O enfermeiro e a responsabilidade de se tornar

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O enfermeiro e a responsabilidade de se tornar
O ENFERMEIRO E A RESPONSABILIDADE DE SE TORNAR COMPETENTE
Nidia Salgueiro. Inf., Coimbra, Portugal
Este escrito resulta de um convite da Ordem dos Enfermeiros – Região Centro para escrever um
pequeno apontamento no âmbito da responsabilidade profissional, para publicar no seu Jornal a
Enfermagem e o Cidadão que é distribuído a todos os seus membros e aos cidadãos através das
organizações sociais. Apesar de naquele momento ter em mãos um outro compromisso inadiável,
não fui capaz de recusar. É um assunto que me é muito caro, daí que de imediato afluíssem à minha
mente uma série de aspectos que seria interessante tratar e de experiências vividas ao longo de mais
de meio século de profissão que gostaria de partilhar. Para um assunto tão amplo há que fazer
escolhas sobre a vertente a considerar. Após um breve questionamento, surgiu claramente a ideia de
abordar a responsabilidade de se tornar um profissional competente, um perito na sua área de
intervenção e de evoluir como pessoa, desabrochando e desenvolvendo todas as suas
potencialidades.
Não é tarefa fácil, mas esta profissão que privilegia o contacto humano, as relações interpessoais, dá
imensas oportunidades de o fazer. Isso acontece naturalmente, sem grande esforço, se a pessoa nela
se envolver séria e responsavelmente, se aceitar as tarefas a desempenhar e as situações que se lhe
apresentam como desafios à sua capacidade de aprender e evoluir, por mais incómodas e difíceis
que elas sejam.
Estes dois objectivos estão imbricados um no outro, numa relação recíproca: ao desenvolver-se
como ser humano, desenvolve-se também como enfermeiro capaz de compreender, de aceitar e
respeitar, de ter compaixão e amor incondicional por outro ser humano. Um ser humano em
situação de fragilidade, de sofrimento, de doença. Um ser humano que inesperadamente vê ruir os
seus projectos de vida, se vê separado dos seus entes queridos, invadido por medos e incertezas
quanto ao seu futuro, cujas questões que afluem à sua mente não obtêm respostas satisfatórias para
os múltiplos problemas que o afligem, pois como diz o povo “um mal nunca vem só”. Este dito tem
a sua razão de ser, dado que se acredita que os distúrbios físicos aconteceram, frequentemente, nos
corpos energéticos, nos corpos subtis, muito antes de se manifestarem no corpo somático. Mas este
ser humano é também, quantas vezes, um homem que caiu nas malhas da marginalidade e da
dependência de substâncias aditivas, que necessita de ajuda e não que o crucifiquem pelos seus
erros. Quando o enfermeiro atingiu a plenitude do seu desenvolvimento humano, ele sabe detectar a
angústia e a dor, aliviar o sofrimento e levar conforto e esperança, ele sabe como cuidar do homem
caído.
O contrário também é válido: o enfrentar no seu quotidiano profissional as situações problemáticas
mais incríveis obriga-o a apelar ao capital de conhecimentos adquirido, à sua capacidade de
compreensão humana, à sua inteligência, à sua criatividade e poder de decisão, a questionar-se e a
reflectir sobre as suas competências e os seus valores. Quantas vezes, a pôr em causa as suas
verdades. No exercício da sua profissão o enfermeiro que se envolve num processo de análise
reflexiva encontra imensos desafios e estímulos ao desenvolvimento da sua “humanitude”.
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A escola fornece ao estudante de enfermagem uma gama de conhecimentos que lhe permitem
adquirir as competências básicas para iniciar o seu percurso profissional, no entanto, é a ele que
cabe a responsabilidade de aprender, encetando desde o início da sua formação um processo de
autoconhecimento e autodesenvolvimento pela auto-análise reflexiva sobre os seus valores,
conhecimentos e fragilidades a fim de as colmatar. Da forma como o estudante “agarrou” as
oportunidades formativas que na escola lhe foram oferecidas e conduziu este processo assim será o
montante do capital a que poderá recorrer no início da sua vida profissional. Mas a realidade
profissional não se compadece com esta formação de base, ele vai enfrentar situações complexas
que exigem desenvolver e actualizar as suas competências, tanto mais que a realidade não é
imutável. Um exemplo: para posicionar e mobilizar um doente, enfermeiro faz apelo aos
procedimentos técnicos que aprendeu e a conhecimentos de anatomia e fisiologia osteo-articular e
muscular, do sistema circulatório e nervoso e outros conhecimentos básicos, mas à medida que
avança no seu percurso profissional vai cuidar de doentes politraumatizados, com problemas
neurológicos, dementes e outras situações cuja gravidade exigem a integração de conhecimentos de
vária ordem e desenvolvida destreza e sensibilidade, bem como o discernimento e a criatividade
para obter posicionamentos satisfatórios, tendo sempre presente o risco de lesões nervosas e dos
tegumentos para as evitar, as quais, além de desconforto e dor, podem levar a incapacidades. Além
disso, quando se torna um enfermeiro perito, na verdadeira acepção da palavra, ele sabe rentabilizar
aqueles momentos junto do doente, não executa mecanicamente os procedimentos. As suas mãos ao
tocarem, ao manipularem o corpo do doente, detectam o estado do tonus muscular, contracturas,
espasticidades e pontos de sofrimento, observa o estado de integridade dos tegumentos, de nutrição
e hidratação como também capta os odores corporais. A respiração do doente fornece-lhe imensas
informações sobre os seus medos, o seu nível de ansiedade, a sua tristeza, enfim, o seu estado de
alma, como afirma Frans Veldman “No humano, o sopro exprime sem cessar o estado de alma e os
sentimentos” (in Phaneuf, 2005, p.40). Os olhos, o fácies do doente espelham o que lhe vai na alma:
o desânimo, a desesperança, a raiva, a revolta, a falta de forças para lutar ou a vontade de viver,
apesar do sofrimento. O ouvido do enfermeiro perito capta ruídos, gemidos, suspiros tão débeis que
passariam despercebidos à maioria dos mortais. Até a forma como os braços do doente estão
pousados ou abandonados no leito lhe fornece informações preciosas, mas escuta também as
palavras do doente, nem sempre congruentes com a linguagem silenciosa do seu corpo, às vezes
gritos de desespero e de dor.
Simultaneamente toda esta informação vai sendo processada no seu computador cerebral e cruzada
com informação armazenada na memória RAM do disco rígido: conhecimentos, experiências
anteriores e os resultados das suas análises e reflexões. Estas operações mentais permitem
descodificar as mensagens que aquele ser que está nas suas mãos, entregue aos seus cuidados, lhe
está a enviar, consciente ou inconscientemente. E de imediato começa a agir de acordo com a
interpretação da mensagem, não precisando, na maioria dos casos, mais do que se fazer ele próprio
instrumento terapêutico, para estimular para a vida, para apaziguar, para aliviar e confortar. Pelos
seus olhos, o seu sorriso, o seu semblante, ele emite sinais de consideração e respeito, pois toda a
pessoa tem necessidade de se sentir considerada, de ser acolhida como membro da família humana,
de ser tratada com o respeito devido a essa sua condição. O seu ouvido torna-se coração, escutando
com compreensão e empatia, sem julgar. As suas mãos levam-no de volta aos momentos de ternura
que viveu ao colo da mãe, quantas vezes há muito esquecidos, pelo toque afectivo, acompanhado da
palavra doce. A palavra é uma arma potente, por meio dela transmite os conhecimentos de que a
pessoa carece para viver melhor, para evitar complicações da sua doença ou para não se deixar
adoecer. Igualmente, estimula, valida informações e os juízos clínicos a que chegou. Enquanto
actua, no caso, mobiliza o doente, ele vai descrevendo os gestos e enumerando as partes do corpo
em que está a trabalhar e desta forma ajuda o doente a manter ou reapropriar-se do seu esquema
corporal, que, por exemplo, em caso de doente atingido de acidente vascular cerebral perdeu, mas
também o ajuda a fazer os gestos de que é capaz para readquirir a autonomia perdida.
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A ambição máxima de qualquer enfermeiro deve ser tornar-se perito em utilizar-se a si próprio, na
plenitude do seu ser e conhecimentos, como instrumento de intervenção terapêutica, de desenvolver
uma percepção muito fina e uma apurada intuição. Que tal como um bom marceneiro que é capaz
de detectar a essência de uma madeira pelo simples toque, também o enfermeiro ao fim de alguns
anos de profissão deverá ser capaz de detectar o sofrimento de um doente, simplesmente passando
as mãos pelo seu corpo (Yves Gineste e Rosette Marescotti).
Dirão, esta mulher é uma lírica:
- Como é possível que os enfermeiros sejam capazes de fazer, ao mesmo tempo, tantas coisas?
De facto é trabalho para uma vida, diria para muitas vidas, dado que os estudos com a memória
extra-sensorial, as regressões para além da vida actual e as histórias de meninos-prodígio, dotados
de mestria numa determinada área do saber ou das artes sem terem tido aprendizagem, indiciam que
o capital adquirido não se perde. É evidente, que esta obra cabe ao próprio enfermeiro que, como
disse, tem a responsabilidade e o dever de se tornar competente, mas também às estruturas
formativas pelas suas exigências e consciencialização, aos enfermeiros com mais experiência
profissional, que têm o dever de ajudar os menos experientes, à OE pela exigência e controlo da
profissão e tem toda a legitimidade e o dever de o fazer, pois pelo seu estatuto (Art.º. 3, Ponto 1)
assumiu como desígnio fundamental promover a defesa da qualidade dos cuidados de enfermagem
prestados à população, bem como o desenvolvimento, a regulamentação e o controlo do exercício
da profissão de enfermeiro, assegurando a observância das regras de ética e deontologia
profissional. Mas, também aos próprios cidadãos, cabendo-lhe a obrigação de se tornarem utentes
conscientes dos seus direitos e de serem exigentes.
E, dirão ainda:
- Onde estão estes enfermeiros com esta preparação, estes peritos?
Sendo, como disse, um processo progressivo e de longa duração, haverá sempre enfermeiros em
diferentes níveis de desenvolvimento, é certo. Mas o enfermeiro trabalha na sombra, as intervenções
que considero mais sublimes não têm uma grande visibilidade, ou por outro lado, vêem-se em
esplendor quando não são feitas. Não tenho dúvida que a pedra basilar de uma equipa, embora a
estrela que brilha no firmamento da saúde não seja ele, é o enfermeiro. Faz-se ideia de quanta
energia o enfermeiro consome a fazer circular a informação pelos diversos membros da equipa e na
articulação das intervenções de todos esses elementos? E já que tanto se fala em economia,
imagina-se quantos dias de trabalho, quantos dias de internamento, quantas somas de dinheiro em
medicamentos e material, são economizados quando pelos seus cuidados, que parecem banais, evita
problemas respiratórios, infecções, estiramentos e contracuras, úlceras de pressão e outros, sem
contabilizar o sofrimento, o mais importante e que não tem preço? E, quando pela sua comunicação
pedagógica, ao doente e família, previne complicações, evita reinternamentos e ajuda o doente e os
seus cuidadores a viverem melhor apesar dos seus problemas? E do que representa para o
desenvolvimento harmonioso de uma criança, da própria espécie humana a preparação que dá aos
pais para o seu papel parental? Quando ajuda uma mãe a tomar consciência do investimento que
está a fazer, para toda a vida do seu filho, ao amamentá-lo envolvendo-o num clima de ternura, de
afectividade? E quando ajuda os pais a compreenderem que o tempo que dispensam a acariciar o
seu bebé, a dar-lhe colo, a falar-lhe, a sorrir-lhe, ou seja, a estimular o seu desenvolvimento é o
maior investimento da sua vida? E que este investimento afectivo que se inicia na concepção fica
marcado no cérebro límbico do seu bebé, constituindo a sua memória afectiva que pode ainda ser
tocada em caso de grandes perdas cognitivas, quando outras memórias foram perdidas? Esta
intervenção pedagógica do enfermeiro não tem preço e felizmente está a ser muito bem
desempenhada na maior parte dos serviços materno-infantis.
Quem se dá verdadeiramente conta, por exemplo, do quanto o enfermeiro contribui, na sombra, para
o êxito de uma intervenção cirúrgica? Pela preparação da sala operatória, providenciando materiais
e equipamentos e verificando o seu perfeito funcionamento no respeito pelas normas de segurança a
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fim de evitar danos para o doente e riscos para os técnicos; pela segurança que dá ao cirurgião ao
posicionar um doente de forma a facilitar-lhe o trabalho e sem danos para o doente, ao prever,
quando instrumenta, as suas necessidades, antecipando-se aos seus pedidos; pela gestão de tudo o
que se passa na sala, até do ambiente psico-emocional de forma a criar o clima de serenidade tão
necessário a situações em que está em jogo a vida. E de quantas vezes deixa cair até palavras
agressivas, gestos desabridos, não porque seja amorfo de sentimentos ou um capacho, mas porque
compreende os momentos de tensão e a natureza humana e tem presente que no centro das suas
atenções está o doente, que não pode ser prejudicado por guerrilhas estéreis.
Quem se dá conta, quando detecta atempadamente efeitos adversos da medicação, complicações ou
sinais de agravamento da situação do doente ou do seu estado doloroso e os resolve?
E quem vê, quando ele detecta e ajuda a resolver, em pessoas em fim de vida, uma angústia, uma
culpabilidade há muito enterrada no seu subconsciente ou a necessidade de se apaziguar com
alguém com quem esteve em conflito? E quando se bate contra o encarniçamento terapêutico em
situações de degradação física e em que detecta a vontade de partir, porque na outra dimensão já
estão entes que lhe foram muito queridos?
Claro, como noutras profissões, alguns dos seus membros não se enquadram cabalmente nos
quadros de referência estabelecidos pela sua Ordem, não formularam o seu projecto pessoal e
profissional de desenvolvimento, nem se empenharam num processo de auto-análise e autoactualização permanente para corresponderem a tão grandes exigências ou então deixaram-se
esgotar profissionalmente, com as inerentes consequências para a sua saúde e desempenho
profissional.
Em suma: ao correr da pena, deixando falar o coração sem crítica racional, expus como considero
um dever do enfermeiro desenvolver todas as suas potencialidades e “agarrar” as imensas
oportunidades que a sua profissão lhe dá para evoluir como pessoa e se tornar um profissional
competente. Ao ler o discurso produzido, senti que também transmiti o que é para mim ser
enfermeiro. Dei alguns exemplos em que as suas intervenções têm pouca visibilidade, mas são de
extrema importância. Muitos mais exemplos poderia enumerar sobre o trabalho sublime que o
enfermeiro desenvolve silenciosamente, sem alarde, centrado na pessoa humana, porque ele sabe
que “é fácil querer ser flor, difícil é querer ser raiz!».
Bibliografia
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(Tradução Nídia e Rui Pedro Salgueiro), 2005.
SALGUEIRO, Nídia – O enfermeiro e a responsabilidade de se tornar competente, Enfermagem e o
Cidadão, Jornal da Secção Regional do Centro da Ordem dos Enfermeiros, Ano 4, N.º 10, Outubro
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VELDMAN, Frans – Haptonomie, Science de l´Affectivité. Redécouvrir l´humain. 8.ª ed.
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