e tudo o mais renova a função das antologias literárias

Transcrição

e tudo o mais renova a função das antologias literárias
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves,
Ana Luísa Vilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora
ISBN: 978-972-99292-4-3
SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu ensino: novas perspectivas.
E TUDO O MAIS RENOVA… A FUNÇÃO DAS ANTOLOGIAS LITERÁRIAS
Maria do Céu Fraga1
RESUMO
Nestas páginas, defende-se o uso da antologia literária como livro fundamental no
ensino do Português e na formação cultural dos jovens, mostrando como os seus textos
curtos são essenciais na educação do leitor atento e podem fomentar o gosto pela leitura
diversificada.
A escola dos nossos dias, vale dizer a sociedade, tem desbaratado o espólio literário
e cultural que herdou dos escritores dos séculos XVI e XVII, movida pelo preconceito de
ser mais apetecível e mais útil ao aluno o texto contemporâneo do que o clássico e
argumentando não terem hoje cabimento no ensino da literatura os paradigmas tradicionais
da História literária, sem notar que, num universo cultural em que «tudo muda», também as
orientações da história literária e da leitura do texto clássico se alteraram. A atitude crítica
hoje exigida perante os textos clássicos requer uma nova concepção de antologia literária,
que pode ser ainda encarada como meio para permitir ao estudante que persiste em estudar
literatura num curso superior, e a quem a escola normalmente não ofereceu o conhecimento
dos autores mais antigos, interrogar o texto numa relação justa.
PALAVRAS-CHAVE: história da literatura; antologia; ensino da literatura; manual.
1
Universidade dos Açores, Departamento de Línguas e Literaturas Modernas (endereço: [email protected])
1
Permitam-me que principie contando um episódio de sala de aula. No ano passado,
na primeira sessão de um seminário de mestrado que versava sobre «História e
periodização da Literatura Portuguesa», dei aos estudantes, grupo de bons alunos, formados
em diversas universidades e alguns a exercer o magistério, uma série de poemas,
desprovidos de qualquer indicação de autor ou datação. A tarefa que lhes propus consistia
em ordenarem cronologicamente esses poemas, num fio que ia dos trovadores a Jorge de
Sena. Entre eles, um atraiu a atenção imediata: «Noite escura, porém clara inimiga».
Abreviando agora o relato das reacções e argumentos, direi apenas que foi alvo de
controvérsia, chegando a haver quem o situasse no século XX e conseguisse convencer os
colegas da hipótese, invocando a feição contemporânea da sensibilidade manifestada. Foi
um espanto geral, quando anunciei que tinham em mãos um poema de Francisco Rodrigues
Lobo, extraído de uma novela pastoril. O autor era mais ou menos conhecido, de nome;
quanto ao género novela pastoril, sabiam ter existido, mas nunca tinham lido nenhum livro
assim classificável.
A história não termina aqui. O Pastor Peregrino foi eleito obra de estudo nesse
semestre, e cumpriu bem a função, tanto do ponto de vista estrito dos objectivos do
programa, como pelo interesse despertado. A certa altura, o agrado, diria mesmo o
entusiasmo, motivado pelas desventuras de Lereno era tal que não resisti a comentar a
minha surpresa com um colega. Mandei-lhe a notícia, e na volta obtive, entre outros
comentários, um «Eles nem sabem que gostam de literatura!», largado com a mesma ironia
melancólica do poema de Gedeão. Achei graça à observação, mas deu-me que reflectir. E
um dia, em circunstâncias muito diversas, fora do ambiente universitário, dei por mim a
pensar «eles nem sabem que há literatura»!
2
É necessário ser realista. Sem generalizar de uma forma obsessiva, e admitindo
sempre a existência de casos desenquadrados da regra, creio poder dizer que os jovens que
nos nossos dias insistem em estudar literatura na Universidade conhecem pouco, muito
pouco, da literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII, menos ainda do XVIII. Quando
nos encontram a nós, professores de literatura portuguesa clássica, eles, que estão já
habituados a formarem eles próprios um círculo restrito, olham para nós como quem olha
para uma ave rara: além de literatura, é literatura ante-diluviana!
É a imagem que a escola lhes transmitiu, de uma forma mais ou menos implícita ou
explícita. Os clássicos são uma herança, é preciso saber que os sonetos de Camões são
muito importantes, compreender – intelectualmente – a razão desta avaliação, procurar na
internet a autoridade de três ou quatro citações que a confirmem. Se possível, convirá até
saber algum pormenor da vida de Camões – e assiste-se novamente à proliferação de
biografias do poeta moderada ou ferozmente romanceadas, significando talvez que a
comunidade substitui o conhecimento da obra pelo culto do autor consagrado.
É que, na escola, o tempo urge. Lê-se um poema a correr, encontram-se os traços
mais característicos, resolvem-se problemas lexicais e de interpretação. Mas não se afina a
sensibilidade que permitiria distinguir a complexidade e a fundura de um soneto camoniano
da cumplicidade momentânea gerada por uma letra e um ritmo rap.
Ou seja, além do mais, «eles» não chegarão a aquilatar o valor da sua herança, uma
vez que não possuem a chave do cofre em que gerações anteriores (a nossa, também) a
encerraram. Para eles, julgamos nós, será suficiente saber que o tesouro existe e é valioso: e
em vez de lhes franquearmos o acesso à obra e ao julgamento autónomo, dizemos-lhes
comodamente o significado cultural dessa obra – ou, melhor dizendo, o significado que ela
teve para a nossa geração.
3
As heranças fazem parte da história das famílias: e com formulações várias, é
comum a muitos provérbios da nossa cultura a ideia de que uma família só se conhece
quando procede à partilha de bens herdados, tantas vezes com auxílio da Justiça. Que é uma
situação que despoleta paixões, prova-o bem a literatura romanesca, que por hábito explora
momentos típicos da vida, capazes de provocar conflitos e animar personagens: nesse
campo, lembremos apenas Camilo, ou o Eça do Mandarim ou da Relíquia. E creio que não
há quem não se recorde de Teodoro que procura desesperadamente livrar-se de uma
herança de que não se sente legítimo proprietário, porque nela lhe pesa a morte do
longínquo e desconhecido mandarim, ou do zelo com que o sobrinho de D. Patrocínio
procura garantir a herança, e para agradar à tia, lhe cultiva a beatice. Mas também nos
lembramos como acaba por se descuidar e é deserdado quando, anunciando a D. Patrocínio
uma relíquia, lhe entrega, embrulhada em papel de seda, a camisa de dormir de uma das
suas ocasionais conquistas, a camisa de Mary.
Falando de literatura, uma herança é, em primeiro lugar, constituída por textos. Por
isso julgo fundamental pensarmos na sua transmissão e valorização, operada pela escola e,
em geral, pela sociedade. Só assim poderemos perceber a situação em que se encontra a
maioria dos estudantes, mesmo estudiosos, que ainda vamos encontrando nas turmas de
literatura portuguesa.
A história literária foi, durante cerca de um século, o alicerce estável em que se
apoiava a presença da literatura nos programas de Português, desde que, em 1866, a
designação assim surgiu no ensino oficial no nosso país2. E, por sua vez, encontrou até há
2
Vejam-se os capítulos IV e V de Carlos Cunha, A Construção do Discurso da História Literária na
Literatura Portuguesa do Século XIX, Braga, Universidade do Minho, 2002. Sobre o papel fundamental da
história literária na compreensão da literatura e no seu ensino, vejam-se a análise da situação portuguesa e as
4
poucas décadas justificação e apoio na História geral, fosse pela inserção dos escritores em
épocas histórico-culturais comuns a várias formas de expressão artística, fosse pela própria
justificação dos universos ficcionais apresentados. Afinal, «l’ histoire est un roman qui a
été; le roman est de l’ histoire qui aurait pu être», segundo observavam em meados do
século XIX os irmãos Goncourt nas páginas do Journal.
Nesta frase em que ainda se ouvem ecos da caracterização, por oposição, da História
e da Poesia feita por Aristóteles, condensa-se também uma noção que veio a corroer os
próprios alicerces da História e fez desabar a certeza positiva de poder recuperar a verdade
do passado e dos feitos históricos, corroendo também a unidade de interpretação, a crença
na construção de uma narrativa verdadeira e totalizante da vida dos povos3.
«L’ histoire est un roman» – a história assenta na interpretação de testemunhos, que
são, eles também, interpretação dos factos. Contraditórios por vezes, heterogéneos e
parcelares, sempre.
Até meados do século passado, os objectivos da escola eram bem claros: tratava-se
de uma instituição que tinha a seu cargo ensinar, transmitir uma herança cultural que vinha
dos antepassados, e que deveria ser respeitada, acrescentada se possível. Cada época
constituía um elo de uma cadeia e o tempo parecia tornar mais fortes os elos mais antigos,
porque mais experimentados e resistentes. A literatura e a história ofereciam a base a um
sentimento que agregava a comunidade e, neste sentido, o conhecimento do cânone literário
impunha-se, a um tempo como sinal de integração patriótica nos ideais da comunidade, que
propostas apresentadas por José Cardoso Bernardes na conferência de abertura das II Jornadas Científico-Pedagógicas de Português («História literária e ensino da literatura», in Cristina Mello et al. (orgs.), II
Jornadas Científico-Pedagógicas de Português, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 15-39).
3
Cf. , por exemplo, a reflexão de Henri Marrou, Do Conhecimento Histórico, Lisboa, Editorial Aster, s.d.
5
se revia na sua juventude, e como modelo linguístico, pois nos autores eleitos espelhava-se
a correcção e a elegância estilística que o aluno deveria almejar.
Os autores apresentados nos sucessivos programas de ensino variavam ligeiramente,
porque também os valores a cultivar não sofriam desgaste social e, por conseguinte, o
cânone literário conseguia dar-lhes resposta. Ao mesmo tempo, a adopção do livro único,
que difundia uma interpretação coesa da nossa cultura e da nossa história, porque segura e
unificada, contribuía para consolidar a identificação da comunidade.
Nesse sentido, justificava-se que os autores mais antigos gozassem de privilégios
que eram negados aos contemporâneos. «Mais antigos», entenda-se, não eram os
medievais, que não poderiam constituir-se como modelo de imitação linguística, aliás: além
dos românticos do século XIX, era também o século XVI, o século em que, desde a
historiografia romântica se via unificada a consciência da nacionalidade e um período de
glória que se procurava reviver 4. Foi, naturalmente, o século que não resistiu às leituras
desmistificantes das alterações políticas e da pós-modernidade. Pelo contrário, o século
XVII não era uma época gloriosa, era o barroco, um século de degenerescência, um século
em que a grandiosidade se esvaíra. E também naturalmente, a situação alterou-se (até o
calendário, proporcionando as comemorações de efemérides e centenários a isso ajudou…),
a nossa sociedade fragmentada e cheia de incertezas valorizou a sensibilidade instável e o
sentido social do barroco – mas se encontrou autores característicos e atitudes em que se
reviu, faltaram-lhe os textos capazes de formar um corpus a apresentar aos alunos e de
constituir um modelo escolar.
4
Carlos Cunha, em O Nascimento da Literatura Portuguesa, Braga, Editora Nova Educação, 2008, centra-se
sobre este tema que, aliás, tratara já no livro apontado na nota anterior.
6
É que hoje a escola tem outras exigências, derivadas, em primeira análise, das
imposições da própria sociedade. E, nessa sociedade, a história, a literatura, as
humanidades, de uma forma mais geral, perderam grande parte do prestígio que detinham.
Julga-se improdutiva a memória do passado, tanto mais que se sabe que as situações são
irrepetíveis. Da filosofia, da sua capacidade de construir sistemas explicativos do mundo,
retém-se a busca de sentidos parcelares, por vezes de tal forma assistemáticos que se
poderão confundir com a interrogação poética, literária e pessoal. E torna-se um devaneio
inútil a literatura, que nem sequer se ocupa do que aconteceu, mas se entretém a inventar
situações, que joga com possibilidades e nem pode fazer juízos de realidade.
E se à distância da imaginação se juntar a lonjura do tempo, se às pechas da
literatura se somarem as da história, compreende-se que a escola procure na
contemporaneidade a tábua de salvação para a educação literária, pensando que será mais
apelativo, porque mais fácil e imediato, logo mais útil, o conhecimento da época em que o
aluno vive.
Mas será que se justifica a tendência de tratar os alunos como seres incapazes de se
confrontarem com o desconhecido? Será obrigatório que os textos do século XVI e XVII
tenham sempre uma mensagem imediata, ou, pelo menos, divertida? Não poderá haver
espaço para o texto que seja colocado na perspectiva de um mundo que foi o seu? Nas
barcas do Auto da Barca do Inferno teremos de embarcar forçosamente políticos e
personalidades dos nossos dias? E teremos de apagar as labaredas de inferno que
atemorizavam os colonos a quem o Padre António Vieira dirigia as suas exortações, para
ver no Sermão de Santo António uma simples pregação de justiça terrena?
A descentração é uma operação psicológica e intelectual que pode ser utilmente
propiciada pela literatura. A literatura pode oferecer ao jovem momentos de confortável
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identificação e até de compensação: pense-se na poesia lírica quinhentista, veja-se como a
análise introspectiva permite a compreensão de processos sentimentais que não são
estranhos aos alunos, ou veja-se como tantos adolescentes vivem as aventuras e desventuras
dos seus heróis. Mas ao mesmo tempo, a capacidade formativa da literatura não é apreciada
apenas por nela nos podermos reencontrar. É a partir de situações que não lhe são
familiares que o jovem pode ter a noção de alteridade, pode forjar e julgar a sua integração
no mundo social.
Ponderando bem, tão estranho à maneira de pensar e de escrever de um jovem aluno
do ensino secundário é o mundo quinhentista como a poética visão de Sophia ou a de
Saramago. No entanto, entende-se que na obra destes se representam uma sensibilidade e
uma inteligência do mundo que merecem o esforço de aprendizagem, apesar de,
forçosamente, implicarem um esforço de habituação e treino de leitura.
Eliot dizia desconfiar do gosto e da formação literária de quem nunca
compreendesse e apreciasse os poetas seus contemporâneos. Mas acrescentava lamentar
também quem não fosse capaz de descobrir na poesia antiga o encanto da descoberta de um
mundo diferente do seu. Com efeito, a diversidade dos textos torna-se essencial para a
criação de hábitos de leitura autónoma. E quando falo em diversidade, refiro-me a autores,
mas também a épocas. Nessa ordem de ideias, convém lembrar que um texto não fala
sozinho; e, se é certo que o leitor pode dialogar com o texto, a riqueza das respostas
dependerá, em larga medida, da capacidade de interrogação. Nesse sentido, a perspectiva da
história literária pode ser enriquecedora.
Ninguém haverá hoje em dia tão tradicionalista que defenda ainda a concepção de
história literária oitocentista. Com efeito, falar hoje em história literária implica dar
primazia ao texto, à obra. Nos nossos dias, a história literária já não coloca em primeiro
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lugar o autor, nem tão-pouco explica pelo contexto a produção literária. Nos programas, o
texto ganha o relevo de primeiro plano. Mas para que este salto se traduza por um real
enriquecimento do aluno, é fundamental que o ―livro de Português‖ cumpra uma função
exigente.
Há algumas décadas, perdeu-se a noção de livro de Português como antologia, livro
de leitura. O livro de Português passou a assemelhar-se ao manual de qualquer outra
disciplina: é concebido como livro de estudo, que em si encerra textos, fichas de leitura,
projectos interdisciplinares, informações sobre temas relacionados com os textos, esquemas
da matéria a estudar, propostas de actividades… Ensina até a ler (diga-se estudar) algumas
obras de leitura extensiva.
É pena.
Com a alteração, o aluno não ganhou, antes ficou a perder. Como ele, o ensino e o
estudo das humanidades também sofreram. A leitura extensiva de uma obra não cumpre a
função desempenhada pela leitura do texto breve e da antologia.
O texto breve é essencial para a formação do leitor atento. Não permite, claro, o
exercício de um direito fundamental, inalienável, que tantos escritores temem, mesmo
quando dele falam com ironia, e que Perec consagrou: o direito de saltar páginas. Contudo,
em idade escolar, talvez esse direito se deva exercer nos livros que se lêem por recreio.
Aliás, é um direito que, penso, não cabe à escola fomentar. Cabe-lhe antes ensinar a
discriminar o essencial, o secundário e o acessório. Ou seja, ensinar a interpretar. De certa
forma, na aula de Português deveria ser sentida como artificial a distinção entre estudar e
ler ou interpretar um texto: idealmente, são uma só operação.
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O livro de Português tende a ser mais um livro de Língua Portuguesa do que de
Português, mesmo quando os objectivos do programa acentuam uma forte componente de
cultura literária e a sua orientação é marcada por uma perspectiva humanística.
E ainda assim, os manuais tendem a esquecer que uma língua se aprende pelo uso.
A norma é lembrada, no que à língua materna diz respeito, na escolaridade básica. No
entanto, parece que o princípio deixa de ter aplicação efectiva quando o aluno acaba de
frequentar a pré-primária. Nessa altura, os autores dos manuais optam claramente pela
sistematização, esquecendo que há normas que se vão abstraindo no próprio uso da língua,
que há um tempo de ouvir e de imitar intuitivamente, e que é tendência natural falar de
acordo com os exemplos conseguidos. E que, por conseguinte, há que proporcionar
exemplos ricos, variados… e numerosos.
Contudo, estranhamente, em vez de se proporcionar ao aluno um número de
exemplos mais elevado, diminui-se o peso dos textos, reduzindo-se ainda mais o leque de
autores e, portanto, de concretização das possibilidades expressivas do Português. Parte-se
do princípio de que falamos todos tão mal a nossa língua materna que a única alternativa
será a constante correcção consciente e a interiorização de esquemas que deverão ser
aprendidos a partir de uma explicitação prévia. Um pouco como se de cada vez que abrimos
a boca para falar devêssemos resolver uma equação linguìstica…
A concluir uma análise fundamentada que faz aos actuais livros de Português, Rui
Vieira de Castro expressa cruamente a ideia, tão corrente entre os pais e encarregados de
educação, de que o livro de Português se dirige hoje mais ao professor do que ao aluno. E
com a mesma crueza mostra como a subalternização do professor é conseguida. Mais ainda,
pela análise de exemplos, põe a nu que a imagem que os autores dos manuais têm desse
professor é francamente desprestigiante. O manual que a escola entrega nas mãos do aluno
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destina-se, de facto, a um professor mal preparado ou a um professor que não tenciona
―perder tempo‖ a preparar as aulas. E por detrás do livro adivinha-se um professor que
perde de vista o alcance cultural da aula de Português 5.
Numa antologia, o virar de cada página permite viajar no tempo e na imaginação, e
até o ter-se atribuído a cada excerto um título e uma pertença, constitui já uma sugestão de
leitura. A própria variedade, que barrocamente evita a monotonia, contribui para a
percepção da dimensão cultural (interdisciplinar, se se preferir) da literatura. Ao mesmo
tempo, o aluno trava contacto com maneiras diferentes de escrever bem — correcta e
adequada — de autores que pertencem ao número daqueles que nós, adultos de outra
geração, consideramos canónicos e tentamos por isso incluir no legado a deixar. E se há
obras dos séculos XVI e XVII que não pensamos adequadas a serem integralmente lidas
por crianças e jovens, há passagens delas que consideramos ter o dever de dar a conhecer,
pela sua qualidade estética e pela representatividade epocal: João de Barros, Francisco
Rodrigues Lobo, Bernardim Ribeiro ou Sá de Miranda, por exemplo.
O mesmo sucede, aliás, com um autor como Júlio Dinis, no século XIX:
dificilmente diríamos a um aluno do curso geral ou do secundário para ler uma Morgadinha
dos Canaviais ou umas Pupilas do Senhor Reitor; mas, culturalmente falando e vendo na
literatura um ponto de convergência de conhecimentos e de expressão de uma época, só lhe
fará bem, neste ano em que se celebra Darwin, divertir-se a ver como na tenda de João da
Esquina se discute a teoria da evolução defendida pelo médico recém-formado.
5
Rui Vieira de Castro, «Já agora, não se pode exterminá-los? Sobre a representação dos professores em
manuais escolares de Português», in Rui Vieira de Castro et al. (orgs.), Manuais Escolares. Estatuto, funções,
história, Braga, Universidade do Minho, 1999, pp.
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Poderá haver algum exagero no quadro traçado. Todavia, dever-se-ia olhar com
mais atenção para o livro de Português: no estado actual, julgo que se desperdiça um
instrumento que deveria, e poderia com proveito, conciliar o ensino da língua e o
entendimento do homem na diversidade das suas realizações. Nós, professores,
encarregados de educação, sociedade em geral, criticamos amiúde os programas oficiais; e
contudo, esquecemo-nos de que um bom professor, ou simplesmente um professor
empenhado, com mais facilidade suprirá as falhas de um programa oficial do que as
deficiências do manual que o aluno vai carregando dia após dia na mochila e abre quando
tem de fazer o trabalho de casa.
O estudante que ao chegar à Universidade persiste na vontade de estudar literatura é
normalmente um leitor por gosto. Mas o seu percurso escolar abriu-lhe um horizonte pobre
no que toca aos escritores dos séculos XVI e XVII. A situação torna-se tanto mais
insustentável quando é certo ser o curso universitário um patamar decisivo na formação
individual. E por isso se lhe exige que concilie o inconciliável: que promova o saber
especializado e que torne os seus estudantes gente culta. Ao mesmo tempo, exige-se ainda
que os cursos tenham utilidade social, traduzida em empregabilidade (e não exactamente
em bom desempenho profissional).
O homem culto não pode prescindir de conhecimentos factuais, de noções e dados
positivos, relacionando-os em primeira instância com a área de conhecimentos em estudo.
O escravo de Platão conseguiu, através do processo maiêutico, atingir a formulação do
teorema de Pitágoras, mas não é concebível que fosse mais longe, comenta Gusdorf6. Só
assim se torna possível organizar e valorizar o conhecimento, ou seja, ser-se culto.
6
Georges Gusdorf, Pourquoi des professeurs?, Paris, Payot, 1963.
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Estudar Camões, por exemplo, não se pode traduzir em conhecer apenas Camões, a
obra camoniana e estudos críticos que lhe são dedicados — sob pena de retrocedermos no
tempo e voltarmos ao culto tìpico da ―monomania camoniana‖ de que Carolina Michaëlis
traçava a caricatura. Conhecer Camões implica também conhecer a sua época e os seus
contemporâneos. No campo estritamente literário, não é apenas conhecer a poética por que
se regia Camões: sem se ter lido um Bernardes, um Caminha, um Corte-Real, um
D. Manuel de Portugal, ou um Garcilaso, dificilmente se poderá ter a noção do que seja a
expressividade de Camões.
Muitas vezes, os estudantes ficam chocados quando encontram pela primeira vez os
poemas que Camões imitou. Afinal, Petrarca, Garcilaso de la Vega já tinham recorrido
àquela imagem, a antíteses semelhantes, aos mesmos ritmos para traduzir a perplexidade da
análise introspectiva… Se não tiverem desenvolvido, já desde o ensino básico e secundário,
sensibilidade poética, demorarão muito tempo a perceber a expressividade, a apropriação
que cada poeta faz da herança cultural recebida. E se a par da sensibilidade poética não for
trabalhada a sensibilidade linguística, também não verão a maravilha que outros encontram
no retrato de Leonor. Afinal, é natural que um estudante não consiga perceber bem com que
roupagem está vestida Leonor…
Neste aspecto, as antologias literárias da época clássica continuam a manifestar a
sua utilidade para o estudante universitário, a quem um semestre lectivo não poderá
proporcionar o encontro directo com alguns autores importantes de que ouvirá falar. A
título de exemplo, pensemos novamente em Camões lírico. Não são muitas as edições de
poetas seus contemporâneos que, respondendo a exigências de rigor ecdótico,
proporcionem uma leitura agradável, principalmente pela falta de anotações que facilitem a
compreensão do texto. Os volumes da popular colecção ―Clássicos‖, da Sá da Costa, que
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geralmente esclareciam de forma breve as dúvidas lexicais, legítimas no leitor dos nossos
dias, vincam demais que foram fruto de uma época já distante em termos de exigência
crítica, além de se terem tornado raros. Actualmente, com introduções e notas
esclarecedoras, Diogo Bernardes viu reeditadas as Várias Rimas ao Bom Jesus por Maria
Lucília Pires, enquanto o conjunto da sua obra foi editado por J. Cândido Martins (O Lima),
Luís Alexandre da Silva Pereira (Rimas Várias, Flores do Lima) e João Amadeu O. C. da
Silva (Várias Rimas o Bom Jesus). António Ferreira encontrou editor em T. F. Earle e
António Cirurgião subtraiu Duarte Dias ao rol dos esquecidos. Hélio Alves optou por
organizar uma antologia de Corte-Real, defendendo assim o autor, o que não acontece com
Pero de Andrade Caminha, que tem a sua copiosa obra estudada e publicada por Vanda
Anastácio. A poesia profana de D. Manuel de Portugal conhece-se pela edição de Sá
Fardilha, Maria Luísa Linhares de Deus discute o cânone de Fernão Rodrigues Lobo
Soropita, que desde Camilo não via letra de forma, mas nem um nem outro esclarecem
passos de interpretação mais difícil.
As antologias podem ainda permitir ao estudante o delinear a época: vejam-se os
Poetas do Período Maneirista, de Isabel Almeida, que curiosamente não inclui Camões,
mas apresenta óptimas sugestões de leitura, ou a edição da Antologia de Poesia
Portuguesa. Século XVI: Camões entre seus contemporâneos de Sheila Moura Hue.
Também os cancioneiros de mão poderiam cumprir essa função de florilégios, tanto mais
que foram organizados por alguém que filtrou e leu a sua época; contudo, nos nossos dias,
encontram-se quase reservados aos estudiosos, porque raramente publicados em edições de
leitura corrente.
Entende-se facilmente que a concepção de uma antologia se associe ao
entendimento da historia literária como fio ordenador. Mas a concepção de história literária
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mudou desde o tempo em que a antologia era um livro indispensável ao conhecimento
literário e à expansão dos autores e textos canónicos. Mudaram também, necessariamente,
os vínculos que poderão ligar um livro de história literária e a antologia literária que ilustre
as opções e ideias expostas.
Já não é a orientação em que José Maria da Costa e Silva ilustrava o Ensaio
biographico-critico sobre os melhores poetas portugueses (1850-55) com os textos que
confirmavam a valoração do juízo estético e crítico formulado, numa atitude presente
também na sempre útil História da Literatura Portuguesa de Mendes dos Remédios. A
estes livros em que às páginas de história se associam páginas antológicas exige-se agora a
primazia do texto literário e uma atitude de indagação, na consciência de que a nossa leitura
dos textos do século XVI e XVII representa o encontro de duas épocas. É uma orientação
que está presente, por exemplo, na História e Antologia da Literatura Portuguesa,
publicada sob orientação de Isabel Allegro de Magalhães, em que a história é feita por uma
pluralidade antológica de vozes.
Queremos com isto dizer que se pode fazer um curso universitário através de
simples antologias? Ou que uma antologia «resolve o problema» dos alunos? Não, de
maneira nenhuma. Há no ensino universitário um sentido de aprofundamento e rigor que
não é compatível com a falsa sensação de se abarcar o mundo. Queremos dizer, isso sim,
que, na formação do interesse pela leitura, e por consequência, na educação cultural e
estética, a antologia literária desempenha um papel insubstituível. Livro de leitura na aula
de Português, torna-se livro de apoio de gente culta e alarga certamente o horizonte de
quem o lê, desde que o seu organizador tenha em conta que no mundo tudo muda,
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inclusivamente os trilhos dos estudos literários. E que tenha ao mesmo tempo a noção
exacta de que uma antologia deve proporcionar variedade: autores, temas, épocas.
Nesse sentido, também é importante que a escola tome consciência de estar a
desbaratar a nossa herança cultural literária em particular, a troco de uma desmesurada
sobrevalorização do contemporâneo. Divulgar as flores dos autores clássicos pode ser um
processo de nos recusarmos a aceitar elegiacamente que isto seja ―sem cura‖. Para que não
tenhamos de chorar, como aquele Teodoro que evoquei no início desta comunicação, a
troca dos embrulhos e não entreguemos aos vindouros, em vez da relíquia preciosa, a
camisa perfumada de Mary…
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