-sellers,
mas Le Tour du monde en 80 jours (1873), Cinq semaines en ballon (1863) e Vingt mille lieues sous les
mers (1871) encabeçariam a lista. Martin Lyons que estudou os best-sellers do século XIX (CHARTIER
& MARTIN, 1985, p. 409-448), para seus estudos no ano de 1850. Excluindo os clássicos e os livros
escolares, Lyons cita como best-sellers Les trois mousquetaires, de Dumas, Le juif errant, de Sue e Histoire
des Girondins, de Lamartine, todos tendo tido como primeira edição algo em torno de 15 ou 20 mil
exemplares e em cinco anos, nada além de 35 mil. Para se ter uma ideia do sucesso de alguns romances de
Jules Verne, a primeira edição in-18 sem ilustração de Cinq semaines en ballon (1863) tem tiragem de 40
mil exemplares, Voyage au centre de la terre (1864) de 32 mil, Les aventures du Capitaine Hatteras (1866)
de 36 mil e Le Tour du monde em 80 jours de 121 mil exemplares. Usar os números desse último romance
como argumento foi suficiente para convencer Verne a rescindir com a cláusula que previa o recebimento
de um valor fixo pelos volumes escritos. Sobre as tiragens em Jules Verne remetemos a DEHS, Volker.
“Les tirages des éditions Hetzel: une mise au point” Revue Jules Verne. Amiens: Encrage éditions, nº5,
1998, p. 89-94. Este artigo é tomado como referência para responder sobre as estatísticas de venda dos
romances de Jules Verne.
133
75
ballon (1863) até L’île mystérieuse (1875). Concernente às obras futuras, ainda sobre os
volumes in-18, a nosso ver para não acumular débitos, o editor já iniciará o pagamento a
Verne dos mesmos cinquenta centavos por exemplar vendido a partir da publicação do
Courrier du Czar (1º volume de Michel Strogoff – 1876). O contrato reza ainda que sobre
as famosas edições ilustradas, Verne ganhará 5% do bruto dos primeiros vinte mil
exemplares vendidos e 10% sobre os outros e, ainda, ganhará 50% com a publicação em
revistas e jornais, na França e no estrangeiro.
A análise desses contratos nos permite perceber que, aos poucos, Verne se fideliza
à editora Hetzel. Dois períodos marcariam essa fidelização: de 1862 a 1865 com os
contratos para Cinq semaines en ballon e Voyages et aventures du capitaine Hatteras momento de testes da parte de Hetzel; e de 1865 a 1875, com os contratos de três volumes,
depois de dois volumes anuais. Em uma relação mútua, editor e escritor investem nos
potenciais um do outro, beneficiando-se dos resultados, cada qual com seu objetivo. A
análise desses contratos, na perspectiva da trajetória, evidencia que, em 1875, Jules Verne
já acumulou capitais financeiros e sobretudo simbólicos suficientes para fazer as
exigências que desejasse junto ao editor. Embora ambos tenham se beneficiado
financeiramente, fica claro que Jules Verne representou grandes lucros para a editora de
Hetzel, pelo menos pelo período aproximado de doze anos (1863 – 1875).
Entre esses dois momentos da fidelização de Verne à editora, temos de ressaltar
um aspecto. O primeiro momento é marcado ainda pela submissão do manuscrito de Paris
au XXe siècle. As cláusulas contratuais de 1865 encerram Verne, antes de tudo, em um
rítmo de escrita e gênero específicos. Esse fato está na base da discussão sobre a recusa
do romance Paris au XXe siècle. A crítica tem documentada a troca de correspondência
que envolve o manuscrito de Paris au XXe siècle que citamos, em parte. Sabe-se que foi
no ano de 1863 que se deu a recusa de publicação deste romance futurista avant la lettre.
Poderíamos inferir, portanto, que a discussão entre escritor e editor tenha estabelecido
uma relação circunstancial com a escrita e publicação do “Avis de l’éditeur”, acima
citado.
Caso pudesse ser confirmada, essa hipótese permitiria situar no eixo diacrônico o
traço genético do “Avis” relativo a essa discussão ocorrida no fim de 1863, considerando
como limite cronológico da redação do paratexto a data do lançamento do Magasin
d’Éducation et de Récréation - 20 de março de 1864. Assim, no período de três meses,
aproximadamente, definiu-se o futuro literário de Jules Verne. As repercussões da crítica
ferrenha que Hetzel faz ao romance e ao escritor não provam a anterioridade do seu
76
“Avis” em relação ao envio do manuscrito de Paris au XXe siècle. Ainda que escrito nesse
período de tensão, a redação pode ter sido interrompida quando Jules Verne finalmente
aceita abandonar a escrita no gênero do romance visionário para tomar um
posicionamento literário adaptado à estratégia de promoção de uma literatura para jovens
através do canal de uma revista de vulgarização literário-científica. Endossando sua
colaboração na rubrica didática do periódico de Hetzel, o argumento anunciado no “Avis
de l’éditeur” (ver 6.2.2) adverte também Verne de que ele não pode mais ignorar as regras
coercitivas às quais estará ligado por seu contrato de exclusividade com a editora Hetzel,
a partir de 1865. A publicação em fascículo de Les Anglais au Pôle Nord – primeira parte
do romance Voyages et aventures du capitaine Hatteras, em 1864, no primeiro número
do Magasin d’Éducation et de Récréation, é o primeiro sinal de fidelidade do romancista
às exigências do seu diretor literário. A tática de Hetzel foi produtiva, pois Jules Verne
entra neste sistema de razão prática que obedece às coibições do Magasin d’Éducation et
de Récréation. Contudo, só poderá se dar conta das implicações sobre sua criação literária
quando Hetzel finalizar sua lógica editorial, levando o romancista à gênese programática
do ciclo das Viagens extraordinárias, lançadas publicamente em 1867. Esse processo
complexo que se deu em meio a conflitos e negociações, que fez Jules Verne entrar em
um sistema do qual também se beneficiou, pode ser caracterizado como sua
“hetzelização”.
A ideia de uma hetzelização de Jules Verne deriva da leitura de um artigo escrito
por Michel Contat, escritor, cineasta e crítico literário, especialista entre outros, na obra
de Jean-Paul Sartre. “De «Melancholia» à La nausée: la normalisation NRF de la
Contingence”134 trata da trajetória da publicação do romance La Nausée, de Sartre, que,
inicialmente com o título “Melancholia”, foi submetido e recusado pelas edições NRF,
em 1936, mas aceito por Gaston Gallimard, em 1937. Na ocasião, Brice Parain,
encarregado na Gallimard para a publicação do livro, incita Sartre a excluir passagens de
inspiração “populista” e a suavizar partes do texto de cunho sexual. Sartre consente às
condições sugeridas, pois gostaria de ser publicado. Através de um retorno aos
manuscritos desse romance, Michel Contat, que editou as obras completas de Sartre para
a Bibliothèque de la Pléiade, em 1982, mostra que os cortes que dizem respeito à “estética
literária” foram feitos por Sartre com boa vontade. Contat chega a essa conclusão depois
CONTAT, Michel. “De “Melancholia” à La Nausée: la normalisation NRF de la Contingence”. Genesis,
n° 21, 2003, p. 75-94. Disponível no site do Institut de textes et manuscrits modernes (Item):
http://www.item.ens.fr/index.php?id=27113. Última consulta: 10/10/2015.
134
77
de analisar as correções feitas no manuscrito antes dos cortes do editor. No caso de Sartre,
segundo ele, parece impossível definir um “espírito NRF” por uma uniformidade no seu
estilo, mas não há dúvida que a obediência a uma certa estética exclui a publicação pela
Gallimard de textos que se oponham a essa estética difusa. Sartre, cedendo às injunções
da Gallimard, procede a uma relativa “gallimardização” de seu romance. Contat conclui
que, se o romance fosse publicado como seu autor o escreveu primeiramente, o texto
pareceria com uma obra compósita, mais barroca e mais original do que aquela que foi
finalmente publicada.
Observamos, em aspectos gerais, semelhança desse acontecimento com o caso de
Jules Verne e seu editor P.-J. Hetzel. Embora não sejam objetos de nossa análise, os
manuscritos dos romances de Jules Verne, organizados na casa-museu na cidade de
Nantes, guardam as marcas das muito discutidas intervenções do editor em sua obra. A
título de exemplo, afim de verificarmos em que nível se davam as “sugestões de correção”
nos textos de Verne, segue um fac-símile de uma página manuscrita que transcrevemos
em seguida.135 Trata-se do manuscrito de L’Île mystérieuse, publicado em volume em
1875, cujo título original era “Robinson”. Em 2 de fevereiro de 1873, em carta ao seu
editor, Verne presta conta do que está fazendo - verificando as últimas provas du “Tour
du monde” e remanejando o Pays des fourrures, e anuncia o “novo” título do romance:
Je suis tout entier au “Robinson”, ou pour mieux dire à L’Île
mystérieuse. [...] Ce sera un roman chimique. Je ménage avec le plus
grand soin l’intérêt dû à la présence ignorée du capitaine Nemo sur l’île,
de manière à voir un crescendo réussi, comme des caresses à une jolie
femme que l’on veut conduire où vous savez. Voici mon état de
situation au 2 février, et je vous le fais connaître.136
Observa-se como Hetzel intervém criticamente, na coluna da direita, espaço
frequentemente destinado às correções, e faz “sugestões” de modificação do texto:
135
Valemo-nos desse exemplo, mas poderíamos usar o manuscrito de qualquer outro romance de Verne exceto o de Cinq semaines en ballon, pois não existe manuscrito deste romance -, para mostrarmos em que
medida se dá a hetzelização de Jules Verne. Escolhemos este e não outro por tratar da incursão mais
polêmica do editor e, portanto, mais discutida entre especialistas da obra verniana.
136
VERNE, 1999, p. 189.
78
Fig. 14. Página do manuscrito de L’Île mystérieuse
Transcrevemos abaixo o fac-símile que trata da morte do capitão Nemo no
romance L’Île mystérieuse, em que o personagem reaparece, seis anos depois da
publicação de Vingt mille lieues sous les mers, e profere sua polêmica última frase.
Sublinhamos as incursões diretas do editor – marcadas em azul no texto, e sinalizamos
seus cortes:
79
La nuit était venue, bien qu’il fut impossible de s’en apercevoir dans
cette immense crypte, toujours éclairée par les feux électriques du
Nautilus. Aucun des colonsmais ni Cyrus Smith, ni ses compagnons
n’avaient songé à la quitter, ni à voir si la tempête se déchaînait au
dehors, si les feux du mont Franklin s’élevaient se déchaînait au
dehors! Ils étaient là comme s’ils avaient enfouis profondément dans
les entrailles du globe./Le capitaine Nemo s’affaiblissait de plus en plus
ne souffrait pas, mais il déclinait. Sa belle et noble noble figure, pâlie
par les approches de la mort, était calme. [...] Une ou deux fois encore,
il adressa la parole aux colons rangés près de lui, et qui l’observaient
dans un douloureux silence. Il leur souriait de ce dernier sourire qui se
continue presque dans la mort. [...] Puis, murmurant ces mots :
« Indépendance », «Dieu et Patrie!» il expira doucement, sans agonie,
sans que son visage ne décèle même une souffrance / Cyrus Smith,
s’inclinant alors, ferma les yeux de celui qui avait été « le prince
Dakkar » de ce grand patriote indien, de celui qi fut le capitaine Nemo
et qui n’était même plus le capitaine Nemo.
Harbert et Pencroff pleuraient. Ayrton essuyait une larme
furtive. Nab était à genoux près du reporter, changé en statue.
Cyrus Smith, élevant la main au-dessus de la tête du mort:
«Que Dieu ait son âme!» dit-il, et, se retournant vers ses amis,
il ajouta:
«Prions pour celui que nous avons perdu!»
-----------------------------------------------------------------------------------------------Quelques heures après les colons remplissaient la promesse
faite au capitaine.
A palavra-chave, não somente dessa cena, mas de toda existência do capitão Nemo
é “Indépendance!”. Embora seja a modificação mais discutida de um texto de Jules Verne,
William Butcher acusa os especialistas de nunca terem analisado essa correção
minuciosamente. Em seu recente estudo sobre os manuscritos vernianos, Butcher afirma
que essa mesma moral já está inserida nos subtítulos do capítulo XVII desse romance.137
O especialista diz que, de fato, no momento da passagem a limpo do manuscrito, o bloco
gráfico guarda essa mesma proclamação “Indépendance!”, mas tem ainda uma rasura a
lápis, feita pelo editor, seguida de uma espessa rasura azul autógrafa. Na margem, vê-se
a nova versão em tinta azul - “Dieu et Patrie”-, escrita por Verne e sobreposta a uma
versão aparentemente editorial, a lápis, quase completamente apagada. Butcher reitera
que quem corrige - certamente o editor -, também modifica a lápis os vocábulos “ce mot”
para “ces mots”, o que ainda é possível notar.138
Ora, tal modificação feita por Hetzel surpreende o leitor atento da obra verniana
pela incoerência revelada. Em Vingt mille lieues sous les mers, Nemo passa a vida a se
137
138
BUTCHER, William. Jules Verne inédit: les manuscrits déchiffrés. Lyon: ENS éditions, 2015, p. 342.
BUTCHER, 2015, p.342.
80
opor ao patriotismo, definindo-se por sua qualidade moderna de exilado universal, de
apátrida ou de cidadão do mundo. A incoerência se intensifica quando o personagem
menciona Deus. Tendo sua nacionalidade indiana revelada em L’Île mystérieuse, é pouco
provável que o personagem acreditasse em um só Deus. Diante das incursões de Hetzel,
Verne não se sente capaz de resistir e renuncia em tentar manter uma coerência em seu
personagem. Verne cede à edição de Hetzel, como inúmeras vezes fará, assim como
Sartre à Gallimard, em 1937.
Esse não é o primeiro aspecto de uma “hetzelização” de Verne. Aproximamos a
situação de Verne do caso de Sartre pois este, na passagem de “Melancholia” a La nausée,
fez sacrifícios para adotar o que Michel Contat qualifica como “escrita NRF”. Para Sartre,
esse foi o primeiro passo para se responsabilizar em um engajamento NRF; para Verne,
em 1875, essa foi apenas mais uma concessão. Sua “hetzelização” já havia acontecido e
os traços se confirmam na medida do tempo.
A primeira disposição para essa normatização se dá quando Verne assina o
contrato de 1865 que o encerra em publicações escritas dentro de um gênero, tema e
ritmos de escrita específicos, produzidas para um público bem definido, como afirmamos
no fim do item anterior e pudemos confrontar com a transcrição em 6.1.3. Sob esse
contrato, Jules Verne se engaja por seis anos e ganhará os três mil francos por volume até
o ano de 1868, quando terá o contrato revisto, passando a ganhar dez mil francos anuais.
Embora já tivesse incursionado no gênero da narrativa de viagem antes de 1865, data do
contrato, é com esse documento jurídico que essa opção literária se define como uma
imposição editorial a Jules Verne. Se existe um traço que reúna todos os romances de
Verne em um único conjunto, este traço é o tema da viagem.
A segunda evidência vem de maneira a reiterar a primeira. Em 1867, no
“Avertissement de l’éditeur” (ver 6.2.3) do Magasin d’Éducation et de Récréation,
institui o nome do conjunto da obra que ainda escreverá e “relembra” Jules Verne das
suas obrigações contratuais, distanciando-o de uma vez por todas de qualquer tentativa
de aproximação dos preceitos da “arte pela arte”, ou das opções estéticas ensaiadas no
início de sua trajetória, sobretudo as de traços românticos, que se apresentam em sua obra
teatral e novelística insistindo, assim, no caráter didático e útil que sua obra deverá ter:
Os críticos mais autorizados saudaram no senhor Jules Verne um
escritor de um temperamento excepcional, ao qual, desde seu início, era
justo designar um lugar de destaque nas letras francesas. Ele criou um
novo gênero. O que se promete com frequência, o que se dá raramente,
a instrução que diverte, o divertimento que instrui, o senhor Jules Verne
o prodigaliza sem economizar em cada uma das páginas de suas
81
narrativas emocionantes. Os romances do senhor Jules Verne
chegaram, aliás, ao ápice. Quando se vê o público se apressar em correr
para as conferências que se abriram em mil pontos da França, quando
se vê que ao lado dos críticos de arte e de teatro foi necessário dar lugar
nos jornais aos boletins da Academia de Ciências, é necessário dizer
que a arte pela arte não é mais suficiente na nossa época e que a hora
chegou em que a ciência tem seu espaço feito na literatura. O mérito do
senhor Jules Verne é de ter sido o primeiro a colocar os pés nessa nova
terra. As novas obras do senhor Jules Verne virão somar-se
sucessivamente a essa edição que nós teremos o cuidado de manter
informada. As obras publicadas e aquelas a serem publicadas
englobarão assim, no seu conjunto, o plano a que se propôs o autor
quando ele deu como subtítulo da sua obra aquele de Viagens
extraordinárias aos mundos conhecidos e desconhecidos. Seu objetivo
é, com efeito, resumir todos os conhecimentos geográficos, geológicos,
físicos, astronômicos reunidos pela ciência moderna e refazer, sob a
forma atraente e pitoresca que a caracteriza, a história do universo.
Conscientes da distância temporal e das diferentes relações que têm com os pares
no campo, ambos os casos - a “hetzelização” de Verne e a gallimardização de Sartre operam na mesma lógica e têm o mesmo motivo gerador: sem a conformação dos
manuscritos, seja os de Verne à editora Hetzel ou os de Sartre aos padrões Gallimard, eles
não teriam sido editados, pelo menos não pelas editoras que se incumbiram desse
trabalho, e suas carreiras nas Letras, portanto, teriam tomado um outro rumo. Jules Verne
e Jean-Paul Sartre fazem suas entradas em suas respectivas editoras polindo seu estilo,
atenuando seus textos, modificando ou suprimindo alguns elementos narrativos afim de
modificar sua tonalidade, adequando os textos aos padrões desejados por seus editores.
No caso de Verne, uma outra injunção é ainda focalizada: o escritor não pode se desviar
daquela estética prescrita para os colaboradores do Magasin d’Éducation et de Récreation
ou do monumento “Collection Hetzel”. Para se tornar um escritor reconhecido com largo
capital simbólio e, por que não dizer, financeiro, como o desejava, Jules Verne cede às
condições que lhe foram apresentadas como condição sine qua non para obter
reconhecimento no campo. O sentido de responsabilidade e confirmação de engajamento
se apresentam a Verne quando, definitivamente, obtem sucesso com a venda de seus
romances; ele “cria um novo gênero”, como atesta a apresentação-programa que citamos
acima, e adquire aura de celebridade criada em torno do seu nome de autor.
Coube-nos perguntar se Jules Verne é completamente dependente e servidor do
seu editor, cedendo à ciência e à literatura industrial139 em detrimento da arte burguesa
139
Referimo-nos à categoria mencionada por Sainte-Beuve, em 1839, na Revue des Deux mondes, em artigo
em que constata a coexistência de duas literaturas em posição desigual: uma comercial e outra “expressão
82
ou da arte pela arte, para voltarmos à tríade de Bourdieu. É nossa hipótese nesta Tese que,
mesmo que sua “hetzelização” pareça se dar sem nenhum sentido crítico, é com plena
consciência que o escritor traça sua trajetória de sucesso em associação com seu editor,
pois Jules Verne logrou construir uma carreira sólida e internacional, ainda em vida,
provando que sua união com Hetzel foi fundamental para a construção de seu nome de
autor. A maior parte de sua obra - a mais conhecida e difundida - não pode ser entendida
sem a presença de Pierre-Jules Hetzel. No entanto, ainda assim, parece-nos que Verne
deixa transparecer aqui e ali nas Viagens extraordinárias - mas talvez inconscientemente
– seus valores de escritor romântico tardio da primeira fase de sua trajetória. Essas
manifestações podem ser verificadas nas representações da arte e do artista presentes na
sua obra.
delicada de talento própria a engendrar monumentos”, para citar suas palavras. Cf. SAINTE-BEUVE,
Charles-Augustin. “De la littérature industrielle ». Revue des Deux mondes, T.19, 1839.
83
4- AS REPRESENTAÇÕES DA ARTE E
POSICIONAMENTOS NO CAMPO LITERÁRIO
DO
ARTISTA:
Ao decidirmos estudar as representações da arte e do artista presentes na obra de
Jules Verne, selecionamos de seus trabalhos aqueles que apresentam dados para essa
discussão. Trataremos de desvelar as concepções artísticas que compõem o projeto
estético de Verne e, portanto, estão vinculadas às tentativas de posicionamento no campo
literário. Com esse objetivo, realizaremos um breve estudo das comédias La Guimard e
Monna Lisa e das referências metapicturais presentes nessas peças. Apresentaremos
igualmente análises da crítica do Salão de 1857, escrita por Jules Verne e publicada em
2008 pelo pesquisador William Butcher. Gênero que se situa entre os discursos literário
e pictórico, a crítica de arte de Verne será analisada a fim de identificarmos possíveis
afinidades com as representações artísticas presentes na obra romanesca do autor.
Priorizaremos, em um terceiro item, as representações artísticas presentes na sua
obra romanesca: o lugar da literatura em Paris au XXe siècle e a paratopia do personagem
poeta do romance; o salão-museu de Nemo, personagem esteta e capitão do submarino
Nautilus que figura no romance Vingt mille lieues sous les mers (1870); e os personagens
pintores de Le Rayon vert (1882) e Le secret de Wilhelm Storitz (1910). Para todas as
discussões, basearemos nossas análises na teoria do campo de Bourdieu, nos estudos de
Análise do Discurso de Dominique Maingueneau ao qual se une Liliane Louvel com
apropostados graus de picturalidade de uma passagem descritiva.
4.1 As comédias La Guimard e Monna Lisa
Na sua carreira, a vertente de autor dramático que Jules Verne incarna é uma das
mais desconhecidas da sua trajetória no campo literário francês e, no entanto, bastante
prolífica. Desde 1845,Verne tenta, durante aproximadamente quinze anos, se assemelhar
a Victor Hugo, Alfred de Musset ou a Alexandre Dumas na cena parisiense. Dramas
históricos, comédias sentimentais e de costumes e vaudevilles atestam as primeiras
tentativas de Verne de entrada no campo literário. Podemos afirmar que essa via literária
permite-lhe exercitar seu estilo, aceitando as coerções dos gêneros e do campo literários
à época e elaborando, assim, estratégias deescrita literária das quais se apropriará.
84
Listamos abaixo a produção dramática do autor com todas as informações que
possuímos. As datas dos textos remetem à época da sua escrita:
Título da peça
Ano da escrita
Encenação
La conspiration des poudres
1846
Un drame sous Louis XV
1846
Alexandre VI
1846-1847
Le quart d’heure de Rabelais
1847
Une promenade en mer
1847
Don Galaor
1847
Les pailles rompues
1849
Le coq de bruyère
Abd’allah
1849
1849
On a souvent besoin qu’un
plus petit que soi
La mille et deuxième nuit
1849
Tragédia em versos, cinco
atos. (Não encenada)
Tragédia em versos, cinco
atos. (Não encenada)
Drama em versos, cinco atos.
(Não encenada)
Comédia em versos, um ato.
(Não encenada)
Vaudeville, um ato. (Não
encenada)
Sinopse de comédia, um ato.
(Não encenada)
Comédia em versos, um ato.
(Encenada doze vezes no
Théâtre Historique em
jun/1850)
Sinopse. (Não encenada)
Vaudeville, dois atos. (Não
encenada)
Sinopse. (Não encenada)
Quiridine et quidinerit
1850
La Guimard
1850
Les savants
1851
Les fiancés Bretons
De Charybde en Scylla
1851
1851
Monna Lisa
1851
Les châteaux en Californie,
ou Pierre qui roule n’amasse
pas mousse
1851
La Tour de Montlhéry
1852
Le Colin-Maillard
1852
1850
Peça em versos, um ato. (Não
encenada)
Comédia em versos, três
atos. (Não encenada)
Comédia, dois atos. (Não
encenada)
Comédia, três atos. Texto
perdido
Texto perdido
Comédia, um ato. (Não
encenada)
Comédia em versos, um ato.
(Não encenada. Publicada em
L’Herne, 1974)
Comédia, um ato. (Não
encenada. Publicada no
magazine Musée des familles
Jun/1852)
Drama, cinco atos. (Não
encenada)
Ópera-cômica, um ato.
(Encenada quarenta e cinco
vezes no Théâtre Lyrique em
1853. Publicada no Boletim
da Sociedade Jules Verne BSJV, nº120)
85
Les Compagnons de la
Marjolaine
1852
Un fils adoptif
1853
Guerre aux tyrans
1854
Au bord de l’Adour
1855
Les heureux du jour
1856-57
Monsieur de Chimpanzé
1857
Onze jours de siège
1854-60
L’auberge des Ardennes
1859
Un neveu d’Amérique ou Les
deux Frontignac
1860
Les sabines
1867
Ópera-cômica, um ato.
(Encenada vinte e quatro
vezes no Théâtre-Lyrique em
1855)
Comédia. (Não encenada.
Publicada no BSJV, nº 143)
Comédia em versos, um ato.
(Não encenada)
Comédia em versos, um ato.
(Não encenada)
Comédia em versos, cinco
atos. (Não encenada)
Opereta, um ato. (Encenada
de 17 fev. a 3 mar. no
Théâtre des BouffesParisiens em 1858. Publicada
no BSJV nº57)
Comédia, três atos. (Uma
única apresentação em 1º de
junho de 1861 no Théâtre
Vaudeville)
Ópera-cômica, um ato.
(Única apresentação em 1 de
setembro de 1860 no Théâtre
Lyrique)
Comédia, três atos.
(Encenada por dois meses no
Théâtre Cluny, em 1873.
Publicada por Hetzel junto
com o romance Clovis
Dardentor)
Opereta-cômica, três atos
(Não encenada, somente o
primeiro ato existe)
Em 26 de janeiro de 1851, Jules Verne, aos vinte e três anos, tendo abandonado
os estudos em Direito, anuncia mais uma vez à sua mãe sua vontade de se lançar no
mundo da literatura: “Ne croyez pas que je m’amuse ici, mais il y a une fatalité qui m’y
cloue; je puis faire un bon littérateur, et ne serais qu’un mauvais avocat, ne voyant dans
toutes choses que le côté comique et la forme artistique, et ne prenant pas la réalité
sérieuse des objets”.140Com um argumento peremptório, o jovem Verne não hesita em
apresentar suas ambições literárias como uma “fatalidade”.
Os textos La Guimard e Monna Lisa fazem parte dos primeiros resultados dessa
“fatalidade”. Assim como La Guimard, a comédia Monna Lisa tem suas consequências
140
VERNE, 1988, p. 285.
86
sobre a poética de Jules Verne no sinuoso percurso literário que o levou dos dramas
românticos e comédias à escrita das Viagens extraordinárias.
De imediato, podemos afirmar que a conscientização dessa “fatalidade” por parte
de Verne procede de uma reflexão oportunista sobre a carreira literária. Butcher, em sua
biografia sobre o autor, observa que, logo na sua chegada em Paris, Verne se dedica à
escrita de dramas românticos inspirados em Victor Hugo em 1847 e 1848, e depois em
Alexandre Dumas.141 O biógrafo reitera que a evolução desta “inspiração” teatral em
Verne lhe foi ditada por uma preocupação comercial, sendo a veia dumasiana mais
propensa ao sucesso do que o modelo hugoliano. Essa é a mesma preocupação que o
jovem autor evoca, em carta ao seu pai, para justificar um posicionamento em favor da
comédia, naquele momento de sua trajetória:
C’est moi seul, qui voyant les difficultés créées par la censure ait (sic)
retiré le drame sous Louis XV: il y aurait certainement échoué; je verrai
à présenter la Conspiration des poudres ; mais je ne compte
aucunement sur ces œuvres, parce que ce sont des drames, et que les
drames littéraires ont vécu: néanmoins, ce n’est pas un travail perdu ;
ce que je ne puis faire recevoir maintenant, je l’imposerai plus tard.
Revenons donc à la comédie. Je mettrai Quidinerit en deux actes. J’ai
trois actes sérieux commencés de haute Comédie de mœurs. Voilà les
nouvelles littéraires.142
Observamos aqui uma lógica objetiva de estratégia literária e comercial. Butcher
sublinha que, nesse início de carreira, tudo acontece como se os insucessos dos primeiros
dramas ajudassem o aspirante a escritor a descobrir sua “verdadeira natureza na
literatura”,143 ou, para usar as palavras do próprio Verne, sua “fatalidade”. Mesmo
iniciando sua escrita dramática com duas tragédias em versos a partir de 1845, começam
a coexistir em Jules Verne as veias dramática e cômica em 1847 já que, além de La
conspiration des poudres, Verne havia redigido dois vaudevilles em um ato – Une
promenade en mer e Le quart d’heure de Rabelais –, assim como a sinopse de uma
comédia. Nos anos seguintes, entre outras, Verne escreve o vaudeville Abd’Allah e a
comédia em versos Quiridine et Quidinerit.
As doze representações da comédia Les Pailles rompues no palco do Théâtre
Historique de Alexandre Dumas, de 12 de janeiro a 25 de junho de 1850, contam
positivamente na escolha em realizar a manutenção no drama. O jovem escritor, ávido de
triunfo, encontra novas esperanças frequentando Alexandre Dumas Filho, autor de La
141
BUTCHER, 2006, p. 77-79.
VERNE, 1988, p. 285.
143
BUTCHER, 2006, p. 80.
142
87
dame aux Camélias e colaborador de Les Pailles rompues. A importância dessa
colaboração pode ser atestada por uma carta que Verne envia a seu pai, datada de 28 de
junho de 1850: “Je ne sais quand je pourrai t’envoyer Les Pailles rompues; il y a des
tracas pour l’impression du manuscrit ; on n’imprime guère les pièces en un acte ; et il est
important pour moi qu’elle le soit ; enfin A. Dumas s’est chargé de cette affaire”.144
Primeiro texto encenado, Les Pailles rompues, funciona, portanto, como um
verdadeiro impulso na carreira de Verne, autorizando a afirmação de seus talentos de
autor cômico. A partir daí, Verne só se envolve na escrita de um drama pela última vez
em 1852, com La Tour de Montlhéry.
O termo “fatalidade” que ora recuperamos de Verne se impõe também sobre o
autor. Jules Verne, que havia projetado obter sucesso escrevendo para um gênero já
reconhecido pela crítica e pelo público, como fizeram os grandes autores que admira, com
o sucesso da comédia Les Pailles rompues vê-se confrontado com uma realidade que o
distancia desse destino de “fracasso”. O rumo que essa peça segue aponta a aceitação do
autor da “moda literária” e a sujeição da sua criação a critérios comerciais – característica
do campo de força de que fala Bourdieu, em que o campo econômico se sobrepõe ao
campo literário.
Em torno de 1850-1852, Verne tem algumas poucas peças conhecidas por terem
sido encenadas ou publicadas. Como vimos acima no quadro das peças, Verne, sem muito
sucesso, teria encenado Les Pailles rompues, como dissemos, mas também Le ColinMaillard e Les Compagnons de la Marjolaine e publicado Les châteaux en Californie, ou
Pierre qui roule n’amasse pas mousse. A editora Le Cherche midi, publicou em Nantes
em 2005 a reunião desses textos dramáticos e outros em Théâtre inédit, arrolado na
bibliografia. Com essa publicação, tomamos conhecimento do texto de La Guimard
(1850) e relemos a peça Monna Lisa (1851) já publicada no caderno L’Herne, em 1974.
Para integrar o estudo da trajetória de Jules Verne no campo literário, enfocando o recorte
que pretendemos na Tese, não se poderia excluir a análise desses textos. Ambos trazem
referências picturais. Para La Guimard, Jules Verne insere como personagem o pintor
francês Jacques-Louis David e ambienta a peça em seu ateliê em 1775, um ano depois de
o pintor ser premiado, em Roma, pelo quadro Les Amours de Stratonice et d’Antiochius
(ver 6.3.1); para a peça Monna Lisa, as ações acontecem no ateliê do pintor Leonardo da
Vinci, desenrolam-se em Florença e têm como um dos personagens a senhora Joconda.
144
VERNE, 1988, p. 280.
88
Embora estejamos cientes da diferença entre a escrita em prosa para a primeira
peça citada, e em versos, para a segunda, aglutinamos os dois textos em um único item
em função da sua unidade temática e da sequencialidade de datas de elaboração: antes de
desenvolver a “ideia romântica e masoquista da recusa da felicidade em busca do
absoluto”,145 em Monna Lisa (1851), Jules Verne já havia se questionado em La Guimard
(1850) sobre o diálogo entre o amor e a arte e a complexidade da relação, amorosa para
ambos os casos, entre pintor e modelo.
Sabendo que a elaboração dessas peças acontece após o primeiro texto encenado
de Verne - Les Pailles rompues, estudaremos as estratégias vernianas para tentativa de se
manter, portanto, no campo literário. Para tanto, utilizaremos os conceitos de
posicionamento e cenografia enunciativa do texto literário extraídos dos trabalhos de
Dominique Maingueneau. Os estudos de Liliane Louvel que versam sobre os marcadores
de picturalidade nos permitirão orientar essa parte do trabalho em direção a um diálogo
intersemiótico entre literatura e pintura.
O texto La Guimard não é a primeira comédia em prosa de Jules Verne. Abd’Allah
já havia sido escrita, em 1849. A intriga de La Guimard gira em torno da relação que
existiu entre o pintor Jacques-Louis David (1748-1825) e Marie-Madeleine Guimard
(1743-1816), célebre dançarina da Ópera de Paris, a partir de 1762. Patrick Berthier
escreve, na breve explicação que acompanha a publicação dessa peça no já citado Théâtre
inédit, que a peça se situa no ano em que David ganha finalmente o prêmio de Roma,
depois de ter tentado quatro vezes. Pela legitimação que o prêmio lhe conferiu, JacquesLouis David retorna a Paris e é encarregado pela Senhora Guimard de terminar a
decoração de um cômodo de sua casa, iniciada e abandonada por Fragonard (1732-1806)
em 1775. Satisfeita com o resultado, a Senhora Guimard encomenda um retrato seu a
David146 (ver 6.3.2). Jules Verne inscreve a peça nessa cenografia. Na cronografia em que
a ação se desenrola, a Srª Guimard, com trinta e dois anos, é uma dançarina de balé da
Comédie Française desde 1759, e David, ainda que tenha obtido o Prêmio de Roma, é
pouco conhecido: está distante dez anos do seu primeiro triunfo – Le Serment des
Horaces, obra neoclássica, exposta do Salão de 1785 (ver 6.3.3).
145
Observação da especialista Agnès Marcetteau sobre essas duas peças de Jules Verne. MARCETTEAU,
Agnès. “Des aperçus nouveaux dans l’abyme du cœur. Œuvres dramatiques de Jules Verne conservées à la
Bibliothèque Municipale de Nantes”. Revue Jules Verne – Le théâtre de jeunesse. Amiens : Éditions du
Centre International Jules Verne, nº11, 1er semestre 2001, p. 27.
146
BERTHIER, Patrick. “Notice” In: VERNE, Jules. Théâtre inédit. Édition dirigée par Christian Robin.
Paris: 2005, p. 571.
89
A peça tem dois atos divididos em trinta e quatro cenas para oito personagens:
Jacques-Louis David, a Srª Guimard, Valentine, Rémy Sirésol, professor de dança de
cinquenta anos de idade, Sr. Vergy, de quarenta anos, Sr. D’Abrecourt, quarenta e cinco
anos, Chandas, 47 anos, e um tenente de polícia. Segundo a didascália, a peça tem como
topografia o ateliê do pintor:
Le théâtre représente un atelier de peinture de médiocre apparence. Des
toiles appuyées au mur; un grand tableau tournant le dos au public ; un
chevalet supportant un portrait de femme à demi terminé. Des chaises de
paille, à droite, au 2e plan, une porte vitrée ouvrant sur un cabinet - porte
au fond.147
A intriga dessa comédiaé relativamente simples: para que tenha seu retrato
pintado, a Senhora Guimard visita, regularmente, o ateliê do pintor. Na época, David está
apaixonado por Valentine, de quem Marie-Madeleine Guimard tem ciúmes. Tentando
uma relação com David, a Srª Guimard usa Chandas e Abrecourt, rivais de David e
adoradores de Guimard, como fantoches para conseguir o que deseja. A intriga se
complica quando o Senhor Vergy, membro-chefe do júri do Instituto, desejando ajustar
um casamento entre seu sobrinho e Valentine, torna-se aliado objetivo da Senhora
Guimard contra o amor de David.
Depois do intervalo que separa os dois atos, a Guimard parece afastar Valentine
de David que é “sequestrado” e, mesmo assim, com um desfecho bastante inverossímil e
pouco claro, ela mesma entrega Valentine ao pintor, contentando-se somente com o
prazer que a arte de David lhe proporciona.
Patrick Berthier afirma que não se conhecem precisamente as circunstâncias que
permitiram Verne se interessar por tal tema.148 O que se pode afirmar é que Jules Verne
está construindo sua carreira profissional dentro de um habitus romântico. Desde 1828,
Alfred de Musset, escritor romântico que Jules Verne homenageará no romance Paris au
XXe siècle, escreve uma peça em torno da famosa Marie-Anne de Camargo (1710-1770),
bailarina da geração precedente. Embora não encenada, Verne pode ter lido a peça
publicada em Contes d’Espagne et d’Italie (1829) ou na coleção Premières poésies
(1840). A peça de Musset, além de trazer para a cena a história real de uma dançarina,
primeiro ponto em comum com a peça de Verne, aborda o tema da angústia de uma
mulher que viu a juventude passar e que se questiona sobre o seu poder de sedução.
Quanto à Guimard, a personalidade ainda é evocada, mais tarde, por Théophile Gautier
147
148
VERNE, Jules. “La Guimard”, 2005, p. 575.
BERTHIER, Patrick. “Notice” In: VERNE, 2005, p. 572.
90
quando publica crítica à ópera Le Dieu et la Bayadère no folhetim do jornal La Presse,
em 1837. Discorrendo sobre a dançarina Louise Fitz James, Gauthier escreve: “ela é
magra como um lagarto, como uma minhoca da seda, mais magra que a famosa Senhorita
Guimard que vivia, no entanto, às custas do Senhor de Jarente;”149 evocada também por
Balzac, quando escreve sobre a fictícia dançarina Claudine e sua pomposa vida parisiense:
“Para encontrar analogias ao luxo que cintilava em sua casa, deve-se voltar aos belos dias
de Guimard, de Sophie Arnould, de Duthé que devoraram fortunas principescas”.150
Escolhendo tratar no teatro da vida da Srª Guimard, Jules Verne se inscreve na linha
daqueles que ilustram e alimentam a curiosidade do seu século por essas personalidades
míticas. No entanto, deve-se prestar atenção que, nesta peça, a Guimard, mesmo sendo a
personagem principal, divide o “estrelato” com David, por assim dizer, para quem o status
de “artista” tem também importância.
No início da peça, o leitor pode acreditar, em uma primeira leitura, que Valentine
posa para um retrato que a representa. Compreende-se imediatamente que, na verdade,
Valentine posa somente para o pintor retratar a atitude, os gestos e a disposição geral, mas
que o retrato pintado é justamente aquele da Guimard. Aqui reside o motivo primeiro do
ciúme de uma pela outra. Nessa primeira cena, discorrendo sobre a relação entre o amor
e a arte, Jules Verne apresenta ainda sua variante sobre um tema já tratado por Musset a interferência entre a arte e o amor: David ama Valentine? Ou ele ama muito mais, como
Valentine reclama, o resultado do trabalho dos seus pincéis e paletas?
David
Eh bien, mon amour est couleur d’outre-mer en ce moment. [...]As-tu
donc oubliéque mon cerveau est loin de mon cœur, et, tandis que celui-là
ravit à son essence le feu sacré qui doit animer cette toile insensible, dans
l’autre, ton image adorée s’illumine d’une chaste clarté, comme une
madone de Raphaël ; regarde dans mon cœur ma bien aimée, et tu t’y
verras ressemblante, car le génie tenait les pinceaux de mon amour!151
No desenrolar da peça, nenhuma das duas mulheres, nem mesmo Valentine, que
é comparada a uma madona de Rafael - pintor enaltecido pelaestética classicista -, se
engana no que diz respeito à resposta dessa questão. A arte terá mais importância do que
“Elle est maigre comme un lézard, comme un ver à soie, plus maigre que Mlle Guimard, qui vivait
cependant sur une bonne fuille, la feuille de M. de Jarente.” GAUTIER, Théophile. “Feuilleton de La
Presse”, 27 novembre 1837. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k427220h.item
150
“Pour trouver des analogies au luxe qui scintillait chez elle, on doit remonter jusqu’aux beaux jours de
Guimard, de Sophie Arnould, de Duthé qui dévorèrent des fortunes princières”. BALZAC, Honoré de. “Les
Fantaises
de
Claudine”.
Revue
Parisienne,
25
août
1840.
Disponível
em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1065498g.r=%22Revue%20parisienne%22
151
VERNE, 2005, p. 576.
149
91
o amor que David nutre por uma ou outra. Aos olhos do leitor/espectador, o
desfechobastante fraco, em relação ao que foi construído ao longo da trama, se justifica
porque Valentine apesar de gentil, jovem e sincera - aspectos que David parece valorizar
em detrimento da astúcia apresentada pela Guimard, é ingênua e insignificante diante do
retrato que o artista pintou. A discussão entre a relação arte e amor, lugar-comum da arte
romântica, será retomada por Jules Verne no ano seguinte. Em 1851, Verne começa a
escrever os versos para Léonard de Vinci que será intitulado, finalmente, Monna Lisa. Na
peça, tendo concluído o famoso retrato da Senhora de Joconda, uma das questões que se
apresenta ao pintor é a mesma que aparece em La Guimard: Leonardo gosta da modelo
do seu quadro ou gosta mais ainda da sua própria arte? O desfecho da peça traz a resposta:
mesmo que ele declare seu amor pela Joconda, seu valete lhe anuncia ter encontrado o
modelo de Judas para concluir o trabalho da Última Ceia. O pintor se precipita em
acompanhá-lo, abandonando a Sra Joconda.
Em La Guimard, a reflexão sobre o tema não se estende. O texto é frívolo e lacunar
em comparação aos versos de Monna Lisa. No entanto, o assunto esboçado nos permite
conjecturar acerca de outras questões sobre arte, mas de ordem institucional, o que auxilia
a compor a cenografia em que se inscreve a obra, sobretudo no que tange à submissão da
pintura à Academia e ao sistema de mecenato ao qual os artistas se submetiam.
Ora, em 1775, ano em que se desenrola a peça, Jacques-Louis David já havia sido
premiado, em 1771, com o quadro Le combat de Mars contre Minerve (ver 3.6.4) obtendo
o segundo lugar no Prêmio de Roma – premiação que designava o concurso das
Academias reais do Antigo Regime e a pensão em Roma que permitia a jovens artistas se
formarem na Itália. Na peça, em diálogo com Valentine, David discute sobre a possível
submissão de um quadro152 aos membros do júri para uma nova tentativa de obter o
primeiro lugar:
David
Et ton amour aussi, ma bien-aimée, ton amour ne m’abandonnera jamais;
ton amour, le mien, toi et moi, nous irons tous quatre à Rome.
Oh ! Rome!153
[…]
Valentine
Bon, ne vous attristez pas! Et tâchez d’envoyer votre grand tableau au
concours. [...] Cher David il faudra prendre votre courage à deux mains,
Trata-se de Les Amours de Stratonice et d’Antiochus, exposto, atualmente, na École Nationale
Supérieure des Beaux-Arts, em Paris.
153
VERNE, 2005, p. 577.
152
92
et visiter les membres du Jury. Vous avez négligé toutes vos
connaissances, et il n’en est pas une qui vous reconnait désormais! Vous
avez obtenu déjà le second prix il y a trois ans, c’est bon augure...154
No entanto, essa designação - o Prêmio de Roma, abarcando concurso e pensão
em Roma, forjada no século XIX -, é imprópria para uso no Antigo Regime pois o sucesso
nos concursos acadêmicos e a atribuição de uma pensão em Roma não estavam
automaticamente relacionados.155 Era necessário lutar também pela busca de capital
social junto ao rei Luís XVI. O contato com pessoas influentes poderia favorecer a
obtenção desse favor real. Valentine, na peça, é a personagem-chave que encarnará a
detenção desses capitais. Se ela encoraja David a submeter um novo quadro para o
concurso alegando que o pintor já é “reconhecido” por seus pares à época, e, portanto,
detentor de capital simbólico suficiente para novas tentativas, ela também mostrará que o
campo artístico está submetido às coerções do campo econômico ainda longe de sua
autonomização:156
Valentine
Vous êtes parvenu à l’estime de vos amis! et ce n’est pas la moindre
recompense du travail que de s’entendre applaudir par de ces mains que
l’on peut serrer sans honte.157
Jules Verne, distante mais de cinquenta anos do século XVIII quando escreve essa
peça, realiza a manutenção da discussão sobre a autonomia do campo artístico e confere
à personagem Valentine o poder de fiar seu posicionamento a respeito do acúmulo dos
capitais que julga necessários para que o artista obtenha sucesso e seja, definitivamente,
reconhecido. Na passagem a seguir, notamos que os capitais social e econômico estão
154
VERNE, 2005, p. 577.
Embora trate de um período sob o reinado de Louis Philippe, Isabelle Chave ressalta em seu artigo sobre
a formação de artistas ganhadores do prêmio de Roma, a importância da busca de capital social junto ao
rei. Cf. CHAVE, Isabelle. “Après le prix de Rome. La formation à l’Académie de France à Rome sous le
directorat d’Horace Vernet (1829-1834), à travers sa correspondance.” In: Romantisme; Revue du dixneuvième siècle – Le Prix de Rome. 3e trim., Nº 153. Paris: Editions CDU-SEDES, 2011, p. 39.
156
Sobre a autonomia do campo artístico no século XIX complementamos a leitura em Arnold Hauser que
vê o classicismo como o espaço contra o qual o moderno se insurge. Para o autor, o classicismo seria
justamente o espaço que se academiza em definitivo durante o século XIX na França, cristaliza valores
estéticos como a tendência ao monumental, a ligação direta ao poder do Estado, o “Grand Prix” de Roma,
a devoção a Rafael, a Poussin e à Antiguidade Clássica, a paixão pelo naturalismo e pela perspectiva
renascentista,a normalização hierarquizada de temas e formas, o controle máximo do mercado e a
capacidade interna, quase absoluta de consagração ou exclusão, enfim, tudo o que servia bem ao controle
do Estado e ao classicismo distanciaria o campo artístico da sua autonomização. Cf. HAUSER, Arnold.
História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 631-646.
157
VERNE, 2005, p. 578.
155
93
relacionados e podem ser trunfos para a luta de David desejoso em ser efetivamente
reconhecido no campo artístico:
Valentine
[...] ma famille est riche et puissante ; elle jouit d’un crédit invincible,
dont vous auriez profité peut-être. Faut-il donc que mon éloignement
d’elle et ma présence ici vous ait non seulement jeté dans les tourments
d’une misère prochaine, mais privé de protections assurées!158
A questão do investimento dos capitais social e econômico e sua relação com a
autonomia do campo artístico ainda é retomada na passagem em que Vergy, aquele que
deseja arranjar um casamento entre seu sobrinho e Valentine, assume que deverá punir
David, aprisionando-o na Bastilha e subtraindo a “glória” adquirida com o segundo lugar
no Prêmio de Roma, em 1771. Em um anacronismo, Jules Verne caracteriza o
personagem de Vergy como o chefe dos membros do júri do “Instituto”. No entanto, a
instituição só é criada no ano de 1795, após a Revolução, e não em 1775, ano em que a
trama se desenrola:
Vergy
Jugez-en! J’ai des amis hauts placés, je suis et j’obtiens ce que je veux!
Pour me venger de ce peintre, je me suis fait nouveau chef du jury de
l’Institut, et pour l’emprisonner j’ai obtenu cet ordre! Je punirai ainsi sa
gloire et lui!159
Ainda que de maneira incipiente, Verne levanta outra questão sobre a arte que faz
parte das discussões daquele momento da sua trajetória: o enaltecimento do que é nobre
em pintura e o lugar que os gêneros ocupam em uma possível hierarquia. Para a
produtividade desta pesquisa em que colhemos dados sobre o posicionamento de Jules
Verne afim de compreendermos o seu projeto estético, a passagem que segue é, portanto,
exemplar. Não incorrendo em um anacronismo, Verne enobrece os fatos do passado e
posiciona o gênero retrato em lugar de inferioridade em relação aos outros gêneros na
hierarquia dos gêneros da pintura. Ambos os posicionamentos vão em favor da
manutenção de uma tradição e estão em harmonia com o momento em que a peça se
desenrola. No entanto, por falta de desenvolvimento por parte do escritor e de um tom
mais ou menos irônico nas passagens, não pudemos afirmar se, nesse momento, Verne
sai em defesa desses modelos tradicionais ou os critica:
158
159
VERNE, 2005, p. 578.
VERNE, 2005, p. 591.
94
David
Pourquoi donc les beautés de la nature ont-elles impressionné mon esprit,
puisque je ne puis les réproduire! pourquoi les hauts faits de l’antiquité
ravissent-ils mon âme entière, puisque ma main ne peut les retracer aux
yeux modernes, et ressusciter après deux mille ans les héros des temps
anciens! [...] Est-ce le bonheur, est-ce le bien-être ? est-ce la vie ? Eh
non ! la voilà ! peindre des portraits, et se faire payer au plus haut prix !
– fatalité!160
A tentativa de trazer para a cena de 1850 o pintor Jacques-Louis David e as
discussões institucionais acerca da arte anteriores à Revolução Francesa indicariam, antes
de tudo, um posicionamento indeciso pela atualização e a manutenção de valores
românticos. O texto de Monna Lisa que analisaremos adiante clarificará, talvez, o
posicionamento verniano assim como aqueles explicitados tanto na crítica de arte do
escritor, quanto nos seus romances.
Sobre a questão do retrato em Jules Verne e a importância desse gênero em pintura
e em literatura, remetemos à nossa Dissertação de Mestrado defendida no ano de 2010.161
Na pesquisa, fizemos um estudo contrastivo dos retratos literários de brancos e
“selvagens” nos romances Cinq semaines en ballon (1863), Les enfants du capitaine
Grant (1867) e Le Chancellor (1875), apresentando as afinidades entre os romances de
Jules Verne e as teorias de Lavater, Gall, Gobineau, Darwin e textos e iconografia
veiculados no magazine Le Tour du monde, destacando as relações intertextuais e
interdiscursivas entre o discurso literário e o científico. Destinamos um capítulo daquela
pesquisa a fazer um histórico das interfaces pictural e literária do retrato e a possível
interseção entre ambas. Em linhas gerais, na obra de Jules Verne, o gênero retrato, em
pintura ou em literatura, terá importância fundamental, pois é usado para veicular
construções determinadas por um habitus que se desejava perpetuar.
Analisando La Guimard, notamos que o interesse de Jules Verne pelo retrato, na
sua interface pictural, se manifesta muito tempo antes de se dedicar à escrita romanesca.
Isso é reiterado pelo fato de Verne realizar a manutenção do uso temático do retrato
enquanto gênero em pintura no texto Monna Lisa, imediatamente seguinte a La Guimard.
Enfim, na sua obra, o gênero será um meio através do qual se transmitem ideias que se
160
VERNE, 2005, p. 578.
SANTOS, Edmar Guirra dos. Retratos literários: o discurso científico na obra de Jules Verne. Rio de
Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2010. Dissertação de Mestrado apresentada do Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas da UFRJ na opção Literaturas de Língua Francesa. Orientação do
Professor Dr. Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina.
161
95
desejam perpetuar ou uma via temático-discursiva tomada do chavão romântico que
permite, entre outros, que o leitor verifique o posicionamento do escritor.
Quando examinamos as tentativas de posicionamento no percurso estético de Jules
Verne e, mais particularmente, o texto de Monna Lisa, escrito em 1851, observamos a
retomada das discussões iniciadas com o texto La Guimard. Ambientada em um ateliê de
pintor naFlorença do Renascimento, trazendo para a cena Leonardo da Vinci, Jules Verne
extrai o tema de Monna Lisa das peças André del Sarto (1833) e Lorenzaccio (1834), de
Alfred de Musset. Na perspectiva discursiva que pretendemos aqui, trata-se de afirmar
que Verne funda a cenografia de sua peça em um cenário preexistente, novamente, aquele
explorado por Musset. A adoção de uma estrutura dramática e temática semelhante àquela
do drama romântico pode ser lida como um investimento do autor em um gênero literário
de prestígio à época e, em consequência disso, como a tentativa de legitimação do seu
discurso face ao público francês. Essas reflexões nos encaminham para duas questões:
qual é a relação entre a escolha de Jules Verne, que prefere inscrever a cenografia de sua
obra na Florença do século XVI, e o habitus literário da França em 1850? Qual é a relação
entre essa escolha e a tentativa de Verne de fazer parte do campo literário?
Essa comédia de costumes, usada, entre outros, para uma sátira ou crítica social,
“no gênero das peças de Musset”,162 recebeu primeiramente o título de Léonard de Vinci,
como Jules Verne diz em carta a seu pai que o reprova por não escrever mais em versos:
“[...] mais j’en fais toujours et beaucoup et dans ce moment mon Léonard de Vinci
m’occupe tout entier”.163 Na verdade, Verne escrevia outras peças paralelamente e, ainda,
alguns artigos para a revista Musée des familles.164
Somente em 1874, já com o título definitivo Monna Lisa, a peça foi lida pelo seu
autor na Academia de Amiens, cidade de residência de Jules Verne e, até a publicação no
Cahier L’Herne, em 1974, a peça permanece inédita, nunca tendo sido encenada.
Monna Lisa é uma comédia que se passa na Itália cujo tema é o amor de Leonardo
da Vinci e da senhora de Joconda. A peça tem um ato que é dividido em vinte cenas para
cinco personagens: o pintor Leonardo da Vinci; Monalisa, a modelo e esposa do senhor
de Joconde; Joconde, elegante senhor da Florença; Pazzeta, dama de companhia de
162
Cf. TOUTTAIN, 1974, p. 23.
VERNE 1988, p. 310.
164
Trata-se dos artigos Martin Paz e Les Châteaux en Californie e da peça Pierre qui roule n’amasse pas
mousse.
163
96
Monalisa; e Bambinello, aprendiz de pintor cujo mestre é Leonardo da Vinci. Segundo a
didascália, a peça se passa em Florença e o cenário representa o ateliê de Leonardo:
Le théâtre représente l’atelier de Léonard de Vinci, luxe merveilleux :
entassement pittoresque de choses d’art, armes, instruments de
musique, statuettes, tableaux, cartes géographiques, livres et tapisseries.
Au fond, d’une fenêtre gothique à vitraux de couleur, la vue donne sur
d’immenses jardins. Portes au dernier plan à droite et à gauche. Sur un
chevalet repose le fameux tableau de la Joconde que l’on peut admirer
au Musée du Louvre.165
Fazemos aqui um breve parêntese para tratar da menção ao Louvre enquanto
espaço museal tal como citado por Verne na didascália. Para a produtividade da pesquisa
essa menção é marca de um posicionamento. No momento em que Jules Verne inicia a
escrita da peça (1851), o Louvre é um Museu Imperial. Até 1848, sua manutenção
dependia da “Lista civil” de Luís Felipe - documento que designava a alocação e a doação
financeira da qual dispunha o rei. Depois do golpe de Estado, em dezembro de 1851, e a
restauração do Império, o Louvre passou a depender da Lista civil do imperador Napoleão
III. A partir de 1851, o Louvre é administrado por um único homem, Alfred-Émilien de
Nieuwerkerke, superintendente dos museus imperiais, nomeado por Napoleão III,
personalidade que será retomada por Jules Verne nos seus artigos críticos sobre o Salão
de 1857. Ele dirige o Louvre ainda que ministérios e ministros tutelares se modifiquem.166
Segunto Bertinet, esse fato gerou críticas concernentes ao estatuto das obras conservadas
no Louvre, inclusive o retrato da Monalisa, na medida em que pertenciam à lista civil da
mesma maneira que as obras localizadas na residência imperial. Ora, nesse momento, o
Louvre é, ao mesmo tempo, museu e residência imperial. A possibilidade de confusão
entre as coleções incomodava, de um ponto de vista ético, porque as obras poderiam ser
deslocadas das salas do museu (ou dos museus imperiais) para os aposentos do Imperador
para sua apreciação. Temia-se que, com essa possibilidade de mudança, eventuais
apropriações das obras pudessem acontecer. Somente com os artigos 6 e 7 do senatusconsulte de dezembro de 1852167, será determinado que as obras presentes nas residências
imperiais dependem da lista civil e pertencem à doação da coroa, o que excluía qualquer
possibilidade de apropriação das obras por parte do Imperador. Sendo inalienáveis e
imprescritíveis, portanto, Napoleão poderia gozar das obras em seus aposentos, mas não
165
TOUTTAIN, 1974, (didascalie), p. 24.
BERTINET, Arnaud. Les musées de Napoléon III. Une institution pour les arts (1849-1872). Paris :
Mare et Martin, 2015, p. 33.
167
Cf. BERTINET, 2015, p. 47.
166
97
como bens pessoais. As obras não lhe pertenciam. Nessa didascália, quando Verne alude
à Monalisa (ver 6.3.5), que pode ser admirada no espaço “Museu do Louvre”, estaria se
posicionando a favor de uma exposição pública no espaço instituído como museu. Por
extensão, esse posicionamento indicaria uma possível crítica ao império de Napoleão,
como veremos, também, ao analisar a crítica de arte do Salão de 1857.
O texto dramático Monna Lisa que Verne escreve em 1851 apresenta ainda outras
marcas de posicionamento no que diz respeito a questões artísticas. A ação da peça se
desenvolve a partir de um encontro secreto entre Leonardo e Monalisa. Ela, desejosa em
encontrá-lo antes de posar para o quadro, a fim de confessar seu amor por ele, pede a
Pazzetta, sua dama de companhia, para avisá-lo de suas intenções. Leonardo se mostra
muito ocupado com seus afazeres artísticos, sobretudo com o retrato inacabado de
Monalisa e com seu modelo de Judas, ainda não encontrado, para o afresco da Última
Ceia (ver 6.3.6). O senhor Joconde, por sua vez, percebendo mudanças físicas no rosto
de Monalisa - o que poderia interferir na qualidade do quadro -, e, se dando conta da
possível paixão entre o pintor e sua esposa, deseja que o retrato seja terminado o quanto
antes. No entanto, crendo na impossível aliança entre a arte e o amor, ele decide ir ver
esse encontro.
No momento da sessão de pose para o quadro, Leonardo e Monalisa falam de
amor enquanto ele pinta seu quadro, até o momento em que o pintor vê o bracelete que a
modelo usa. Ele se ajoelha para apreciá-lo, o que a deixa enfurecida. Nessa ocasião, ela
suplica a atenção de Leonardo, que mostra amá-la tanto quanto o camafeu. Ao final, com
o retrato concluído, o senhor Joconde pede a um valete para levar o quadro; Monalisa,
enraivecida com Leonardo por ter terminado a pintura de seu retrato,exige a companhia
do marido para ir embora do ateliê; Leonardo, depois de ter encontrado seu modelo com
ares de bandido para representar Judas, deixa Florença e parte para Milão, a fim de
terminar o afresco da Última Ceia.
O amor que infantiliza, o amor sublime que se torna patético em alguns momentos,
é o sentimento-tema da peça, comparadocom a arte e com o artista, como exploraremos
a seguir. Isto é, o desenvolvimento da peça vem colocar a arte a serviço do amor e “unir
l’amour de l’art et l’art de l’amour”,168 para retomar a passagem com o qual Monalisa
defende a sensibilidade de Leonardo junto a seu marido. O senhor de Joconde, na verdade,
sustenta que a mulher “au lieu d’être un objet d’amour pour Léonard, / [...] n’est plus
168
VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 6, p. 35.
98
qu’un objet d’art”.169Crendo nessa certeza, objetivando trazer sua esposa de volta para
casa, ele se impõe uma prova cruel, mas decisiva: alimentar a paixão da modelo pelo
pintor, a fim de levar Leonardo a revelar suas carências amorosas. Assim, a ação de
Monna Lisa opõe a união às ilusões do ideal da arte. Monalisa, personagem epônima, vê
no pintor a encarnação de um sentimento de amor perfeito, liberto de exigências carnais:
Il n’a rien de commun : l’amour d’un grand artiste
Avec de vains plaisirs, sans lequel il existe !
Il se sent, se comprend et ne s’explique pas.
Il n’est donc pas soumis à l’erreur ici-bas ;
Son attrait est divin, sa durée infinie :
L’artiste est plus qu’un homme ! Il aime avec génie !170
Provocado pelo senhor de Joconde, Leonardo define a complementaridade da arte
e do amor como poder criador legado por Deus a suas criaturas:
L’amour inspire à l’art ses oeuvres poétiques,
Et l’art donne à l’amour cet idéal côté
Qui le relève un peu de la vulgarité,
[...].
Aussi, je le soutiens contre votre système,
L’art complète l’amour, il l’embellit, et même
Une femme d’esprit doit dans leur union
Trouver le dernier mot de toute passion.171
Por parte do pintor, o amálgama com a arte libera o amor da “vulgaridade” da
carne. A arte tem o efeito de idealizar o amor. No entanto, Monalisa se vê ultrajada, não
vendo correspondido seu amor carnal. Com efeito, quando Leonardo, declarando seu
amor, descobre no braço de Monalisa o bracelete que o senhor de Joconde havia dado de
presente à sua esposa, seu espírito de esteta atravessa o sentimento que tem, o que
percebemos nas palavras de Monalisa: “Hélas! d’amour et d’art incroyable mélange ! /
Sortira-t-il enfin de cette extase étrange !”172 As palavras de amor dão espaço às
reprovações e Leonardo lamenta os desejos ordinários de sua modelo: “[...] mais il vous
plaît d’être aimée ! / Comme une femme!”173
Apesar das ilusões da mulher e das manifestações do pintor, a arte e o amor são
apresentados de maneira inconciliável como na peça André del Sarto, de Alfred de
Musset, que também é ambientada em Florença. Em Monna Lisa, a mulher é apresentada
de maneira mais ligada à carne do que pensa, e o artista, ainda menos do que ele diz. De
169
VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 6, p. 35.
VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 5, p. 31.
171
VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 9, p. 42.
172
VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 15, p. 50.
173
VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 15, p. 51.
170
99
qualquer forma, ele está condenado a sempre se desapontar com as mulheres reais, como
diz Leonardo na passagem:
Ah ! Laure et Béatrix! Votre exemple a tenté
Plus d’une fois déjà quelque belle impudente
Qui ne savait, hélas ! Que si Pétrarque et Dante
N’ont cessé de vous plaire et de tant vous chanter
C’est que vous aviez soin de ne pas exister !174
A conclusão lógica dessa relação entre arte e amor apresentada na peça, sua moral,
por assim dizer, é a imagem de um artista que só pode amar uma mulher ideal, uma mulher
de sonhos, aquela que tenha o “soin de ne pas exister”. Se, por um lado, os fracassos no
amor se justificam pelo gosto do pintor pela arte, por outro, a arte protege o pintor dos
avatares do amor. Assim, paradoxalmente, Monalisa, retornando ao lar, dá razão a
Joconde para melhor preservar o artista Leonardo de qualquer decepção amorosa.
A presença do artista pintor Leonardo da Vinci, a imagem que se apresenta da arte
e do artistasão temas nucleares na peça. Segundo a didascália, a cena é situada na época
da pintura do retrato, entre os anos 1503 e 1506. Jules Verne coloca na cena a figura de
um “homem completo”, um humanista, cujas qualidades o fazem o protótipo do homem
do Renascimento. Por diversas vezes, Vernedestacao caráter humanista de Leonardo,
pintor excessivamente ocupado. A fim de marcar o encontro entre Monalisa e o pintor,
Pazzetta o procura, mas só encontra seu aluno Bambinello que anuncia:
Bambinello
Peut-être!
Pazzetta ! Qui peut dire où se trouve mon maître,
Où demeure l’éclair, où couche l’ouragan !
Ah ! quel cerveau brûlé, quel être extravagant,
Qui toujours affairé ne peut tenir en place,
Et ne se laisse pas apercevoir de face ![...].175
O caráter humanista que pretendemos ressaltar aqui provém do pensamento
filosófico existente durante o período de Renascimento europeu no século XVI e consiste
em valorizar o homem, em colocá-lo no centro do universo. Nessa perspectiva, o homem
está de posse de suas capacidades intelectuais potencialmente ilimitadas. Na peça, as
características desse homem em busca do saber e do domínio de diversas disciplinas
necessárias ao bom uso dessas faculdades são mais claras na passagem em que
Bambinello, em diálogo com Pazzetta, descreve as atividades de seu mestre:
174
175
VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 20, p. 55.
VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 2, p. 25.
100
Bambinello
En secret ! – Je comprends, Pazzetta ! Qu’elle vienne,
Car, à moins qu’il ne soit sur la méridienne
A contempler aux Cieux des prodiges nouveaux
Ou la lyre à la main, à vaincre ses rivaux,
Ou même à soutenir une thèse publique
Touchant la médecine et le droit canonique,
Elle peut y compter, Léonard de Vinci,
S’il n’est pas autre part, sera peut-être ici.
Pazzetta
Bambinello, ton maître est peintre, j’imagine ?
Bambinello
Ma foi, c’est un docteur très fort en médecine.
Pazzetta
C’est un peintre avant tout !
Bambinello
Des plus originaux,
Qui construit des palais et perce des canaux !176
Enfocando o recorte que propomos para a Tese, observando esse momento da
carreira de Verne, questionamo-nos se a figura do pintor não tem uma metafunção: nesse
momento de sua trajetória no campo, essa representação é a maneira pela qual Jules Verne
vê um verdadeiro artista. E se nos estendermos mais e considerarmos sua carreira após
1863, quando assina contrato com o editor Hetzel para a realização das Viagens
extraordinárias, teríamos ainda outras indagações. Aproximando-nos da Florença
contemporânea deLeonardo, observaremos que a imensa cultura científica é o
fundamento de todas as pesquisas desse artista. Além da pintura, muito se sabe sobre os
estudos incisivos de Da Vinci sobre as ciências da sua época, a arquitetura, o corpo
humano, as máquinas projetadas, o que nos permite identificá-lo como um humanista.
Podemos, talvez, afirmar que esse é o modelo de artista valorizado por Jules Verne, nesse
momento de sua trajetória. Ainda que conscientes da distância cronológica entre Jules
Verne escritor para as artes do espetáculo e escritor de romances, permitimo-nos
aproximar um e outro no que diz respeito às características humanistas valorizadas: ao
longo de sua carreira romanesca, Jules Verne se interessará pelas descobertas científicas
e tecnológicas de sua época. O contrato que o restringirá à produção das Viagens
176
VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 2, p. 25.
101
extraordinárias prevê que ele reúna e realize o resumo de todos os conhecimentos que as
ciências produziram na sua época e os transforme em literatura. No “Avertissement de
l’éditeur” (ver 6.2.3) do Magasin d’Éducation et de Récréation, lemos o objetivo de sua
obra: “Seu objetivo é, com efeito, resumir todos os conhecimentos geográficos, físicos,
astronômicos, reunidos pela ciência moderna, e refazer, sob a forma sedutora e pitoresca
que lhe é própria, a história do universo”.177
Ao longo de sua carreira romanesca, Jules Verne cumprirá com esse objetivo. Ele
tentará aproximar a arte da ciência e a ciência da arte o que, em resumo, caracterizará a
visão enciclopédica (e por que não humanista?) de sua parte e da parte do seu editor que
objetivava, com o magazine, contribuir para a educação da juventude francesa.
Além da presença do pintor Leonardo da Vinci, outras referências picturais podem
ser observadas nesse texto dramático. Elas reiteram a discussão sobre a arte e o artista e
auxiliam a evidenciar a picturalidade da peça.
Seguindo as categorizações de Liliane Louvel (1997), resumimos e afirmamos
aqui que a pintura pode se fazer presente em uma obra literária de três maneiras: pela
descrição de quadros célebres, pela descrição de quadros fictícios e pela descrição com
valor pictural.
Como tratamos em 2.3, Louvel afirma que quando o quadro pertence ao mundo
real, é possível observar a simetria ou a dissimetria entre a obra e sua “tradução” literária
através do que ela nomeia por “translação pictural”, ou seja, a passagem de um
significante pictural para um significante linguístico. Nos mesmos estudos, Louvel
também tenta dar conta dos graus de picturalidade de uma passagem literária quando
desenvolve os indícios que intitula “marcadores de picturalidade”.
Testando a produtividade de seus conceitos nos nossos estudos, destacamos de
imediato a presença do personagem pintor Leonardo da Vinci na peça Monna Lisa, e
ainda a do pintor Jacques-Louis David, no texto La Guimard, que, segundo a
pesquisadora das relações entre texto e imagem, evidencia a qualidade pictural de um
texto.
A didascália de ambas as peças que citamos aqui, indicativas do aparato cênico
que o autor das peças define, são marcadas inicialmente pela modalização indicada pelo
adjetivo em “luxe merveilleux” para descrever o espaço de Monna Lisa e “atelier de
HETZEL, Jules. “Avertissement de l’éditeur” In: Magasin d’éducation et de récréation. Tome II, 1867,
p. 1-2.
177
102
peinture de medíocre apparence” para a Guimard; as duas modalizações marcam o ponto
de vista e, portanto, a subjetividade daquele que informa. No que tange ao espaço, a
informação “L’atelier du peintre” ou “Un atelier de peinture” das didascálias, além de
fixar o enquadramento da cena, anunciam uma descrição: para Monna Lisa, um
“entassement d’objets d’art”: armas, instrumentos de música, estatuetas, quadros, mapas,
livros e tapetes; um vitral gótico ilumina toda a cena e o retrato de Monalisa que repousa
sobre um cavalete. Para a Guimard, um ambiente menos suntuoso e mais escuro é
descrito: telas escoradas na parede, um grande quadro de costas para o público, um
cavalete com um retrato feminino meio terminado, cadeiras de palha e, em terceiro plano,
uma única porta de vidro dando para um gabinete. As referências picturais em La
Guimard só irão se reforçar pela manutenção do nome de David ao longo da peça,
reiterada, esporadicamente, pelo uso das palavras “quadros”, “pincel” ou “pinceis”, e a
alusão às questões institucionais como o “Prêmio de Roma”, “membros do júri” ou
“Instituto”. Para esta peça, Jules Verne não desenvolve o argumento pictural. Ainda que
com a presença de um personagem pintor e o uso de léxico especializado com objetos
caros à pintura como quadros e pincéis, Verne parece dedicar-se mais às discussões
institucionais. Caso diferente ocorre na peça Monna Lisa, texto mais rico em elementos
picturais e, portanto, mais saturado picturalmente, nos termos de Liliane Louvel.
Para a peça Monna Lisa, o escritor, além da descrição que situa o público no ateliê
de um pintor humanista, ambienta a comédia em Florença - cidade cenário de obras de
artistas do Renascimento como Michelangelo, Rafael, Boticelli, além do próprio
Leonardo da Vinci -, sendotambém mais um indício da picturalidade da peça. A menção
a Florença é igualmente uma referência metapictural, já que a cidade representa uma
célebreescola italiana em pintura. Essa escola, da qual Leonardo da Vinci fazia parte,
defendia a primazia do desenho (dessin) que rivalizava com a escola de Veneza, aquela
que defendia a cor (coloris) acusada de ser responsável pela corrupção das artes visuais.
Jacqueline Lichtenstein observa que o debate entre os partidários do desenho e aqueles
da cor renasceria no século de Louis le Grand (Luís XV):
O debate entre os partidários do desenho e aqueles da cor, que tinha
ocupado a cena italiana durante longo tempo na época do Renascimento
ia renascer na França um século mais tarde, no entanto, sob novas
formas, em grande parte determinadas pelas condições políticas e
institucionais do século de Luís o Grande.178
“Le débat entre les partisans du dessin et ceux du coloris, qui avait longtemps occupé la scène italienne
à l’époque de la Renaissance, allait renaître en France un siècle plus tard mais sous des formes nouvelles
178
103
A pesquisadora ressalta que, na França, a primazia do desenho era defendida por
uma instituição a serviço da monarquia e que a cor era vista como um “desvio estético”,
um atentado político, já que o desenho era, desde Aristóteles, a maneira privilegiada para
dar forma narrativa à representação, ou seja, para definir um quadro como uma história.
O que une a pintura ao discurso passa pelo fundamento de uma autoridade real cujos
representantes sediam a Academia,179 daí o status atribuído à pintura de história, cujo
privilégio corresponde ao mesmo tempo aos interesses do rei, do discurso e do desenho.
Por parte do autor de Monna Lisa, vemos certa atenção em apresentar um
Leonardo mais preocupado com o desenho do que com a cor. No início da peça, não é
Leonardo que prepara as cores para o retrato de Monalisa, mas sim seu aluno, Bambinello,
que reclama de realizar essa tarefa:
(Bambinello frotte la palette de son maître)
Que le sort à chacun donne ici-bas un rôle,
Je n’y vois aucun mal ; mais il me semble drôle
Que l’un passe sa vie à gratter les couleurs
Dont l’autre peint les dieux, les femmes et les fleurs,
Et livre sa jeunesse à cette tâche ingrate !...
Et dire que des deux je suis celui qui gratte !180
Enquanto Bambinello prepara a cores, Leonardo se preocupa com a estrutura do
retrato. Nota-se isso em diversas passagens ao longo da peça: “La main gauche n’a pas
de grâce dans sa pose, / Et ce n’est pas ainsi que Dieu la façonna”.181Enquanto dura a
sessão de pose de Monalisa, o pintor vê passar seu modelo de Judas para o afresco da
Última Ceia, sai em busca dele e volta com um esboço na mão: “[...] avec une esquisse à
la main: Je le tiens mon Judas!... L’oeil est faux, insolent!”182
Além de referência metapictural, a presença do pintor e seu aprendiz compõe a
cenografia do texto, de que fala o linguista Dominique Maingueneau. Ao trazer Leonardo
da Vinci e Bambinello, seu aprendiz, para a cena em 1851, inscritos na Florença do século
XVI, Jules Verne retoma a querela italiana entre a cor e o desenho e se posiciona na
discussão que lhe é contemporânea sobre a autonomia do campo artístico: o autor
ridiculariza a hierarquia “mestre/aprendiz” e as coerções que a Academia Real de Pintura
e Escultura realizava no mercado de produções artísticas. Pelo tom irônico que dá à
en grandes parties déterminées par les conditions politiques et institutionnelles du siècle de Louis le Grand.”
LICHTENSTEIN, Jacqueline. La couleur éloquente. Paris : Flammarion, 1999, p. 161.
179
Cf. LICHTENSTEIN, 1999, p. 163.
180
VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 1, p. 24.
181
VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 4, p. 28.
182
VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 20, p. 54.
104
passagem do personagem Bambinello citada acima, Verne se une àqueles que seguem a
vertente de ataque ao modelo acadêmico, pregando uma prática centrada na originalidade
e independência individuais dos artistas, além de usar da ironia para caracterizar o
trabalho menos nobre, por assim dizer, de Bambinello, denunciando o aspecto negativo
que existe na relação entre mestre e aprendiz cara ao modelo tradicional.
A evocação ao quadro Monalisa (1503-1506) (ver 6.3.5) e o afresco de A Última
Ceia (1495-1498) (ver 3.3.6) é uma dupla referência metapictural pois trata-se não só de
uma referência a quadros conhecidos, mas também de uma referência implícita aos
gêneros retrato e pintura de história, o primeiro ocupando um lugar inferior na hierarquia
entre os gêneros da pintura, e o segundo um lugar de destaque por poder cumular todos
os outros gêneros nele. No que diz respeito a quadros presentes no texto, citamos ainda a
passagem em que Leonardo evoca Zeuxis (464 a.c. – 398 a.c):
Peintres Grecs! Il faudrait avoir votre génie !
On dit que les oiseaux d’Athènes ont jadis
Becqueté les raisins au tableau de Xeuxis ;
[...].183
Zeuxis é o célebre pintor grego de um quadro cuja anedota é conhecida: por
ocasião de uma competição com o artista Parrhasius, Zeuxis pinta uvas com tanta
realidade que pássaros vinham bicá-las, enquanto o outro pintor representa uma pequena
cortina pintada tão realisticamente que, ao mostrar a Zeuxis, este pede-lhe que retire a
cortina para que veja o quadro. Reconhecendo sua ilusão, Zeuxis se dá por vencido,
dizendo que ele conseguiu enganar pássaros, mas que Parrhasius conseguiu iludir os olhos
de um homem por ter pintado de maneira tão real um objeto. Essa alusão permite a Verne
se posicionar em relação ao que é valorizado em um quadro, nesse caso, o grau de
realidade do que foi representado.
Ao longo da peça, temos ainda uma profusão de termos caros à pintura. Esses
indícios são, como propõe Liliane Louvel, marcadores de picturalidade de um texto. Entre
os nomes, encontramos: “palette”, “modèle”, “séance de pose”, “tableau”, “portrait”,
“peintre”, “chevalet”, “esquisse” e “pinceau” ; e ainda verbos que aludem ao ato de pintar:
“frotter (la palette)” e “gratter (les couleurs)”.
Na comédia, há ainda uma última referência metapictural. No momento em que
Leonardo retoma a pintura do quadro de Monalisa, ele convoca cantores e músicos e,
pede à sua modelo para tomar a postura habitual para o retrato e sentar-se no meio desse
183
VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 4, p. 29.
105
grupo. Essa “imagem” retoma aquela que diversos pesquisadores de Leonardo da Vinci
mencionam em suas biografias sobre o pintor. Sylvie Béguin afirma que, como Monalisa
era bela, o pintor mantinha um ambiente de alegria no seu ateliê quando a pintava para
evitar o ar de melancolia frequentemente presente nos retratos: “Como a Monalisa era
muito bela, enquanto Da Vinci a pintava, havia sempre cantores, músicos e bufões perto
dela, a fim de a manter em calma alegria e de evitar o efeito de abatimento e de melancolia
quase inevitável nos retratos.”184
Na peça, Jules Verne contribui para a reafirmação da anedota e se vale dela para
citar, entre parênteses, como uma didascália, o quadro Léonard de Vinci peint Monna
Lisa (ver 3.6.7), de Aimée Brune Pagès que data de 1845:
Joconde (avec vivacité)
Prenez vos pinceaux...
Léonard (à Monna Lisa)
Dès que vous le voudrez :
Car je me sens heureux ! J’ai la main animée !
(il fait asseoir Monna Lisa au milieu des chanteurs et des musiciens
comme dans le tableau de Brune Pagès)
Veuillez prendre à présent la pose accoutumée
Au milieu de ce groupe, avec moins d’embarras.
Et laisser s’arrondir plus mollement vos bras !
(Il va à son chevalet et commence à peindre).185
O quadro evoca uma cena romântica do ateliê do pintor com todas as
referências citadas na didascália inicial e, portanto, poderia ser lido como o cenário
original para essa peça. Observa-se neste último indício de picturalidade do texto a
presença de uma mise-en-abyme, ou seja, a representação de um quadro dentro de outro
quadro: o retrato de Monalisa no quadro de Brune Pagès. Reconhecemos também a cena
descrita acima: para que a modelo não se canse e se mantenha bonita, Leonardo chama
músicos e cantores para distraí-la.
A música cantada na cena é anunciada por parênteses depois dos quais o autor
menciona: (Musique) / (Un chanteur) / (Villanelle).186 A inclusão dessa música na cena
permite ao autor ilustrar a associação entre literatura, pintura e a música em uma cena do
184
BÉGUIN, Sylvie. Léonard de Vinci au Louvre. Paris: Éditions de la Réunion des musées nationaux,
1983, p. 74.
185
VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 4, p. 46.
186
VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 14, p. 46-47.
106
Renascimento italiano (como no quadro de Pagès), idealizada pelos autores românticos.
Como tratou Luiz Paulo dos Santos Monteiro na sua dissertação de mestrado, “o drama
romântico deve ser a expressão de uma arte completa”.187Além disso, trazer para a cena
de 1850 o retrato da Monalisa em uma peça em versos, equivaleria tentar filiação,
tardiamente nesse caso, ao grupo romântico que valorizava não só a forma, como a
perspectiva renascentista, alimentando, assim, o clichê fundado no Romantismo em torno
do retrato da Monalisa.
Parece-nos que Jules Verne acompanhou bastante fielmente as concepções de
gênero inscritas no campo literário francês da época da escrita de Monna Lisa. Sob o
modo de um possível oportunismo literário, escrever essa comédia de costumes teria
permitido ao jovem Verne realizar a tentativa de legitimar seu discurso teatral pelo viés
romântico, o que não foi levado a cabo pela encenação, já que o texto nunca foi encenado
ou publicado. Quanto aos posicionamentos de Verne que contribuiriam para a discussão
da autonomização do campo artístico, não nos parece que o escritor parta nitidamente em
defesa de uma autonomia do campo. No entanto, parece apontar e criticar, mesmo que de
maneira incipiente, o sistema ao qual o campo artístico se submete. Constatamos que
Verne aponta os aspectos negativos da submissão do campo artístico ao campo
econômico e os abusos do Estado em La Guimard, por exemplo, e com o texto Monna
Lisa, ataca o modelo acadêmico e critica a relação pintor/aprendiz cara à lógica em que
opera o modelo tradicional.
4.2 Jules Verne, crítico de arte
Jules Verne é um nome inesperado no elenco de escritores que praticaram a crítica
de arte como gênero. Isso parece justificar as palavras do jornalista Ernest-Charles em
1906 no jornal Gil Blas: “Enquanto Jules Verne não morrer, ele continuará a escrever”.188
O que traz uma importância extraordinária à descoberta recente do Salon de 1857,
realizada e divulgada em 2006 por William Butcher, professor e diretor de pesquisa do
187
MONTEIRO, Luiz Paulo dos Santos. O pintor-artista em Lorenzaccio de Alfred de Musset: marcas de
um posicionamento no campo artístico. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 2006, p. 71.
Dissertação de Mestrado.
188
“Tant que Jules Verne sera mort, il continuera d’écrire”. ERNEST CHARLES. “Morts et vivants”. Gil
Blas nº 9.626, 23 déc. 1906, p. 1. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k75376013/f1.zoom.r=gil%20blas.langPT
107
Centro de Linguagem de Hong Kong, é que esse documento não é mais um romance
póstumo do autor das Viagens extraordinárias que tenha aparecido entre os anos de 1905
e 2005,189 mas textos publicados quando Verne era praticamente desconhecido no campo
literário e que permaneceram por muitos anos inéditos.
Como vimos, Jules Verne viera para Paris em 1848 para concluir seus estudos de
Direito, mas se lançara no mundo do teatro no qual esperava obter sucesso.190 No entanto,
essas esperanças não se concretizaram. O cargo de secretário no Théâtre Lyrique que
ocupou entre os anos de 1852 a 1854 não lhe permitiu angariar capital social necessário
com pessoas do mundo literário que, talvez, pudessem ajudá-lo. Até 1857, havia
publicado algumas novelas no periódico Musée des familles que passaram quase
despercebidas. Em janeiro de 1857, Verne se casa com Honorine Morel, jovem viúva com
duas filhas. Mesmo trabalhando na Bolsa de Valores, não abandona a escrita nem a
tentativa de ver suas peças encenadas, o que deverá esperar até o ano de 1860 quando tem
Monsieur de Chimpanzé, ópera-cômica em um ato, encenada, ainda que sem sucesso, no
teatro Bouffes Parisiens.
Esse panorama em torno do ano 1857 na vida do autor das Viagens
extraordinárias nos auxilia a entender a situação de Jules Verne quando são publicados
os sete artigos críticos sobre o Salão daquele ano, na Revue des Beaux-Arts.
Sabendo que a crítica do Salão de 1857 é, antes de tudo, um documento inscrito
em uma realidade histórica, publicado em um periódico que visa, entre outros, à
divulgação do evento, à adesão dos leitores às ideias, concepções artísticas e discussões
sobre estética ali lançadas, interessa-nos estudar esses elementos explorando o discurso
de Jules Verne enquanto crítico. A partir dos conceitos da Análise do Discurso do
linguista Dominique Maingueneau, desenvolvidos em 2.3, sobretudo a propósito do
ethos, do fiador e da cena enunciativa, procuraremos compreender a concepção de arte
que Jules Verne deseja transmitirna crítica do Salão de 1857.
Tendo a existência revelada por William Butcher, em 2006, em sua biografia sobre
Jules Verne, os artigos críticos sobre o Salão de 1857 foram reunidos, publicados,
ilustrados e receberam um breve prefácio em 2008, pelo mesmo pesquisador. Publicados
inicialmente na Revue des Beaux-Arts – Tribune des artistes, dirigida por Félix Pigeory,
189
Contam-se entre eles aqueles modificados e publicados pelo filho de Verne, Michel, entre 1905 e 1919,
passando por Paris au XXe siècle (Hachette, 1994) até o recente Théâtre inédit (Le cherche midi, 2005).
190
Essas informações sobre a vida do autor foram extraídas das biografias de DUSSEAU, Joëlle. Jules
Verne. Paris: Perrin, 2005 e BUTCHER, William. Jules Verne – The definitive biography. New York:
Thunder’s mouth press, 2006. Sinalizaremos quando houver divergências nas informações.
108
entre os meses de junho e setembro do ano de 1857, os artigos críticos do Salão de 1857
foram divididos originalmente em seis partes. Para uma melhor visualização,
organizamos a seguir as datas de publicação de cada artigo na Revue des Beaux-Arts:
15 de junho de 1857
1 julho de 1857
15 de julho de 1857
1 de agosto de 1857
15 de agosto de 1857
1 de setembro de 1857
15 de setembro de 1857
Abertura do Salão – Publicação do
“Artigo preliminar”
Publicação do primeiro artigo
Publicação do segundo artigo
Publicação do terceiro artigo
Publicação do quarto artigo
Publicação do quinto artigo
Encerramento do Salão – Publicação do
sexto artigo
Nos próximos itens, além de destinarmos uma parte à exploração do Salão de 1857
enquanto evento social inserido no contexto histórico, analisaremos alguns aspectos dos
artigos críticos, cruzando-os com alguns dados da carreira romanesca do escritor e
confrontaremos a opinião crítica de Verne com a de outros críticos. Tomaremos como
exemplo Les Demoiselles des bords de la Seine, quadro de Gustave Courbet, visando
traçar a concepção artística do crítico Jules Verne, o que integraria seu projeto estético.
4.2.1 A instituição Salão e a figura do crítico
A exposição de quadros, desenhos e esculturas era um dos grandes acontecimentos
da vida social parisiense. O evento era realizado anualmente ou a cada dois anos, às vezes
em espaços diferentes, mas guardando o nome Salon que remetia ao Salon carré do
Louvre, onde aconteciam as exposições desde 1737. O número de visitantes regulares ao
evento revela que o fluxo era considerável: por exemplo, entre 1 e 1,2 milhão de
espectadores até 1848, ano que marcou a entrada com pagamento obrigatório, exceto aos
domingos. A partir de então, o público visitante foi reduzido à metade, exatamente a
447.766 espectadores em 1857, o que é, face à população de 1.174.000 de parisienses à
época, ainda assim, um número considerável.191
Cf. HOEK, Léo H. Titres, toiles et critiques d’art. Déterminants institutionnels du discours sur l’art au
dix-neuvième siècle en France. Amsterdam: Rodopi, 2006, p. 89-91.
191
109
O que constituía a especificidade e originalidade do Salão como evento era, entre
outros fatores, a capacidade de concentrar em um só lugar e num período determinado o
que era julgado essencial da atividade artística. Ainda que o Salão fosse considerado um
espaço de divertimento, era igualmente necessário para artistas que não tinham outra
oportunidade de obter semelhante prestígio para expor e vender suas obras. Cabia a um
júri a escolha dos trabalhos a serem expostos, função do personagem de Vergy na peça
La Guimard, por exemplo. O caráter arbitrário dessas decisões gerava, muitas vezes,
conflitos entre artistas e a direção do Salão. Uma vez aceitos para expor, era necessário
que os artistas conquistassem o interesse do público, sobretudo de possíveis compradores,
a atenção dos críticos e a boa vontade dos membros do júri que julgavam e distribuíam
prêmios em dinheiro, ou ainda a bolsa do “Prêmio de Roma”, e medalhas de honra aos
melhores.
No que diz respeito ao Salão de 1857, Jules Verne e os críticos que citaremos mais
adiante, são unânimes:192 esta exposição não foi tão grandiosa se comparada ao tamanho
e sucesso da exposição de 1855. Essa grandiosidade que caracterizou o Salão de 1855 se
justifica pela quantidade de obras, sobretudo. O número de objetos diminuíra de
aproximadamente 6.000 obras para exatas 3.474, das quais 2.715 quadros de 1.166
pintores diferentes, como revela William Butcher em pesquisa ao catálogo oficial do
Salão de 1857.193 Ainda que Jules Verne realize uma “maratona” pelas diferentes salas
organizadas no Palácio da Indústria, onde hoje se encontra o Petit Palais, ele não cita
todos os artistas nos seis artigos críticos que irá escrever, mas identifica e lista mais de
260, dentre os quais se destacam representantes das estéticas neoclássica, romântica e
realista. Nesse Salão, é nítido que os críticos se interessaram mais pela hierarquia dos
gêneros das obras do que pelos diferentes estilos. Os quadros sobre a atualidade e cenas
de batalhas travadas pelo exército francês ocupam a maior parte das críticas que
pesquisamos, talvez por serem mais numerosos, como Jules Verne irá sinalizar no artigo
preliminar:
Ainsi, par exemple, la guerre de Crimée aura certainement les honneurs
du Salon; ses principaux événements s’y trouvent développés sous
toutes les formes possibles ; il n’est pas un épisode qui n’y soit reproduit
avec satiété [...] Après la guerre de Crimée, les inondations de la Loire
et du Rhône ont fourni leur contingent de situations dramatiques.194
192
Objetivando uma coleta de informações e uma comparação com a crítica que Jules Verne faz do salão
de 1857, documentamo-nos em ensaios de outros críticos, a saber: Théophile Gautier, Jules-Antoine
Castagnary, Maxime Du Camp, Louis Auvray, Edmond About e Félix Nadar.
193
BUTCHER in VERNE, 2008, p. 13-14.
194
VERNE, 2008, p. 43.
110
Em seguida, os temas religiosos e de história também gozam de espaço
importante, seguidos por retratos, cenas de gênero, paisagens, marinhas e, por fim,
quadros de animais e flores. Mesmo não tendo exposto nesse Salão, ainda é o nome do
pintor romântico Eugène Delacroix que atrai a crítica de admiradores, mas será Gustave
Courbet que provocará o público com a escolha de temas julgados grosseiros.
A simultaneidade de estilos e de gêneros distintos contribuía para se ter a
impressão geral de que faltava uma “identidade” à pintura daquela época. Essa impressão
é compartilhada por diversos críticos, mesmo os mais conservadores. Assim, Maxime Du
Camp resume suas análises com uma afirmação decisiva: “Se o fogo destruísse por
completo o Salão de 1857. Isso seria uma perda para a arte? Não. Não existe sequer um
objeto cujo equivalente não seja fácil.195
William Butcher ressalta que foram duas as únicas obras que “resistiram à
evolução do gosto e aos caprichos da glória” e encontraram um espaço na História da
Arte: Les Demoiselles des bords de la Seine, de Courbet, e Les Glaineuses, de Millet.196
Se o primeiro quadro é criticado negativamente por Jules Verne, como veremos, o mesmo
não acontece com o segundo. Postas essas duas obras à parte, o leitor das críticas
analisadas, inclusive aquela de Jules Verne, encontrará alguns nomes bastante conhecidos
na História da Arte como os de Gustave Doré, Horace Vernet, Camille Corot e Charles
François Daubigny. No entanto, cabe-nos pensar nos nomes esquecidos (ou
conscientemente excluídos) que são acompanhados, evidentemente, por um sem-número
de obras que assinaram, e no papel do crítico de arte na difusão e perpetuação de tais
nomes.
Percebe-se que a figura do crítico e seu trabalho encenam papel importante, pois
circulam entre as dimensões estéticas, político-administrativas e comerciais do Salão.
Desde o surgimento da crítica de arte no século XVIII com os escritos de Diderot,197 os
escritores serão os porta-vozes do discurso sobre a arte. A partir do Romantismo, os
críticos de arte apoiam as lutas dos artistas na tentativa de operar uma ruptura ética e
estética com instituições como a Academia e os Salões, objetivando a autonomia do
“Le feu détruirait de fond en comble le Salon de 1857. Serait-ce une perte pour l’art ? Non. Il n’existe
pas un objet dont l’équivalent ne soit facile.” DU CAMP, Maxime. Le Salon de 1857. Paris : Librairie
Nouvelle, 1857, p.175. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k552044/f178.image.r=maxime%20du%20camp%20salon%201857.la
ngPT
196
BUTCHER in VERNE, 2008, p. 9.
197
Cf. HOEK, 2006, p. 240.
195
111
campo artístico, ainda vinculado a coerções corporativistas e institucionais. Descobrir o
nome de Jules Verne, praticamente desconhecido no campo literário à época, como autor
nesse gênero nos obriga a situá-lo na esteira de nomes que contribuem para essa
autonomização do campo artístico e a ler, nas concepções artísticas anunciadas na crítica,
a composição do projeto estético que permeará seu trabalho mais conhecido, as
Viagensextraordinárias.
4.2.2 Jules Verne, crítico do Salão de 1857
Os leitores da Revue des Beaux-Arts - Tribune des artistes, revista conservadora
dirigida pelo arquiteto Félix Pigeory, teriam se perguntado quem seria aquele jornalista
que assinava as críticas de arte da revista. Em 1857, naquele momento de sua trajetória,
Jules Verne, corretor na Bolsa de Paris, já havia colaborado igualmente para a revista de
Félix Pigeory com um artigo que retratava a vida e a obra do compositor Victor Massé.
Esse artigo, com o título de Portraits d’artistes – XVIII, foi publicado na Revue des
Beaux-Arts, vol. 8, nas páginas 115 e 116, em 15 de março de 1857,198 três meses antes
dos seus artigos de crítica de arte. De acordo com essas datas, podemos afirmar que Jules
Verne já era conhecido narevista de Pigeory. No entanto, a razão pela qual Verne obteve
o espaço de crítico de arte é desconhecida. A possível explicação, aceita por
pesquisadores da obra de Jules Verne, é que, com a morte de Georges Guénot, redator da
revista, Pigeory se viu obrigado a se unir a novos colaboradores. Pitre-Chevalier, diretor
do Musée des Familles, tinha relações comerciais com Pigeory e, portanto, pode ter
servido de intermediário.
Mesmo que a última contribuição de Jules Verne ao Musée des familles date de
1855, ele não havia abandonado a colaboração com a revista: em 10 de setembro de 1856,
o então corretor de ações da Bolsa de Paris escreve ao seu pai: “Je vais aller passer trois
ou quatre jours à la campagne chez Pitre-Chevalier pour qui j’ai un travail à finir.”199
O retrato do músico Victor Massé, escrito segundo o modelo da biografia assim
como a praticava Sainte-Beuve em seus Portraits littéraires, Portraits contemporains e
Portraits de femmes, publicados a partir de 1844, mostra que Verne escrevia de maneira
agradável, entusiasmada. Questionamo-nos se isso era suficiente para que ele fosse
convidado a escrever artigos críticos para o Salão do ano, já que a concorrência era
198
199
VERNE, 1857, reproduzido em VERNE, 2008, p. 30-35.
VERNE, 1988, p. 415.
112
grande. Nomes já bastante conhecidos poderiam ocupar essa função como Edmond About
(Le Moniteur Universel), Maxime Du Camp (La Revue de Paris), Théophile Gautier
(L’Artiste), Émile de la Bédollière (Le Siècle), Eugène Pelletan (Le Courrier de Paris), e
alguns caricaturistas que também atuavam como críticos de arte como Nadar (Rabelais)
cujas crítica e caricatura serão citadas mais adiante, Bertall (Le Journal Amusant) e Cham
(Le Charivari).
Há ainda o nome de Jules-Antoine Castagnary que publicou suas críticas na Revue
Moderne, editadas posteriormente em volume e intituladas Philosophie du Salon de
1857.200 Castagnary ousará romper com a tradição, não considerando a hierarquia oficial
dos gêneros e tratando as escolas clássica e romântica como antiquadas. O verbete para o
nome do crítico no Dicionário Larousse de 1864 comprova sua originalidade e ousadia:
Ele chegou a esta conclusão que a pintura religiosa e a pintura de
história estavam acabadas enquanto gêneros artísticos, e que a nova arte
devia ter por único objeto a natureza, ser apenas a expressão da vida
universal em todos os seus modos e em todos os graus, sem nenhuma
mescla de convenção nem de ideal. [...] Coerente em seus princípios,
não se deteve, no seu Salão, nem nos quadros religiosos, nem nos
quadros de história, e discorreu exclusivamente sobre a paisagem, o
retrato e os quadros de gênero, estes, segundo ele, devendo ocupar a
primeira posição na pintura. Essas ideias, desenvolvidas com vigor e
talento, causaram sensação no mundo das artes, e muitos declararam
que não haviam visto, desde os Salões de Diderot, nada mais original e
notável do que elas.201
Essa longa citação nos permitirá melhor situar a abordagem crítica de Jules Verne.
Sete anos antes de escrever os artigos para a Revue des Beaux-Arts, seu tio, o pintor
Chateaubourg,202 pedira ao sobrinho para lhe dar alguns detalhes sobre o Salão daquele
ano, que aconteceu entre janeiro e março de 1851. Esse Salão foi o evento que recebeu o
tão criticado trabalho Un Enterrement à Ornans, de Gustave Courbet, pintor que se
CASTAGNARY, Jules-Antoine. “Philosophie du Salon de 1857”. In : ___. Salons (1857-1870). 1er
Tome. Paris: Charpentier, 1892. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k550068/f63.image
201
“Il en arriva à cette conclusion que la peinture religieuse et la peinture d’histoire étaient finies comme
genres artistiques, et que l’art nouveau devait avoir pour objet unique la nature, n’être que l’expression de
la vie universelle dans tous ses modes et à tous ses degrés, sans aucun mélange de convention ni d’idéalité.
[…] Conséquent avec ses principes, il ne s’occupa, dans son Salon, ni des tableaux religieux ni des tableaux
d’histoire, et parla exclusivement du paysage, du portrait et des tableaux de genre, appelés suivant lui à
prendre le premier rang dans la peinture. Ces idées, développées avec vigueur et talent, firent sensation
dans le monde des arts, et beaucoup déclarèrent qu’on n’avait rien vu de plus original et de plus remarquable
depuis les Salons de Diderot.” LAROUSSE, Pierre: Grand Dictionnaire universel du XIXe siècle. Paris:
Larousse, 1864-1877, p. 513-514. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k507258/f516.image.r=larousse%201867.langPT
202
Francisque de la Celle de Chateaubourg (1789-1879) se casara em 1823 com Caroline Allotte de la Fuÿe,
tia de Jules Verne pelo lado materno. Chateaubourg, pintor de retratos, vem de uma família de pintores: seu
pai Charles Joseph era miniaturista e seu avô, Paul François de la Celle de Chateaubourg era igualmente
pintor de retratos. DUSSEAU. Joëlle. Jules Verne. Paris: Perrin, p. 31.
200
113
permitiu tratar uma cena” de gênero rústica nas proporções em que comumente se
pintavam cenas históricas: o painel mede 315 cm x 668 cm. Jules Verne, não muito à
vontade, cita a situação em carta endereçada a seu pai, em Nantes:
Je vais écrire à mon oncle Chateaubourg les détails qu’il me demande sur
l’exposition ; mais je ne m’y connais pas le moins du monde, et en fait
d’école, je crains bien de n’être que de la mienne ! Il ferait bien mieux de
venir former son opinion à Paris – C’est si près !203
Essa situação lembra a do próprio Diderot, que inaugura o gênero e começa sua
carreira de crítico de arte desta maneira. Diderot descreve e julga, a pedido de seu amigo
Melchior Grimm, as exposições da Academia Real de Pintura e Escultura, para a
Correspondance Littéraire,a partir de 1759. Em razão da ausência total de documentação
das cartas entre Jules Verne e seu tio, não podemos afirmar como o escritor desenvolveu
essa “crítica”. No entato, ainda que não possamos dizer o que ocorreu entre essa carta e a
crítica de 1857, parece-nos, ao menos, que esse mal-estar, por assim dizer, em escrever
uma crítica, possa ter sido resolvido em 1857.
Enquanto crítico, Verne, ao contrário de Castagnary, está longe de explicitar ou
desenvolver alguma teoria original e não defende nenhum novo sistema estético. Como o
autor declara no segundo artigo: “Notre but est de raconter tout simplement ce qu’on y
voit et ce qu’on y entend, de présenter quelques observations personnelles, de résumer les
diverses impressions des visiteurs, en un mot, de faire moins la critique que la chronique
du Salon de 1857”.204 Com essa modesta pretensão, Jules Verne circula por entre as nove
salas do Palácio da Indústria cuja ordem de visita lhe dita a apresentação das obras:
Dans ce Salon, si l’on ne veut parler que des œuvres remarquables, il
faut marcher au hasard et sans livret: si l’on doit parler de tout à peu
près, il me paraît convenable de tout voir, et conséquemment de
procéder avec méthode; commençons donc par la première salle,
finissons par la dernière, et que le public excuse les fautes de l’auteur.205
Iniciando por um artigo preliminar, publicado no mesmo dia da abertura do Salão
- o que significa dizer que os críticos faziam parte de um seleto grupo que visitava o Salão
antes da abertura oficial, podendo realizar, assim, a pré-divulgação do evento nos jornais
ou revistas -, Jules Verne se esforça para dar conta do maior número possível de artistas
expositores, ao invés de se dedicar à análise precisa de obras. Ele lista artistas como fará
mais tarde no romance Vingt mille lieues sous les mers, de 1871, para decorar com
203
VERNE, 1988, p. 284.
VERNE, 2008, p. 85.
205
VERNE, 2008, p. 55.
204
114
quadros as paredes do gabinete de curiosidades do capitão Nemo. No romance, no bloco
descritivo que trata do interior da sala, o narrador distingue os pintores antigos dos
modernos, incluindo na segunda categoria os nomes de Delacroix, Ingres, Decamp,
Troyon, Meissonier e Daubigny. O primeiro citado, representante da escola romântica,
aparece no artigo preliminar da crítica de Jules Verne embora não tenha exposto no Salão
de 1857. Jules Verne torna Delacroix presente quando menciona de maneira bastante
elogiosa a lamentável ausência do pintor no Salão. Citado junto a outros nomes, Verne
dá as primeiras pistas de que precisamos para entender suas concepções artísticas. Ao
criticar o excesso de quadros militares nesse Salão, afirma:
Les abstentions parmi les maîtres de l’art moderne sont-elles
nombreuses à ce Salon de 1857 ? Cela est à craindre, et bien des noms
célèbres manqueront à bien des toiles ; c’est un fait regrettable, et qui
tend à se reproduire trop souvent, comme le résultat d’un parti pris [...];
[Concernant la peinture militaire] Nous le répétons, il n’est ici question
que du sujet, et non du talent avec lequel il peut être traité; au surplus,
ces toiles sont éminemment patriotiques et trouveront beaucoup
d’admirateurs ; mais, peut-être aussi, le connaisseur, l’artiste, le poète,
égaré au milieu de ce fracas militaire, aura-t-il quelque peine à
rencontrer une grande œuvre qui symbolise une grande idée ; peut-être
cherchera-t-il en vain une Orgie romaine, de Couture, un Dernier jour
des condamnés, de Müller. L’actualité, nous le croyons du moins, n’a
jamais été un élément de succès en peinture proprement dite, comme
elle peut l’être dans les productions littéraires de l’imagination; aussi,
les maîtres de l’art moderne ne lui ont-ils pas demandé leurs effets,
quand ils signaient Paul Delaroche, Ingres et Delacroix, la Jane Grey,
le Cromwell, la Barque du Dante, la Justice de Trajan, le Saint
Symphorien et l’Homère déifié.206
Em detrimento da pintura militar que usa temas da atualidade como a Guerra de
Crimeia, os pintores e quadros citados (Ver de 6.3.8 a 6.3.15) permitem mostrar o
posicionamento do crítico no que diz respeito ao gênero e aos temas representados. Aqui,
a figura do crítico se encarna assumindo o papel de fiador, mostrando-se, portanto,
autorizado a transmitir tais opiniões, pois está legitimado para pronunciar seu discurso
em situação legítima, ou seja, legitimado pela mídia,diante de receptores legítimos. Ora,
os quadros citados na passagem acima, de pintores ainda vivos em 1857 e já consagrados,
fazem parte do gênero pintura de história que, na hierarquia dos gêneros, tinham maior
prestígio. Considerando que esse ponto de vista é defendido no artigo preliminar, aquele
em que o crítico Jules Verne apresenta de maneira geral o Salão, inferimos que tudo o
que será apresentado e criticado nos artigos seguintes estará em nível inferior a esses
quadros. Logo, podemos considerar que o crítico assume uma posição entre o
206
VERNE, 2008, p. 43-45.
115
acadêmico/neoclássico (Thomas Couture, Charles Müller, Paul Delaroche) e o
moderno/romântico (Dominique Ingres, na transição para o Romantismo; Eugène
Delacroix); ao rejeitar os temas da atualidade, ele se inscreve na linha de críticos que
aceitam e perpetuam a hierarquia dos gêneros na pintura, encabeçada pela pintura de
história; por outro lado, defende a cor dos pintores românticos, considerados como
“mestres da arte moderna”.
Há ainda certo número de princípios que Jules Verne usa nas suas argumentações
críticas que nos permitem delinear suas concepções artísticas. Ele atribui importância
primordial à cor que é “le sang de la peinture”207:“Si le dessinest indispensable en
peinture, la couleur est néanmoins, pour ainsi dire, la première qualité d’un peintre,
puisqu’elle seule fait respirer, fait palpiter, fait vivre”.208Em defesa da cor, Verne critica
o pintor Paul Alfred de Curzon cujos quadros “règnent dans l’empire des ombres et des
brouillards”209 e se indigna:“Depuis quand la peinture n’a-t-elle plus mission de charmer
les regards par la ligne et par la couleur? Doit-elle donc se réduire aux effets fades
désavantageux de la grisaille ? Non, cent fois non! ”210
Cabe-nos investigar a transição entre a defesa do neoclássico e a modernidade no
uso da cor empreendidas pelo crítico e o possível conservadorismo do romancista sob a
ótica sociológica que trazemos para a pesquisa, adotando a perspectiva da trajetória.
Em “Modos de produção e modos de percepção artísticos” - sexto capítulo de A
economia das trocas simbólicas,211 Pierre Bourdieu analisa a arte, sua percepção e
produção, como umsistema simbólico capaz de ser tomado como instrumento de poder e
legitimação da ordem vigente. O autor escolhe as artes plásticas como referência para sua
análise e fala sobre o conservadorismo estético das classes dominantes, quando recusam
romper com os códigos conhecidos, rejeitando, assim, a arte moderna. Essa recusa se
assemelharia bastante à exigência de realismo nas obras por parte do gosto “popular”.
Para Bourdieu, a “arte nova”, que transformou a maneira de produzir e apreciar as obras
de arte, teria originalmente a intenção de excluir a burguesia, tornando a arte ininteligível
para esse grupo. Porém, não demorou muito até a burguesia dominar os códigos que
possibilitariam alcançar essa competência estética. Ironicamente, o estandarte da arte
207
VERNE, 2008, p. 56.
VERNE, 2008, p. 125.
209
VERNE, 2008, p. 137.
210
VERNE, 2008, p. 138.
211
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Trad. Sérgio Miceli e Silvia de Almeida Prado.
São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 269-294.
208
116
“pura” ou da arte pela arte coube confortavelmente aos burgueses cultos, pois se antes
temiam o artista engajado em uma “arte social”, desde então “não podem deixar de
regozijar-se com a declaração de ‘neutralidade’ professada pelos defensores da arte pela
arte, oponentes tanto da arte burguesa como da grossura socialista”.212
Bourdieu explica essa tendência conservadora como uma espécie de inércia, onde
as obras produzidas segundo um novo modo de produção estariam fadadas a serem vistas
através dos antigos códigos de percepção, ao menos durante um tempo, até ser criado um
novo habitus. Assim, na perspectiva da trajetória, suspeitamos que o crítico Jules Verne
se inclua no grupo que sai em defesa de uma certa “modernização” da arte e da
modificação do habitus dominante ao criticar positivamente Delacroix e a valorização da
cor na pintura em detrimento do desenho, ainda que não aceite temas do presente e prefira
a manutenção da pintura de história, o que poderia apontar para traços de
conservadorismo estético ao criticar, mais tarde, os impressionistas que adotam temas do
cotidiano e rejeitam os gêneros dominantes da pintura.
Excluindo todo tipo de exagero, extravagância de estilo ou de escolha do tema,
Jules Verne dá preferência ao meio termo, valorizando a simplicidade ou a ingenuidade
de uma obra que, para ele, são sinônimos de verdade. Partindo dessa premissa, o
neoclássico Jean-Léon Gérôme é, para Verne, uma espécie de nec plus ultra:
[...] c’est par la simplicité la plus absolue que M. Gérôme est arrivé à
l’effet le plus vrai, le plus pénétrant, le plus réussi ; l’Orient, l’islamisme
tout entier est là, et jamais il n’aura été donné d’en recevoir une plus
complète impression : il semble que l’art ne puisse aller au delà.213
O gosto conservador do crítico se reforça na crítica ao quadro La rencontre de
Saint Bonaventure et Saint-Thomas d’Aquin, de Dominique-Antoine Magaud.214 O
julgamento é reiterado por um “sentimento religioso”:
[...] le peintre n’a pas cherché son effet dans les proportions colossales
ordinaires à ce genre d’ouvrage, mais il est simple et vrai ; on y sent la
conviction, et surtout la foi ; le sentiment qui s’en dégage est
essentiellement catholique.215
212
BOURDIEU, 2007, p. 277.
VERNE, 2008, p. 96.
214
A única referência de imagem que encontramos para este quadro não pôde ser copiada. Em razão da
ausência de outros sites de referência para realizarmos comparações, preferiríamos não arriscar sobre a
autenticidade deste quadro. Remetemos o leitor ao único site encontrado:
http://www.artnet.com/artists/antoine-magaud/la-recontre-de-saint-bonaventure-et-saint-thomasTYQyuemg8ocgA7FNXJMuFA2
215
VERNE, 2008, p. 154-155.
213
117
De acordo com Verne, muitos pintores não possuem as qualidades de
simplicidade, verdade e sentimento nessa época de “sécheresse et de maigreur dans
l’art”.216 Essa qualificação remete ao discurso pessimista do poeta Michel Dufrénoy,
personagem do romance Paris au XXe siècle escrito em 1861, que vive em uma Paris
modificada pela ciência e pela tecnologia, onde a arte e o artista não têm espaço e,
portanto, não são valorizados.
No seu Salão de 1857, Jules Verne não deseja ser acusado de esquecimento ou
omissão e, portanto, atenta para que todos os gêneros e temas encontrem seu espaço.
Quanto aos quadros inspirados nos temas literários, o crítico menciona cenas extraídas de
Shakespeare, La Fontaine, Goethe e E.T.A. Hoffmann e os louva quando os pintores são
fiéis às histórias, não se permitindo liberdades em relação aos seus modelos literários.
Esse é o caso, por exemplo, da crítica ao quadro Faust et Wagner217, de M. Dumarest cujo
germanismo é “très-réussi; c’est là de la bonne et vraie peinture allemande comme il
convenait à l’interprétateur de Goëthe”218 ou ainda quando trata do quadro Le loup
garou219, de M. Sand:
[…] sujet tiré d’un conte d’Hoffmann, le Pot d’or [...] le côté
fantastique est rendu. [...] la difficulté de ce genre de sujet demande un
talent spécial que M. Sand paraît posséder au plus haut degré. [...]
Mêmes remarques pour son tableau traité d’après Hoffmann, où le
personnage de l’archiviste, dont l’habit se soulève au vent, se déploie
à l’horizon d’une façon très fantastique.220
De maneira recorrente, encontramos na sua crítica menções aos quadros que
representam a atualidade, sobretudo as batalhas da Guerra da Crimeia, finda em 1856.
Observamos aqui não só uma maneira de propaganda a Napoleão III por parte dos artistas
pintores, mas uma marca de competição entre eles para obterem encomendas e/ou
medalhas por parte do Estado. No entanto, Jules Verne deixa claro sua opinião sobre as
cenas militares da atualidade e a quantidade excessiva e inútil de grandes pintores que se
dedicaram a esse gênero oficial:
N’est-ce pas peut-être un abus, et ne doit-on pas regretter que beaucoup
d’artistes de mérite se condamnent à une siimpérieuse spécialité ; le
sujet est en dehors du talent, je le sais ; mais pourquoi ne pas laisser aux
maîtres dans ce genre de peinture officielle, le soin de conserver à la
postérité le souvenir de nos gloires militaires ?221
216
VERNE, 2008, p. 150.
Embora tenhamos realizado buscas, uma imagem para este quadro não foi encontrada.
218
VERNE, 2008, p. 101.
219
Como o quadro Faust et Wagner, de Dumarest, não encontramos imagem para ilustrar este.
220
VERNE, 2008, p. 91.
221
VERNE, 2008, p. 43.
217
118
Talvez seja nessa passagem em que critica esse gênero oficial na pintura, o único
momento em que o futuro autor das Viagens extraordinárias mencionará a relação entre
pintura e literatura, distanciando-as no seu uso. Não falamos aqui da fraterna emulação
entre literatura e pintura expressa na fórmula horaciana do Ut pictura poesis, tratamos da
função do pintor e do escritor na sociedade. Verne afirma que cabem à literatura temas
da atualidade e que os pintores devem se incumbir de temas da história, mas não atuais.
Ele vai adiante: “L’actualité, nous le croyons du moins, n’a jamais été un élément de
succès en peinture proprement dite, comme elle peut l’être dans les productions littéraires
de l’imagination.”222Aqui, implicitamente, Jules Verne atribui e distingue funções sociais
para pintores e escritores e sai em defesa do gênero de maior prestígio na hierarquia dos
gêneros, a pintura de história, em detrimento da pintura militar. Além disso, Verne critica
o desperdício, por assim dizer, de pintores que se dedicam à pintura militar somente para
enaltecer os feitos de Napoleão III, afim de obterem prêmios, entre os quais o “Prêmio de
Roma”, aquele aludido na peça La Guimard.
Em termos de papel social da arte encontramos, implicitamente, menção à função
educativa da arte focada na experiência individual que o espectador deve ter diante do
objeto artístico. No artigo preliminar, tratando do novo espaço, da iluminação e das
disposições dos quadros nas paredes do Palácio da Indústria, o crítico elogia:
[...] nous n’aurons pas de ces tableaux accrochés dans les ténébreux
couloirs où la foule se presse sans s’arrêter, ni de ces toiles juchées à
des hauteurs incommensurables, où le regard humain ne peut atteindre ;
tout sera visible, et, nous aimons à le croire, tout sera vu. Les exposants
anglais de 1855 avaient, dit-on, mathématiquement calculé l’angle
d’inclinaison à donner aux tableaux pour les baigner dans ces ondes
lumineuses qui en rehaussent si merveilleusement les effets ; il paraît
qu’on a profité de leur expérience ; ainsi donc, au milieu de ces
paysages, de ces marines, de ces batailles, de ces scènes historiques, il
y aura de l’air et de la lumière pour les exposants, tout autant que pour
leurs admirateurs.223
Tratando da disposição das obras e da atenção dada à sua iluminação, percebemos
um dado em discussão no século XIX: as paredes tapeçadas de quadros que impedem a
contemplação e a fruição da arte. Com a valorização do indivíduo, cara ao Romantismo,
essa discussão se intensifica e vai desembocar no que surge ao final do século XIX:
quadros organizados lado a lado, ou pelo menos até onde a visão do visitante alcança,
222
223
VERNE, 2008, p. 44.
VERNE, 2008, p. 39-40.
119
distando uns dos outros de maneira a não interferir na contemplação das obras de arte.
Trata-se para nós de pensar que o crítico Jules Verne, colocando-se no lugar de visitante,
concebe como papel social da arte a valorização da experiência individual e, por
conseguinte, a educação do e pelo olhar. Isso nos permite refletir sobre os modos de
transmissão e perpetuação do habitus, de que falamos, que faz com que os dominados
reconheçam os valores dominantes como valores incorporados.
4.2.3 O exemplo de Courbet
Seguindo os objetivos do crítico que, declaradamente, desejava realizar uma
crônica do Salão, podemos afirmar que Jules Verne se informou e, muito provavelmente,
se baseou em duas publicações críticas de Théophile Gautier. Segundo um inventário do
conteúdo da biblioteca pessoal de Jules Verne feito por Magda Kiszely,224L’Art moderne
(Michel Lévy, 1856) e Les Beaux-arts en Europe, 1855 (Michel Lévy, 3 volumes, 18551857) figuravam entre os livros que podem ter servido de modelo ao jovem Jules Verne.
Isso constitui um forte argumento para estabelecermos relações entre a identidade crítica
de Verne e a de Gautier. No entanto, Gautier apresenta certa indulgência em seus artigos
críticos, característica da qual Jules Verne se aproxima com cautela, como veremos. Para
se ter uma ideia de como os críticos do Salão de 1857 abordaram uma obra controversa,
escolhemos Les Demoiselles des bords de la Seine (été) (ver 6.3.16), de Gustave Courbet,
com a finalidade de comparar o julgamento de Jules Verne àqueles de seus colegas
críticos. Nitidamente, Jules Verne se apresentará bastante conservador:
Nous arrivons enfin à M. Courbet ; il est généralement admis qu’il a de
grandes qualités de peintre; or, il vaudrait peut-être mieux qu’il n’en eût
pas, ce serait moins embarrassant pour le jury d’admission; [...] Pour
les Demoiselles du bord de la Seine, ce sont effectivement des
demoiselles ; elles sont étendues sur l’herbe, l’une sur le côté, l’autre à
plat ventre ; elles portent des robes de grenadine et des châles d’été ;
elles se roulent sur toute cette toilette fripée, qui n’a jamais dû être
neuve pour elles ; elles adressent au public des sourires non équivoques.
M. Courbet, où donc va-t-il chercher ses modèles! Voilà donc ce qu’il
expose en public! Des demoiselles qui ont profité de leur jeudi pour
aller se vautrer sur l’herbe. Nous ajouterons que le dessin de ce tableau
est grossier et incorrect, que la couleur est d’un jaune désagréable, et
que d’après les règlements de police, ce tableau ne devrait être visible
que de huit à onze heures du soir.225
Cf. KISZELY, Magda. “La bibliothèque de Jules Verne”. Bulletin de la Société Jules Verne, nº 118, 2e
trimestre, 1996, p. 45-46.
225
VERNE, 2008, p. 109-111.
224
120
Em tom de condenação da obra de Courbet, Jules-Antoine Castagnary se
une a Verne:
Ses toiles, faites pour la foule, n’ont jamais eu de prise sur elle. Et
Courbet, qui commence à le comprendre, s’en venge cette année en
exposant, double injure à Paris et au peuple, les Demoiselles des bords
de la Seine, dont le titre jovial indique assez la pensée impertinente. En
bafouant ainsi la majeure partie de ses admirateurs, Courbet se condamne
lui-même.
En résumé, Courbet est un brave ouvrier peintre, qui, faute de
comprendre l’esthétique de son art, gaspille sans profit de belles et rares
qualités. Comme peintre de genre, il a pu croire autrefois que la peinture
devait avoir une destination sociale ; mais, à l’heure qu’il est, il n’en croit
plus un mot, et [...] se moque de lui-même, des autres et de son art.226
Sem se incomodar com o aspecto moral como seus contemporâneos, Maxime Du
Camp censura o quadro de Courbet pela imperícia e inabilidade com a pintura:
On regarde les tableaux de M. Courbet avec étonnement et curiosité,
comme on regarderait une tapisserie bien faite ou des persiennes bien
peintes, mais voilà tout ; en eux rien n’émeut, rien ne trouble, rien ne
vit ; quels que soient ses sujets, c’est toujours de la nature morte. Les
demoiselles du bord de la Seine sont deux créatures qui, sans doute,
sont sorties le matin même de la rue de Courcine, et qui, danshuit jours,
y retourneront. […] Ces deux espèces, d’un dessin plus de douteux,
apparaissent comme un paquet d’étoffes, très réussies du reste, d’où
sortent des bras et des têtes; le corps est absent, point d’anatomie, c’est
un ballon dégonflé. […] [Courbet] ne sait ni chercher, ni composer, ni
interpréter ; il peint des tableaux comme on cire des bottes ; c’est un
ouvrier de talent, ce n’est pas un peintre.227
Nadar, por sua vez, se mostra reservado e se nega a fazer uma análise do quadro
de Courbet cujos modelos serão tratados como duas marionetes:
C’est en pleine pâte que travaille M. Courbet ; il gâche et plaque
hardiment ses tons en épaisseurs et si la délicatesse et l’exquisivité [sic]
manquent dans cette peinture-là, au moins est-elle de franc et véritable
aloi. Une bonne école pour M. Courbet, l’atelier de Courbet.
Mais – son Concert d’Ornans, son Enterrement, ses Lutteurs, sa
Baigneuse, ses Demoiselles des bords de la Seine (sic) de cette année
l’ont surabondammantprouvé, – M. Courbet doit se résigner à n’être ni
un peintre d’histoire, ni même jusqu’ici, et je le crains bien jamais, un
peintre de figures. Ce n’est pas seulement le goût, c’est la pensée qui
manque, mais manque absolument, radicalement, à cette œuvre toute de
main, si solide et vitale que soit cette main. Je ne veux pas réveiller le
226
227
CASTAGNARY, 1892, p. 29-30.
DU CAMP, 1857, p. 102-105.
121
souvenir grotesque des grandes toiles à personnages de M. Courbet, et
je me tais même sur ses Demoiselles des bords de la Seine.228
Fig. 15 Caricatura do quadro, por Nadar
Nadar – Jury du Salon de 1857, p. 5
Com essa crítica, Nadar se junta ao crítico e escultor conservador Louis Auvray
que insistirá nas capacidades limitadas do artista:
M. Courbet est un artiste de talent, mais d’un talent qui réside plus dans
la main qu’au cerveau ; en terme d’atelier, il a de la pâte. On prétend
que les peintures bizarres qu’il a exposées, il les a faites tout exprès
pour attirer l’attention et répandre son nom dans le public. Si c’est un
moyen, il a parfaitement réussi; mais ce renom-là peu d’artistes le
rechercheront, et il est temps que M. Courbet devienne plus correct,
plus sérieux. Pour nous, nous n’avons jamais ajouté foi à ces prétendues
manœuvres, à ces calculs; nous pensons que cet artiste peint comme il
sait, car nous trouvons toujours et partout dans ses ouvrages les mêmes
défauts et les mêmes qualités. Ainsi, son ridicule tableau: les
Demoiselles des bords de la Seine manque de perspective et les figures
sont laides, plates et sans modèle.229
Entre tantos críticos, encontramos duas raras críticas elogiosas. Edmond About
afirma:
M. Courbet est de la foule. Il se jette sur la nature comme un glouton ;
il happe les gros morceaux, et les avale sans mâcher avec un appétit
d’autruche. Il saisit la nature, non par les côtés les plus intimes, mais
par les plus apparentes. […] Il y a des prodiges de trompe-l’œil dans les
Demoiselles des bords de la Seine. Je n’ai pas besoin de vous
recommander une certaine paire de gants frais, exécutée dans la
dernière perfection. Ce qui est peut-être encore plus miraculeux, c’est
l’éclat luisant de ces deux figures lunaires dont l’épiderme se graisse
d’un commencement de sueur. Ceci posé, j’ai quelque peine à retrouver
228
NADAR. Nadar-Jury au Salon de 1857. Paris: Librairie Nouvelle, 1857, p. 14. Para a caricatura ver p.
5. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1104393/f6.image.r=salon%20de%201857%20nadar.langPT
229
AUVRAY, Louis. Salon de 1857. Paris: Au Bureau de l’Europe artiste, 1857, p. 66-67. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6216292r/f76.image.r=louis%20auvray%20salon%20de%201857.langFR
122
un corps féminin dans chacune des deux robes. M’est avis que la
demoiselle du premier plan possède en moins ce que la baigneuse avait
en trop. Celle du second plan, j’ai regret de le dire, n’est pas tout à fait
à son plan.230
Théophile Gautier vai além e concede a Courbet uma expressão pessoal que,
talvez, não fosse considerada como incapacidade ou incompetência pelos outros críticos.
O difusor do princípio da “arte pela arte” se mostra mais aberto que os outros em
reconhecer as qualidades de Courbet entre os pintores franceses:
Le maître peintre d’Ornans, M. Courbet, a été assez sage cette année ;
il n’a pas logé le Réalisme dans une barque comme un monstre de la
foire, et il a exposé tout tranquillement, comme les autres, des tableaux
qui, sauf les Demoiselles de la Seine, n’ont rien de trop excentrique et
renferment, nous nous plaisons à le reconnaître, de franches et robustes
qualités. Si M. Courbet n’a pas l’intelligence de l’art, il en a du moins
le tempérament. C’est un peintre né, et quelque emploi qu’il en fasse,
son talent subsiste. […]
Les Demoiselles de la Seine (un singulier titre) rentrent dans le genre
extravagant auquel l’artiste a dû sa célébrité. C’est un coup de tampon
à tour de bras sur le tam-tam de la publicité, pour faire retourner la foule
inattentive. Deux grosses créatures, à qui ce serait fait honneur que de
les appeler lorettes, sont étendues dans l’herbe, au bord du fleuve, l’une
à plat ventre, l’autre sur le côté, affublées de toilettes du plus mauvais
goût, et semblent cuver à travers un demi-sommeil le petit bleu dont les
cabarets d’Asnières arrosent leurs fritures. Un arbre aux larges
feuillages découpés dans du papier vert laisse apercevoir au fond de la
toile une eau d’un azur bien napolitain pour la Seine ; – tout cela forme
un paysage de haute fantaisie comme on en voit sur les papiers
d’auberge en province. Quant à la demoiselle étalée sur le ventre, si
l’idée lui prenait de se redresser, de déposer ses habits sur la rive et de
se mettre dans l’eau le bout du pied comme une nymphe antique ou
comme une canotière, elle ne causerait pas le même scandale de ronde
bosse que la Vénus capitonnée à l’exposition des menus-Plaisirs.
Aucune forme ne bombe sous les plis de sa robe. M. Courbet a tout
dépensé en une fois ! – Il y a pourtant dans ce tableau, volontairement
grotesque, d’excellentes parties de couleur; le châle ramagé de
broderies est fait à merveille. Sur le visage vulgaire de la seconde
dormeuse brille la fleur de la vie et perle la moiteur du sommeil. Les
bras, le col et la joue de la première demoiselle sont d’un ton vrai, solide
et fin qui ne se trouve que sur bien peu de palettes.231
Em geral, se caracterizássemos a abordagem de Jules Verne em relação
aos outros críticos, todos mais experientes do que ele, poderíamos dizer que Verne
enumera mais do que descreve e descreve mais do que analisa. As comparações acima
230
ABOUT, Edmond. Nos Artistes au Salon de 1857. Paris: Hachette, 1858, p. 154-155. Disponível
em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6485867v/f156.image.r=Salon%20de%20%201857%20about.langPT
GAUTIER, Théophile. “Salon de 1857”. L’Artiste, 2e tome, n° 3, 20 septembre, 1857, p. 34. Disponível
em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k220833h/f35.image.r=L%27artiste.langFR
231
123
nos permitem afirmar o caráter moralista e conservador do crítico Jules Verne, sobretudo
diante da crítica feita por Théophile Gautier. Este se mostra mais indulgente, menos
conservador e menos moralista, o oposto do que Jules Verne traz para compor o conjunto
de ideias normativas que adota em relação à natureza e à função da arte, às técnicas
artísticas e às qualidades que ele julga indispensáveis à obra de arte.
Em suma, espera-se de um artigo crítico sobre arte que ele descreva, interprete e
avalie a produção e a recepção de obras, de estilos, de artistas. Que leve em conta
movimentos estéticos, acontecimentos institucionais como a entrega de prêmios e
medalhas. Uma crítica de arte pressupõe, portanto, a exterioridade do objeto que estará
ligada a esse movimento descritivo, interpretativo e avaliativo. A análise desses critérios
de juízo, que norteiam o gênero desde Diderot, permite extrair normas e valores
constitutivos do que tratamos aqui como a concepção de arte do crítico.
Com a perspectiva discursiva que pretendemos aqui, entendemos que a escolha de
um nome para criticar um Salão por uma revista especializada em artes seria suficiente
para conferir a autoridade necessária a Jules Verne para intervir como crítico. A Revue
des Beaux-Arts o legitima e o autoriza a pronunciar tais julgamentos. Entretanto, ausência
de informações sobre outros trabalhos críticos anteriores ao Salão de 1857 e a escassez
de textos que o autor publicara antes daquele ano não nos auxilia conjecturar sobre a
figura do crítico, isto é, não é possível fazer suposições sobre o ethos pré-discursivo do
crítico ao procedermos à análise dos seus ensaios. Essa constatação reitera a ideia de que
escrever uma crítica de arte, para Jules Verne, é uma tentativa de inscrever seu nome no
campo literário. O gênero serve para que Verne, como para muitos outros, se faça
conhecer pelo público leitor e estabeleça alianças no campo das artes.
Na sua crítica, Jules Verne se vale de instrumentos que lhe permitem justificar o
julgamento que pronuncia sobre a obra de arte. Esses instrumentos são esquemas
argumentativos, retóricos e estratégicos que auxiliam a atribuir à obra qualidades
valorizadas. Através desses instrumentos discursivos, com base em indícios textuais,
pudemos investir de caráter e corporalidade o ethos do crítico e construir a figura do
fiador, reunindo a função social do enunciador e seu discurso.
A atribuição desses valores/qualidades por parte do crítico Jules Verne indica
algumas de suas ideias a respeito da arte que, em conjunto, comporiam seu projeto
estético naquele momento. Objetivando desvendar suas concepções em matéria de arte,
propusemo-nos algumas questões que permitiram guiar nossa busca. Analisando a crítica,
tentamos desvelar o papel social da arte, a posição do artista na sociedade, o estatuto da
124
arte em relação à(s) outra(s) forma(s) de expressão, as qualidades que uma obra de arte
deve ter e os temas e procedimentos técnicos são apropriados para expressar a arte.
Tendo estudado esses seis artigos críticos sob a ótica dessas questões, podemos
afirmar que o estilo de aprendiz crítico é fluido. Na esteira de Diderot, Jules Verne mostra
que a crítica de arte é composta por diferentes tipos de discurso que tratam do literário,
do artístico e do histórico. Em forma de narrativa, valendo-se ainda do descritivo e do
argumentativo, Jules Verne não apresenta seus ensaios organizados de acordo com os
gêneros acadêmicos da pintura, embora os valorize; tampouco os organiza por nome do
pintor, como outros fazem; Verne procede à maneira de um simples espectador que
passeia pelo salão, escolhe o quadro e o critica.
No que diz respeito à relação entre pintura e outras formas de expressão, nesse
caso a literatura, embora não faça profundas reflexões, o crítico defende que os assuntos
da atualidade nunca foram temas de sucesso para a pintura, como são para as produções
literárias. Com essa afirmação, Verne parte em defesa da hierarquia dos gêneros da
pintura encabeçada pela pintura de história em detrimento da pintura militar, o que
implicitamente, pode ser lido também como uma crítica aos feitos do Império de
Napoleão III e à submissão da arte ao Estado já que pintores não especialistas no gênero
oficial precisam se render a ele para poder obter prêmios, acumular capitais. A ideia da
defesa da hierarquia dos gêneros e da valorização da pintura de história é reiterada pela
menção de cinco quadros que não estão expostos no Salão de 1857. Esses quadros
figuram, por assim dizer, no “museu imaginário” do crítico. Eles nos servem de referência
para situar o que Jules Verne projeta como qualidade na pintura e o que é uma pintura de
qualidade. Observamos uma regularidade genérica nessa lista de quadros: todos extraem
seus temas da história, da Bíblia ou da literatura.
Ao mencionar a disposição das obras nas paredes e a iluminação das salas que
priorizarão a experiência do visitante trazendo os quadros para uma altura que permita
que sejam vistos, Verne fala sobre o papel social da arte de maneira implícita. Elogiando
essa nova organização, o crítico valoriza a experiência individual e, em consequência, a
educação do/pelo olhar que deve estar ligada a um habitus dominante que se deseja
modificar.
Ao longo dos ensaios, o crítico concede ao leitor algumas noções que permitem
revelar como suas concepções artísticas deverão se manifestar cinco anos mais tarde na
sua produção romanesca: conservador e moralista, defenderá a hierarquia dos gêneros da
125
pintura, diferenciará antigos e modernos e criticará qualquer tentativa que se distancie de
uma concepção romântica da arte.
4.3 Paris no século XX
Desde o desenvolvimento das mídias impressas e da edição durante a Monarquia
de Julho, na França, o ideal romântico da “sagração do escritor”, como proprõe Paul
Bénichou,232 foi bastante modificado pelas lógicas econômicas capitalistas da indústria
do impresso que extrapolaram as relações entre arte e dinheiro no campo literário. Como
mencionado no capítulo 3 desta Tese, Gustave Flaubert caracteriza negativamente a
situação do escritor no campo literário quando trata de sua situação financeiradurante o
triunfo do liberalismo no Segundo Império. O escritor não tinha muita escolha quando
decidia viver da sua pena. Desprovido de capital econômico, só lhe restava alienar sua
independência, cedendo ao jornalismo, ao folhetim, enfim ao sistema de obras por
encomenda.
As condições de produção, no caso de Jules Verne, provam as premissas de uma
profissionalização do escritor que a negociação com o editor contribuiu para instituir nas
práticas contratuais, à medidaque seu papel de intermediário entre autores e leitores se
tornou cada vez mais importante no campo literário, regido por tensões entre o econômico
e o simbólico.
Essa reflexão se faz necessária quando tratamos do romance Paris au XXe siècle,
pois a admissão de Jules Verne na editora de Hetzel representou para ele a esperança de
uma existência para e pela literatura. Essa entrada na editora de Hetzel indicaria também
a que ponto Verne integra as aspirações da sua geração à profissionalização do homem
das letras, como pudemos observar no contrato de 1865 que rezava o recebimento mensal
de 750 francos por três volumes escritos. De fato, depois do primeiro contrato de 23 de
outubro de 1862 para a publicação de Cinq Semaines en ballon, Hetzel mostrou certa
astúcia publicando em fatias os romances Voyage au centre de la Terre e De la Terre à
la lune de modo a “testar” a recepção do escritor. Se, depois da recusa de Paris au XXe
siècle, um segundo contrato é assinado em 1 de janeiro de 1864 para a publicação em
232
Aludimos ao trabalho de referência sobre o Romantismo, elaborado pelo especialista em história da
literatura Paul Bénichou. BÉNICHOU, Paul. Le sacre de l’écrivain, 1750-1830. Essai sur l’avènement d’un
pouvoir spirituel laïque dans la France moderne. Paris : NRF-Éditions Gallimard, 1996.
126
volume das duas partes de Voyages et aventures du capitaine Hatteras (quarto romance
de Verne), nenhuma promessa, senão verbal, indica uma clara intenção de ambas as partes
emcontraírem um acordo que daria forma aos futuros romances de Jules Verne. As
publicações de Voyage au centre de la Terre (segundo romance) e De la Terre à la lune
(terceiro romance), não asseguram ao escritor as chances de um contrato fixo com o editor
que parece hesitar diante da espera de um último veredito do público.
A ausência de uma garantia legal deixa Jules Verne vulnerável ao poder do editor
que só decide engajá-lo definitivamente na sua editora uma vez que o escritor tenha sua
popularidade estabelecida pelo público. O terceiro contrato, que data de 11 de dezembro
de 1865, fecha esse acordo em um compromisso delongo prazo por três volumes por ano,
como sabemos.Verne pôde, enfim, conciliar a arte e o ofício de escritor graças aos valores
que receberia por cada volume in-18. Nesse momento, a publicação de Voyages et
aventures du capitaine Hatteras, no formato in-8, em 1867, aloca oficialmente a criação
verniana em um empreendimento ideológico do contrato didático com o “Avertissement
de l’éditeur” do Magasin d’Éducation et de Récréation (ver 6.2.3), anunciando um
programa de literatura enciclopédica e lançando o ciclo romancesco das Voyages
extraordinaires.
Nessa perspectiva contratual, compreendemos que nenhum autor poderia
associar-se à equipe do Magasin d’Éducation et de Récréation, portanto, sem o aceite das
injunções de escrita impostas pelo pacto de leitura do prospecto da revista. Talvez por
uma interpretação muito rápida dessas condições de produção literária, Verne tenha se
chocado contra a incompreensão do seu editor que fez de Paris au XXe siècle um entrave
do qual o romancista não mediu todas as consequências no que diz respeito ao seu futuro
na editora. Apesar da confirmação da sua notoriedade junto ao público, seu engajamento
só será efetivamente endossado por Hetzel quando uma série de regras didáticas e
ideológicas limitará sua criação literária de maneira “pública”, com o anúncio do
paratexto editorial das Voyages et aventures du capitaine Hatteras do programa
enciclopédico das Voyages extraordinaires.
4.3.1 Fracasso de um romance e romance do fracasso
Para Jules Verne, escritor que começa a ter seu nome celebrado junto ao público
em razão do sucesso da sua primeira publicação, a recusa radical do manuscrito de Paris
127
au XXe siècle, romance caracterizado como impublicável por parte do editor, pode ser
caracterizado como uma queda cruel. O que designamos como queda diz repeito ao fato
de se tratar de um romance laudativo ao Romantismo e, portanto, de clara tentantiva de
filiação a esta estética. A tentativa de sua publicação foi radicalmente abortada pelo
editor. Embora Verne se valha dos acontecimentos científicos ocorridos naquele
momento como o desenvolvimento da eletricidade e o advento dos motores a ar, para
escrever esse romance, é o tom de crítica, desprezo e de censura contra a “Ciência” e suas
“incursões nas artes” que sobressai na trama.
Antes de tratarmos das representações artísticas românticas em detrimento do
excesso de cientificismo caro a Hetzel e àquele momento histórico, cabe-nos um
tratamento um pouco mais extenso da carta de Hetzel cujo julgamento não sanciona Paris
au XXe siècle. O discurso de Pierre-Jules Hetzel nessa carta de quatro pequenas páginas
escritas em 1864 visa justificar o problema da recusa do manuscrito, negociar com Jules
Verne e persuadi-lo de que o livro não devia ser publicado:
Mon cher Verne, je donnerais je ne sais quoi pour n’avoir pas à vous
écrire aujourd’hui. Vous avez entrepris une tâche impossible – et pas
plus que vos devanciers dans des choses analogues – vous n’êtes pas
parvenu à la mener à bien. C’est à cent pieds au-dessous de Cinq
semaines en ballon. [...] C’est du petit journal et sur un sujet qui n’est
pas heureux.
[...] Dieu sait pourtant que si votre livre avait été seulement un quart
réussi j’étais décidé à le trouver bon tout à fait.233
Com um discurso persuasivo e ao mesmo tempo incisivo para afirmar com certa
violência a sua oposição radical ao romance, Hetzel parece usar uma argumentação um
tanto sedutora através da qual mostra seu poder de editor de vencer resistências,
atribuindo a uma coletividade a legitimidade do seu bom senso: “Enfin, c’est raté, raté!
et cent mille hommes me diraient le contraire que je les enverrais promener.
Malheureusement cent mille hommes parleraient comme moi.234
Essa caução de “cem mil homens” não confina a retórica de Hetzel em uma lógica
da exclusão, que se limitaria a dar a Jules Verne um lugar no banco dos réus nesse
“processo” de Paris au XXe siècle. O esforço do discurso de sedução se nota também nos
estratagemas que o editor evoca para sensibilizar e convencer Verne:
Je ne vois rien à louer dans votre affaire, rien à louer franchement. Je suis
désolé, désolé de ce que je dois vous écrire là. Je regarderai comme un
désastre pour votre nom la publication de votre travail. Cela donnerait à
voir que le Ballon est un heureux raccroc. Moi qui ai le Capitaine
233
234
HETZEL in VERNE, 1999, p. 25.
HETZEL in VERNE, 1999, p. 25.
128
Hatteras je sais que le raccroc c’est cette chose manquée au contraire
mais le public ne le saurait pas.235
Prevenindo Verne do desastre para seu “nome”, Hetzel evoca habilmente o que
diz repeito ao essencial para o ego de um escritor que deseja ser publicado, lido e
reconhecido: é através do nome que se dá a singularidade do escritor, pela assinatura que
se efetua a identidade do escritor. Hetzel compara explicitamente “o trabalho” de Verne
àquele de Cinq semaines en ballon ou ao do Capitaine Hatteras reunidos em um mesmo
conjunto de obras de sucesso, do qual só pode ser excluído essa “coisa falha” que é Paris
au XXe siècle. Pelo seu critério de classificação, o editor traça uma linha que separa o bom
do ruim, o publicável do impublicável, a fim de explicar a Jules Verne que a reputação
de uma assinatura engaja uma responsabilidade em relação à unidade de sua imagem de
autor ainda em construção no campo e em fixação nas representações dos leitores. O falso
dilema sobre o “feliz acaso” pressiona o escritor a refletir sobre a ruptura que a publicação
desse manuscrito poderia causar na continuidade da construção de seu “nome” no campo
trazendo a dúvida para o público, confiante na promessa que foi Cinq semaines en ballon.
Quaisquer que tivessem sido as intenções de Jules Verne, com os dois manuscritos que
Hetzel tinha em mãos, ao mesmo tempo, naquele momento, o escritor lhe oferece a
possibilidade de julgar se ele tem as aptidões necessárias para escrever romances
científicos com talento. Entre Paris au XXe siècle e o Capitaine Hatteras, o editor não
hesita em sacrificar a exceção pela regra, o “acaso” pela garantia de uma estética
romanesca em harmonia com o ideal de savant-écrivain aguardado por Hetzel e Macé
para o lançamento do Magasin d’Éducation et de Récréation.
O discurso persuasivo de Hetzel indica, sobretudo, uma censura. Do ponto de vista
do ato de recusa desse manuscrito, não há dúvida que o editor aplica uma censura prévia
como qualquer editor que usa da sua prerrogativa profissional para recusar ou aceitar a
inscrição de um título no catálogo da sua editora em nome do seu papel comercial de
intermediário no mercado dos bens simbólicos. Com o caso de Paris au XXe siècle, essa
censura tem também um valor simbólico, em função do registro crítico que o romance
tem em relação à situação de controle exercida pelo poder imperial autoritário sobre a
profissão de editor cujo trabalho poderia ser visto como prejudicial à autoridade do
Estado. Esse aspecto político do romance poderia ter sido considerado como um fator de
menor importância por Hetzel se ele não tivesse observado a fraqueza literária de Jules
235
HETZEL in VERNE, 1999, p. 25.
129
Verne tanto no elogio que faz à sua editora,236 como na crítica dos mecanismos industriais
e financeiros de Napoleão III.237
Nas relações entre um autor e um editor tem de existir uma razão determinante
para se tomar a decisão de uma censura que rompa com o circuito da comunicação,
perturbando o consenso do contrato. Essa questão, que envolve legitimidade, está no
cerne dos argumentos de Hetzel sobre a “mediocridade” de Jules Verne em Paris au XXe
siècle:
Vous êtes dans le médiocre là, jusqu’aux cheveux. Il n’y a pas de vraie
originalité, il n’y a pas d’esprit, il n’y a pas en un mot ce qui peut faire
une carrière de six mois à un livre. Il y a de quoi vous faire un tort
irréparable.238
Depois do nome, a originalidade é o outro elemento importante para ascender ao
status de autor. É o que o editor elenca com a sua pena, a fim de apontar a falta de estilo
do manuscrito de Verne. A originalidade deveria ser algo, portanto, que diferenciasse
Jules Verne da massa de literatos de sua época. A autêntica originalidade é definida pelo
editor quando lista as características essenciais para se obter um “bom livro” na Notice
sur la vie et les ouvrages de Florian, redigida por Stahl, pseudônimo de Hetzel, em 1842.
As referências à “simplicidade” e à “inteligência” retornam como critérios de avaliação
da escrita - fora, contudo, do contexto de situação argumentativa de origem -, em prol de
uma literatura para todas as idades. Implícito, o modelo das Fables de Florian sustenta o
discurso de legitimação de censura que permite Hetzel destacar os valores primordiais
que marcam a criatividade literária que faltam no manuscrito de Verne, impedindo, por
esse motivo, qualquer chance de “carreira” para esse livro.
Para convencer Verne do fracasso que a publicação do manuscrito poderia ter,
Hetzel termina sua carta de recusa de maneira que o escritor tome consciência da reflexão
que não fez sobre as exigências do tipo de ficção que tentou escrever. Hetzel traz para
Verne a consciência da posição incipiente que ocupa no campo literário, naquele
momento de sua trajetória: “Vous n’êtes pas mûr pour ce livre-là, vous le referez dans
vingt ans.”239
Aludimos aqui ao capitulo X do romance em que Jules Verne elogia a editora Hetzel dizendo que “ela
editava muito cuidadosamente seus livros”. VERNE, Jules. Paris au XXe siècle. Paris: Hachette, 1995, p.
121.
237
Referimo-nos ao registro panfletário de todo o romance mas, sobretudo, ao capítulo I em que critica,
entre outros, a maneira como a Educação é tratada como uma operação industrial – para citar um exemplo.
Cf. VERNE, 1995, p. 12.
238
HETZEL in VERNE, 1999, p. 25.
239
HETZEL in VERNE, 1999, p. 26.
236
130
A inadequação ao gênero e ao tema são características sublinhadas pelo editor
para justificar a recusa da publicação. Excluindo da sua argumentação qualquer
possibilidade de melhora ou reescrita do texto, o editor conta com o choque que essa
censura total poderia causar no escritor para que este note as incoerências na sua ambição
em escrever dentro do gênero de romance futurista, para usar uma terminologia ulterior.
É dessa maneira que a crítica de Hetzel constrói para Verne as condições de possibilidade
de uma criação romancesca encerrada nos limites da literatura didática para a juventude.
Essas condições são confirmadas na carta de resposta de Jules Verne, datada de 25 de
abril de 1864:
Que vous me connaîtrez mal si vous pensiez un instant que votre lettre
n’a pas été la bienvenue. Je vous affirme que j’en tiendrai compte car
toutes vos observations sont justes. [...] D’ailleurs, je vais vous dévoiler
toute ma pensée, mon cher Hetzel; je ne tiens pas énormément à être un
arrangeur de faits; par conséquent je serai toujours prêt à modifier pour
le bien général. Ce que je voudrais devenir avant tout, c’est un écrivain,
louable ambition que vous approuverez pleinement.240
Cabe-nos verificar o que causou tal repulsa a Hetzel para que o editor recusasse a
publicação do manuscrito e quais são os dados que informam sobre o projeto estético
abortado do escritor.
4.3.2 A literatura e o personagem paratópico na Paris “futurista”
A crítica verniana relata frequentemente que o estilo imaturo desse manuscrito
criticado por Hetzel teria contribuído para o sucesso de Verne e reiterado o caráter
científico da sua obra. De fato, se tivesse sido publicado, Paris au XXe siècle teria se
unido aos outros romances das Voyages extraordinaires e poderia endossar a justicativa
tão retomada por vernianos e não vernianos, difundida no meio escolar e perpetuada por
escritores, roteiristas e diretores de filmes como Guerra nas estrelas (1977), De volta
para o futuro (1985) A liga extraordinária (2003), entre tantos outros, querotulam o
escritor como o pai da ficção científica.
Escritas num mundo distante das possibilidades acenadas pela alta tecnologia de
hoje, as Voyages extraordinaires são ricas em detalhes e escritas em tom de diário de
viagem,com temas extraídos da leitura que Verne fazia de obras de outros autores, como
240
HETZEL in VERNE, 1999, p. 28.
131
o norte-americano Edgar Allan Poe, de revistas como Le Tour du Monde, e de conversas
com amigos sobre descobertas e avanços científicos da época, como o fotógrafo Félix
Nadar, interessado em navegação aérea e balonismo, tema recorrente em diversos
romances de Verne, por exemplo. O resultado é uma mescla de ficção e realidade,
aventura e princípios científicos, que lhe renderam, inclusive, o título de visionário,
profeta de feitos que a ciência produziria, pelo menos, seis décadas mais tarde, como em
seu De la Terre à la lune, romance de 1865, com eventos que se assemelham ao programa
de exploração da Lua, concretizado em 1969.
Seus últimos trabalhos tratavam dos impactos da tecnologia no ambiente, como
em L’île à l’hélice (1895), no qual populações nativas de ilhas da Polinésia são destruídas,
ou em Le sphynx des glaces (1897), no qual prevê a dizimação de baleias. A última obra
foi L’invasion de la mer (1905), na qual um projeto de criação de um mar através de
canais de comunicação com o Mediterrâneo é mal recebido pela população local, que vê
seu estilo de vida ameaçado.
A mudança do tom dos romances de Jules Verne, inicialmente otimista em relação
aos benefícios que a tecnologia poderia trazer à humanidade, aconteceu, principalmente,
depois da morte de Jules Hetzel, em 1886. Atribui-se esse pessimismo, com frequência,
a outros fatos biográficos como uma crise no seu casamento, a morte de uma possível
amante e um atentado de seu sobrinho esquizofrênico, que deixou oescritor coxo depois
de 1886. Porém, Paris au XXe siècle, manuscrito do entorno de 1860 e ambientado na
Paris de 1960, é um texto em que vemos acumular características paradoxais: mesmo que
o narrador reconheça alguns aspectos positivos do progresso tecnológico - a
modernização advinda da eletricidade, do uso do ferro nas construções e da velocidade,
elementos que nos dão margem para falar de um Jules Verne, não só visionário, mas
futurista antes do tempo. O que salta aos olhos no romance, são os resultados e
consequências dessa modernização, as características pessimistas em relação ao
crescimento exacerbado da indústria que faz apagar da história da arte e da literatura todas
as referências românticas - para adiantarmos algumas conclusões. Jules Verne se vale da
trama que se passa cem anos adiante de seu tempo para criticar asociedade e os meios de
produção artística coetâneos. Para isso, cria o jovem personagem Michel Dufrénoy, poeta
e latinista, que vive em uma Paris de arranha-céus, trens de alta velocidade, carros
movidos a gás, uma cidade na qual não encontra a felicidade diante de um ambiente
altamente materialista, resultando em um fim trágico.
132
Em traços gerais, Paris au XXe siècle é caracterizado por sua descrição da idade
moderna. Ambientada na Paris do ano 1960, a trama é povoada por descrições dos novos
costumes e de uma cidade atingida pelas descobertas tecnológicas. O segundo capítulo,
intitulado “Apanhado geral das ruas de Paris”, é usado pelo narrador para descrever
minuciosamente o espaço com atenção às modernas, rápidas e eficientes vias férreas que
passam por cima das casas: “[...] suivant l’axe des boulevards, à cinq mètres des maisons,
au-dessus de la bordure extérieure des trottoirs; d’élégantes colonnes de bronze galvanisé
les supportaient et se rattachaient entre elles”.241 Sem economizar ao citar nomes das ruas
da capital francesa, o narrador dá conta das estações por onde passam e param os trens
com os quais era possível circular de uma extremidade à outra de Paris com a maior
rapidez: “Les stations du railway des boulevards se trouvaient situées au Trocadéro, à la
Madeleine, au bazar Bonne Nouvelle, à la rue du Temple et à la Place de la Bastille”.242
A energia elétrica tem sua presença marcada na descrição do espaço desse romance:
La foule encombrait les rues. La nuit commençait à venir; les magasins
somptueux projetaient au loin des éclats de lumière électrique. Les
candelabres établis d’après le système Way par l’électrisation d’un filet
de mercure rayonnaient avec une incomparable clarté; ils étaient réunis
au moyen des fils souterrains; au même moment, les cent mille
lanternes de Paris s’allumaient d’un seul coup.243
Os carros não puxados por cavalos, como observado pelo narrador, também têm
seu lugar nessa cidade desenvolvida tecnologicamente: “En effet, de ces innombrables
voitures qui sillonnaient la chaussée des boulevards, le plus grand nombre marchait sans
chevaux ; elles se mouvaient par une force invisible, au moyen d’un moteur d’air dilaté
par la combustion du gaz”.244
Diante de tais modificações na cidade de Paris, o narrador, instalado no século
XX, se pergunta:
Qu’eût dit un de nos ancêtres à voir ces boulevards illuminés avec un
éclat comparable à celui du soleil, cent mille voitures circulant sans
bruits sur le sourd bitume des rues, ces magasins riches comme des
palais, d’où la lumière se répandait en blanches irradiations, ces voies
de communication larges comme des places, ces places vastes comme
des plaines, ces hôtels immenses dans lequels se logeaient
somptueusement vingt mille voyageurs, ces viaducs si légers, ces
longues galeries élégantes, ces ponts lancés d’une rue à l’autre, et enfin
241
VERNE, 1995, p. 26.
VERNE, 1995, p. 27
243
VERNE, 1995, p. 28-29.
244
VERNE, 1995, p. 29.
242
133
ces trains éclatants qui semblaient sillonner les airs avec une fantastique
rapidité.245
Em suma, tais descrições que o narrador apresenta da cidade de Paris nos lembram
características da vertente artística Futurista cujo manifesto só se dará no início do século
XX. Sabe-se que o Futurismo foi introduzido por Filippo Marinetti, poeta italiano, com o
seu “Manifesto Futurista”, publicado na primeira coluna do jornal francês Le Figaro, em
20 de fevereiro de 1909:
245
VERNE, 1995, p. 30.
134
Fig. 16 (Le Figaro, 20 février 1909 – Gallica BNF)
135
O manifesto marcou a fundação do Futurismo, um dos primeiros movimentos da
arte moderna. Entre diversas características, o movimento futurista trata da exaltação dos
movimentos tecnológicos, da velocidade, da energia e da força, a par de uma
inquestionável crença no progresso científico-tecnológico, anunciando paralelamente
uma nova concepção estética, simbolizada por exemplo, pelo automóvel. O item quatro,
ditado no manifesto, atesta essa característica:
Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma
beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu
cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito
explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha,
é mais bonito que a Vitória de Samotrácia.246
De fato, quando falamos de Jules Verne, a compreensão do significado de futurista
vem da acepção primeira da palavra, e não do movimento artístico que tomou tal nome.
O termo futurista já existia antes desse movimento, significando algo que está “à frente
de seu tempo”, o que se aplica provavelmente ao pensamento dos Futuristas a respeito de
si mesmos e aos clichês que envolvem o nome de Jules Verne. Mas o que propomos aqui
com essa alusão é dizer que tais características em Jules Verne apontam o autor como um
futurista antes do tempo, futurismo, aqui, enquanto movimento estético; sendo o romance
Paris au XXe siècleo mais representativo dessas características.
No entanto, como sinalizamos anteriormente, um paradoxo se instala, já que o
personagem principal, o jovem Michel Dufrénoy, mostra-se um indivíduo atordoado
diante das modificações tecnológicas proporcionadas pelo desenvolvimento científico.
Esse aspecto se sobrepõe às características de exaltação da tecnologia. O que sobressai
para o leitor, é que o autor tem a intenção de descrever os avanços tecnológicos para, em
seguida, mostrar sua perniciosidade para a literatura e para a pintura. As representações
da arte e do artista, portanto, não são realizadas sob aspectos positivos. Com elas, o
narrador constata a “morte” definitiva do Romantismo. Com base nesse momento da
trajetória de Jules Verne no campo literário, podemos ler essa informação como uma obra
autobiográfica: o personagem Michel Dufrénoy sendo o próprio Verne.
Poeta bretão que escreve versos e vai a Paris em busca de um editor e para receber
um prêmio de poesia latina, Michel Dufrénoy se sente deslocado na cidade futurista, onde
só a escrita tecnológica e científica é favorecida e onde oartista só serve para distrair a
digestão alheia: “Or, l'artiste n'est pas loin du grimacier auquel je jette cent sols de ma
246
Original disponível no site da BNF http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2883730.r=.langfr. Última
consulta: 20 de novembro de 2015.
136
stalle pour qu’il amuse mes digestions”247, como profere Stanislas de Boutardin, tio e
tutor do órfão Michel, aquele que o recebe e o abriga em Paris. Banqueiro, Stanislas é um
personagem que incarna toda opinião a qual se opõe Michel; ele valoriza somente a
utilidade das coisas e despreza a arte:
M. Stanislas Boutardin était le produit naturel de ce siècle d’industrie;
homme pratique avant tout, il ne faisait rien que d’utile, tournant ses
moindres idées vers l’utile, avec un désir immodéré d’être utile, qui
dérivait en un égoïsme véritablement idéal; joignant l’utile au
désagréable, comme eût dit Horace; sa vanité perçait dans ses paroles,
plus encore dans ses gestes, et il n’eût pas permis à son ombre de le
précéder; il s’exprimait par grammes et par centimètres [...] il méprisait
royalement les arts, et surtout les artistes, pour donner à croire qu’il les
connaissait; pour lui, la peinture s'arrêtait au lavis, le dessin à l'épure, la
sculpture au moulage, la musique au sifflet des locomotives, la
littérature aux bulletins de Bourse.248
Obrigando o jovem Michel a trabalhar no seu banco, Stanislas Boutardin tenta
distanciá-lo da sua arte. A passagem abaixo relembra o momento da trajetória de Jules
Verne que, quando vai para Paris, precisa trabalhar na Bolsa de Valores a fim de honrar,
inclusive, os contatos sociais feitos por seu pai que, inicialmente, recusava a ideia de que
seu filho se tornasse escritor:
Monsieur, vous allez entendre des paroles que je vous prie de graver
dans votre mémoire. Votre père était un artiste. Ce mot dit tout. J’aime
à penser que vous n’avez pas hérité de ses malheureux instincts.
Cependant j'ai découvert en vous des germes qu'il importe de
détruire.Vous nagez volontiers dans les sables de l’idéal et, jusqu'ici, le
résultat le plus clair de vos efforts a été ce prix de vers latins, que vous
avez honteusement remporté hier. Chiffrons la situation. Vous êtes sans
fortune, ce qui est une maladresse ; un peu plus, vous étiez sans parents.
Or, je ne veux pas de poètes dans ma famille, entendez-vous bien !249
No quarto capítulo do romance, intitulado “De alguns autores do século XIX e da
dificuldade de obtê-los”, temos descrita a visita do personagem a uma biblioteca pública,
na qual vai procurar autores como Victor Hugo, Honoré de Balzac, Alfred de Musset e
Alphonse de Lamartine, todos referências românticas. Entretanto, no lugar de NotreDame de Paris ou da Comédie humaine, encontra Harmonias elétricas de Martillac,
Meditações sobre o oxigênio, do Sr. Pulfasse, O paralelograma poético e as Odes
descarbonadas. Estupefato e aterrorizado, exclama: “L’art n’avait donc pas échappé à
247
VERNE, 1995, p. 39.
VERNE, 1995, p. 35.
249
VERNE, 1995, p. 38-39.
248
137
l'influence pernicieuse du temps! La science, la chimie, la mécanique, faisaient irruption
dans le domaine de la poésie!”250
Aproximadamente três anos após a escrita desse romance, Jules Verne se tornará
o escritor savant que atenderá Hetzel e Macé na composição da equipe do Magasin
d’Éducation et de Récréation que, entre outros, será o lugar de exposição do espaço que
a ciência tem na literatura, como informa um dos paratextos que estudamos no capítulo 3
desta Tese. No romance, diálogo entre um empregado da biblioteca e Michel dá conta,
não somente da constatação do lugar que a literatura tem em meio ao desenvolvimento
científico tecnológico do século -, e já desejamos dizer, da literatura romântica - como
também do valor negativo que um “savant” adquire em oposição a um “auteur”:
L’employé ouvrit des yeux démesurés.
Victor Hugo?, dit-il. Qu’est-ce qu’il a fait?
- C’est un des grands poètes du XIXe siècle, le plus grand même, répondit
le jeune homme en rougissant.
- Connaissez-vous cela ? demanda l'employé à un second employé, chef
de la Section des Recherches.
- Je n’en ai jamais entendu parler, répondit ce dernier. Vous êtes bien sûr
du nom ? demanda-t-il au jeune homme.
- Parfaitement sûr.
- C’est qu’il est rare, reprit le commis, que nous vendions ici des ouvrages
littéraires. Mais enfin, puisque vous êtes certain... Rhugo, Rhugo,... dit-il
en télégraphiant.
- Hugo, répéta Michel. Veuillez demander en même temps, Balzac, de
Musset, Lamartine.
- Des savants ?
- Non! Des auteurs.
- Vivants?
- Morts depuis un siècle.
- Monsieur, nous allons faire tous nos efforts pour vous obliger ; mais je
crains bien que nos recherches ne soient longues, sinon vaines.
- J’attendrai, répondit Michel.
Et il se retira dans un coin, abasourdi! Ainsi, toute cette grande renommée
ne durait pas un siècle! Les Orientales, les Méditations, les Premières
Poésies, la Comédie humaine, oubliées, perdues, introuvables,
méconnues, inconnues! [...] Quoi! se disait Michel, de la science! de
l'industrie! et rien pour l’art!251
Na ocasião, não sem dificuldade, Michel consegue um exemplar de Notre-Dame
de Paris, de Victor Hugo e, ao fazer o empréstimo do livro descobre que, Huguenin, um
velho bibliotecário amante de leitura, é um outro tio seu, irmão de sua mãe. Espantado
com o reencontro e com a ausência dos autores que procurava, indaga seu tio sobre essa
250
251
VERNE, 1995, p. 40.
VERNE, 1995, p. 44
138
falta. Valendo-se de termos ligados à “morte”, o narrador insinua nessa passagem a
constatação do escritor face ao fim simbólico da literatura romântica, fato que poderíamos
relacionar ao momento da trajetória de Jules Verne no campo literário:
Michel parla du but de sa visite à la bibliothèque, et interrogea son oncle
sur la décadence de la littérature. “La littérature est morte, mon enfant”,
répondit l’oncle ; vois ces salles désertes, et ces livres ensevelis dans
leur poussière; on ne lit plus; je suis ici gardien de ce cimetière, et
l’exhumation est interdite.252
Dufrénoy, ainda assim, determinado em ser um artista, trabalha no banco de seu
tio, onde conhece seus colegas de trabalho Quinsonnas, um pianista, e Jacques, seu
ajudante, e usa o restante de suas horas diárias para escrever um livro de poesias, mesmo
achando que seria impossível encontrar um editor e público leitor que se interessasse.
Discutindo sobre esse trabalho de poesia, Quinsonnas o desencoraja, mostrando o lugar
que a literatura tem no campo literário em busca de autonomização, cuja maior
característica é a submissão ao campo econômico, nos termos de Bourdieu. O narrador
compara o campo literário e, por extensão o campo editorial, a um “mercado”, uma
“imensa feira”. Ironicamente, é esse sistema criticado no manuscrito ao qual Jules Verne
terá de ceder para se tornar “escritor”:
Ce cher enfant, répliqua Quinsonnas, il espère, il travaille, il
s’enthousiasme pour les bons livres, et quand on ne lit plus Hugo,
Lamartine, Musset, il espère se faire lire encore! Mais, malheureux! astu donc inventé une poésie utilitaire, une littérature qui remplace la
vapeur d’eau ou le frein instantané? Non? eh bien! ronge le tien, mon
fils! si tu ne racontes pas quelque chose d’étonnant, qui t’écoutera ?
L’art n’est plus possible que s’il arrive au tour de force! De notre temps,
Hugo réciterait ses Orientales en cabriolant sur les chevaux du cirque,
et Lamartine écoulerait ses Harmonies du haut d’un trapèze, la tête en
bas!
- Par exemple, s’écria Michel bondissant.
- Du calme, enfant, répondit le pianiste, et demande à Jacques si j’ai
raison!
- Cent fois, dit Jacques; ce monde n’est plus qu’un marché, une
immense foire.253
Em uma de suas visitas frequentes ao seu tio Huguenin, Michel Dufrénoy
reencontra um antigo professor de grego e latim cuja filha, Lucy, se torna sua
companheira de passeios em Paris, namorada e encorajadora do seu trabaho de poesia.
Ainda que esperançoso em se casar com a jovem Lucy, Michel se vê em um impasse
252
253
VERNE, 1995, p. 51.
VERNE, 1995, p. 80-81.
139
diante das dificuldades de ser poeta depois de ter sido demitido e expulso da casa de seu
tio-tutor. No capítulo XIII do manuscrito, intitulado “Onde é tratado da facilidade com a
qual um artista pode morrer de fome no século XX”, o narrador reitera não só a ideia da
morte da literatura, como também da pintura. Tentando mais uma vez desencorajá-lo na
ideia de ser artista, Quinsonnas, ex-colega de trabalho de Michel, lança:
- Je ne plaisante pas, j’argumente! Tu veux être artiste à une époque où
l’art est mort !
- Oh! mort!
- Mort! enterré, avec épitaphe et urne funéraire. Exemple: es-tu peintre?
Eh bien, la peinture n’existe plus; il n’y a plus de tableaux, même au
Louvre; on les a si savamment restaurés au siècle dernier, qu'ils s’en
vont en écaille ; les Saintes Familles de Raphaël ne se composent plus
guère que d'un bras de la Vierge et d’un œil de saint Jean; ce qui est
peu; Les noces de Cana t'offrent au regard un archet aérien qui joue
d’une viole volante; c'est insuffisant! Les Titien, les Corrège, les
Giorgione, les Léonard, les Murillo, les Rubens ont une maladie de peau
qu'ils ont gagnée au contact de leurs médecins, et ils en meurent; nous
n’avons plus que des ombres insaisissables, des lignes indéterminées,
des couleurs rongées, noircies, mêlées, dans des cadres splendides! On
a laissé pourrir les tableaux, et les peintres aussi; car il n’y a pas eu une
exposition depuis cinquante ans. Et c’est heureux!254
Como nas outras passagens, o personagem, situado no século XX, faz uma crítica
a seu tempo. Quando se trata em falar da manutenção das obras de arte do Museu do
Louvre, é categórico: “Deixou-se estragar os quadros! E os pintores também.”
Mesmo que de maneira, incipiente, essa crítica integra a discussão que se travava
desde 1848 sobre o surgimento, a institucionalização e a profissionalização de outras
áreas ligadas ao museu no Segundo Império. Além dos conservadores dos museus
imperiais, inspetores de sala, restauradores, fotógrafos e guias procuravam ser
reconhecidos pela instituição. Bertinet trata na sua obra de referência sobre os museus de
Napoleão III da questão polêmica que envolvia o trabalho da restauração e do ofício do
restaurador. Ele relata, por exemplo, que as intervenções na Vênus de Milo, em 1854, e
na Vitória de Samotrácia, ocorrida de 1864 a 1866, tiveram resultados ruins a ponto de
serem notícias em diversos jornais e revistas da época, o que contribuiu para a difamação
do trabalho do restaurador, cujo talento consistiria somente em reparar perdas sem
repintar o remoldar, trazer novamente harmonia à obra com a menor quantidade de
trabalho possível.255 Para a pintura, o exemplo do qual Bertinet se vale é exatamente o
mesmo que aquele usado nos argumentos do personagem Quinsonnas, de Jules Verne.
254
255
VERNE, 1995, p. 161.
Cf. BERTINET, 2015, p. 185.
140
Les Noces de Cana, painel de Veronese pintado entre 1562 e 1563, conservado no Museu
do Louvre, foi restaurado em torno dos anos de 1850 e, em 1851, se tornou notícia devido
à acusação feita a Villot, a quem se encomendou a restauração do painel, de ter
modificado a pintura.256
Afora as considerações estéticas sobre as restaurações, o discurso do personagem
do romance de Jules Verne reforça os escândalos que se multiplicam à época sobre o
trabalho dos conservadores e restauradores do Louvre - cujo métier se profissionaliza e
se distancia da esfera de influência da Academia e dos pintores e restauradores
independentes que têm tendência em considerar qualquer intervenção em uma obra como
reservado ao seu domínio porque “somente o talento do artista é capaz de estabelecer uma
restauração boa ou ruim”.257 Ao trazer essa discussão para Paris au XXe siècle Verne se
posiciona contra o trabalho de restauração, tendo uma visão de inferioridade em relação
à área e, portanto, conservadora sobre esse ofício.
A discussão do personagem nos aproxima do posicionamento conservador de
Verne no que diz respeito à pintura que ainda pode ser verificado na passagem que segue
o diálogo que citamos acima. O personagem Quinsonnas julga ser bom o fato de não ter
tido uma exposição na cidade há cinquenta anos:
- Sans doute, car, au siècle dernier déjà, le réalisme fit tant de progrès
qu’on ne put le tolérer davantage! On raconte même qu’un certain
Courbet, à une des dernières expositions, s’exposa, face au mur, dans
l'accomplissement de l’un des actes les plus hygiéniques, mais les
moins élégants de la vie! C’était à faire fuir les oiseaux de Xeuxis.258
No trecho, além de aludir à anedota sobre o quadro de Zeuxis, referência já usada
na peça Monna Lisa, o personagem evoca o pintor Courbet e a escola Realista em pintura
para criticá-los. Seu conservadorismo reside em verificar que o “progresso” da escola
realista em pintura, cujo maior expoente é Gustave Courbet, seria, na verdade, uma
involução. Essa constatação remete às opiniões conservadoras de Verne enquanto crítico
de arte do Salão de 1857 quando julgou o quadro Les demoiselles au bord de la Seine, de
Courbet.
Ainda em busca de um espaço no campo das artes, Michel Dufrénoy é conduzido
a trabalhar no “Grand entrepôt dramatique”, sociedade que empregava homens “práticos
e industriais” para reescreverem peças de teatro ao gosto do século XX. Como uma usina
256
Cf. BERTINET, 2015, p. 186.
BERTINET, 2015, p. 187.
258
VERNE, 1995, p. 161.
257
141
de fabricação de textos, o que pode lembrar aos leitores do século XXI o modo das
produções de Hollywood, das adaptações e séries de TV, a inclusão na trama desse
“armazém dramático” permite Verne criticar, no capítulo XIV do romance, a
industrialização das artes do espetáculo. Como funcionários do Estado, os admitidos pela
“empresa” recebiam mensalmente salários por adaptarem textos. No caso de Michel,
dezoito francos semanais seria a soma recebida para refazer comédias, segundo um teste
de aptidão que precisou fazer. De acordo com o personagem, o “Grande armazém” não
produzia nada além de textos que divertiam “les populations dociles par de paisibles
ouvrages”.259 Para enfatizar a mediocridade das obras produzidas em ritmo de fábrica, o
narrador coloca em paralelo a essa frase a falta dos autores dramáticos românticos:
“Quelquefois, et par exception, on donnait du Molière au Palais Royal; mais Hugo,
Dumas, Ponsard, Augier, Scribe, Sardou, Barrière et Vacquerie se trouvaient éliminés en
masse”.260
Nesse capítulo, Jules Verne parece basear seu julgamento na sua infértil
experiência na cena teatral parisiense, denunciando a pobreza das peças da época. O
narrador alude a uma única peça de sucesso refeita por essa empresa:
C'est ainsi que l’administration venait d’obtenir un immense succès au
théâtre du Gymnase avec le Demi-Monde ingénieusement retourné ; la
baronne d’Ange était devenue une jeune femme naïve et sans
expérience qui manquait de tomber dans les filets de de Nanjac; sans
son amie, madame de Jalin, ancienne maîtresse dudit Nanjac, le coup
était fait ; l’épisode des abricots, et la peinture de ce monde de gens
mariés dont on ne voyait jamais les femmes, enlevait la salle.261
Mais uma vez, o autor se vale do argumento do futuro para criticar o tempo que
lhe é atual. Le Demi-Monde de Alexandre Dumas, peça de 1855, na época mais célebre
que La Dame aux camélias, de 1848, sofre com a industrialização das artes do espetáculo
e deixa claro a impossibilidade de um artista escapar a esse sitema. Em quinze dias de
trabalho no armazém, tendo sido promovido ao departamento do drama, Michel recebe a
tarefa de refazer Nos Intimes, texto de Victorien Sardou, de 1861. Sentindo-se incapaz de
realizar as modificações que o “Grand entrepôt” exigia, Michel se demite e passa a
deambular na miséria pela cidade de Paris. Nos dois últimos capítulos do romance, “O
demônio da eletricidade” e “Et in pulverem reverteris”, o escritor descreve a infelicidade
de Michel diante dessa sociedade industrial e excessivamente tecnológica através um
259
VERNE, 1995, p. 170.
VERNE, 1995, p. 170.
261
VERNE, 1995, p. 174.
260
142
passeio do personagem, em uma noite de inverno em que, tendo ido visitar Lucy, fica
desnorteado com o excesso de luz elétrica e termina no cemitério Père Lachaise. Errando
entre os túmulos com um buquê de violetas na mão, o narrador se vale da cena para citar
nomes de referências das artes que jazem no cemitério, pretexto para constatar a morte
das suas contribuições para a arte. Da música à literatura passando por referências a
pintores enterrados nesse cemitério, o narrador prefere reservar a última cena a uma dupla
alusão a referências românticas - explicitamente a Alfred de Musset e, de maneira mais
velada, a Honoré de Balzac:
Plus bas, Alfred de Musset, mutilé sur sa stèle funéraire, voyait mourir
à ses côtés le saule qu'il avait demandé dans ses vers les plus doux et
les mieux soupirés. En ce moment, la pensée revint au malheureux ; son
bouquet de violettes s'échappa de sa poitrine ; il le ramassa, et le déposa
en pleurant sur la tombe du poète abandonné. Puis il remonta plus haut,
plus haut encore, se souvenant et souffrant, et par une éclaircie de
cyprès et de saules, il aperçut Paris. Au fond, le Mont Valérien se
dressait, à droite Montmartre, attendant toujours le Parthénon que les
Athéniens eussent placé sur cette acropole, à gauche, le Panthéon,
Notre-Dame, la Sainte-Chapelle, les Invalides, et, plus loin le phare du
port de Grenelle jetant sa pointe aiguë à cinq cents pieds dans les airs.
Au-dessous Paris, et ses cent mille maisons entassées, entre lesquelles
surgissaient les cheminées empanachées de dix mille usines. Plus audessous, le bas cimetière; de là, certains groupes de tombes
apparaissaient comme de petites villes, avec leurs rues, leurs places,
leurs maisons, et leurs enseignes, leurs églises, leurs cathédrales, faites
d'un tombeau plus vaniteux. Enfin, au-dessus, les ballons armés de
paratonnerres, qui étaient à la foudre tout prétexte de tomber sur les
maisons non gardées, et arrachaient Paris tout entier à ses désastreuses
colères. Michel eût voulu couper les cordes qui les retenaient captifs,
etque la ville s’abîmât sous un déluge de feu!
Oh! Paris! Oh Lucy! s'écria-t-il en tombant évanoui sur la neige.262
Depois de depositar o buquê de violetas sobre o túmulo de Alfred de Musset em
um gesto de homenagem ao poeta romântico, não sem a tristeza da constatação de que a
literatura que fizera teria igualmente morrido, Michel continua seu caminho em direção
ao alto do cemitério e perde a consciência vendo a cidade de Paris modificada pelos
avanços industriais e tecnológicos do século. A cena lembra a cena final do romance Le
Père Goriot, de 1835, escrito por Honoré de Balzac, em que o jovem e ambicioso
personagem Eugène de Rastignac, do alto do mesmo cemitério, lança o famoso desafio à
cidade de Paris, comparada a uma colmeia da qual escuta os zumbidos: “À nous deux
maintenant!”. Podemos estabelecer uma relação de oposição quanto às atitudes dos
personagens de Verne e de Balzac; Michel, depois de não conseguir sobreviver da sua
262
VERNE, 1995, p. 210.
143
arte, de perceber que a ciência, a indústria e os avanços tecnológicos mataram, por assim
dizer, suas referências artísticas, confunde a cidade de Paris com um cemitério. Tomando
a visão de William Butcher263, que afirma, entre outros especialistas, que este é um
romance biográfico, essa relação de oposição entre o personagem disposto e ambicioso
de Balzac e Michel - o próprio Verne nesse momento da sua trajetória -, reforçaria a visão
pessimista de Jules Verne sobre sua própria carreira e os rumos que ela teria de tomar.
Até este momento da sua trajetória no campo literário, Verne tinha colecionado poucos
sucessos mesmo realizando tentativas em diversos gêneros, como o teatro e a crítica de
arte, defendendo um ponto de vista romântico sobre a arte, como mostrado nas análises
de La Guimard e Monna Lisa, por exemplo. Conhecer o editor Jules Hetzel e começar a
publicar fará com que Verne se insira dentro do sistema que critica em Paris au XXe
siècle.
Ora, a alienação do poeta Dufrénoy vivendo na experiência do desconforto
provocado pela transformação de um mundo no qual não se enquadrava como artista,
numa sociedade que não valoriza mais uma certa arte literária, permite-nos falar do seu
lugar problemático na sociedade e aproximá-lo, assim, de Jules Verne. Nesse momento
da sua trajetória no campo literário, fim de 1863 e início de 1864, o escritor, tendo
publicado Cinq semaines en ballon e enviado Les Voyages et aventures du capitaine
Hatteras para leitura de Hetzel, já havia tido fracassos no teatro, mas também
experimentado outros gêneros literários. Embora já tivesse dado alguns passos adiante
engajando-se com a editora e mostrado disposições para um possível abandono das suas
tendências românticas com a trama Cinq semaines en ballon, romance que atraiu P.-J
Hetzel, Verne submete o manuscrito de Paris au XXe siècle, escrito entre 1860-1861.
Nesse romance de caráter futurista, o escritor exalta o Romantismo e constata o fim dessa
estética. A submissão desse manuscrito, portanto, seria o indício de uma última tentativa
de filiação ao movimento romântico.
O personagem escritor de Paris au XXe siècle encontra-se à margem, em um não
lugar, podendo ser, desse modo, caracterizado como paratópico, na acepção dada por
Dominique Maingueneau, ao dizer que “o escritor [paratópico] nutre seu trabalho com o
caráter radicalmente problemático de seu próprio pertencimento ao campo literário e à
sociedade.264 A paratopia do personagem seria, assim, homóloga à própria experiência de
263
BUTCHER, 2006, p.137.
MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo:
Martins Fontes, 1995, p. 27.
264
144
Jules Verne enquanto escritor, em um momento semelhante de sua trajetória literária.
Quando Verne tinha a mesma idade de Dufrénoy, também se dividia entre a carreira de
Direito, pretendida por sua família, e o desejo de se fazer conhecido no campo literário.
Verne, assim como Dufrénoy, abandonou o caminho que tinha sido estabelecido para ele:
mudou-se para Paris, trabalhou e abandou o emprego na Bolsa de Valores e tentou entrar
no mundo das letras. Nessa época de atribulações, indecisões e fracassos, sobretudo nas
suas investidas de adesão tardia à estética romântica, escreve o romance Paris au XXe
siècle, apontando para a tentativa fracassada de um jovem escritor que tenta ter sua arte
reconhecida e valorizada.
A situação paratópica de um escritor o conduz a se identificar com todos aqueles
que parecem escapar das linhas estabelecidas, diz Maingueneau, como os boêmios,
judeus, mulheres, prostitutas, artistas, palhaços, aventureiros, índios da América. Jules
Verne, à época ainda não muito conhecido do público nem dos pares, parece assim ter-se
identificado com um poeta problemático instalado no futuro, tendo visto os modelos
artísticos que reverenciava serem eclipsados pela ciência e pela indústria.
O cerne da questão da paratopia é uma discussão que faz oscilar a condição do
autor/escritor, enquanto agente de produção de sentido, entre espaços paradoxais: o
campo literário, a sociedade, sua posição dentro desses dois espaços e seu posicionamento
na obra, entre o valor de uma literatura original e sua aceitação no campo. O caráter
paradoxal reside nos extravasamentos do personagem paratópico desse romance, assim
como a literatura que nele se apoia não tem realmente um lugar designado na sociedade.
Extrai-se força dessa sua marginalidade, transformando-a em motor de escrita, nutrindo,
por sua vez, essa paratopia.
Esse manuscrito, divisor de águas na trajetória de Jules Verne, como pretendemos
na introdução dessa Tese, incita os leitores a pensar nas divergências tangentes ao projeto
estético de Verne, observando, sobretudo, uma primeira fase de sua carreira, antes que
ele se aliasse ao editor Hetzel no projeto de produzir uma literatura destinada à juventude,
atrelada à ciência e com forte apelo comercial. A trama do romance Paris au XXe siècle
pode ser representativa de uma escrita futurista avant la lettre, porém marcada pela
confrontação entre o otimismo em relação ao progresso científico, caro a um Jules Verne
posterior, em sua carreira já sedimentada, e o olhar crítico e desiludido do personagem
principal do romance diante da cidade modernizada do futuro e seus automóveis
rugidores, intuindo de forma pessimista o lugar da literatura e das artes no mundo
moderno, o que o aproxima de um jovem Jules Verne, anterior ao encontro com Hetzel.
145
Julgado como impublicável, a crítica do editor que censurou Verne não o
aprisionou em uma ideia de fracasso. A censura lhe trouxe ensinamentos úteis. Sabendo
que o problema do manuscrito gira em torno, essencialmente, da questão do tipo de
posicionamento discursivo sobre a ciência em literatura, é através de uma retirada tática
em direção à ideologia do progresso, endossado pela recepção de Cinq semaines en
ballon, que se pode apagar qualquer imbróglio sobre as relações entre editor e autor.
Embora a correspondência não traga nada além do que já citamos sobre o desfecho dessa
crise, as primeiras publicações das edições Hetzel na linha do romance do Capitão
Hatteras atestam pelo menos o impacto da carta de Hetzel. O escritor tira dessa prova a
consciência do risco que correria escrevendo contra as conveções de certo grupo cujo
principal fiador era o próprio editor. Deixando claro suas intenções em se tornar um
escritor reconhecido desde as primeiras cartas, Jules Verne supera as críticas sobre Paris
au XXe siècle para investir em um gênero e se posicionar em uma doutrina cujas coerções
foram aceitas tacitamente depois das tensões desse fim de 1863, início de 1864.
Mesmo assim, nos limites da “arte útil”, o romancista conseguirá retomar, em
certa medida, o seu projeto estético fundado em uma nostalgia do romantismo. Naquele
momento da sua trajetória no campo, o manuscrito de Paris au XXe siècle representa uma
“pá de cal” em uma tentativa de filiação tardia ao Romantismo. A corrente da
“antecipação científica” inaugurada com a publicação do romance De la Terre à la lune,
em 1865, que Verne contribui a fundar é, de fato, consensual: o escritor orienta a ficção
futurista iniciada com Paris au XXe siècle para uma previsão imaginativa de invenções
técnicas extraordinárias compatíveis com a lógica do progresso científico e conserva uma
enunciação ligada ao progresso da sociedade, ancorada nas revoluções industriais do
século. No entanto, na impossibilidade de apagamento do seu habitus, Verne marcará sua
escrita em alguns momentos com o espírito das inovações dos projetos que comporão as
Voyages extraordinaires com representações da arte e do artista articuladas a elementos
valorizados pelo Romantismo.
146
4.4 Representações artísticas nas Viagens extraordinárias
4.4.1 O gabinete de curiosidades do capitão Nemo265
Objeto enorme, comprido e fusiforme, às vezes fosforescente, infinitamente maior
do que uma baleia e com uma velocidade de locomoção incrível, tais são as primeiras
características que o submarino Nautilus recebe na trama de Vingt mille lieues sous les
mers, sexto romance de Verne,publicado no Magasin d’Éducation et de Récréation, no
final de 1869 e em volume em 1870. Em oposição às características maravilhosas, o que
mais assombrava na história eram os acidentes que ele supostamente provocava, levando
alguns navios a pique e deixando outros com sérias avarias.
O professor do Museu de História Natural de Paris, M. Aronnax, tentando decifrar
a identidade do “monstro”, criou a hipótese de que seria um enorme cetáceo que precisava
ser capturado. Com esta finalidade, a fragata Abraham Lincoln parte pelos mares à
procura do monstro. Aronnax é convidado para essa viagem junto com seu fiel ajudante
Conseil. A bordo, conhecem Ned Land, o rei dos arpoadores. Depois de percorrerem os
mares à procura do cetáceo, finalmente o encontraram e, após várias tentativas de atingilo, a estranha criatura provoca o naufrágio da fragata. O professor Aronnax, Conseil e
Ned Land são resgatados pelos tripulantes daquilo que achavam ser um cetáceo, mas que,
para surpresa dos três, era um “submarino”. Já instalados no seu interior, conhecem o
estranho Nemo, que se apresenta como sendo dono e capitão do Nautilus. Ele conta que,
com a tripulação, partiu da terra para nunca mais voltar, que sua vida era nas profundezas
da água de onde retirava alimento, roupas e outras riquezas. Para preservar sua sigilosa
existência, Nemo decide manter os três a bordo do Nautilus, negando-lhes a possibilidade
de voltarem à terra. A partir de então se inicia uma grande aventura pelos mares do
planeta. Partindo do oceano Pacífico nas costas do Japão, o Nautilus navega ainda pelo
Índico, Mar Vermelho, Mediterrâneo, Atlântico, os mares austrais e boreais, percorrendo
um total de vinte mil léguas.
Por se tratar de um romance que traz como base da trama o tema da viagem de
descobertas, sobretudo deespaços desconhecidos ou pouco conhecidos, cremos ser
evidente a importância que o descritivo assume no conjunto do texto. Perseguindo o
Partes desse subitem já foram publicadas no artigo GUIRRA, Edmar. “Os Jardins submersos de Jules
Verne: ciência e literatura em Vinte mil léguas submarinas”. Revista Interfaces. Rio de Janeiro: 7Letras,
vol. 1, nº 16. Jan-Jun 2012, p. 30-48.
265
147
recorte a que nos propomos, enfocaremos aqui as passagens que se referem ao Nautilus
e, mais particularmente, ao salão-museu do submarino.
Em linhas gerais, para a apresentação do salão do Nautilus, o narrador se vale de
uma longa pausa descritiva. A ela se interpõe uma ilustração referente ao salão-museu.
Para a análise dessa passagem descritiva, tomaremos como ponto de partida a proposta
teórica desenvolvida por Philippe Hamon e as considerações sobre o pictórico no literário,
desenvolvidas por Liliane Louvel. Em seguida, cruzaremos os dados obtidos
concernentes às representações da arte e do artista com a questão enunciativa e o
posicionamento do autor no campo literário.
Como mencionamos no capítulo 3 desta Tese, Jules Verne satisfaz seu editor,
Jules Hetzel, com aproximadamente três e depois dois volumes anuais ao longo de pouco
mais de trinta anos de dedicação à escrita, iniciada em 1864. A soma perfaz um total de
sessenta e três romances, associados ao projeto editorial lúdico-instrutivo de Hetzel e
nomeados no seu conjunto como Voyages extraordinaires. O progresso da ciência e das
artes gráficas na segunda metade do século XIX permitia colocar nas mãos das crianças
livros tão atraentes por sua forma quanto interessantes por seu conteúdo. Assim, a
ilustração assumia um papel importante nos famosos volumes de capa vermelha e
douradura nas páginas.
Fig. 17 Capa original do romance – Edição Hetzel
148
Frequentemente, os pesquisadores da obra de Verne reservam um espaço
considerável em seus estudos para as imagens e ilustrações dos romances do autor. Para
citar os mais recentes, temos o artigo de Laurie Viala, “Les Voyages extraordinaires: une
invitation aux images (2005);266 o artigo de Lionel Dupuy, “Inter et intrasémioticité dans
l’oeuvre de Jules Verne” (2008);267 o livro que trata de um dos ilustradores vernianos,
Edouard Riou, dessinateur,268 organizado por Guy Gauthier (2008); e ainda o artigo
“Léon Benett: de la conception de l’illustration à la gravure”,269 de Marie-Annick Benet,
(2012). Tendo em vista que o livro ilustrado era algo valorizado à época, podemos
inscrever a ilustração em Verne emuma problemática global de sua obra; ela poderia
contribuir para uma melhor compreensão das Viagens extraordinárias.
Podemos considerar que existe uma relação entre o fato de os romances do autor
geralmente serem conhecidos e mais vendidos em sua versão ilustrada e o grande malestar que o atormentava nos últimos anos de sua carreira: “[...]Un petit peu plus de justice
à mon égard de la part de mes compatriotes m’aurait été infiniment plus chère que les
milliers de dollars que mes livres auraient dû me donner. Voilà ce que je regrette et ce
que je regretterai toujours”,270 declarou o escritor em entrevista no ano de 1893. A partir
desse dado, uma questão pode ser levantada: Verne estaria associando a ilustração de seus
romances à classificação de sua obra como literatura para crianças, ou até mesmo como
paraliteratura, para utilizar uma categoria ulterior, e lamentando esse fato? Ao mesmo
tempo, a ilustração não era uma exigência da classe burguesa emergente, público de
Verne? Percebemos desde já, a que ponto a contribuição da ilustração modifica a recepção
da obra, orienta o seu destino e, portanto, seria elemento na composição daquilo que
Dominique Maingueneau nomeia como cenografia enunciativa, de que trataremos
adiante.
Cf. VIALA, Laurie. “Les Voyages extraordinaires : une invitation aux images”. In : PICOT, Jean-Pierre
& ROBIN, Christian (dir.). Jules Verne 100 ans après – Actes du Colloque de Cerisy : Rennes : Terre de
Brume, 2005, p. 109-122.
267
Cf. _____. “Inter et intrasémioticité dans l’œuvre de Jules Verne”. Applied Semiotics - Semiotics and
Intermediality. Toronto: vol. 7, n° 20, 2008b, s.p. Disponível em: http://french.chass.utoronto.ca/assa/ASSA-No20/Article3fr.html
268
Cf. GAUTHIER, Guy. Édouard Riou, dessinateur. Entre Le Tour du monde et Jules Verne. Paris :
L’Harmattan, 2008.
269
Cf. BENET, Marie-Annick. “Léon Benett : de la conception de l’illustration à la gravure.” Revue Jules
Verne - Les Arts de la représentation. Amiens : Éditions du Centre International Jules Verne, nº 33-34. 2e
semestre 2012, p. 183-195.
270
VERNE in BOIA, Lucien. Jules Verne - les paradoxes d’un mythe. Paris: Les Belles lettres, 2005, p. 11.
A entrevista original e integral apareceu com o título “Jules Verne at home: his own account of hislife and
work”, in McClures Magazine, vol. 11, n° 2, jan. 1894, p. 115-124. Traduzido do inglês por Sylvie
Malbraneq, foi publicada no Magazine Littéraire, nº 281, em outubro de 1990, e se encontra disponível em:
http://jv.gilead.org.il/butcher/sherard.html Última consulta: 18/07/2012.
266
149
Não intencionamos estudar exaustivamente as ilustrações da obra de Jules Verne.
Para essa pesquisa, selecionamos uma única imagem acompanhada de sua respectiva
descrição que traz recursos para a discussão que levantamos na Tese.
Fig. 18 Desenho de Riou – Gravado por Hildibrand. VERNE, 1975, p. 102.271
Trata-se daquela que ilustra o salão do submarino Nautilus do capitão Nemo,
personagem do romance Vingt mille lieues sous les mers, publicado em 1870. Um estudo
desse conjunto texto-imagem nos traz dados suficientes para uma reflexão acerca do fato
literário segundo a abordagem discursiva que adotamos. Nessa abordagem, elementos
que eram considerados como exteriores à obra, como a ilustração, a correspondência com
os colaboradores, coerções editoriais, meios de divulgação, o uso do suporte de
publicação em volume, entre outros componentes, integram-se à exploração e à
compreensão da obra.
Respeitaremos em nossa leitura a ordem da dicotomia signo escrito/signo
pictórico. Por uma questão de organização, em um primeiro momento, trataremos da
descrição que diz respeito ao salão do Nautilus, passagem que pode ser recriada
271
As ilustrações do romance foram criadas por Alphonse de Neville (1836-1885) e Édouard Riou (18331900) e gravadas por Hildibrand para a edição de 1871. A que reproduzimos aqui é exclusivamente da
autoria de Riou. Para acesso às ilustrações originais, remetemos ao site: jv.gilead.org.il/rpaul/.
150
visualmente pelo leitor ao elaborar mentalmente a imagem sugerida pela descrição. Para
tanto, recorreremos eventualmente à poética do descritivo desenvolvida por Philippe
Hamon e traremos reflexões acerca da imagem que ilustra essa passagem descritiva, parte
materialmente visível no romance. Do visual ao visível, tal é o percurso de análise que
pretendemos fazer.
***
Com frequência, atribui-se a Jules Verne a paternidade do gênero literário que se
convencionou chamar de ficção científica. Longe de querermos entrar no mérito que exige
a discussão, cabe-nos dizer que Jules Verne não foi um cientista, nem um descobridor,
tampouco um viajante explorador. No entanto, ao realizar uma leitura da sua obra,
deparamo-nos com duas características que se mesclam e pertencem a esse gênero: a
vulgarização do que já existia ou já era cogitado pela ciência e ainda uma faceta do autor
capaz de realizar “previsões”. Dizemos que são características que se mesclam, pois as
“profecias” de Verne, que giram em torno de descobertas científicas, são produtos de uma
leitura atenta de muito do que se produziu em termos de conhecimento em seu século e
anteriormente. Em seus romances, encontramos alusões a automóveis, aeroplanos,
helicópteros; referências a pavimentos móveis, levantamentos geológicos, ar
comprimido, motores elétricos, alimentos condensados, etc. A lista das maravilhas
extraordinárias de Jules Verne é extensa e, na sua época, algumas eram impossíveis de
serem realizadas. Não se podem desprezar as alusões às célebres viagens interplanetárias
dos romances De la Terre à la Lune (1865) e Autour de la Lune (1869), por exemplo, que
constituem hoje assunto permanente da imprensa, além da criação do que era apenas um
embrião cientificamente possível: as viagens submarinas.
O romance Vingt mille lieues sous les mers, publicado em formato de folhetim em
1869-1870,272 é exemplar a esse respeito. A trama representa, no conjunto da obra, uma
espécie de caso limite, tanto pela carga de conhecimento científico quanto pelo conteúdo
didático apresentados. Mais do que em outro de seus romances, aqui essa fusão é
272
Ao longo da pesquisa, encontramos divergências nas datas de publicação deste romance: 1869, 1870 e
1871. No processo de documentação, percebemos que os livros (biografias e fortunacrítica de Jules Verne)
ora tratavam da(s) data(s) de publicação em formato de folhetim, ora em volume, ou ainda da edição
princeps ilustrada. Para este romance, especificamente, tivemos ainda outro agravante: o formato volume
foi publicado em dois tomos, em anos diferentes. Na tentativa de indicar datas mais precisas, preferimos
adotar aquelas da biografia de referência escrita por William Butcher (2006) em que temos difundidas as
seguintes datas: em formato folhetim, no Magasin d’Éducation et de Récréation, de março de 1869 a junho
de 1870. A publicação em volume se deu em dois tomos: o primeiro em outubro de 1869 e o segundo
somente em junho de 1870. A edição a que fazemos referência nesta seção é aquela de Michel de l’Ormeraie
de 1975, que imita a edição princeps, como referenciado no capítulo introdutório à Tese.
151
reivindicada, desenvolvida, exibida, às vezes até mesmo em detrimento da legibilidade e
da compreensão do texto. As passagens descritivas, portanto, encenarão importante papel
na trama.
Em carta ao seu editor, datada de 28 de março de 1868, pouco mais de um ano
antes da publicação de Vingt mille lieues sous les mers, Jules Verne preparava o terreno
para introduzir a obra:
Je travaille avec rage. Il m’est venu une bonne idée. Il faut que cet
inconnu n’ait plus aucun rapport avec l’humanité dont il s’est séparé. Il
n’est plus sur terre, il se passe de la terre. La mer lui suffit, mais il faut
que la mer lui fournisse tout, vêtement et nourriture. Jamais il ne met
pied sur le continent. Les continents et les îles viendraient à disparaître
sous un nouveau déluge, et je vous prie de croire que son arche sera un
peu mieux installée que celle de Noé. Je crois que cette situation
“absolue” donnera beaucoup de relief à l’ouvrage. Ah! mon cher
Hetzel, si je ratais ce livre-là, je ne m’en consolerais pas. Je n’ai jamais
eu un plus beau sujet entre les mains.273
Para que ocapitão Nemo não tenha mais contato com a humanidade, o escritor o
encerrará no Nautilus, submarino que lhe serve de casa e servirá detúmulo no romance
L’Île mystérieuse (1875), romance em que este personagem reaparece. Embora se trate
de uma máquina, o Nautilus é praticamente um personagem na trama, já que será o motor
de todos os acontecimentos. Tomado por sua curiosidade de estudioso, Aronnax pergunta
ao capitão quais os recursos disponíveis no fantástico veículo. A lista não é pequena:
aparelhos diversos de navegação, bússolas, termômetros, barômetros, higrômetros,
sextantes, velocímetros, sem contar a iluminação e o aquecimento que dependem da
geração de eletricidade.
No entanto, não é somente a versatilidade tecnológico-científica do Nautilus que
é destacada no romance. No segundo capítulo, temos a primeira longa passagem
descritiva (entremeada de curtas passagens narrativas) que trata da decoração do interior
da embarcação, da riqueza artística dos salões do submarino. O fim do primeiro capítulo,
que funciona como um gancho para o leitor continuar a leitura do próximo - “Maintenant,
monsieur le professeur, dit-il, si vous voulez visiter le Nautilus, je suis à vos ordres.”274 somado ao título do segundo capítulo (“O Nautilus”) já são índices de que o leitor verá
descritoo interior do submarino. O título “O Nautilus” servirá, portanto, de pantônimo275
geral que será desenvolvido largamente pela descrição dos cômodos do submarino ao
273
VERNE, 1999, p. 80.
VERNE, 1975e, p. 96.
275
Philippe Hamon se refere a esse termo para designar o equivalente a “objeto descrito” passível de ser
denominação ou identificação de um enunciado metalinguístico. Cf. HAMON, 1981, p. 140.
274
152
longo do capítulo, isto é, a expectativa criada por esses elementos será cumprida ao longo
da leitura. Constata-se, no desenrolar da descrição, a constituição canônica da passagem
descritiva no que tange à composição de espaços: de fora para dentro, como propõe
Hamon. Seguindo esse modelo, o leitor, como o professor Aronnax, também se sente
entrando no submarino como convidado e descobrindo seus aposentos. Depois da
nomeação do espaço que coube ao título do capítulo e de uma demarcação do espaço e
do movimento:“Le capitaine Nemo se leva. Je le suivis. Une double porte, ménagée à
l’arrière de la salle, s’ouvrit, et j’entrai dans une chambre de dimension égale à celle que
je venais de quitter”.276Anunciando a apresentação do “quadro” descritivo, ideia
reforçada pela presença da porta que, segundo Hamon, servindo de passagem de um
ambiente a outro, propõe a necessidade de exploração por se tratar de uma abertura num
espaço fechado que esconde outro. A partir dessa abertura, a descrição se desenrola assim:
C’était une bibliothèque. De hauts meubles en palissandre noir,
incrustés de cuivre, supportaient sur leurs larges rayons un grand
nombre de livres uniformément reliés. Ils suivaient le contour de la salle
et se terminaient à leur partie inférieure par de vastes divans, capitonnés
de cuir marron, qui offraient les courbes les plus confortables. De légers
pupitres mobiles, en s’écartant ou se rapprochant à volonté,
permettaient d’y poser le livre en lecture. Au centre se dressait une vaste
table, couverte de brochures, entre lesquelles apparaissaient quelques
journaux déjà vieux. La lumière électrique inondait tout cet harmonieux
ensemble et tombait de quatre globes dépolis à demi engagés dans les
volutes du plafond. Je regardais avec une admiration réelle cette salle si
ingénieusement aménagée.277
Como unidade descritiva mínima, o espaço apresentado acima revela os processos
regulares de formação segundo o sistema elaborado por Philippe Hamon, tal como vemos
a seguir:
276
277
VERNE, 1975e, p. 97.
VERNE, 1975e, p. 97.
153
Pantônimo
Nautilus
(Biblioteca)
Expansão
Lista ou
nomenclatura
Estantes
(contornando a
sala)
Divãs
(na base das
prateleiras)
Carteiras
Mesa
(no centro)
Luz
(teto)
Predicados
altas em jacarandá escuro, incrustadas com peças
de cobre abrigavam um grande número de livros
encadernados sobre compridas prateleiras
amplos e confortáveis estofados em couro marrom
leves e móveis
aproximando-se e afastando-se à
vontade permitiam descansar o livro a ser lido
grande, coberta de publicações
entre as quais
sobressaiam alguns periódicos já amarelecidos
elétrica
inundava todo aquele harmonioso
conjunto, tombando de quatro globos foscos
parcialmente embutidos nas volutas do teto.
A fórmula comum do bloco descritivo para o espaço descrito é desenvolvida
segundo o processo canônico que, partindo do pantônimo, se desenrola, em seguida, em
uma série mais ou menos longa de nomes associados a predicados e/ou enumeração de
partes. Esse esquema descritivo faz uma espécie de trabalho de ordenação, de
agrupamento de informações, o que Hamon chama de grades descritivas. Para a biblioteca
do submarino Nautilus, que será mais bem explorada pelo professor Aronnax,
personagem a quem se delega o olhar descritor, há no bloco descritivo a menção do nome
do aposento seguido dos móveis que preenchem o espaço (estantes, divãs, carteiras,
mesa), detalhes de sua composição material (de jacarandá, em couro), qualidades dos
objetos (amplos, confortáveis, leves, móveis, grandes) e sua localização no cômodo
(contornando a sala, na base das prateleiras, no centro, no teto). Naturalmente, os
elementos que compõem essa grade descritiva contribuem para a visualidade e
organização mental do cômodo. A visão é permitida graças à luz artificial (no caso,
elétrica) que encena um papel importante nas descrições de interiores, segundo Hamon.278
Ela facilita a visualização e inspira, sobretudo no leitor do século XIX, o mesmo sentido
de admiração e deslumbre que sente o professor Aronnax. Ao fim da descrição, antes de
passar efetivamente à exploração da biblioteca, fator que permitirá ao leitor acompanhar
e conhecer mais detalhes dos livros que a compõem, o narrador-personagem arremata
com uma frase de passagem que naturaliza o fim da descrição/início da narração, aquela
278
Cf. HAMON, 1993, p. 172-173.
154
que Hamon chama de força centrípeta, necessária à conclusão da passagem descritiva279:
“Je regardais avec une admiration réelle cette salle si ingénieusement aménagée, et je ne
pouvais en croire mês yeux.”280 A impressão de vista do todo com a frase que fecha esse
bloco descritivo perfaz uma sequencialidade que testemunha e justifica a amplitude do
panorama.
Depois de uma curta passagem narrativa em que o professor elogia a grande
biblioteca, Nemo põe seus livros à disposição de Aronnax: “Ces livres, monsieur le
professeur, sont d’ailleurs à votre disposition, et vous pourrez en user librement”. 281 Ao
se aproximar dos livros, Aronnax prossegue: “Je remerciai le capitaine Nemo, et je
m’approchai des rayons de la bibliothèque”; é atribuído aoprofessor o olhar descritor e,
portanto, há oindício para se iniciar uma descriçãomais detalhada da biblioteca:
Livres de science, de morale et de littérature, écrits en toute langue, y
abondaient ; mais je ne vis pas un seul ouvrage d’économie politique ;
ils semblaient être évèrement proscrits du bord. Détail curieux, tous ces
livres étaient indistinctement classés, en quelque langue qu’ils fussent
écrits, et ce mélange prouvait que le capitaine du Nautilus devait lire
couramment les volumes que sa main prenait au hasard.
Parmi ces ouvrages, je remarquai les chefs-d’oeuvre des maîtres
ancienset modernes, c’est-à-dire tout ce que l’humanité a produit de
plus beaudans l’histoire, la poésie, le roman et la science, depuis
Homère jusqu’à Victor Hugo, depuis Xénophon jusqu’à Michelet,
depuis Rabelais jusqu’à Mme Sand. Mais la science, plus
particulièrement, faisait les frais de cette bibliothèque ; les livres de
mécanique, de balistique, d’hydrographie, demétéorologie, de
géographie, de géologie, etc., y tenaient une place non moins
importante que les ouvrages d’histoire naturelle, et je compris qu’ils
formaient la principale étude du capitaine. Je vis là tout le Humboldt,
tout l’Arago, les travaux de Foucault, d’Henry Sainte-Claire Deville, de
Chasles, de Milne Edwards, de Quatrefages, de Tyndall, de Faraday, de
Berthelot, de l’abbé Secchi, de Petermann, du commandant Maury,
d’Agassis, etc., les mémoires de l’Académie des sciences, les bulletins
de diverses sociétés de géographie, etc., et, en bon rang, les deux
volumes qui m’avaient peut-être valu cet accueil relativement
charitable du capitaine Nemo. Parmi les oeuvres de Joseph Bertrand,
son livre intitulé les Fondateurs de l’Astronomieme donna même une
date certaine ; et comme je savais qu’il avait paru dans le courant de
1865, je pus en conclure que l’installation du Nautilus ne remontait pas
à une époque postérieure. Ainsi donc, depuis trois ans, au plus, le
capitaine Nemo avait commencé son existence sous-marine. J’espérai,
d’ailleurs, que des ouvrages plus récents encore me permettraient de
fixer exactement cette époque ; mais j’avais le temps de faire cette
recherche, et je ne voulus pas retarder davantage notre promenade à
travers les merveilles du Nautilus.282
279
Cf. HAMON, 1993, p. 173.
VERNE, 1975e, p. 97.
281
VERNE, 1975e, p. 98.
282
VERNE, 1975e, p. 98-99.
280
155
Nessa passagem, o narrador faz um inventário da biblioteca do capitão Nemo.
Para a tarefa de estabelecimento da cenografia enunciativa do romance, procedemos à
classificação dos nomes citados e notamos uma linha de coerência entre eles. A biblioteca
do Nautilus abrange a literatura greco-latina e francesa das origens (“antigos”) até meados
do século XIX (“modernos”) em seus três principais gêneros: poesia (“de Homero a
Victor Hugo”), história (“de Xenofonte a Michelet”) e romance (“de Rabelais a Georges
Sand”). Além disso, dois escritores franceses citados e suas obras, contemporâneos do
autor, formam matrizes intertextuais literárias diretas para Vingt mille lieues sous les
mers, segundo Jacques Noiray:283La mer (1861), de Jules Michelet assumindo sua veia
literária, e Les travailleurs de la mer (1866), de Victor Hugo. O romance de Hugo seria
a matriz com a qual se estabelece um diálogo intertextual, “os ecos livres de um texto”,
como sintetizaram Maingueneau e Patrick Charaudeau,284 visto o sucesso do romance à
época, inspirando até mesmo o famoso episódio do ataque do polvo gigante ao submarino
Nautilus. Mais do que uma homenagem ou simples alusão, os nomes citados estão ligados
à questão da legitimação do discurso em Verne. Maingueneau explicita que o ethos pode
“incidir sobre o conjunto de uma cena de fala, apresentada como modelo ou um
antimodelo da cena de discurso”.285 Tal cena é nomeada por ele como cena validada, em
que o adjetivo quer dizer “instalada na memória coletiva” como antimodelo ou modelo
valorizado. Os nomes dos autores de romance e obras mencionados pelo narrador
constituiriam, portanto, uma apropriação de modelos romanescos de sucesso, de cenas
validadas.
Igual tentativa de vincular a trama a nomes da literatura científica, trazendo um
tom de autoridade para o que é dito no romance, é a longa lista de livros da biblioteca
elaborada com os nomes de eminentes cientistas. Figuram na lista o naturalista e
explorador Alexandre Humboldt (1769-1859), o cartógrafo Auguste Petermann (18221878), os físicos François Arago (1786-1853) e Léon Foucault (1819-1868), o astrônomo
e físico François Faraday (1791-1867), o físico John Tyndall (1820-1893), os químicos
Saint-Claire Deville (1818-1881) e Berthelot (1827-1907), o matemático Michel Chasles
(1793- 1880), o especialista em crustáceos Henri Milne-Edwards (1800-1885), o ictiólogo
Cf. NOIRAY, Jacques. “L’inscription de la science dans le texte littéraire : l’exemple de Vingt mille
lieues sous les mers.” In : REFFAIT, Christophe & SCHAFFNER, Alain (dir.). Jules Verne ou les
inventions romanesques. Amiens: Encrage université, 2007, p. 31.
284
CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2002, p. 324-329.
285
MAINGUENEAU, 2008c, p. 80.
283
156
e geólogo Louis Agassiz (1807-1873), o biólogo e zoólogo Armand de Quatrefages
(1810-1892), o jesuíta e astrônomo italiano Angelo Secchi (1818-1878) e Matthew Maury
(1806-1873), que foi um oficial da marinha dos Estados Unidos e auxiliou o
desenvolvimento da astronomia, da oceanografia, da meteorologia e da geologia
modernas, graças às suas observações e à sua participação em diversos organismos
internacionais. Jules Verne faz ainda outras citações a Maury nesse romance. O nome de
Joseph Bertrand (1822-1900) recebe destaque nessa extensa lista de cientistas. Eleensinou
matemática na Escola Politécnica, na Escola Normal Superior, no Collège de France e na
Sorbonne. Foi eleito para a Academia francesa em 1884.
Essa profusão de nomes que aparece no texto em forma de citação direta,
categoria estudada por Gérard Genette,286 todos contemporâneos de Jules Verne,
corrobora a ideia de cumprimento com a imposição que o editor Hetzel lhe faz: reunir e
resumir o que a ciência de sua época produzia, transformando a massa de conteúdo
científicoem literatura. É o que se percebe ao procedermos à leitura do “Avertissement
de l’éditeur” (ver 6.2.3) em número do Magasin d’Éducation et de Récréation, de 1867:
Os críticos mais autorizados saudaram no senhor Jules Verne um
escritor de um temperamento excepcional, ao qual, desde seu início, era
mais do quejusto designar um lugar de destaque nas letras francesas.
Ele criou um novo gênero. O que se promete com frequência, o que se
dá raramente, a instrução que diverte, o divertimento que instrui, o
senhor Jules Verne o prodigaliza sem economizar em cada uma das
páginas de suas narrativas emocionantes.
Os romances do senhor Jules Verne chegaram, aliás, ao ápice. Quando
se vê o público se apressar em correr para as conferências que se
abriram em mil pontos da França, quando se vê que ao lado dos críticos
de arte e de teatro foi necessário dar lugar nos jornais aos boletins da
Academia de Ciências, é necessário dizer que a arte pela arte não é mais
suficiente na nossa época e que a hora chegou em que a ciência tem seu
espaço feito na literatura.
O mérito do senhor Jules Verne é de ter sido o primeiro a pisar nessa
nova terra.
[...] As novas obras do senhor Jules Verne virão somar-se
sucessivamente a esta edição que nós teremos o cuidado de manter
informada. As obras publicadas e aquelas por serem publicadas
englobarão assim, no seu conjunto, o plano a que se propôs o autor
quando ele deu como subtítulo a sua obra aquele de Viagens
extraordinárias aos mundos conhecidos e desconhecidos. Seu objetivo
é, com efeito, resumir todos os conhecimentos geográficos, geológicos,
físicos, astronômicos reunidos pela ciência moderna e refazer, sob a
forma atraente e pitoresca que a caracteriza, a história do universo.
286
Cf. GENETTE, Gérard. Palimpsestes. Paris : Seuil, 1982, p. 7-19.
157
Após sua publicação no Magasin da editora Hetzel, os fascículos de Verne eram
reunidos, organizados e publicados na sua integralidade. Essa publicação integral
ocupava uma parte do próprio Magasin intitulada “Bibliothèque d’Éducation et de
Récréation”. Ou seja, os romances vernianos publicados no periódico, dos quais Vingt
mille lieues sous les mers faz parte, conheciam uma publicação integral pós formato
fascículo, que ainda não eram em volume. Essa seção era precedida pelo “Avertissement
de l’éditeur” que citamos longamente acima, uma apresentação-programa que define o
que deve ser a obra verniana editada na coleção intitulada Voyages extraordinaires. Na
ausência de informações que prefaciem a obra de Verne, podemos tomar como legítimo
prefácio o paratexto “Avertissement de l’éditeur” acima e, portanto, elemento constituinte
da cenografia enunciativa do romance. Ele guiará não só o romance do capitão Nemo,
mas todos aqueles publicados no Magasin. O nítido objetivo de reunir o que a ciência da
época produzia, transformando essa massa documental de conhecimentosem literatura,
justifica e se legitima com os nomes dos cientistas citados na descrição. A maneira que o
narrador encontra de povoar a biblioteca do capitão Nemo, trazendo para o texto tais
nomes, vincula interdiscursivamente ciência e literatura.
Ainda explorando a biblioteca do Nautilus, o capitão Aronnax é convidado a
fumar a bordo. O fato dá margem ao narrador para realizar um pequeno diálogo entre os
personagens antes que seja interrompido por Nemo: “A ce moment, le capitaine Nemo
ouvrit une porte qui faisait face à celle par laquelle j’étais entré dans la bibliothèque, et
passai dans un salon immense et splendidement éclairé.”287 Esta demarcação anuncia o
quadro descritivo que seguirá:
C’était un vaste quadrilatère, à pans coupés, long de dix mètres, large
de six, haut de cinq. Un plafond lumineux, décoré de légères
arabesques, distribuait un jour clair et doux sur toutes les merveilles
entassées dans ce musée. Car c’était réellement un musée dans lequel
une main intelligente et prodigue avait réuni tous les trésors de la nature
et de l’art, avec ce pêle-mêle artiste qui distingue un atelier de peintre.
Une trentaine de tableaux de maîtres, à cadres uniformes, séparés par
d’étincelantes panoplies, ornaient les parois tendues de tapisseries d’un
dessin sévère. Je vis là des toiles de la plus haute valeur, et que, pour la
plupart, j’avais admirées dans les collections particulières de l’Europe
et aux expositions de peinture. Les diverses écoles des maîtres anciens
étaient représentées par une madone de Raphaël, une vierge de Léonard
de Vinci, une nymphe du Corrége, une femme du Titien, une adoration
de Véronèse, une assomption de Murillo, un portrait d’Holbein, un
moine de Vélasquez, un martyr de Ribeira, une kermesse de Rubens,
deux paysages flamands de Teniers, trois petits tableaux de genre de
Gérard Dow, de Mestu, de Paul Potter, deux toiles de Géricault et de
287
VERNE, 1975e, p. 99.
158
Prud’hon, quelques marines de Backuysen et de Vernet. Parmi les
œuvres de la peinture moderne apparaissaient des tableaux signés
Delacroix. Ingres, Decamp, Troyon, Meissonier, etc., et quelques
admirables réductions de statues de marbre ou de bronze, d’après les
plus beaux modèles de l’antiquité, se dressaient sur leurs piédestaux
dans les angles de ce magnifique musée. Cet état de stupéfaction que
m’avait prédit le commandant du Nautilus commençait déjà à s’emparer
de mon esprit.288
Procedendo de acordo com a constituição canônica das frases descritivas, o
narrador apresenta uma visão geral do espaço, mas de maneira bem precisa - “C’était un
vaste quadrilatère, à pans coupés, long de dix mètres, large de six, haut de cinq -, para
somente então passar a aspectos mais detalhados como aqueles do teto: “Un plafond
lumineux, décoré de légères arabesques, distribuait un jour clair et doux sur toutes les
merveilles entassées dans ce musée”. Aqui, a fonte de luz facilita o olhar e serve para
justificar a descrição. Ao final dessa apresentação, temos uma comparação do “salão” que
o narrador-personagem vê como um “museu”.
Cabe aqui um parêntese em relação à noção de museu apresentada na descrição.
O surgimento do museu enquanto instituição encontra seus contornos definitivos no
século XIX. Charlotte Klonk afirma que estudiosos que se admiravam com a quantidade
de elementos que a antiga sabedoria não havia documentado transformaram itens e
vestígios em objetos portadores de um valor no presente.289 Na introdução do seu livro, a
autora afirma que esta dupla matriz, a relação com a memória e com o tempo vivido,
funda a noção moderna de “objeto museológico”. Essa noção funciona até mesmo no caso
dos objetos do Museu do Louvre que, guardando toda as peculiaridades da história e da
museificação do espaço, é maior referência museal na França do Segundo Império, quiçá
no mundo, momento da escrita e publicação desse romance. A noção moderna de museu
como espaço particular destinado à visitação de uma elite econômica ou política e o valor
que têm seus objetos é a mesma apresentada até este momento da passagem descritiva do
romance verniano. Ora, o salão-museu de Nemo abriga uma coleção, é um espaço
particular, reservado a satisfazer a curiosidade de Nemo e de seus seletos convidados, isto
é, de uma determinada elite. No entanto, à medida em que o salãofor sendo apresentado
aos leitores através dos olhos do narrador, o leitor poderá relativizar essa comparação
com a instituição “museu”, como apresentaremos.
288
VERNE, 1975e, p. 99-101.
KLONK, Charlotte. Introduction. Spaces of experience. Connecticut: Yale University Press, 2005, p. 110.
289
159
Seguindo a intenção de hierarquizar e classificar, cara ao autor das Voyages
extraordinaires, o capitão Nemo reúne grandes nomes da pintura, os isola no Nautilus e
ordena os quadros respeitando uma hierarquia genérica e cronológica, assim como fez
anteriormente com os escritores que povoam a biblioteca. Essa reunião, isolamento e
ordenação dão a ver um universo museológico. É baseado nesse fato que o narrador
associa o espaço à ideia de museu. O quadro abaixo permitirá melhor visualizar a riqueza
no que diz respeito aos gêneros picturais que a coleção de Nemo abrange, mostrando,
mesmo que emum esboço, uma hierarquia entre eles. Procuramos distinguir antigos e
modernos, seguindo a ordem em que as obras são ditadas pelo narrador na passagem
descritiva:
Antigos
uma madona
Rafael
uma virgem
Leonardo da Vinci
uma ninfa
Corrège
uma mulher
Ticiano
uma adoração
Veronese
uma assunção
Murillo
um retrato
Holbein
um monge
Velásquez
um mártir
Ribera
uma quermesse
Rubens
duas paisagens flamencas
Teniers
Três quadros de gênero
Gérard Dew, Metsu e Paul Potter
duas telas
Géricault e Prudhon
diversas marinhas
Backuysen e Vernet
160
Paul Potter
Modernos
Delacroix
Ingres
Decamp
Troyon
Meissonier
Daubigny
O museu do Nautilus traz uma riqueza genérica que vai da pintura de história e
alegóricaaté quadros de marinhas, passando por retratos, cenas de gênero e paisagens. A
ordem apresentada pelo narrador na descrição aponta para uma intenção de
hierarquização entre os gêneros da pintura assim como Jules Verne o fez enquanto crítico
do Salão de 1857 atribuindo maior valor à pintura de história em detrimento, por exemplo,
das pinturas militares ou do retrato. Este último, na peça La Guimard, também é
caracterizado como um gênero de menor prestígio na hierarquia dos gêneros em pintura.
A ideia de hierarquia é corroborada pelo fato de que a quantidade de obras possuídas
aumenta significativamente quando o gênero tem menor prestígio, paisagem e marinha,
no caso. Além disso, a descrição apresenta uma ordenação que vai dos “antigos mestres”
aos “modernos”, segundo as categorias do narrador. Estas nos parecem um tanto
incongruentes: Géricault e Prudhon não podem ser classificados como “antigos”.
Viveram até 1823 e 1824, respectivamente, quatro anos antes ao nascimento de Jules
Verne. São, portanto, quase contemporâneos ao autor. Levando em conta que o romance
foi ecrito em 1869-1870, o narrador resolveria essa incongruência se hierarquizasse esses
pintores como “contemporâneos”.
Ao observarmos os nomes que encabeçam ambas as listas -, Rafael e Leonardo da
Vinci nos “antigos mestres” e Eugène Delacroix representando os “modernos”, notamos
uma clara alusão aos modelos valorizados pela estética romântica e uma referência a essa
escola em pintura que formou parte do capital cultural de Jules Verne. No momento da
trajetória no campo em que o escritor produziu textos para as artes do espetáculo e a
crítica de arte, mostramos que os nomes desses artistas aparecem sempre matizados em
aspectos positivos em tom de reverência ou homenagem. Em Paris au XXe siècle é com
certo saudosismo que o narrador alude a essas referências. Nesse momento da trajetória
161
de Verne, já conformado dentro do gênero dos romances científicos e consagrado pelo
público, as referências românticas apararecem diluídas na sua obra romanesca, sobretudo
nas representações artísticas. Seguindo a lógica da significação por oposição, o que se
exclue também é significativo. A ausência de uma referência a Gustave Courbet, cujo
trabalho é fortemente criticado por Verne em 1857 e no romance Paris au XXe siècle, por
exemplo, reitera a importância das referências românticas, assim como a não
referenciação a Édouard Manet, Paul Cézanne ou a Camille Pissarro que, desde o Salão
dos Recusados290, em 1863, integravam a lista de nomes daqueles que produziam o que
havia de mais moderno em pintura.
No entanto, não é só a arte pictural que preenche o salão do Nautilus. Estátuas e
armaduras também povoam o salão e, como veremos, uma coleção de conchas, um órgão,
uma fonte e outros objetos mobiliam o “museu”. Como dissemos, à medida que esse
“espaço” vai sendo apresentado, o leitor/espectador pode relativizar a noção de museu
sugerida pelo narrador. Ora, reunir, isolar e ordenar, tais são os objetivos motores do que
se convencionou chamar de “Gabinete de curiosidades” ou “A câmara das maravilhas”
que designam os lugares em que, durante a época das grandes explorações e
descobrimentos dos século XVI e XVII, se colecionavam uma multiplicidade de objetos
raros ou estranhos dos três ramos da biologia considerados na época: animalia, vegetalia
e mineralia; além das realizações humanas como quadros, esculturas etc.
Patrick Mauriès, em seu livro de referência Cabinets de curiosités, afirma que o
segredo fundador de um gabinete de curiosidades é duplo: não se trata somente de
encontrar, isolar e ter uma peça rara ou única, mas, ao mesmo tempo, de inscrevê-lo em
um espaço particular que lhe confere significações.291 A excentricidade, originalidade e a
privacidade que sugere o submarino Nautilus ilustrariam esse espaço particular que abriga
a coleção de Nemo comparada a um museu pelo narrador.
Maravilhado com as obras de arte do salão, o narrador-personagem traz um
diálogo para preencher o espaço de fechamento da descrição que deu a ver as obras de
arte do salão do Nautilus. Perguntando ao capitão se poderia reconhecê-lo como um
290
Este foi o nome dado à exposição paralela ao Salon de Paris, em 1863. No Salon des Refusésforam
expostas as obras de arte recusadas pelo júri no salão oficial, que era destinado aos artistas membros da
Real Academia Francesa de Pintura e Escultura. A exposição paralela foi organizada por determinação do
imperador Napoleão III, em resposta aos fortes protestos dos artistas recusados, entre os quais, Manet,
Cézanne e Pissarro. LOBSTEIN, Dominique. Les Salons au XIXe siècle. Paris: La Martinière, 2006, p. 174.
291
Cf. MAURIÈS, Patrick. Cabinets de curiosités. Paris: Gallimard, 2011, p. 25.
162
artista, Aronnax tem como resposta que Nemo é “no máximo um diletante”. A passagem
serve de abertura para uma reflexão do próprio Nemo sobre o ato de colecionar:
J’aimais autrefois à collectionner ces belles oeuvres créées par la main
de l’homme. J’étais un chercheur avide, un fureteur infatigable, et j’ai
pu réunir quelques objets de haute valeur. Ce sont mes derniers
souvenirs de cette terre qui est morte pour moi. À mes yeux, vos artistes
modernes ne sont déjà plus que des anciens ; ils ont deux ou trois mille
ans d’existence, et je les confonds dans mon esprit. Les maîtres n’ont
pas d’âge.292
O trecho ainda nos permite caracterizar o Nautilus como sendo uma espécie de
Arca de Noé para Nemo, como pretendido por Jules Verne em carta a seu editor que ora
citamos. Segundo a religião abraâmica, a arca consistiu em um grande navio construído
por Noé, a mando de Deus, para salvar a si mesmo, sua família e um casal de cada espécie
de animais do mundo, antes que viesse o Grande Dilúvio da Bíblia. A história é contada
em Gênesis 6-12, assim como no Alcorão. Em uma releitura do episódio bíblico por Jules
Verne, portanto, servindo-se de uma cena validada, Nemo encarna Noé, fugindo da
perversidade humana e criando para si sua arca para guardar as espécies que lhe são caras
e únicas, em uma espécie de memória da humanidade.
Continuando sua visita, Aronnax diz respeitar o momento de recolhimento e
reflexão do capitão e, em uma passagem que anuncia um novo e longo quadro descritivo,
afirma “je continue de passer en revue les curiosités qui enrichissaient ce salon”:293
Auprès des oeuvres d’art, les raretés naturelles tenaient une place très
importante. Elles consistaient principalement en plantes, en coquilles
et autres productions de l’Océan, qui devaient être les trouvailles
personnelles du capitaine Nemo. Au milieu du salon, un jet d’eau,
électriquement éclairé, retombait dans une vasque faite d’une seule
tridacne. Cette coquille, fournie par le plus grand des mollusques
acéphales, mesurait sur ses bords délicatement festonnés une
circonférence de six mètres environ ; elle dépassait donc en grandeur
ces belles tridacnes qui furent données à FrançoisIer par la république
de Venise, et dont l’église Saint-Sulpice, à Paris, a fait deux bénitiers
gigantesques. Autour de cette vasque, sous d’élégantes vitrines fixées
par des armatures de cuivre, étaient classés et étiquetés les plus précieux
produits de la mer qui eussent jamais été livrés aux regards d’un
naturaliste. On conçoit ma joie de professeur.
L’embranchement des zoophytes offrait de très curieux spécimens de
sesdeux groupes des polypes et des échinodermes. Dans le premier
groupe, des tubipores, des gorgones disposées en éventail, des éponges
douces de Syrie, des isis des moluques, des pennatules, une virgulaire
admirable des mers de Norvège, des ombellulaires variées, des
alcyonnaires, toute une série deces madrépores que mon maître Milne
Edwards a si sagacement classés en sections, et parmi lesquels je
292
293
VERNE, 1975e, p. 100.
VERNE, 1975e, p. 101.
163
remarquai d’adorables flabellines, des oculines de l’île Bourbon, le
«char de Neptune» des Antilles, de superbes variétés de coraux, enfin
toutes les espèces de ces curieux polypiers dont l’assemblage forme des
îles entières qui deviendront un jour des continents. Dans les
échinodermes, remarquables par leur enveloppe épineuse, les astéries,
les étoiles de mer, les pantacrines, les comatules, les astérophons, les
oursins, les holoturies, etc., représentaient la collection complète des
individus de ce groupe.
Un conchyliologue un peu nerveux se serait pâmé certainement devant
d’autres vitrines plus nombreuses où étaient classés les échantillons de
l’embranchement des mollusques. Je vis là une collection d’une valeur
inestimable, et que le temps me manquerait à décrire tout entière.
Parmices produits, je citerai, pour mémoire seulement, l’élégant
manteau royal de l’océan Indien, dont les régulières taches blanches
ressortaient vivement sur un fond rouge et brun, un spondyle impérial,
aux vives couleurs, tout hérissé d’épines, rare spécimen dans les
muséums européens, et dont j’estimai la valeur à vingt mille francs, un
marteau commun des mers de la Nouvelle-Hollande, qu’on se procure
difficilement, des bucardes exotiques du Sénégal, fragiles coquilles
blanches à doubles valves, qu’un souffle eût dissipées comme une bulle
de savon, plusieurs variétés des arrosoirs de Java, sortes de tubes
calcaires bordés de replis foliacés, et très disputés parles amateurs, toute
une série de troques, les uns jaunes verdâtres, péchés dans les mers
d’Amérique, les autres d’un brun roux, amis des eaux de la NouvelleHollande, ceux-ci venus du golfe du Mexique et remarquables parleur
coquille imbriquée, ceux-là trouvés dans les mers australes, et enfin, le
plus rare de tous, le magnifique éperon de la Nouvelle-Zélande; puis
d’admirables tellines sulfurées, de précieuses espèces de cythérées et de
vénus, le cadran treillisé des côtes de Tranquebar, le sabot marbré à
nacre resplendissante, les perroquets verts des mers de Chine, le cône
presque inconnu du genre Coenodulli, toutes les variétés de porcelaines
qui servent de monnaie dans l’Inde et en Afrique, la «gloire de la mer»,
la plus précieuse coquille des Indes orientales; enfin des littorines, des
dauphinules, desturritelles, des janthines, des ovules, des volutes, des
olives, des mitres, des casques, des pourpres, des buccins, des harpes,
des rochers, des tritons, descérites, des fuseaux, des strombes, des
ptérocères, des patelles, des hyales, des cléodores, coquillages délicats
et fragiles, que la science a baptisés deses noms les plus charmants.
À part, et dans des compartiments spéciaux, se déroulaient des
chapelets de perles de la plus grande beauté, que la lumière électrique
piquait de pointes de feu, des perles roses arrachées aux pinnes marines
de la mer Rouge, des perles vertes de l’haliotyde iris, des perles jaunes,
bleues, noires, curieux produits des divers mollusques de tous les
océans et de certaines moules des cours d’eau du Nord, enfin plusieurs
échantillons d’un prix inappréciable qui avaient été distillés par les
pintadines les plusrares. Quelques-unes de ces perles surpassaient en
grosseur un oeuf de pigeon: elles valaient, et au-delà, celle que le
voyageur Tavernier vendittrois millions au schah de Perse, et primaient
cette autre perle de l’iman de Mascate, que je croyais sans rivale au
monde. Ainsi donc, chiffrer la valeur de cette collection était, pour ainsi
dire, impossible. Le capitaine Nemo avait dû dépenser des millions pour
acquérir ces échantillons divers, et je me demandais à quelle source il
puisait pour satisfaire ainsi ses fantaisies de collectionneur, quand je fus
164
interrompu par ces mots: «Vous examinez mes coquilles, monsieur le
professeur.»294
Tomamos a liberdade de citar longamente essa passagem para justificar a
caracterização desse salão como um gabinete de curiosidades e apresentar como Jules
Verne se vale da descrição para apresentar espaços, nesse caso objetos, plantas e animais
afim de cumprir com o objetivo didático-enciclopédico fixado por Hetzel. Fatos históricos
são mesclados à passagem de dominante descritiva para conferir grau de realidade ao que
se lê. As conchas tridacnas citadas no trecho, conhecidas popularmente como ostragigante, foram realmente dadas ao rei Francisco I como presente do governo de Veneza
e, de fato, existem na Igreja de Saint-Sulpice, em Paris, como itens do mobiliário sacro.
A importância extraordinária reside no tamanho daquelas que Nemo possui, pois são
maiores do que as mostradas abaixo:
Fig.19 – Pias para água benta – Escultura de Jean-Baptiste Pigalle
Igreja Saint-Sulpice – Paris
Como podemos perceber, a coleção do capitão Nemo guarda uma multiplicidade
de espécimes raros dos três ramos da biologia: animal, vegetal e mineral, além das
realizações artísticas humanas. O mobiliário, os objetos de decoração e de exposição deste
salão encapsulados no Nautilus nos permitem, portanto, aproximar esse espaço da ideia
de um gabinete de curiosidades se seguirmos a definição de Patrick Mauriès:
294
VERNE, 1975e, p. 102-103.
165
O termo câmara das maravilhas [ou gabinete de curiosidades] designa
um lugar fechado, não muito grande, às vezes retirado, caracterizado
por um emprego singular do espaço, uma cuidadosa organização de
objetos reunidos mais para serem estudados do que vistos. [...] Os
objetos reunidos, dispostos e enumerados fazem sentir a ambição
universal: naturalia, mirabilia, artefacta, scientifica, antiquitat,
exotica. Ou ainda: espécimes de história natural, fósseis, amostras
botânicas ou zoológicas nas suas formas normais ou anormais; pinturas,
esculturas, ouro e prata, têxtil, objetos de metal, de cerâmica ou de cera,
instrumentos científicos, autômatos, objetos etnográficos. A fisionomia
singular de cada coleção reflete o rosto daquele que a forma.295
Em seu livro sobre a experiência kitsch que os gabinetes de curiosidades ou “os
quartos das maravilhas” oferecem, Celeste Olalquiaga relata que esses espaços, cujo auge
se deu entre os séculos XVI e XVIII, formam a base da criação do que conhecemos como
museu.296 Para nós, relativizar as palavras do narrador, aproximando o que o leitor vê não
de um museu, mas a um gabinete de curiosidades, contribui para constatar a tensão que
existia no século que deu origem ànoção moderna de museu. Queremos dizer com isso
que a classificação dada pelo narrador ao salão do Nautilus é produto de discussões que
se travavam à época, constituindo elementos da cenografia do romance.
O salão, afinal, é um gabinete de curiosidades ou um museu? Acreditamos que,
na tentativa de relacionar esse espaço a uma noção mais próxima de discussões modernas,
maneira de mostrar um discurso em harmonia com os debates da época, o narrador decide
por museu. Para nós, trata-se de um gabinete de curiosidades. Para a abordagem
discursiva que pretendemos no trabalho, procedendo à leitura da cenografia enunciativa
do romance, é produtivo afirmar que o romance Vingt mille lieues sous les mers alimenta
e, por sua vez, é alimentado pelas tensões existentes na passagem do que conhecemos
como gabinete de curiosidades para a instituição museu, espaço destinado a preservar,
estudar e expor objetos protegidos, posto em usufruto de uma comunidade específica.
Ao final da descrição que citamos longamente acima, em sinal de fechamento da
mesma, um diálogo é reestabelecido entre o capitão Nemo e o professor Aronnax. Nele,
o professor destaca a presença de instrumentos e aparelhos no salão do Nautilus:
“Le terme chambre des merveilles designe un lieu clos, souvent exigu, parfois retiré, caractérisé par un
emploi singulier de l’espace, par une organisation savante d’objets réunis moins pour être vus que pour être
étudiés. [...] Les objets rassembés, disposés et énumérés font sentir l’ambition universelle: naturalia,
mirabilia, artefacta, scientifica, antiquitat, exotica. Ou encore: spécimens d’histoire naturelle, fossiles,
échantillons de botanique ou de zoologie dans leurs formes normales et anormales; peintures, sculptures,
or et argent, textiles et objets de métal, de céramique ou de cire, instruments scientifiques, automates, objets
éthnographiques. La physionomie singulère de chaque collection reflète le visage de celui qui la forme.
MAURIÈS, 2011, p. 50-51
296
OLALQUIAGA, Celeste. Introduction. The artificial kingdom: a treasury of the kitsch experience.
Minessota: Pantheon, 1998.
295
166
Cependant, j’avoue que ce Nautilus, la force motrice qu’il renferme en
lui, les appareils qui permettent de le manoeuvrer, l’agent si puissant
qui l’anime, tout cela excite au plus haut point ma curiosité. Je vois
suspendus aux murs de ce salon des instruments dont la destination
m’est inconnue. Puis-je savoir ?…
– Monsieur Aronnax, me répondit le capitaine Nemo, je vous ai dit que
vous seriez libre à mon bord, et, par conséquent, aucune partie du
Nautilus ne vous est interdite. Vous pouvez donc le visiter en détail, et
je me ferai un plaisir d’être votre cicérone.297
A presença desses aparelhos que não receberam descrição detalhada na trama viria
corroborar a ideia de que o salão é um verdadeiro gabinete de curiosidades, como
defendemos, estando em concordância com a definição de Patrick Mauriès.
O término do capítulo destinado à apresentação do gabinete de curiosidades do
Nautilus é usado para mostrar aos leitores, emuma curta descrição, o quarto reservado ao
professor Aronnax. Mais uma vez, o fim de um diálogo traz as marcas necessárias para a
mudança de pacto de leitura, avisando o leitor da passagem de uma dominante narrativa
para uma dominante descritiva: “Mais auparavant, venez visiter la cabine qui vous est
réservée. Il faut que vous sachiez comment vous serez installé à bord du Nautilus.”298 A
frase é seguida de mais uma abertura de portas que anuncia o último quadro descritivo do
capítulo. A descrição se desenrola assim:
Je suivis le capitaine Nemo, qui, par une des portes percées à chaque
pan coupé du salon, me fit rentrer dans les coursives du navire. Il me
conduisit vers l’avant, et là je trouvai, non pas une cabine, mais une
chambre élégante, avec lit, toilette et divers autres meubles. Je ne pus
que remercier mon hôte.299
Em uma curta descrição, o quarto do professor Aronnax é apresentado aos leitores.
A nosso ver, a passagem figura somente como uma maneira de fechar o capítulo de
dominante descritiva. Compreendemos que a extensão dessa descrição e a localização no
excipit do capítulo é uma astúcia do narrador para que os leitores não percam o foco em
toda ariqueza que lhes foi apresentada quando da descrição do salão, espaço que recebe
maior ênfase no capítulo, vistos seu detalhamento e extensão. Esquematizamos abaixo a
construção do capítulo objetivando uma melhor visualização da organização textual entre
narração e descrição. Chamamos atenção para os nomes “museu” e “gabinete de
curiosidades” que usamos. Estes não tratam de lugares diferentes, mas de momentos
distintos na passagem descritiva concernente ao salão do Nautilus: emum primeiro
297
VERNE, 1975e, p. 104.
VERNE, 1975e, p. 105.
299
VERNE, 1975e, p. 105.
298
167
momento, o foco do narrador recai sobre o museu (quadros) depois, completando-se,
sobre o gabinete de curiosidades (maravilhas naturais):
Incipit: “O capitão Nemo levantou-se. Segui-o.
Nos fundos da sala uma porta dupla se abriu. ”
Abertura de porta = descrição geral da
biblioteca
Narração – diálogo sobre a biblioteca
Descrição detalhada da biblioteca
Narração – diálogo sobre cigarros; pausa para
fumar
Abertura de porta = descrição geral do salão
+
descrição detalhada do “museu” – (quadros)
ILUSTRAÇÃO
Narração – diálogo sobre o órgão e músicos
Descrição detalhada do “gabinete de
curiosidades” (raridades naturais)
Narração – diálogo sobre a riqueza da coleção
Abertura de porta = curta descrição do quarto
Excipit: Narração
“Queira sentar-se – disse-me o capitão Nemo
apontando uma cadeira. Sentei-me e ele tomou
a palavra nos termos que se seguem.”
Em linhas gerais, o capítulo trata da descrição de três aposentos do Nautilus: a
biblioteca, o salão e o quarto de Aronnax. A construção do capítulo é calcada na
intercalação descrição/narração, com predominância da primeira. A travessia dos
personagens de um espaço para o outro é auxiliada e justificada pela abertura de portas.
A construção do capítulo suscita, assim, um efeito surpresa no espectador/leitor que
aguarda o que vem depois da abertura da porta, como num espaço de sucessão de salas
em um museu. O leitor tem possivelmente sua curiosidade aguçada a cada abertura de
portas e é incitado a descobrir as maravilhas do Nautilus. Ao ler o capítulo, visualizando
mentalmente as imagens, a possível surpresa do leitor é interrompida e, ao mesmo tempo,
renovada pela presença de uma ilustração, a única que mostra o salão do Nautilus. Na
edição em volume que usamos e retoma a edição princeps do romance, de 1975, a
ilustração é situada após a descrição detalhada do museu, como se houvesse a intenção
168
de confirmação ou reelaboração por parte do leitor da imagem mental que a descrição
permitiu realizar.
A ilustração, nesse caso, associa-se ao texto com uma intenção de colaboração,
expressando a ideia de que texto e imagem trabalham em conjunto em vista de um sentido
comum, excluindo, assim, uma possível noção de redundância. A ilustração traz
informações importantes para a reconstituição da cenografia enunciativa do romance.
Tratando exclusivamente do que ora chamamos de “visível”, traremos no próximo item
reflexões sobre a ilustração objetivando conhecer sua função dentro da narrativa, suas
particularidades e a relação com a composição da cenografia em que se inscreve o
romance.
No percurso que pretendemos fazer, a ilustração ocupa o espaço materialmente
visível no texto. Distingue-se, assim, das imagens mentais, portanto visuais, criadas
virtualmente pelo leitor com base na leitura da passagem descritiva. Tecendo
considerações acerca de uma ilustração em Jules Verne, não procuramos oferecer neste
item tecnicidade teórica, mas simpropostas de investigação sobre a função da ilustração
na trama de Verne e sua integração ao sistema do texto.
Em um primeiro momento, deparamo-nos com a questão da leitura da imagem,
isto é, a ilustração, esta de que tratamos em especial, pode se mostrar como uma arte
quaseestéril já que se inscreve sempre em uma relação de subordinação ao texto.
Queremos dizer com isso quesua margem de autonomia é ínfima pois extrai do texto sua
existência. O campo de ação que é dado a Édouard Riou e a Neville, ilustradores de Vingt
mille lieues sous les mers, se inscreve entre o risco da traição do texto verniano e aquele
da redundância, sem contar com possíveis exigências coercitivas do editor Hetzel.
Para estabelecer a natureza da ligação da imagem com o texto, é necessário nos
questionarmos sobre o trabalho dos ilustradores, essa interface entre o texto e o corpo
ilustrador. Podemos nos questionar também se a ilustração não objetiva tão somente
transpor o mesmo conteúdo de uma linguagem para outra. Além disso, em termos de
imaginário, podemos lançar a questão: a escrita não é superior à imagem a partir do
momento emque ela oferece a priori mais “espaço” ao leitor para ser o próprio ilustrador
do seu romance pela recriação mental? Podemos responder de antemão que o papel da
ilustração na obra de Verne não é somente reproduzir, reduzindo as significações do texto.
Se Hetzel, em concordância com Verne, contrata ilustradores para um trabalho
complementar, é porque ambos estimam a possibilidade do enriquecimento do texto pela
imagem, o que se coaduna com o programa de difusão e aproveitamento das técnicas de
169
ilustração desenvolvidas no século XIX. Dessa maneira, a narrativa se torna indissociável
das ilustrações. Ilustradores, editor e Jules Verne trabalhavam em estreita colaboração.
As relações entre esses agentes reforçam a ideia de que um empreendimento literário, no
caso as Voyages extraordinaires, é resultado do trabalho de duas ou mais pessoas, nos
referimos aos ilustradores, visando um determinado público e mercado – as edições pós
formato folhetim ou as edições de luxo de final de ano para crianças, por exemplo. Esse
argumento importa para Tese, pois nos permite escapar da visão romântica perpetuada
até a hoje de que o texto é fruto simplesmente da criação do autor.
Em carta ao seu editor, datada de 26 de dezembro de 1868, momento em que Jules
Verne escrevia Vingt mille lieues sous les mers e já havia publicado cinco de suas tramas
e gozava de sucesso junto ao publico leitor, deixa evidente a importância que a ilustração
ocupará em seu(s) romance(s). Essa carta é particularmente significativa, pois trata
exatamente da ilustração do salão do Nautilus. Jules Verne escreve:
J’ai reçu les croquis de Riou. J’ai des observations à faire. Je vais lui
écrire en les renvoyant. Je pense qu’i faut faire les personnages
beaucoup plus petits, et montrer le salon beaucoup plus en grand. Ce ne
sont que des coins de salon, qui ne donnent pas l’idée des merveilles du
Nautilus. Il devra dessiner tous les détails avec une extrême finesse. 300
Como pudemos observar na ilustração que citamos acima, os personagens
desenhados em uma escala menor dão a ver com mais destaque o salão do Nautilus, o que
fora desejado por Verne.301 Distanciando-nos de uma concepção meramente ilustrativa
que pode se atribuir à iconografia, entendemosa relação entre texto e imagem em termos
de interação semiológica. O texto produzirá possíveis interpretativos que a imagem
permitirá filtrar e vice-versa. Desejando inibir interpretações indesejáveis no interior do
mesmo domínio semiológico (o texto ou a imagem), cabe ao texto e à imagem se
controlarem reciprocamente, o que corrobora a ideia de que os recursos visuais devem,
preferencialmente, fazer parte dos objetivos do texto, isto é, entre outros, das intenções
didáticas dos romances de Jules Verne. O visível atende e reitera os objetivos
enciclopédicos do projeto de Pierre-Jules Hetzel.
Em suma, desejamos mostrar que o ilustrador dos romances de Jules Verne é
quase exclusivamente considerado como um artesão, isto é, que eletem o savoir-faire
necessário para a arte, mas não lhe é dadaliberdade de interpretação. A carta citada nos
permiteafirmar que as ilustrações são executadas à medida que o texto é escrito, seguindo
300
301
VERNE, 1999, p. 89.
Cf. GUIRRA, 2012.
170
passo a passo o processo de criação e as eventuais mudanças. Nota-se, assim, a que ponto
a concepção das ilustrações está imbricada no processo da escrita do romance.
Apostando na ilustração, escritor e editor se lançam em dois terrenos que, por ora,
ocupam espaços distintos. Conhecemos as motivações pedagógicas de Hetzel. No
entanto, questionamo-nos como essa intenção era recebida pelo escritor que desejava ser
reconhecido como estilista sério.302 Indagamo-nos, portanto, se Verne não via nessas
imagens algo a mais que um simples aporte didático. Tudo nos leva a crer que sim, visto
a insistência comque o escritor impõe suas escolhas aos seus colaboradores. Além das
modificações de conteúdo que ele exige, é também Verne quem decide o lugar das
vinhetas no livro e aquele que oferece as fontes e os documentos de estudo para a
composição das ilustrações. Em carta datada de 21 de setembro de 1872, Hetzel
recomenda a Jules Verne se antecipar e ajudar Riou nos seus trabalhos: “Lancez-vous
dans la recherche des portraits, des photos qui pourraient vous guider”303. Riou pede
indicações, em carta de 21 de novembro do mesmo ano:
Eu me uno ao Senhor Hetzel para lhe pedir para me dar suas indicações,
a fim de reunir os documentos necessários antes de começar meus
croquis dos personagens e das cenas. Eu desejaria fazer as matrizes de
madeira só tendo certeza e depois de ter muito visto e corrigido os
projetos. Nós discutiremos sobre os detalhes na sua próxima viagem a
Paris e eu me alegro de retomar com ardor e perfeição minha
colaboração com a sua obra.304
No que diz respeito à ilustração, Verne tinha uma ambição literária que
ultrapassava a do seu editor. O escritor de Vingt mille lieues sous les mers tinha
consciência do poder da imagem. Essa é a razão pela qual ele aceita incorporá-la na obra.
A descrição do salão do Nautilus, sua respectiva ilustração e as trocas epistolares que
giram em torno do assunto testemunham a compreensão, por parte do escritor, da
importância que a ilustração possui. O tema da viagem a espaços desconhecidos já traz
para texto verniano umtraçopitoresco. Integrando a imagem ao seu projeto de escrita,
Verne reafirma o espaço para a picturalidade no seu romance. Os quadros do salão do
capitão Nemo são obras às quais o próprio autor se afeiçoa. Verne afirma, em diferentes
“Tout ceci”, escreve o romancista ao seu editor, em 25 de abril de 1864, “c’est pour vous dire combien
je cherche à devenir un styliste, mais sérieux; c’est l’idée de toute ma vie.” VERNE, 1999, p. 28.
303
VERNE, 1999, p. 180.
304
“Je me joins à M. Hetzel, pour vous prier de me donner vos indications, pour réunir les documents
nécessaires avant de commencer mes croquis de types et de scènes. Je désirerais en faire les bois qu’à coup
sûr et après avoir énormément revu et corrigé les projets. Nous causerons des détails à votre prochain
voyage à Paris et je me réjouis de reprendre avec fougue et perfectionnement ma collaboration à votre
œuvre.” RIOU in VERNE, p. 184.
302
171
ocasiões, “ma délectation pour les beaux-arts”, “qui me fait entrer dans chaque museum,
dans chaque musée de peinture, oui, je dirais chaque musée d’importance en Europe.”305
Associar a natureza discursiva do texto à imagem já tem seus primeiros efeitos realizados
na ilustração de capa e frontispício de cada romance quando publicado em volume. Essas
imagens têm importância particular na viagem que o autor propõe aos leitores. Elas
compõem o primeiro sinal de picturalidade, juntamente com o título, produzido pelo livro.
Fig. 20 Capa original do romance
Fig. 21 Frontispício (Desenho de Riou)
A ilustração do salão de Nemo ou, poderíamos generalizar, as ilustrações
realizadas para os romances de Jules Verne não encontram legitimação no plano
semiológico, no sentido de que o texto não precisa recorrer à imagem para expressar toda
a amplitude que objetiva e, especialmente, sua proposta visual. No entanto, ela se justifica
se considerarmos a atração indubitável que opera ao longo da narrativa, o prazer do
surgimento entre as páginas da imagem - quando se reconhece a cena representada depois
da passagem evocada -, casos da ilustração que analisamos. A obra de Verne se torna um
projeto artístico global no qual a imagem encontra sua inclusão. As Viagens
extraordinárias podem ser consideradas como objetos proteiformes e compósitos, feitos
de textos, de imagens, mas sobretudo da colaboração entre escritor, editor e ilustradores.
305
VERNE, 1998, p. 88.
172
Procedendo à reconstrução da cenografia enunciativa do romance Vingt mille
lieues sous les mers, mostramos que o projeto de Verne é polifônico, fruto da colaboração
entre diversos atores e, igualmente, polimodal, ao mesmo tempo texto e imagem. A
relação do texto com a ilustração no romance não se formula tanto pela transposição fiel
do signo escrito ao signo pictórico mas, sobretudo, na relação entre visual e/ou visível. O
“visual” é a maneira virtual da imagem que se atualiza somente no momento da leitura na
forma de visualizações mentais que as passagens descritivas permitem, ou seja, demanda
uma competência do público leitor. Já o “visível” emerge no trabalho do ilustrador, se
coaduna ao projeto enciclopédico previsto por Hetzel, e é a forma “tal qual” da imagem,
sua manifestação estável e fixa.
Informação integrante do romance e, portanto, componente da sua cenografia
enunciativa, a ilustração do salão-museu do Nautilus, que ora tratamos como gabinete de
curiosidades, é mais um aspecto editorial do que o projeto artístico verniano. Hetzel dá à
coleção vermelha e dourada uma ambição enciclopédica e pedagógica. Trata-se de propor
a um público juvenil burguês acesso à cultura científica. A função atribuída à ilustração
pelo editor consiste primeiramente em dar leveza à leitura e a oferecerum complemento
visível à descrição. Além disso, a ilustração traz para a relação didática um aspecto lúdico,
cumprindo com o programa-chave da editora: educar, divertindo. Seguindo essa diretriz,
como sabemos, Jules Verne torna palatável o que se produz de científico na sua época e
escreverá toda a sua obra romanesca. No entanto, depois de Paris au XXe siècle há uma
ruptura no que diz respeito às representações do casamento entre a arte e a ciência. Os
romances Le Rayon vert, de 1882 e Le secret de Wilhelm Storitz, de 1910 podem atestar
da supremacia da arte em detrimento do discurso sobre a ciência e o científico.
4.4.2 Os personagens pintores de O Raio verde e de O segredo de Wilhelm Storitz
Ambos os romances, Le Rayon vert e Le secret de Wilhelm Storitz, são escritos
sob o que reza o último contrato que exige de Verne dois volumes anuais, aquele de 1875.
Para o primeiro romance, Jules Verne ainda negocia com P.-J. Hetzel tudo o que diz
respeito à sua elaboração e publicação. Depois da morte do editor, em 1886, o seu filho,
Louis-Jules Hetzel, assume a editora e se incumbirá da publicação de todos os romances
posteriores a essa data, inclusive Le secret de Wilhelm Storitz, escrito em torno de 1898,
mas publicado em 1910, depois da morte do escritor, em 1905.
173
O romance Le Rayon vert é publicado primeiramente em folhetim no jornal Le
Temps de 17 de maio a 23 junho de 1882, antes de ser publicado em volume em 24 de
julho do mesmo ano, acompanhado da novela Dix heures en chasse, que também pertence
ao conjunto das Viagens extraordinárias.
A intriga do romance Le Rayon vert gira em torno da tentativa de dois tios - Sam
e Sib - em convencer sua sobrinha, Helena Campbell, a se casar com o jovem cientista
Aristobulus Ursiclos. Diante da obstinação de seus tios, Helena confessa que não se casará
nunca: “Jamais mes oncles! Jamais! Du moins tant que je n’aurai pas vu [...] le rayon
vert”.306 A condição exigida pela personagem se baseia em uma antiga lenda, de acordo
com a qual esse raio tem o poder de fazer com que aquele que o veja não se engane jamais
sobre o amor; sua aparição destrói ilusões e mentiras. Aquele que for agraciado em poder
vê-lo uma vez, poderá entender claramente os seus sentimentos e aqueles do outro.
Nessas condições, os tios de Helena Campbell não têm outra alternativa a não ser
realizar uma longa viagem em busca dos horizontes marítimos da Escócia, local onde
pode acontecer esse fenômeno atmosférico no momento do pôr do sol. A trama apresenta
uma longa sequência de dificuldades que se opõem à visualização do fenômeno do raio
verde. Quando as condições atmosféricas são favoráveis, é a vela de um barco no
horizonte, uma revoada de pássaros ou ainda a repentina aparição de uma nuvem de
fumaça que impedem a observação do fenômeno e servem de motor para que a viagem
continue. Para cada situação que faz os personagens perderem a oportunidade de ver o
raio verde, Artistobolus Ursiclos, sábio cientista importuno e pretendente da Senhorita
Campbell, tenta explicar as razões que geram esses problemas, com o ar pedante que lhe
é característico. O personagem nunca se contenta em só expor suas ideias sobre o raio
verde, ele apresenta explicações científicas à Helena que não se interessa em ter os sonhos
desfeitos com explicações de natureza física.
Além do recorrente tom de “viagem guiada” palas ilhas escocesas, esse romance
descreve com veemência a antinomia entre a ciência e a arte; uma, árida e fria, encarnada
pelo cientista Aristobulus Ursiclos, e a outra, humana e sensível, representada pelo pintor
Olivier Sinclair, segundo pretendente de Helena Campbell, que aparecerá mais adiante na
viagem, só sendo apresentado aos leitores no capítulo XI do romance, quando tem uma
tela atingida por uma bola do jogo de críquete enquanto pintava.
306
VERNE, 1977a, p. 353.
174
Embora estejamos distantes vinte anos da escrita de Paris au XXe siècle, este
personagem pode ser comparado a Michel Dufrénoy por seu discurso crítico sobre a
ciência e a tecnologia. Como de hábito, os retratos literários na obra de Jules Verne
informam não só sobre a aparência física do personagem (prosopografia), como anunciam
suas futuras atitudes na trama através de traços morais (etopeia). Os aspectos que oporão
Ursiclos a Sinclair e, por conseguinte, a ciência à arte, se apresentam nesse tipo de
passagem descritiva. Para o cientista Aristobolus Ursiclos, temos:
C’était un “personnage”de vingt-huit ans, qui n’avait jamais été jeune
et probablement ne serait jamais vieux. Il était évidemment né à l’âge
qu’il devait paraître avoir toute sa vie. De tournure, ni bien ni mal; de
figure, très insignifiant, avec des cheveux trop blonds pour un homme;
sous ses lunettes l’œil sans regard du myope; un nez court, qui ne
semblait pas être le nez de son visage. Des cent trente mille cheveux
que doit porter toute tête humaine, d’après les dernières statistiques, il
ne lui en restait plus guère que soixante mille. Un collier de barbe
encadrait ses joues et son menton, ce qui lui donnait une face quelque
peu simiesque. [...] Aristobulus Ursiclos était riche d’argent et encore
plus riche d’idées. Trop instruit pour un jeune savant, qui ne sait
qu’ennuyer les autres de son instruction universelle, gradué des
Universités d’Oxford et d’Édimbourg, il avait plus de science physique,
chimique, astronomique et mathématique que de littérature. Au fond,
très prétentieux, il ne s’en fallait de presque rien qu’il ne fût un sot. Sa
principale manie, ou sa monomanie, comme on voudra, c’était de
donner, à tort et à travers, l’explication de tout ce qui rentrait dans des
choses naturelles; enfin une sorte de pédant, de relation désagréable. On
ne riait pas de lui, parce qu’il n’était pas risible, mais peut-être s’en
riait-on, parce qu’il était ridicule. Personne n’eût été moins digne que
ce faux jeune homme de s’approprier la devise des francs-maçons
anglais: Audi, vide, tace.
Il n’écoutait pas, il ne voyait rien, il ne se taisait jamais. En un mot,
pour emprunter une comparaison qui est de circonstance dans le pays
de Walter Scott, Aristobulus Ursiclos, avec son industrialisme tout
positif, rappelait infiniment plus le bailli Nicol Jarvie que son poétique
cousin Rob-Roy Mac-Gregor. Et quelle fille des Highlands, sans en
excepter Miss Campbell, n’eût préféré Rob-Roy à Nicol Jarvie? Tel
était Aristobulus Ursiclos.307
O narrador se vale de aspectos bastante negativos para caracterizar este
personagem que representará a ciência ao longo da trama. Importunar os outros com sua
instrução universitária baseada mais nas ciências física, química, astronômica e
matemática do que em literatura, faz de Aristobolus um jovem cientista pretensioso,
pedante e ridículo. Esse retrato dá-nos a pensar no próprio Jules Verne que, com a
incumbência de transformar ciência em literatura adquire o título de savant, de acordo
com o projeto da editora de Hetzel. Aqui, Verne parece estar pintando um retrato pouco
307
VERNE, 1977a, p. 385-388.
175
elogioso do personagem do savant, em um discurso marcado por uma reflexão
metadiscursiva repleta de autoironia.
Ao final do retrato literário que o apresenta, Ursiclos é comparado a Nicol Jarvie
por seu “industrialismo positivo”. Nicol Jarvie, personagem de Walter Scott (1771-1832),
se opõe por sua falta de poesia a Rob-Roy Mac-Gregor, uma espécie de Robin Hood,
filho de um comerciante inglês que viaja às terras altas da Escócia para coletar um débito
devido a seu pai, no romance Rob-Roy, publicado em 1817.
Tendo alimentado toda uma geração romântica na França, citado, inclusive, no
Avant-propos de La Comédie humaine de Balzac, em 1842, Walter Scott é uma referência
relevante no retrato do personagem representante do discurso científico desse romance de
Jules Verne. A referência conhecida dos leitores - ou a cena validada, para usar os termos
de Maingueneau -, usada, inicialmente, para ilustrar a oposição antagonista/protagonista
(Rob-Roy/Nicol Jarvie) reforçaria o caráter negativo do personagem de Verne que é
comparado a Jarvie. Além disso, o escritor escocês, com seus romances Rob-Roy (1817)
seguido de Ivanhoé (1820), criou o romance dito “histórico”, de larga difusão na literatura
ocidental. Esse gênero instaura e alimenta as discussões em torno da história da nação,
como propõe Anne-Marie Thiesse no capítulo IV de seu livro sobre a criação das
identidades nacionais.308 Ambientado na Idade Média da época das cruzadas, Ivanhoé,
por exemplo, expressou o gosto romântico de reviver o mundo gótico dos castelos, do
amor cortês e das aventuras extravagantes e, assim como Rob-Roy, ambientado em 1715
em pleno momento de rebeliões jacobitas nas Ilhas britânicas do início do século XVIII,
constituem exemplos de um gênero romanesco que serviu de modelo narrativo para a
elaboração de histórias nacionais assim como se tornou vetor de difusão de uma nova
visão do passado.309 Tais características, exaltadas pelo movimento romântico, evocadas
implicitamente através do retrato desse personagem, endossam a ideia que sustentamos
nessa Tese: a da permanência de um primeiro Jules Verne de valores românticos, disperso
na sua carreira romanesca. Essa hipótese se torna ainda mais evidente quando Aristobolus
Ursiclos é colocado em relação de oposição com o pintor Olivier Sinclair.
É durante uma partida de críquete, pretexto do narrador para Aristobolus Ursiclos
dar suas lições científicas à jovem Helena Campbell, que o próprio Ursiclos cria a situação
THIESSE, Anne-Marie. La création des identités nationales – Europe XVIIIe-XXe siècle. Paris: Seuil,
2001 (1999).
309
THIESSE, 2001, p. 133.
308
176
em que ela conhecerá Olivier Sinclair. Com a bola do jogo, Helena atinge uma pintura de
marinha que Olivier estava pintando en plein air, como um pintor impressionista:
La boule s’élança hors du périmètre circonscrit par le petit fossé, du
côté de la mer, s’enleva en rebondissant sur un galet, et, comme eût dit
Aristobulus Ursiclos, sa pesanteur multipliée par le carré de la vitesse
aidant, elle dépassa la lisière de la grève. Coup malheureux!
Un jeune artiste était là, assis devant son chevalet, en train de prendre
une vue de la mer, bornée par la pointe méridionale de la rade d’Oban.
La boule, atteignant la toile en son plein, tacha sa couleur verte de toutes
les couleurs de la palette qu’elle frôla en passant, et renversa le chevalet
à quelques pas de là.310
Fig. 22 “On previent avant de commencer un bombardement! ”
Desenho de Benett – Gravado por T. Delangle. VERNE, 1975, p. 416
Em oposição ao personagem de Ursiclos, depois dessa cena, o leitor será
apresentado a Olivier Sinclair que, em uma atitude calma, constata: “Nous ne sommes
pas en sûreté ici!”. É sob aspectos unicamente positivos que o pintor será revelado:
Cet Olivier Sinclair était un “joli homme”, pour employer l’expression
jadis usitée en Écosse à l’égard des garçons braves, prompts et alertes;
mais, si cette expression lui convenait au moral, il faut avouer qu’elle
ne lui convenait pas moins au physique. Dernier rejeton d’une
honorable famille d’Édimbourg, ce jeune Athénien de l’Athènes du
Nord était le fils d’un ancien conseiller de cette capitale du MidLothian. Sans père ni mère, élevé par son oncle, l’un des quatre baillis
de l’administration municipale, il avait fait de bonnes études à
l’Université; puis, à l’âge de vingt ans, un peu de fortune lui assurant
au moins l’indépendance, curieux de voir le monde, il visita les
310
VERNE, 1977a, p. 412.
177
principaux États de l’Europe, l’Inde, l’Amérique, et la célèbre Revue
d’Edimbourg ne refusa pas, en quelques occasions, de publier ses notes
de voyages. Peintre distingué, qui aurait pu vendre ses œuvres à haut
prix, s’il l’eût voulu, poète à ses heures, – et qui ne le serait à un âge où
toute l’existence vous sourit? – cœur chaud, nature artiste, il était pour
plaire et plaisait sans pose ni fatuité.
[...] Olivier Sinclair était bien fait pour inspirer plus que de la sympathie
à quelque jeune et blonde fille de l’Écosse. Sa taille élégante, sa
physionomie ouverte, son air franc, sa mâle figure, énergique par les
traits, douce par les yeux, la grâce de ses mouvements, la distinction de
ses manières, sa parole facile et spirituelle, l’aisance de sa démarche, le
sourire de son regard, tout cet ensemble était de nature à charmer.311
Bravura, presteza e atenção são as três primeiras características usadas pelo
narrador para pintar o retrato desse personagem. Pintor independente desde a idade de
vinte anos, Sinclair poderia representar uma classe abastada de artistas que, como Gustave
Flaubert no campo literário, lutam pela autonomia do campo artístico e saem em defesa
dos preceitos da arte pela arte ou de uma arte autônoma, nos termos de Bourdieu. Em um
paralelo com Jules Verne, diferentemente do pintor, o escritor com a mesma idade,
dependia de seus pais e , como vimos no capítulo 3, precisou envelhecer socialmente e
reunir capitais ao longo de anos de percurso no campo literário, para decidir investir na
corrente da arte útil - aquela que se apresentou como a via mais propícia para seus
investimentos.
Atribuindo distinção a esse pintor e poeta de “coração quente” e “charmoso”, o
narrador matiza sua natureza artística com traços fortes com a finalidade de salientar os
aspectos positivos do personagem - trunfos que usará para conquistar Helena Campbell.
O narrador usa do confronto dos retratos literários de ambos e da sua posição de
antagonistas na trama para colocar em tensão as relações entre a arte e a ciência que se
desenvolverão ao longo do romance.
Na trama, Olivier Sinclair vai rivalizar com Ursiclos pela mão da jovem Campbell,
ou seja, a relação entre arte e ciência é problematizada de maneira que uma única
sobressairá, vencerá, por assim dizer, e obterá um lugar privilegiado em detrimento da
outra. Essas tensões poderiam representar esse momento da trajetória de Jules Verne que,
embora suficientemente “hetzelizado”, isto é, escrevendo dentro dos moldes que aceitou
ao assinar os contratos, anos após ter escrito Paris au XXe siècle, parece ainda pôr em
xeque a ciência e a necessidade de incorporação didática do interdiscurso científico pela
literatura. Isso transparece na constituição do personagem Ursiclos, ridicularizado pelo
311
VERNE, 1977a, p. 413-414.
178
narrador verniano que, como o personagem, traz sempre uma explicação “científica” onde
caberia sobretudo aspectos de descrição literária ou de narratividade. Tal é o caso da
descrição dos cabelos de Ursiclos dentro da passagem prosopográfica, citada
anteriormente: “Des cent trente mille cheveux que doit porter toute tête humaine, d’après
les dernières statistiques, il ne lui en restait plus guère que soixante mille.”
Na continuação da cena descrita acima, aceitando as desculpas de Helena sobre o
acontecido, Olivier diz que procurava justamente o efeito de rebentação de ondas que o
golpe da bola do jogo de críquete causou: “Je cherchais à obtenir un effet de lames
déferlantes, et il est probable que votre boule, comme l’éponge de je ne sais plus quel
peintre de l’antiquité, jetée en travers de son tableau, aura produit l’effet que mon pinceau
cherchait vainement à rendre!312 Nessa passagem, em que o personagem diz não se
lembrar do nome de um pintor da Antiguidade, poderíamos, sob o risco de extrapolar
nossa interpretação, afirmar que as referências antigas valorizadas em um momento da
trajetória de Jules Verne nos campos literário e artístico são, aqui, esquecidas ou
desvalorizadas. A ideia se reforça pelo traço de modernidade atribuído a Olivier Sinclair:
tendo abandonado o espaço do atelier, se une aos pintores impressionistas para pintar telas
que exigirão técnicas diferentes e distantes daquelas valorizadas pela Academia. Essa
característica é valorizada pelo narrador, pois este caracteriza o personagem como um
“distinto pintor”. Poderíamos dizer que Jules Verne apresenta um posicionamento
conflitante já que suficientemente “hetzelizado” nesse momento, com uma única
referência implícita a modelos românticos, no caso, aos personagens de Walter Scott,
ainda mostra de maneira diluída que defende o “artístico” em detrimento do “científico”.
Afim de marcar a distância entre arte e ciência, o narrador intervém ao fim dessa
passagem afirmando que Ursiclos não tinha tomado parte na conversa, pois não poderia
pôr em prática seus conhecimentos teóricos:
Il est bon d’observer que Aristobulus Ursiclos n’était point venu
prendre part à cet échange d’excuses et de politesses. Le jeune savant,
très vexé de n’avoir pu mettre ses connaissances théoriques d’accord
avec ses aptitudes pratiques, s’était retiré pour rentrer à l’hôtel. On ne
devait même pas le voir avant trois ou quatre jours, [...] il voulait
étudier, au point de vue géologique, les riches ardoisières. L’entretien
ne pouvait donc être gêné par les interventions explicatives qu’il n’eût
point manqué de faire sur la tension des trajectoires ou autres questions
relatives à l’accident.313
312
313
VERNE, 1977a, p. 415.
VERNE, 1977a, p. 415-416.
179
Ao longo do romance, aos poucos, o narrador onisciente vai esmiuçando um
discurso a favor da arte e em detrimento da ciência através das caracterizações negativas
que faz a Aristobolus Ursiclos:
Pourquoi ne pas avouer que le jeune peintre était maintenant épris du
rayon vert, tout autant que Miss Campbell? Il avait enfourché ce dada
en compagnie de la belle jeune fille. Il courait avec elle les champs de
l’espace. Il chevauchait cette fantaisie avec non moins d’ardeur, pour
ne pas dire non moins d’impatience que sa jeune compagne. Ah! il
n’était pas un Aristobulus Ursiclos, lui, la tête perdue dans les nuages
de la haute science, plein de dédain pour un simple phénomène
d’optique! Tous deux se comprenaient et tous deux voulaient être de
ces rares privilégiés que le rayon vert aurait honorés de son
apparition!314
Em tentativa de definir a impossibilidade do entendimento entre a arte e a ciência,
o mesmo narrador onisciente opõe as categorias “artista” e “cientista” e, novamente, pinta
este último com aspectos negativos:
Le jeune savant et le jeune artiste, à diverses reprises, s’étaient aussi
rencontrés, soit sur la plage, soit dans les salons de Caledonian Hotel.
Les deux oncles avaient cru devoir les présenter l’un à l’autre.
- Monsieur Aristobulus Ursiclos, de Dumfries!
- Monsieur Olivier Sinclair, d’Édimbourg!
Cela avait coûté à chacun de ces jeunes gens un salut médiocre, une
simple inclinaison de tête, à laquelle le corps, raidi outre mesure, n’avait
point pris part. Évidemment il n’y aurait jamais sympathie entre ces
deux caractères. L’un courait le ciel pour y décrocher les étoiles, l’autre
pour en calculer les éléments; l’un, artiste, ne cherchait point à poser
sur le piédestal de l’art; l’autre, savant, se faisait de la science un
piédestal, sur lequel il prenait des attitudes.315
A intenção do narrador em opor sempre a arte à ciência e o resultado dessa
rivalidade são anunciados desde o frontispício que ilustra o romance:
314
315
VERNE, 1977a, p. 423.
VERNE, 1977a, p. 425-426.
180
Fig. 23 Frontispício de Le Rayon vert
Desenho de Benett – gravado por F. Meaulle
A imagem que abre o romance já ilustra sua conclusão: o personagem pintor
Olivier Sinclair termina por “vencer” Aristobolus Ursiclos, conseguindo a mão de Helena
Campbell no fim do romance. O casal, no centro da imagem, iluminado pelo fenômeno
do raio verde, incluído em uma espécie de círculo que também engloba os outros
personagens do romance, à exceção de Aristobolus Ursiclos. Este, no alto da montanha,
à esquerda, observa a cena e está fora da órbita que engloba o êxito da visualização do
fenômeno do raio verde e a felicidade do casal.
Observa-se que, naquele momento da carreira de Jules Verne, em 1882, a
representação da arte se dá novamente em contraposição à ciência. A pertinência da
informação reside no fato de ser justamente esse conflito que Verne apresentará em outras
de suas tramas e que o acompanha em sua carreira. Já “hetzelizado”, ocupando uma
posição tópica no campo literário, para retomar a conceituação proposta por
Maingueneau, é através da tensão entre a arte e a ciência que Jules Verne apresenta em
alguns de seus romances das Viagens Extraordinárias seu posicionamento conflituoso
em relação às suas próprias crenças e tomadas de posição no campo literário. Nesse
momento da sua trajetória, não se trata mais de reivindicar uma posição paratópica em
que parta na tentativa de filiação à estética romântica, como em Paris au XXe siècle,
tampouco há alusões explicitas à referências e modelos românticos como aquelas que
181
povoam o salão do capitão Nemo em Vingt mille lieues sous les mers. Parece-nos que as
negociações com seu editor ao longo de sua carreira e o envelhecimento social de Verne
trazem para essa trama um discurso diluído e pessimista sobre a ciência quando diante da
arte.
O pessimismo sobre a ciência é ainda observado em Le secret de Wilhelm Storitz.
Ainda que de maneira incipiente, o personagem pintor desse romance poderá integrar a
discussão que realizamos nesta Tese. Esse romance foi escrito em dois momentos na
carreira de Jules Verne: o início, em torno de 1898, talvez depois da leitura do sucesso do
inglês H. G. Wells, O homem invisível, romance de 1897; e depois foi retomado em 1901.
A história tem como cenário a cidade de Hagz, na Hungria, e se passa, segundo a versão
publicada, em 1757 – portanto seria um romance do passado, numa cronografia diferente
daquela da maioria dos romances que compõem as Viagens extraordinárias. O
engenheiro ferroviário francês Henri Vidal, narrador e personagem do romance, vai até a
Hungria assistir ao casamento de seu irmão, o pintor de retratos Marc Vidal, com Myra
Roderich. O casamento e a festa das bodas serão atrapalhados por Wilhelm Storitz,
químico alemão que decide se vingar da jovem por ter sido rejeitado. O personagem tem
uma fórmula que lhe permite tornar-se invisível depois de bebê-la.
Embora tenha sido concluído em torno de 1904 e 1905, esse manuscrito será
publicado postumamente, em 1910. Em um dado momento, Jules Verne parece hesitar
sobre sua publicação, sem que se conheçam exatamente as causas, como podemos
acompanhar através da sua correspondência com o Louis-Jules Hetzel, filho do editor.
Em 14 de fevereiro de 1904 Verne escreve : “Au lieu de l’Invisible (Le secret de Wilhelm
Storitz), dont je vous avais parlé, je préfère vous adresser Maître après Dieu (Maître du
Monde) qui me paraît devoir être le dernier mot de l’automobilisme”.316
Em 24 de setembro do mesmo ano, prevendo sua morte iminente, o escritor mostra
sua vontade de ver o manuscrito publicado: “Mer saharienne (L'Invasion de la mer) sera
suivi du Secret de Storitz, un volume chacun, que je désire voir publier de mon vivant. Je
vous écris comme je peux avec mes mauvais yeux”.317
Em 25 de fevereiro de 1905, aguardando a escolha de Louis Hetzel sobre o suporte
em que o manuscrito seria publicado - em folhetim, portanto, em um jornal, ou em
316
VERNE, Jules. Correspondance inédite de Jules et Michel Verne avec l’éditeur Louis-Jules Hetzel
(1886-1914). Tome II. Établie par Olivier Dumas, Piero Gondolo Della Riva & Volker Dehs. Genebra:
Slatkine, 2006a, p. 134.
317
VERNE, 2006a, p. 140.
182
fascículo, no Magasin d’Éducation et de Récréation, Verne escreve: “Je vous enverrai
prochainement le nouveau manuscrit. Ce ne sera probablement pas celui dont je vous ai
parlé, L’Invisible, mais Le Phare du bout du monde, à la dernière pointe de la Terre de
Feu”.318
Em última carta sobre Le Secret de Wilhelm Storitz, datada de 5 de março de 1905,
dezenove dias antes de sua morte causada pelas complicações do diabetes, Verne anuncia
o envio do romance ao editor. Nessa carta, comparando-se, em certa medida, a E.T.A.
Hoffmann (1776-1822) - jurista, compositor e escritor alemão expoente da literatura
romântica na sua vertente fantástica, muito difundida na França junto à geração romântica
-, Jules Verne o evoca afirmando que este não teria ido tão longe com o tema sobre a
invisibilidade: “Puisque vous préférez Le Secret de Storitz, je vous l’enverrai mercredi et
vous le recevrez jeudi. Storitz, c’est l’invisible, c’est du pur Hoffmann, et Hoffmann
n'aurait pas osé aller si loin. Il y aura peut-être un passage à adoucir pour le Magasin, car
le titre de cet ouvrage pourrait être aussi La Fiancée invisible”.319
As cartas trocadas entre escritor e editor auxiliam a compreensão das
modificações radicais às quais o romance foi submetido, sobretudo no que diz respeito às
representações da arte ou do artista. O romance não será publicado em 1905 como Verne
o desejou, mas somente em 1910, com inúmeras modificações feitas por seu filho, Michel
Verne. No entanto, conhecido desde 1996 graças ao trabalho do especialista Olivier
Dumas, a Société Jules Verne junto com a editora Archipel republicaram o romance na
sua versão original.320 Della Riva e Lanthony, ambos especialistas da obra de Jules Verne,
já dedicaram artigos nos quais exploram as passagens desse manuscrito que Michel Verne
reescreveu.321 Analisamos na pesquisa as duas versões, a publicada em 1910,
confrontando com aquela original de 1996.
Embora as referências à arte e ao artista sejam escassas para realizarmos uma
discussão na perspectiva da trajetória de Jules Verne no campo literário, há duas
diferenças que devem ser observadas. Uma das modificações realizadas por Michel Verne
318
VERNE, 2006b, p. 145.
VERNE, 2006b, p.147.
320
A versão original sem as modificações do filho de Jules Verne foi publicada em 1996, pela editora
Archipel. De domínio público, esta versão pode ser lida também em formato e-book desde maio de 2015.
http://www.ebooksgratuits.com/pdf/verne_secret_wilhelm_storitz_vo.pdf
321
Diversos são os artigos que se dedicaram à discussão sobre as modificações e a versão original deste
romance. Aludimos àqueles que nos auxiliaram a compreender a problemática: DELLA RIVA, Piero
Gondolo. “À propos du manuscrit de Storitz”. Bulletin de la Société Jules Verne, nº 46, 2e trim., 1978, p.
160-163; DELLA RIVA, Piero Gondolo. “Encore à propos du manuscrit de Storitz”. Bulletin de la Société
Jules Verne, nº 58, 2e trim., 1981, p.72 e LANTHONY, Philippe. “En lisant le vrai Storitz”. Bulletin de la
Société Jules Verne, nº 77, 1er trim., 1986, p.15-18.
319
183
que teriam afetado diretamente a nossa interpretação, é o tempo histórico em que a trama
se desenvolve. Embora não mencione explicitamente, Jules Verne a situa no século XIX,
em razão de algumas evidências textuais, provavelmente depois da guerra francoprussiana ocorrida entre 1870 e 1871. Por exemplo, Henri Vidal, narrador-personagem
do romance, não poupa desprezo pelos alemães depois do conflito que marcou a tomada
da maior parte do território da Alsácia-Lorena pela Prússia, o fim do Segundo Império
francês e início da Terceira República, como podemos verificar nas passagens abaixo:
À le bien considérer, ce personnage, j’avais lieu de penser que c’était
un Allemand, très probablement originaire de la Prusse. Si je ne faisais
pas erreur, il n’aurait pas plus envie d’entrer en relation avec moi que
moi avec lui, lorsqu’il apprendrait que j’étais un Français. Oui, un
Prussien, cela se sentait, comme on dit, et tout en lui portait la marque
teutonne. Impossible de le confondre avec ces braves Hongrois, ces
sympathiques magyars, vrais amis de la France.322
C’est un Allemand ? repris-je.
À n’en point douter, monsieur Vidal, et je pense même qu’il l’est deux
fois, car il doit être Prussien.
Eh ! C’est déjà trop d’une! M’écriai-je.323
Já o romance publicado em 1910 pela editora Hetzel, Michel Verne remaneja esse
contexto histórico e atrasa o tempo do romance para o século anterior, situando a trama
em 1757. Ao receber a carta de seu irmão pintor convidando-o para seu casamento, Henri
Vidal lança: “Ainsi se terminait la lettre que j’ai reçu de mon frère, le 4 avril 1757”.324
Dessa modificação advêm incontáveis anacronismos como alguns que
mostraremos a título de exemplo. Ora, reconfigurar uma trama que se passaria na Terceira
República da França para a França monárquica de 1757, pressuporia modificações
profundas no romance. O retrato literário do personagem pintor Marc Vidal mostra os
erros grosseiros que resultaram dessa modificação:
Mon frère Marc, alors âgé de vingt-huit ans, avait déjà obtenu de grands
succès aux Salons comme peintre de portraits. La médaille d’or et la
rosette d’officier de la Légion d’honneur, c’était justice de les lui avoir
accordées. Il occupait un haut rang dans l’art des portraitistes de son
temps, et Bonnat pouvait être fier de l’avoir eu pour élève. [...] En effet,
il s’agissait d’un mariage. Depuis quelque temps déjà, Marc résidait à
Ragz, une importante ville de la Hongrie méridionale. Plusieurs
semaines passées à Budapest, la capitale, où il avait fait un certain
322
VERNE, Jules. Le secret de Wilhelm Storitz. E-books, maio de 2015, p. 24. Disponível em:
http://www.ebooksgratuits.com/pdf/verne_secret_wilhelm_storitz_vo.pdf Remetemos o leitor igualmente
ao texto de 1910 remanejado por Michel Verne mas não modificado para a passagem citada: VERNE, Jules.
Le secret de Wilhelm Storitz. Paris: Michel de l’Ormeraie, 1981, p. 361.
323
VERNE, 2015, p. 26 ou VERNE, 1981, p. 362.
324
VERNE, 1981, p. 342.
184
nombre de portraits très réussis, très largement payés, lui avaient permis
d’apprécier l’accueil qui attend en Hongrie les artistes et
particulièrement les artistes français, des frères pour les Magyars.325
Somente nessa breve passagem o narrador, encerrado no ano de 1757, incorre em
dois anacronismos: o primeiro quando alude à “rosette” da Légion d’honneur (Legião de
honra), condecoração honorífica francesa que só será instituída em 1802 por Napoleão
Bonaparte em recompensa a méritos militares ou civis à nação; a segunda, quando cita o
pintor Léon Bonnat (1833-1922), retratista de diversas personalidades do século XIX
como Victor Hugo, Louis Pasteur e Jules Ferry, portanto, contemporâneo de Jules Verne.
Uma segunda modificação considerável concerne à conclusão do romance. Na
versão de 1910, Michel Verne ressuscita a personagem Myra Roderich depois de dar à
luz a um filho do pintor Marc Vidal. Na versão de Jules Verne, Myra se torna invisível
para sempre por ter ingerido a fórmula de Storitz. O fim melancólico é endossado pelo
fato de os personagens só poderem “vê-la” através do retrato pintado por seu noivo, Marc
Vidal.
Este subitem da Tese prevê a análise do personagem pintor do romance Le secret
de Wilhelm Storitz através dos dados que poderíamos extrair da trama. No entanto, a
escassez de informações nos conduzem a realizar observações pela ausência de elementos
concernentes às representações da arte ou do artista.
Seja na versão de 1910 ou naquela de 1985, Marc Vidal é apresentado como um
pintor de retratos dotado dos capitais necessários para ser reconhecido. Porém, tem sua
vida pessoal e felicidade atrapalhados por um cientista que importuna suas bodas. Ora,
como em Le Rayon vert, o personagem que representa a ciência é pintado com aspectos
negativos. Para nós, quanto mais se dá o processo de envelhecimento social de Jules
Verne dentro do campo literário, maior é seu pessimismo em relação à ciência. Não
queremos dizer com isso que Jules Verne não continue se valendo do intertexto e do
interdiscurso científico ficcionalizado em seus romances de aventura. Um contrato o
restringia nessa produção. No entanto, é notório que o discurso do autor matiza
negativamente o próprio espaço no campo literário que construiu para si em colaboração
com seu editor - aquele que garante à ciência um espaço na literatura.
Os quatro romances que analisamos - Paris au XXe siècle, Vingt milles lieues sous
les mers, Le Rayon vert e Le secret de Wilhelm Storitz -, focalizados dentro dos aspectos
que recortamos para esta Tese, parecem se inscrever em uma trajetória que vai de um
325
VERNE, 1981, p. 342. (Versão remanejada por Michel Verne)
185
Jules Verne que constata a morte do romantismo e, portanto, das referências e modelos
que constituíam seu habitus de juventude, a um Jules Verne que não reverencia mais esses
modelos, pois verifica que, para estar em harmonia com a modernidade, ser reconhecido
simbolicamente no campo literário e obter vantagens financeiras, tem que negociar com
seu editor e consigo mesmo, afim de dar lugar ao discurso científico, fonte das suas
tramas, dentro do discurso literário. A maneira que encontra, consciente ou
inconscientemente, para insurgir-se contra o que alimenta sua própria obra é olhar
negativamente para isso. Na perspectiva da trajetória, queremos afirmar que o discurso
científico continua presente na obra de Verne, porém cada vez mais apresentado de
maneira pouco elogiosa.
186
5- CONCLUSÃO
Ao final da pesquisa, verificamos que a obra de Jules Verne, vista nos diversos
momentos de sua trajetória, escapa de qualquer classificação que se queira atribuir, em
razão da sua complexidade em reunir gêneros diversos: da poesia ao romance, passando
pelo teatro, pela novela e pela crítica de arte, sua obra engloba referências românticas
mescladas ao discurso científico, histórico-geográfico inicialmente, e tecnológicos
posteriormente, amalgamando e difundindo as mensagens mais variadas. Podemos dizer
que Verne constrói uma trajetória não linear no início, em 1851, e mais uniforme a partir
de 1862, traçado que pressupõe mudanças de ordem estética.
Um “antes e depois” foi conjecturado no início da pesquisa para estudarmos a
carreira de Jules Verne na perspectiva do campo literário, levando em conta que o
encontro com o editor Pierre-Jules Hetzel tenha sido um divisor de águas na carreira do
escritor. Essa hipótese foi de fato produtiva, embora parcialmente contestada. De 1851 a
1862, duas vias paralelas se apresentaram ao escritor como espaços possíveis para
investimentos genéricos. Nesse período da sua trajetória, Verne tateia entre teatro e
imprensa literária, ou seja, entre a arte burguesa e o jornalismo, a fim de encontrar um
lugar no campo literário no qual pudesse ser reconhecido como escritor.
Ora, de textos para as artes do espetáculo como Les Pailles rompues, La Guimard
e Monna Lisa, isto é, de uma literatura voltada para o divertimento social, construída com
posicionamentos que valorizavam modelos românticos, para novelas baseadas no
discurso científico dos relatos de viagem como Les premiers navires de la marine
mexicaine, para citar apenas um exemplo, e uma crítica de arte e a crítica literária sobre
a obra de Edgar Allan Poe, Jules Verne opta pela via que lhe foi mais frutuosa
economicamente e lhe rendeu mais possibilidades no que diz respeito à difusão de seu
“nome” no campo literário. Devido à coleção de fracassos para a cena teatral, a literatura
em uma linha utilitária, com intuitos pedagógicos, revelou-se potencialmente como a via
mais produtiva para seus investimentos. Queremos dizer que o investimento no gênero
romance, que ocorrerá em torno de 1860 e 1862, impõe-se a Verne em função das
coerções do campo e de sua ambição profissional; e a confirmação dos aportes estéticos
- as narrativas de viagem, o insólito e o extraordinário - advêm sobretudo da leitura de
Edgar Allan Poe, em torno de 1862.
187
Ao conhecer o futuro editor, Pierre-Jules Hetzel, em 1862, Jules Verne já trazia
consigo tanto as disposições literárias com base no discurso científico dos relatos de
viagem, testadas na revista Musée des familles, quanto o aspecto do “extraordinário”
tomado de Poe, o que agradou a Hetzel, mas ainda trazia em si o traço romântico da sua
formação geracional. O contrato assinado, em 1862, para o romance Cinq semaines en
ballon e sua publicação, em 1863, revelam para Jules Verne que os “novos sistemas” que
relatara em carta a seu pai em abril de 1854 começavam, finalmente, a se perfilar e render
frutos. É, de fato, graças a Hetzel e seus empreendimentos no campo editorial e no campo
literário que Jules Verne obterá sucesso com esse romance e poderá vislumbrar a
possibilidade de viver da sua pena.
Desde a nossa primeira reflexão sobre a realização do estudo da trajetória de Jules
Verne, que atentava para as especificidades do contexto histórico e a relação do escritor
com seu editor, dificuldades surgiram, sobretudo quando definimos uma abordagem em
termos sociodiscursivos, que leva em conta as tomadas de posição no campo literário e
os posicionamentos discursivos do escritor. Poderíamos ter incorrido, por exemplo, no
problema de realizar análises do tipo “psicológicas” partindo da associação entre Jules
Verne e P.-J. Hetzel depois do encontro de 1862, como fizeram certos biógrafos do
escritor ao considerarem Hetzel como um “pai espiritual”. Ou mesmo nos ter fixado em
um “antes” e um “depois” desse encontro, sem considerar as nuances do percurso de
Verne. Uma outra forte tentação foi estabelecer uma idealização tanto da figura de Verne
quanto a de Hetzel, demonizando este último e vitimizando o primeiro. Desse ponto de
vista, Hetzel teria sido um editor astucioso, interesseiro, que teria se aproveitado de Verne
para fazer fortuna, não levando em conta suas disposições estéticas e abafando seus
talentos.
No entanto, o trabalho de pesquisa reiterou a ideia de que a produção literária de
um escritor está intrinsecamente relacionada a seus sucessivos posicionamentos
enunciativos e às posições assumidas por ele no campo literário, a fim de construir uma
carreira e de definir seus rumos. Distante da ideia do gênio romântico encerrado em sua
torre de marfim, vemos a produção literária como um processo coletivo que implica
diversos agentes e suas negociações, nem sempre fáceis, em vista de produzir bens
simbólicos e financeiros. Unimos, nesta pesquisa, portanto, a interpretação da obra à
análise das condições técnicas ou sociais de sua publicação e circulação.
Pela importância das táticas e estratégias do mundo da edição, o investimento no
gênero romance científico com Cinq semaines en ballon engajou Jules Verne, em busca
188
de legitimidade, em uma via estética da qual o escritor não previa as implicações e
obrigações antes do lançamento do Magasin d’Éducation et de Récréation, em 1864. Os
discursos paratextuais dessa revista para crianças e jovens atestam as coerções poéticas
segundo as quais devem ser considerados os contratos ideológicos constituídos para a
promoção do ciclo romanesco, sob a égide do mito da “grande obra”.
Como pudemos mostrar, os paratextos da revista-vitrine de Hetzel condicionaram
a política de planejamento do ciclo romanesco Viagens extraordinárias, em harmonia
com os princípios estruturantes de uma literatura expositiva, didática e enciclopédica,
capaz de formar as novas gerações. Tal é o um dos aportes de Hetzel aos aspectos que
Verne já trazia das experiências vividas no campo literário. Tais princípios estarão,
igualmente, na base dos argumentos que não sancionam o romance de ode ao
Romantismo - Paris au XXe siècle. Embora uma crítica à exaltação feita ao Romantismo
não esteja explícita na carta de recusa de P.-J. Hetzel, podemos dizer que, por se tratar de
um romance dedicado inteiramente a referenciar e a reverenciar os modelos românticos,
opondo-os à ciência e à tecnologia, o editor o recusou por ele não se adequar ao seu
projeto estético-editorial que visava, entre outros objetivos, garantir um lugar para a
ciência na literatura. Este fato teria servido como uma pá de cal sobre as potencialidades
românticas tardias de Jules Verne, que certamente tinha a consciência do desgaste da
estética romântica, apresentada como morta na cenografia do romance, e já vinha
buscando novas vias, “novos sistemas”.
Assim, na lógica da exploração de fronteiras que adotamos nesta Tese, o romance
Paris au XXe siècle tem um lugar importante na trajetória do autor. Dentro da perspectiva
discursiva que propomos, tratamos de associar Michel Dufrénoy, personagem paratópico
por excelência, ao não lugar do próprio Jules Verne nos anos de 1860-1862. O escritor se
vale desse caráter problemático de não pertencimento para nutrir sua criação. Se Cinq
semaines en ballon (1863) é um romance com cujo gênero e temas o escritor já se
apresenta “tal como será”, é o manuscrito que o precede - Paris au XXe siècle (18601861), que marca em definitivo o reposicionamento de Verne em direção ao romance.
Por apresentar o conflito entre a literatura e a arte em filiação romântica no embate com
a ciência e os avanços tecnológicos, caros ao século das revoluções industriais como
vimos, Paris au XXe siècle se configura na trajetória do escritor como um romance de
despedida da escola romântica, à qual nunca conseguiu se afiliar concretamente.
“Refazer a história do universo”. Tal passou a ser o projeto de Verne depois do
encontro com Pierre-Jules Hetzel. Contratos e coerções que garantem a Jules Verne o
189
status de escritor marcarão esse momento imediatamente posterior à publicação de Cinq
semaines en ballon, Voyages et aventures du capitaine Hatteras e a recusa de Paris au
XXe siècle. É precisamente com a atitude de apreender um vasto conjunto científico e
tecnológico, segundo aporte de Hetzel para a literatura de Verne, transformando-o em
romances, que as Viagens extraordinárias encontram sua singularidade. Questionado
sobre seu método de trabalho pela jornalista Marie A. Belloc, em 1895, Jules Verne fala
em termos de “cuisine littéraire”326. Por mais prosaica que seja, a expressão corresponde
à mistura de ingredientes, tirados daqui e dali, meticulosamente dosados e transformados
pela competência do escritor na obra que se perpetuou até os dias de hoje. O programa
que se articulou entre escritor e editor para a fundação das Viagens extraordinárias
ambicionava um objetivo estético de totalidade análogo àquele de Honoré de Balzac, com
sua Comédie humaine cujo “Avant-propos” foi publicado em 1842. Para Jules Verne, as
Viagens extraordinárias serão produto de um processo coletivo, um trabalho em
colaboração, que implicou diversas negociações e contratos, no sentido jurídico do termo.
Quanto mais obtém sucesso junto ao público, o que é confirmado pelas vendas,
mais o escritor cede às coerções editoriais e se fideliza à editora em um processo que
chamamos de hetzelização - endossado pelos diversos contratos firmados entre os dois
agentes do campo literário. Entre 1863, data do primeiro contrato que o engaja com a
editora de Hetzel, a 1875, ainda que ambos se beneficiem financeiramente das vendas dos
romances, P.-J. Hetzel, homem de negócios e não artista, lucrou muito mais do que o
escritor. Dos três formatos de publicação previstos para cada volume – a primeira em
fascículo, anexada a sua própria revista-vitrine ou a um jornal, seguida de uma publicação
in-18 não ilustrada e, ainda, de uma terceira publicação grand in-8 ilustrada, a famosa
edição da capa vermelha e douradura nas páginas que serviu a muitos pais como presente
de final de ano a seus filhos - Verne, entre os anos de 1863-1875 só recebia um valor fixo
por manuscrito entregue. Afirmamos, portanto, que Jules Verne representou a galinha dos
ovos de ouro para a editora de Hetzel nesse período. É somente em 1868, e depois em
1871, mas finalmente em 1875 que os contratos serão revistos e beneficiarão mais o
escritor. Por seu lado, Verne obterá com a associação com o editor Hetzel e seus
descendentes a segurança de uma carreira sólida e a garantia de um nome para a
posteridade. Hetzel, para além dos grandes lucros, tomou em suas mãos a carreira de
Verne e soube garantir sua manutenção no campo literário francês ao mesmo tempo que
326
VERNE, Jules. Entretiens avec Jules Verne - 1873-1905. Réunis et commentés par Daniel Compère et
Jean-Michel Margot. Genève: Slatkine, 1998, p. 106.
190
a projetou internacionalmente. Através de contratos firmados com editores e livreiros de
inúmeros países, Hetzel assegurou a tradução e a internacionalização das Viagens
extraordinárias, formando um número imenso de jovens leitores mundo afora.
Depois de doze anos de tentativas de entrada no campo literário, mais doze anos
de produção romanesca, Jules Verne conseguiu finalmente reunir os capitais suficientes
para obter um lugar de destaque no campo literário, mesmo que isso se deva sobretudo
por sua aceitação incontestável junto a um público fiel.
Para concluir, devemos afirmar que, ainda que Jules Verne esteja incluído no
programa cujo objetivo era esquadrinhar o globo terrestre, apresentando os
conhecimentos científicos e tecnológicos produzidos à época sob a forma do romance
didático, seus posicionamentos discursivos serão marcados por disposições que ainda
apontam para a literatura e a arte, para o escritor e o artista em filiação romântica. As
representações artísticas na obra de Jules Verne atestam da subsistência de um gosto
romântico.
As peças de teatro analisadas, cujos modelos eram extraídos de peças de Alfred
de Musset, teriam servido ao Verne dramaturgo para se filiar ao Romantismo. Os
apontamentos das técnicas, gêneros e pintores ainda valorizam a estética romântica na
crítica de arte do Salão de 1857. Já em 1860-1861, em Paris au XXe siècle, Verne parece
fazer o luto do Romantismo sempre reverenciado, mas visto com grande saudosismo. No
gabinete de curiosidades do capitão Nemo em Vingt mille lieues sous les mers, romance
de 1871, embora as telas representativas da estética romântica se misturem com quadros
de gêneros variados e “curiosidades”, elas ainda ocupam o lugar de destaque da passagem
descritiva. Resta lembrar que elas estão encerradas no Nautilus, logo, perdidas para a
humanidade. Mais tarde, um posicionamento discursivo diluído se articula em torno da
antinomia entre a arte - sem filiação romântica - e a ciência, através de alusões esparsas
nos romances Le Rayon vert, de 1882, e Le secret de Wilhelm Storitz, de 1910.
Na perspectiva da trajetória, observamos uma espécie de enfraquecimento da
recorrência aos modelos românticos pari passu com o envelhecimento social do escritor.
No percurso apresentado nesta Tese, concluímos igualmente que Jules Verne não é
“inventado” pelo seu editor, o que não diminui a importância desse encontro para sua
carreira. Porém, podemos também afirmar que é somente a partir das injunções genéricas,
contratuais e ideológicas, expressas pelo projeto editorial de Hetzel em prol de uma
literatura didática e enciclopédica, que devemos visitar a obra criada por Jules Verne e os
questionamentos que faz sobre a arte.
191
6 – ANEXOS
6.1 – Contratos
6.1.1 - Contrato para Voyage en l’air (Cinq semaines en ballon) (1862)
Entre les soussignés,
M Jules Vernes demeurant passage (ilegível) nº 18 d’une part ;
Et M Jules Hetzel éditeur demeurant 18, Rue Jacob d’autre part ;
Il a été dit ce qui suit :
Monsieur Jules Vernes cède et vend le droit de publier à réservation de tous autres un
ouvrage de lui intitulé Voyage en l’air aux conditions suivantes :
Art. 1e. La première édition sera tirée à deux mille exemplaires avec papier (ilegível) dans
le format in-dix huit de la Collection Hetzel.
Art. 11. Le prix (ilegível) à l’auteur pour cette première édition est de cinq cents francs
soit vingt cinq centimes par volume que M Hetzel paiera à M Jules Vernes en son billet
à son ordre à 4 mois à la mise en vente de l’édition.
Art 111. Il est dit que pour cette même édition il sera fait sept cents francs d’annonces.
Art. IV. Pour les éditions suivantes le prix fixé pour chaque exemplaire sera de vingt cinq
centimes. Ces éditions ne pourront être à un nombre moins de deux mille.
Art V. Si après deux éditions épuisées M Hetzel juge utile à la vente de monter les prix
et les conditions de la publication pour toutes les éditions ordinaires les droits de l’auteur
seront calculés dans la proportion de dix pour cent du prix fort.
Pour les éditions illustrées dont le prix et les dépenses sont plus élévés les droits de
l’auteur seraient calculés à 5% du prix fort.
Paris le 23 octobre 1862
J’approuve
(Assinatura de Jules Verne)
(Assinatura de Jules Hetzel)
192
6.1.2 - Contrato para Voyage et aventures du capitaine Hatteras (1864)
Entre les soussignés,
Monsieur Jules Verne, homme de lettres, demeurant Auteuil, 39, Rue de la fontaine, d’une
part ;
Et Monsieur J. Hetzel, libraire éditeur, demeurant à Paris, Rue Jacob, 18, d’autre part ;
Il a été dit ce qui suit :
M Verne cède à M Hetzel, qui l’accepte le droit de publier à l’exclusion de tous autres les
deux volumes dont il est l’auteur, intitulés : Voyages et aventures du capitaine Hatteras
ou Les Anglais au Pôle Nord,pour la première partie, et Les Robinsons dans les glaces,
pour la seconde partie aux clauses conditions suivantes :
Art. 1er. Il est dit qu’en échange de la somme de trois mille francs, que M Hetzel règle à
M Verne, contre la signature des présentes, M Verne cède à M Hetzel 1 - un droit à tirage
de dix mille exemplaires (ilegível) doubles de deux volumes dont s’agit, divisés selon les
(ilegível) de la vente en une ou plusieurs éditions ; 2- le droit de publier le dit ouvrage
dans le Magasin d’Éducation et de Récréation dirigé par M Macé et Stahl.
Art. 2. Après ces dix milles exemplaires tirés, épuisés, M Hetzel donnera à M Verne pour
tous les tirages supplementaires, trente centimes par volume – à cette fin, toutes les fois
que M Hetzel devra mettre en vente un nouveau tirage il en donnerait avis à M. Verne et
lui reglèrai le montant du dit tirage en son billet à son ordre à trois mois.
Art. 3. Pour les éditions illustrées, s’il paraît à M Hetzel que le succès du livre les
comporte, il est dit que les droits d’auteur seraient de dix pour cent du prix fort, quelque
soit ce prix, qu’il n’ait pas possible de déterminer à l’avance.
Art. 4. En ce qui concerne les éditions non-illustrées le présent traité lie M Hetzel M
Verne pour dix ans qui courront à partir de la mise en vente de la première édition. Ces
dix ans passés, M Verne devra (ilegível) à prix égal à M Hetzel sur tous autres éditeurs,
pour le renouvellement du dit traité.
Art. 5. Quant aux éditions illustrées les bois/gravures faits pour ces éditions devant rester
de non-valeurs dans les mains de l’éditeur, si le texte pouvait aller d’un côté et les
gravures rester sans texte de l’autre, le droit de tirage de M Hetzel est absolu, exclusif,
non limité à la charge par lui d’acquitter entre les mains de M Verne les droits d’auteur à
lui attribués aux termes de l’article 3.
Art. 6. Les droits de traduction et de reproduction seront partagés entre M Verne et M
Hetzel par moitié.
193
De plus :
M Verne se proposant d’écrire deux ouvrages intitulés l’un : Nouvelles histoires générales
des voyages, l’autre Nouveau voyage autour du monde, il a été dit entre lui et M Hetzel
qu’il aide ces deux ouvrages au dit M Heztel, dans les mêmes conditions que celles des
Voyages et aventures du capitaine Hatteras, avec cette seule différence que ces deux
ouvrages étant à faire au lieu d’être faits, il est dit que M Hetzel pour faciliter à M Verne
son travail soumettra à M Verne, à partir de fin février prochain, la somme de trois cents
francs, par mois, à valoir sur la livraison des dits ouvrages.
Il est entendu que la Nouvelle Histoire générale des voyages ne pourra se composer de
plus de six volumes et Le Nouveau voyage autour du monde de plus de deux volumes –
chacun de ces volumes devant avoir outre son titre général son titre particulier.
Il est dit aussi que M Verne s’oblige à livrer à M Hetzel un minimum de deux volumes
par an et qu’il s’oblige en outre à ne publier en dehors des ouvrages dont s’agit, aucun
autre ouvrage, tant qu’ils ne seraient pas achévés sans l’agrément de M Hetzel.
Fait double à Paris, le premier janvier mille huit cent soixante quatre.
Approuvé
(Assinatura de Jules Verne)
(Assinatura de Jules Hetzel)
194
6.1.3 – Contrato de 1865
Entre les soussignés,
Monsieur Jules Verne, homme de lettres, demeurant Auteuil, 39, Rue de la fontaine, d’une
part ;
Et Monsieur Jules Hetzel, éditeur, demeurant à Paris, Rue Jacob, 18, d’autre part ;
Il a été dit ce qui suit :
Art. 1er. Les conventions suivantes ont été établies entre M Hetzel et Verne, qui couront
du premier janvier mille huit cent soixante six jusqu’au trente et un décembre mille huit
cent soixante et onze.
Art. 2. Pendant ces six années M Hetzel s’engage à prendre M. Verne et par chaque année
trois volumes composés dans le genre de ceux qu’il a précédement écrits du même auteur
pour le même public et de la même étendue.
Art. 3. M Hetzel aura pendant dix années un droit exclusif de propriété sur chacun de ces
volumes à partir de la date de sa publication ; il pourra le publier dans tel journal qui lui
conviendra et sous quelque forme que ce soit, avec ou sans illustrations.
Art. 4. Quant aux éditions illustrées les bois et gravures à faire pour ces éditions devant
rester des non-valeurs dans les mains de l’éditeur si le texte pouvait aller d’un côté et les
gravures de l’autre, il est dit que M Hetzel en aura la propriété absolue et sans limites.327
Art. 5. Comme prix des ouvrages cédé dans les conditions suivantes par M Verne à M
Hetzel, celui-ci paiera à l’auteur la somme de trois mille francs par volume ou pour la
(ilegível) de M Verne la somme de sept cent cinquante francs par mois à partir du premier
janvier prochain.
Art. 6. M Verne s’engage égalément pendant toute la durée des présentes conventions, à
ne publier aucun autre ouvrage, soit par lui-même, soit dans un autre journal, soit chez un
autre éditeur, sans l’agrément de M Hetzel.
Art. 7. Il est entendu que ces conditions s’appliquent égalément aux ouvrages
précedemment publiés par M Jules Verne : Cinq semaines en ballon, Voyage au centre
de la Terre, De la Terre à la lune, Les Anglais au pôle nord et Le désert de glace dont M
Hetzel a acqui la propriété de M Verne moyennant la somme complémentaire de cinq
mille cinq cents francs qu’il règle à M Jules Verne, en (ilegível) déjà payées par lui sur
les dits ouvrages.
327
Em nota na margem esquerda da página: « En un mot il est entendu entre M Hetzel et M Verne que sa
propriété absolue et indéfinie des ouvrages faisant l’objet des présentes conventions est cédée par M Verne
pour l’exploitation des dits ouvrages en éditions illustrées au dit M Hetzel. »
195
Art. 8. M Jules Verne a publié dans les Musée des familles un certain nombre de nouvelles
et est autorisé à en publier encore un par année ; il est dit que ces nouvelles ne pourront
être publiées en volumes que par M Hetzel, soit en totalité, soit en partie à son choix, si
elles lui paraissent de nature à être réunies en volume.
Fait double à Paris, le onze décembre mille huit cent soixante cinq
Approuvé
(Assinatura de Jules Verne)
(Assinatura de Jules Hetzel)
196
6.1.4 – Contrato de 1875
Entre les soussignés,
Monsieur Jules Verne, homme de lettres, habitant à Amiens, Boulevard Longueville nº44,
d’une part ;
Et Messieurs J. Hetzel et Cie, libraires éditeurs, à Paris, 18, Rue Jacob, d’autre part ;
Il a été dit comme résumé des nos conventions passées et préliminaire utile des
conventions destinées à régler à l’avenir, ce qui suit:
Résumé du passé et préliminaires de l’avenir
Messieurs J. Hetzel et Cie ont actuellement l’exploitation exclusive des œuvres de M Jules
Verne aux termes d’un traité en date du 25 décembre 1871 et dans des conditions de temps
et de paiements énoncées dans ce traité.
Ce traité du 25 décembre 1871 est lui-même la suite et la dernière modification d’une
série de traités dont le premier remonte au 23 octobre 1862 et qui relatif à Cinq semaines
en ballon, premier ouvrage de M Jules Verne assurait à ce dernier un droit sur les
exemplaires de cet ouvrage. Un deuxième traité fut conclu le premier janvier 1864 sur
des bases analogues pour différents autres volumes. L’artice 5 de ce traité spécificiait
que :
En ce qui concerne les éditions illustrées, les bois et les gravures devant rester des nonvaleurs dans les mains de l’éditeur si le texte pouvait aller d’un côté et les gravures rester
de l’autre sans texte, le droit de propriété cédé à M M J. Hetzel et Cie serait absolu, exclusif
et non limité.
Plus tard, et sur la demande de M Jules Verne qui préférait un revenu fixe au revenu
aléatoire établi sur le chiffre de vente, un troisième traité fut conclu à la date du 11
décembre 1865 qui stipulait que M Jules Verne fournirait pendant six ans à M M J. Hetzel
et Cie et tous les ans à l’exclusion de tous autres trois volumes in-18 confinant au même
public que ceux qu’il avait déjà écrits et ce contre un revenu annuel de neuf mille francs.
Ce traité fut remanié le 8 mai 1868 et la somme payable annuellement partie par
Messieurs J. Hetzel et Cie à dix mille francs.
Enfin un cinquième traité fut signé le 25 décembre 1871. Dans ce traité (ilegível) en
maintenant sur le désir de M Jules Verne, le principe du revenu fixe M M J. Hetzel et Cie
désireux de ménager l’effort de M Jules Verne et de régler en même temps vis à vis du
public sa production, en ne l’exagérant pas lui ont offert de renoncer au troisième volume
annuel qu’il était obligé de leur fournir, et d’éléver cependant à douze mille francs la
197
somme annuelle à lui payer. De son côté M Jules Verne (ilegível) dans les vues de M M
J. Hetzel et Cie et prorogeait de trois ans les dates d’expirations des traités antérieurs.
Accesoirement il y a lieu de mentionner ici que sur le désir de M Jules Verne, deux
dérogations furent faites à ce traité. La première en acceptant de publier dans la même
année tois volumes au lieu de deux , la deuxième en prenant un volume composé de
nouvelles déjà parues dans les Musées des familles, dans les mêmes conditions que les
inédits.
Le succès de M Jules Verne ayant grandi à la suite de la publication du Tour du monde,
M M J. Hetzel et Cie désireux de faire participer M Jules Verne au succès croissant de son
œuvre, lui ont déclaré il y a quelques mois, que leur intention était de renoncer au bénéfice
du traité du 25 septembre 1871 qui devait terminer en 1881 et avait encore plus de dix
ans à courir et l’ont engagé, de son côté, à renoncer au système de revenu fixe préféré par
lui jusque-là et à s’associer au succès de ses œuvres futures par la perception d’un droit
d’auteur fixé sur le chiffre des exemplaires vendus.
Un nouvel et définitif accord est intervenu aujourd’hui entre Messieurs Jules Verne et J.
Hetzel et Cie qui, tout en réglant les nouvelles conditions de l’avenir, arrête et fixe les
conditions et les règlements du passé.
Règlement pour les œuvres antérieures à ce jour et illustrées
Art. 1er. Les œuvres antérieures à ce jour et illustrées c’est-à-dire celles publiées depuis
Cinq semaines en ballon, jusque et y compris L’île mystérieuse dont la première partie
paraît en ce moment dans le Magasin d’Éducation et de Récréation sont et demeurent aux
termes des anciens traités la propriété pleine et entière de M M J. Hetzel et Cie, les droits
d’entière propriété sur ces œuvres ayant été acquittées par M M J. Hetzel et Cie en
execution des traités qui les concernent.
Art. 2. En ce qui concerne la Géographie de la France conformément à l’article VII du
traite du 8 mai 1868, il est dit encore que la Géographie illustrée ou même non illustrée
avec introduction de Théophile Lavallée texte par M Jules Verne est et demeure la
propriété exclusive de M M J. Hetzel et Cie tous les droits d’auteur revenant de ce chef à
M Jules Verne ayant été également acquittés.
Règlement pour les œuvres antérieures à ce jour non illustrées
Art. 3. En ce qui concerne les volumes in-18 seules éditions publiées jusqu’à ce jour sans
illustrations de l’œuvre antérieure de M Jules Verne à commencer par Cinq semaines en
ballon et à finir par les trois volumes de L’île mystérieuse in-18 monsieur Jules Verne
ayant désiré pour éviter la confusion qu’aurait pu amener dans les réglements de la
198
différence des dates d’expiration résultant de la succession des anciens traités, il est dit
aux termes d’une moyenne établie par M. Jules Verne entre les plus repprochées et les
plus éloignées que ces diverses écheances sont et demeurent ramenées à une date unique :
celle de 1882 que M Jules Verne aura à toucher sur l’ensemble de tout son œuvre non
illustrée in-18, un droit de cinquante centimes par volume vendu.
Règlement concernant l’avenir et les œuvres futures
Art.4. Il est dit qu’à partir de cette année 1er mai 1875, M M J. Hetzel et Cie sont et resteront
aux clauses qui vont être dites et à l’exclusion de tous autres aux termes de la loi qui régit
la durée des droits de la propriété littéraire, seuls éditeurs de toutes les œuvres de M Jules
Verne tant en éditions illustrées qu’en édition in-18, ou en tout autre mode de publication
que les changements de temps et les besoins de l’exploitation pourront amener dans
l’intérêt de la propagation des dits ouvrages le tout sans restrictions et sans réserves
d’aucun espèce, de même qu’il en était pour les œuvres antérieures.
Monsieur Jules Verne fournira par an comme auparavant à M M J. Hetzel et C ie deux
volumes de la même valeur et étendue que ceux qu’il a déjà publié chez les mêmes
éditeurs.
Art. 5. M Jules Verne percevra sur les volumes in-18 à commencer par le tome I du
Courrier du Czar un droit de cinquante centimes par exemplaire vendu.
Art. 6. M Jules Verne percevra sur les éditions illustrées de ces œuvres futures, à
commencer par le Courrier du Czar cinq pour cent du prix fort des unités vendues sur les
vingt milles premiers exemplaires et dix pour cent sur tous ceux qui suivront.
Par le mot « unité » nous entendons les livraisons, séries, fractions de volumes ou
volumes suivant les divers modes de nos ventes.
Art. 7. A partir du Courrier du Czar et du Voyage dans le monde solaire, et pour toutes
les œuvres futures de M Jules Verne tous les droits de publications dans les Journaux et
Revues de reproduction et de traduction, soit en France soit à l’étranger, seront à l’avenir
partagés par moitié entre M Jules Verne et M M J. Hetzel et Cie.
Quand M Jules Verne aura remis à M M J. Hetzel et Cie le manuscrit d’une œuvre nouvelle
Messieurs J. Hetzel et Cie feront choix avant de la publier en volume du journal, du receuil
ou de la revue auxquels ou à laquelle il sera plus utile ou plus profitable d’en céder la
primeur.
Quand ils publieront dans le Magasin Illustré d’Éducation et de Récréation celles de ces
œuvres nouvelles qui leur paraitront le mieux appropriées à leur public ils paieront à M
Jules Verne le même droit que celui qui lui serait revenu pour sa moitié sur la publication
199
par le dernier journal auquel M M Jules Hetzel et Cie auraient cédé le dernier ouvrage de
Monsieur Jules Verne.
Le produit de la vente des clichés constituant le matériel d’exploitation fabriqué par M M
Jules Hetzel et Cie et à leur frais appartiendront seuls aux éditeurs.
Conditions de paiement
Art. 8. Pour la repartition des droits d’auteur revenant à M Jules Verne, il est dit :
Le compte des ventes faites sera arrêté deux fois par an – le 30 avril et le 31 octobre de
chaque année et payé à M Jules Verne par M M Jules Hetzel et Cie de mois en mois en
dix mois et par fractions mensuelles égales et en espèces.
M M Jules Hetzel et Cie suivant l’usage général de la librairie n’auront point à leur compte
à M Jules Verne de droits d’auteur pour les exemplaires dits « de mains de passe »
destinés à couvrir les (ilegível) volumes donnés pour la publicité ou défectueux.
Art.9. Présentement la maison Jules Hetzel et Cie se trouve en avance vis à vis M Jules
Verne d’une somme de dix mille francs que M Jules Verne devait couvrir en livrant le
tome I du Courrier du Czar et le tome I du Voyage dans le monde solaire. Messieurs Jules
Hetzel et Cie faisant entrer ces deux volumes dans la convention nouvelle qui régit
l’avenir, M Jules Verne couvrira cette avance en livrant à M M Jules Hetzel et Cie en plus
des deux volumes annuels, et ce, d’ici trois ans les tomes 2 et 3 compléments de L’histoire
générale des voyages.
Art. 10. La convention nouvelle devant, jusqu’à ce que le jeu des ventes soit (ilegível)
apporter une interruption momentanée dans les résultats que l’ancienne assurait à M.
Verne, il est dit que, pendant la première et la seconde année Monsieur Jules Verne
continuera à toucher chaque mois mille francs chez M M Jules Hetzel et Cie qui se
couvriront sur ce que donneront en plus les premiers comptes semestriels dont il est
question à l’article 8.
Art. 11. Pour garder son unité à l’exploitation de l’œuvre de M Jules Verne il est dit enfin
que, conformément à l’article 4, M Jules Verne ne pourra publier ses pièces de théatre s’il
en fait de nouvelles avec non plus qu’aucun autre œuvre littéraire que chez M M Jules
Hetzel et Cieles droits d’auteur (ilegível) à ces ouvrages seront réglés quant aux conditions
de vente par les articles 5 et 6 du présent traité.
Art. 12. Dans dix ans c’est-à-dire à partir de fin 1885, M M Jules Hetzel et Cie auront la
faculté de renoncer le bénéfice de l’article 4, en ce qui concernerait les œuvres de M Jules
Verne postérieures à cette époque. Mais dans ce cas ils devraient renoncer le traité trois
200
ans à l’avance à M Jules Verne de sorte que ce ne serait que fin 1888 que la réalisation
deviendrait effective si elle avait été dénoncée en 1885.
Fait double à Paris le dix sept mai mille huit cent soixante quinze
Approuvé
(Assinatura de Jules Verne)
(Assinatura de Jules Hetzel)
201
6.2 – Paratextos do Magasin d’Éducation et de Récréation
6.2.1 À nos lecteurs
MAGASIN D’EDUCATION ET RECREATION
ENCYCLOPEDIE DE L’ENFANCE ET DE LA JEUNESSE
Directeurs: Jean Macé; -P. –J. STAHL
En commençant la publication de ce Magasin d’Education et de Récréation, nous
avons la conscience d’entreprendre une oeuvre difficile, et si nous ne reculons pas devant
la difficulté de l’entreprise, c’est que nous avons en même temps la conscience de son
extreme utilité.
Il s’agit pour nous de constituer un enseigment de famille dans le vrai sens du mot,
un enseignement sérieux et attrayant à la fois, qui plaise aux parents et profite aux enfants.
Education, récréation – sont à nos yeux deux termes qui se rejoignent. L’instructif doit se
présenter sous une forme qui provoque l’intérêt: sans cela il rebute et dégoûte de
l’instruction; l’amusant doit cacher une réalité morale, c’est-à-dire utile: sans cela il passe
au futile, et vide les têtes au lieu de les remplir.
Là devra être l’unité de notre ceuvre, qui pourra, si elle réussit, contribuer à
augmenter la masse de connaissances et d’idées saines, la masse de bons sentiments,
d’esprit, de raison et de goût qui forme ce qu’in pourrait appeler le capital moral de la
jeunesse intellectuelle de la France.
Ajouter à la leçon forcément un peu austère du collège et du pensionnat une leçon
plus intime et plus pénétrant, compléter l’éducation publique par la lecture au sein de la
famille, devenir les amis de la Maison partout où nous pourrons pénétrer, agir à la fois
sur tous les éléments dont elle se compose, répondre à tous les besoins d’apprendre qui
se développent autour du foyer, depuis le berceau jusqu’à la maturité, telle est notre
ambition.
On est enfant à tout âge pour ce qu’on ignore; n’est-on pas de même un enfant
pour tout ce qu’on a oublié? En se penchant sur nos pages pour les faire goûter à nos petits
à nos jeunes lecteurs, les parents, nous en avons la confiance, sentiront peu à peu le bon
parfum de leur jeunesse remonter jusqu’à eux.
Le Magasin d’Education et de Récréation, avons-nous besoin de le dire, n’est pas
et ne devrait pas être une oeuvre improvisée. Il y a six ans que le plan en a été conçu,
médité, arrété. Les matériaux don’t il se composera d’abord ont été choisis et amassés
patiemment, lentement, page à page, et préparés ainsi de longue main. Nous sommes
assez riches, dès à présent, pour ne rien admettre de nouveau qui ne nous paraisse digne
de notre but. Nous attendons d’ailleurs de confiance le concours de tous les esprits
distingués que préoccupe le noble souci de l’éducation des générations nouvelles; nous
comptons qu’ils voudront bien seconder notre mouvement et unir leurs efforts à ceux des
savants, des artistes dont le secours nous est déjà assuré.
A côté des travaux écrits spécialement pour notre recueil, nous donnerons, à
l’occasion, place, dans une partie spéciale de nos colonnes, à la reproduction, à la nouvelle
mise en lumières des rares oeuvres qui, dans le passé, ont mérité de devenir des classiques
de l’enfance et de la jeunesse.
Nous ne remplirions qu’imparfaitement notre tâche, nous ne justifierions pas notre
titre, si nos petits lecteurs ne pouvaient pas y trouver des joyaux qui sont pour eux comme
le patrimoine de leurs pères. Au risque donc de donner en double à quelques-uns d’entre
202
eux un petit nombre de livre qui déjà peut-être sont dans leurs mains, nous réimprimerons
ces bons livres. Disons toutefois que ces réimpressions seront, sous plus d’un rapport, des
oeuvres encore nouvelles, et que ceux qui les connaissent déjà auront profit à les relire
dans nos colonnes. Sans parler du complément de charme at d’utilité qu’ajoute une
illustration intelligente et attentive à certains livres, quelle est l’oeuvre à laquelle des
notes, une révision consciencieuse n’apporte pas une saveur nouvelle? La Science, grâce
à Dieu, dans notre siècle si agité, a fait des pas de géant, et il est tel livre irréprochable à
son origine, excelente dans son ensemble, le Robinson suisse, par exemple, pour n’en
citer qu’un, le premier que nous devions réimprimer, qui fourmille d’erreurs graves dans
les détails, et qu’il; était indispensable de ne pas laisser plus longtemps dans les mains de
la jeunesse avec les notions fausses en ce qui touche l’histoire naturelle, les sciences
physiques et même la morale, qui y abondent et le déparent. Nos réimpressions auront
donné un but: celui de mettre au niveau des progrès modernes les ceuvres en quelques
peu vieillies et dépassées, et de les sauver ainsi de l’oubli qu’elles allaient mériter. Si nous
avions un regret à exprimer, ce serait de ne trouver qu’un trop faible appoint dans
l’héritage du passé. La littérature de l’enfance proprement dite a été si singulièrement
négligée dans notre pays de France, qu’à côté des milliers de livres excellents à l’usage
de l’âge mûr que nous ont légués nos pères, ils ne nous en ont pas, à coup sûr, légué
cinquante à l’usage de nos enfants. Les lacunes enormes laissées par cette indigence
relative dans la bibliothèque de l’enfance et de la jeunesse sont assez nombreuses, hélas!
Ce sera un effort assez grand pour nous d’avoir à tenter de les combler, pour que nous
n’ayons pas le droit de faire fi de ce qui a survécu au naufrage du temps.
Nous ne pourrons tout dire à la fois, bien entendu; mais en voyant nos livraisons
et nos volumes se succéder, nos lecteurs comprendront que, toute vaste qu’elle est, aucun
point essentiel de notre tâche n’aura été par nous négligé. – Le champ est immense, il faut
bien nous resigner à ne le labourer que sillon à sillon.
Nous avions à choisir: ou faire une publication à l’usage des seuls bébés, ou parler
et pour eux et pour les jeunes gens et les jeunes filles, et par suite, que les parents nous
permettent de le dire, pour les jeunes pères et les jeunes mères aussi. – C’est le parti que
nous avons pris, bies assurés que tout convient à l’enfance elle-même, de ce qui a les
qualités mais non les défauts de l’âge mûr.
Nous prions nos abonnés de se considérer tous comme nos coopérateurs. Quand
donc il leur viendra une pensée qu’ils croient utile de nous communiquer, nous
l’accueillerons avec reconnaissance. Donnant, donnant. En mettant notre bon vouloir à
leur service, nous croyons pouvoir invoquer le leur. C’est une oeuvre de famille que nous
abordons, c’est avec l’aide des familles seulement qu’elle peut réussir.
P.-J. STAHL. – JEAN MACE.
203
6.2.2 - Avis de l’éditeur
Nous n’aurions pas, non plus, entrepris cette tâche véritablement inquiétante de
publier un recueil à l’usage de l’enfance et de la jeunesse, si nous avions été assuré du
concours exclusif et précieux de l’auteur de l’Histoire d’une Bouchée de pain, des Contes
et du Théâtre de Petit-Château, de l’Arihmétique du Grand-Papa, si le jeune et aimable
savant qui a écrit Cinq semaines en ballon, M. Jules Verne, ne nous avait, comme M.
Macé, assuré sa collaboration pour de longues années; si l’éditeur, M. Hetzel, n’y avait
été très vivement poussé, qu’il nous soit permis de le dire, par l’auteur, M. Stahl; si
d’illustres membres de l’Institut, des professeurs éminents pour la partie éducation; si des
écrivains distingués, les uns déjà célèbres, les autres dignes de le devenir, pour la partie
récréation, ne nous avaient apporté le concours indispensable de leurs lumières et de leurs
talents; si, enfin, des artistes dévoués à notre idée, les uns appréciés déjà, M. Froment, M.
Froelich, pour leur exquise aptitude à reproduire les scènes de l’enfance et de la jeunesse,
les autres tout à fait nouveaux, ce qui a bien son prix aussi, ne nous avaient fourni à
l’avance des series de dessins exquis, chastes et charmants, gai et doux à la fois, dont les
succès n’a pu nous paraître douteux.
Bien que, à notre grand regret, nous ne donnions pas cette publication absolument
pour rien, nous prions constamment les familles de vouloir bien croire que si nous
n’avions qu’un but de spéculation, que si nous n’obéissions pas à un goût, à une
préoccupation tout à fait spéciale, nous n’aurions pas pensé à l’oeuvre d’une si grande
difficulté que nous entreprenons aujourd’hui. Qu’elles nous aident dans notre tâche,
qu’elles s’en fassent les amies, les soutiens, et elles sentiront peu à peu que c’est d’une
maison, que c’est d’un foyer qu’elle part, et non pas d’une boutique don’t tout le souci
serait seulement de voir grossir sa caisse.
Faire des affaires! Rien de plus légitime sans doute; mais faire celles pour
lesquelles on se sent un goût déterminé, une vocation particulière, celles don’t on attend
mieux qu’une satisfaction morale, voilà ce qui peut surtout expliquer notre entreprise.
Si nous adressions à ce qu’on appelle le grand public des grands, nous ne
tiendrions pas ce langage, naïf à force d’être sincère; mais pourquoi, quand nous avons la
conscience de faire oeuvre de famille, ne parlerions nous pas un père de famile, à des
pères, à des mères, à des enfants, et dans le langage qu’autorise commun amour de
l’enfance et de la jeunesse.
P.-J. Hetzel
204
6.2.3 – Avertissement de l’éditeur
Les excellents livres de M. Jules Verne sont du petit nombre de ceux qu’on peut
offrir avec confiance aux générations nouvelles. Il n’en est pas, parmi les productions
contemporaines, qui répondent mieux au besoin généreux qui pousse la société moderne
à connaître enfin les merveilles de cet univers où s’agitent ses destinés. Il n’en est pas qui
aient mieux justifié le rapide succès qui les a accuellis dès leur apparition.
Si le capriche de public peut s’égarer un instant sur une oeuvre tapageuse et
malsaine, son goût ne s’est jamais fixé en revanche d’une façon durable que sur ce qui est
fondamentalement sain et bon. Ce qui a fait la double fortune des ceuvres de Jules Verne,
c’est que la lecture de ses livres charmants a tout à la fois les qualités d’u aliment
substantiel et la saveur des mets les plus piquants.
Les critiques les plus autorisés ont salué dans M. Jules Verne un écrivain d’un
tempérament exceptionnel, auquel, dès ses débuts, il n’était que juste d’assigner une place
à part dans les lettres françaises. Conteur plein d’imagination et de feu, écrivain original
et pur, esprit vif et prompt, égal aux plus habiles dans l’art de nouer et de dénoeur les
drames inattendus qui donnent un si puissant intérêt à ses hardies conceptions, et à côté
de cela profondément instruit, il a créé un genre nouveau. Ce qu’on promet si souvent,
ce qu’on donne si rarement, l’instruction qui amuse, l’amusement qui instruit, M. Verne
le prodigue sans compter dans chacune des pages de ses émouvants récits.
Les romans de M. Jules Verne sont d’ailleurs arrivés à leur point. Quand on voit
le public empressé courir aux conférences qui se sont ouvertes sur mille points de la
France, quand on croit qu’à côté des critiques d’art et de théâtre, il a fallu faire place dans
nos journaux aux comptes rendus de l’Académie des Sciences, il faut bien se dire que
l’art pour l’art ne suffit plus à notre époque, et que l’heure est venue où la science a sa
place faite dans le domaine de la littérature.
Le mérite de M. Jules Verne, c’est d’avoir le premier, et en maître, mis le pied sur
cette terre nouvelle, c’est d’avoir mérité qu’un illustre savant, parlant des livres que nous
publions, en ait pu dire sans flatterie: “Ces romans, qui vous amuseront comme les
meilleurs Alexandre Dumas, vous instruiront comme les livres de François Arago.”
Petits et grands, riches et pauvres, savants et ignorants, trouveront donc plaisir et
profit à faire des excellents livres de M. Jules Verne les amis de la maison et à leur donner
une place de choix dans la bibliothèque de la famille.
Les éditions illustrées que nous donnons des ceuvres de M. Jules Verne, à bon
marché inusité et dans des conditions qui en font des livres de vrai luxe, témoignent de la
confiance que nous avons dans leur valeur et dans la popularité toujours croissante qui
les attend.
Les ouvrages nouveaux de M. Jules Verne viendront s’ajouter successivement à
cette édition, que nous aurons soin de tenir toujours au courant. Ils embrasseront dans
l’ensemble le plan que s’est proposé l’auteur, quand il a donné pour sour-titre à son ceuvre
celui de Voyages extraordinaires dans les mondes connus et inconnus. Son but, est en
effet, de résumer toutes connaissances géographiques, géologiques, physiques,
astronomiques, amassées par les sciences modernes, et de refaire, sous la forme attrayante
et pittoresque qui lui est propre l’histoire de l’univers.
P.-J. Hetzel
205
6.2.4 – Prospectus
En commençant la publication de ce Magasin d’Education et de Récréation,
nous avons la conscience d’entreprendre une ceuvre difficile, et si nous ne reculons pas
devant la difficulté de l’entrepise, c’est que nous avons en même temps la conscience de
son extreme utilité.
Il s’agit pour nous de constituer un enseigment de famille dans le vrai sens du mot,
un enseignement sérieux et attrayant à la fois, qui plaise aux parents et profile aux enfants.
Education, récréation – sont à nos yeux deux termes qui se rejoignent. L’instructif doit se
présenter sous une forme qui provoque l’intérét: sans cela il rebute et dégoûte de
l’instruction; l’amusant doit cacher une réalité morale, c’est-à-dire utile: sans cela il passe
au futile, et vide les têtes au lieu de les remplir.
Là devra être l’unité de notre ceuvre, qui pourra, si elle réussit, contribuer à
augmenter la masse de connaissances et d’idées saines, la masse de bons sentiments,
d’esprit, de raison et de goût qui forme ce qu’on pourrait appeler le capital moral de la
jeunesse intellectuelle de la France.
Ajouter à la leçon forcément un peu austère du collège et du pensionnat une leçon
plus intime et plus pénétrant, compléter l’éducation publique par la lecture au sein de la
famille, devenir les amis de la maison partout où nous pourrons pénétrer, agir à la fois sur
tous les éléments dont ele se compose, répondre à tous les besoins d’apprendre qui se
développent autor du foyer, depuis le berceau jusqu’à la maturité, telle est notre ambition.
On est enfant à tout âge pour ce qu’on ignore; n’est-on pas de même un enfant
pour tout ce qu’on a oublié? En se penchant sur nos pages pour les faire goûter à nos petits
à nos jeunes lecteurs, les parents, nous en avons la confiance, sentirons peu à peu le bon
parfum de leur jeunesse remonter jusqu’à eux.
Le Magasin d’Education et de Récréation, avons-nous besoin de le dire, n’est pas
et ne devrait pas être une ceuvre improvisée. Il y a six an que le plan en a été conçu,
médité, arrété. Les matériaux don’t il se composera d’abord ont été choisis et amassés
patiemment, lentement, page à page, et préparés ainsi de longue main. Nous sommes
assez riches, dès à présent, pour ne rien admetre de nouveau qui ne nous paraisse digne
de notre but. Nous attendons d’ailleurs de confiance le concours le concours de tous les
esprits distingués que préoccupe le noble souci de l’education des générations nouvelles;
nous comptons qu’ils voudronts bien seconder notre mouvement et unir leurs efforts à
ceux des savants, des artistes dont le secours nous est déjà assuré.
Nous ne pourrons tout dire à la fois, bien entendu; mais en voyant nos livraisons
et nos volumes se succéder, nos lecteurs comprendront que, toute vaste qu’elle est, aucun
point essentiel de notre tâche n’aura été par nous négligé. – Le champ est immense, el
faut bien nous résigner à ne le labourer que sillon à sillon.
Nous avions à choisis: ou faire une publication à l’usage des seuls bébés, ou parler
et pour eux at pour les jeunes gens et jeunes files, et par suíte, que les parentes nous
permettent de le dire, pour les jeunes pères et les jeunes mères aussi. – C’est le parti que
nous avons pris, bien assurés que tout convient à l’enfance ele-même, de ce qui a les
qualités mais non les défauts de l’âge mûr.
Nous prions nos abonnés de se considérer tous comme nos coopérateurs. Quand
donc il leur viendra une pensée qu’ils croient utile de nous communiquer, nous
l’accueillerons avec reconnaissance. Donnant, donnant. En mettant notre bon vouloir à
leur service, nous croyons pouvoir invoquer le leur. C’est une ceuvre de famille que nous
abordons, c’est avec l’aide des familles seulement qu’elle peut réussir.
P.-J. Hetzel
206
6.3 – Imagens
6.3.1
Érasistrate découvrant la cause de la maladie d’Antiochus ou Les Amours de Stratonice
et d’Antiochus
Jacques-Louis David - 1774
École nationale supérieure des beaux-arts, Paris
207
6.3.2
Mademoiselle Guimard en Terpsichore
Jacques-Louis David - 1775
Coleção particular
208
6.3.3
Le Serment des Horaces
Jacques-Louis David - 1785
Musée du Louvre, Paris
6.3.4
Combat de Mars contre Minerve
Jacques-Louis David – 1771
Musée du Louvre, Paris
209
6.3.5
La Joconde ou Portrait de Mona Lisa
Leonardo da Vinci – 1506
Musée du Louvre, Paris
6.3.6
La Cène
Leonardo da Vinci – 1497
Refeitório do Convento Santa Maria delle Grazie, Milão
210
6.3.7
Léonard de Vinci peint Monna Lisa
Aimée Brune Pagès – 1845 (Gravura de Charles Lemoine segundo o original)
Bibliothèque Nationale, Paris
6.3.8
Romains de la décadence
Thomas Couture - 1847
Musée d’Orsay, Paris
211
6.3.9
Appel des dernières victimes de la Terreur à la prison Saint Lazare à Paris
Charles-Louis Müller – 1850
Musée National du Château de Versailles
6.3.10
Le supplice de Jane Grey
Paul Delaroche – 1833
National Gallery, Londres
212
6.3.11
Cromwell et Charles I
Paul Delaroche – 1831
Musée des beaux-arts de Nîmes
6.3.12
Dante et Virgile aux enfers ou La Barque du Dante
Eugène Delacroix – 1822
Musée du Louvre, Paris
213
6.3.13
La justice de Trajan
Eugène Delacroix - 1840
Musée des beaux-arts de Rouen
6.3.14
Le Martyre de Saint-Symphorien
Dominique Ingres – 1834
Cathédrale Saint-Lazare, Autun – França
214
6.3.15
Homère déifié ou L’Apothéose d’Homère
Dominique Ingres – 1827
Musée du Louvre
6.3.16
Les Demoiselles des bords de la Seine (été)
Gustave Courbet – 1857
Musée des beaux-arts de la ville de Paris – Petit Palais, Paris
215
7 – BIBLIOGRAFIA
7.1 - De Jules Verne
Peças e/ou livretos:
La conspiration des poudres, 1846.
Tragédia em versos, cinco atos. (Não encenada)
Un drame sous Louis XV, 1846.
Tragédia em versos, cinco atos. (Não encenada)
Alexandre VI, 1846-47.
Drama em versos, cinco atos. (Não encenada)
Le quart d’heure de Rabelais, 1847.
Comédia em versos, um ato. (Não encenada)
Une promenade en mer, 1847.
Vaudeville, um ato. (Não encenada)
Don Galaor, 1847.
Sinopse de comédia, um ato. (Não encenada)
Les Pailles rompues, 1849.
Comédia em versos, um ato. (Encenada doze vezes no Théâtre Historique em jun/1850).
Le coq de bruyère, 1849.
Sinopse. (Não encenada)
Abd’allah, 1849.
Vaudeville, dois atos. (Não encenada)
On a souvent besoin qu’un plus petit que soi, 1849.
Sinopse. (Não encenada)
La mille et deuxième nuit, 1850.
Peça em versos, um ato. (Não encenada)
Quiridine et quidinerit, 1850.
Comédia em versos, três atos. (Não encenada)
La Guimard, 1850.
Comédia, dois atos. (Não encenada)
Les savants, 1851.
Comédia, três atos. Texto perdido.
Les fiancés Bretons, 1851.
Texto perdido.
216
De Charybde en Scylla, 1851.
Comédia, um ato. (Não encenada)
Monna Lisa, 1851.
Comédia em versos, um ato. (Não encenada. Publicada em L’Herne, 1974)
Les châteaux en Californie, ou Pierre qui roule n’amasse pas mousse, 1851.
Comédia, um ato. (Não encenada, porém publicada no magazine Musée des familles
Jun/1852)
La Tour de Montlhéry, 1852.
Drama, cinco atos. (Não encenada)
Le Colin-Maillard, 1852.
Ópera-cômica, um ato. (Encenada quarenta e cinco vezes no Théâtre Lyrique em 1853.
Publicada no Boletim da Sociedade Jules Verne - BSJV, nº120)
Les Compagnons de la Marjolaine, 1852.
Ópera-cômica, um ato. (Encenada vinte e quatro vezes no Théâtre lyrique em 1855)
Un fils adoptif, 1853.
Comédia. (Não encenada, porém publicada no BSJV, nº 143)
Guerre aux tyrans, 1854.
Comédia em versos, um ato. (Não encenada)
Au bord de l’Adour, 1855.
Comédia em versos, um ato. (Não encenada)
Les heureux du jour, 1856-57.
Comédia em versos, cinco atos. (Não encenada)
Monsieur de Chimpanzé, 1857.
Opereta, um ato. (Encenada diversas vezes no Théâtre des Bouffes-Parisiens em
fev/1858. Publicada no BSJV nº57)
Onze jours de siège, 1854-60.
Comédia, três atos. (Única apresentação em 1 de junho de 1861 no Théâtre Vaudeville)
L’auberge des Ardennes, 1859.
Ópera-cômica, um ato. (Única apresentação em 1 de setembro de 1860 no Théâtre
Lyrique)
Un neveu d’Amérique ou Les deux Frontignac, 1860.
Comédia, três atos. (Encenada por dois meses no Théâtre Cluny em 1873. Publicada por
Hetzel junto com o romance Clovis Dardentor.
Les sabines, 1867.
Opereta-cômica, três atos (Não encenada, somente o primeiro ato existe)
217
***
VERNE, Jules. “Les Premiers navires de la marine mexicaine”. Musée des familles, T. 8
- juillet 1851, p. 304-312.
______. “Un Voyage en ballon”. Musée des familles, T. 8 - août 1851, p. 329-336.
______. “Les Châteaux en Californie, ou Pierre qui roule n’amasse pas mousse”. Musée
des familles, T. 9 - juin 1852, p. 257-271.
______. “Martin Paz, nouvelle historique”. Musée des familles, T. 9 - juillet 1852, p.
301-313 e août 1852, p. 321-335.
______. “Maître Zacharius ou l’horloger qui avait perdu son âme. Tradition genevoise.”
Musée des familles, T. 21 - avril 1854, p. 193-200, mai 1854, p. 225-231.
______. “Un Hivernage dans les glaces”. Musée des familles, T. 22 - mars 1855, p. 161172, avril 1855, p. 209-220.
______. “Portraits d’artistes XVIII”. Revue des Beaux-Arts, vol. 8, 6e livraison, 1857.
______. “À Propos du Géant”. Musée des familles, T. 31 - décembre 1863, p. 92-93.
______. “Edgard Poë et ses œuvres”. Musée des familles, T. 31 - avril 1864, p. 193-208.
______. “Le Comte de Chanteleine - Épisode de la révolution”. Musée des familles, T.
32- octobre 1864, p. 1-15, novembre 1864, p. 37-51, décembre 1864, p. 73-85.
______. “Les Forceurs de blocus”. Musée des familles, T. 33 - octobre 1865, p. 17-27,
novembre 1865, p. 35-47.
______. “Une Fantaisie du docteur Ox”. Musée des familles, T. 39 - mars 1872, p. 65-74,
avril 1872, p. 99-107, mai 1872, p. 133-141.
______. Cinq semaines en ballon. Paris: Michel de l'Ormerie, 1975a.
______. Les Enfants du Capitaine Grant. Paris: Michel de l'Ormerie, 1975b.
______. Le Chancellor. Paris: Michel de l'Ormerie, 1975c.
______. De la Terre à la Lune. Paris: Michel de l’Ormerie, 1975d.
______. Vingt mille lieues sous les mers. Paris: Michel de l’Ormerie, 1975e.
______. L’île à l’hélice. Paris: Michel de L’Ormeraie, 1976.
______. Le Rayon Vert. Paris: Michel de l’Ormerie, 1977a.
______. L’Île mystérieuse. Paris: Michel de l’Ormerie, 1977b.
218
______. Le secret de Wilhelm Storitz. Paris: Michel de l'Ormerie, 1981.
______. Jules Verne: avec la publication de la correspondance inédite de Jules Verne à
sa famille. Sous la direction de Olivier Dumas. Lyon: La Manufacture, 1988.
______. Jules Verne. Poésies Inédites. Sous la direction de Christian Robin. Paris: Le
Cherche Midi, 1989.
______. Paris au XXe siècle. Paris: Hachette, 1995.
______. Le secret de Wilhelm Storitz. Version originale retrouvée du dernier roman de
Jules Verne. Paris : Archipel, 1996.
______. Histoire des Grands voyages et des grands voyageurs. Les grands navigateurs
du XVIIIe siècle. Paris: Diderot, arts et sciences, 1997a (1879).
______. Histoire des Grands voyages et des grands voyageurs. Les voyageurs du XIXe
siècle. Paris: Diderot éditeur, arts et sciences, 1997b (1880).
______. Entretiens avec Jules Verne 1873-1905. Réunis et commentés par Daniel
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(Consultados na Biblioteca Municipal de Amiens).
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MACÉ, Jean & STAHL, P.-J. Magasin d’Éducation et de Récréation, Paris: Hetzel,
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Revue Jules Verne. Revue du Centre International Jules Verne (CIJV). Amiens: Éditions
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Hachette, nº1, 1er semestre 1857.
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