DIFERENÇA ENTRE PSICANÁLISE E PSICOTERAPIA João
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DIFERENÇA ENTRE PSICANÁLISE E PSICOTERAPIA João
DIFERENÇA ENTRE PSICANÁLISE E PSICOTERAPIA João Peneda "Ce n’est pas la peine de thérapier le psychique. Freud aussi pensait ça. Il pensait qu’il ne fallait pas se presser de guérir. Il ne s’agit pas de suggérer, ni de convaincre." 1 Lacan Introdução Tanto a psicanálise como as psicoterapias em geral são objecto de uma demanda generalizada por parte do sujeito contemporâneo. No nosso mundo, onde as relações com o outro (familiar, profissional, comunitário, etc.) são muitas vezes frágeis, o sujeito, refugiado na solidão do seu gozo, recorre aos psis para poder aliviar a carga do seu sintoma. É quase um direito instituído beneficiar do auxílio de um terapeuta. Porém, ainda que alguns relacionem a invenção de Freud com as psicoterapias, ela distingue-se pela sua especificidade. Sublinhe-se que o próprio Freud sempre demarcou a psicanálise da pura finalidade terapêutica. Partiremos principalmente de dois textos de Jacques-Alain Miller sobre a diferença entre psicanálise e psicoterapia. O primeiro texto (1992) é o resultado de uma intervenção num congresso em Rennes. O segundo texto retoma e desenvolve o tema no curso Le lieu et le lien, (2000-2001). Face à crescente associação da psicanálise com as psicoterapias, estes dois textos procuram definir a singularidade clínica da invenção de Freud.2 O objectivo é determinar o território e o método psicanalíticos, porque, para o entendimento geral e para as autoridades políticas, a psicanálise não seria mais do que uma psicoterapia. Miller abre o segundo texto (curso Le lieu et le lien) com a diferença entre a "psicanálise pura" e a "psicanálise aplicada" para dissipar "confusões" no que diz respeito à prática 1 Ornicar ?, n.º 9, 1977, p. 13. Não nos interessa tanto distinguir a psicanálise da medicina, ou ainda de outras disciplinas mais ou menos afins, pois aí as diferenças são por demais evidentes. 2 1 clínica. Para o efeito, parte de um dito escolar (exercice La Bruyère): "Corneille pinta os homens tal como eles deveriam ser, Racine pinta-os tal como eles são."3 Em analogia, a psicanálise pura corresponde à psicanálise tal como ela deveria ser e a psicanálise aplicada à psicanálise tal como ela efectivamente é.4 Miller propõe que se entenda por psicanálise pura o percurso analítico que conduz e se conclui no passe,5 enquanto que a psicanálise aplicada se circunscreveria à sua valência terapêutica. Neste último caso, o fim da análise decorre dos efeitos terapêuticos, da cura dos sintomas, ainda que o termo cura seja muito discutível em psicanálise. Em resumo, a psicanálise pura culmina no passe, a aplicada detém-se nos efeitos e benefícios terapêuticos. Em última instância, a diferença entre psicanálise pura e aplicada consiste no seguinte: no primeiro caso o percurso analítico vai para além da "travessia do fantasma", o que significa que a psicanálise aplicada deixa a verdade do sintoma (o fantasma) intocada, isto é, por reconstruir. Neste sentido, no dizer de Miller, a psicanálise terapêutica é uma forma restringida da psicanálise pura, deixando ainda a desejar. De qualquer modo, em ambos os casos é de psicanálise que se trata.6 Para o efeito, é decisivo que, mesmo que prevaleça a preocupação terapêutica, não se aliene os princípios e meios da invenção freudiana.7 A sugestão que fica é que a psicanálise aplicada à terapia se distingua ainda da psicoterapia. Por outras palavras, a psicanálise aplicada não é psicoterapia. A questão fundamental é assim destrinçar a psicanálise do que lhe está mais próximo, do que parece semelhante, ainda que corresponda a outra coisa. A distinção entre psicanálise e psicoterapia objecto de uma pergunta que o próprio Jacques-Alain Miller dirige a Lacan na célebre entrevista à Televisão.8 É essa questão que será retomada e desenvolvida por Miller no texto de 1992 e depois no curso de 2000-2001. O seguinte esquema de Miller ajuda a visualizar a diferença e a eventual zona de intercepção entre psicanálise e psicoterapia. 3 MILLER, Jacques-Alain, "Psychanalyse pure, psychanalyse appliquée et psychothérapie", in La Cause freudienne, n.º 48, 2002, p. 22. 4 Idem, p. 22. 5 Cf. Idem, p. 23. 6 No último Lacan, a diferença entre psicanálise pura e aplicada desaparece, não é essencial. Esta fase derradeira do ensino de Lacan é designada por Miller de "campo de desorientação". Fase que considera por exemplo a ciência, mas também o passe, como fantasma. Deixemos por agora o "campo de desorientação" para outra oportunidade e vamos procurar prosseguir no campo de orientação lacaniana. 7 Psicanálise aplicada como: "Tout moment de l’expérience analytique où le souci thérapeutique l’emporte" MILLER, Jacques-Alain, (Apresentação nas jornadas de 2000), ECF, Collection Rue Huysmans, p. 15. 8 Télévision, p. 17(20). 2 Psicanálise Pura Psicanálise Aplicada Psicoterapia À primeira vista, psicoterapia e psicanálise parecem estar muito próximas9 (Miller recorre à imagem de Jano, o deus das duas faces). Mas, se essa aparente vizinhança poderá ser benéfica à psicoterapia, já não o é para a psicanálise. Neste último caso, trata-se de uma ameaça à psicanálise, pois poderá contribuir para dissolver a sua especificidade. Se a psicanálise deu origem a muitas psicoterapias chamadas de inspiração psicanalítica, o problema agora é vir a transformar-se em mais uma psicoterapia e assim perder em definitivo a sua identidade. Na leitura de Miller, a psicoterapia é um sucedâneo, um "semblante da psicanálise", mas que ameaça desvirtuá-la, devorá-la, vampirizá-la. O psicanalista francês imagina mesmo um conto gótico à maneira de Edgar Allan Poe que teria por título "a psicanálise e o seu duplo". A história terminaria com um duplo que toma o lugar do seu original, exilando-o, expropriando-o. Existe assim o risco de "expropriação da psicanálise".10 Aqui a imagem mitológica seria a mutilação de Urano por parte de Crono, seu filho (parricídio). Por isso, a demarcação da psicanálise face às psicoterapias poderá ser visto como uma espécie de grito do Ipiranga.11 É um facto que as psicoterapias têm ganho terreno em relação à invenção freudiana. Anunciam mesmo algumas vantagens que as podem tornar mais atractivas: prometem ser mais acessíveis, mais curtas, mais rápidas, mais baratas, mais humanas, mais agradáveis, mais ligeiras, mais eficazes, etc. Em suma, a psicoterapia dispõe-se a oferecer os mesmos efeitos terapêuticos com um custo bastante mais baixo. Historicamente, a IPA defendeu a especificidade da psicanálise sobretudo através da introdução de um aparelho de regras, o 9 É comum falar-se de psicoterapias ditas de "inspiração psicanalítica". MILLER, Jacques-Alain, "Psychanalyse pure, psychanalyse appliquée et psychothérapie", in La Cause freudienne, n.º 48, 2002, p. 9. 11 Designação da frase utilizada por D. Pedro na declaração de independência do Brasil a 7 de Setembro de 1822: "Independência ou morte". 10 3 conhecido standard. Porém, o dispositivo que visava preservar a autenticidade da psicanálise acabou ironicamente por se converter naquilo que Lacan chamou em 1973 "SAMCDA": "Sociedade de assistência mútua contra o discurso analítico".12 O esquema em cima também nos indica que a psicanálise e a psicoterapia partilham um conjunto de pontos em comuns; Miller refere-se a "uma zona de intercepção":13 1) Ambas admitem a existência de uma realidade psíquica; 2) A prática psicoterapêutica assenta num dispositivo de inspiração psicanalítica, numa escuta da fala do paciente; 3) Ambas baseiam a sua acção nos efeitos da fala, trata-se de logoterapia. Historicamente, as psicoterapias, num sentido lato, são práticas imemoriais. Num sentido restrito, a psicoterapia apareceu no final do século XIX como alternativa à mera intervenção e manipulação somática (biológica, química) por parte da medicina. A psicoterapia corresponde ao tratamento das perturbações mentais através de meios psicológicos. Por seu lado, a psiquiatria procura cada vez mais obter efeitos sobre o mental através do biológico, operando química e fisiologicamente sobre o cérebro. Existe aqui uma redução do psíquico ao mental (neurológico). A diferença de abordagem entre psicanálise e medicina (psiquiatria) é clara. Por exemplo, sobre a chamada "depressão", a ciência dirá que se trata de um estado mental. Em contrapartida, Lacan, na célebre entrevista à Televisão, afirmará que a depressão ("a tristeza") é sobretudo uma falta moral, "uma cobardia moral". Em contraste com a noção de realidade material <materielle Realität>, em Freud existe a ideia de uma realidade psíquica <psychische Realität>.14 Esta noção ganhou forma com as reservas freudianas à hipótese da sedução histérica. Mais do que o trauma real, as fantasias passram a assumir um valor tão ou mais patogénico do que os efeitos da realidade externa. Freud coloca o psiquismo com o estatuto de realidade a par do físico, do biológico e do social. Significa que tanto a realidade material como a realidade social condicionam o indivíduo, mas é no plano da realidade psíquica que a psicanálise pode ser situada e opera. 12 A natureza da psicanálise assim como com a sua existência na civilização não são um dado adquirido, mas o resultado de uma conquista e uma reinvenção permanentes, muitas vezes contra as instituições ditas psicanalíticas e contra a prática de alguns que se dizem psicanalistas. A causa analítica deve estar acima das instituições e dos seus profissionais. 13 MILLER, Jacques-Alain, "Psychothérapie et psychanalyse", in La Cause freudienne, n.º 22, 1992, p. 8. 14 Na filosofia do final do século XVIII, em particular com Kant, o que denominamos de realidade psíquica tinha a designação de conhecimento <Erkenntnis> (transcendental). 4 Em Inibição, Sintoma e Angústia (1926), Freud refere-se a um factor psicológico puro <rein psychologischer> distinto do biológico e do filogenético.15 A realidade psíquica seria o plano propriamente humano, o registo do "sentimento de si",16 para utilizar a expressão de Damásio. A psicanálise parte assim da admissão de uma realidade psíquica autónoma com uma causalidade própria. Para sublinhar que o psiquismo tem as leis próprias Freud recorreu a diversas expressões como "mecanismo psíquico" e "causalidade psíquica". A questão agora é determinar o que é a realidade psíquica para a psicoterapia e para a psicanálise. A psicologia e as psicoterapias fundam a realidade psíquica no Eu e na Consciência; a psicanálise, em contrapartida, funda a realidade psíquica no inconsciente e na pulsão. Num certo sentido, a realidade psíquica para a psicologia não deixa de ser uma plataforma provisória para dar conta do mental enquanto a ciência não dispõe dos meios para o fazer através da biologia. Para todos os efeitos, o desiderato último da psicologia consistiria em acabar por se transformar em mais uma ciência da Natureza, isto é, explicar os fenómenos psíquicos (mentais) a partir de uma base meramente biológica. Abordemos agora a diferença entre psicanálise e psicoterapia do ponto de vista do método. No seu texto, Miller refere-se à realidade eficiente (Wirklichkeit de Freud) que opera sobre a realidade psíquica, interrogando assim a via particular a que recorrem psicanálise e psicoterapia para produzirem efeitos sobre a realidade psíquica do sujeito e sobre o seu sintoma. Veremos que a via psicoterapêutica passa pelo sentido e que a via psicanalítica recorre ao real como "fora-do-sentido" (Lacan). No que respeita ao dispositivo clínico (setting) existem claras semelhanças entre as psicoterapias e a psicanálise. Tanto o psicanalista como o psicoterapeuta estão numa posição de escuta face ao sofrimento do paciente. A posição de escuta coloca o terapeuta no lugar do grande Outro , conferindo à sua palavra um poder especial para operar e rectificar as identificações do sujeito. Mas esta posição de auditor-intérprete comporta também os seus perigos quando o "sujeito suposto saber" (Lacan) não renuncia ao poder identificatório que esse lugar lhe confere. A noção lacaniana do "desejo do analista" servirá para assinalar, através 15 SA, VI, p. 293(152). DAMÁSIO, António, O sentimento de si. O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, Mem Martins, Europa-América, 2000. 16 5 dessa renúncia, a linha de demarcação entre psicanálise e psicoterapia. A diferença reside assim na resposta do Outro à demanda do paciente. A psicanálise e a psicoterapia partilham ainda a convicção de que a palavra cura, de que a fala tem efeitos benéficos sobre o ser do indivíduo.17 Existe de facto uma estrutural relação entre a palavra e o bem-estar, desde o recorrente "falar faz bem" até ao "dizer bem" poético. Na medicina tradicional, uma grande parte dos efeitos terapêuticos eram obtidos através da palavra do médico. A religião tem aí também o seu princípio activo fundamental: caso da palavra de condenação, arrependimento, absolvição, esperança, salvação, etc. As antigas escolas de filosofia prática (pitagóricos, órficos, estóicos, epicuristas, etc.) procuravam chegar a um certo bem-estar da alma a partir da palavra, do discurso, de uma disciplina filosófica. A psicanálise e a psicoterapia inserem-se assim numa longa tradição, cujo princípio fundamental de acção (eficácia) assenta na palavra. Como lembra Miller, o mal-estar no sintoma pode ser entendido como um modo de falar quando o sujeito é incapaz de bem dizer. O sintoma seria assim uma palavra que não encontrou na fala a expressão adequada. Quando o sujeito se mostra incapaz de bem dizer, o corpo pode desatar a falar no seu lugar e à sua maneira, é o cado do fenómeno de somatização (conversão histérica). Psicanálise e psicoterapia comungam da ideia de que existe uma relação entre o sintoma e a palavra. As psicoterapias da fala baseiam-se ainda na ideia de que a tomada de consciência dos comportamentos ditos inconscientes18 coincide com a anulação da sua eficácia,19 se bem que a teoria freudiana nos ensine que a auto-análise é impossível. O sujeito seria incapaz de aceder, por si próprio, aos conteúdos do seu inconsciente. O recalcamento não perderia o seu efeito com a nomeação da ideia recalcada. Por sua vez, a pulsão não se deixaria isolar a partir do esforço decidido do terapeuta. Para Lacan, só a relação transferencial e o acto analítico permitem secar os signos do gozo. 17 Veremos depois que a distinção passará pelo diferente uso que fazem da palavra e pelos fins que esta visa. No caso das psicoterapias não estamos a lidar com o inconsciente freudiano. O que está em causa não é verdade singular do sintoma, mas sim um conjunto de comportamentos tipificados, transversais a um conjunto vasto de indivíduos. 19 A grande maioria das actuais propostas de "desenvolvimento pessoal" baseia-se na suposição de que a tomada de consciência individual anula por si só as estratégias inconscientes. Chegam mesmo a formular que seria impossível ao indivíduo, conscientemente, comportar-se de um modo contrário ao seu bem-estar. 18 6 Mas qual é então a diferença específica da psicanálise face às psicoterapias? A resposta do Miller é elaborada a partir de três momentos do ensino de Lacan: 1. No final dos anos 50, a diferença pode ser obtida a partir dos diversos níveis do grafo do desejo. A passagem para o andar de cima do grafo coincidiria com o início da psicanálise propriamente dita; 2. A partir da teoria dos discursos (final dos anos 60), as psicoterapias são associadas ao "discurso do mestre" enquanto que psicanálise corresponde a um laço social inédito, o "discurso do analista"; 3. A partir do real como fora-do-sentido (anos 70), Miller dirá que "a psicoterapia especula sobre o sentido, e é isso que faz a sua diferença face à psicanálise."20 Por outras palavras, a psicanálise vai na contra-mão do sentido. Resposta a partir do grafo do desejo (final dos anos 50) Segundo a psicanálise de orientação lacaniana, a psicoterapia baseia-se no efeito de aconselhamento da palavra do Outro: "Ce que je crois être le principe du classement de toute psychothérapie, c'est l'incidence de la parole de l'Autre. Le facteur clé de toute psychothérapie, c'est qu'il y a un Autre qui dit ce qu'il faut faire, un Autre à qui obéit le sujet qui souffre, et dont il attend l'approbation."21 Deste modo, a psicoterapia visaria instalar no sujeito, por efeito de identificação, um domínio de si cujo modelo é o saber ou a própria figura do mestre terapeuta. As psicoterapias ocupam-se do reforço do Eu através da identificação simbólica e imaginária, ou seja através da palavra do outro e da sua imagem.22 Em contrapartida, a psicanálise é uma prática que põe em causa todas as identificações até fazer consistir o real do sintoma de cada um. Do ponto de vista do grafo do desejo, a acção psicoterapêutica situa-se nos patamares inferiores do grafo. É aí que se joga o fenómeno da identificação com o outro, , assim como o fenómeno do sentido, . O que não é objecto de consideração por parte das psicoterapias é o que aparece na parte superior do grafo: a pulsão (o gozo), o fantasma e a inconsistência do Outro, : "Si nous voulons donner une formule générale des psychothérapies, nous dirons qu'elles sont fondées sur une relation de domination qui s'exerce de l'image de l'autre, i(a) comme l'écrit Lacan, sur le moi du sujet, marqué d'un m. Cette relation imaginaire n'opère qu'à 20 Idem, p. 15. MILLER, Jacques-Alain, "Psychothérapie et psychanalyse", in La Cause freudienne, n.º 22, 1992, p. 9. 22 "Toutes les psychothérapies sont en fait des thérapies de l'image de soi, et elles sont toujours fondées sur le stade du miroir. Il s'agit de restituer au moi ses fonctions de synthèse et de maîtrise, sous l'œil du maître qui joue le rôle de modèle. Ce sont des thérapies par l'image, qui, de ce fait même, sont des thérapies par le maître, par identification au maître." Ibidem. 21 7 être encadrée par une articulation symbolique."23 O sujeito, , encontra uma imagem, , que o identifica, , e o resultado é uma identificação com o outro, , um Eu ideal. Resposta a partir da teoria dos discursos (final dos anos 60) A psicoterapia equivale ao discurso do mestre: . O princípio curativo é essencialmente da ordem da identificação imaginária com a figura do mestre. Se o terapeuta situa-se no lugar do grande Outro, os efeitos terapêuticos decorrem do reforço imaginário e simbólico do paciente. O paradoxo reside no facto das psicoterapias lidarem com o sintoma a partir do mesmo discurso do inconsciente (o discurso do mestre): "sintoma e terapia são dois dialectos do mesmo discurso."24 O psicoterapeuta e o seu paciente (inconsciente) situam-se no mesmo registo, no mesmo discurso. A diferença passa porventura por um chamado "Eu forte" contraposto a um "Eu fraco". A suposição de saber e a sugestão, conferem ao psicoterapeuta a última palavra, o que não deixa de ser um modo de procurar silenciar o inconsciente do outro. O procedimento psicoterapêutico consiste em "submeter-se ao Outro <assujettissement à l'Autre>": "O discurso do mestre é conforme ao inconsciente, ao que este exige. Em termos de psicoterapia, diremos que o sujeito reclama uma identificação que resista, e ele sofre quando essa identificação vacila, lhe está em falta. A urgência é então a de lhe restituir ou reforçar os significantes mestres (). É somente nessa condição que o sujeito pode encontrar o seu lugar."25 Porém, no discurso do mestre é a verdade do sintoma, o fantasma (), que é sacrificada. A psicanálise consiste pelo contrário na criação de um dispositivo, de um discurso que está nos antípodas do discurso do mestre. O discurso analítico, enquanto avesso do discurso do mestre, 23 Ibidem. VIGANO, Carlo, "Le besoin de thérapie et sa limite" in la Cause freudienne, n.º 22, 1992, p. 39. 25 MILLER, Jacques-Alain, "Psychanalyse pure, psychanalyse appliquée et psychothérapie", in La Cause freudienne, n.º 48, 2002, p. 14. 24 8 tem em (objecto causa do desejo) o princípio da sua acção. O analista faz semblante do objecto e causa o desejo: . Por sua vez, na psicoterapia, é o significante mestre, , que está no lugar de agente do discurso. O imperativo ético da psicanálise não participa no reforço do discurso do inconsciente (discurso do mestre), mas procura sim operar uma mudança radical de discurso. Resposta a partir do real como fora-do-sentido (anos 70) A psicanálise opera com o sentido, mas o objectivo é cingi-lo para assim tocar no real. Por seu lado, a psicoterapia recobre o real com o sentido, acrescentando novos significados.26 A consequência é o reforço da preclusão do real que nos é constitutivo. Em Lacan, o sentido é o efeito do simbólico sobre o imaginário. Por sua vez, o real caracteriza-se por excluir o sentido, por ser fora-do-sentido <hors-sens>. É para este ponto que converge e se conclui a análise, ponto que o fantasma fundamental recobre. A psicanálise deve preservar o lugar onde o fora-do-sentido possa advir. Na verdade, ao analista cabe encarnar o que é rejeitado na fala (simbólico). Por fim, clarificaremos a diferença específica da psicanálise face à psicoterapia do ponto de vista da ética (fins), da prática clínica e do desejo do analista: Ética Em psicanálise, a política tem sobretudo a ver com os fins do tratamento analítico. No fundo, a política psicanalítica decorre da estratégia clínica (política da transferência) relativamente a um certo fim. Freud cedo renunciou ao "poder da sugestão" (hipnose, catarse), o que deixou claro que a psicanálise, desde os seus alvores, não se reduzia a uma terapia. Como Lacan referiu, o objectivo da análise é outro, sendo a cura apenas um efeito secundário. Nos Escritos, fala-se da "cura como um benefício adicional do tratamento psicanalítico".27 Se a política terapêutica visa, acima de tudo, a eliminação (cura) dos sintomas, a política psicanalítica visa a verdade do sintoma, o fantasma, pois é aí que reside, de acordo com a perspectiva lacaniana, o ser de gozo do sujeito. O fantasma é assim a matriz do gozo. Ao descurar a construção do fantasma, a psicoterapia deixa intocável a verdade do sintoma. Por isso, a psicanálise não se orienta simplesmente pela cura dos sintomas, mas sim pela construção do fantasma. Esta é a política psicanalítica de orientação lacaniana. 26 Enquanto que a estratégia psicoterapêutica se apoia no Outro (significante-mestre), a psicanálise de orientação lacaniana circunscreve-se ao Um do gozo. 27 É, p. 324(327). 9 Todas as psicoterapias têm em comum a ideia da cura, a dissolução dos sintomas, como fim último da sua estratégia terapêutica.28 A cura consiste em restituir ao sujeito um estado anterior de bem-estar.29 Se psicoterapia tem em vista um certo bem-estar do indivíduo, a psicanálise visa a diferença singular de cada um, a especificidade do gozo do sujeito. A invenção de Freud está assim para além do bem-estar e do efeito terapêutico (décharite diz Lacan). Não se trata de fazer cessar sem mais o sofrimento, mas sim de analisar o desejo inconsciente até à causa derradeira que o anima: "De fait, on ne s'analyse pas seulement pour faire céder la souffrance, mais aussi pour en trouver le fin mot."30 A psicanálise lida com algo incurável na condição do ser vivo falante: "Dès lors quelle stratégie la psychanalyse a-t-elle face à l'incurable du sujet? D'abord, nous laissons la demande thérapeutique en souffrance, parce que nous savons qu'elle ne se soutient que du vide de son objet, qu'il n'y aurait aucune réponse valable de l'Autre pour la combler, et qu'elle ne trouvera son véritable sens qu'à la porter vers un autre registre, celui où l'Autre doit répondre non pas en termes de signification mais, comme Lacan le signalait dans «Subversion du sujet et dialectique du désir», «en termes de pulsion»."31 Não significa que a psicanálise não parta justamente de uma demanda terapêutica e não obtenha igualmente efeitos terapêuticos (curativos). À partida, o analisando não é animado apenas por um desejo de cura, mas sim por uma demanda, por um pedido endereçado a um Outro. Diz Lacan a propósito da cura (guérison) que "c'est une demande, qui part de la voix du souffrant, d'un qui souffre de son corps ou de sa pensée."32 O prosseguimento da análise confirmará o carácter problemático do desejo de se curar. Ficará claro que outros votos se sobrepõem à cura propriamente dita. Por fim, o efeito terapêutico resulta do modo como cada sujeito acaba por saber lidar com o que é intolerável no seu sintoma. A derradeira proposta de Lacan é a "identificação com o sintoma". Esta noção assinala que a análise se conclui com o que o sintoma tem de real, restando ao sujeito saber lidar com o que nele é irredutível. Em 28 BASSOLS, Miquel, "Stratégies face à l'incurable" in La Cause freudienne, n.º 22, 1992, p. 125. As psicoterapias de orientação cognitivo-comportamental resumem o efeito terapêutico ao mero restabelecimento das funções normais do Eu. 29 No pós-guerra, a OMS definiu a saúde como um "estado completo de bem-estar físico, mental e social e que não consiste apenas numa ausência de doença ou enfermidade." Aos olhos da psicanálise, não deixa de ser uma miragem desejar que o indivíduo alcance um bem-estar pleno que lhe seria devido. 30 SOLER, Colette, "L'intraitable" in La Cause freudienne, n.º 22, 1992, p. 122. 31 BASSOLS, Miquel, "Stratégies face à l'incurable" in La Cause freudienne, n.º 22, 1992, p. 128. 32 Télévision, p. 17. 10 suma, a cura coincide com o saber lidar com o temos de incurável, com o intratável do sintoma. Se a psicoterapia visa pacificar a relação do sujeito com a realidade, adaptar o Eu às exigências externas, em contrapartida, a psicanálise tem em mira subjectivar o desejo, concluindo-se a análise com a experiência do real que o causa. O tratamento analítico deve ser conduzido de modo a operar uma mudança de discurso, isto é, colocar o analisando numa outra posição: . A fórmula do discurso do analista é assim o matema do fim da análise. Se a psicoterapia alinha o sujeito pela realidade e pelos seus significantes mestres, a psicanálise procura fazer advir o sujeito como resposta do real. Se a psicoterapia encontra na identificação o seu fim, a psicanálise é da ordem uma separação (Seminário IX), de uma diferença absoluta. Por este motivo, do ponto de vista dos fins (política), a psicanálise está orientada e aponta para o real. Nas psicoterapias prevalece sobretudo um certo ideal terapêutico que as orienta. A meta final do tratamento corresponde a uma determinada concepção do bem-estar do indivíduo. Promovese do lado do paciente uma "moral do Eu", o chamado "Eu forte", um Eu adaptado às exigências da realidade. O resultado é o reforço da alienação do sujeito a um Ideal do Eu e/ou a um Eu ideal (Freud). Por seu lado, a ética da psicanálise tem o seu ponto de partida na admissão de um sujeito. A sua prática visa a responsabilização do indivíduo pelo que sabe e sobretudo pelo que até então recusou saber (saber inconsciente). A psicanálise faz do indivíduo vítima do seu sintoma um sujeito responsável pelos seus ditos.33 A psicanálise é sobretudo uma ética do gozo, pois admite que a condição do ser falante (parlêtre) comporta uma irremediável relação com o gozo. A consequência clínica é a seguinte: o objectivo da análise não é a busca da verdade ou a adaptação do sujeito ao Outro social, mas sim o isolamento dos signos do gozo. Miller escreve que "a novidade Ética da psicanálise foi […] lembrar a conexão entre o simbólico e o libidinal". 34 O Seminário VII de Lacan diz-nos que o prazer que conta está mais interessado nos significantes do que propriamente no objecto; é a partir desses traços que o indivíduo goza, isto é, obtém a "outra satisfação" que lhe interessa. 33 34 Esta assunção ética vai contra a tendência actual para separar os afectos e os sentimentos do sujeito ético. MILLER, Jacques-Alain, Le partenaire-symptôme, Curso de 1997/98 (inédito), p. 141. 11 O ideal terapêutico da psicoterapia preocupa-se em dar consistência e reforçar o grande Outro (A). A ética psicanalítica visa a falta no Outro, , ou seja, confrontar o sujeito com a inconsistência do Outro, . No dispositivo clínico, o psicanalista e o psicoterapeuta estão portanto em posições distintas. A partir do Seminário VIII, Lacan indicou que o psicanalista está no lugar do objecto causa do desejo. No final dos anos 60, esta reflexão culminou, na fórmula do discurso do analista: Se a psicanálise permite fazer experiência da falta-em-ser constitutiva do sujeito, as psicoterapias procuram apagá-la através da identificação com um certo ideal terapêutico. Impõe-se aqui uma decisão sob a forma de uma disjunção exclusiva: ou se contribui para apagar a falta no Outro, visando benefícios terapêuticos imediatos, ou então conduz-se o sujeito a confrontar-se com essa falta que lhe é constitutiva. A ética psicanalítica é uma ética do desejo, o que significa que sobre o desejo do analisando o analista deve obviamente abster-se. No final, cada um decidirá o destino a dar ao seu desejo. Prática clínica O psicanalista não é chamado a compreender o seu paciente, ao contrário do que sucede frequentemente nas psicoterapias. O terapeuta opera a partir de um saber que é o seu, e que procura aplicar ao paciente. Esta posição é a de quem sabe e pode (mestre), enquanto que a posição do analista é a de quem ignora, de quem não sabe (paixão da ignorância). Se a psicoterapia opera sobre os sintomas, procurando o seu desaparecimento através de um saber prévio, a psicanálise visa o fantasma enquanto matriz fundamental do gozo sintomático. Podemos assim distinguir o acto analítico face ao acto terapêutico. O primeiro está para além da demanda e do sentido, visando o real. O clínico não pode ceder ou até responder à demanda do seu paciente, como acontece com as psicoterapias. Por isso, é justo dizer que o terapeuta é uma formação do inconsciente, é a figura com que sonha a demanda: alguém que, no lugar do Outro, se desmultiplica em conselhos, rectificações e modelos. "Os impostores da boa vontade"35 são os clínicos que intervêm em nome do Outro. O acto analítico vai contra o sentido, contra a compreensão. Só desse modo se pode desarmar as defesas sintomáticas e tocar <toucher> num real que é justamente antinómico ao sentido. 35 SOLER, Colette, "L'intraitable" in La Cause freudienne, n.º 22, 1992, p. 123. 12 Fazendo enigma, o acto do psicanalista visa cingir o sentido do sintoma até esvaziar a sua verdade,36 reduzindo-o à sua letra; só desse modo se chega ao "osso do sintoma". 37 Em "Posição do inconsciente", Lacan assinala que "não é o efeito de sentido que opera na interpretação, mas a articulação, no sintoma, dos significantes (sem nenhum sentido) aprisionados nele."38 Não se desarma o sintoma pela "vertente do sentido", pela compreensão psicoterapêutica. A interpretação psicanalítica tem em vista não tanto o objecto e as vicissitudes do desejo, mas sim a sua causa. Para o efeito é necessário reconstruir o fantasma que sobredetermina o sintoma. Na psicoterapia, a interpretação é feita em "nome do Pai", a consequência é a suposição de que a verdade pode se dizer toda.39 Tratar o sintoma com sentido (com mais sentido), ou produz efeitos terapêuticos escassos, temporários (pela via do discurso do mestre, da identificação), ou então é como apagar o fogo com álcool. Lacan dirá que "a psicoterapia, qualquer que seja, estanca, não que ela não faça algum bem, mas ela conduz ao pior."40 Se o sintoma é uma produção defensiva, simbólica e imaginária, que faz barreira ao real, o verdadeiro antídoto para o sintoma, para o gozo no sintoma, é avesso do sentido, o não-sentido, o fora de sentido, o real. No Seminário XVII é dito que "a interpretação analítica está […] na contramão do sentido comum".41 Em Télévision, Lacan lembra o seguinte: "É o real que permite efectivamente desatar aquilo em que consiste o sintoma, ou seja, um nó de significantes […]. Pois essas cadeias [que formam o sintoma] não são de sentido mas de gozo, não são de sens mas de jouis-sens".42 Assim, se a psicoterapia se interessa pelo sentido, a psicanálise visa o para além do sentido, o fora-do-sentido <hors-sens>. Em Télévision, Lacan localiza a psicoterapia na "vertente do sentido, do senso", "despejando sentido a jorros para o barco sexual".43 Em contrapartida, na psicanálise verifica-se que "é 36 "L'analyste n'opère qu'à la condition de répondre lui-même à la structure de l'étrange. Il faut qu'il donne le sentiment de l'étrangeté, faute de quoi tout démontrerait qu'à défaut de se faire lui-même à l'étrange, il ne pourrait déranger la défense." MILLER, Jacques-Alain, "Introduction à la lecture du Séminaire de L'angoisse de Jacques Lacan" in La Cause freudienne, n.º 59, 2005, p. 103. 37 Expressão utilizada por Jacques-Alain Miller. Cf. O osso de uma análise, Salvador, Escola Brasileira de Psicanálise-Bahia, 1998. 38 É, p. 842[856]. Cf. BLANCARD, Marie-Hélene, "Interroger comme du savoir" in La Cause freudienne, n.º 22, 1992, p. 66. 40 Télévision, p. 19(21). 41 S-XVII, p. (15). 42 Idem, p. (25). 43 Idem, p. 18(21). 13 surpreendente que esse sentido se reduza ao não-sentido: ao não-sentido da relação sexual desde sempre patente nos ditos de amor."44 Por outras palavras, é o não-sentido da relação sexual que está na origem de tanto sentido sexual, dos chamados "ditos de amor". No caso da psicanálise, poderíamos falar na vertente do não-sentido do real, pois, na orientação lacaniana, o humano é fundamentalmente um ser-de-gozo. Com o chamado nó borromeano, Lacan introduz um real fora do simbólico e fora do imaginário, uma argola separada (disjunta). Eis o conceito de um real excluído do sentido. Por aqui passa a vertente inumana da psicanálise, do acto analítico. No Discours à l’EFP, Lacan define o acto analítico como "celui qui ne supporte pas le semblant".45 O acto do psicanalista é o que visa o atravessamento de todos os semblantes, imaginários, simbólicos e reais, para assim confrontar o sujeito com o real que lhe é constitutivo. No seu curso de Julho de 1995, JacquesAlain Miller, refere que "le courage en psychanalyse est de rester faire l'expérience de la fuite du sens jusqu'à témoigner d'un réel".46 Ao contrário do psicoterapeuta, o psicanalista não está no dispositivo analítico como sujeito, mas no lugar do objecto a, enquanto causa do desejo. O acto analítico é sem sujeito e sem inconsciente. A psicoterapia pode comportar o fenómeno da transferência, para o efeito basta que o terapeuta se coloque do lado do grande Outro, isto é, esteja na posição do sujeito suposto saber. A vocação da psicanálise é interpretar e analisar a transferência. Aliás, a análise propriamente dita começa, prossegue e termina com a transferência. Esta, na psicanálise, tem um papel decisivo, corresponde à criação de um sintoma artificial, a chamada "neurose de transferência", onde se inclui o analista. A política da transferência consiste em isolar a verdade individual () do gozo do indivíduo, ou seja, "separar no sintoma o que é verdade e o que é gozo".47 Para Lacan, a velha querela da contra-transferência não tem muito sentido, pois a verdadeira contra-transferência é o acto analítico. Ao analista cabe saber lidar com a transferência, analisando-a. Como é sabido, na psicoterapia, a contra-transferência desempenha um papel importante, acabando por ser, em muitos casos, um elemento fundamental. Na leitura 44 Idem, p. 18(21). LACAN, Jacques, "Discours a l’EFP", Scilicet, n.º 2/3, Paris, Seuil, 1970, p. 29. 46 No capítulo VIII do Seminário XX, o objecto a aparece já como mero semblante do real (objecto a real). O acto analítico derradeiro deve operar uma separação, "cisão, descolagem entre a e S()". BLANCARD, MarieHélene, "«Interroger comme du savoir" in La Cause freudienne, n.º 22, 1992, p. 66. 47 GUÉGUEN, Pierre-Gilles, "Le souci thérapeutique" in La Cause freudienne, n.º 22, 1992, p. 62. 45 14 lacaniana, não é ético prosseguir com o analisando a análise que o terapeuta não realizou ou que não levou até às suas últimas consequências (conclusão lógica). Do ponto de vista da formação, para se exercer a psicoterapia basta um diploma em psicologia clínica. Segundo Lacan, para se exercer a psicanálise é necessário ter realizado uma análise pessoal que revela ser didáctica. Na psicanálise de orientação lacaniana não existe uma análise propriamente didáctica,48 mas sim uma análise pessoal que pode desembocar no chamado "desejo do analista". Para Lacan, o analista não se autoriza senão a si mesmo, a partir da conclusão e do resto da sua própria análise pessoal. O dispositivo do passe, anunciado por Lacan em 1967, existe para verificar a substituição do analisando pela causa analítica. A função do passe consiste em captar o momento em que a análise se conclui e a condição em que o sujeito se baseia para se autorizar como analista. Desejo do analista Só há psicanálise quando há psicanalista, isto é, quando foram suspensos os poderes e os efeitos de identificação. Este procedimento psicoterapêutico por excelência demarca-se em absoluto dos propósitos da invenção freudiana. Embora o analista seja colocado no lugar do grande Outro, ele recusa ser o mestre;49 ele está lá para causar o desejo do seu paciente: "L'analyse dépend de la position qu'adopte l'analyste. S'il s'identifie lui-même à un psychothérapeute, il ferme cette porte. C'est seulement à refuser ici d'être psychothérapeute qu'il ouvre la dimension proprement analytique du discours. Si peu que ce soit qu'il communique au sujet : «Je sais ce que tu es, je sais ce qu'il te faut, je sais ton bien», il ferme cette porte. Elle ne reste ouverte que s'il fait entendre au sujet: «Je ne sais pas et c'est pourquoi il faut que tu parles». Et c'est en quoi le désir de l'analyste n'est que l'autre face de la passion de l'ignorance."50 No fundo, a resposta à questão da diferença entre psicanálise e psicoterapia resume-se ao "desejo do analista". Esta mais-valia da invenção freudiana constitui a alavanca que permite ir para além da identificação, do lugar do Outro, do mestre, do desejo de curar. Não faz sentido falar em desejo de psicoterapeuta, pois os desejos terapêuticos são muito diversos, variam 48 Em alternativa, existe o controlo (supervisão) e formação na Escola. "C'est pourquoi nous parlons de l'éthique de la psychanalyse, et du désir de l'analyste, comme d'un désir qui serait plus fort que le désir d'être le maître." MILLER, Jacques-Alain, "Psychothérapie et psychanalyse", in La Cause freudienne, n.º 22, 1992, p. 10. 50 Ibidem. 49 15 consoante o entendimento que se tem do bem-estar a atingir, mas também dos fantasmas que sobredeterminam a acção de cada terapeuta. Num certo sentido, as psicoterapias situam-se ainda no desejo que anima a medicina, o desejo de curar (Genesung), o furor sanandi (Leidenschaft zu heilen). Em claro contraste, Lacan define o desejo do analista como "um não-desejo de curar <nondésir de guérir>."51 O desejo do analista é o resultado de um desejo levado até ao seu impasse derradeiro. Assumir-se como psicanalista decorre da decisão de ocupar o lugar do vazio da causa do desejo. No tratamento, o desejo do analista é o que permite abrir a via para além do lugar do Outro e da identificação (discurso do mestre). Jacques-Alain Miller52 propõe o seguinte esquema para dar conta da operação que governa o acto analítico na condução da análise: Podemos situar a psicanálise propriamente dita a partir desta passagem para o andar superior do grafo do desejo; até aí não há ainda psicanálise, mas ensaio, entrevistas preliminares. De qualquer modo, aquilo que à primeira vista parece uma ascese corresponde mais a uma descida aos infernos (Acheronta). Aí, o sujeito é confrontado com o inconsciente, a pulsão e com a sua matriz fantasmática. A análise de orientação lacaniana visa ainda o real que o fantasma esconde, o vazio que causa o desejo. Sem esse salto psicanalítico (quântico) para o patamar de cima, não se pode isolar os efeitos da pulsão sobre a significação (patamar do meio). É essa operação que Lacan anunciou no Seminário XX de forma aforística: "Lá onde isso fala, isso goza <là où ça parle, ça jouit>". Só fazendo o périplo pelo andar de cima é possível detectar como no efeito de sentido reside já o gozo ("pas de sens sans jouissance", Lacan). 51 S-VII, p. 258(267). Trata-se, efectivamente de "curar o sujeito das ilusões que o retêm na via do seu desejo." Ibidem. 52 MILLER, Jacques, "Psychanalyse pure, psychanalyse appliquée et psychothérapie", in La Cause freudienne, n.º 48, 2002, p. 13. 16 Limitada aos efeitos de sentido, a psicoterapia não conseguirá secar o gozo em excesso, isto é, "eliminar o casco duro do gozo".53 Sem o psicanalista, sem o desejo do analista, não há modo de aceder à pulsão (), ao fantasma () e à inconsistência do Outro: . Essa é a diferença substancial entre a psicanálise e as psicoterapias. Se o acto psicoterapêutico se orienta pelo grande Outro (A), o acto analítico isola o desejo do Outro, conduzindo-o à sua inconsistência: .54 O psicanalista deve situa-se no lugar daquilo que é rejeitado pelo discurso, ele é o rebotalho da palavra. Eis um diagrama que esquematiza as diferenças entre a invenção de Freud e outras práticas que nela se inspiraram: Entrevistas Transferência Preliminares Travessia Passe do fantasma Psicanálise pura: Sintoma à entrada Neurose de transf. Fantasma Sinthome Psicanálise aplicada: Psicoterapia: Psicologia Em conclusão, o desejo do analista, que é o produto de uma análise concluída, constitui a exigência ética que dá corpo à diferença específica e à mais-valia da psicanálise face às psicoterapias. Se estas se detêm no sintoma, a psicanálise visa o para além do sintoma e da travessia do fantasma, isto é, obter o que o último Lacan chamou sinthome. Se ambas curam por meio da linguagem, a psicanálise propõe-se ir mais longe e curar o sujeito da linguagem.55 53 CIACCIA, Antonio, "Le lien social" in La Cause freudienne, n.º 22, 1992, p. 57. "El deseo del analista: la insistencia de querer inscribir lo imposible en un lugar donde nada se graba." FREDA, Francisco-Hugo, "De la experiencia de la búsqueda a la experiencia del encuentro" in Ornicar?, n.º 153, 12/1/2001. (Internet) 55 A propósito da diferença entre psicanálise e psicoterapia, Marie-Hélène Brousse enuncia a seguinte disjunção: "Curar por meio da linguagem ou curar da linguagem". BROUSSE, Marie-Hélène, "¿De qué sufrimos?" in Virtualia, n.º 5, Abril-Maio, 2002. (Internet) 54 17