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Transcrição

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ADUFF
SSind
Seção sindical do Andes
Filiado à CONLUTAS
SUMÁRIO
Associação dos Docentes da UFF
"Cantamos porque chove sobre os
sulcos... e somos militantes desta
vida. E porque não podemos e nem
queremos deixar que a canção se
torne cinzas."
(Mário Benedetti)
Revista da Associação dos Docentes da UFF. Rua
professor Lara Vilela, 110. São Domingos, Niterói-RJ.
CEP: 24.210-590. Tels (21) 2622-2649 e 26201811.
Correio eletrônico: [email protected]. Este
número foi organizado pela gestão CombatividadeAutonomia e Democracia. Presidente: Sonia Lucio.
Diretoria de Comunicação: Marcelo Badaró
Mattos e Ronaldo Rosas.
Atual gestão: Autônoma, Democrática e de Luta.
Presidente: Marina Barbosa. Diretoria de Comunicação: Larissa Dahmer Pereira e Heliane Lopard.
Editorial .............................................................................
pág. 2
Contra Corrente
Os lucros da guerra: entrevista com Naomi Klein ...................................
pág. 4
Amauta
Os 90 anos da Reforma Universitária de Córdoba .................................. pág. 10
Pública, Gratuita e de Qualidade
O REUNI e o banco de professor-equivalente ....................................... pág. 16
Cinema e reflexão sobre América Latina na UFF ................................... pág. 22
Um teatro marxista para reafirmar a luta de classe: Brecht,
...................................................
o Latão e Filhos da Mãe...terra
Entrevista com Sérgio de Carvalho, diretor da Cia. do Latão ...................
Entrevista com Douglas Estevam, do MST ......................................
A coragem e a necessidade de se montar Brecht ................................
pág. 25
pág. 26
pág. 29
pag. 31
De Capa
68: Destinos. Passeata dos 100 Mil - Entrevista com Evandro Teixeira ........... pág. 33
A UFF na passeata dos 100 Mil
pág.41
LUTARMADA: a arte com os oprimidos ............................................ pág. 43
A crítica política no humor da Cia Emergência Teatral ............................... pág. 46
Mídia e Política
Lucro e controle no carnaval carioca ................................................ pág. 48
Filmes
Le Couperet (O Corte) ............................................................... pág. 51
Nossa Resenha
Lukács e a arquitetura ............................................................... pág. 55
História de Vidas
Professora Aidyl de Carvalho Preis ................................................. pág. 56
EDIÇÃO GERAL e REDAÇÃO: Stela Guedes
Caputo. PROJETO GRÁFICO: Claudio Camillo e
Stela Guedes Caputo. DIAGRAMAÇÃO: Claudio
Camillo. ESTAGIÁRIA DE JORNALISMO: Carolina
Barreto da Silva Gaspar.
Poesia
Ana Cruz ............................................................................ pág. 60
Colaboraram neste número: além de todos que assinam textos e fotos: André Feitosa e Robert Preis.
A vida e o trabalho tirados do mar ................................................... pág. 61
IMPRESSÃO: Gráfica Palavras Pintadas. Tiragem:
3000 exemplares.
Hiperfocal
Evandro Teixeira .......................................................................... pág. 66
Diálogos com a Cidade
Classe
Como todas as palavras, a palavra classe tem
sua própria história. Até uns 250 anos atrás, falavase em classes de vegetais, em sentido biológico, mas
não se aplicava a palavra para tratar de grupos humanos. Para que atribuíssemos à palavra classe o
sentido que hoje atribuímos, foi preciso que surgisse
uma classe de trabalhadores – assalariados, portanto
explorados – que experimentou coletivamente a exploração de novo tipo a que estava submetida e em
meio a essa experiência de exploração, identificandose pelos seus interesses comuns (e percebendo que a
outra face da moeda era a existência de seus exploradores, com interesses opostos aos seus), desenvolveu
sua consciência coletiva, percebendo-se como uma classe, palavra a que agora atribuíam um novo significado. É desse significado que parte esta revista.
E se a classe emerge de um processo que é relacional e essencialmente conflitivo – a luta de classes –, ela
precisa se organizar para defender seus interesses diante
dos interesses opostos aos seus. A classe trabalhadora
assim o fez, sendo o sindicato uma das formas de organização que criou. Provavelmente aquela mais próxima
aos seus interesses imediatamente relacionados ao mundo do trabalho: os salários sem os quais não pode sobreviver sob o capitalismo; a jornada e o ritmo de trabalho; as
condições desse trabalho e as garantias mínimas para
diminuir os impactos nocivos da exploração, normalmente
chamadas por nós de direitos. Ou seja, coisas básicas,
materiais, atinentes à sobrevivência.
Walter Benjamin, pensador alemão que morreu fugindo dos nazistas em 1940, registrou, em um
de seus últimos escritos que “a luta de classes (...) é
uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais
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Foto: Stela Guedes
Editorial
O teatro como arte de transformação estará em nossas pautas
não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta
de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor.”
No sindicato, lutamos por salários e direitos dos
trabalhadores, mas temos também a obrigação de levar essa luta ao campo da informação, da análise da
realidade, da formulação de outros projetos de futuro.
Um jornal sindical é espaço para fazer circular as informações numa perspectiva de classe distinta daquela que encontramos nos veículos dos grandes monopólios da comunicação. Mas nem sempre garante espaço
para a reflexão mais cuidadosa, para a divulgação das
formas alternativas de entendimento do mundo em seus
produtos estética ou culturalmente mais elaborados.
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Foto: Luiz Fernando Nabuco
A fotografia como intervenção social também
Por isso surge Classe. Porque embora envolvidos no cotidiano das lutas “brutas e materiais”,
não estamos dispostos a entregar facilmente as “refinadas e espirituais” como despojo ao pensamento
único das classes dominantes .
Uma revista em que possamos analisar com
mais apuro a barbárie capitalista contemporânea,
as manifestações desse quadro no interior da Universidade, mas em que também possamos encontrar os ecos de respostas alternativas, de caminhos outros. Não apenas na forma dos projetos
políticos de intervenção imediata, mas também
nas leituras críticas e transformadoras do mundo que as formas artísticas e culturais politica-
mente comprometidas com a transformação social podem nos propiciar.
Para tanto, nosso projeto para a Classe prevê algumas seções, dedicadas ao entendimento do capitalismo
contemporâneo, ao conhecimento das realidades vizinhas
dos países latino-americanos (seção batizada em referência ao socialista peruano José Carlos Mariátegui,
editor da revista Amauta) ao exame mais apurado das
políticas para a Universidade, à crítica literária, cinematográfica, musical e teatral que vá além da mesmice que
reduz cultura a entretenimento e mercadoria.
Sempre tentando abordar essas questões a partir do conhecimento produzido aqui na Universidade,
por nós docentes universitários. Por isso, a revista
pretende ter a cara do docente da UFF, ou uma das
suas caras, a daqueles que no ensino, na pesquisa e
na extensão garantem a qualidade de uma universidade pública comprometida com a mudança, comprometida com a classe trabalhadora.
E em cada número de Classe uma temática
ganhará mais destaque. Neste primeiro número, o
tema enfatizado foi Arte e Política, abordado a partir, entre outros caminhos, da produção teatral brasileira referenciada em Bertolt Brecht, dos esforços
para resgatar o cineclubismo, do rap produzido na
periferia com forte tom de comprometimento político transformador e da capacidade de mobilização de
energias no presente e de registro das lutas do passado que uma arte como a fotografia pode ter. Um
passado que está vivo nos debates do presente, como
é o caso da conjuntura de lutas de 1968, objeto de
diferentes apropriações – sempre de classe – nesta
passagem dos seus 40 anos.
Assim como uma classe faz-se a si mesma tanto quanto é feita pelas condições sociais em que se faz,
esta Classe espera fazer-se com o conjunto dos docentes da UFF, de outras universidades, estudantes, técnico-administrativos e trabalhadores em geral que
possam ser seus leitores. Assim daremos – nós do sindicato, da universidade, que lemos, mas também escrevemos a revista, vida à classe.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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Contra Corrente
Foto: Divulgação
Os lucros
da Guerra
Em “The Shock Doctrine”, escritora explica como o
choque passou a ser o veículo para as políticas de
“mercado livre” norte-americanas
Entrevista com Naomi Klein
Cerca de uma semana antes da entrevis-
ta com a jornalista/escritora/cineasta/ativista
Naomi Klein, o Departamento de Justiça dos
Estados Unidos revelou que um parecer jurídico de uma entidade privada, emitido pouco
depois do juramento do procurador-geral da
República Alberto Gonzáles, defendia o uso de
tortura durante os interrogatórios. A opinião,
favorável ao uso de “simulação de afogamento”, pancadas na cabeça e temperaturas gélidas como método de investigação, exemplifica
a ascensão daquilo que Klein chama “Estado
sombra” – em que é possível operar com total
impunidade sob o radar público.
O último livro da autora, “The Shock Doctrine” ( A Doutrina do Choque, editado pela Metropolitan Books, com 576 páginas e ainda sem edição
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em português), não traz apenas as últimas notícias do inferno – situa o pós 11 de Setembro num
padrão histórico cujas raízes estão no insensível
“laissez faire” do economista Milton Friedman, um
homem cuja lógica deu origem aos mais repressivos regimes do mundo moderno.
Klein explica pormenorizadamente como o
choque econômico e militar passou a ser o veículo
para as políticas de “mercado livre” de Friedman
no pós-Segunda Guerra Mundial. O âmbito e a
profundidade de sua descrição, que inclui Ásia,
Europa, América, e o pré e o pós-Guerra Fria, são
impressionantes. Mas mais importante é o fato de
Klein contextualizar a ocupação do Iraque em um
mundo corporatizado: o ponto forte do livro é a
forma como encontra o sentido de uma guerra que
não faz nenhum sentido.
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Quem foi Milton Friedman e o que implica sua
terapia de choque?
Naomi Klein – Milton Friedman foi o
guru da fase de capitalismo radical e ilimitado
em que vivemos desde Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Seu livro “Capitalismo e Liberdade”, escrito na década de 50, era um manifesto por um mundo onde as únicas funções aceitáveis para os governos eram assegurar o cumprimento dos contratos privados e policiar as
fronteiras. Foi conselheiro econômico de Richard
Nixon, do ditador chileno Augusto Pinochet e
do governo chinês durante a transição do regime comunista para o corporativista. Aquilo que
Friedman preconizava era, essencialmente, um
mundo corporativo.
Ele sabia que suas políticas não eram populares. Compreendia que, se se candidatasse
em uma eleição dizendo: “Vou eliminar o correio, privatizar a água e acabar com o segurodesemprego”, não seria eleito. Viveu essa experiência em primeira mão quando Nixon, que
havia estado ideologicamente em sintonia com
Friedman, rumou na direção oposta em termos
políticos e foi recompensado (com a reeleição).
Por ter compreendido que suas políticas
eram incompatíveis com a democracia, Friedman
desenvolveu suas teorias até aquilo que eu chamo “doutrina de choque”. Num artigo de 1982,
escreveu que: “Só uma crise real ou percebida,
produz verdadeira mudança. Quando a crise
acontece, as ações que se tomam dependem das
idéias disponíveis”. O que ele quis dizer é que,
para realizar essa “mudança”, é necessário fa-
zer tudo ao mesmo tempo... depois de ter havido um choque ou crise.
No livro, provo que ele está certo. E ao
fazer isso desafio a história que nos contam há
tanto tempo: que o capitalismo radical triunfou
por todo o mundo democraticamente, porque as
pessoas queriam assim e porque é sinônimo de
liberdade. Faço isso ao olhar para os principais
laboratórios em que suas idéias foram adotadas... Sempre que houve uma grande crise que
desorientou a população, foram lançadas as
bases para a terapia econômica de choque. Demonstro como cada um desses regimes usou o
poder da crise, quer tenha sido uma crise criada ou espontânea, para colocar em prática as
políticas de Friedman. Também verifiquei que,
quando as pessoas resistem, normalmente acabam por ser submetidas a um terceiro choque,
que é choque do cacetete da polícia.
Como isso foi feito no Iraque?
Naomi Klein – No Iraque, a aplicação
foi tão óbvia que qualquer um pode ver, até a
própria guerra se chamou “Shock and Awe” vai
ver que ele fala em atacar a sociedade em geral para criar um estado de desorientação e
medo massivos.
Imediatamente após a queda de Bagdá,
Paul Bremer (nomeado à época chefe da administração civil do Iraque) foi enviado para lá.
Paul Bremer continuou a aplicar a dose mais
radical de terapia de choque econômica jamais
vista em qualquer lugar. Primeiro, aniquilou o
setor de serviço público. Esse processo envolveu
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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a demissão em massa de centenas de milhares de funcionários públicos. Depois eliminou
o Exército iraquiano e basicamente entregou
a segurança à firma de segurança privada
Blackwater USA. Fez do Iraque a zona com o
mercado livre mais aberto do mundo, sem restrições aos bens que entram e saem. Permitiu
que empresas estrangeiras entrassem e se
apoderassem de 100% dos recursos do Iraque,
ficando com 100% dos lucros. Os economistas
chamaram-no de “Lista dos Desejos dos Investidores Estrangeiros”.
Quando as pessoas começaram a se revoltar no Iraque, isso foi uma resposta direta a essas políticas econômicas, que foram vistas como
uma pilhagem. Em resposta à revolta, surgiu o
uso sistemático dessa terceira forma de choque,
o choque da tortura.
O governo iraquiano não foi feito para funcionar
bem?
Naomi Klein – Foi feito, certamente,
para ser fraco. A principal razão que levou a
que Saddam fosse derrubado foi o fato de ele
ter deixado de ser tão cooperativo quanto costumava ser. Não há dúvidas que o objetivo era
implantar um regime cooperativo. Isso ficou claro com essa espécie de “Plano A” de colocar o
(ex-primeiro-ministro interino Ahmed) Chalabi. Os políticos iraquianos não têm controle sobre os serviços secretos no país; não têm controle nem sequer sobre os fundos de reconstrução.
Não é um governo funcional_ na realidade, não
é nem um governo.
É interessante que uma das principais
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O Alcance da guerra ao terror
não poderia ser mais extenso.
Como estratégia militar, é
impossível de ganhar. Como
estratégia econômica, é
imbatível.”
metas (do governo iraquiano) seja a adoção de
uma lei do petróleo. Essa lei é o exemplo mais
descarado do que chamo de “capitalismo do desastre”. É aproveitar um momento de desintegração para fazer passar uma lei tão profundamente polêmica que nem mesmo Bremer teve
coragem de levar adiante.
Você poderia falar do “tratamento de choque”
doméstico que considera ter sido o 11/9 nos EUA?
Naomi Klein – Foi certamente um deles. Houve outros momentos, por exemplo a crise da dívida (nos anos 90)... Convém lembrar
que a “reforma” da Previdência Social de Clinton foi realizada no contexto da crise da dívida. Para mim, a parte mais dramática da terapia de choque econômica aconteceu no pós-11
de Setembro, mas foi difícil de ver. Não foi um
clássico programa de privatização como os que
descrevo no livro. Não foi o que aconteceu, por
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
exemplo, na América Central depois do furacão Mitch, quando os países foram forçados a,
em troca de auxílio monetário, vender todos os
seus bens: água, eletricidade, estradas e tudo
o mais.
A administração Bush fez as coisas de
modo muito diferente_ não vendeu os bens do
Estado já existentes; em vez disso, criou uma
nova estrutura para um Estado muito mais vasto. Essa estrutura é a “guerra ao terror”, que
aumenta imensamente o alcance, o poder e a
jurisdição do Estado: permite vigiar, construir
uma espécie de fortaleza continental, criar guerras preventivas no estrangeiro. Então temos essa
guerra interminável contra o mal, em todo o lado.
O alcance não poderia ser mais extenso. Como
estratégia militar, é uma guerra impossível de
ganhar. Mas, como defendo no meu livro, como
proposta econômica é imbatível.
Primeiro, expande-se o alcance do Estado
de segurança... Depois faz-se a privatização e a
terceirização de tudo isso. E assim a “guerra ao
terror” se torna uma nova economia_ emergem
centenas de novas empresas para alimentá-la.
Fazem mineração de dados, interrogam prisioneiros, realizam vigilância privada, compilam
listas de indivíduos proibidos de embarcar em
aeronaves, constróem a fronteira virtual com
veículos não tripulados e outros equipamentos.
A “guerra ao terror” é uma nova economia, não uma guerra. Faz muito mais sentido
como uma economia. Penso que seja uma evolução da terapia de choque_ mas como a admi-
Sempre que houve uma grande
crise que desorientou a
população, foram lançadas as
bases para a terapia econômica
de choque.
nistração Bush fez tudo isso sob o disfarce da
“guerra ao terror” e em nome da segurança, o
aspecto da privatização é menos claro, menos
visível.
Você escreveu sobre o “complexo do capitalismo do desastre”. Como o desastre se tornou tão
lucrativo?
Naomi Klein – Empresas ligadas ao
petróleo, é claro, não é? Qualquer desastre faz
disparar o preço do petróleo... Quando se fala
em setor da segurança interna, dá para ver
como as nossas cidades estão se transformando, como estamos rodeados de muito mais segurança, embora não tenha havido mais ataques terroristas nos Estados Unidos.Mas a segurança interna já não está sendo vendida
apenas para o governo_ as empresas a estão
vendendo umas para as outras. A única ameaça a essa economia não é o risco; a única ame-
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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FOTO: Ag. France Press
No Iraque, a aplicação foi
tão óbvia que qualquer
um pode ver, até a própria
guerra se chamou “Shock
and Awe” vai ver que ele
fala em atacar a sociedade
em geral para criar um
estado de desorientação e
medo massivos.
Bagdá destruída por bombardeios americanos
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MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
A “guerra ao terror” é uma nova
economia, não uma guerra. Faz muito
mais sentido como uma economia. Penso
que seja uma evolução da terapia de
choque_ mas como a administração
Bush fez tudo isso sob o disfarce da
“guerra ao terror” e em nome da
segurança, o aspecto da privatização é
menos claro, menos visível.
aça é uma alteração massiva de paradigma em
relação ao que a segurança significa, àquilo
que seria uma resposta adequada ao terrorismo. É por isso que muitas das principais empresas de segurança interna estão investindo
em institutos de pesquisa e em comunicação
social. Determinam os parâmetros dessa guerra ao terror e as premissas fundamentais em
que se baseia. A idéia de que não se pode negociar (com terroristas) jamais é questionada.
A idéia de que tudo que eles querem é a nossa
aniquilação total não é questionada. Se algumas dessas idéias básicas fossem seriamente
questionadas, esse passaria a ser um investimento de risco.
Naomi Klein – Significa um mundo de
incluídos e excluídos, em que a sobrevivência é
um item de luxo. Isso já acontece com o sistema
de saúde americano: é um desastre em câmera
lenta, e isso de que estou falando o fará passar a
um desastre em “fast forward”. Quem tem possibilidade de escapar a uma mudança climática, a
uma infra-estrutura que se desmorona?
Vamos começar a ver emergir “zonas-bolha”
que são altamente funcionais, mas privatizadas,
guardadas por segurança privada. De fato, grande parte do Terceiro Mundo funciona assim. Num
país como a Indonésia, por exemplo, nunca existiu realmente uma infra-estrutura funcional... O
que existe são comunidades fechadas que vão se
expandindo. Tudo é privatizado no interior desses portões, incluindo a água e a eletricidade. É
assim que funciona a Zona Verde no Iraque.
O que isso significa para os pobres é uma demarcação cada vez mais estruturada entre os que
têm e os que não têm: mais proteção para os que têm,
quer seja nas fronteiras dos países ou nas fronteiras
dos bairros, mais cercas, mais muros, mais vigilância. Haverá cada vez mais controle dos chamados
“ilegais” e será cada vez mais fácil ser sugado para o
interior dessa infra-estrutura de segurança privada por qualquer pequena transgressão.
Para saber mais:www.naomiklein.org
* Esta entrevista foi publicada originalmente pela “Real
O que a ascensão desse “complexo” significa para
os trabalhadores pobres pelo mundo?
Change News”, integrante da INSP. Street News
Service:www.street-papers.org
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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Amauta
Reforma Universitária de Córdoba, 90 Anos:
Um Acontecimento Fundacional para a
Universidade Latino-americanista
Roberto Leher
Professor da UFRJ
O movimento reformista não é um raio em
céu azul que irrompeu no céu de Córdoba. A matriz civilizacional das grandes fortunas latino-americanas ilustradas – a Europa – estava desmoralizada por uma sangrenta guerra que transformava os jovens em buchas de canhão. Alternativamente, era o proletariado que forjava uma outra
civilização com a Revolução de 1917. Internamente, na Argentina, uma nova onda de confrontos
estava anunciada. O radicalismo havia chegado
ao governo em 1916 e necessitava da universidade para levar adiante o seu projeto de desenvolvimento. Os setores oligárquicos e a igreja reacionária, por sua vez, recrudesceram o controle que já
detinham sobre a universidade como uma espécie
de cidadela para manter a ascendência sobre a formação das classes médias e dominantes.
A crescente intransigência da oligarquia e da
igreja acelerou os conflitos estudantis. Em 1918, os
confrontos se agravaram a partir de maio com reitores destituídos, intervenções federais, golpes e contragolpes que inviabilizam os reclamos estudantis.
Os estudantes da Universidade de Córdoba declaram uma Greve Geral estudantil. Rapidamente, o
movimento ganha o apoio dos estudantes de todas
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as universidades argentinas (nas palavras da Federação Estudantil da Universidade de Buenos Aires, “estamos com vocês no espírito e no coração”).
As idéias gestadas em Córdoba bradam em outros
países que também conhecem insurreições, transtornando a moribunda calmaria de instituições universitárias hierarquizadas, conservadoras, autoritárias e pouco afeitas ao que Bachelard (1968) denominou, em outro contexto, de “espírito científico”.
Foi nesse contexto que o Manifesto seminal1 foi redigido por Deodoro Roca em 21 de junho de 1918. O Manifesto é um texto vigoroso,
ousado na defesa da insurreição estudantil e da
luta heróica, dotado de pinceladas antiimperialistas, contundente na crítica à imobilidade e ao
autoritarismo da hierarquia fossilizada da universidade, ácido na crítica ao espírito de rotina e
de submissão da grande maioria dos professores
que concebia a ousadia intelectual como um anátema. É um texto enfático no anticlericalismo e
luminoso na concepção latino-americanista.
A defesa da laicidade que atravessa todo o
Manifesto é marcadamente política. A Igreja detinha o controle sobre a instituição e sobre as atividades docentes. Neste contexto, em Córdoba, o
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
curso de Direito, ocultado pelo eufemismo “direito público eclesiástico” era balizado pelo direito
canônico. O juramento profissional era realizado sobre os Santos Evangélicos. Os setores acadêmicos conservadores se mantinham no poder
por normas por eles criadas para se perpetuarem em suas cátedras vitalícias e pela criação de
confrarias (“Corda”) que agrupavam professores
e forças políticas locais, como o então governador da Província, ministros, prefeitos.
É também um texto que contém marcas egocêntricas. Em virtude da gênese estudantil do movimento, ainda não pôde enfrentar com objetividade a problemática que, em 1925, o cubano Julio Antonio Mella delineou com precisão: “Nada se
resolve em fazer da universidade um centro tecnicamente perfeito, se a massa estudantil, que
provém dos colégios religiosos ou dos colégios laicos privados, tem já formada uma mentalidade
burguesa, e não científica da universidade”. Isso
não quer dizer que as “revoluções estudantis” não
tenham sido avaliadas por Mella como importantes, pois, em sua apreciação, acenderam um movimento de proporções latino-americanas e sinalizaram, na prática, a possibilidade de amplas
transformações nas universidades marcadas pelo
arcaísmo (Círia e Sanguinetti, 1968, p. 19).
Córdoba foi mais do que um episódio radicalizado dos estudantes. Liberais, positivistas, socialistas, anarquistas, antiimperialistas de distintos matizes disputaram o caráter do movimento reformista. Mas a despeito de sua heterogeneidade, as lutas
e os embates seguiram ao longo de todo o ano de
1918 (e a rigor, até os anos 1960 é possível encontrar ecos dessas lutas), produzindo avanços organizativos como a constituição das Federações Univer-
sitárias de Córdoba (FUC) e da Argentina (FUA).
Tampouco foi um movimento protagonizado por
pequenos grupos. Dois meses após o lançamento do
Manifesto, os estudantes reuniram 20 mil pessoas
em um ato, incluindo a Federação Operária.
Embora ainda incipientes enquanto força
política organizada, referências socialistas e antiimperialistas que lideraram o movimento trouxeram
para a luta da juventude latino-americana a Revolução Russa de 1917 e, no processo de enfrentamento, afirmaram uma agenda antiimperialista
que, ao recolocar a questão nacional e os sujeitos
históricos da luta de classes em países capitalistas
dependentes, provocaram reflexões originais, configurando um marxismo latino-americano, com
Ingenieros, Ponce, Mella e Mariátegui.
Essa combinação de perspectivas propiciou
reflexões penetrantes sobre a educação popular,
o caráter da universidade, incluindo problemas
até então considerados incompatíveis com a educação superior, como: a presença dos proletários
nas instituições; o governo compartilhado e a autonomia da universidade, e as perspectivas latino-americana e antiimperialista. Por isso, até os
dias de hoje, os conservadores reagem indignados à particularidade das universidades latinoamericanas, consideradas desviantes do modelo
europeu e, mais recentemente estadunidense.
Diante das resistências ao projeto de conversão
das universidades brasileiras ao modelo dos “community colleges” estadunidenses mitigado com o
Acordo de Bolonha, uma das maiores conquistas
da ofensiva neoliberal na Europa, um publicista
do projeto Universidade Nova alertou para o risco de isolamento da universidade brasileira diante do modelo da universidade mundializada
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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pelos senhores do mundo2. Não é casual que a
ofensiva neoliberal dos anos 1990 objetivou destruir todos os fundamentos dos reformistas: a
gratuidade, o governo democrático e o pluralismo político, a autonomia, a liberdade de pensamento e de expressão, garantidas por cátedras
paralelas e pelo ingresso por meio de concurso
público, o co-governo, o acesso universal, a natureza pública dos processos institucionais.
O movimento que havia sido iniciado com uma
agenda com inequívocas referências liberais, acabou propiciando um ambiente intelectual no qual
se afirma um pensamento crítico original que torna
a problemática da universidade latino-americana
“Triunfar ou servir de trincheira aos demais.
Até depois de nossa morte somos úteis.
Nada de nossa obra se perde” (Julio Mella)
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MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
distinta das demais regiões. As idéias reformistas,
ao serem apropriadas por estudantes socialistas, assumem cada vez mais um caráter antiimperialista,
revolucionando as concepções até então vigentes de
um marxismo que era assimilado como algo pronto
para explicar a realidade latino-americana. Entre
os mais destacados pensadores desta perspectiva é
imprescindível mencionar: Deodoro Roca, já citado; Gabriel
del Mazo, um dos principais
ideólogos e historiadores do
movimento; Manuel Ugarte,
um dos líderes da FUA e Julio
V. González que, embora presidente da Federação Estudantil de La Plata, viveu intensamente as lutas de Córdoba, notadamente como secretário do I Congresso Nacional
de Estudantes que estabeleceu as bases “doutrinais” da
Reforma acentuando o antiimperialismo. Imbuído de um
ideal geracional proveniente
de Ortega y Gasset (que visitara a Argentina em 1913),
González chegou a criar um
partido reformista de natureza estudantil, iniciativa que
posteriormente reconheceu
como equivocada. Também se
engajaram nessa luta destacados intelectuais antiimperialistas, entre os quais, José Ingenieros (1877-1925) e seu discípulo Aníbal Norberto Ponce
(1898-1938), editores da Revista de Filosofia que
Mariátegui reconhecia como uma das publicações
que melhor defendia a Revolução Russa.
Ingenieros foi considerado o “mestre” que
impulsionava o movimento reformista. Embora
eclético, conjugava positivismo, marxismo e evolucionismo, contribuiu para quebrar o silêncio
que reinava no claustro universitário, acentuando que a reforma teria de se dar no bojo de
uma luta antiimperialista, ampliando os termos
do Manifesto de 1918, aproximando as lutas universitárias do socialismo (em especial da Revolução Russa) e do latino-americanismo. As iniciativas antiimperialistas de Ingenieros contribuíram para que, alguns anos depois, fossem criados duas construções políticas distintas: a Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA),
que se consolidará no Peru com Haya de la Torre, outrora líder da federação de estudantes, e a
União Latino-americana, à qual se somaram Ingenieros, Ponce, Mella e, mais tarde, Mariátegui. Para perplexidade dos conservadores e clérigos, Ingenieros associou a autonomia e o autogoverno universitários aos Soviets.
Ponce escreveu no Prefácio de um livro de
Julio Gonzáles: “As chamas que enrubescem o Oriente (a Rússia) incendiariam, com nós, a velha
universidade” (Kohan, 2002, p.89). Certamente,
o seu clássico livro “Educação e luta de classes” é
fruto de seu engajamento nessas lutas. Não que
Ponce avaliasse que o processo cordobense poderia alterar substantivamente a educação; ao contrário, como Mella, sustentava que a educação
emancipatória depende da luta contra o capitalismo e, por isso, a defesa da luta de classes. Entretanto, inova ao propugnar que a revolução re-
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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quer que se considere a educação parte da estratégia política, por isso o engajamento dos reformadores nas lutas antiimperialistas e, ao mesmo
tempo, nas jornadas universitárias.
Julio Mella (1905-1929) se aproximou do
movimento de Córdoba por seu radical anticlericalismo, sendo fundador da liga anticlerical de
Cuba (1922), da Federação de Estudantes de
Cuba (1923), da liga antiimperialista das Américas e do partido comunista (1925). Por ter se destacado como excepcional militante, foi assassinado no exílio a mando do ditador Geraldo Machado. É importante destacar que Mella teve contato
com as obras de vários reformadores argentinos,
como Ingenieros (a quem conheceu pessoalmente
em 1925), Dario e Ugarte. Quando a insurgência
estudantil cubana declarou a universidade livre,
cinco anos após Córdoba, Mella, então com vinte
anos, assumiu o cargo de reitor interino da alta
casa de estudos (Kohan, 2002, p. 105).
Para ele, o cerne da reforma universitária
passava por três eixos: a autonomia, pois a universidade era sufocada pelo governo corrupto; a
representação, concretamente, o governo compartilhado, e a depuração do claustro. Em termos objetivos, a reforma teria de abarcar quatro núcleos:
a) não ser uma fábrica de títulos; b) não ser uma
escola de comércio “aonde se vai buscar tão somente um meio de ganhar a vida”; c) influir de maneira direta na vida social, e d) socializar o conhecimento. Esta última preocupação nada tinha de
proclamatória. Junto com companheiros, Mella
criou a Universidade Popular José Martí, dirigida
pelos trabalhadores, com o objetivo de “destruir uma
das tiranias da atual sociedade: o monopólio da
cultura” (Mella, 1924, apud Kohan, 2002, p. 108).
14
Mariátegui (1894-1930), em pleno calor dos
acontecimentos, constatou a heterogeneidade do
movimento e as tensões provocadas pelo Radicalismo que restringia a autonomia do movimento, bem
como as limitações liberais vindas dos EUA. Contudo, reconheceu que, com o contato com o proletariado, as idéias foram se tornando mais claras e
adquiriram um contorno mais revolucionário,
abandonando a postura inicial romântica, geracional e messiânica (Bernhaim, 1997, p.15). Para
levar adiante um ideário mais ligado às lutas populares, o Congresso Nacional de Estudantes criou,
em 1920, a Universidade Popular Gonzáles Prada, cujo reitorado ficou a cargo de Haya de la Torre. Foi Mariátegui que introduziu os povos indígenas nos programas de formação política. Distintamente do marxismo eurocêntrico, o editor de Amauta sustentava em Sete ensaios de interpretação da
realidade peruana que o marxismo latino-americano não poderia ser “nem decalque, nem cópia”.
Com esta obra, ocorre uma latino-americanização
das idéias socialistas e marxistas.
Distintamente do presente em que não existem frações burguesas locais que tenham interesse na universidade pública, o movimento de Córdoba contou com o apoio de frações burguesas locais que chegaram ao poder com o Radicalismo.
Em mais de uma circunstância o Presidente Yrigoyen se colocou ao lado dos reformistas, assim como
o ex-governador da Província Juarez Celman,
parlamentares, como Juan B. Justo, um socialista
evolucionista (Kohan, 2002, p.43) e Alfredo Palácios, setores burgueses e pequeno-burgueses que
enfrentavam as forças reacionárias da igreja que
mantinham a universidade como sua fortaleza em
um país que passava por ativa efervescência cul-
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
tural e política. Essa universidade reprodutora e
fossilizada não atendia aos anseios de desenvolvimento almejado pelo Radicalismo e, por isso, o apoio
à luta estudantil, dentro de certos limites, desde
que não afrontasse a ordem burguesa. Certamente, a aliança operário-estudantil era outra coisa,
pois, afinal, o que essas pessoas “desprovidas de
cultura, diplomas e formação acadêmica” tinham
a ver com o espírito imaculado da ciência?
Córdoba é parte do processo que o seu Manifesto Seminal denomina de um “momento latinoamericano”. Essas lutas contribuíram para deflagrar um vasto movimento de reforma universitária
em grande parte da AL que, malgrado limites e contradições, tornaram a universidade latino-americana sui generis, diante de suas instituições irmãs na
Europa e EUA, notadamente pela correta politização da educação, da ciência e do conhecimento.
É inegável a presença de ecos de Córdoba no
movimento de reforma universitária brasileiro que
se amplia no início dos anos 1960, havendo referências explícitas a ele no I Seminário Nacional da
Reforma Universitária, realizado pela UNE em
1961 em Salvador, Bahia. As idéias de Córdoba também estão presentes nas jornadas de 1968, notadamente no México, em que centenas de estudantes
foram executados. Mas, no final do século XX, os
“ventos do Norte” trouxeram a tempestade neoliberal que vem difundindo o capitalismo acadêmico,
mercantilizando a educação e aprisionando a produção do conhecimento a epistemologias que bitolam o conhecimento no pensamento único.
O que fica de Córdoba 90 anos depois? Para
além dos fundamentos de uma universidade autônoma, co-governada, pública, gratuita e comprometida com os problemas nacionais, permanecem os
ensinamentos de que a universidade verdadeiramente universal, em que caibam todos os povos,
requer a luta anticapitalista e antiimperialista. Isso
somente será possível se a educação, enquanto estratégia política, for difundida por universidades
populares que articulem a classe trabalhadora e os
nichos de pensamento crítico que seguem existindo
nas universidades públicas. A união operária, camponesa, estudantil, em todos os níveis, com os trabalhadores da educação, é o novo ponto de partida
a que Florestan Fernandes fez referência no momento em que se anunciava um reascenso das lutas populares. A melhor homenagem que podemos
fazer é levar adiante essa tarefa. Como disse Mella:
“Triunfar ou servir de trincheira aos demais. Até
depois de nossa morte somos úteis. Nada de nossa
obra se perde” (apud Kohan, 2002). Nas comemorações dos 90 Anos, é importante que uma grande
massa da juventude conheça esse extraordinário movimento. E celebrem a memória dos mortos com lutas que tornem vivas as suas obras!
*Bibliografia
Bachelard, G. O novo espírito científico. RJ: Tempo Brasileiro, 1968.
Bernhaim, C. T. La reforma universitária de Córdoba. México,D.F:
ANUIES, 1997.
Círia, A. e Sanguinetti, H. Los reformistas. Buenos Aires, Editorial Jorge
Alvarez S.A., 1968 (Coleção Los Argentinos, 6).
Kohan, N. Ni calco ni copia: ensayos sobre el marxismo argentino y
latinoamericano. La Habana, 2002.
1.Disponível em http://www.unc.edu.ar/modules/news/
article.php?storyid=392
2. MONTEIRO, N. Razões para a reestruturação. In: Universidade Nova:
uma nova arquitetura para um novo tempo, UFBA Revista, n.4, 2007.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
15
Pública, Gratuíta e de Qualidade
Foto: Luiz Fernando Nabuco
REUNI e Banco de
professor-equivalente:
a contra-reforma da
educação superior nas
universidades federais
brasileiras
Kátia Lima
Professora da UFF - Serviço Social
O objetivo deste breve texto é apresentar algumas reflexões sobre o significado político e acadêmico das
ações recentes do governo Lula da
Silva para as universidades federais
- o Programa REUNI e o Banco de
professor-equivalente, indicando
como essas ações da contra-reforma da educação superior constituem importantes estratégias para alteração das funções sociais da universidade pública brasileira.
16
Estudantes protestam na porta do gabinete do Reitor da UFF
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
A apreensão do significado político e acadêmico do Programa REUNI só pode ocorrer a
partir da análise articulada de quatro importantes documentos: o Decreto Presidencial 6096/
07 que institui o REUNI (Brasil/Presidência da
República, 2007); o Documento intitulado “Diretrizes gerais do Decreto 6096 - REUNI – Reestruturação e Expansão das Universidades Federais” (Brasil/MEC, 2007.) e as Portarias Interministeriais n. 22 e 224, todos divulgados em
2007 (Brasil, MEC/MPOG, 2007). Simultaneamente é importante conhecermos como este Programa foi aprovado nas várias universidades
federais: do uso ostensivo da força policial (militar e/ou federal), até a transferência das reuniões dos conselhos superiores das universidades federais para quartéis ou prédios do Tribunal de Justiça, como ocorreu na UFF.
O Programa REUNI foi divulgado pelo governo através de um Decreto Presidencial (6096/
07) e apresenta os seguintes objetivos: aumentar o número de estudantes de graduação nas
universidades federais; aumentar o número de
alunos por professor em cada sala de aula da
graduação; diversificar as modalidades dos cursos de graduação, através da flexibilização dos
currículos, da criação dos cursos de curta duração e/ou ciclos (básico e profissional) e da educação à distância, incentivando a criação de um
novo sistema de títulos; elevar a taxa de conclusão dos cursos de graduação para 90% e estimular a mobilidade estudantil entre as instituições
de ensino. Todos estes objetivos deverão ser alcançados no prazo de cinco anos.
A leitura atenta dos documentos acima indicados demonstra que a “política nacional de ex-
pansão do acesso à educação superior” implementada pelo governo Lula da Silva expressa uma
ampliação do acesso focalizada no ensino de graduação, quebrando a indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e extensão, reduzindo a função
social da universidade ao treinamento de competências de nível técnico-operativo.
Para cada universidade federal que aderir
a este contrato de gestão com o MEC, pois se trata de um “termo de pactuação de metas”, o governo promete um acréscimo de recursos limitado a vinte por cento das despesas de custeio e
pessoal. Entretanto, uma análise cuidadosa do
parágrafo terceiro do artigo 3o. e do artigo 7º do
Decreto Presidencial deixa claro em que termos
ocorrerá esta “expansão”, pois “o atendimento aos
planos é condicionado à capacidade orçamentária e operacional do MEC” e “as despesas decorrentes deste processo devem estar circunscritas
às dotações orçamentárias consignadas anualmente ao MEC” (Brasil/Presidência da República, 2007). Para a compreensão exata do significado da expressão “condicionado à capacidade orçamentária do MEC” é importante conhecermos
os valores alocados pelo governo federal para a
área de educação. No Orçamento Geral da União
no ano de 2006, os valores executados até 31 de
dezembro daquele ano para a área de educação
correspondiam a 2,27% , enquanto no ano de 2007,
até 20/08/07, havia sido alocado o total de 2,14%
do Orçamento Geral da União (AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA, 2007). Portanto, trata-se de
uma ampliação de acesso sem a ampliação de financiamento público para o desenvolvimento de
nossas atividades de ensino, pesquisa e extensão,
articuladas à graduação e à pós-graduação.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
17
Cartaz na Marcha do dia 24/10 de 2007, em Brasília
Para viabilizar esta “política nacional de
expansão”, as Portarias Interministeriais números 22 e 224/07 (Brasil, MEC/MPOG, 2007) representam as primeiras medidas efetivas de implementação do Decreto presidencial, constituindo, em cada Universidade, “um instrumento
de gestão administrativa de pessoal”: o banco de
18
professores-equivalentes (art 1º). O “banco” será
construído dando-se a cada docente em exercício em 31/12/06 um peso diferenciado, segundo
a sua condição de trabalho. Na medida em que
o Programa REUNI objetiva a expansão do ensino de graduação, fica evidente que ações do
governo estimulam as universidades federais à
contratação de professores substitutos ou professores em regime de 20 horas para o trabalho
em sala de aula da graduação, esvaziando o
sentido do regime de trabalho em dedicação exclusiva, base de realização da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
A adesão das universidades federais ao REUNI implica diretamente dois níveis de precarização: a da formação profissional e do trabalho docente. A precarização dos processos de formação
ocorre através do atendimento de um maior número de alunos por turma, da indicação de uma
“aprovação automática” para garantia da elevação da taxa de alunos concluintes e da criação de
cursos de curta duração e/ou ciclos (básico e profissionalizante), representando uma qualificação
aligeirada, superficial, desvinculada da pesquisa, com perspectivas polivalentes, conformadas às
demandas do mercado. A implementação deste
Programa resultará em uma Universidade desfigurada, descaracterizada enquanto tal, transformada em “escolão de 3º grau”, subtraída de suas
funções sociais de produção e socialização do conhecimento científico, tecnológico e cultural. Considerando a necessidade do cumprimento das
metas de “expansão” propostas no decreto, através do aumento do número de turmas, de cursos
e da relação professor-aluno em sala de aula da
graduação, e os limites orçamentários existentes,
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Foto: Stela Guedes
Atividade cultural durante ocupação da Reitoria da UFF
a dinâmica de contratação de professores nas
universidades deverá pautar-se no “banco de professores-equivalentes”, precarizando ainda mais
nossas condições de trabalho.
A proposta de diversificação dos cursos de
graduação apresentada pelo Programa REUNI
não constitui, entretanto, nenhuma novidade.
Trata-se da retomada das políticas elaboradas
pelo Banco Mundial para os países da periferia
do capitalismo, expressas no documento La enseñanza superior. Las lecciones derivadas de la
experiência (Banco Mundial, 1994), no qual são
apresentadas estratégias para a reforma da educação superior na América Latina, Ásia e Caribe. Estas estratégias são reafirmadas nos documentos Higher education sector study (vol 1 e 2)
(Banco Mundial, 2000) e Higher education in
Brazil - challenges and options (Banco Mundial,
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
19
2002) que expressam a concepção de educação
para os países periféricos: adaptação e difusão
de conhecimentos. Analisando as bases de fundamentação teórica e política do Programa REUNI, encontramos como referência a reformulação da educação superior européia denominada
“processo de Bolonha”, que tem seu início em
1999 e prossegue no início do novo século com a
finalidade de construir um espaço europeu de educação superior até o ano 2010, através das seguintes estratégias: adoção de sistema de graus
comparáveis e facilmente inteligíveis; adoção de
um sistema baseado, essencialmente, em ciclos e
promoção da mobilidade de estudantes. Um processo que vem sofrendo duras críticas pela fragmentação da formação profissional que realiza e
pelo indicativo de formação de um promissor
mercado educacional europeu, facilitando a ação
das empresas educacionais (Lima, 2007).
Simultaneamente, o Programa REUNI é
uma face do Projeto Universidade Nova (UFBA,
2007). Apesar do REUNI e do UniNova apresentarem as mesmas argumentações e a mesma proposta de elaboração de uma “nova arquitetura curricular” para as universidades
públicas brasileiras, o UniNova, na medida em
que centralizou sua proposta nesta “nova arquitetura curricular”, gerou um conjunto de críticas de reitores e demais administradores das
universidades federais que reivindicavam financiamento público para a realização das metas de expansão e reestruturação destas instituições federais. O REUNI, portanto, é o UniNova com (pouco) financiamento público condicionado ao estabelecimento das metas expressas em um contrato de gestão.
20
Considerações para os debates e as
ações políticas
Existe autonomia das universidades
para estabelecerem suas próprias metas no
processo de adesão ao REUNI? Não, não existe. O documento intitulado “Diretrizes Gerais
do REUNI” apresenta as estratégias de controle e acompanhamento impostas pelo MEC
e que condicionam a (possível/pouca) alocação de verbas:
O processo de acompanhamento da execução das metas propostas pelas universidades
integrantes do REUNI será realizado por meio
da Plataforma PingIFES, cujo objetivo consiste
na coleta de informações sobre a vida acadêmica das instituições federais de
ensino superior. Seus dados são
utilizados na distribuição dos
recursos orçamentários das
IFES, a partir de critérios acordados com os órgãos de representação das universidades
[com base no] horizonte fixado
pelas metas relativas à abertura de novas vagas, às taxas de
conclusão dos cursos e ao aumento gradativo da relação entre o número de alunos e professor estabelecidas nos projetos de cada universidade aderente (...) Além disso, o processo de verificação das informações incorporará a extensa
gama de dados coletados por diversos órgãos (INEP, CAPES),
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
inserindo-se, ainda, no contexto do sistema de
avaliação estabelecido pelo SINAES [e articulado ao] envio de analistas “in loco”, cuja análise deverá estar especialmente focada nos aspectos previstos no REUNI e consolidados na proposta da universidade (Brasil/MEC, 2007,).
Desta forma, o Programa REUNI e o
Banco de professor-equivalente, expressões
atuais da contra-reforma da educação superior brasileira conduzida pelo governo Lula
da Silva, tem como objetivos alterar substantivamente o sentido da universidade pública,
transfigurando suas funções sociais, desqualificando tanto a formação profissional como
o trabalho docente. O ANDES/Sindicato Na-
cional vem se posicionando contra este projeto de desqualificação da educação superior e
construindo, de forma coletiva, um outro projeto para a universidade brasileira 2 . No mesmo sentido e direção política, o movimento estudantil tem organizado debates e manifestações contrárias à adesão das universidades
federais ao Programa Reuni.A resposta das
reitorias tem sido a mesma: a criminalização
dos movimentos! Neste contexto de tantas lutas, reafirmar a defesa da educação pública e
a valorização do trabalho docente, defendendo a expansão do acesso com qualidade e
financiamento público são as tarefas políticas
e acadêmicas que estão na ordem do dia.
Foto: Luiz Fernando Nabuco
REFERÊNCIAS
AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA (2006). Boletins da Dívida.
BANCO MUNDIAL (1994). La enseñanza superior - las lecciones
derivadas de la experiencia. Washington, 1994.
BANCO MUNDIAL (2000). Higher education sector study (vol 1 e 2).
BANCO MUNDIAL (2002). Higher education in Brazil - challenges
and options.
BRASIL/Presidência da República (2007). Decreto 6096 de 24 de abril
de 2007. Institui o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão
das Universidades Federais - REUNI.
BRASIL/Ministério da Educação e Ministério do Planejamento, Orçamento
e Gestão (2007). Portarias Interministeriais n. 22 e 224. Constitui em
cada universidade federal um banco de professor-equivalente.
BRASIL/Ministério da Educação (2007). Diretrizes gerais do Decreto
6096 - REUNI – Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais.
LIMA, Kátia (2007). Contra-Reforma da Educação Superior: de FHC a
Lula. SP: Xamã, 2007.
Estudantes no CUV de 26/9, no Instituto de Geociências
UFBA (2007). Nova arquitetura curricular para um novo tempo.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
21
Cinema e reflexão sobre América
O professor Antônio Carlos Amâncio
(Tunico Amâncio para os íntimos) leciona na
UFF desde 1981. As disciplinas que ministra
no IACS são todas ligadas à área de cinema e
audiovisual, ramo em que tem uma extensa e
premiada trajetória. Para alguém com esse
perfil, é motivo de grande comemoração o fato
de que o curso de Cinema da universidade, que
até hoje é uma habilitação dentro da Comunicação Social, a partir do próximo semestre finalmente ganhará o status de um curso independente. Isso exatamente no ano em que a
habilitação completa 40 anos de existência na
UFF, já que foi criada em 1968, paralelamente
à fundação do Cine Arte UFF.
Essa mudança de status do Cinema dentro da universidade certamente se deve ao destaque que o curso adquiriu na formação de
profissionais da área, além da produção de projetos de pesquisa e extensão. É aí que entra o
LIA, sigla que designa o Laboratório de Investigação Audiovisual. Localizado no IACS II
(Rua Tiradentes, 148), esse núcleo produz projetos de pesquisa e extensão na área de audiovisual. De acordo com Tunico, o LIA é um grupo de pesquisadores que busca construir interfaces do cinema com as novas tecnologias.
Projetos de sucesso
Atualmente o laboratório desenvolve três projetos: o “TECAL” (Trocas Econômicas e Simbólicas
22
Antônio Carlos Amânsio, no Cine
no Cinema da América Latina), o “Sala Escura” e o
“França Antártica”. O primeiro se dedica a uma reflexão sistemática sobre o cinema latino-americano
na universidade. Dentro dessa perspectiva, tem prioridade o tratamento da produção cinematográfica
em longa metragem dos países do MERCOSUL vis-
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Latina na UFF
ma da UFF,
Foto: Stela Guedes
ta em relação ao cinema brasileiro feito a partir dos anos 90.
O segundo realiza dois cineclubes: um no MAM, que utiliza o
acervo clássico da cinemateca
do museu e acontece uma vez
por mês, e um no Cine Arte
UFF, que acontece sempre na
última sexta-feira do mês e
exibe filmes latino-americanos
ainda não lançados. O terceiro
projeto consiste no desenvolvimento de um jogo para adolescentes cujo roteiro se baseia nos
fatos históricos ligados à invasão promovida pela esquadra
do francês Villegaignon à Baía
de Guanabara, no Rio de Janeiro, no ano de 1565. Este
último projeto ainda está em
fase de preparação, enquanto
os dois outros já estão funcionando a pleno vapor. Para Tuem noite de Cineclube
nico, o cineclube tem contribuído para dar maior visibilidade ao cinema latino-americano dentro da UFF, o que
é bastante positivo.
Só para se ter uma idéia da dimensão do sucesso dessa iniciativa, já houve sessões no Cine Arte
UFF com público de aproximadamente 400 pessoas. O cineclube do MAM também faz bastante sucesso, com um detalhe: depois de cada filme aconte-
ce o “Tragos y Sonidos”, ou seja, os espectadores debatem o filme exibido em meio a uma confraternização regada a cuba-libre, no melhor estilo latinoamericano.
Problemas e perspectivas
Hoje, há cerca de 10 alunos que trabalham
no projeto Sala Escura, dos quais apenas um é
bolsista. Aliás, a escassez de bolsas é um problema, mas nem isso é capaz de desanimar os estudantes que acabam trabalhando voluntariamente no projeto. “Nossos cineclubes oferecem alternativas inteligentes, as pessoas querem isso. A
gente já não precisa mais nem fazer discurso.
Apenas oferecemos boas opções cinematográficas
que estão fora do circuitão do cinema hollywoodiano”, diz Amâncio. Apesar da falta de recursos que
afeta as universidades públicas, o balanço da atuação do laboratório consegue ser muito positivo
para Tunico, mas o que acaba acontecendo é que
o professor se vê forçado a fazer uma espécie de
“parceria financeira” com o projeto, bancando coisas do seu próprio bolso. Ainda assim, afirma, o
resultado é muito gratificante.
Em 2008, além dos projetos que já estão
em andamento, existe a perspectiva de ampliar os cineclubes com sessões nas instalações
do próprio IACS II e na ASPIUFF. A programação dos cineclubes e informações sobre os
projetos e atividades desenvolvidos pelo LIA
podem ser acessados em www.uff.br/lia .
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
23
80 anos de cineclubismo no Brasil
A insatisfação com os
modelos
rígidos
e
etnocêntricos, com a sujeição aos estúdios e com a
censura da indústria cinematográfica, além da preocupação com a afirmação de
cinemas nacionais levou
muita gente, em todo o mundo, a procurar alternativas já
na segunda década do século passado. Mas foi na
França, onde o próprio cinema havia começado, que
essas insatisfações encontraram suas primeiras formas de
24
expressão. Em 1920, o cineasta e crítico Louis
Delluc cria o nome
cineclube e lança, em
14 de janeiro, o semanário Le Jounal du
Ciné-Club, ou simplesmente Ciné-Club.
Por aqui, a estréia
acontece no dia 13 de junho de 1928, com a fundação,
no Rio de Janeiro, do Chaplin
Club. Nas décadas de 40 e 50
os cineclubes se espalharam
pelo país, mas também este movimento sofreria com a Ditadura
Militar que o perseguiu duramente. Calcula-se que existissem
cerca de 300 cineclubes em
1968 e, um ano depois, haveria
no máximo uma dúzia de
cineclubes em funcionamento.
Na década de 70 foi criada a
Distribuidora Nacional de Filmes
para Cineclubes (DINAFILME).
Seu acervo contava com
documentários brasileiros e produções não submetidas à censura. Esses filmes documenta-
vam a vida e as lutas dos
setores populares, marcada
nesse momento pela retomada dos movimentos grevistas. Em 1977, a Polícia Federal invade sua sede e
apreende seus filmes.
A inflação crescente,
o aumento nos custos de frete e a sensível diminuição
das atividades de instituições federais como a
EMBRAFILME dificultam a
vida dos cineclubes menos
organizados a partir dos
anos 90. O cineclubismo
brasileiro entra num período
de grande desarticulação,
que, de certo modo, vigora
até hoje. O governo federal
deixou completamente de
apoiar
o
movimento
cineclubista que não encontra alternativas de sustentação autônoma como movimento nacional integrado.
Apesar do cenário de desarticulação, ainda hoje surgem
diversas iniciativas pelo país.
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Um teatro marxista para reafirmar a luta de
classe: Brecht, o Latão e os Filhos da Mãe terra
A peça “A Comédia do Trabalho”, a mais popular da Cia do Latão, estreou em agosto de 2000,
no Sesc Anchieta, em SP, após uma série de pré-estréias pelo interior do estado e no
Assentamento Ireno Alves, no Paraná, em julho do mesmo ano (FOTO). O “Latão” é um grupo de
teatro paulista que, desde 1997, trabalha para se opor ao modelo hegemônico de teatro no
capitalismo. Dos ensaios à relação com o público, o coletivo se empenha para superar a divisão
do trabalho material e intelectual, suprimir as hierarquias entre os artistas, desmistificar a imagem
artística e transformar os homens e mulheres do palco e da platéia, em “companheiros de jornada
simbólica”, como afirma Sérgio de Carvalho, diretor da Cia. Para ele, no mundo da mercadoria,
a produção artística é levada a alienar sua utilidade em favor da pura circulação, cuja lógica
impregna os produtores de arte com o marquetismo, o personalismo, o agradismo hedonista. O
Latão acredita que a cultura deve servir a processos coletivos podendo buscar, para isso,
associações de espectadores, contatos com movimentos sociais e intercâmbios entre grupos.
Para fazer seu teatro materialista-dialético, o caminho do grupo reúne três princípios:
anticapitalismo, pesquisa estética e revolução. A jovem Cia Filhos da Mãe...terra vem seguindo
a mesma trilha. O chão em que se ergue tudo isso: Bertolt Brecht.
Foto: Stela Guedes
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
25
Entrevista com Sérgio de Carvalho, diretor da Cia do Latão
Foto: Stela Guedes
Heitor Goldflus, Maria Tendlau, Alessandra Fernandez, Adriana Mendonça
e Ney Piacentini: elenco original da peça “A Comédia do Trabalho”, na
estréia, em 2000, no Sesc Anchieta, SP.
“É um trabalho
difícil, quase
impraticável,
existir no mundo
da mercadoria
sem pertencer a ele”
26
O trabalho da Companhia do Latão
inclui a construção e encenação de espetáculos, a edição da revista Vintém e
vários experimentos teatrais e musicais.
O grupo surgiu entre 1997 e 1998, em
São Paulo e, desde então, vem se constituindo a partir do estudo da obra de
Bertolt Brecht, como um modelo para o
teatro épico-dialético no Brasil. Sua
dramaturgia é própria, interessada na
realidade histórica do país, bem como na
crítica política das formas estéticas de
representação. Suas montagens são “peças-processo” sobre movimentos contraditórios de uma sociedade imersa no capitalismo mundial. Atualmente, com uma
sede de trabalho em São Paulo, o Estúdio do Latão, a Cia desenvolve pesquisa
artística e pedagógica e pretende, este
ano, publicar suas peças e alguns estudos teóricos, além de desenvolver seu
núcleo audiovisual. Serão também divulgados os primeiros vídeo-documentários
e exercícios ficcionais do núcleo. Recentemente, o Latão apresentou a peça O
Círculo de Giz Caucasiano, em Havana,
e a continuação da colaboração com o
teatro de Cuba também está nos planos
do grupo. Seu próximo projeto se chama
Ópera dos Vivos. Será um conjunto de
peças articuladas em torno do tema dos
“produtores da cultura”.
MAIO/JUNHO/JULHO/2008––Revista
Revistada
daAssociação
Associaçãodos
dosDocentes
Docentes da
da UFF
UFF––CLASSE
CLASSE
MAIO/JUNHO/JULHO/2008
Classe – Nos anos 30, diante dos ataques dos críticos
contra seus primeiros trabalhos, Brecht escrevia: “É
preciso defender o teatro épico contra qualquer suspeita de se tratar de um teatro deselegante, tristonho e
fatigante”. Os ataques continuam até hoje. Como vocês atendem ao apelo do dramaturgo alemão?
Sérgio – Tentando fazer um trabalho artístico inventivo, vivo e conseqüente do ponto de vista crítico. Brecht fazia referência ao “coturno estético”. Sabia que o
sentido de contramão política de uma obra na contramão do imaginário dominante traz a necessidade de
um acabamento artisticamente impecável. Ainda que
isso seja difícil nas condições de produção do teatro nãocomercial no Brasil, trabalhamos muito, nos desdobramos em várias funções, na tentativa de que essa almejada “qualidade indiscutível” desloque o olhar para o
que interessa mais, para as contradições dos processos
históricos materializadas na forma da cena. De uma
certa forma, como todo grande teatro moderno, o de
Brecht expõe o despreparo de uma crítica serviçal do
consumo artístico, daqueles juízes do gosto que escrevem para clientes e consumidores. É um teatro que
realiza na forma sua própria crítica. E que, nesse movimento, tenta dar ferramentas a que o espectador exerça uma crítica histórica com base na matéria do palco.
Classe – Brecht definiu seu método como “dialética materialista a serviço do teatro”. Como isso acontece em sua
dramaturgia e em que peças ele é mais bem sucedido?
Sérgio – Desde Um Homem é um Homem, o olhar
materialista se instaura na dramaturgia de Brecht. Seus
experimentos com a dialética se iniciam nessa época, e se
desenvolvem de modo experimental no conjunto de sua
obra. Toda a armação das peças segue o movimento das
contradições. As personagens se movem enquanto são
movidas. Sua subjetividade está implicada nas tensões
sociais e históricas, as cenas se acumulam e sofrem mudanças qualitativas de acordo com causalidades múltiplas, o esquema aparente, as leis do movimento, servem
à sua subversão pelos aspectos vivos e múltiplos; os processos mostrados no palco estão em interação dialética
Foto: Stela Guedes
Sérgio de Carvalho em debate promovido pela ADUFF
com o trabalho do espectador nas condições do pensamento dominante atual. É no trânsito entre palco e platéia
que se dá a operação dialética, sempre em aberto. A dramaturgia de Brecht apresenta uma infinidade de experimentos sobre o que se poderia chamar de uma dialética
dos sentidos e da representação. Ela se utiliza de modo
livre do pensamento de Marx, Engels, Lênin, Korsch,
entre tantos. E o faz de maneira inventiva, segundo as
necessidades da luta prática no campo estético. É um
grande repertório de caminhos novos para a reflexão dialética e para a “demolição da ideologia”.
Classe - O teatro da Cia do Latão é um teatro de oposição à
da ideologia de consumo e da mercantilização das pessoas e
da vida. Como enfrentar a tão poderosa ideologia cultural?
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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Sérgio – Pela prática. Tentando fornecer exemplos atuais de uma atuação simbólica igualitária, animada, livre das determinações ideológicas do capitalismo totalitário, sem desconsiderar, ao mesmo tempo, a onipresença da lógica mercantil no conjunto da sociedade. É um
trabalho difícil, quase impraticável, existir no mundo
da mercadoria sem pertencer a ele, sem se deixar pautar por ele, sem sucumbir à lógica da circulação. Mas é
justamente essa impraticabilidade que é exposta em
nosso trabalho, em seus temas e em suas formas que se
contrapõem ao modelo do “produto de entretenimento
agradável”. O espectador vai se entreter sim, e manter
uma relação ativa com processos não só artísticos, mas
pedagógicos, históricos,etc. Processos nos quais se vê
também o esforço de não nos confinarmos ao mundo de
compra e venda da arte na medida em que revelamos
suas estruturas de classe e nos aproximamos de outros
grupos que desconfiam do sucesso do capitalismo.
Classe – O Latão é um grupo de teatro anticapitalista não
só na sua interpretação do mundo, mas na sua própria
prática de trabalho. Como isso acontece?
Sérgio – Em muitas instâncias, mas, sobretudo, nas relações da sala de ensaio. São diversos os esforços: combater
o idealismo das representações pela coletivização da invenção artística, eliminar a separação hierárquica entre trabalho físico e trabalho intelectual, valorizar igualitariamente os chamados “técnicos” e os chamados “artistas” etc. O
papel do diretor passa a ser o de disseminar sua própria
função. A improvisação dos atores na sala de ensaio, mediada pelo esclarecimento coletivo dos percalços e destinos do
processo tem sido nossa principal ferramenta de escrita de
cenas teatrais. Num método aberto, baseado na “tentativa
e erro”, é fundamental que os critérios dialéticos e o estágio
atual da pesquisa se tornem claros para todos.
Classe – O efeito do distanciamento, para Brecht, devia
fornecer ao espectador uma atitude examinadora e crítica
dos acontecimentos. Como podemos nos situar, a partir do
distanciamento, no atual momento da luta de classes?
Sérgio – O efeito de distanciamento (ou estranhamento)
é um conceito teórico de Brecht para definir o tipo de trânsi-
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to crítico em que o público – ao vivenciar, experenciar,
imaginar alternativas e refletir sobre a cena – tem a
possibilidade de projetar uma causalidade histórica sobre o que vê, sobre o que ouve e imagina. Não é propriamente uma técnica teatral narrativa ou metalingüística, como feita em tantos grupos que dizem fazer “teatro
épico”. Sua atualidade depende da capacidade do teatro
em desmontar a leitura ideológica dominante, em “alienar a alienação”, em estimular no espectador uma atividade crítica e interpretativa, de caráter negativo, sobre os processos da cena. Na medida em que isso é também uma ativação simbólica da luta de classes, as formas do estranhamento atual devem considerar o estágio
atual da luta de classes, sem falsificá-lo e sem desconsiderar que o sistema das artes, como lugar de produção do
imaginário coletivo, é também um campo da luta.
Classe – Que conseqüências a Ditadura Militar, particularmente do AI-5, que completa 40 anos esse ano, trouxe
para o campo da encenação crítica brasileira?
Sérgio – Tenho a impressão de que o grande estrago
causado pela ditadura e pelos anos seguintes da globalização capitalista foi o arrasamento da memória coletiva,
a descontinuidade dos processos. Os artistas do passado,
presos na rede da violência do Estado, presos à necessidade de sobrevivência, tendo dificuldade em constituir campos alternativos a uma nascente indústria cultural que
os absorvia e sugava suas energias de invenção, não conseguiram transmitir os avanços estéticos dos anos anteriores, quando se iniciaram os experimentos de uma arte
politizada importante no país. São raros aqueles que seguiram o trabalho de contramão com visibilidade suficiente para influenciar os mais novos. Boal é o mais importante de todos, ainda que tenha se afastado da encenação.
Mas é sintomático que seu reconhecimento internacional
seja muito maior do que o nacional.
Classe – Como o teatro crítico pode contribuir para a disputa da hegemonia na sociedade?
Sérgio – Aproximando-se das forças sociais mais
avançadas na capacidade de contestar o capitalismo.
Mas, sempre, fazendo grande arte.
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Entrevista com Douglas Estevam
Foto: Stela Guedes
O teatro do Filhos da Mãe...terra
Em agosto de 2006 tivemos o prazer e a honra de recebê-los em evento organizado pela ADUFF
marcando os 50 anos da morte de Bertolt Brecht. A peça Posseiros e Fazendeiros, a primeira
do grupo Filhos da Mãe... terra tem como base o texto Horácios e Curiácios, de Brecht, e
fala da disputa de terras e do conflito entre agronegócio e trabalhadores rurais no Brasil.
Douglas Estevam, do Coletivo Nacional de Cultura do MST e diretor do espetáculo,
explicou porque a peça está inacabada. “Quem sabe quando fizermos a Reforma
Agrária, terminamos a peça”. A encenação contou com o apoio da Cia do Latão,
parceira do grupo desde que este foi fundado em 2003, no assentamento Carlos
Lamarca, em Sarapuí (SP). O grupo do MST também fez o prólogo de O Círculo de
Giz Caucasiano, espetáculo de Brecht, montado pelo Latão. O grupo Filhos da
Mãe... terra conta hoje com 12 integrantes, com idades entre 13 e 36 anos. Nesta
entrevista, concedida da França, Douglas fala sobre a importância do teatro para
o MST, principalmente, para sua juventude.
Douglas Estevam em debate na ADUFF
Classe - Como funciona hoje o Coletivo Nacional de
Cultura do MST?
Douglas – Ele é composto de várias frentes como
teatro, poesia e literatura, artes plásticas, música,
audio-visual e diversidade cultural com autonomia na
produção, desenvolvimento e coordenação de suas atividades específicas, mas em consonância com o projeto estratégico do movimento e do setor. Também tem a
responsabilidade de desenvolver programas de formação para o conjunto dos militantes e a organização das
tarefas de nível nacional no aspecto cultural.
Classe – Você pode falar um pouco da história do Assentamento Carlos Lamarca?
Douglas – É uma história com as complicações frequentes dos acampamentos, principalmente no período
em que se constituiu o assentamento, há dez anos. Foram vários despejos e um longo período de moradia na
beira da estrada. Por outro lado, a necessidade coletiva
da organização do acampamento, para garantia da sobrevivência em condições tão precárias, possibilitou o de-
senvolvimento de uma vivência coletiva muito importante e formativa. Neste contexto se constituiram as bases
do que viria a ser o grupo Filhos da Mãe.
Classe – Já que você começou.. e o grupo de teatro Filhos da Mãe...Terra?
Douglas – O grupo se formou durante o acampamento. Havia um grupo de jovens que se reunia frequentemente para desenvolver atividades culturais, de estudo, de trabalho. Depois que o assentamento foi regularizado, por uma série de motivos, foi efetivado um modelo de assentamento que manteve as famílias muito
afastadas umas das outras, o que dificulta muito a plena realização de atividades mais coletivas. Uma das
idéias para alterar este problema foi a criação de um
grupo de teatro, pois esta atividade gerava muita empatia por parte dos jovens já no acampamento.
Classe – Como o teatro vem contribuindo para a formação político-cultural do grupo?
Douglas – Desde o começo nos colocamos como processo
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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de trabalho, de estudo continuado, tanto de temas ligados diretamente ao teatro, como estudos sobre política e
economia. A relação entre os dois campos de trabalho
sempre teve por meta construir uma intervenção cênica
a partir deste estudo e da experiência de vida dos militantes. A necessidade de reelaboração cênica dos materiais de trabalho, como jornais, livros, filmes, entrevistas, e da própria história de vida, proporcionava uma
maneira diferenciada de olhar estes materiais e experiências, o que implicava uma análise aprofundada da
experiência de vida e histórica. Este estudo, digamos
que mais teórico, mais interno ao grupo, se efetivava
plenamente nas apresentações, sempre seguidas de debates, o que exigia um posicionamento muito efetivo,
uma tomada de posição política, através do teatro, sobre
uma realidade, sobre a própria história de vida das pessoas e da organização a qual integramos.
Classe – O que vem sendo mais difícil no trabalho com o
teatro?
Douglas – Um dos aspectos mais difíceis vem sendo
conjugar o trabalho do teatro com o conjunto das outras atividades no assentamento e na organização como
um todo. Algumas pessoas estão em estudos longos,
em cursos que duram até 50 dias. Depois tem uma
grande quantidade de trabalhos no assentamento com
o desenvolvimento da produção. Uma série de fatos de
organização do assentamento e do movimento colocam
dificuldades para organização da agenda de trabalho
com o teatro. Mas isto sempre foi parte do trabalho do
grupo, sempre soubemos que nao iríamos nos separar
da vida no assentamento nem da vida da militância
política do movimento, pelo contrário. Esta dificuldade
sempre fez parte do trabalho porque nunca assumimos, nunca tivemos vontade de nos separar das outras
necessidades de organização da vida no MST. Não nos
constituímos numa estrutura teatral onde o teatro seja
a atividade exclusiva das pessoas.
Classe – Como é a relação do MST com o trabalho do
grupo?
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Douglas – A relação é extremamente produtiva, motivadora. Como nos constituímos em coletivos e o funcionamento destes coletivos não é algo burocrático, formal somente, mas que possui vida ativa própria, a inserção no
conjunto do movimento é extremamente potencializadora dos trabalhos do grupo. Temos possibilidade de entrar
em contato com outros grupos de teatro, participamos de
outros cursos de formação, estabelecemos relação com
outros setores do movimento, a apresentação em atividades programadas da organização, existe a publicaçao de
materiais, etc. Um conjunto estrutural que permite uma
potencialização do trabalho que é feito em nível local.
Classe – Como a política de cultura do MST, particularmente do grupo de vocês, ajuda na disputa ideológica
entre as classes em nossa sociedade?
Douglas – Esta também foi uma experiência que fomos
tomando consciência no decorrer da nossa ação. Começamos a descobrir o pontencial político do teatro que estamos
fazendo de uma maneira muito específica. Muitas pessoas
tomaram contato mais próximo com o MST a partir da
peça que viram. Os debates também revelavam, principalmente para um público mais distante, a realidade do
movimento de uma maneira muito diferente da qual eles
viam na TV. Inúmeras vezes pessoas falaram da necessidade de desenvolver trabalhos assim em outras comunidades, mesmo urbanas, em escolas das cidades. Podemos
pensar nisto como um sinal da percepção do teatro com
um potencial político que extrapolaria os limites do MST,
partindo da nossa experiência. Os debates começavam pela
nossa ação, pela nossa especificidade de um grupo de assentados, mas logo entravam na estrutura política e de
desigualdades sociais do país, para além dos problemas só
dos camponeses e sem-terras. Chegamos a visitar uma
escola num bairro da periferia de São Paulo onde um grupo de 250 crianças estava montando uma peça sobre a
história da favela onde eles moravam. Fomos apresentar e
depois conversamos sobre o processo de montagem, aspectos políticos, etc. O significado político do teatro assume
um aspecto menos geral e ganha um caráter muito específico de intervenção e formação política.
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
A coragem e a necessidade
de se montar Brecht
Marcelo Badaró
- Professor da UFF
e Stela Guedes Caputo
- Jornalista
Foto: Divulgação
Foto: Divulgação
No teatro dramático o espectador é levado a identificar-se facilmente com o herói.
Sua principal função é a catarse, a purgação
das emoções. É esse, em geral, o teatro que
agrada. O dramaturgo alemão Bertolt Brecht
(1898 -1956), contudo, foi contrário a este teatro e construiu um outro, o teatro épico, materialista-dialético e anticapitalista. Já esse, nem
sempre agrada aos gostos fáceis, em geral o
chamam de chato, ultrapassado, e, por fim,
de ideológico e político, como se o outro, aquele
criado pela burguesia, não fosse.
Dizia nosso dramaturgo que o público
do “velho teatro” pendurava o cérebro na sala
de entrada, junto com o casaco. O novo teatro que Brecht propunha exigia um novo conteúdo, uma nova forma e um novo público, Louise Cardoso interpreta Anna Fierling, a Mãe Coragem, de Brecht
um espectador que não deveria ser levado flutuante ao nhia de Teatro, dirigido por Paulo de Moraes, que tammundo da arte, mas ao contrário, deveria ser introduzi- bém está comemorando 20 anos de existência.
do em seu próprio mundo real para criticá-lo. Por essas
‘Mãe Coragem e seus filhos’ é a guerra. Foi cone outras, montar Brecht nunca foi fácil e não o é hoje. cluída por Brecht quando a Segunda Guerra Mundial
Quanto mais porque, fazê-lo, não garante a um grupo começava e sua história se desenvolve durante a Guerrealizar um espetáculo brechtiniano. Em geral, vemos ra dos Trinta Anos (1618-1648) que destruiu a Alemaelementos desse teatro “salpicados” na encenação. Tal- nha. “Me chamam de Coragem, sargento, porque uma
vez a figura do narrador ou algum ator mais consciente vez, para escapar da falência, eu atravessei o fogo da
do efeito de distanciamento. Raras companhias conse- artilharia de Riga, com 50 pães na carroça; eles já
guem a encenação brechtiana mais completa, que, como estavam dando bolor, não havia tempo a perder, e eu
disse Sergio de Carvalho, envolve, além do palco, a rela- não tinha outro jeito”, explica a personagem Anna
ção entre os membros do grupo nesse fazer teatral. As- Fierling, mãe de três filhos (Katrin, que é muda, Eilif
sim, o fato da atriz Louise Cardoso ter escolhido montar e Queijinho). Ela arrasta uma carroça (nesta montao texto Mãe Coragem e seus filhos, de Brecht, em come- gem representada por uma carcaça de um avião da I
moração de seus 30 anos de carreira, foi realmente um Guerra), vendendo mercadorias para soldados e endesafio. Para enfrentá-lo, chamou o Armazém Compa- volvidos de qualquer lado. A fala logo revela: Fierling
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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é uma comerciante que, para não ter prejuízo, arrisca qualquer coisa, inclusive, a vida e não só a sua.
Para não restar dúvidas disso, quando seu filho do
meio, o Queijinho, é capturado e torturado pelas tropas inimigas, ela regateia o valor de sua liberdade, não
quer se desfazer de sua única propriedade, a carroça.
Quando, enfim se decide, o filho já foi executado. Na
cena seguinte, soldados do regimento católico mostram
o corpo do filho e ela nega conhecê-lo, mesmo sabendo
que ele será jogado numa vala comum, como foi.
O Armazém não é um grupo brechtiniano, mas
Louise Cardoso interpreta com honestidade sua Anna
Fierling, tem consciência que representa a contradição, ainda que vacile nos momentos em que Fierling
é egoísta, fria, calculista. Parece, ela própria, desejar
amenizar as características de uma personagem que,
afinal de contas, é uma mãe. Mas aqui, trata-se da
primeira peça que Brecht encenou quando voltou para
a Alemanha, depois da II Guerra Mundial. Neste texto, a Mãe é a Alemanha, uma metáfora da relação
entre o nazismo e o povo alemão.
Os atores do teatro dramático estão acostumados às empatias. Nós, o público também. Queremos isso, a empatia, o agrado. Talvez fiquemos com
dó de Fierling e enxerguemos nas suas circunstâncias apenas um drama familiar e não os interesses
do Capital em movimento. O próprio Brecht, que
analisava a todo instante seu trabalho, dizia que a
responsabilidade era sua quando não conseguia fazer com que os personagens provocassem o estranhamento necessário ao público. Mãe Coragem,
Galileu, a Grusha do Círculo de Giz são exemplos
que ele cita em alguns de seus textos.
Pode ser que aconteça o seguinte: se Anna Fierling não nos conforta, corremos os olhos desesperados para quem o faça e julgamos encontrar em
Katrin, a filha muda, desfigurada pela guerra, interpretada por Patrícia Selonk. Talvez este seja ainda um personagem mais arriscado. Podíamos apenas nos comover com o sofrimento humano de Ka-
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trin. Mas é justamente ela quem nos aponta o jogo
brechtiano, um jogo que não apresenta apenas relações inter-humanas e sim, as condições sociais que
as movem. É Katrin que, mesmo na sua impossibilidade de comunicação, tenta alertar aos que busca
proteger. Ao fazê-lo, também nós, o público, somos
alertados e olhamos na direção do conflito social. Seu
sacrifício final, não é alienado, mas uma atitude consciente da qual também participamos. Em meio ao
conjunto de atrocidades que a guerra impõe, Brecht
nos leva a refletir sobre até onde homens e mulheres
são capazes de ir, não apenas se adaptando, mas alimentando a barbárie ou tentando interrompê-la.
Ao contrário do que dizem, este dramaturgo
não era avesso ao envolvimento emotivo. Nos envolvemos com Katrin. O que ele odiava no drama burguês era sua intenção de enganar e alienar atores e
público. Por isso, nosso envolvimento aqui, não consegue ser o mesmo como no drama burguês. Brecht
não aceitava uma dramaturgia que mostrasse os fatos da vida como naturais, porque esse era o modo de
aceitar como natural que tudo permaneça imutável.
Anna Fierling aceita, Katrin, não. O teatro de Brecht
é um desafio para qualquer grupo de atores e, mesmo
quando montado por um grupo que não tenha tradição
brechtiniana, nós, o público, saímos ganhando porque
somos também desafiados nos elementos que constroem nossa forma de perceber o mundo. O envolvimento
acontece, mas ele é crítico e questionamos as atitudes
dos que estão no palco e a nossa, na platéia.
Por fim, em um colóquio sobre teatro, Brecht
respondeu à pergunta que servia como guia dos debates - “O mundo atual pode ser reproduzido pelo teatro?” – da seguinte forma: “O mundo atual só pode ser
reproduzido para os homens do presente se for descrito como um mundo em transformação”. Como não
achamos que as guerras e as desigualdades sociais
são naturais e nem imutáveis, não há dúvida de que
Brecht precisa ser montado e a coragem dos grupos
que o fazem, sem tentar esvaziá-lo, aplaudida.
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
De Capa
Entrevista: Evandro Teixeira
“A fotografia precisa mostrar
o que há de errado no mundo”
Fotos: Luiz Fernando Nabuco
Stela Guedes Caputo
Ele nos recebeu,
a mim e ao fotógrafo
Luiz Nabuco, no dia 7
de março de 2008, uma
tarde ensolarada de
sexta-feira, num jardinzinho de uma Igreja no Rio Comprido,
onde está funcionando
hoje o Jornal do Brasil. Quem já conversou
com ele deve concordar
comigo, tudo em
Evandro Teixeira ri: os
olhos, o sorriso, as
mãos, a voz, numa expansão de generosidade. Com alegria de corpo inteiro ele começa a contar histórias, muitas, e, quando a gente percebe, atravessamos com ele na vereda de luz e sombra aberta pela fotografia. Contaminado por essa paixão desde criança, em Irajuba, no
interior da Bahia, onde nasceu, Evandro se transformou na principal referência do fotojornalismo
brasileiro. Suas imagens, a maioria em preto-e-bran-
co, eternizaram episódios políticos do Brasil desde a década de 60. Pelo mundo, registrou momentos de guerra ou de glória,
em especial, cobrindo as olimpíadas. Evandro, que é editor de fotografia do Jornal
do Brasil, acaba de lançar mais um livro
“68: Destinos. Passeata dos 100 Mil”. O
que partilha conosco desta vez é a famosa
e histórica foto feita por ele no dia 26 de
junho de 1968. Uma geração reunida na
Cinelândia ia às ruas protestar contra a
Ditadura Militar brasileira. O livro, de 120
páginas, conta a vida de 100 pessoas que
estiveram no protesto e foram captadas
por sua lente na passeata. 40 anos depois, as 100 pessoas selecionadas foram
fotografadas novamente por Evandro.
Elas lembram o que as levou à Passeata
dos Cem Mil e falam um pouco sobre os caminhos
que tomaram de lá para cá. Nessa travessia, Evandro ganhou muitos prêmios, publicou vários livros e
suas fotos estão em museus do Brasil e do exterior.
No entanto, ouso dizer que sua principal conquista
tenha sido conseguir fazer o que nos pede o poeta
Manoel de Barros: “se podes olhar, vê; se podes ver,
repara”. Evandro nos ensina a reparar.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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68: Destinos. Pass
Classe - Queria falar primeiro do livro. O que significou e significa para você fazer esse livro?
Evandro – O mais importante é que, como nos
meus outros livros, este também não é apenas um
livro de fotografia, é um livro de história porque fala
dos anos de chumbo no Brasil, especialmente sobre
o Movimento Estudantil. Em 1968, este movimento
teve papel importante na França e em muitos países e não foi diferente aqui. Acompanhei a trajetória dos estudantes, Edson Luiz morto e... nesse dia
específico, acompanhei a passeata dos 100 mil. Por
incrível que pareça, o jornal não publicou essa foto
no dia seguinte. Só quando publiquei o livro “Fotojornalismo”, em 1983 (a segunda edição foi publicada em 1989) é que a Elayne Fernandes, a designer
que trabalhava no livro, se encontrou na foto e também achou o marido. Eles estavam na passeata, mas
não se conheciam ainda. Assim nasceu a idéia desse
projeto. Fizemos um site “68 destinos” e continuamos divulgando. A coisa foi crescendo, encontramos
várias pessoas que ali estavam e em 2007 com o
patrocínio da Petrobrás finalizamos o projeto com a
publicação do livro.
Classe - Voltando 40 anos: no dia 26 de junho de
68 ao sair da redação do JB, sua tarefa era acompanhar o Vladimir Palmeira na passeata. De repente você estava no que ficaria conhecido como
“A Passeata dos 100 mil”. O que você sentiu?
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MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
seata dos 100 Mil
Foto: Evandro Teixeira
Evandro – A gente vivia sob pressão. O JB era na
Rio Branco e o ponto de encontro dos estudantes também. Toda manifestação estudantil se concentrava
ali antes porque o JB se posicionava contra a Ditadura. Como acompanhei toda trajetória estudantil,
desde 64, desde a tomada do forte de Copacabana, já
que fui o único do jornal a chegar ao forte, eu vinha
acompanhando o corre-corre, a pauleira toda. Como
não podia deixar de ser, no dia 26 de junho de 68 eu
também estava ali com eles. Todo dia tinha quebra-quebra. Já tinha acontecido a morte do Edson Luiz. Na sua missa de sétimo dia, por exemplo, a polícia arrebentou sete costelas do Alberto
Jacob, fotógrafo do JB e tomaram o equipamento
dele. Era isso, em toda manifestação também “o pau
comia”. As pessoas apanhavam muito, os jornalistas eram arrebentados, o JB chegou a ser fechado à
bala. Nesse dia já saímos preparados para levar
porrada esperando sangue e mortes, mas por incrível que pareça, foi o dia mais tranqüilo no Rio de
Janeiro. Eu tinha de estar de olho do Vladimir porque havia um boato de que ele seria preso nesse
dia. Minha obrigação era estar com ele desde a manhã até o final, quando a passeata acabou no Palácio Tiradentes e ele entrou no seu fusquinha azul
e foi embora. Mas, naturalmente, além de não desgrudar do Vladimir, fiquei de olho em todos os fatos. Além do que, na passeata estavam figuras
muito importantes de vários setores, Clarice Lispector, Chico Buarque, Caetano, era uma multi-
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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dão e eu de olho em tudo.
Classe – A censura fazia com que os jornais saíssem com várias páginas em branco. Como os fotógrafos conseguiam burlar a censura e publicar
essas imagens?
Evandro – A gente fazia um contato especial,
escuro. E os censores perguntavam o que tinha
neles, a gente despistava falando “são os malucos
dos estudantes”. No dia seguinte saía a matéria
com nossas fotos, o pau comia e a gente sumia
uns dias, depois voltava. Os caras entravam bufando nas redações, rasgavam os textos, empurravam os jornalistas. Mas eles não sabiam ler as
imagens direito e a gente conseguia enganar os
militares. Isso fez com que, em alguns momentos,
pudéssemos superar a censura, o que vocês não
conseguiam com os textos.
Classe – No livro, você diz que desde quando flagrou a tomada do Forte de Copacabana, na madrugada de 1º de abril de 64, decidiu que sua câmera fotográfica seria sua arma contra a Ditadura. Qual era sua visão do fotógrafo antes dessa
tomada de lado, de decisão política?
Evandro – A fotografia tanto pode mostrar as belezas do mundo como as atrocidades do mundo. Para o
fotojornalismo, a fotografia precisa mostrar o que há
de errado no mundo. No meu caso, sempre preferi
fotografar nosso cotidiano, a miséria da nossa gente,
e acabei concluindo que a fotografia é uma arma de
denúncia. Eu acompanhei todos os militares ditadores no Brasil e não posso dizer que tive o prazer de
enterrá-los, mas digamos que testemunhei quando
foram enterrados, vamos deixar assim. Em 83, o Fi-
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Eva
predile
gueiredo ficou sabendo que eu tinha lançado “Fotojornalismo” e pediu um exemplar. Dei o livro a
ele que ficou criticando dizendo que se o Brasil
tinha tanta beleza por que eu só mostrava miséria e ridicularizava os soldados? Eu disse a
ele que o papel de mostrar as belezas brasileiras não era meu, era dele e do ministro de turismo dele. Disse que eu era fotojornalista e
minha função era retratar a realidade do meu
país. E, que na verdade, o Brasil é o país mais
belo do mundo sim, mas há mais miséria que
beleza, por isso eu mostrava a miséria e as atrocidades. Não podia dizer as “suas atrocidades”,
se não ia levar porrada e iria em cana, mas,
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Foto:Luiz Fernando Nabuco
para um bom entendedor...
Classe - O que foi mais difícil
na construção desse livro?
Evandro – No começo, eu
achei que seria muito difícil
encontrar toda essa gente. A
idéia inicial era “68 Destinos”, para fazermos alusão ao
ano. Ao ir para o site, as pessoas foram aparecendo, algumas moravam em outro país,
mas foram aparecendo. Levamos 5 anos e eu cheguei a
pensar que não iria conseguir
encontrar 68 pessoas. Como
em outros projetos, nesse
também eu financiei a parte
ndro Teixeira mostra uma de suas
fotos favoritas do seu livro, mas a
inicial, mas esse foi bem mais
eta mesmo é a que publicamos na
trabalhoso que “Canudos”,
capa de nossa revista
por exemplo. Depois que a
Petrobrás resolveu patrocinar, foram publicadas matérias em vários jornais e, por causa dessa divulgação, nós, que procurávamos 68 pessoas, concluímos essa primeira edição do livro com 100 participantes e hoje
já temos 170 catalogados. Resolvemos parar nas
100 pessoas porque continuava sendo uma referência aos 100 mil que estiveram na passeata. Fechamos o livro, mas, quem sabe, na próxima edição, ampliamos. Até hoje, tem gente que
liga ou escreve querendo estar no livro, mas ele
já está pronto.
das lutas, dos sonhos? Li alguns depoimentos e
tive a impressão que a maioria associa àquele tempo de lutas a um “certo romantismo”, como se lutar com mais radicalidade fosse apenas uma característica da juventude e, pior, uma juventude
de um passado superado, esquecido...
Envadro – Acho que tudo mudou, o mundo mudou é claro. Acredito que diante dos acontecimentos de hoje as pessoas estão mais acomodadas.
Naquela época se lutava mais, se corria mais atrás,
se buscava mais e havia mais esperança de se
mudar tudo. Observo um conformismo muito
grande, inclusive na nossa profissão. Mesmo com
aquele regime ditatorial, tínhamos muita esperança, porém nem tudo aconteceu como pensávamos.
Classe – Você acompanhou o presidente Lula na
campanha, acompanhou as caravanas, se tornou
amigo dele. Está decepcionado com ele?
Evandro – Antes eu não gostava do Lula, mas
eu tinha de acompanhá-lo pelo jornal e o projeto dele mudou minha cabeça. Passei a ter muita esperança com o Lula, acompanhei todas as
caravanas e viajei com ele. Navegar pelo “Velho Chico” foi uma experiência maravilhosa,
para nós jornalistas e para ele também. Votei
nele e cheguei a imaginar que esse “cabra” seria o Fidel Castro que idealizávamos para o
Brasil. Acho que ele faz um governo razoável,
a vida da classe média mudou, mas não é o que
pensávamos, imaginava uma mudança radical
para o país que não aconteceu.
Classe – Você falou com 100 pessoas que estiveram na Cinelândia naquele dia. O que foi feito
Classe - O país mudou, as pessoas mudaram. E
você, como se transformou nesses 40 anos?
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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Evandro – Eu continuo buscando realidades,
novos projetos e novas idéias. Acompanho os
avanços tecnológicos. De certo, há quarenta
anos eu tinha mais energia, era mais novo. Mas
continuo buscando ideais, esperançoso de que
esse nosso país mude, já que essa é uma nação
rica onde não deveria haver tanta miséria. A
minha luta continua.
Classe - E a fotografia? Como é ter vivido a experiência de revelar filmes em cubículos apertados e
improvisados, fazer malabarismos para “enviar o
filme” de onde quer que estivesse até à redação e
viver hoje a era digital e virtual?
Evandro – Eu tenho as minhas Leicas, não vendi
nenhuma e continuo usando. Mas fotografo com
as digitais sempre. Naquela época era um sofrimento, já fui expulso de vários hotéis no mundo
porque se fazia uma sujeira muito grande nos
banheiros dos quartos que transformávamos em
laboratórios. Levávamos um pano preto para vedar a luz do banheiro, os produtos químicos, ampliador, papel fotográfico, álcool para secar o filme correndo... era uma desgraça e sempre com
pressa porque trabalhávamos com fuso horário
diferente. Hoje, com esse tipo de material, com essa
onde de terrorismo, seria impossível entrar em
qualquer país do mundo, principalmente nos EUA.
Imagina entrar com iposulfito, certamente iam
pensar que era cocaína. Para entrar com a transmissora nova e com um lap top já é um problema!
Classe – Lembra algum episódio específico?
Evandro - Em 1986, estava em Budapeste para
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cobrir uma viagem da seleção brasileira e fiz uma
tremenda sujeira no banheiro. O jogo foi à noite e
tínhamos de mandar logo a foto para a edição que
estava fechando. Nunca tinha como fazer provas
ou revelar com cuidado, por causa da correria.
Jogávamos tudo no banheiro. Nesse dia esqueci
de limpar, a química secou e grudou tudo. O banheiro ficou imundo e a arrumadeira chamou o
gerente. Fui expulso aos gritos de “seu porco!” “seu
imundo!” Depois veio a era da fotografia digital,
porém em 2000 uma máquina digital custava 20
mil dólares. As olimpíadas, onde há a maior concentração de fotógrafos no mundo, é um bom
exemplo. Em Sidney, 2000, cerca de 90% dos fotógrafos ainda usavam analógicas. No Brasil só
havia uma digital, na Folha de São Paulo. Para
se ter uma idéia, na competição do Torben Grael,
saíamos do Press Center (onde ficam concentrados os jornalistas) até o Iate Clube e, de carro, era
uma hora. Do Iate clube até o mar aberto eram
mais duas horas de lancha, contando a volta, cerca de 4 ou 5 horas. Centenas de fotógrafos queriam revelar filmes e a Kodak não dava vazão ao
volume de filmes, esperávamos cerca de 4 horas.
Ou seja, umas 9 horas todo o processo. Fora que
tínhamos de scanear, jogar no computador e mandar. Já em 2004, na Grécia, na mesma competição, o Grael repetiu a medalha de ouro e, quando
ele levantou a bandeira, todo mundo clicou e da
própria lancha as fotos foram transmitidas através de laptop, tudo enviado em 10 minutos, graças à tecnologia digital. A qualidade é excepcional e para o jornalismo, de um modo geral, foi
uma mão na roda absurda. Nesse sentido foi maravilhoso. Mas eu uso os dois. As galerias e museus ainda não aceitam as digitais. Apesar da
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
qualidade das digitais, as diferenças ainda
são grandes. A foto feita com analógicas tem
textura diferente, contrastes diferentes.
Classe - Conhecemos suas maravilhosas fotos, sua ousadia em conseguí-las, mas e os
erros? Você já perdeu alguma foto?
Evandro – É o cotidiano das ruas que
ensina, o dia-a-dia. E esse cotidiano nunca deixa a gente voltar de mãos vazias
para o jornal. Os erros acontecem, mas
sempre nos ensinam, surpreendem e a
foto acontece. Nunca disse que não dava,
e estou sempre tentando superar os erros na vida e no trabalho.
Eu fico revoltado quando vou fazer uma matéria e mandam somente
o fotógrafo. Pelo amor de Deus!
Classe - Como você avalia o fotojornalismo de hoje?
Evandro – De maneira geral, o jornalismo
mudou muito. Os jornalistas estão mais acomodados, não possuem a dinâmica de antes.
Não sei se é o baixo salário, infra-estrutura ou
a falta de brilho e paixão das gerações atuais.
Antes, jamais saíamos para uma matéria importante sem termos quatro ou cinco dias para
pesquisar sobre o assunto. Hoje tudo é para
agora, correndo. Hoje tem releases para tudo,
as assessorias mandam tudo, o que gera mais
acomodação entre os jornalistas. Eu fico revoltado quando vou fazer uma matéria e mandam somente o fotógrafo. Pelo amor de Deus!
O jornalista precisa estar presente, como é que
vai escrever sem sentir e ver o que está acontecendo? Muitas vezes é o fotógrafo que precisa apurar a matéria e contá-la ao repórter. Ima-
gina quantos problemas isso gera? Sem contar
que a matéria fica fria quando se faz por telefone ou release. Como é que se faz uma matéria sobre um desabamento sem estar no local
conversando com as pessoas? E mais, antes
havia uma equipe formada pelo repórter, fotógrafo e motorista, aliás, muito importante na
sugestão de pautas que rendiam muitos furos
de reportagens. Hoje, nossa profissão está decadente. Mas não é só com jornalistas não, todas as profissões vivem um momento de grande
decadência. A acomodação contribui para isso.
Classe - Sua câmera foi uma arma contra a Ditadura. E hoje, contra o que ela luta?
Evandro – Minha câmera continua lutando contra tudo. Se estou numa passeata, num tiroteio,
nunca penso que vou deixar de fazer meu trabalho
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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porque estarei incomodando à polícia ou aos políticos. Estou aqui para fazer meu trabalho e meu trabalho é denunciar o que está errado e o que está
errado é a injustiça. Esse é meu ponto de vista.
Classe – Como é cobrir a violência no Rio hoje?
O que você viu mudar no que se refere à relação da reportagem policial?
Evandro – Certamente antes nós tínhamos
mais facilidade para entrar em favela, o que não
acontece hoje. Nos dias atuais, a imprensa não é
bem vista e muitas vezes retaliada. Acho que o
que mudou é que antes nós servíamos de apoio
para a comunidade e hoje não. Muitas vezes subi
a favela da Mangueira, naquela época, com
amigos estrangeiros para beber um chopinho no
alto da comunidade. Hoje isso é impossível.
Classe - Você diz que o livro é uma homenagem
aos fotojornalistas que viveram essa época no JB
e cita especialmente alguns. O grupo é masculino. De lá para cá, a mulher conquistou muito espaço no fotojornalismo. Como foi acompanhar isso?
Evandro – É uma homenagem a esses grandes fotógrafos que trabalharam comigo. A maioria está
morta. Mas a mulher conquistou espaço em todos os
lugares. A primeira vez que uma mulher entrou no
gramado do Maracanã, ela foi vaiada e teve que sair.
Hoje as mulheres são radialistas, são fotógrafas dentro do gramado, são policiais e temos grandes fotógrafas. A Cíntia Brito foi uma das primeiras e um
grande nome do fotojornalismo. Hoje temos a Miríam Fichtner, a Marcia Folleto, mulher corajosa e arretada. Foi maravilhoso ver isso na fotografia e no
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texto, eu diria que uma mudança radical, porque
cerca de 70% das redações é composta por mulheres.
Classe - E o JB, uma vida inteira dedicada a este
jornal e vendo-o passar por tantas mudanças, o
que você pode dizer sobre isso?
Evandro – O JB ainda é um jornal respeitado
no Brasil. Claro que não é mais aquela grandiosidade. Tínhamos 52 funcionários só no departamento de fotografia e hoje temos 12, tudo precarizado. As mudanças foram radicais em todos
os sentidos. Mas o jornal continua tentando chegar cada vez mais perto do que foi um dia.
Classe – Desde que a primeira fotografia foi produzida em 1825, pelo francês Joseph Nicéphore Niépce,
ela estaria envolvida no debate entre técnica e arte.
Naquela época, para se reproduzir uma imagem foram necessárias oito horas de exposição à luz solar.
Hoje, as digitais calculam tudo e, quanto mais avanços tecnológicos, mais polêmicas. A fotografia é arte?
Evandro - Como escreveu Otto Lara Resende no
prefácio do meu primeiro livro: “estas fotos são mais
que simples flagrantes, captam uma imagem, sua
luz, sua sombra, seu volume e seu vazio. Mas captam igualmente o tempo, um certo tempo e o espaço,
um certo espaço. Daí a densidade deste documentário, que fala do nosso mundo e fala de quem o viu, de
quem o fixou... quer-me parecer que é a isto que se
chama arte”. Ou o poeta Carlos Drummond de Andrade: “A fotografia - é o codinome da mais aguda
percepção que a nós mesmos nos vai mostrando e da
evanescência de tudo edifica uma permanência, cristal do tempo no papel”, é arte... só pode ser.
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
A UFF na passeata dos 100 Mil
Foto: Stela Guedes
Entre as 100 pessoas selecionadas para o livro de Evandro Teixeira, três
tinham ou têm ligação com a UFF. Em 68, Arnaldo Snaiderman e Gilberto Brasil estudavam engenharia na UFF. Mucio Continentino cursava
Física na PUC-Rio e hoje é professor da Federal Fluminense. Muitos que
lecionam ou lecionaram na UFF participaram da importante manifestação
e também não foram mencionados no livro. Das quatro professoras que
soubemos que estiveram no ato, apenas Maria Lidia se reconhece e se
localiza na foto, as outras não encontram sua imagem, mas estiveram lá,
no instante flagrado, exatamente onde deviam estar.
“Naquela época, eu estava no 1° ano do Serviço Social. A entrada na universidade e o meu desejo de “melhorar as injustiças sociais” me moveram
para este curso. Para mim, a passeata teve o sentido de tornar visível com
os nossos corpos em presença e união, nossa discordância radical, nossa
resistência, nossa recusa à Ditadura Militar. Hoje, vejo uma distinção
importante entre o tempo da ditadura e o de normatização democrática.
No entanto, as desigualdades sociais se ampliaram, fato que me faz permanecer lutando por transformações reais na sociedade brasileira como
professora e militante na formação política junto às classes trabalhadoras. Na universidade (UFRJ ) - em curso destinado ao MST e fora dela, em outros cursos e atividades de formação”.
Maria Lidia Souza da Silveira, professora aposentada
da UFF e professora da UFRJ (Serviço Social)
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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Foto: Marcelo Salles
“Em 1968, eu era recém-formada em História pela UFRJ e estudava Psicologia na
UGF. Tinha um filho pequeno que no dia da passeata teve uma crise asmática e o
deixei na casa dos avós. Minha mãe disse que eu era uma mãe desalmada. O sentimento reinante na passeata era um misto de indignação contra o regime autoritário,
a cassação de direitos, as prisões e de alegria por estarmos ali. Mas não dava para
imaginar o terror que viria com a decretação do AI-5, uma espécie de terrorismo de
Estado. Isso que hoje atinge as comunidades pobres, só que com a classe média. Discordo dessa idéia de que hoje não existe mais movimento social ou utopia. Essa imagem é construída pelos meios de comunicação de massa como forma de invisibilizar os
movimentos sociais, gerando apatia e conformismo”.
Maria Cecília Coimbra, professora aposentada da UFF e presidente do
Grupo Tortura Nunca Mais
“Manhã tão bonita manhã. O dia nasceu bonito. Amei ser mãe mais um
dia. Minha filha, Maja, nasceu no dia 1º de abril daquele 68. À tarde, saí
com a madrinha dela para ir à passeata. O pai, envolvido na organização,
não tinha nem dormido em casa. A situação era tensa, mas o medo, o
grande medo, só viria no final desse ano, no dia 13 de dezembro, com a
decretação do AI-5. Busquei chegar à praça, por vias laterais, para sentir o
‘clima’. Ao chegar, encontrei a Cinelândia maravilhosamente cheia de gente. Não lembro de ter ‘visto’ o Vladimir discursando, nem muito menos
aquela corrente de braços dados de gente jovem e não tão jovem, já ‘famosa’, que é mostrada abrindo a passeata que se formou para ir até a Candelária. Confesso que as lembranças do grande medo e de seu dia inaugural
são muito mais vívidas em mim. De alegria, as lembranças são do “Comício da Central”, em 1964, ou do “Comício das Diretas”, na Candelária, em
1984. Nesta foto, estou com Maja, já no exílio, na França, na Páscoa de 78".
Nilda Alves, professora aposentada da UFF e professora da UERJ (Educação)
“Eu era estudante na época. Fui para a passeata grávida de cinco meses de minha
filha Luciana, que hoje é professora do departamento de Psicologia, na Universidade
Federal do Ceará. Nesta foto, estou com ela, na sua formatura, em 1992. Não dava
para ficar fora e a passeata foi um momento muito importante para resistir e enfrentar a Ditadura Militar. Eu andava e, sempre que podia, parava um pouquinho para
sentar no chão e descansar. Nem pensei em desistir, em ir para a casa. Nosso lugar
era ali, juntos. Eu era da Ação Popular, mas não era liderança. Ajudei a esconder
muita gente perseguida e, uma vez, o Betinho que era líder da AP, saiu do Brasil no
meu fusquinha 67. Não me arrependo de nada.
Não acho que lutar por um novo mundo, com menos injustiças sociais seja coisa “só
de jovem”. Hoje as lutas continuam e muita gente que era jovem naquela época
continua lutando, inclusive nós, professores nas universidades. Ainda há muita coisa
para se sonhar e mudar”.
Lilia Lobo, professora da UFF (Pisicologia)
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MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
L U T A R M A D A : a arte
com os oprimidos
Mimil e Gas-PA, do grupo O Levante, do coletivo LUTARMADA.
Tudo começou com reuniões de amigos de
vários grupos de hip hop, nos domingos de 2004,
para tomar cerveja e escutar rap. Depois, vieram
as exibições de filmes seguidas de debates, que
acabaram inspirando a composição de uma série
de novas músicas. Assim surgiu o Coletivo de Hip-
Hop LUTARMADA, definido por seu fundador, o
cantor e compositor Gas-PA como um “grupo de
grupos” que reúne Mestres de Cerimônia (MCs),
Disc-Jóqueis (DJs), grafiteiros, B-boys e B-girls
(dançarinos de break, a dança do hip-hop), que
buscam, através do movimento, difundir uma
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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mensagem transformadora voltada para a superação das desigualdades sociais.
O próprio Gas-PA confessa que já começou
essa história de cervejinha do fim de semana “com
segundas intenções”, já que pretendia transformar
os encontros em “algo mais sério”. Foi então que sugeriu que a cervejada seria antecedida por exibições de filmes, que sempre acabavam desaguando
em debates. Os filmes escolhidos tinham geralmente relação com a realidade social miserável em que
vive boa parte da população brasileira. Sob essa
inspiração o grupo decidiu que seu objetivo principal seria fazer com que as pessoas enxergassem
a realidade desigual em que vivem os pobres desse
país. “A gente foi batalhando outras formas de fazer com que o nosso povo debatesse outras coisas
além do que já debatia no cotidiano. Ninguém precisa parar de discutir qual é o próximo paredão do
“Big Brother”,
quem vai ser o
campeão carioca, quem vai
para a Libertadores, quem matou Odete Roitman... pode discutir isso tudo,
mas vamos discutir também
outras coisas
que são mais importantes no nosso dia-a-dia. Foi
assim que surgiu o LUTARMADA”, explica Gas-PA.
Apesar da existência de grupos como o LUTARMADA, se engana quem pensa que a politização é regra geral no mundo do hip-hop. Segundo o rapper, as pessoas já há algum tempo ten-
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dem a separar cultura hip-hop de movimento hiphop. Algumas até negam sua existência como
movimento. O LUTARMADA, pelo contrário, se
define, inclusive, como um “coletivo de trabalho
político”, diferente da imagem normalmente veiculada pela mídia. Talvez por isso, de acordo com
ele, o hip-hop seja o movimento mais desmoralizado do planeta. “Nem o MST aqui no Brasil é tão
desmoralizado quanto o hip-hop. Você não vê o
MST na televisão com tanta freqüência como você
vê o hip-hop e toda vez que você vê o hip-hop na
TV ele está deformado. Cerca de 99% das vezes, o
hip-hop vai ser associado a uma imagem de mulher ou de homem: se for mulher, quase nua; se
for homem, com o tórax desnudo... muita bunda
de fora, muito peito de fora para que as pessoas
compreendam que o hip-hop é aquilo ali somente: um movimento acéfalo”, critica o compositor.
Brotando do chão da periferia
A indignação se transforma em poesia
Que desvenda os olhos
E destapa os ouvidos
Pra fatos esquecidos ou que estavam escondidos
Como a guerrilha do Araguaia no regime militar
Pedaço da nossa história que a imprensa não pôde
contar
(trechos do rap Rimas da libertação)
A pergunta que fica é: se o hip-hop originalmente era comprometido com a transformação social, o que desencadeia a sua deformação? Para
Gas-PA, a investida do capital contra o hip-hop foi
muito pesada. A partir dos anos 90, o rap, que nascera como música combativa em reação à opressão
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
vivenciada pelos negros nos Estados Unidos,
passa a ser alvo da cooptação do capital. Segundo ele, esse processo já havia acontecido com uma
série de outros ritmos musicais: jazz, rock, soul e
funk, todos teriam sido absorvidos pela classe
dominante branca e domesticados. Nos anos 90,
foi a vez do rap. Hoje, o chamado “gangster rap”
americano, definido por Gas-PA como de caráter
auto-destrutivo, é majoritário no meio do hip-hop.
Para ele, essa vertente prega o uso desenfreado
de drogas e bebidas, a rivalidade entre pessoas
de regiões diferentes, a ostentação e o machismo. “Nos clipes, há sempre carros e jóias caras,
além de muita bebida. Nas letras das músicas, a
mulher é tratada de maneira degradante, como
mero objeto sexual.Certamente essa descrição é
familiar a qualquer um que tenha MTV em casa”,
diz Mimil, também integrante do grupo.
Nadando contra a corrente nessa maré desfavorável, o LUTARMADA continua afirmando o
hip-hop como um movimento e produzindo arte de
caráter contestatório. Além do rap, o hip-hop engloba mais três modalidades de expressão artística: a dança (break), o DJ e o grafite. As quatro
artes se juntaram com o objetivo de passar uma
mensagem transformadora às pessoas e é nisso que
o LUTARMADA acredita. “As artes envolvidas no
hip-hop nasceram separadas, mas aí veio um DJ e
propôs que tudo se juntasse porque o cacetete que
batia no MC era o mesmo que batia no DJ, no grafiteiro; o hospital que atendia precariamente o MC
atendia igualmente ao grafiteiro, o MC e o DJ. A
união veio numa perspectiva de ajudar na conscientização das pessoas”, revela Gas-PA.
Apesar das dificuldades, o LUTARMADA vai
muito bem e cresceu bastante. Hoje reúne DJs,
MCs, grafiteiros e, atualmente, está formando B
Boys e B Girls numa oficina em Costa Barros. “Joaninha, Perfumado, Belinha, Juliana, Raven, são
nomes que prometem emergir nas rodas de break, em breve”, arrisca Gas-PA.
Dentre os diversos grupos que fazem parte
do LUTARMADA, está o grupo de rap O Levante,
do qual GAS-PA é compositor e vocalista, ao lado
do seu parceiro Mimil. O Levante, que já lançou o
CD “Temeremos mais a miséria do que a morte”
prepara agora um outro CD. As letras das músicas são explícitas em sua opção pela luta popular
e pela revolução, sem qualquer vacilo. Em pelo
menos quatro letras do primeiro CD, há várias
referências ao capitão Carlos Lamarca, que aderiu à luta armada contra a Ditadura militar brasileira e foi assassinado pelo exército. Aliás, uma
das várias tatuagens de Gas-PA é justamente o
rosto de Lamarca em seu braço direito. “É preciso
relembrar nossos verdadeiros heróis negligenciados pela história oficial”, afirma Gas-PA.
Como o nome do coletivo suscita muita polêmica porque sugere que só através de uma revolução armada as desigualdades sociais seriam
resolvidas, o compositor finaliza: “Eu não acredito que vamos acabar com a pobreza pedindo
ajuda ou consciência aos ricos como muitos
acham, inclusive alguns que se dizem artistas
comprometidos com a transformação. O problema do Brasil não é a pobreza é a riqueza concentrada nas mãos de uns poucos que não vão
largar o osso só na conversa. Nossa logomarca é
uma pessoa lendo um livro. Uma puta arma o
conhecimento e a educação, ou não? Mas, que
cada um se rebele e se arme, como digo na música, com as armas que sabe usar.”
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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Fotos: Stela Guedes
A crítica política no humor
da Cia Emergência teatral
Falar sobre a reestruturação produtiva do mundo do trabalho e os aumentos dos acidentes causados
pela terceirização ou denunciar a máfia do mensalão e
os assassinatos no campo em nosso país. Mas nada de
texto pesado no velho “sindicalês”. Tudo tem de ser
bonito, traduzido em linguagem simples e muito, mais
muito bem humorado. Para quando? Para ontem, claro! Ou no máximo, para amanhã de manhã, na porta
de alguma fábrica, no meio da rua, no hall de um
banco ou no pátio da escola. O trabalho impossível é
feito há 17 anos por um grupo de atores que transformou a pressa e a correria de quem os contrata no
próprio nome da Cia: Emergência Teatral.
Tudo começou em 1991, quando o Sindicato dos
Bancários do Rio chamou o ator Marco Hamellin para
interpretar o personagem Walter Mentira Salles, uma
paródia com o dono do Unibanco, Walter Moreira Salles. A encenação, uma entrevista ao vivo com o personagem, fez tanto sucesso que Marco passou a ser chamado para todas as atividades do sindicato nos bancos. “A loucura era tanta que os caras me ligavam às
22h para fazer um esquete na manhã seguinte. Mais
emergencial não podia ser. Chamei, na época, Dila
Guerra e Anita Terrana para formar uma equipe.
Nosso nome surgiu da realidade em que fomos construídos desde o início”, revela Marco, o mais antigo
integrante do grupo, formado atualmente também pelos
atores Fátima Patrício e Pedro Ozella.
De lá para cá, o “Emergência” foi conquistando
cada vez mais espaço e atualmente é conhecido por praticamente todos os movimentos sociais, estabelecendo
uma relação extremamente fecunda. Por um lado, o
grupo se alimenta da imensa diversidade de assuntos
para criar personagens, figurinos, roteiros, encenações.
Por outro, os movimentos abrem novos caminhos na
sua própria atuação e relação com trabalhadores e trabalhadoras, esgarçam velhos preconceitos contra a arte
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Apresentação da Cia em manifestação no Centro do Rio.
e, principalmente, contra o humor. “Acho que uma das
principais dificuldades é fazer com que a entidade que
nos contrata entenda que o cachê pago não se refere
apenas aos 15 minutos que em geral duram os esquetes,
embora façamos apresentações de uma hora também.
Existe um preparo árduo que é anterior e consiste em
transformar um texto muitas vezes difícil e impenetrável em uma história divertida e clara. Há o desgaste
físico, principalmente da voz, há a confecção de figurinos, tudo isso faz parte do trabalho”, conta Marco.
Em tempos em que a busca frenética por patrocínios e financiamentos por vezes transforma a cara e o objetivo de muitos grupos de teatro, o “Emergência Teatral”
também parece ir na contra-mão. Sem qualquer financiamento, o grupo conta apenas com o que recebe por trabalho encomendado e com doações que resultaram em
um imenso acervo de figurinos e adereços. “O apoio mais
constante vem do Sindicato dos Bancários, que nos abriga até hoje e que sempre apostou em nosso trabalho. Quando precisamos de coisas novas para um determinado pedido incluímos no preço e o próprio contratante paga”, diz
Marco. O paradoxo é que mesmo sem patrocínio, o grupo
vive de teatro e do seu teatro. “Todos nós vivemos da Cia.
Com alguns bicos por fora, é claro. O que acontece é que
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
a Cia. cresceu tanto que não trabalhamos mais só para
entidades. Muitas empresas nos contratam para fazer
esquetes sobre AIDS/DST, qualidade de vida e modernidade, alcoolismo, tabagismo, ergonomia e doenças de trabalho como Lesão por Esforço Repetitivo (LER), por exemplo. Claro que existem períodos em que as vacas ficam
magras, mas são poucos, graças a Deus”, revela o ator.
Para representar: esquecer e lembrar
Então, como criar personagens da noite para o dia e
textos que atendam a demandas específicas e urgentes de
categorias tão diferentes como professores, petroleiros,
metalúrgicos, bancários ou movimentos de mulheres, negros e Sem Terra? O caminho, explica Marco, foi criar
uma galeria de aproximadamente 72 personagens. “Os
usamos de acordo com a demanda e adequação dos temas
a serem abordados. O fato de termos um elenco fixo faz
com que cada ator já saiba qual é e como fazer seu personagem em determinada situação. É como dizer que cada um
já tem os seus bonecos e o que muda é o texto, que varia
muito. Mas isso é treino”, afirma o ator,
revelando também que cada integrante do grupo é capaz de decorar dez, doze
páginas em meia hora, mas é capaz de
esquecê-las mais rapidamente ainda. “É
preciso deletar para caber mais coisa
na memória”, conta.
Mas há coisas que o grupo
não esquece facilmente, entre elas,
o momento considerado mais importante para a Cia. “Quando fizemos o esquete do massacre dos Sem
Terra em Eldorado dos Carajás, em
1996. Foi a primeira vez que a Cia
não fez humor. Era uma enorme
bandeira brasileira toda ensangüentada que nós limpávamos enquanto reproduzíamos as notícias de jornal e depoimentos dos Sem Terra.
Ufa, de chorar!”, lembra Marco.
Nessa relação de simbiose entre o movimento e o
grupo, Marco avalia que a Cia aprendeu no desafio do
improviso para um público que precisa ser conquistado
rapidamente onde quer que armem seu “palco”. “Não é
fácil encarar uma platéia que não pediu para assisti-lo e
que, às vezes, nem quer ou não tem tempo e segurá-la
durante vinte minutos numa praça cercada por passantes e o barulho pesado de trânsito. Esse fazer teatral precisa sempre de identificação com a causa da entidade que
nos contrata, senão, não rola”, garante o ator para quem
o balanço desses 17 anos é extremamente positivo. “Acho
que ajudamos a organizar e a discutir o pensamento para
que os trabalhadores reflitam mais criticamente e queremos continuar fazendo isso”.
Além de manter as atividades no grupo, Marco
Hamellin tem planos de lançar um livro quando a Cia
completar 20 anos. A idéia é falar de um período do movimento sindical, através do teatro a partir das fotografias
da Cia. Se o teatro vem ajudando a construir novas formas
de relações entre as entidades e suas categorias, quem sabe
possa também ajudar a contar essa história.
O ator Marco Hamellin, em um de seus muitos personagens
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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Mídia e Política
Lucro e controle
no carnaval carioca
Marcelo Salles
Jornalista
No terceiro dia de fevereiro deste ano, um
domingo, teve início o carnaval carioca. Antes
do primeiro desfile, o puxador da São Clemente
pegou o microfone e dirigiu ao público uma saudação emocionada. E enquanto falava sobre a
alegria de estar ali e coisas afins, a câmera da
única emissora de televisão que transmitiu o
evento captou uma imagem simplesmente impagável: um funcionário da TV Globo, devidamente identificado, pega o cantor pelo braço e
tenta virá-lo de frente para a câmera, o que só
é conseguido após alguns demorados e constrangedores segundos. Ato contínuo, ele puxa pelo
braço os homens da equipe de apoio, que trazem na camisa a inscrição “Controle” sob o logotipo da Prefeitura do Rio. Nada mais significativo: era a Globo dizendo onde, quando e como
o cantor popular (representante do povo) e o
poder público deveriam se posicionar durante a
maior festa popular do planeta.
Dia seis de fevereiro, quarta-feira de cin-
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zas. Novamente as câmeras da TV Globo voltam suas atenções para a Praça da Apoteose.
Dessa vez, o foco principal é a mesa da BeijaFlor de Nilópolis, que lidera a competição do
início ao fim. Com o samba-enredo sobre Macapá, capital do Amapá, a escola da Baixada
Fluminense arrancou o quinto título em seis
anos – sendo que o anterior foi marcado por
muitas suspeitas de corrupção, ameaças e chantagens contra os jurados (veja texto de apoio).
Custa a acreditar que os locutores da Globo conseguiram a proeza de não mencionar o
nome de Aniz Abrahão David, o Anísio, que estava no centro da mesa da Escola de Nilópolis
e ao lado do cantor e compositor Neguinho da
Beija-Flor, este sim citado à exaustão. Anísio
não é um desconhecido para os locutores da
emissora. E o foco da câmera, que insistia em
exibir seu rosto, contrastou com o silêncio daqueles que deveriam informar ao público o que
lhes era apresentado pela imagem. Trata-se de
um indivíduo recém-libertado pela Operação
Hurricane da Polícia Federal, que foi preso no
ano passado junto com Ailton Guimarães Jor
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Foto: Mauricio Seidl
ge, o Capitão Guimarães, por envolvimento com
caça-níqueis, jogo do bicho e as ramificações
criminosas daí advindas, como geralmente tráfico de drogas e armas e grupos paramilitares. O
bicheiro está solto por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello.
Talvez essa vista grossa possa ser esclarecida pelo escritor Roméro Machado, que trabalhou durante dez anos na Fundação Roberto Marinho, onde alcançou a posição mais alta, a de
controller. Romero também foi assessor especial
do vice-presidente das Organizações Globo, José
Bonifácio Sobrinho, o Boni. Em seu livro A Fundação Roberto Marinho, publicado em 1988, ele
afirma que Boni possuía laços com a criminalidade: “Boni também era um dos que tinham notas enfiadas [frias] na Fundação, sem falar de
sua porção ‘bandido’ com ligações com o submundo do crime (bicheiros, gângsteres, etc.) onde o
grande ‘capo’ da criminalidade, Castor de Andrade, era simplesmente ‘irmãozinho’ do Boni”.
De lá pra cá, o monopólio da Globo sobre o
carnaval carioca aprofundou-se. De modo que um
mês antes dos desfiles deste ano a Cidade do Samba já se assemelhava a um set de filmagens. Funcionários vestidos com uniforme da Rede Globo estendiam cabos e fios dos mais variados tipos e tamanhos, num emaranhado de fazer inveja à gravação de qualquer novela. O aparato contava também com três furgões para entradas ao vivo. “Qualquer outra TV que quiser entrar aqui tem que pedir autorização para a Globo, a administração (da
Cidade do Samba) já manda direto perguntar para
a Globo”, relatou um funcionário da Prefeitura.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
Desfile da Beija-Flor,em 2008
49
A CPI do Carnaval
Em abril de 2007, a Polícia Federal divulgou indícios de
manipulação no resultado do desfile das Escolas de Samba do Grupo
Especial daquele ano. A partir daí, a Câmara dos Vereadores do Rio
de Janeiro instalou CPI para investigar as denúncias. Durante 120
dias foram analisados documentos encaminhados pela PF, o material veiculado pela imprensa e todos os contratos e participações
realizados pela Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de
Janeiro (LIESA), assim como o contrato firmado pela mesma Instituição e a Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro S.A
(RIOTUR).
A CPI ouviu os jurados, o atual Presidente da LIESA, Jorge
Luiz Castanheira Alexandre, que ocupava o cargo de Vice-Presidente
em 2007; o Presidente da LIESA no Carnaval de 2007, Ailton Guimarães Jorge, mais conhecido como Capitão Guimarães; o coordenador de jurados no Carnaval 2007, Júlio César Guimarães Sobreira; a
secretária pessoal de Júlio César Guimarães Sobreira, Jacqueline da
Conceição Silva; a secretária da Presidência da LIESA, Janice Regina
Prist Teixeira, o Diretor-Presidente da RIOTUR, Luiz Felipe Bonilha,
e o Presidente de Honra da Beija-Flor, Aniz Abrahão David, o Anísio,
que presidia o Conselho Deliberativo da LIESA no Carnaval 2007 e
também é conhecido.
Durante os depoimentos, os vereadores constataram diversas contradições. A primeira refere-se à seleção de jurados. Alguns
deles afirmaram ter enviado currículo para a LIESA, enquanto outros
alegaram ter recebido convite ou indicação. Outra contradição ocorreu em relação à entrega do “Kit Jurado”, que contém o caderno das
notas. Ocorre que os jurados ouvidos pela CPI disseram ter recebido
o Kit nas instalações da LIESA, o que está em desacordo com o
50
depoimento da secretária do Coordenador de Jurados, Julio César
Guimarães Sobreira. Esta senhora, Jacqueline da Conceição Silva, a
encarregada de entregar os kits, afirmou enviá-los através de
motoboys para a residência dos jurados.
Além disso, o relatório final da CPI, divulgado no final de
fevereiro deste ano, afirma que uma das juradas mentiu e teve
comportamento antiético. “A julgadora Cris Moura, em seus depoimentos, faltou com a verdade e deixou claro o seu envolvimento
profissional com o coordenador de jurados, Júlio César Guimarães
Sobreira, e até evidências de um envolvimento sentimental entre a
jurada e o referido coordenador. Isso caracteriza, no mínimo, um
comportamento antiético e de conflito de interesses, nocivo à lisura
tão necessária à apuração do resultado do desfile das Escolas de
Samba do Grupo Especial”.
Por fim, a CPI constata que o contrato realizado entre a Prefeitura do Rio e a LIESA é extremamente lesivo aos cofres públicos, que
teriam prejuízos de aproximadamente R$ 100 milhões. Chamou a
atenção dos vereadores o fato de que o contrato permita, ainda, que a
LIESA negocie, direta e livremente, o milionário direito de imagem
com as emissoras de televisão. “Nesta questão causam estranheza dois
fatos: o de a LIESA realizar e assinar um contrato válido por cinco anos com
a REDE GLOBO (até 2009), quando o contrato firmado entre a Liga e a
Prefeitura é realizado anualmente; e o da coincidência do término deste
contrato entre a LIESA e a REDE GLOBO e o término do mandato da
atual administração municipal, considerando que o contrato entre a
Prefeitura e a contratada para o Carnaval de 2009 é firmado ainda em
2008”, concluiu o relatório, que foi enviado para o Ministério Público
estadual e para o Tribunal de Contas do Município.
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Filmes
Centralidade do trabalho: humanismo
e barbárie em Le couperet (O Corte)
M. Cristina Miranda da Silva
Professora do CAp-UFRJ e presidente da ADUFRJ
Ao longo das últimas décadas, as alternativas burguesas para suplantar a crise do capitalismo têm incidido sobre o mundo do trabalho objetivando destruir todas
as conquistas da classe trabalhadora ao longo do século
XX. Mas não basta retirar direitos. Para levar adiante a
ofensiva do capital precisam quebrar toda idéia de solidariedade de classe. Por isso, celebraram a idéia pós-moderna do fim da centralidade do trabalho, tanto como
categoria analítica como forma de sociabilidade humana. Nesse quadro, homens e mulheres não mais se referenciariam nas suas classes sociais e suas lutas para
alterar a realidade histórica. Esse é o pano de fundo do
filme Le Couperet (O Corte) de Costa Gavras (2005) que,
conforme já assinalou Ignácio Ramonet (2005), pode ser
compreendido como “uma espécie de conto moral contemporâneo no sentido que lhe dava Voltaire, (...) uma
situação amoral para melhor fazer ressurgir em nós o
sentido moral”.
O filme apresenta a vida de um executivo francês
especializado no ramo do papel, Bruno Davert (José Garcia), de 41 anos. Desempregado havia 2 anos, sem ter conseguido retornar ao mercado de trabalho em sua área de
atuação, decide eliminar, um a um, seus concorrentes potenciais. No filme, a empresa de papel reciclado – Papéis
Kamer – sofre uma fusão, reduzindo seu pessoal e se deslocando para a Romênia - “onde se trabalha por 3 vezes
menos”. Uma ‘reestruturação produtiva’, na qual os acionistas, antes da ‘deslocalização,’ às custas de centenas de
demissões, ganham um bônus de 16%. O diretor grego
apresenta um painel de um dos maiores problemas do
Bruno Davert (José Garcia) é um engenheiro especialista em
papéis que perde seu emprego.
atual estágio do capitalismo: o crescente desemprego, suas
conseqüências e reverberações na sociabilidade humana.
As novas relações de trabalho
Para a pesquisadora Danièle Linhart (2006), é
preciso que se compreenda o que mudou nas condições
de inserção social/trabalho. Em contraposição à antiga
‘classe operária’ que se mobilizava e lutava coletivamente para obter conquistas trabalhistas, expressando seus valores de solidariedade e resistência de forma
autônoma, na nova fase do capitalismo “as ‘novas’ relações de trabalho destróem a solidariedade, invadem o
espaço privado, solapam relações com amigos e família
e impõem uma ética que valoriza a submissão”.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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Em última instância, o filme de Gavras fala sobre
esta mudança. Apresenta a vida dos trabalhadores sendo
corroída em nome de uma racionalidade (?) econômica e
dos valores veiculados por ela. De acordo com Linhart
(2006), para impor a ideologia do individualismo e da concorrência, as direções de inúmeras empresas lançaramse numa “verdadeira batalha de identidade, com objetivo
de racionalizar e formatar a subjetividade dos assalariados”, que passaram a internalizar as pressões, os interesses e os valores da empresa como seus. Dessa forma, fica
mais difícil escapar da lógica de ‘rentabilidade’ das empresas a que estão submetidos os trabalhadores em sua
‘maneira de ser privada e pública’.
Para Mattos (2007), frente a um quadro de transformações profundas na economia capitalista em escala
internacional e do avanço generalizado das políticas neoliberais, ganha corpo entre alguns teóricos, a partir dos
anos 80, a idéia de que essas mudanças poderiam indicar
“o fim da centralidade do trabalho, no seu uso como categoria de análise ou na experiência de vida da maioria da
população”. A reflexão suscitada pelo filme de Gavras,
entretanto, nos envia ao caminho contrário do entendimento de que o trabalho estaria se tornando subjetivamente periférico e que não mais poderia conter o poder de
determinar a vida social dos indivíduos e dos coletivos:
“Tirando meu trabalho, me tiraram a vida”, diz
Davert ao personagem terapeuta, ainda que este insistisse em que o protagonista deveria “tirar uma mensagem
positiva do desemprego”. Gavras expõe as feridas abertas pelas teorias pós-modernas que entoam o discurso da
perda da centralidade do trabalho na vida do homem.
vítima com a qual Davert dialoga sobre o desemprego e a
crueza do avanço do capitalismo. Davert avaliava, entretanto, que precisava continuar – “O corte de funcionários
é cíclico” – pois logo haveria novos concorrentes, embora
tivesse consciência dos reais inimigos – “Enquanto isso
as ações da empresa crescem”; “Eles [os acionistas] fazem
milhares serem demitidos de empresas saudáveis, para
dar mais aos gananciosos”.
A lógica imposta pela reengenharia e deslocamento territorial das empresas forja sociabilidades incompatíveis com o ‘fazimento’ da classe objetivando a sua constituição como classe para si. Assim, a questão é desviada
para os concorrentes: “Se eu matasse mil acionistas, não
adiantaria nada; ou 10 diretores que demitiram mil funcionários... eles são meus inimigos, mas não é problema
meu...”, conclui o personagem. A alternativa da eliminação dos concorrentes, nesse sentido, é a exacerbação dessa ruptura de classe e da própria sociabilidade do trabalho. “O Corte” é a lâmina da guilhotina (le couperet) que
vem cindindo o vínculo dos trabalhadores enquanto indivíduos com a sua classe. Uma ruptura com a classe, por
meio da navalha da reengenharia ou do “novo espírito do
capitalismo”.
As questões apresentadas por Gavras em seu personagem são complexas. “O que fazer?”, pergunta Davert. “Tornar os seres humanos o centro de tudo”, responde o interlocutor, “Mas é tarde demais”, conclui. Como no
conto moral volteriano, o filme é, dialeticamente, uma
exortação à recusa da barbárie capitalista. Todas as brechas para a afirmação do humano são alusivas às formas
históricas da luta dos trabalhadores. O corte pode ser com
o capitalismo?
O ‘Corte’ com o vínculo de ‘classe’
Sobre o estudo do processo de formação de classes,
Mattos (2007) ressalta a definição de E. P.Thompson de
que a ‘consciência’ de classe não é determinada a priori,
mas a partir das ‘experiências’ de classe “encarnadas em
tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais”. O desespero de Davert tem vínculo direto com a
relação que estabelece com uma de suas vítimas – o concorrente que trabalhava como garçom à noite, primeira
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*Fontes:
LINHART, Danièle. A caminho da desumanização. Le Monde
Diplomatique-Brasil, março de 2006. Disponível em: http://
diplo.uol.com.br/2006-03,a1265
MATTOS, Marcelo Badaró. Classes sociais e luta de classes.
Mimeo., 2007.
RAMONET, Ignácio. Un Conte Amoral. Le Monde Diplomatique,
março de 2005. Disponível em: http://www.mondediplomatique.fr/2005/03/RAMONET/11982
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Nossa Resenha
Juarez Duayer, Lukács
e a Arquitetura
João Leonardo Medeiros
Professor da UFF Economia
João Leonardo Medeiros *
O livro Lukács e a Arquitetura, de
Juarez Duayer, recentemente lançado
pela Eduff, pode ser tomado, por uma
leitura apressada de seu título, como uma
obra voltada exclusivamente para o
público interessado por Arquitetura e/ou
pela obra do intelectual marxista G.
Lukács. Não é preciso, contudo, avançar
muitas páginas para reconhecer no texto
indicações de fundamental relevância
para os leitores que se interessam não
apenas por aqueles dois temas específicos,
mas também por arte, ética e filosofia.
Quem, por outro lado, se lança à
leitura esperando encontrar um livro
sobre arte, ética e filosofia, vai descobrir
que o título captura sinteticamente a sua
temática central: a concepção lukácsiana
da arquitetura.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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É precisamente porque tal concepção, como sempre em Lukács, tem o suporte de uma profunda
análise da realidade social em seus momentos
decisivos é que o escopo da obra se amplia, cativando um público mais extenso do que o inicialmente contido num projeto sobre a arquitetura.
Uma das maiores virtudes de Duayer foi ceder
humildemente o espaço de sua própria análise
(que, diga-se de passagem, comparece em grandes e diversos momentos do texto) para resgatar
a riquíssima crítica de Lukács da arquitetura e,
por seu intermédio, da arte, da ética, da filosofia,
da sociedade capitalista etc.
Em se tratando do argumento do livro, o
que talvez seja marcante é a coragem demonstrada por Duayer ao resgatar a polêmica tese
de Lukács a respeito do desenvolvimento da arquitetura: a de que essa forma de arte atravessa uma crise de aproximadamente 300 anos
(período correspondente, grosso modo, à emergência das relações sociais que culminaram no
capitalismo), na qual a arte arquitetônica viuse impedida de expressar-se com autenticidade. Em lugar de diminuir a tese de Lukács, de
considerá-la absurda e sair em busca de alguns
insights pontuais – um caminho oportunista,
mas sem dúvidas mais fácil para tratar da obra
do autor –, Duayer enfatiza a tese de Lukács e
a alça ao seu devido lugar: o de momento conclusivo de um sofisticado argumento teóricofilosófico.
O ponto de partida do argumento de
Lukács, e da recuperação de Duayer, é a tentativa de estabelecer a peculiaridade do reflexo
estético arquitetônico. Três elementos se destacam neste particular. Em primeiro lugar, Lukács
54
observa que a arquitetura é, como a música, mas
de forma diferente, constituída por uma dupla
mimese (forma de reproduzir a realidade no pensamento). Na primeira, uma mimese técnico-científica, a arquitetura captura e expressa a real
constituição do mundo e as possibilidades nele
contidas de desenvolvimento (no caso “espacial”);
a segunda mimese, a mimese propriamente estética, nos termos de Lukács, “generaliza a missão social que vai amadurecendo nos indivíduos”, isto é, expressa a relação entre o ser humano individualizado num momento histórico particular e a sua constituição genérica.
A segunda e a terceira peculiaridades da
arquitetura a diferenciam de todas as demais
formas de arte. Quanto à segunda peculiaridade, trata-se do fato de que, na arquitetura, o
“novo” se manifesta não na categoria do “singular” (nas obras de arte em si), como nas outras formas de arte, mas na categoria do “particular” (nos estilos). É, portanto, o particular
arquitetônico que se relaciona com o “universal” (a arte, seu desenvolvimento e sua relação
com as relações sociais), e não o singular, por
intermédio do particular. Por fim, Lukács observa que a arquitetura tem um caráter necessariamente “positivo”, não podendo, como as
outras formas de arte, assumir uma negatividade crítica. Isso se deve ao fato de o reflexo
arquitetônico pôr no mundo um espaço, o espaço especificamente humano, de criar realmente
uma nova realidade, em lugar de simplesmente
refleti-la. A positividade da arquitetura, devese observar, a torna incapaz de refletir o ser humano e sua condição histórica concreta.
Reconhecida a peculiaridade da arquite-
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
tura como forma de arte, Duayer procura em
Lukács o fundamento da alegação de sua duradoura decadência. Dois elementos são decisivos aqui. O primeiro é a hostilidade do desenvolvimento das relações sociais capitalistas
à elevada subjetividade necessária à construção da arte “autêntica” (e também da ciência e
da filosofia): isto é, a arte que captura o que
podemos denominar de sentimento genérico do
ser humano. Lukács baseia-se aqui, explicitamente, na crítica ao caráter fetichista (estranhado) das relações sociais capitalistas, isto é,
na objetivação de relações sociais como relações entre coisas. O segundo elemento é a degradação do particular (classes sociais, laços comunais etc.) em favor das singularidades atomísticas (individualismo) que a sociedade capitalista promove tanto no plano objetivo
quanto no plano subjetivo. Como forma de arte
e como forma de arte em que o novo se manifesta como particularidade, a arquitetura é diretamente afetada pelas relações sociais capitalistas por essas duas vias: pelo fetichismo que
apresenta as relações sociais de forma invertida aos sujeitos, dificultando seu espelhamento
crítico nas diferentes formas de consciência, e
pela “degradação da particularidade”, como o
podemos chamar o segundo processo.
É preciso agora assinalar que a hostilidade do capitalismo “à arte e à poesia” não se manifesta da mesma maneira em todas as formas
de arte. Determinadas formas de arte, como a
música ou a literatura, podem atravessar momentos de grande florescimento artístico em
meio à hostilidade provocada pelo capital justamente por reagir ao fundamento dessa hostili-
dade, o caráter fetichista da realidade, a sua
desumanização imanente. A arquitetura, entretanto, se vê impedida de reagir ao mundo posto
pelo capital por conta do caráter necessariamente positivo de seu reflexo artístico. Explica-se
assim, finalmente, o fato de esta forma de arte
atravessar um longo período de decadência.
É claro que, mesmo na decadência, continua a haver arquitetura. Mas uma arquitetura cada vez mais instrumental, cada vez mais
preocupada em oferecer à vivência social criada pelo capital o espaço adequado, cada vez
mais se expressando no primeiro momento de
sua mimese (tecnológico) do que no segundo
(artístico). Trata-se, portanto, muito mais de
construções do que propriamente arquitetura.
De construções no plural porque reproduzem,
salvo alterações de menor importância (cores,
revestimentos, fachadas etc.), os estilos arquitetônicos (os particulares) postos no passado.
Não é pouco resgatar uma análise da
profundidade da leitura lukácsiana da arquitetura. Não é pouco defender com rara consistência argumentativa uma tese polêmica
como a de que a arquitetura atravessa 300
anos de decadência. Não é pouco defender a
posição de um autor como Lukács que, em sua
crítica de arte, foi acusado (injustamente) de
stalinista e de praticar um “classicismo”, “antimodernismo” e “antivanguardismo”. Juarez
Duayer é bem sucedido em todas essas tarefas. É impossível, por isso, não resistir ao chavão de qualificar seu livro como uma referência obrigatória para quem se interessa seja
por arquitetura, seja por Lukács, por arte,
por estética.
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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Histórias de Vida
Professora Aidyl de Carvalho Preis: uma vida
dedicada à Universidade Federal Fluminense
Foto: Stela Guedes
A história de vida da professora Aidyl
certamente se confunde com a própria história da UFF. De 1953, quando
inicia o curso de Geografia e História,
até hoje como aposentada, tem sido
uma vida inteira dedicada a esta universidade. Aidyl lecionou na UFF de
1957 a 1992 e exerceu nesse período
um amplo leque de atribuições: chefe
do Departamento de História, diretora
do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, fundadora e coordenadora, por
doze anos, do curso de pós-graduação
em história, vice-reitora da universidade e, depois de aposentada, pró-reitora de extensão e presidente e vice-presidente da Associação dos Professores
Inativos (ASPI-UFF), da qual é fundadora. Sua trajetória na UFF foi sempre
marcada por uma luta intransigente em
defesa da liberdade acadêmica, inclusive nos difíceis anos de chumbo da
Ditadura Militar. É com muita honra
que inauguramos nossa seção “Histórias de Vida” com essa lutadora.
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MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Brincando, Aidyl diz se sentir parte da
“pré-história” da UFF que, embora fundada oficialmente em 1960, já funcionava com faculdades isoladas. Da recém-criada UFF faria
parte, inclusive, a antiga faculdade de filosofia, ciências e letras de Niterói, onde Aidyl já
lecionava História Antiga e Medieval desde
1957. Desse modo, ela assistiu a criação do Departamento de História da universidade, do
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
mais conhecido como ICHF, e a fundação do
curso de pós-graduação em história. Com uma
invejável memória, a professora destacou alguns
momentos mais importantes de sua trajetória.
O dia 18 de fevereiro de 1963 é citado como especial porque participou da reunião realizada
na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFF para instalação do Departamento
de História do qual foi eleita secretária.
Neste ano, os movimentos sociais brasileiros estão organizando várias atividades para
marcar os 40 anos de 1968, considerado um dos
mais duros da Ditadura Militar Brasileira. Aydil,
que fazia pós-graduação em História, na USP,
participou ativamente da luta contra a ditadura. Logo após o decreto do AI-5 (13/12/68), ela e
todos os estudantes que moravam no Conjunto
Residencial da Universidade de São Paulo
(CRUSP), foram detidos. O episódio quase impediu seu casamento que ocorreria no dia 21 de
dezembro daquela ano, Aydil também faz questão de registrar que a criação do curso de pósgraduação de História da UFF ocorreu em 1971,
ainda no contexto do AI-5. “Naquele momento
as ciências sociais viviam uma fase de perseguição política. O exílio de professores e a pri-
Ilustração feita e gentilmente cedida pelo professor
Robert Preis, marido da professora Aydil
são de estudantes eram coisas que, infelizmente, faziam parte do cotidiano da universidade. Por isso, a criação do curso foi importante tanto pelo aspecto político como pelo acadêmico, uma vez que não havia no estado do
Rio de Janeiro nenhum curso de pós-graduação em história”, afirma.
Driblando a censura
“Muito difícil”: assim a Professora Aidyl
classificou o trabalho na universidade durante
a Ditadura Militar, já que “havia uma legislação
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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que impedia praticamente o exercício acadêmico livre, seja exigindo dos professores que
tivessem um ‘nada consta’ do setor de segurança, seja perseguindo alunos que eram considerados suspeitos.” Na época, além das disciplinas que lecionava na universidade, ela também se ocupou da direção do ICHF no período
de 1970 a 1974. Segundo a professora, exercer função administrativa na universidade naquela época era algo extremamente complicado, porém mais complicado ainda era abrir mão
dessa prerrogativa, deixando o caminho aberto para que alguém de fora cumprisse esse papel. “Ocupar cargos de direção nesse período
levava as pessoas a uma interpretação ambígua, como se todos os que ocupassem esses postos fossem coniventes com aquela situação. Não
era essa a nossa intenção. A nossa intenção era
exercer nossa função de professor e a função
administrativa de diretor buscando sempre defender os interesses de nossa categoria. Prova
disso é que criamos um curso de pós-graduação em História, que não era obviamente algo
que os militares fossem aplaudir. Conseguimos
também o reconhecimento do curso de Ciências Sociais. Essas duas frentes foram feitos importantes”, lembra.
Em sua gestão à frente do ICHF, destaca
a divulgação do trabalho científico da universidade. Isso porque, naquela ocasião, uma portaria do MEC obrigava todas as universidades
a manterem uma comissão que tinha como principal tarefa censurar a produção acadêmica.
Aydil integrou a comissão que, de acordo com
ela, rapidamente começou a fazer o oposto da
censura, estimulando a produção acadêmica.
58
Em síntese, ela caracteriza a época da Ditadura Militar como “um período muito difícil, marcado por uma vigilância contínua do serviço
de segurança da universidade, com imposição
de documentos que os professores deviam apresentar comprovando que eles não tinham nenhuma militância em partidos de esquerda, os
alunos eram perseguidos... Havia um clima
muito difícil, mas a gente, apesar desse clima,
pode apresentar alguns pontos que foram muito importantes”, diz.
Entre outras conquistas, ainda naquela
fase, a professora destaca o reconhecimento do
curso de Ciências Sociais, o que liberou a expedição de diplomas após vários anos de espera. Criou
e coordenou, por 12 anos, o curso de pós-graduação em História da UFF que, desde aquela época,
já havia obtido o conceito “A” na avaliação da
CAPES. Aquela foi, para alguns exilados, a primeira oportunidade de trabalho, quando, em muitos outros lugares, a repressão ainda pesava.
Já no período de reabertura política do
país, Aidyl ainda encontrou tempo e disposição para exercer mais um cargo administrativo na universidade e foi vice-reitora de
1983 a 1987, durante a primeira gestão do
professor José Raimundo Martins Romeu. De
acordo com ela, essa experiência foi importante porque lhe permitiu ver a universidade por outro ângulo, gerando reflexões sobre
o papel social que esta instituição deveria desempenhar. Nessa época, pôde ver as dificuldades decorrentes da ausência de políticas
públicas que consagrassem a Educação como
prioridade absoluta para o desenvolvimento
do que considera cidadania plena.
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Aposentada e na luta
Ela se aposentaria da universidade em
1992, portanto, em plena Era Collor, marcada
por intensa perda de direitos e precarização da
educação pública e do serviço público de maneira geral. Neste quadro, muitos professores
foram pressionados a se aposentar de maneira
precoce para evitar a perda de direitos adquiridos. Como ainda tinham muito a colaborar com
a universidade, esses professores fundaram em
92, a Associação dos Professores Inativos da UFF
(ASPI-UFF), um espaço para continuar na luta.
Desde então, as principais frentes de atuação
da ASPI-UFF têm sido a relação com a universidade, a melhoria da qualidade de vida dos professores aposentados e a defesa de seus direitos. Segundo a professora Aidyl, a ASPI-UFF
considera muito importante a sua inserção na
comunidade. Prova maior disso é que todos os
cursos e atividades desenvolvidos pela associação são abertos à comunidade. Ela destaca também a participação da entidade em conselhos
municipais, nos colegiados da universidade e até
em instituições de nível nacional, como a Federação Nacional das Associações de Aposentados e Pensionistas das Instituições Federais de
Ensino (FENAFE), e internacional, como a Organização dos Estados Americanos (OEA).
Desde a aposentadoria, Aidyl fez parte de
todas as gestões da ASPI-UFF, seja como vice-presidente, presidente e, atualmente, como 1ª vicepresidente (mandato 2007-2009). Convicta da importância da organização dos aposentados e pensionistas, presidiu a Federação das Associações de
Aposentados e Pensionistas das Instituições Federais de Ensino (FENAFE), sendo hoje presidente
do seu Conselho Deliberativo. Também participa
do Instituto MOSAP (Movimento dos Servidores
Públicos).
Entre 1996 e 1998 ela ainda arranjou tempo
para ser pró-reitora de extensão. Hoje segue dedicando sua vida à universidade e diz porque: “Nós
temos uma responsabilidade muito grande com as
gerações futuras. Cada geração tem um compromisso em relação ao legado que vai deixar. Afinal,
nós também tivemos um legado para chegarmos
aonde chegamos. Então, nós também temos que
dar uma contribuição, e temos que dar uma contribuição positiva para que a outra geração se beneficie. Eu acho que a minha geração foi uma geração de luta: lutou pela fundação da universidade, lutou contra a Ditadura, lutou pelo estabelecimento de uma academia qualificada... Isto a nossa geração, essa geração que hoje a ASPI representa, fez o seu papel. O que nós queremos é que
outros no futuro possam também fazer. Nós, graças a Deus, fizemos nosso papel.”
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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Eu sou uma preta
Poesia
Foto: Stela Guedes
Eu sou uma preta, muito negra brilhante cintilante,
faço verso com requinte para o deleite das pessoas que
amam a vida e fazem das tripas, coração para prosseguir ampliando a estética do mundo, que sabe Deus ou
“Olorum” pela perfeição de sua criação. Sou preta,
muito negra, faço verso muito prosa, por sermos assim
tão retintos, somos tratados a ferro e fogo, subvertemos
a ordem social que vigora silenciosamente onde o preto
quando chamado é somente para concordar.
Mãe fez roda no terreiro
A poetisa e escritora Ana Cruz nasceu em
Minas Gerais e mora em Niterói. Jornalista,
trabalhou durante algum tempo com assessoria na área de formação sindical, mas há muito percebeu que seu caminho teria a poesia
como companheira e como instrumento de expressão e intervenção na luta contra as desigualdades sociais, o racismo, a discriminação
contra a mulher. Inaugurando nosso espaço
reservado à poesia, ela deixa por aqui uma
amostra do que será seu quarto livro de poesia e prosa, em gestação e quase nascendo.
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Mãe fez uma roda no terreiro; sentamos, forrou no
centro uma toalha chique, colocou flores, fotografia de
bisavós, uma tigela de porcelana nigeriana e uma
elegante e majestosa galinha d’angola.
Tia avó entoou um canto com o que ainda restara do
Yorubá em sua memória, pôs a mão no peito,
e reverenciou a mesa.
Prosseguiu o ritual, tocava as fotografias, a tigela, a
cabeça da galinha d’angola e em seguida colocava uma
mão sobre nossas cabeças e outra em nossos peitos,
repetiu o gesto dezena de vezes.
No final da cerimônia, avô disse todo garboso,
revisitamos nossos antepassados, graças a Deus
estamos consubstanciados.
Mãe preta
Mãe preta, bonita, sorriso longo, completo, nem parece
que passou por tantas.
Deu um duro danado entre a roça e os bordados. Virou
ao avesso só para não desbotar. Dizia, não com soberba:
não esfrego chão dessas Senhoras, essa gente coloniza,
se a pessoa não tiver orgulho de ser assim, Zulu fica
domesticada, sem opinião, se autodeprecia, adoece.
Então o anjo da guarda arrefece com tanta ausência de
bem querer.
MAIO/JUNHO/JULHO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Fotos: Luiz Fernando Nabuco
Diálogos com a Cidade
A vida e o trabalho
tirados do mar
Carolina Barreto da Silva Gaspar
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008
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“Carregaram aqueles carrinhos
que ficam lá em cima, carregaram
tudo e disseram que não era para
trabalhar mais ali. Então, a gente
fica enrolado, ninguém sabe o que
faz. Aí chegaram lá e ainda
tiraram o tabuleiro de mexilhão,
botaram lenha para cima”
(Luzia).
Icaraí, Praia das Flechas, Boa Viagem. Pela
manhã ou à tardinha, lá estão eles na praia, todos os dias. Banhistas? Surfistas? Não. Eles são
homens e mulheres de todas as idades que sobrevivem da atividade extrativa nas praias da cidade, tirando do mar o seu sustento. Esses trabalhadores convivem com a indiferença e por vezes
até mesmo hostilidade dos moradores do entorno,
sendo constantemente molestados pela própria
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prefeitura. Inauguramos a seção “Diálogos com a
cidade” ouvindo essas pessoas que raramente são
ouvidas, apesar de terem muito a dizer.
Famílias inteiras trabalham hoje catando mexilhões nas praias da cidade. Muitas dessas pessoas têm se dedicado a essa atividade
há décadas e a maioria não tem qualquer outro trabalho. Vivem do mar e daquilo que ele
traz. Diante disso, em dias de ressaca ou quan-
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do a água está escura, o jeito é “ficar em casa”,
como disse o catador Rogério Tavares. Quando
a natureza não colabora, não dá para trabalhar com o mexilhão. Por isso, em dias de águas
calmas e límpidas, os catadores aproveitam
para fazer uma reserva que seja capaz de garantir seu sustento nos dias em que as condições do mar não permitirem que eles trabalhem. Segundo a maioria entrevistada, apesar
das dificuldades, o trabalho com o mexilhão consegue prover o sustento da família. O preço do
quilo do marisco varia bastante segundo a época do ano e a própria demanda, oscilando entre R$ 2,50 e R$ 5,00. Isso significa que, tomando por base que o quilo de mexilhão seja
vendido por uma média de R$ 4,00, cada catador precisa vender aproximadamente cem quilos do marisco por mês para ganhar quantia
equivalente a um salário mínimo. Os principais compradores do mexilhão extraído na orla
de Niterói são peixarias e restaurantes.
O trabalho é muito cansativo, mas esse
não chega a ser o maior problema enfrentado
pelos trabalhadores. Na avaliação dos catadores, nada é pior do que o tratamento hostil que
recebem de alguns moradores da orla, que freqüentemente reclamam da fumaça e da sujeira que a extração de marisco ocasiona nas praias. Quanto maior a expansão imobiliária no
local, maior a tensão. Para o catador Rogério
Tavares, contudo, seria muito simples resolver
esse problema: “Se a prefeitura apoiasse, ajudasse a gente a conservar a área e fizesse um
Famílias inteiras trabalham no mar todos os dias
esquema para passar a cozinhar no gás e mandasse sacos de lixo, essa sujeira acabava, não
ficava casca aqui. A prefeitura precisa colaborar. Aí não teria fumaça, porque tudo seria cozido no gás. As cascas seriam ensacadas e colo-
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cadas para cima. Essa seria a resolução, porque isso aqui é uma questão social. Se eles quiserem tirar a gente daqui, a gente não vai querer sair. Aí, vai dar problema”, diz.
Enquanto apurávamos essa matéria,
mais precisamente no dia 28 de fevereiro, a
prefeitura fez nova incursão à praia, na altura da Pedra de Itapuca, para expulsar de lá
os trabalhadores com quem havíamos conversado no dia anterior. Quando voltamos para
nossa segunda visita, encontramos poucos
catadores de mexilhão trabalhando na Pedra
de Itapuca. A maioria preferiu ficar um tempo em casa, certamente por medo de nova aparição da repressão no local. Conversando com
as poucas pessoas que estavam trabalhando
lá, ouvimos o relato do que havia sido a “visita” da prefeitura: expulsão sumária, apreensão de material de trabalho e mercadorias, nenhuma satisfação sobre o destino do que estava sendo apreendido.
“Carregaram aqueles carrinhos que ficam
lá em cima, carregaram tudo e disseram que não
era para trabalhar mais ali. Então, a gente fica
enrolado, ninguém sabe o que faz. Aí chegaram
lá e ainda tiraram o tabuleiro de mexilhão, botaram lenha para cima”, disse a catadora Luzia.
A revolta também era evidente no depoimento de outra catadora identificada apenas por
Rosêngela...
“Por que eles vêm aqui com polícia? Aqui
não tem vagabundo, não tem marginal... Para
quê polícia? Polícia para quê? Eu fiquei revol-
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tada. Trabalhamos aqui honestamente. Vivemos do mar, que foi a criação que Deus deixou.
Eu vou fazer 49 anos, ele tem 54. Aonde a gente vai arrumar mais serviço nessa idade? Infelizmente, no Brasil em que nós vivemos, quando os brasileiros atingem uma certa idade, eles
não dão mais serviço. É melhor trabalhar honestamente do que roubar. É por isso que muitos roubam, porque tem que sobreviver. Aí vêm
com polícia, vai catando tudo, vai quebrando
tudo... não é assim não! As autoridades não fazem nada por nós, não dão emprego. Tem dinheiro para Pan, tem dinheiro para Copa do
Mundo, só não tem para dar emprego. A gente
tem que sobreviver”, lamentava-se Rosângela.
“Nós somos trabalhadores”
Apesar das reivindicações dos catadores,
a prefeitura de Niterói nunca esboçou qualquer intenção de apoiar esse tipo de atividade. Ao invés disso, tem adotado uma postura
sistematicamente repressiva, o que não chega a ser uma novidade no que tange ao tratamento de questões sociais no Brasil. Assim
como os camelôs, os catadores de mexilhão são
freqüentemente perseguidos. “A prefeitura já
expulsou a gente daqui algumas vezes, mas
voltamos porque precisamos trabalhar, temos
que ganhar dinheiro... senão, como é que a
gente vai sobreviver? Tem vezes que a prefei-
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tura pega nossos instrumentos de trabalho e tem vezes que não”, contou
Renato Nunes Pessoa.
“Os órgãos competentes olham a
gente com um olhar discriminativo,
não como um trabalho, uma produção
na área de Niterói. O dinheiro que a
gente faz aqui fica aqui em Niterói. A
gente não leva esse dinheiro para outro município. A gente gasta esse dinheiro aqui. A gente produz aqui, gera
recurso que também fica para o município. Nós somos trabalhadores. Nós
não somos ladrões, nós não somos marginais. Conforme o crescimento da cidade, muitas pessoas que não moravam em Niterói estão vindo para cá,
também por causa da violência no Rio.
Você pode ver que tem mais de 10 ou
15 prédios novos construídos em Icaraí. O sistema de esgoto eles não vêem.
O crescimento desordenado eles não
vêem. Eles só querem construir. As
grandes empresas só querem construir.
Agora, nós que trabalhamos e vivemos
aqui há anos, dependendo dessa situação, eles querem que a gente saia
daqui. Só gostaria que eles nos vissem
com olhos diferentes. Para a gente, eles
vêem a gente como vagabundos. Não
vêem como trabalhadores”, disse outro
catador que também preferiu se identificar apenas por Francisco.
Na foto, os catadores Rosângela e Renato
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Hiperfocal
Meu ambiente: a rua
dores do impasse do mundo. E desperta nos
homens o desejo de destruir este impasse.
Dirijo minha energia à perseguição deste
objetivo: captar a aventura de cada um,
desvendando, através da imagem, seus
pequenos mistérios. Gosto de ter absoluta
visão da rua, meu ambiente, lugar onde os
homens lançam desejos e sofrem destinos.
Na rua, me esforço para atender ao mundo, e
reproduzir o meio físico através da minha
maneira particular de olhar a vida.
Nesse esforço de desvendar a alma das
coisas, sou um profissional insatisfeito.
Minhas fotografias são tristes. Sou fotógrafo
que anda devagar com sua máquina. A ênfase
que coloquei no meu trabalho, cristalizando
o meu momento numa imagem, não contribuiu
para trazer alívio às minhas aflições. O mais
importante é o que deixei de fazer e o que
deixarei de realizar vida afora.
(Evandro Teixeira)
...Sou um homem manejando uma câmera.
Quando bem operada, é um fósforo aceso na
escuridão. Ilumina fatos nem sempre muito
compreensíveis. Oferece lampejos, revela
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É com honra, orgulho e gratidão que inauguramos
esse espaço dedicado à fotografia com Evandro
Teixeira, um mestre do fotojornalismo. Agora é com
os fotógrafos e fotógrafas que virão...
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Repressão às manifestações contra a Ditadura Militar. Rio, 1968.
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Tomada do Forte de Copacabana, Rio - 1964
Repressão às manifestações contra a Ditadura Militar. Rio, 1968.
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