EDITORIAL - CESSS - Universidade Católica Portuguesa

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EDITORIAL - CESSS - Universidade Católica Portuguesa
Locus SOCI@L 2/2009
EDITORIAL
Como afirmámos aquando da publicação do número 1 da Locus Soci@l, o seu propósito é
promover a divulgação científica no âmbito do Serviço Social, da Política Social e das Ciências
Sociais em geral, constituindo-se como um veículo privilegiado para a publicação dos trabalhos dos investigadores do CESSS, bem como de investigadores nacionais e internacionais
destes domínios. A principal finalidade da LS será a divulgação da produção teórica e analítica
em Serviço Social e Política Social realizada em Portugal, bem como de pesquisas e estudos
empíricos nestas áreas e o aprofundamento das relações entre investigação, ensino e prática
nestes domínios.
É no cumprimento deste desiderato que agora se dá à estampa o número 2, o qual, apesar do
atraso registado face ao calendário inicialmente previsto, se inscreve na linha de rumo e perfil
então traçados.
Este número integra, no dossier temático, as actas do seminário nacional promovido pelo
CESSS Profissões Sociais em Portugal: Trajectórias e Identidades, com as comunicações de Francisco
Branco sobre Assistentes Sociais e Profissões Sociais em Portugal, de Teresa Alves relativo aos
debate em torno do Serviço Social e das profissões femininas, de Inês Amaro versando a temática das identidades e incertezas do Serviço Social na contemporaneidade. As actas integram
ainda a comunicação de Teresa Sarmento sobre as identidades profissionais em educação de
infância.
Na secção de artigos são publicados três ensaios. O artigo de Maria Irene Carvalho toma como
objecto a questão da política de cuidados domiciliários em instituições de solidariedade social
em Portugal. Trata-se de um artigo que toma por base um estudo empírico sobre prestação de
cuidados domiciliários em situação de dependência que a autora interroga na perspectiva do
binómio risco/protecção dos cidadãos utentes.
O artigo de Ana Oliveira apresenta-nos um estudo de caso sobre os factores promotores de
trajectórias de inclusão na intervenção com jovens com percurso de risco. Trata-se de um ensaio de modelização de práticas profissionais e institucionais tendo por base a experiência do
projecto «Clube de Jovens» que acolhe, acompanha, socializa e desenvolve pessoal e socialmente crianças e jovens em situação de desvantagem social e percursos de risco.
O artigo de Fernanda Rodrigues e Francisco Branco reporta-se à comunicação apresentada
pelos autores à 19 ª Conferência Mundial de Serviço Social, realizada em Salvador da Baía em
Agosto de 2008, e ainda não acessível aos leitores nacionais. Trata-se de uma comunicação
que privilegia a análise da questão da investigação em Serviço Social em Portugal a partir da
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formação pós-graduada, revelando as grandes tendências percorridas pela investigação neste
domínio e assinalando alguns debates significativos abertos neste campo.
A par da pertinência e contribuição que os artigos publicados encerram, este número da Locus
Soci@l apresenta uma dimensão particularmente significativa quanto ao perfil de revista científica se propõe constituir e ao percurso que vem trilhando. Queremos referir-nos à relevância
do processo de peer-review que neste número ganha uma mais clara e consistente centralidade,
e que em parte é responsável pelo atraso observado na sua edição. Na verdade, neste número,
alcança-se um patamar superior de exigência e rigor uma vez que todos os artigos publicados,
inclusive as comunicações apresentadas em seminários organizados pelo CESSS, forma sujeitos a um processo de double blind peer review, por pares internacionais e nacionais, compaginando-se assim, ainda mais, a Locus Soci@l com os patamares mais exigentes de acreditação de
revistas científicas.
É este compromisso com a exigência que norteará os próximos passos da Locus Soci@al, que
muito em breve voltará à estampa com o número três, cujo dossier será dedicado à actas do
II Seminário Internacional do CESSS: Social Work as Profession in the Context of Social Professions
Dynamics: Exploring a Cross-national Perspective.
Lisboa, Setembro de 2010
Francisco Branco, director da Locus Soci@l
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ASSISTENTES SOCIAIS E PROFISSÕES SOCIAIS
EM PORTUGAL: Notas sobre um itinerário
de pesquisa
FRANCISCO BRANCO
Centro de Estudos de Serviço Social e Sociologia
Faculdade de Ciências Humanas , UCP
[email protected]
Resumo
Visa-se neste artigo, por um lado, ensaiar uma análise exploratória baseada na apresentação de um conjunto de
hipóteses sobre o estado da jurisdição do Serviço Social em Portugal num itinerário analítico guiado pela sociologia
das profissões e, por outro lado, apresentar, em termos gerais, a perspectiva analítica que vem sendo sustentada,
por trabalhos não filiados na designada tradição americana da sociologia das profissões, da necessidade de um
novo olhar sobre as profissões do campo social como requisito para apreender as dinâmicas e mutações que neste
âmbito vêm ocorrendo no contexto das transformações do Estado Social e das políticas públicas em resposta à
«nova questão social».
Abstract
This article has two main aims. The first one is to essay to realise an explanatory analysis on the state of the jurisdiction of the Social Work as profession in Portugal in an analytical itinerary guided by the sociology of the professions.
The second one is to present, in introductory terms, the analytical perspective that comes being supported, in a
different way that the American tradition of the sociology of the professions, of the necessity of a new perspective
on the professions of the social field as requisite for apprehending the dynamic and mutations that in this scope
they come occurring in the context of the transformations of the Welfare State and the public policies facing the
«new social question»
I. Introdução
Palavras Chave:
Serviço Social,
Profissões Sociais,
Atributos Profissionais, Poder das
Profissões, Jurisdição Profissional,
Recomposição do
Campo das Profissões Sociais.
...
Key Words:
Social Work,
Social Professions,
Professions Attributes Approach,
Professions Power
Approach, Professional Jurisdiction,
Social Professions
Recomposition.
Este artigo decorre da constituição progressiva de uma área de interesse em torno do estudo
das profissões sociais que, nos últimos anos, a partir da análise da profissão de assistente
social, nos levou a algumas incursões no âmbito da designada sociologia das profissões, do
estudo comparado de diversas profissões sociais e das mutações, no campo das profissões
sociais, associadas às transformações que vêm ocorrendo no âmbito do Estado Social e das
políticas sociais. Transversalmente a todas estas abordagens inscreve-se a perspectiva do estudo das identidades profissionais.
Nestas viagens, de revisão de literatura sobre as profissões sociais, por vezes cruzada com o ensaio e a pesquisa empírica sobre o Serviço Social1, o nosso olhar vem ganhando novo alcance
e uma maior complexidade, no modo de analisar a profissão de Assistente Social em Portugal
no quadro das profissões sociais.
Ao mesmo tempo, a participação no associativismo profissional dos assistentes sociais em
Portugal, tem constituído um observatório social privilegiado das dinâmicas que atravessam
neste campo a sociedade portuguesa.
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São as reflexões e notas dos diários destas viagens que aqui se convocam com o propósito
de dar conta de diferentes perspectivas e olhares sobre o campo das profissões sociais e, ao
mesmo tempo, perspectivar novos itinerários de observação e pesquisa. Assim, neste artigo,
visa-se, por um lado, ensaiar uma análise exploratória sobre o estado da jurisdição do Serviço
Social em Portugal num itinerário analítico guiado pela sociologia das profissões e, por outro
lado, apresentar, em termos gerais, a perspectiva analítica que vem sendo sustentada por
trabalhos mais recentes sobre a necessidade de um novo olhar sobre as profissões do campo
social como requisito para apreender as dinâmicas e mutações que neste âmbito vêm ocorrendo no contexto das transformações do Estado Social e das políticas públicas em resposta
à «nova questão social».
Num primeiro momento, no entanto, importa precisar os sentidos do uso da designação de
profissões sociais. Neste trabalho adopta-se uma visão próxima do conceito, de origem anglosaxónica, de care professions, no qual se tendem a incluir o serviço social, a enfermagem e
profissões da área educativa (cf. Bessin, 2005: 161)2. Trata-se assim de uma conceptualização
descoincidente e mais abrangente que, quer a designação de «trabalho social» ou trabalhadores sociais, de extracção francófona, e relativa designadamente a assistentes sociais, educadores sociais e animadores, quer a de «intervenção social», que, na proposta adoptada por
Chopart, se reporta a um campo aberto de profissões certificadas e ocupações que realizam
“uma acção com pessoas ou grupos num objectivo de ajuda, de desenvolvimento e de reforço
dos laços sociais” (2003: 37).
II. Hipóteses sobre o estado da jurisdição do Serviço Social em
Portugal num itinerário analítico guiado pela sociologia das
profissões
Numa primeira viagem de incursão pelo estudo da profissão de assistente social partimos à
descoberta do poder do serviço social em Portugal tendo como bússola as diferentes perspectivas analíticas no âmbito da designada sociologia das profissões3. Sem prejuízo das diferentes
orientações teóricas – abordagem funcionalista, orientação marxista e webberiana da análise
das profissões como relações de poder, perspectiva interaccionista e sistémica – e em face do
carácter exploratório deste ensaio, construímos então um referencial analítico que releva as
contribuições mais pertinentes e sugestivas das diferentes abordagens. Retiveram-se então seis eixos heurísticos de análise.
Num primeiro plano, o conhecimento apresenta-se como elemento essencial da construção
do poder / influência profissional, base da perícia que sustenta a jurisdição profissional [condição necessária].
Em segundo lugar, a constituição da jurisdição profissional, entendida quer em termos de
exclusividade, quer de monopólio ou de controlo, conforme as diferentes ênfases paradigmáticas, requer a relação política com o Estado como dimensão central [condição suficiente].
Num terceiro plano, o papel do Estado é determinante na outorga legal dos privilégios reclamados pelas profissões ao nível do controlo do sistema de formação, do sistema de creditação,
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do sistema de carreira e recrutamento. Trata-se não só da consagração legal das prerrogativas
profissionais mas do poder conferido aos organismos profissionais na sua regulação e controlo.
Num outro plano, e enquanto agente interventivo, o Estado constitui e assegura clientelas,
constitui-se como empregador, inicia e implementa políticas com claras consequências para
as ocupações profissionais.
Outra dimensão essencial reporta-se à criação das condições sociais e políticas do reconhecimento social da jurisdição das profissões a qual se trava também noutros campos para além
da relação com o Estado, como o da opinião pública e do desempenho no mercado de trabalho.
Finalmente, a análise das situações de trabalho, aí envolvendo, conforme preconiza Abbott
(1988), os tipos de organização, estatuto jurídico e dimensão da organização, assume uma
particular relevância.
Neste itinerário, fomos no entanto particularmente sensibilizados pela abordagem de Abbott
(1988), o qual apresenta como fenómeno central da vida profissional a relação entre profissões e o seu trabalho, articulado no conceito de jurisdição. Neste sentido sustenta que o estudo das profissões deve centrar-se nas jurisdições, i.e., nas áreas de actividade sobre as quais
detêm ou reivindicam o controlo, sublinhando que as disputas, os conflitos e a competição
em áreas jurisdicionais constituem a dinâmica de desenvolvimento profissional, afirmando,
de forma extremamente significativa, que a história das profissões é a história das condições
e consequências da apresentação de reclamação de jurisdição, por parte dos grupos ocupacionais.
Abbott (1988) qualifica a sua abordagem como um modelo de equilíbrio, uma vez que considera que o poder das profissões não é absoluto e é insuficiente enquanto suporte de um
monopólio, porque uma vez que há outros actores no mundo das profissões, os conflitos
jurisdicionais tenderão, no médio e longo prazo, para o equilíbrio. As relações entre grupos
profissionais constituem um sistema de interdependência.
Os processos de desenvolvimento são multidireccionais não sendo por isso sustentável a ideia de
uma tendência única. Tal não significa, no entanto, que o poder das profissões não seja exercido, o que na verdade acontece em três campos distintos: no campo de jurisdição legal perante o
Estado, no campo público através da comunicação social e nas situações de trabalho.
Estas abordagens teóricas revelaram-se particularmente sugestivas para a análise da constituição da jurisdição do Serviço Social na sociedade portuguesa e mais particularmente no
que se refere às fragilidades da fixação da jurisdição na arena legal, e por isso polarizada pela
relação da profissão com o Estado, nas vertentes da formação pública de assistentes sociais,
da parceria profissional na regulação da formação, do poder de creditação profissional e da
regulação ética da profissão.
Analisemos então o processo de constituição de uma jurisdição do serviço social em Portugal,
baseando a argumentação na apresentação de um conjunto de hipóteses exploratórias.
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À luz dos referenciais considerados, a jurisdição ( ou o poder, segundo outra perspectiva analítica) dos Assistentes Sociais como profissão na sociedade portuguesa é relativamente frágil.
Esta fragilidade da jurisdição do Serviço Social parece decorrer de uma dificuldade de afirmação da sua perícia técnica perante o Estado, nomeadamente em termos comparativos com outras profissões sociais com as quais o Serviço Social partilha o seu espaço sócio-institucional e
disputa a sua jurisdição profissional.
Essa dificuldade estará associada ao carácter tardio e ao complexo processo sócio-histórico
da construção do conhecimento no Serviço Social como disciplina profissional no campo das
Ciências Sociais e que se evidencia designadamente, quer na história da atribuição do nível
universitário ao Serviço Social em Portugal, quer na ausência de oferta de formação pública
em Serviço Social até um período muito recente (2000)4.
Noutro plano, assumirá uma particular relevância a não outorga pelo Estado aos Assistentes
Sociais de qualquer controlo ou parceria sobre a formação destes profissionais. O controlo da
formação tem sido assumido exclusivamente pelo Estado, através do Ministério da Educação
/ Ensino Superior, com base na homologação dos curricula de formação e na atribuição de
graus, segundo dispositivos de peritagem que excluíram, com excepção de um pequeno período de tempo, especialistas da área5.
Outra dimensão importante para a análise do estado da jurisdição relaciona-se com o facto
do grupo profissional não deter, até ao presente, qualquer poder de credenciação do exercício
profissional dos Assistentes Sociais ao invés do que se passa com outros grupos profissionais
em Portugal, e igualmente com os assistentes sociais em alguns outros países europeus.
Esta fragilidade do poder dos Assistentes Sociais como profissão poderá igualmente ser relacionada com a ausência de auto-regulação ética, salvo a referência, algo difusa, pelos profissionais, ao Código de Ética consagrado pela Federação Internacional de Assistentes Sociais e
que decorre directamente também da ausência de uma ordem ou associação profissional de
direito público.
A debilidade do poder dos Assistentes Sociais como profissão parece estar directamente vinculada à fragilidade orgânica da categoria profissional, expressa no fraco poder de mobilização,
reivindicação e influência das estruturas associativas e nas dificuldades de estabelecimento da
Ordem dos Assistentes Sociais, instância a quem seriam cometidos e reconhecidos poderes de
interlocução e regulação nos domínios da formação, credenciação e ética profissional 6.
A questão do associativismo profissional é uma matéria que tem igualmente ocupado a sociologia das profissões7, suscitando um significativo debate em torno das motivações e implicações do poder destas organizações em termos do interesse público. As perspectivas favoráveis
ao associativismo profissional sublinham a abertura adicional de canais de expressão pelos
cidadãos, superando a imperfeição dos mecanismos de participação das democracias parlamentares, caracterizados pela máxima agregação e mínima distinção de interesses. Realçam,
ainda, as possibilidades de controlo do poder das autoridades públicas, através da avaliação e
acompanhamento da sua actividade pelas associações profissionais, a salvaguarda da pluralidade de visões, pela concorrência entre diferentes actores, e o controlo interno dos membros,
através de mecanismos de auto-regulação
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Os pontos de vista críticos, de modo distinto, sublinham a ausência de democraticidade no
funcionamento interno dos grupos e os défices de representatividade dos interesses dos seus
membros (interesses líderes vs interesses membros). Outros argumentos passam pela a ausência de neutralidade das instituições públicas que interagem com grupos de interesses e o
reforço das desigualdades sociais, em função dos poderes adicionais de influência e decisão
dos grupos de interesses e associações profissionais com maiores recursos.
No fundo, trata-se de uma oposição entre duas visões contrastantes: uma que postula o altruísmo e desinteresse das profissões, sublinhando que estas se orientam para a promoção de
valores não particularistas e o interesse público, potenciados pelo sistema de acreditação e
certificação profissional e pela auto-regulação ética e auto-disciplina. Outra que sublinha as
motivações económicas, visando a criação e controlo de monopólios profissionais e aquisição
de estatuto económico e social para os seus membros.
É a este título sugestiva a análise de Parsons (1982, citado por Rodrigues, 2004: 266), ao
distinguir a função manifesta e a função latente do associativismo profissional, considerando
o autor que estes organismos consubstanciam o altruísmo institucionalizado como tradução normativa dos valores profissionais, nomeadamente nas profissões sociais (“care professions”), distinguindo-se as profissões das outras ocupações exactamente pela institucionalização do altruísmo (diferença entre sentir o altruísmo e agir altruisticamente).
Neste âmbito, a nossa hipótese é a de que a consagração de uma «ordem profissional» corresponde, no caso dos Assistentes Sociais, a um aprofundamento do «modelo profissional»,
iniciado no período pós 25 de Abril com a criação da APSS – Associação dos Profissionais de
Serviço Social – e neste sentido a forma associativa que parece melhor se ajustar à ideologia
do profissionalismo e que envolve um desígnio altruísta ou ao menos de «institucionalização
do altruísmo», dada designadamente a relevância que tem sido conferida, neste movimento, à
auto-regulação ética da profissão.
Este propósito traduz claramente a intenção de alcançar um maior controlo sobre o mercado
de trabalho num contexto marcado pela quase-desregulação da formação, da credenciação
e do crescimento da disputa jurisdicional. Face ao défice corporativo dos Assistentes Sociais
em Portugal, uma ordem profissional não parece representar um perigo significativo de fechamento profissional em face, quer da regulamentação estatutária prevista no que se refere
às modalidades de certificação, quer das disposições legais estabelecidas pelo Regime das
Associações Públicas Profissionais (Lei 16/2008, de 13 de Fevereiro), que claramente consagra
a defesa dos interesses gerais dos utentes como primeira atribuição destas organizações e só
depois reporta as matérias de índole mais estritamente profissionais, mas na suposição do seu
interesse público8.
Retornando, num plano mais específico, ao roteiro analítico, a proposta de Abbott (1988)
apresentou-se como particularmente heurística ao sustentar que o principal recurso na disputa jurisdicional, e característica que melhor define profissão, é o conhecimento abstracto
controlado pelos grupos ocupacionais.
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Para este autor, os actos da prática profissional que configuram o estatuto de perito (expert)
assentam no diagnóstico, inferência e tratamento, sendo dentro desta lógica que as tarefas
recebem qualidades subjectivas que são a estrutura cognitiva de uma pretensão jurisdicional.
Segundo Abbott (1988), diagnóstico e tratamento são actos de mediação, de gestão de informação, tendo por base sistemas de classificação que, porque ajudam a clarificar e simplificar
o trabalho profissional, o tornam mais compreensível para o outsider. Assim, a jurisdição
profissional pode ser afectada por algumas características do sistema de classificação de diagnóstico e tratamento e designadamente pela sua rotinização.
A inferência por seu turno é um acto profissional por excelência, requerendo o estabelecimento de múltiplas relações entre diferentes conhecimentos científicos e técnicos, e de relação
entre diagnóstico e tratamento, e por isso não acessível aos outsider do grupo profissional.
É por esta razão que Abbott (1988) considera que a inferência está no centro da análise da
profissionalidade, a qual, na sua visão, se pode diferenciar pela predominância da indeterminação e tecnicidade face à rotina.
Nestes termos, a predominância da rotina face à inferência resulta em vulnerabilidade jurisdicional, podendo decorrer de factores, como a emergência de grandes clientes (alargamento da
clientela), pela transferência de trabalho profissional para grandes organizações e, sobretudo,
do desenvolvimento do conhecimento académico, uma vez que aqui reside: i) a legitimação
do trabalho dos profissionais; ii) a investigação, relevante para desenvolvimento e produção
de novos diagnósticos, tratamentos e métodos de inferência; iii) a formação dos profissionais.
Esta dimensão é particularmente instigante na análise do processo de desenvolvimento profissional e académico do Serviço Social em Portugal, colocando no centro da análise todo o
percurso percorrido nos últimos 20 anos, e particularmente as questões da qualidade da formação inicial e da produção de conhecimento na área (cf. Branco, 2003).
Regressando às hipóteses sobre o estado da jurisdição do Serviço Social em Portugal, sustenta-se que o desenvolvimento profissional logrado com a restauração da democracia em Portugal em 1974, e designadamente com a atribuição do grau de licenciatura em 1989, no único
processo de forte mobilização profissional no nosso país, abriu aos Assistentes Sociais novas
perspectivas de reforço do seu poder e influência profissional
O processo de reconhecimento académico, com estatuto universitário, abriu novos horizontes
ao poder profissional, uma vez que, ao menos formalmente, veio criar condições para, através
de um mais alto estatuto, permitir, por um lado, o acesso ao exercício de funções mais «nobres» e, por outro lado, reduzir a assimetria de estatuto interprofissional no âmbito das profissões sociais. De algum modo pode ser uma formulação heurística sustentar o ponto de vista
de que o título universitário se constitui como uma condição da passagem de um estatuto de
semi-profissão 9 a um estatuto, pleno, de profissão. É a este título útil referenciar um trabalho
de Flexner, de 1915, sobre a profissão de Assistente Social em que o autor defende que nesse
período histórico os Assistentes Sociais não constituíam uma profissão pelo facto de não possuírem a auto-organização e a legitimidade de uma disciplina universitária (Flexner, 2001) 10.
O processo de reconhecimento académico tem vindo a registar um caminho de paulatina
consolidação, quer através da atribuição do grau académico de mestre em Serviço Social,
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quer da recente criação dos primeiros programas de doutoramento em Serviço Social em
Portugal. Sustenta-se no entanto a tese de que, sem deixar de sublinhar o lento e descontínuo devir qualitativo dos processos de desenvolvimento profissional, as vantagens potenciais
do reconhecimento académico não se fazem sentir de forma categórica no estatuto profissional dos Assistentes Sociais, não tanto em termos de carreira profissional mas, sobretudo,
na afirmação de uma jurisdição profissional no campo conflitual das profissões sociais e
particularmente nas organizações heterónimas, dirigidas e dominadas por outros grupos
profissionais.
Em ambientes autónomos, e por isso mais protegidos da competição interprofissional, não
se observarão as mesmas dificuldades na disputa jurisdicional o que não significa no entanto
que a afirmação profissional seja clara e distinta11. Noutros domínios ainda, a diluição do Assistente Social em categorias genéricas como ocorre no Ministério da Justiça com a designada
carreira de técnicos superiores de reinserção social, reduz naturalmente o campo de conflitualidade jurisdicional mas com evidentes prejuízos para a identidade profissional.
Se como a maior parte das perspectivas analíticas reconhecem, o conhecimento é condição
necessária da construção do poder / influência profissional, base da perícia que sustenta a
jurisdição profissional, considera-se que uma das dimensões mais heurísticas para a compreensão das dificuldades referenciadas, estará na relação do Serviço Social com o conhecimento.
O que interroga a qualidade e consistência da formação inicial em Serviço Social na criação
de uma nova cultura profissional, e as fragilidades da produção de conhecimento em Serviço
Social, domínio onde, apesar dos progresso alcançados, estamos ainda num patamar baixo
de organicidade da investigação em Serviço Social e da socialização do conhecimento produzido no âmbito dos programas de pós-graduação académica (cf. Branco e Rodrigues, 2008).
Sendo certo que a criação dos programas de doutoramento abre novas perspectivas neste
âmbito, este caminho não é isento de sérios e complexos problemas e desafios (cf. Branco,
2008a). Se a criação dos programas de doutoramento poderá construir-se como um factor de
fortalecimento da jurisdição do Serviço Social, através da produção de conhecimento, podem
no entanto identificar-se, no contexto actual, igualmente riscos da sua vulnerabilização. Neste
sentido, sustenta-se a tese de que, sem prejuízo dos benefícios da concorrência de projectos
pedagógico-científicos, a ausência de formas elementares de regulação da formação em Serviço Social se constituirá como um factor de fragilização (cf. Branco, 2009)12.
Como é sustentado por algumas das perspectivas teóricas consideradas, um dos campos relevantes da disputa da jurisdição profissional é o da opinião pública, domínio onde, apesar
de mudanças assinaladas nas representações sociais da profissão, são manifestas as dificuldades de afirmação de uma imagem positiva, persistindo uma ancoragem a representações
históricas e verificando-se uma significativa exposição mediática, geralmente negativa, sem a
correspondente afirmação dos Assistentes Sociais no espaço público.
Em síntese, a viagem ao interior do poder do serviço social como profissão em Portugal, guiado pelas diferentes orientações da sociologia das profissões e de modo particular pela abordagem de Abbott (1988), dotou-nos de uma particular sensibilidade para o processo de fixação da(s) jurisdição(ões) das profissões em duas dimensões essenciais: o controlo cognitivo
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assente no conhecimento disciplinar e actualizado nas situações de trabalho e o controlo
social traduzido nas reivindicações activas sustentadas nos campo da opinião pública, legal
ou nos locais de trabalho (Rodrigues, 1997: 99).
III. Serviço Social e profissões sociais: dinâmicas e mutações no
campo social
Na primeira parte deste artigo procedeu-se a uma análise da jurisdição do Serviço Social enquanto profissão em Portugal, convocando contribuições várias da sociologia das profissões,
num propósito exploratório e compreensivo das particularidades e situação do Serviço Social
no sistema de profissões sociais. Seguindo um itinerário analítico apoiado na sociologia das
profissões, designadamente da abordagem baseada nos atributos profissionais e na perspectiva do poder das profissões, e ainda na análise sistémica do sistema de profissões de Abbott
(1988), focalizou-se a atenção no processo de profissionalização e das relações profissão –
Estado centrada nos mecanismos e dispositivos de regulação da formação e exercício desta
profissão social.
Este enfoque, a par de outros ensaios e estudos realizados13, apresenta um carácter exploratório e parcelar e por isso sem apetência para dar conta da dinâmica mais global e diferenciada
das profissões sociais em Portugal e particularmente da profissão de assistente social. Se na
verdade tem o mérito de confirmar o carácter heurístico das abordagens inspiradas nas correntes mais significativas da sociologia das profissões, para interpretar o processo de profissionalização e as posições profissionais no mosaico das profissões sociais, mostra claramente os
seus limites para apreender a dinâmica complexa que atravessa na actualidade o campo das
profissões sociais e designadamente os processos de recomposição que estarão a ocorrer14,
mormente nas chamadas profissões do «trabalho social»: profissões da fileira de dominante
social ou de assistência, profissões da fileira de dominante educativa e profissões de dominante animação (cf. Ion e Ravon, 2005; Bouquet, 2005).
Esta perspectiva não faz no entanto unanimidade, contrapondo-se duas teses principias. Numa
hipótese interpretativa destas mutações, considera-se que os empregos sociais são maioritariamente ocupados por trabalhadores sociais diplomados estando os processos de profissionalização nestes empregos estabilizados. Assim, por um lado, as mudanças e experimentação
em curso ocorrerão na periferia deste núcleo duro, com o surgimento de um pequeno número
de novos empregos com denominações diversas. Por outro lado, ainda que esta dinâmica não
deva ser desprezada não se deve no entanto sobrestimar a sua importância qualitativa e quantitativa. Trata-se de uma tese que se funda na constatação histórica da integração no campo
das profissões do «trabalho social» das novas especialidades que emergiram, em diferentes
fases, nas suas margens (Chopart, 2003).
Num ponto de vista alternativo, sustenta-se a tese que se assiste a uma mutação global do
campo observando-se a obsolescência das categorias utilizadas (cargos, títulos e actividades)
para descrever o campo das profissões sociais no contexto das transformações societárias,
do Estado Social e das Políticas Sociais. Estamos neste caso em face da constituição de um
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mercado mais aberto designado de campo da intervenção social, cuja apreensão requer um
novo olhar e novos instrumentos na observação da mudança, para além dos instrumentos
estatísticos convencionais (Chopart, 2003; Soulet 1997).
No entanto, ainda que se reconheça sentido a alguns dos argumentos da tese que sustenta
que as transformações que estão a ocorrer se registam sobretudo na periferia do mercado
de trabalho, uma vez que persistirá uma lógica de fechamento que protege o núcleo duro
das profissões históricas, nas quais o Serviço Social se inclui como uma das profissões mais
emblemáticas (cf. Chopart, 2003: 16), considera-se como fortemente sugestiva a perspectiva
analítica que sustenta que o que está a ocorrer é um processo de mutação global do campo
das profissões sociais. Assim, estando em causa um processo de recomposição complexa não
equiparável a um jogo de soma zero, observar-se-á a emergência de novas ocupações e profissões, que introduzem uma outra lógica de profissionalização mais baseada nas competências
individuais e experiência do que na qualificação escolar. A par deste movimento de constituição de um mercado das profissões do trabalho social mais aberto estará igualmente a acentuar-se a divisão do trabalho e segmentação do processo de intervenção com fortes impactes nos
processos de intervenção profissional das profissões históricas (decomposição e sequencialização especializada em detrimento da acção personalizada e unitária e global, hierarquização
da inserção profissional, centração no imediato e no urgente, em desfavor do longo termo e
intervenção sócio-educativa) (cf. Chopart, 2003; Ion e Ravon, 2005, Bouquet 2005; Soulet,
1997)15. É neste processo que se inscreve também um forte crescimento dos contingentes de
ocupações com níveis de formação mais baixos (níveis IV e V) e uma importante desregulamentação do mercado de trabalho (precarização dos vínculos contratuais, regime de prestação de
serviços e auto-emprego, ...) (cf. Facchinni, Campanini e Lorenz, 2007; Soulet, 1997).
Emerge assim uma nova problemática, distinta das figuras norte-americanas da sociologia das
profissões, com uma forte presença na literatura francófona sobre as profissões do «trabalho
social». Nesta perspectiva analítica, na Europa, no quadro da «nova questão social», observa-se uma tripla dinâmica de mudança no contexto de exercício das profissões sociais: uma
transformação dos públicos, uma transformação dos dispositivos das políticas sociais e uma
transformação dos modos de intervenção pública, com impactes significativos nos processos
de intervenção e posições das profissões históricas e na emergência e institucionalização de
novas ocupações profissionais com diferentes níveis de qualificação (Chopart, 2003, Soulet,
1997). Mutações que igualmente expressam e se complexificam em face das transformações
societárias mais profundas que vêm ocorrendo, designadamente no quadro do processo de
individuação e da forma como se redesenham as relações entre colectividades e indivíduo em
matéria de solidariedade (Soulet, 2005). Ora estas mutações estão a dar lugar quer a questionamentos identitários quer a dinâmicas de recomposição no campo das profissões sociais, a
processos de concorrência complexa entre profissões e alterações dos modos de profissionalização mas, também, a dinâmicas de adaptação, migração e recomposição identitária e categorização das profissões e ocupações, num quadro de acentuação da divisão do trabalho no
interior das profissões sociais, e particularmente das profissões do «trabalho social» (cf. Ion e
Ravon, 2005; Chauvière, 2005; Bouquet, 2005; Chopart, 2003; Soulet, 1997).
Em Portugal, desde a segunda metade da década de 90, vêm-se registando significativas
transformações no âmbito das designadas profissões sociais nas esferas da formação,
Locus SOCI@L 2/2009: 15
profissionalização, organização dos serviços sociais, inserção no mercado de trabalho e exercício profissional, constituindo as mutações no domínio do Serviço Social, enquanto profissão
social histórica, um observatório por excelência das transformações que, no nosso país, se
fazem sentir, neste campo (cf. Branco e Fernandes, 2005).
IV. Conclusão: pistas para um novo itinerário de pesquisa
No nosso país, em contraste com o que se verifica com crescente expressão no contexto internacional (Weiss e Welbourn, 2007; Meeuwisse e Swärd, 2007; Deslauriers e Hurtubise, 2005),
verifica-se a ausência de uma tradição de estudo do Serviço Social como profissão. Ao mesmo
tempo não existem sistemas de informação estruturados sobre as profissões sociais, pelo que
o conhecimento existente das profissões sociais em geral e das profissões do «trabalho social»
em particular é limitado e fragmentado justificando-se um trabalho de pesquisa que venha
a constituir um acervo de conhecimento que permita, quer a observação mais sistemática e
regular das profissões sociais em Portugal, quer a realização de trabalhos de análise comparada entre Portugal e outros países numa lógica de cross-national perspective, quer ainda que
permita dar conta das dinâmicas e mutações que estão a ocorrer neste campo.
Em face do frágil e disperso nível de informação disponível e do facto de as observações empíricas e dos estudos realizados ou em curso noutros países (Chopart, 2003; Facchinni, Campanini e Lorenz, 2007) recomendarem uma orientação teórica que esteja para além das propostas mais consagradas no âmbito da sociologia das profissões (cf. Chopart, 2003; Soulet,
2007), preconiza-se a necessidade de uma investigação sobre as profissões sociais em Portugal, nas dimensões que foram exploradas no presente artigo, adoptando uma orientação de
carácter indutivo. Trata-se de potenciar de forma consistente o recenseamento e compreensão
das dinâmicas estabelecidas e emergentes neste campo a qual não parece apreensível pelos
modelos teóricos estabelecidos até agora no âmbito da sociologia das profissões, nem pelo
simples recurso a informação estatística, aliás escassa, antes recomendando abordagens de
natureza qualitativa, com recurso a estudos de caso e à abordagem etnográfica, entre outras
possibilidades.
Tal não impede no entanto que este trabalho de pesquisa seja teoricamente inspirado em várias tradições da sociologia das profissões e procure beneficiar das vantagens de uma dimensão comparativa, ao situar as transformações em curso em Portugal no quadro mais amplo
dos processos de recomposição das profissões sociais observadas em alguns países europeus
em que as mutações neste campo se encontram melhor documentadas.
Em conclusão, perspectiva-se a importância de um projecto de investigação com a finalidade
de construir uma base de conhecimento e analisar as mutações do Serviço Social em Portugal enquanto profissão, no quadro do processo de recomposição das profissões sociais e no
contexto das transformações do Estado Social e das políticas públicas que vêm tendo lugar
em resposta à «nova questão social», adoptando uma análise relacional entre profissões consolidadas e ocupações e profissões emergentes (cf. Aballéa, 2003; Aballéa, Ridder e Gadéa,
2003).
Locus SOCI@L 2/2009: 16
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Notas
1 Cf. (Branco e Fernandes, 2005); (Branco et al., 2008); (Branco, 2008 b); (Castro et al., 2008).
2 Note-se, no entanto, que não existe uma visão consensual em torno da abrangência do uso deste conceito. Abbott
e Wallace (1990: 1-9) sustentam que apesar de existirem diversos grupos ocupacionais que reclamam este estatuto, o núcleo paradigmático é constituído pela enfermagem e serviço social, grupos profissionais cujo principal
compromisso profissional é “cuidar” (to care) dos seus clientes e nos quais a personalização do “cuidar” é central
na prática profissional.
3 Cf. I Congresso de Serviço Social da RNESS, Lisboa, Outubro de 2003.
4 A comparação com grupos profissionais como os Educadores de Infância e os Enfermeiros é particularmente
reveladora, registando-se neste caso uma mais precoce assunção da responsabilidade pública pelo sistema de formação profissional. Há vária pistas explicativas possíveis a explorar relativamente a esta diferenciação: a relevância
dos sectores da saúde e da educação na construção de um estado de bem-estar social em Portugal após Abril de
1974; o poder sindical destes grupos profissionais; (...).
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5 Neste plano, a situação portuguesa enquadra-se no designado modelo franco-europeu, em contraposição com
o modelo anglo-saxónico (casos do Reino Unido e Irlanda), no qual se regista uma acreditação por conselhos
especiais para a formação inicial e profissional, existindo uma regulamentação através de pré-requisitos e critérios
para os cursos, exames, validação e reconhecimento de graus e licenças profissionais (Brauns e Kramer, 1986;
Negreiros, 1999). No caso do Reino Unido, a criação de cursos de serviço social, quer de formação inicial quer
de pós-graduação, é precedida de um processo exigente de acreditação junto do General Council of Social Care
(GCSC) a qual uma vez aprovada está sujeita a ciclos anuais de avaliação cujos resultados são públicos. Para
uma informação detalhada dos processos de acreditação e dos seus requisitos veja-se http://www.gscc.org.uk/
training+and+learning/.
6 Num novo olhar comparativo sobre Enfermeiros e Assistentes Sociais observa-se uma trajectória claramente divergente em termos da capacidade orgânica associativa e do poder de regulação profissional, que se traduz não só
na consagração da Ordem dos Enfermeiros, mas também na intervenção activa do seu sindicalismo profissional
7 Veja-se sobre esta matéria o excelente trabalho de Rodrigues (2004) no qual nos apoiamos neste vector de análise.
8 Veja-se a este propósito a análise de Chopart (1997: 89-92) em que o autor sustenta a necessidade da revalorização da auto-regulação profissional através das ordens profissionais como uma exigência requerida pela nova
«economia de serviço».
9 Esta noção, introduzida por Tenorth (1988), significaria que se trata de grupos que, comparativamente com as
profissões designadas de liberais por excelência, não detêm o mesmo nível de prestígio, estatuto, rendimento e
força política junto do Estado, embora se trate de um trabalho intelectual que tem um reconhecimento formal
através de um saber especializado e escolar (cf. Caria, 1999).
10 Este ensaio foi originalmente publicado em Flexner, A. (1915). Is social work a profession? In National Conference
of Charities and Corrections, Proceedings of the National Conference of Charities and Corrections at the Fortysecond annual session held in Baltimore, Maryland, May 12-19, 1915. Chicago: Hildmann.
11 A experiência de participação na administração do programa RMG/RSI, no âmbito do sistema de segurança social, é revelador das dificuldades de renovação da cultura profissional e de afirmação da perícia profissional.
12 A este título convém tomar em boa conta o debate que vem sendo animado pela FIAS e IASSW sobre os padrões
de ensino em Serviço Social. A concepção de um curriculum mínimo ( a IASSW reporta-se a “padrões globais de
qualidade”) precisa ponderar, à semelhança do que ocorre com outras profissões, como os professores por exemplo, a aplicação do conceito de nova profissão, querendo tal significar que estes profissionais se confrontam hoje
com uma crescente complexidade social que requer padrões elevados de formação.
13 Em (Branco e Fernandes, 2005), privilegia-se uma análise da inserção dos assistentes sociais nos mais importantes
domínios e contextos organizacionais em Portugal e dedica-se uma particular atenção à dinâmica e tendências da
dimensão da formação. Como aspecto mais significativo constata-se a existência de uma dinâmica de desregulação por via cruzada da expansão de mercado de trabalho através do lançamento de novas medidas e dispositivos
de política social, de que se destaca o Rendimento Mínimo Garantido em 1996/97, e da criação de um mercado
do ensino superior no nosso país, observando-se que, numa década, se passa da oferta de 3 cursos (1996) de
formação de assistentes sociais, nas três mais importantes cidades, para 22 (2006), com significativos impactes
na profissão.
No estudo sobre o Serviço Social no Serviço Nacional de Saúde em Portugal (Branco et al., 2008a), os investigadores voltam a analisar a profissão de assistente social, no quadro dos serviços de saúde, com uma forte inspiração na abordagem teórica da Abbott (1988), tendo sido possível observar, quer as dinâmicas de criação de uma
jurisdição profissional do serviço social na área da saúde, com nítidas diferenciações em funções dos contextos
hospitalar e dos cuidados de saúde primários, quer as disputas jurisdicionais que atravessam a relação do Serviço
Social com outros grupos profissionais da saúde, com especial relevo para a profissão de enfermagem.
14 Na verdade, designadamente Abbot (1988: 143-211), havia já dado particular atenção, a par dos factores de
estabelecimento de uma jurisdição profissional, aos factores de mudança, destacando nesta dimensão designadamente as mudanças nas esferas do conhecimento, das tecnologias e das organizações e bem assim o impacto
do ambiente cultural no estabelecimento da jurisdição.
15 Refira-se a este propósito que o estudo “Acolhimento Social e Construção da Autonomia dos Clientes” (cf. Castro
et al., 2008) (cf. também: Branco, 2008b), permitiu observar claramente dois aspectos particularmente pertinentes nesta óptica de análise. Por um lado, a investigação empírica realizada registou mudanças significativas
nas lógicas de acção e no modus operandi dos profissionais que realizam o acompanhamento social de utentes
dos serviços de assistência social / acção social. Por outro lado, comprovou-se igualmente que estes dispositivos
apelam claramente para novas competências na intervenção em “situações sem qualidade” (Guiliani, 2006) e
incerteza.
Locus SOCI@L 2/2009: 19
Peer Review Process
Recepção artigo | 16/10/2009
Paper reception
Admissão artigo | 26/11/2009
Paper admission
Arbitragem anónima por pares | 7/1/2010 | 22/01/2010
Double blind peer review
Aceitação artigo para publicação | 12/02/2010
Locus SOCI@L 2/2009: 20
Locus SOCI@L 2/2009: 21–28
PROFISSÕES SOCIAIS E GÉNERO: Perspectivas
em Torno do Debate sobre Serviço Social
e Profissões Femininas
Teresa Alves
Doutoranda em Serviço Social
Universidade Católica de Lisboa
Resumo
Nesta comunicação apresentam-se, de forma exploratória, algumas das perspectivas teóricas que se vêm afigurando como mais sugestivas para a análise do Serviço Social como profissão feminina. Essencialmente exploram-se
algumas pistas teóricas sugerindo que os estereótipos de género encerram consequências para o Serviço Social,
enquanto profissão fortemente marcada pela diferenciação sexual, na sua história e estatuto que se apresentam
como relevantes para a compreensão da profissão na actualidade num contexto societário em que se observa uma
dinâmica de reconfiguração das profissões sociais.
Abstract
This communication presents, in an exploratory approach, some of the most suggestive theoretical perspectives for
the analysis of Social Work profession as a female profession.
Essentially the paper explores some theoretical thoughts that suggest gender stereotypes are relevant to analyse
Social Work, as a profession strongly marked by gender differentiation in its history and status. Issues that present
themselves relevant to understanding the profession its self, and in the context of social professions reconfiguration
that are occurring nowadays.
Introdução
Este artigo constitui-se como parte de um projecto de investigação no âmbito do Doutoramento em Serviço Social através do qual se pretende contribuir para a compreensão das
identidades profissionais do Serviço Social como profissão feminina. Propomo-nos apresentar
aqui, de modo exploratório, algumas das perspectivas teóricas consideradas mais pertinentes
para este estudo.
Palavras-chave:
Serviço Social, Identidades Profissionais,
Identidades de
Género, Profissões
Femininas e Caring
Professions.
...
Keywords:
Social Work, Professional Identities,
Gender Identities,
«Female Professions»,
Caring Professions.
Exploramos no essencial a hipótese teórica de que existem profissões, designadamente no
domínio social, que foram historicamente construídas como «trabalho de mulheres», como
é o caso designadamente das profissões agrupadas na designação anglo-saxónica de caring
professions, na qual situaremos o Serviço Social. Pretende-se explorar neste artigo várias pistas
que se parecem revelar particularmente heurísticas para a compreensão desta hipótese. Assim,
por um lado, e seguindo a perspectiva de Curran e Abrams (2004), parece importante compreender a evolução do serviço social enquanto profissão ou das profissões do «trabalho social»
na sua relação com as reformas sociais, ou seja, na sua relação com o Estado.
Seguindo outro angulo de análise, explora-se a pista segundo a qual «nas identidades socioprofissionais estão habitualmente incluídos atributos que parecem normal e naturalmente
associados ao género masculino, ou ao género feminino e que apoiam encaminhamentos e
processos identitários profissionais genderizados» (Escobar, 2004). Este aspecto articula-se
com a abordagem de Taylor e Daly (1995) relativa à relação entre diferencialismo sexual das
profissões sociais e modelo de profissionalismo.
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Sendo o Serviço Social uma profissão feminina, procurar-se-á analisar em que medida a herança social da visão do papel das assistentes sociais como mulheres, se reflecte no modelo
do profissionalismo (Taylor; Daly, 1995; Abrams; Curran, 2004; Montano, 2007; Aristú,
2004).
Ao seguirmos as pistas abertas pelo diferencialismo profissional, tal perspectiva possibilita-nos
centralizar a análise nos papéis femininos desvalorizados e a sua relação com o baixo poder e
estatuto nas profissões femininas – herança negativa (Taylor; Daly, 1995, Aristú, 2004 Abrams; Curran, 2004; Genolet, 2005; Montano, 2007; Guadarrama et al, 2007), colocano-nos
perante as quetões do poder e autoridade (Beechev, 1979; Conell, 1987; Walby, 1990).
Por sua vez, o enquadramento do Serviço Social nas caring professions (Abbott e Meerabeau,
1988; Hugman, 1991; Letablier, 2007), permitirá compreender que nem todas as profissões
são femininas, pelo que a sua demarcação por oposição às restantes «profissões do cuidar»,
como olhar e atender às necessidades dos outros, nos clarificaram sobre algumas das especificidades das próprias profissões femininas.
O Serviço Social como Profissão Feminina e «Caring Profession»
Para autores como Montano (2007) e Bessin (2009), o Serviço Social enquanto profissão
feminina tem precisamente nesta qualidade o seu primeiro elemento de subalternidade, na
medida em que se insere em sociedades marcadas e regidas por padrões patriarcais.
A génese histórica do Serviço Social situa-se nos processos assimétricos e diferenciados de
feminização do trabalho, nos mundos de trabalho considerados adequados às mulheres – nas
esferas do «trabalho social». O relevo dado à génese da profissão situa-a nos processos históricos da sua constituição, e profissionalização, resgatando uma dimensão importante para
a compreensão do Serviço Social como profissão feminina, nomeadamente o feminismo
maternalista, que marca segundo Bessin (2009: 70) a «ideologia da profissão desde o pósguerra», herança que ainda hoje se faz sentir.
Considerar o Serviço Social como profissão feminina, permite-nos compreender o peso das
identidades profissionais, e identidades de género, na perspectiva da abordagem da segregação das profissões segundo o género (Walby, 1990). Da estereotipia de género nas identidades pessoais, e das profissionalidades femininas, construídas em contextos sociais e históricos
determinados, na relação com a evolução das reformas sociais e do próprio serviço social –
dimensões mais estruturais das políticas sociais e da construção da profissão do Serviço Social
(Curran e Abrams, 2004).
Entende-se como relevante compreender a abordagem da construção das identidades socioprofissionais (Dubar, 2000; 2006), onde «estão habitualmente incluídos atributos que parecem
normal e naturalmente associados ao género masculino, ou ao género feminino e que apoiam
encaminhamentos e processos identitários profissionais genderizados» (Escobar, 2004: 18).
Para Taylor e Daly (1995), a herança histórica de esferas separadas para homens e mulheres
(não só nas dimensões do trabalho) continua a ter efeitos «adversos» na igualdade profissional, trazendo «conflitos inimutáveis e irreconciliáveis para as mulheres no Serviço Social»
(Taylor e Daly, 1995: 13).
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Para a compreensão deste problema várias pistas se parecem revelar particularmente heurísticas. Assim, por um lado, e seguindo a perspectiva de Curran e Abrams (2004), parece importante compreender a evolução do serviço social profissional na sua relação com as reformas
sociais, pelo que se impõe seguir a linha de investigação da construção da profissão do Serviço
Social na sua relação com o Estado, quer no âmbito da formação, quer da regulação profissional, quer ainda da orientação das políticas sociais.
Por outro lado, e explorando a pista de Escobar (2004), segundo a qual «nas identidades socioprofissionais estão habitualmente incluídos atributos que parecem normal e naturalmente
associados ao género masculino, ou ao género feminino, e que apoiam encaminhamentos e
processos identitários profissionais genderizados», seguiremos como linha de investigação as
propostas de Dubar (2000, 2006) sobre a dinâmica dos processos identitários socioprofissionais. Este aspecto articula-se com a abordagem de Taylor e Daly (1995) relativa à relação entre
diferencialismo sexual das profissões sociais e modelo de profissionalismo.
Noutro registo, afigura-se relevante analisar em que medida, sendo o Serviço Social uma profissão feminina, as assistentes sociais transportam para o campo profissional a forma como
foram socialmente genderizadas (Taylor; Daly, 1995; Abrams; Curran, 2004; Montano, 2007;
Aristú, 2004), e de que modo a herança social da visão do papel como mulheres, se reflecte no
seu modelo profissionalismo (Taylor e Daly, 1995), na forma como se colam os atributos – capacidades para o «cuidar», sensibilidade para as necessidades dos outros – de maternalismo.
Estas dimensões podem constituir-se em processos marcantes para as mulheres profissionais,
e por sua vez, para a própria profissão.
Outro ângulo importante de análise é relativo às questões do poder e autoridade (Beechey,
1979; Conell, 1987; Walby, 1990), no sentido de analisar como é que estes se jogam nas
identidades pessoais e profissionais das mulheres. Reconhecer-se o poder e a autoridade como
pistas teóricas sugestivas, é reclamar a importância da forma como as assistentes sociais perspectivam a natureza do seu poder e autoridade, a sua relação e significado na efectividade da
sua profissão como feminina, pelo que «para se entender alguns dos problemas colocados às
lutas renhidas das trabalhadoras sociais com o exercício da sua autoridade, a influência do
género tem de ser considerada» (Taylor e Daly, 1995: 61).
A perspectiva que coloca o acento no diferencialismo entre homens e mulheres, centraliza a
sua análise nos papeis femininos desvalorizados e a sua relação com o baixo poder nas profissões femininas, (Taylor; Daly, 1995, Aristú, 2004 Abrams; Curran, 2004; Genolet, 2005;
Montano, 2007; Guadarrama et al, 2007). Atribui-se o baixo poder e estatuto das mulheres ao
baixo poder e baixo estatuto das profissões femininas – herança negativa (Taylor; Daly, 1995,
Aristú, 2004 Abrams; Curran, 2004; Genolet, 2005; Bessin, 2005; 2009, Montano, 2007;
Guadarrama et al, 2007).
Por sua vez entende-se relevante para esta análise, a abordagem dos contributos trazidos pela
perspectiva do Serviço Social no âmbito das designadas caring professions. Numa incursão
exploratória entende-se que compreender a associação das profissões femininas ao diferencialismo sexual e profissional, nos remete para a análise da atribuição do cuidar, como esfera
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predominantemente feminina. Emerge assim a necessidade de alargarmos a discussão para
a compreensão do Serviço Social integrado num campo mais amplo – as caring professions
(Abbott, 1988; Hugman, 1991; Letablier, 2007), remetendo-nos para a exploração do próprio
conceito.
Aos conceitos de care1 caring2 e caring carries (Hugman, 1991), associam-se um conjunto de
características das profissões e dos/as profissionais, que encerram ao mesmo tempo aspectos
emocionais e intelectuais atribuídos às mulheres: nas «características pessoais (paciência e
humildade), nos valores morais (honestidade), bem como na posse e no uso dos conhecimentos» (Hugman, 1991: 9).
Reconhecendo o seu carácter multidimensional, e a sua evolução no contexto europeu, Letablier (2007) explora o conceito de care colocando a sua origem no trabalho não remunerado,
considerando-o como uma das suas fragilidades relevantes e marcantes para a sua evolução.
Na desconstrução do conceito de care reconhece-se a sua dupla filiação3 como marcante
para a compreensão das profissões «femininas»: enquanto trabalho voluntário na família e na
comunidade, e, na esfera do trabalho fora da família. Em ambos, é caracteristicamente relacional (Letablier, 2007: 66), e é essencialmente realizado por mulheres.
O conceito de care tem assim múltiplos sentidos: é «trabalho para os outros, é trabalho realizado dentro e fora de casa, implica uma realização de serviço, de atenção, e, preocupação
com os outros, e é ao mesmo tempo um campo de interceptação entre a família, e as políticas
sociais vinculado às questões da cidadania social « (Letablier, 2007: 67).
Este conceito permite apreender melhor as tradicionais dicotomias atribuídas ao trabalho feminino (salarial ou não assalariado, formal ou informal, público e privado) – salientando para
Bessin (2005), uma dimensão que é negligenciada na história do «Trabalho Social», mais vinculada ao processo de profissionalização – que é a de captar o trabalho «profano» – o que não
é reconhecido socialmente. É assim, um lugar de emoções, histórico e socialmente associado
às mulheres, e por sua vez às profissões femininas. O que unifica a noção de care é o facto
de ser um trabalho predominantemente efectuado por mulheres, quer se realize na família ou
fora do espaço familiar, quer seja remunerado ou não. Colocando-se o acento nos processos
ideológicos e materiais, que empurram as mulheres para o que é socialmente «adequado»,
traduzindo-se por sua vez em processos de profissionalização economicamente e socialmente
desvalorizados (Abbott, 1988; Hugman, 1991; Letablier, 2007).
O conceito de care situa-nos assim, na compreensão das caring professions4 profissões que
de comum partilham com centralidade a dimensão do cuidado, não se esgotando nas consideradas profissões femininas. Na perspectiva de Hugman (1991) o «care» ao nível das profissões, desconstrói-se na sua dupla dimensionalidade, considerando o autor que o cuidar
como compromisso, ou seja, o care for na sua expressividade inglesa está predominantemente
associado às profissões historicamente femininas, nas quais situa a Enfermagem e «Serviço Social», e que o cuidar como tarefa o care about, considerado como uma noção mais «apropriada» para as profissões historicamente masculinas, como Direito e Medicina (Hugman, 1991).
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As «interconexões entre cuidar, género e profissões são uma combinação entre expressão intelectual, emocional e realização de tarefas, a qual não é exclusiva do campo profissional»
(Hugman, 1991: 11), considerando-se estar presente também nos cuidados informais. Esta
relação social do caring for (dimensão feminina do cuidar), aos cuidados informais permite
compreeender segundo este autor, o menor sucesso na reclamação do estatuto profissional,
quer das tarefas quer dos que as executam – maioritariamente mulheres, considerando assim
o Serviço Social como uma profissão feminina, caracteristicamente de baixo estatuto.
O ângulo de análise do conceito care enquanto «trabalho emocional», remete-nos para o argumento da «autoridade da experiência» (as mulheres estão melhores posicionados para a intervenção social porque estão do lado dos oprimidos), argumento já apresentado com Aristú
(2004) lembrando-nos «as contradições essencialistas que se alojam nesta posição» (Bessin,
2005: 163), as quais se relacionam com a história da constituição como profissão, nas suas
origens históricas concretas, na sua relação com as estruturas patriarcais nas quais emergiram,
nomeadamente por detrás de profissões estabelecidas.
As Profissões Femininas (Hugman, 1991: 13), construíram-se com base no «merecimento», e
no «não merecimento», no «cuidar e controle» (Hugman, 1991: 1), é assim um conceito tipo
«chapéu-de-chuva» porque abrangente, nele cabem as perspectivas teóricas explicativas da
relação do Serviço Social e Género (já apontadas).
As Profissões do Cuidar Femininas são a expressão de um compromisso com o cuidar como
preocupação – caring concern (Hugman, 1991), sendo central para a compreensão, atendermos a evolução social diferenciada entre homens e mulheres. A entrada e veiculação das mulheres no terreno profissional, nas profissões consideradas adequadas, apesar de terem dado
uma abertura para a vida profissional destas, continuam contudo a perpetuar as relações
patriarcais (Taylor; Daly, 1995; Abrams; Curran, 2004).
O enquadramento destas questões nas mudanças societárias, permite compreender as reconfigurações das profissões femininas. Assim, as concepções sobre a natureza do Serviço Social
enquanto profissão feminina, leva-nos a considerar enquadramentos mais abrangentes, repensando estas profissões tendo em conta as mudanças importantes ocorridas no contexto
europeu, em que os valores de mercado, como a rentabilidade e a eficácia conflituam com o
ideário do Estado de Providência que está na base do desenvolvimento das profissões sociais
(Chopart, 2003), e por outro lado, dão origem a processos de redefinição das intervenções
sociais (Chopart, 2003), gerando dinâmicas de redefinição das identidades pessoais e profissionais.
O estudo destes impactos nas profissões, e nas profissões femininas leva alguns autores a considerar que as «profissões feminizadas também mudaram entre outros factores pelos processos
de requalificação – desqualificação dos mercados de trabalho e uma nova consciência sobre
a competência e profissionalidade dos trabalhos realizados por mulheres» (Guadarrama, et
al, 2007: 15), no entanto, considera-se serem poucos os impactos qualitativos nas esferas do
trabalho em geral, e nas próprias profissões femininas, «subsistindo numerosos segmentos
desqualificados e depauperados» (ibidem: 15).
Locus SOCI@L 2/2009: 25
Defendem assim estes autores, linhas de continuidade e linhas de ruptura, coexistindo nas profissões feminizadas, espaços comuns de identidades contrastantes, renegociadas na cultura e
espaço, onde se desenvolvem as actividades, rompendo-se no entanto, algumas linhas de natureza predominantemente afectiva (Guadarrama, et al, 2007: 16). Salienta-se nesta perspectiva a importâncias dos contextos espaciais e temporais, os espaços globais e locais, as suas
similitudes e especificidades, entre outras mudanças ocorridas ao nível da diferenciação do
trabalho, e a consequente apropriação pelas mulheres de espaços profissionais masculinos.
Os desafios lançados ao trabalho decorrem dos fenómenos de transformação do mundo produtivo contemporâneo (flexibilização, precarização, globalização do trabalho, etc.), e as consequentes reconfigurações profissionais que afectam transversalmente todas as profissões. As
profissões do «trabalho social», onde se inscreve o Serviço Social, são atravessadas por uma
série de paradoxos e desafios.
Os desafios colocados hoje ao Serviço Social são diversos, este está em plena mutação, novas
problemáticas, novos campos profissionais, «transformando-se na prática com a presença,
na qual os profissionais acompanham as pessoas em situação de necessidade, para as tornar
«activas» na sua autonomização» (Bessin, 2009: 72), colocando-se as questões de género e os
consequente desafios para o Serviço Social, os quais segundo este autor, devem ser tomados
seriamente em consideração.
Conclusão
Compreender o Serviço Social enquanto Profissão feminina, é colocar-nos forçosamente perante a proposta de atender à sua génese e evolução social, atravessadas pelas influências
marcadas das dimensões de género. Partimos da hipótese de que as identidades profissionais
do Serviço Social, se constroem nos mundos da construção social fortemente feminizada,
na relação social das identidades profissionais a visões essencialistas associadas às mulheres,
como dimensões que confluem para os fundamentos, finalidades, constrangimentos e potencialidades, desta profissão. Contribuíram para esta compreensão o debate na questão das
profissões socialmente «adequadas», e, maioritariamente exercidas por mulheres – as Profissões Femininas, e as Caring Professions.
A compreensão do Serviço Social, como profissão feminina, remete-nos para a herança histórica e social do estereótipo de feminilidade e do maternalismo nas profissões femininas. A
sua génese assenta na evolução diferenciada entre homens e mulheres – diferencialismo sexual
– pelo que o debate do género na natureza do Serviço Social, situa-o como vinculativo à subordinação e subalternidade, permitindo não só conhecer a sua natureza, mas, definir o seu
perfil de controlo, e dominância do afectivo, dimensões tributárias das profissões femininas.
Assim, para a compreensão desta problemáticas temos de estar especialmente atentas às pistas teóricas que centralizam as suas análises no conceito de género, sobretudo na dimensão
dos atributos femininos – sensibilidade, afectividade para cuidar dos outros, bem como o
conceito de patriarcado, e a sua relação com as dimensões do poder, controlo, autoridade,
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subordinação, subalternidade, estatuto e prestígio, e ainda o conceito de cuidar como dimensão «própria» ao mundo mulher.
Salientamos ainda, que as concepções actuais sobre a natureza do Serviço Social, precisam
ter em conta enquadramentos mais abrangentes, nomeadamente, as mudanças ocorridas no
contexto europeu, e mundo globalizado, levando alguns autores (Guadarrama; Torres, 2007;
Prieto et al., 2007; Krings; Lierling, 2008) a considerar que as profissões femininas mudaram
entre outros factores, pelos processos de requalificação e desqualificação dos mercados de
trabalho, e uma nova consciência sobre a competência e profissionalidade dos trabalhos realizados por mulheres, sem no entanto se traduzirem em impactos sociais significativos para
as mulheres.
Referências
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Taylor, Patricia & Daly, Catherine (1995). Gender Dilemmas in Social Work, Toronto: Canadian Scholars Press Inc.;
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Notas
1 Na língua inglesa este vocábulo admite vários sentidos, nomeadamente se as tiver associado a diferentes
expressões como por exemplo care for no sentido de cuidar de, e care about exprimindo a noção de tarefa.
2 Aponta dimensões mais qualificativas de bondade, humanidade.
3 Contributo dos estudos feministas europeus – análises dos sistemas de Protecção Social.
4 Ao longo do texto quisemo-nos manter fileis ao conceito usando os vocábulos, care e care professions na sua
língua original (inglesa) justificado pela fidelização aos sentidos na língua mãe.
Peer Review Process
Recepção artigo | 08/10/2009
Paper reception
Admissão artigo | 14/12/2009
Paper admission
Arbitragem anónima por pares | 03/02/2010; 20/07/2010
Double blind peer review
Aceitação artigo para publicação | 06/09/2010
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Identidades, incertezas e tarefas do
Serviço Social contemporâneo1
Maria Inês Amaro
Centro de Estudos de Serviço Social e Sociologia
Faculdade de Ciências Humanas – Universidade Católica Portuguesa
[email protected]
Resumo
Neste artigo é discutida a identidade profissional dos assistentes sociais. Partindo-se do reconhecimento de que
se está em presença de uma crise da identidade profissional, apresenta-se a dificuldade heurística (não específica,
mas mais profunda no Serviço Social) do tema, apontando-se desde logo a impossibilidade de ser abordado no
singular: trata-se, efectivamente, de identidades e não de identidade. Constata-se o estado de escassez de debate no
seio da comunidade profissional sobre este tema e apontam-se tarefas para o Serviço Social no século XXI.
Abstract
This article discusses the professional identity of social workers. Departing from the point of view that there is an
identity crisis in the profession, it is reckoned the heuristic difficulty (not specific, but sounder in Social Work) of
the theme, underlining the impossibility of being approached in its singularity: it is actually about identities, and
not identity, that it is intended to reflect upon. It is particularly relevant the scarce debate among the professional
community on this theme. To conclude, a set of tasks for Social Work in the 21st century is pointed out.
Palavras Chave
Serviço Social,
Identidade Profissional; Obscurantismo Identitário;
Tarefas para a
Profissão
...
Key Words
Social Work,
Professional
Identity, Identity
Obscurancy, Tasks
for the Profession.
A abordagem às identidades profissionais dos Assistentes Sociais é incontornável quando se
pretende aprofundar o pensamento sobre a profissão e afigura-se, por isso, como uma tarefa relevante para a discussão dos seus fundamentos no contexto actual. Não sendo possível
assumir a identidade profissional do Assistente Social como algo de unívoco, unidireccional,
com delimitações precisas e estático, entende-se que a(s) identidade(s) será(ão) o conjunto de
traços comuns que agregam, fecham, produzem sentimentos de pertença e autorizam a que
se distinga entre os elementos que fazem parte desse conjunto e os que lhe são exteriores.A
pluralidade identitária, sendo um factor presente em todas as profissões (e mesmo um indicador do seu dinamismo interno), é especialmente evidente numa área como o Serviço Social,
uma vez que se trata de um agir multifacetado presente, também, numa grande diversidade
de contextos sociais e institucionais.Trata-se, antes de mais, da tentativa de aproximação ao
tema do que é o Serviço Social, recorrendo a uma abordagem reflexiva que dê conta e integre
elementos-chave inerentes à profissão como a sua diversidade de práticas e campos de intervenção, a complexidade com que sempre se confronta na sua praxis, a evolução e as diferentes
concepções em presença sobre a profissão e o modo como tem vindo ou não a incorporar as
novas categorias emergentes deste tempo de “superação da modernidade” em que o próprio
Serviço Social se insere.Sem ter a pretensão de chegar a uma conclusão final sobre o que é a
identidade do Serviço Social, até porque tal projecto apontaria para um trabalho de maior
profundidade, propõe-se a análise e discussão de alguns aspectos que se consideram críticos
para o pensamento sobre a profissão hoje. Qual o processo histórico da profissão? Que evoluções e que momentos-chave se lhe reconhecem? Que identidades para o Serviço Social? Quais
as tarefas para a profissão no mundo contemporâneo?
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1 – O velho e o novo na construção identitária do Serviço Social: três grandes momentos agregadores.
Na tradição inaugurada por Mary Richmond, em 1917, com o Diagnóstico Social, a prática
do Serviço Social demarca-se definitivamente das formas de intervir não profissionais, consolidando-se como profissão institucionalizada.2 Os assistentes sociais sentem a necessidade de
afirmar o seu profissionalismo, desenvolvendo nesse caminho formas de agir mais rigorosas
e sistematizadas. Esta obra seminal de Richmond, que continua a constituir uma referênciachave para quem queira conhecer o Serviço Social, trata disso mesmo – de propor um conjunto de procedimentos organizados para o agir profissional, sistematizar a intervenção, rejeitar o
senso comum como guia para a acção e aprofundar um processo de “cientifização” da prática
profissional.
A lógica de serviço social proposta nesta obra insere-se naquilo a que se convencionou chamar
de «Serviço Social clássico» e que pode ser situado no período que medeia entre a institucionalização da profissão (inícios do século XX) e as décadas de 60 e 70 do mesmo século (momento em que alguns movimentos de renovação ganham vigor), em que surge um pouco por
toda a Europa e nos Estados Unidos um questionamento ao establishment não só ao nível do
Serviço Social, mas também ao nível da organização social em geral. Esta abordagem é fundamentalmente centrada no caso e almeja propósitos de adaptação do indivíduo ao meio e de
racionalização dos recursos e dos processos de intervenção.
Hoje os profissionais percepcionam esta visão como conservadora, assistencial, tendencialmente discricionária e promotora de relações de dependência entre Assistente Social e respectivo utente, mesmo porque os processos de intervenção são protagonizados por assistentes
sociais enquanto «agentes do bem» e guias do percurso dos utentes, numa perspectiva moralizante e ainda caritativa.Deste ponto de vista, e na esteira da discussão encetada por Flexner
sobre se o Serviço Social poderia ou não ser uma profissão (1915 cit. in Henriquez, 1999:
77-79), ainda hoje parece ser discutível se se está perante uma profissão de pleno sentido ou
apenas de uma prática profissionalizada. Flexner, aliás, argumentava que o facto do Serviço
Social se assumir como mediador entre diferentes domínios profissionais e se operacionalizar
em diferentes campos de intervenção, tornando o seu objecto vago e difícil de especificar,
constituíam óbices ao seu reconhecimento enquanto profissão (2001 [1915]: 160-162).
Pode, porém, considerar-se que se trata de uma profissão a partir do momento em que se
refere a uma prática que exige uma formação especializada específica de nível superior, que
corresponde a um trabalho reconhecido e que se distingue de outros, que se integra no movimento societário geral de criação de grupos ocupacionais, que tem um papel social atribuído
e reconhecido publicamente, que lhe é imputado um sistema de valores aceite e com responsabilidade moral, que corresponde às expectativas atribuídas e que é genericamente olhada
como competente e eficaz (Payne, 1996: 156-157). Parece, ainda assim, perdurar na própria
formação um sentimento de inespecificidade epistemológica do Serviço Social que acabaria
por redundar numa posição de subalternidade deste campo.
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Defende-se que um primeiro grande momento agregador e produtor de identidade do Serviço
Social é justamente o da institucionalização da profissão e que, até com um propósito de delimitação do campo, se centra numa postura individualista-reformista da prática e do papel
do Assistente Social.3 A intervenção pauta-se por ser personalista, voltada para a regulação
e a adaptação do indivíduo ao meio e, portanto, tem um cunho fortemente conservador ou,
por outras palavras, “o Serviço Social emerge como uma actividade com bases mais doutrinárias que científicas, no bojo de um movimento de cunho reformista-conservador” (Iamamoto,
2000 [1992]: 21). Embora, desde as suas origens, se possa reconhecer a presença de uma
tensão que estabelece duas direcções diferentes para o Serviço Social: uma mais conservadora
e individual e outra mais progressista e comunitária,4 é reconhecido que o movimento instituidor da profissão é de natureza, necessariamente, mais conservadora.
Apesar de eleger como enfoque central para a intervenção o indivíduo e o caso, emana desta
visão clássica a estrutura tripartida dos métodos em Serviço Social, ou seja, uma prática profissional organizada em torno de três formas distintas e separadas de abordagem ao real: o
caso, o grupo e a comunidade. Esta concepção tripartida do Serviço Social foi vigente até aos
anos sessenta do século XX, momento em que começou a ser questionada e reequacionada à
luz do que veio mais tarde a designar-se por método integrado. Nesta linha, entende-se que
não deverá insistir-se numa delimitação estanque da prática profissional por níveis de intervenção, mas que o Assistente Social deverá ser capaz de equacionar as problemáticas que se
lhe colocam em termos micro, meso e macro, não descurando também o âmbito das políticas
sociais, da administração social e do planeamento e avaliação.5 A partir desta abordagem integradora é que se deveriam construir os modelos específicos de intervenção.
Esta nova forma de encarar a intervenção do Assistente Social configura uma ruptura com a
visão clássica e segue as propostas avançadas pelos movimentos de reconceptualização do
Serviço Social.6 Lê-se, já em 1967, no emblemático Documento de Araxá que “a partir desse
novo enfoque, o Serviço Social deverá romper o condicionamento da sua actuação ao uso
exclusivo dos processos de Caso, Grupo e Comunidade, e rever seus elementos constitutivos,
elaborando e incorporando novos métodos e processos.” (AAVV, 1986 [1967]: 27). Assim se
fez, também em Portugal, essa tentativa de superação de divisões internas no Serviço Social,
começando pela formação dos profissionais.
Esta renovação do pensamento em Serviço Social influencia muito activamente a realidade do
Serviço Social português a partir dos anos sessenta e até aos anos oitenta do século XX, tendo
sido revigorada com o 25 de Abril de 1974 e as novas aberturas que acarretou. O crescimento
desta nova visão sobre a profissão estimulou o ensejo da classe profissional a um reconhecimento académico, que veio a concretizar-se em 1989 e que se constitui, do ponto de vista
aqui defendido, como um segundo grande momento agregador da profissão. É interessante
verificar como no período ainda pré-revolucionário da sociedade portuguesa se criaram condições para o questionamento, afirmação e cientifização do Serviço Social, que tiveram nas
escolas de Serviço Social, designadamente no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, o
seu ponto nevrálgico, constituindo-se, à época, num dos raros contextos de aproximação às
ciências sociais.
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Começa, desta forma, e antes mesmo do 25 de Abril de 1974, a registar-se por parte de alguns
segmentos dentro do Serviço Social uma rejeição da apologia da neutralidade da prática profissional e a afirmação de uma dimensão necessariamente política que atravessa a profissão.
Isto significa que logo a partir dos anos sessenta do século XX era possível identificar, em coexistência com a hegemónica visão clássica do Serviço Social, práticas alternativas, centradas
numa intervenção territorial de cariz comunitário, na linha da promoção e desenvolvimento
social, inclusivamente promovidas pela própria intervenção católica.7 Mais concretamente,
assiste-se “à integração das ciências sociais na formação de Serviço Social e, no quadro de
uma política desenvolvimentista e de abertura política da “Primavera Marcelista”, à instauração de novas políticas e organizações sociais no âmbito do grande sector da Assistência do
aparelho de Estado, onde surge (meteoricamente) um novo campo de acção social colectiva,
com objectivos outros, de natureza promocional. Estas mudanças vão suscitar em algumas
práticas institucionais (públicas e privadas) o início e desenvolvimento de uma diversidade de
experiências e projectos de «trabalho social» comunitário, onde aparecem, activamente envolvidos, profissionais de Serviço Social, sendo embora segmentos minoritários da profissão.
Estes projectos comunitários vão possibilitar outras formas e técnicas de acção no terreno e o
surgimento e necessidade de compreensão de outras dimensões que ultrapassam o domínio
da relação interpessoal ou grupal (a nível dos métodos de Serviço Social), para se situarem no
campo do colectivo, onde emerge e se revela pela primeira vez na experiência profissional, em
confronto com o terreno e com as necessidades das populações, a dimensão política” (Negreiros, 1999: 33).
A consolidação desta visão alternativa do Serviço Social e a sua apropriação pelas escolas
como a forma «correcta» de se fazer Serviço Social, traduziram-se numa profunda ruptura
entre o Serviço Social clássico e o Serviço Social alternativo. Esta dicotomização, que parece
ter sido mais empolada pelas escolas do que sentida como uma imposição do terreno profissional, revelou-se por vezes desfasada da realidade, dado que uma grande parte das práticas
continuava a situar-se num registo de caso de inspiração funcionalista.
Uma tal dicotomização não deixava de obedecer a uma visão estereotipada e demasiado simplista dos assistentes sociais e é responsável por posicionamentos equivocados ainda hoje
presentes nos profissionais, que desvalorizam e se sentem desconfortáveis com certas práticas
de carácter assistencial e paliativo, como sendo fruto de uma visão passadista e conservadora
da profissão. Ora, como é sabido, até pela crescente densidade problemática das situações
profissionais que hoje se apresentam ao Assistente Social, muitas vezes não é possível, pelo
menos num primeiro momento, realizar outro trabalho que não seja de natureza paliativa ou
assistencial, sendo esse aquele que cumpre uma função social mais evidente.8 Por natureza,
a um trabalho deste tipo não deverá ser atribuída uma carga necessariamente negativa, mas
antes será mais procedente uma discussão e clarificação do lugar que deve ocupar no âmbito
do desempenho profissional.
Estas duas visões polarizam duas identidades extremas, muitas vezes, desadequadas à realidade de intervenção e que acabam por não oferecer orientadores para a acção com que os profissionais se sintam confortáveis no terreno. Iamamoto, em 1992 (2000), tecia uma crítica à
perspectiva do Serviço Social alternativo com base em alguma literatura produzida na América
Latina. Os aspectos críticos apontados remetem para um reducionismo analítico, que faz uma
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leitura unívoca das problemáticas sociais como fenómenos pró-capitalistas que tendem para
a superação revolucionária; para uma diluição das lutas de classes no sentido da sobreposição
dos projectos populares com o projecto proletário e de uma visão da sociedade polarizada
entre os dominantes e os dominados, e para um simplismo na análise conjuntural, que não
diferencia territórios nem subgrupos de análise.
A bipolarização desta análise será, em si mesma, também demasiado redutora da diversidade
de visões e propostas profissionais que estiveram presentes na profissão. Considera-se, porém, que apresentam dois extremos, ou dois pólos que balizam as identidades profissionais.
Em termos profissionais, a proposta do Serviço Social alternativo aponta para um Assistente
Social militante e com uma acção messiânica sobre o tecido social, o que extravasa em muito
um domínio estritamente profissional e configura um posicionamento, porventura demasiado
voluntarista, sobre o alcance da dimensão política da profissão, ou seja, um tal posicionamento sobre o que pode ser a alternativa ao Serviço Social clássico corre o risco de cair numa
“visão messiânica e heróica da profissão, ingénua quanto às possibilidades revolucionárias do
Serviço Social e deslocada do solo da história” (Iamamoto, 2000 [1992]: 134-158).
Apesar desta crítica estar direccionada para o que, na esteira do movimento da reconceptualização, se foi produzindo na América Latina sobre o Serviço Social alternativo e sobre
os contextos presentes nesse espaço territorial, é possível estabelecer um paralelismo com
o desenvolvimento do pensamento sobre o Serviço Social em Portugal. Aliás, a recorrente
identificação do Assistente Social com os “salvadores da pátria” ou alguém que vai “mudar
o mundo” dá bem conta do messianismo presente também na versão portuguesa do Serviço
Social alternativo.
De facto, no contexto nacional, esta visão, aqui designada de alternativa, balizou todo o processo de requalificação do Serviço Social com vista à sua academização, concretizada pelo
reconhecimento do grau de licenciatura em Serviço Social, ocorrido em 1989. Como se disse,
considera-se este como um segundo grande momento agregador da profissão em Portugal,
pois nesse caminho foi necessário mobilizar docentes, estudantes e profissionais para influenciar os poderes no sentido daquele reconhecimento. Por outro lado, a atribuição do grau de
licenciatura em Serviço Social e a sequente criação da correspondente carreira técnica superior
constituíram-se como pontos de viragem fundamentais no desenvolvimento desta área.
Este processo é profundamente retratado e analisado na obra de Maria Augusta Negreiros que
conclui que “na sequência da atribuição do grau académico de licenciatura aos Institutos de
Lisboa e Porto, a formação académica de Serviço Social sofre um salto qualitativo em termos
da legitimação e reconhecimento social passando, em termos da Lei de Bases do Sistema
Educativo, a situar-se no quadro do Sistema Universitário” (Negreiros, 1999: 24, itálicos da
autora).
Não obstante, algumas persistentes fragilidades da formação parecem ser responsáveis por
um sentimento de insegurança, desconforto e incerteza relativamente à profissão.9 Ficam, assim, criadas áreas de vazio e silêncio na profissão que obstam à constituição e uma identidade
profissional sólida, positiva e mobilizadora do corpo profissional. Assinalam-se uma série de
aspectos dos quais o Serviço Social se quis demarcar, rejeitando com isso uma identidade do
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passado, mas parece não se ter conseguido consolidar suficientemente uma identidade alternativa capaz de fornecer “pontos de ancoragem” e “algumas respostas” aos profissionais de
terreno. A capacidade de visão global sobre as realidades sociais, a perspectiva dos Direitos
Humanos e a consciencialização cívica, embora sendo reconhecidos como fundamentais, não
parecem ser capazes de alicerçar novas identidades para a profissão.
Veja-se o discurso de alguns profissionais entrevistados,10
“não havia uma preparação capaz que desembocasse também numa
transmissão que fosse mais ou menos clara e entendível, (…) havia perguntas enquanto aluna que eu achava que tinha que ter respostas (…) e
não as tinha (…).” (PC1)
“ficámos muito na esfera do chavão (…), negámos as nossas raízes e não
fomos capazes de ir à procura de mais nenhumas.” (IR1)
“de facto a ideia era não há receitas e de facto não há receitas, mas isso
ficou-me dito por uma série de pessoas… não há receitas mas nalgumas
coisas tem de haver alguns pontos de ancoragem, porque senão nós perdemo-nos…” (IR2)
“embora eu pense que tenhamos passado uma fase, e penso que essa
fase criou problemas ao Serviço Social até hoje, que é uma fase de desqualificação da intervenção específica do Serviço Social, ou seja, uma fase
de rejeição dos métodos tradicionais(…) para ser uma abordagem muito
mais global e até muito mais política.” (DP7)
Efectivamente, a profissão vivenciou um primeiro grande momento agregador com a sua institucionalização e um segundo grande momento de academização, que culmina com o reconhecimento da licenciatura e subsequentes processos de pós-graduação, mas que se inicia
desde a década de sessenta com a entrada das influências críticas do movimento da reconceptualização. Argumenta-se que este projecto da academização do Serviço Social não está
ainda plenamente consumado, porquanto não é ainda pacífica a inserção do Serviço Social no
meio académico e não tem ainda havido uma consistente produção académica, quer por via
dos processos de qualificação individual, quer por via do trabalho desenvolvido no âmbito de
centros de investigação.11 Por outro lado, a frágil comunidade científica na área, que de uma
forma geral não cria espaços nem estímulo para o debate de concepções, parece implicar que
permaneça na agenda dos profissionais o debelar de questões vindas do passado.
A necessidade de afirmação profissional no domínio público e a premência da regulação do
exercício e formação profissionais,12 considera-se que se tem consubstanciado no terceiro
grande momento agregador do corpo profissional. Este momento, relevante para a discussão
e consolidação da identidade profissional, centra-se na defesa dos atributos específicos à profissão e na delimitação da sua área jurisdicional e julga-se que terá como ponto culminante a
criação e reconhecimento da Ordem dos Assistentes Sociais. Este é, como se sabe, um processo ainda em construção.
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2 – As incertezas de uma identidade incerta do Assistente Social
De acordo com a Classificação Nacional das Profissões, o Assistente Social é tido como um
profissional especializado na área das ciências sociais e humanas com capacidade de intervenção, planeamento e investigação e que actua em três níveis distintos: indivíduos, família e comunidade. Recorre a procedimentos especializados, como o diagnóstico ou a entrevista e age
com o propósito de identificar e resolver os problemas do indivíduo, grupo ou comunidade,
adaptando-o e tornando-o útil à sociedade (IEFP, 2009: 103).
Parece interessante destacar que não se concebe o Assistente Social com um papel na área
da administração e gestão de equipamentos sociais. Por outro lado, a função da investigação,13 pela qual o Serviço Social tanto se tem batido e que consubstancia a sua pretensão de
reconhecimento como disciplina universitária, é integrada sem reservas. Decalca-se, também,
desta definição uma visão do Assistente Social como agente de adaptação, com uma intervenção centrada no sujeito – ainda que nos diferentes níveis: indivíduo, grupo e comunidade
– e nos seus problemas e, consequentemente, sem um alcance estrutural nas suas análises e
intervenção.14
Por seu turno, na definição de Serviço Social aceite pela Federação Internacional dos Assistentes Sociais15 pode ler-se: “a profissão de Assistente Social promove a mudança social, a resolução de problemas no contexto das relações humanas e a capacitação e empenhamento das
pessoas na melhoria do ‘bem-estar’. Aplicando teorias do comportamento humano e dos sistemas sociais, o trabalho social focaliza a sua intervenção na relação das pessoas como meio
que as rodeia. Os princípios dos direitos humanos e da justiça social são fundamentais para o
serviço social” (www.ifsw.org, tradução livre). Esta perspectiva, amplia o alcance da profissão
atribuindo-lhe um propósito de mudança social (e não apenas individual) e comprometendoa com os princípios dos direitos humanos e da justiça social. Uma tal abertura do escopo
profissional opõe-se ao reduto em que a instância nacional situa a profissão.
A este propósito, o sincretismo característico do Serviço Social, e conceptualizado por José
Paulo Netto (2001 [1992]), pode ser olhado como uma virtude e mesmo como uma marca
identitária da profissão. Coloca-a com problemas de delimitação e ancoragem, mas fornecelhe uma capacidade de elasticidade que a transforma numa prática complexa e operacionalizável em contextos muito distintos. Contudo, aparece evidente que o Serviço Social é posicionado, e para utilizar a terminologia de Habermas, entre o mundo dos sistemas e o mundo da
vida, ou seja, cabe a esta profissão estabelecer uma ponte, estabelecer vias de comunicação,
entre os sujeitos individualmente nas suas idiossincrasias e as estruturas sociais formais.
Genericamente, o Assistente Social é olhado como um profissional de mediação, no sentido
em que Almeida (2001) e Freynet (1999) já exploraram, ou seja, como agente de ligação entre
os indivíduos, grupos e comunidades e as estruturas sociais. Quando se aprofunda, porém,
é possível encontrar concepções que direccionam a prática profissional para propósitos mais
terapêuticos, mais societais ou mais individuais, retomando a tipologia de Payne (1996).
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Ressalva-se, porém, que, em consonância com a própria forma não exclusiva como Malcolm
Payne (1996) concebe estas três visões do Serviço Social, as posições são sobretudo intermédias ou hibridizadas face a estas concepções, ou seja, considera-se, por exemplo, que tendo o
Serviço Social um cunho essencialmente societário não deverá deixar de trabalhar as dimensões simbólicas relativas ao sujeito e de se debruçar sobre o caso, promovendo alguns níveis
de adaptação do indivíduo à estrutura. Na verdade, estas três visões propostas não perfilam
três concepções estanques e incomunicáveis da profissão, embora nem sempre seja evidente
que entre os profissionais exista uma consciência destes patamares de concepção distintos.
Interessa perceber se estes diferentes olhares sobre a profissão são claramente colocados, manifestos, assumidos, conscientes nas suas oposições e implicações para a prática. Efectivamente, na escassa literatura produzida a nível nacional nesta área pouco se reflecte sobre esta
questão e mesmo num plano internacional verifica-se que as publicações tendem a orientar-se
para áreas específicas da intervenção profissional (a saúde, a velhice, as crianças e jovens, a
etnicidade, etc.) e não tanto para os seus próprios fundamentos.
Consequentemente, denota-se alguma dificuldade entre os profissionais em aprofundar as
ideias lançadas sobre as concepções profissionais, em perceber como é que os diferentes eixos
de análise se conjugam ou incompatibilizam e em assumir que uma dada concepção aponta
ou exclui determinados tipos de prática profissional. É, outrossim, sobejamente sublinhada a
excessiva individualidade dos percursos intelectuais no Serviço Social português e a insipiência
teórico-científica deste campo como factores explicativos desta falta de clareza e sistematicidade no pensamento sobre a profissão.16
A negligência dos profissionais, nomeadamente dos que estão dedicados a uma carreira
académica, na publicação e divulgação do conhecimento produzido,17 a ausência de uma
organização sistemática de fóruns de debate, a escassez de profissionais interessados e dedicados ao estudo como actividade principal,18 é apontada como responsável por uma falta
de reconhecimento da área, por uma desagregação identitária dos assistentes sociais, por
uma baixa auto-estima da classe profissional e por uma inexistência de figuras de referência
fortes. Uma certa «crise de identidade» a que se faz referência dá-se pela desinformação
geral, falta de esclarecimento, falta de clareza e falta de aprofundamento das questões. Argumenta-se, desta forma, que antes de mais se está perante um obscurantismo identitário19
no Serviço Social que obsta à tomada de posições consciente e ao evidenciar do pluralismo
presente na profissão.
Uma outra circunstância que concorre para o quadro descrito é o facto de se estar ainda no
embrião do que pode ser considerado uma comunidade científica portuguesa do Serviço Social,
com características ainda de grande fechamento e endogenia. Alia-se a este aspecto o facto de
não existir uma prática de estudo e aprofundamento dos, assim designados, clássicos do Serviço
Social, não se dando uma apropriação do património da área nem um reconhecimento do que
são as suas reformulações para o presente, estabilizando, assim, alguns traços identitários da
profissão. Um tal quadro reforça a ideia de que existe, de facto, um obscurantismo identitário,
que é também necessariamente conceptual, teórico e científico no Serviço Social. Esta característica tem um efeito multiplicador/propagador na profissão, dado que tem o seu âmago nas
escolas, repercutindo-se, através da formação, para toda a classe profissional.
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A este nível, fragilidade parece ser um dos adjectivos que os profissionais consideram que melhor retrata a posição do Serviço Social, resultado de um percurso tardio e moroso de inserção
académica. A este processo não é alheia a forma como o ensino universitário ignorou o Serviço Social, enquanto área científica, ao mesmo tempo em que se abria às ciências sociais, no
pós-Abril de 1974. Acresce, ainda, a forma como as instituições científicas têm demorado a
interessar-se por um investimento sério na investigação, em geral, e na investigação em Serviço
Social, em particular.20
No terreno, os profissionais manifestam preocupações com a falta de capacidade de afirmação profissional dos assistentes sociais, relacionando-a com este obscurantismo identitário
que tem na raiz a falta de consistência de um corpo de conhecimentos próprio. Esta baixa
reflexividade dos profissionais conduz, ainda, e segundo os próprios assistentes sociais, a uma
prática profissional pobre e a uma fraca capacidade de desmultiplicação das boas práticas
existentes. Salienta-se, para ilustrar:
“Eu penso que o Assistente Social não produz estes movimentos que têm
que ver com o reforçar a identidade, (...) é preciso que isto seja assumido mais pelos próprios assistentes sociais, desenvolverem esta apetência
por lerem o Serviço Social, por aprofundar, por estudar, estudar mesmo,
acompanhar as novidades a nível das revistas da especialidade, acompanhar os desenvolvimentos que se fazem em estudos e em investigações,
porque isso não se faz, não me parece que se faça com a persistência que
eu penso que é necessária. //Penso que há uma grande baixa auto-estima
ainda do Assistente Social, coloca-se sempre numa situação em relação
aos outros profissionais ainda muito pouco horizontal.” (IR6)
Directamente relacionada com esta questão está a ainda frágil articulação da teoria com a
prática. Na verdade, sendo o Serviço Social um campo constituído por um objecto teórico e
um objecto de intervenção, as pontes entre estas duas esferas continuam a necessitar de consolidação e aprofundamento. Esta é uma questão que tem ocupado uma boa parte da produção nacional e internacional da área e que dá mostras de que continua a ser necessário afirmar
o Serviço Social para além do mero nível executivo e lutar contra o que se conceptualiza como
«pressuposto empiricista» (Amaro, 2008). Como aponta Restrepo, “a inclinação por um tipo
de pensamento inclinado para a acção obstrui a construção de pensamentos próprios e limita
o potencial criativo e inovador da investigação social como dispositivo teórico, metodológico
e instrumental de compreensão e interpretação da realidade social” (2003: 136).
Por fim, a reconhecida falta de consciência colectiva da categoria apresenta-se como mais uma
causa e consequência de uma “falta de assertividade” da profissão, da “inexistência de figuras
referenciais” e da “ausência de motivos de orgulho na profissão”. Apesar das inegáveis conquistas com o reconhecimento da licenciatura e a criação da carreira técnica superior específica do
Serviço Social, a profissão em Portugal carece de uma liderança agregadora e mobilizadora, não
tendo ainda conseguido conquistar um lugar inequívoco na vida pública.
Por vezes, parece que a circunstância do trabalho do Serviço Social se realizar, em larga medida,
na esfera do disempowerment se reflecte para a própria forma como a profissionalidade é vivida
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e como a profissão se posiciona no tabuleiro social. Também este fenómeno é o resultado e o
reflexo de um debate sobre a(s) identidade(s) do Serviço Social que está ainda por realizar.
3 – Tarefas para o Serviço Social contemporâneo
Num recente artigo, publicado da revista International Social Work, Silvia Fargion (2008), dando conta dos resultados de um estudo sobre a identidade profissional dos assistentes sociais,
refere, entre outras, a existência de uma tensão entre uma visão científica e uma visão humanística do Serviço Social. No fundo, trata-se de compreender a forma como a preocupação científica
transformou as visões sobre a profissão e o lugar que a ciência ocupou nessas mesmas visões.
Com efeito, o Serviço Social está filiado “numa ideia de progresso através da gestão racional e
do tratamento científico dos assuntos humanos” (Fargion, 2008: 213); este, é um dos fundamentos básicos da reivindicação da profissionalidade da área e da necessidade de existência de
uma formação específica e de nível superior para o acesso ao campo. A indispensabilidade de
demarcação de práticas caritativas, mais ou menos discricionárias e orientadas por desígnios
morais acarretou uma tendência para substituir a centralidade da fé cristã por uma espécie de fé
na ciência como guia para a intervenção. Tal como noutras esferas, também no Serviço Social,
a incorporação de uma racionalidade instrumental estrita não é isenta de problematização e de
questionamento: que abordagens científicas melhor servem a profissão? Devem ser hegemónicas? Como se devem relacionar com outras formas de conhecimento?
Não tem sido, efectivamente, pacífica a coexistência das esferas da “cabeça” – os procedimentos, a interpretação das problemáticas, o planeamento e a avaliação – e do “coração” – a
empatia, o desenvolvimento de relações, a construção de narrativas – no desenvolvimento
da profissão. Robert Lecomte coloca a questão da seguinte forma: “Alguns orientarão a sua
formação em função do ‘método científico’ que julgam essencial para o desenvolvimento da
profissão. Nesta óptica, os assistentes sociais devem orientar a sua prática pelo conhecimento
proveniente da investigação empírica, quantitativa e objectiva. Outros colocarão a ênfase na
acção sobre os aspectos qualitativos, ideológicos e ‘artísticos’ dos conhecimentos e das intervenções e sublinharão como vantajoso o seu carácter subjectivo e político” (in Deslauriers e
Hurtubise, 2000: 21-22). A partir desta posição, é importante clarificar que, embora a segunda
abordagem se caracterize por ter de forma consciente e assumida uma dimensão mais ideológica
e política, isso não significa que a abordagem mais «científica» seja estéril em tais dimensões.
Pelo contrário, a pretensão de atingir a neutralidade e objectividade da prática e o não questionamento da ordem instituída encerra, em si mesma, elementos que apontam para um processo
de “sacralização da técnica” (Restrepo, 2003: 138) que é, afinal, ideológico.
Esta concepção do Serviço Social como tecnologia social, por oposição à arte, vem, aliás, na
linha da proposta de Ander-Egg, que define o Serviço Social nestes termos, implicando com isso
que se trata de uma prática profissional em que é a teoria que “guia e orienta a transformação da
realidade” (1996 [1992]: 135). Paralela a esta concepção, é a que coloca o Serviço Social como
uma engenharia social, ou seja, como uma profissão fundada na ideia de que a acção organizada e cientificamente dirigida sobre o homem e a sociedade permite transformar para melhor
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esses alvos de intervenção. Assim, defende-se a posição de que o estudo sistemático e extensivo
da realidade social permite encontrar soluções para os problemas que, a partir do exterior e de
forma equivalente em todas as situações de natureza semelhante, podem ser aplicadas com sucesso. Neste sentido, o conhecimento científico recolhe dados da realidade e desenvolve-se com
o objectivo de emanar orientações normativas e procedimentos para a prática.21
Esta é uma concepção que ganhou força com os movimentos de profissionalização do Serviço
Social e consequente necessidade de afastamento de práticas com um cunho mais amador.
Numa sociedade crescentemente tecnificada, em que a ciência aliada à técnica e ao sistema
produtivo dão centralidade a um tipo de racionalidade instrumental dos resultados, da eficiência e da eficácia, a própria estratégia para o reconhecimento desta área passou por enfatizar
a sua aproximação à ciência com a consequente tecnificação dos seus procedimentos. Uma
tal atitude profissional acaba, também, por ser aquela que melhor combina com instituições
sociais crescentemente preocupadas com a avaliação de resultados e com os desígnios do
managerialismo, na sequência, aliás, de um processo de burocratização das práticas, e em paralelo da profissão, que foi ganhando cada vez maior expressão com a instauração e expansão
do modelo de Estado-Providência em Portugal. Daí que se constate que “o ‘pensamento iluminista [positivista]’ provavelmente representa o modelo de prática profissional mais largamente
legitimado” (Fargion, 2006: 269).
Não obstante a legitimação conquistada, este perfil levanta problemas e não dá conta de todos os aspectos críticos para uma prática profissional de qualidade em Serviço Social. Assim,
desde pelo menos a década de oitenta do século XX, têm vindo a ganhar voz correntes críticas
a este perfil que apontam para a necessidade de discutir o que se entende por ciência e o que é
ou não científico e que recuperam alguns aspectos de concepções passadas do Serviço Social,
designadamente, a dimensão artística e relacional de que não deve abdicar. Estas perspectivas,
antes de mais, propõem uma revisão das concepções de ciência que passa pela recusa de uma
abordagem inscrita no positivismo, devedora de uma concepção do investigador/perito como
uma entidade externa e distanciada da realidade estudada, que confunde conhecimento do
mundo com quantificação do mundo, que acredita na possibilidade de separação total entre
sujeito e objecto e que se considera a-política e a-moral.22
Pode, então, considerar-se que as duas designações habituais desta profissão – Técnico Superior de Serviço Social e Assistente Social – encerram duas concepções identitárias distintas do
Serviço Social no presente. A primeira é eminentemente racional, positivista e virada para os
resultados; a segunda é essencialmente relacional e simbólica, atenta, sobretudo, ao processo.
Estas duas identidades-tipo da profissão são conflictantes, mas na realidade concreta apresentam-se de forma matizada e complementar. Acresce que, de uma forma muito recorrente,
estas identidades não se expressam de um modo muito consciente e esclarecido, reforçando o
obscurantismo identitário atrás referenciado.
Esta questão das designações não é de somenos importância quando se quer reflectir sobre
a identidade da profissão e a forma como é concebida esta área e como os profissionais sentem que devem cumprir o seu papel. Parece haver entre os profissionais uma forte propensão
para a identidade de Assistente Social, mas um reconhecimento que a prática está dominada
pelo perfil científico-burocrático do Técnico Superior de Serviço Social, não apenas porque as
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instituições assim o exigem, como também porque as escolas e a socialização inter pares para
aí os remete.
“eu vejo lá os colegas às costas com 300, 400, 500, 600 processos, portanto, diz-me como é que as pessoas podem olhar e não tentar fazer a
mera gestão (…), mas um trabalho sério para levar até ao fim é humanamente impossível (…).” (IR2)
“se olharmos hoje para as políticas sociais, elas são muito mais arrumadas no sentido em que criam dispositivos, saem normas, saem manuais
de boas práticas, saem não sei quantas coisas, o que significa uma outra
coisa: é muito difícil às vezes para um profissional encontrar um espaço
que não seja esse (…).” (DP3)
Se o Técnico Superior de Serviço Social preconiza uma prática evidence-based, o Assistente
Social aponta para uma prática relational-based. Esta distinção revela-se, ainda, consistente
com os resultados de um estudo publicado em 2007 que constata que “as tendências teóricas
no Serviço Social passaram de uma lógica relationship-based para uma lógica evidence-based,
em que se espera que a intervenção com os utentes se salde em resultados estatisticamente
mensuráveis e em que a investigação é vista como a fonte das orientações mais claras para a
prática futura. Tais abordagens sugerem que o resultado é agora visto como mais importante
que o processo (…)” (Butler, Ford e Tregaskis, 2007: 282).
Esta dicotomização presente na construção identitária do Serviço Social contemporâneo também traduz e reflecte as tensões existentes, e com que o Serviço Social se defronta, nas sociedades actuais. De facto, o mundo contemporâneo apresenta um conjunto de realidades
paradoxais, que não cabe explanar minuciosamente neste artigo, mas que acarretam profundas mutações no campo profissional do Serviço Social, abalando os seus pilares identitários
e pondo a descoberto as fragilidades e incertezas a este respeito. Desde logo, essas realidades
paradoxais passam por se constatar uma crescente complexificação do real, em que ao Assistente Social se apresentam situações com uma densidade problemática cada vez maior, ao
mesmo tempo que se exige uma maior rapidez e pragmatismo na resposta – trata-se do paradoxo da simplificação das práticas frente à complexificação das realidades.
Daqui decorre que, tendencialmente, as práticas profissionais dos assistentes sociais têm vindo
a pautar-se pelo procedimentalismo, pela lógica da gestão, por critérios de eficiência e eficácia, por uma preocupação com a optimização dos recursos e dos tempos, que se tem revelado
pouco capaz de integrar uma sensibilidade para o outro na sua circunstância, na sua complexidade e na sua especificidade. Esta aparente “perda de sentido” do Serviço Social tem vindo a
ser apresentada como um perigo de desprofissionalização desta área (Dominelli, 2004; Webb,
2006) e impele para a necessidade de uma reconfiguração identitária da profissão.
Perante as incertezas e desafios com que o Serviço Social contemporâneo está confrontado e
respondendo a esse apelo para a reconfiguração identitária, considera-se que há cinco tarefas
fundamentais que podem ser imputadas à actual agenda da profissão:
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1. Lutar contra a aceleração do tempo
Seguindo a análise de Hermínio Martins (1998), considera-se que está patente no
mundo actual um processo de aceleracionismo escatológico, possibilitado pelo
avanço da tecnologia aliada ao sistema económico, que preconiza um processo em
espiral de aumento da velocidade que prossegue em nome da capacidade de conseguir ainda uma maior rapidez. Este processo resulta na criação de uma realidade
cada vez mais acelerada, que se faz sentir também ao nível da intervenção social.
Assume uma importância crescente a ideia de rapidez na intervenção, quer em cada
acto técnico em particular, quer ao nível da globalidade dos processos. Os benefícios
desta “pressa” na intervenção estão por comprovar e, de facto, são preconizados em
nome da própria rapidez da intervenção e pagando o preço da superficialidade na
relação.
Num mundo de crescente complexidade social, pautado pelo risco, pela incerteza e
pela falta de confiança, parece que um dos papéis fundamentais do Assistente Social
será o de securizar, estabelecendo relações estáveis e de longa duração com os seus
públicos. A suposta reconstrução identitária (Soulet, 2007) como principal função
assumida pelos assistentes sociais da actualidade não é compatível com o curto prazo e a fragmentação presentes nos contextos institucionais. Considera-se, por isso,
que cabe ao Assistente Social como tarefa para sua integridade profissional resistir
e mesmo rejeitar as tendências para a aceleração do tempo presentes nos processos
de intervenção.
2. Promover a produção e o debate científico no Serviço Social
Sem corpo de saberes e sem actores referenciais, o processo identitário das profissões perde as suas âncoras (Payne, 1998; Almeida, 2002; Faleiros, 2006; Amaro,
2008; Fargion, 2008, entre outros). No Serviço Social português, para além de escassa, a produção teórica está pouco disponível, o que em nada contribui para o debate
e para o aclaramento das diferentes perspectivas sobre a profissão. Com vista a uma
consolidação identitária (mas não apenas para este fim) é crucial o desenvolvimento
e afirmação de uma comunidade científica activa, influente e consolidada nesta área.
O estímulo à reflexão colectiva no Serviço Social representa a consumação do projecto de academização, que foi apontado como segundo momento agregador do percurso da profissão em Portugal, mas ainda por acabar, e a justa ambição do Serviço
Social poder reivindica para si um campo de pensamento próprio.
3. Encontrar formas de regulação da profissão
A proliferação de ofertas formativas que, sob a designação de Serviço Social, apresentam os mais variados perfis profissionais, conjugada com a crescente permeabilidade do mercado de trabalho e, portanto, do campo jurisdicional da profissão, leva
a que hoje exista uma multiplicidade de profissionais que se podem arrogar do título
de Assistente Social. Esta situação contribui, de facto, para uma diluição ou mesmo
deterioração do património identitário do Serviço Social, alargando de tal forma o
escopo, que o torna numa massa disforme.
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Contrariar uma tal tendência exige a definição de mecanismos de regulação de entrada e acesso à profissão, de que a constituição da ordem é um exemplo, por excelência. Este, apontou-se atrás, constitui como um terceiro momento agregador da
profissão.
4. Contrariar a tendência para um finalismo metodológico
Contextualizados num ambiente que, como se viu, preconiza uma racionalidade de
custo/benefício, de competitividade e de optimização ao limite, os profissionais tendem para a racionalização e padronização das práticas, tornando-as quantificáveis e
mensuráveis. Alia-se a este fenómeno um outro que, ao confundir ciência com ciência positivista, apresenta como prática mais científica (logo, melhor) aquela pautada
pelo tipo de critérios acima descritos. Neste processo, encontra-se a tendência para
atribuir aos meios o estatuto de fins. Assim, a metodologia, o procedimento, o indicador de avaliação, mais do que o Outro enquanto pessoa, as suas necessidades
e os seus particularismos, passam a pautar os passos e a direcção da intervenção,
transformando-se na sua finalidade. A esta inversão de meios em fins atribuiu-se a
designação de “finalismo metodológico”, considerando-se que é uma tendência presente e que deve ser contrariada.
5. Assumir sem receio as dimensões estético-expressiva e ético-política da profissão
A influência dos princípios da ultra-racionalidade vigente no mundo contemporâneo, conjugada com a necessidade de afirmação profissional do Serviço Social, fez
com que, gradualmente, a profissão se fosse despindo das suas dimensões mais subjectivas, mais “artesanais” e mais simbólicas e fluidas, em favor de uma abordagem
mais “científica” e, de alguma forma, mais legitimadora do estatuto profissional da
área. No entanto, argumenta-se que uma parte importante da especificidade identitária do Assistente Social é exactamente a sua capacidade de olhar, de compreender
e de se relacionar com o outro numa perspectiva de mudança, não apenas individual,
mas também contextual.
Por outro lado, o Serviço Social fica desprovido de identidade se se assume como ascético e sem posicionamentos. Assim, é importante que se compreendam claramente
quais as implicações políticas de cada uma das perspectivas sobre o Serviço Social
em presença, assumindo sem problemas que coexistem diferentes olhares sobre o
mundo e sobre o papel que a profissão deverá ter com as suas formas de agir.
Em jeito de conclusão, vale a pena salientar que se encontram no seio da classe profissional
sobretudo identidades híbridas situadas em diferentes meios-termos entre um perfil mais tecnocrata e um perfil mais humanista. Estas identidade são, não raras vezes, pouco esclarecidas
relativamente aos seus fundamentos e implicações e transparecem uma presença insistente entre os profissionais de sentimentos de insegurança, angústia e baixa auto-estima profissionais.
Considera-se que a concretização da agenda proposta poderá contribuir para o esbatimento
de tais disposições e ser um passo para que o Serviço Social se reinvente e contribua para a
reinvenção do mundo num tempo de turbulências e de inquietações.
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Soulet, Marc-Henry (2007), “Le travail social paliatif: entre réduction des risques et intégration
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Webb (2006), Social Work in a Risk Society – Social and political perspectives, Palgrave Macmillan, Nova Iorque.
Notas
1 O presente artigo, apesar de ter na base a comunicação apresentada no 1º Seminário de Inverno do CESSS
e Programa de Doutoramento da FCH/UCP (28/11/2008), retoma em larga medida as ideias contidas no
Capítulo 5 da tese de doutoramento em Serviço Social intitulada Urgências e Emergências do Serviço Social
Contemporâneo: contributos para a discussão dos fundamentos da profissão (2009: 180-227), desenvolvida
pela autora.
2 Apesar de se argumentar que este marco se insere no processo de afastamento do Serviço Social das formas
filantrópicas e caritativas de acção social, é preciso notar que a obra de Mary Richmond foi produzida no
âmbito das actividades desenvolvidas na Charity Organization Society, que desenvolvia uma acção de carácter
assistencial preconizada pela Igreja.
3 Malcolm Payne identifica três perspectivas que atravessam o Serviço Social: a individualista-reformista; a socialista-colectivista e a terapêutico-reflexiva. Cada uma destas visões reflecte uma forma de encarar a questão
da ordem social e o papel do Serviço Social na sua criação, manutenção e transformação. Numa perspectiva
individualista-reformista a ordem social existente é aceite e atribui-se ao Serviço Social um papel de ajudar os
indivíduos a ajustar-se/adaptar-se à realidade vigente. A causa dos problemas é essencialmente situada no indivíduo e ao Assistente Social cabe ajudá-lo a encontrar formas de os resolver. Na visão socialista-colectivista
a ordem social é questionada e olhada como geradora de problemas e injustiça social. Neste pressuposto a
prática profissional passa por uma acção de correcção das injustiças e de capacitação dos indivíduos para
transformarem o sistema instituído. Por fim, a posição terapêutico-reflexiva não elege o pensamento sobre a
ordem social como central e considera que o Serviço Social tenderá, sobretudo, a potenciar nos indivíduos o
seu desenvolvimento pessoal e humano e trabalhar as estruturas sociais para facilitar um tal desenvolvimento
(Payne, 1996: 180-186).
4 Sobre esta questão vale a pena explorar os contributos de Mary Richmond e de Jane Addams para a profissão.
5 Em alguns contextos, não obstante, esta diferença de enfoques na intervenção acabou por dar origem a práticas muito diferenciadas e que profissionalmente se tornaram distintas. É este o caso da divisão entre caseworkers e community workers, consagrada nos Estados Unidos e no Canadá a partir dos anos setenta do século
XX (Faleiros, 1983: 118-126).
6 Optou-se pelo uso do plural porque se considera que diferentes movimentos de “reprocessamento” do objecto
do Serviço Social ocorreram quer na Europa, quer nos Estados Unidos e Canadá, quer nos países da América
Latina, com especial destaque para o Brasil, entre as décadas de sessenta e setenta do século XX. Não cabendo
aqui realizar um estudo aprofundado sobre estes movimentos, vale a pena referir que não se tratou de um processo único, reconhecendo porém que o movimento corporizado pelos assistentes sociais brasileiros foi o que
maior influência parece ter tido no Serviço Social português.
7 A título de exemplo, destaca-se o movimento GRAAL, o Serviço de Promoção Social Comunitária da Direcção
Geral de Assistência, a Obra Diocesana de Promoção Social do Porto e o Projecto de Desenvolvimento Comunitário de Coimbra.
8 A este propósito vale a pena consultar a perspectiva de Marc-Henry Soulet, quando propõe a distinção entre
trabalho social generativo e trabalho social paliativo (2007).
9 No conjunto das 30 entrevistas recolhidas cm vista à tese de doutoramento (Amaro, 2009) foram apontadas
pelos profissionais lacunas na formação referentes, por exemplo, à falta de consistência e de operacionalidade
da formação específica em Serviço Social, à escassez de instrumentos e técnicas, às metodologias específicas e
à identidade profissional.
10 A amostra foi constituída por 30 assistentes sociais, divididos em três subgrupos fundamentais: produtores
científicos (PC), decisores políticos (DP) e interventores reflexivos (IR) (Amaro, 2009).
11 Para aprofundamento deste tema, vide entre outros Branco (2008); Martins (2006, 2008).
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12 Sublinhada pela profusão desregulada e mercadológica da oferta formativa nesta área profissional.
13 Sobre o percurso da investigação em Serviço Social, em Portugal, na Europa e na América do Norte, vide Dossier da Revista Locus Soci@l, nº1, 2008, CESSS/FCH-UCP in http://homepage.mac.com/fbranco/locussocial.
14 De acordo com a matriz proposta noutro texto (Amaro, 2008), uma tal visão da profissão inscreve-se no campo paradigmático do interpretativismo, ou seja, trabalha ao nível do sujeito e almeja a regulação e a ordem.
15 Está actualmente em curso o processo de revisão desta definição.
16 Estes factores são também evidenciados pelos resultados provisórios de um estudo conduzido por Isabel Passarinho sobre a identidade dos assistentes sociais (2008: 26).
17 É de referir que apenas sete teses de doutoramento em Serviço Social foram até ao momento publicadas (Rodrigues, 1999; Nunes, 2004; Martins, 1999; Almeida, 2001; Rodrigues, 2007, Santos, 2009 e Mouro, 2009)
18 É de notar que muitos dos assistentes sociais que se têm dedicado a uma vida académica centraram o seu
desempenho profissional mais na missão de ensinar do que na missão de produzir e publicar conhecimento
sistematizado e de desenvolver uma permanente actividade de investigação e reflexão. Assim, mesmo no âmbito
das escolas de Serviço Social, a produção intelectual é de uma surpreendente escassez. Veja-se, a título ilustrativo, que existem apenas duas publicações periódicas nesta área – Revista Intervenção Social e Revista Locus
Soci@l – sendo que a primeira, desde 2005, tem tido um ritmo incerto de publicação, e a segunda editou o seu
primeiro número apenas em Dezembro de 2008.
19 O termo obscurantismo é aqui utilizado para aludir a uma falta de clareza na colocação, no alcance e nas
implicações das ideias aplicadas à análise do Serviço Social, e não com o sentido de ignorância e falta de instrução, que também lhe pode ser atribuído.
20 É de notar que o Serviço Social não consta ainda como área científica na Fundação para a Ciência e Tecnologia, entidade responsável pela gestão e financiamento público da investigação académica. Esta circunstância
leva a que todas as propostas de investigação por parte de assistentes sociais sejam sempre avaliadas no âmbito
da área de sociologia e demografia.
21 É nesta linha que surge a chamada evidence-based practice.
22 Com origem em diferentes áreas das ciências sociais, a discussão e a crítica a este modelo de ciência tem sido
muito acentuada. Em Portugal, com direcções distintas e a título meramente ilustrativo podem indicar-se os
seguintes autores: Hermínio Martins (1996), Boaventura Sousa Santos (1995 [1987]); José Luís Garcia (2004);
Machado Pais (2002) e Bragança de Miranda (1994).
Peer Review Process
Recepção artigo | 17/11/2009
Paper reception
Admissão artigo | 26/11/2009
Paper admission
Arbitragem anónima por pares | 20/02/2010; 20/03/2010
Double blind peer review
Aceitação artigo para publicação | 12/04/2010
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As Identidades Profissionais em Educação
de Infância
Teresa Sarmento
Instituto de Educação, Universidade do Minho
[email protected]
Resumo
A construção da identidade profissional requer sempre a acção directa de cada actor social, num processo de
permanente relação com múltiplas condições: históricas, políticas, culturais, sociais e organizacionais. É hoje consensual que em todos os grupos profissionais nos temos que referir a identidades e não a identidade, na medida em
que se sabe que não há homogeneidade na composição, nas funções, nas perspectivas, nos valores e nas atitudes
de todos os membros da mesma área. Assim se passa, neste caso, com o grupo das educadoras de infância que,
formadas em escolas diferentes, inseridas ou não em associações profissionais, a desenvolverem a acção profissional em contextos organizacionais diversos e com finalidades também diferentes (jardins-de-infância, centros de
actividades de tempos livres, serviços de prolongamento de horário, ludotecas, pediatrias hospitalares e outros),
com histórias de vida distintas, apresentam formas de ser, de pensar e de agir muito variadas.
Esta diversidade, as riquezas e dificuldades que pode comportar, obrigam-nos, por isso, a reflectir o que entendemos por identidades, particularizando nas educadoras de infância. Diz-nos Dubar que “A identidade não é mais
do que o resultado simultaneamente estável e provisório, individual e colectivo, subjectivo e objectivo, biográfico
e estrutural, dos diversos processos de socialização que, em conjunto, constroem os indivíduos e as instituições”
(1991, 105). Ao longo deste texto procurar-se-á atender às premissas desta afirmação, numa perspectiva de análise
da construção das identidades das educadoras de infância. Uma análise cruzada de todas estas condições obriganos ao recurso de diferentes áreas do conhecimento e permite-nos aferir a complexificação crescente desta construção identitária, mantendo-se, no entanto, a centralidade do mesmo núcleo para o desenvolvimento da profissão,
ou seja, a relação pedagógica com as crianças.
Abstract
Palavras Chave
identidades; educadoras de infância;
crianças
...
Key Words
Identities; preschool teachers;
children
Professional identity formation is inevitably correlated with the social actor’s actions, implying such a process a
constant relationship with multiple conditions, namely historical, political, cultural, social and organizational ones.
It is assumed that we have to refer to identities and not to the identity when dealing with occupational groups, as
there is no homogeneity in the composition, functions, perspectives, values and attitudes of all members related to
the same area. The case in point refers to a group of childhood educators, trained in different schools, included or
left out of professional associations, carrying out their professional roles in different organizational contexts with
varied purposes (day-care children centers, recreational activities, long-scheduled services, toy libraries, pediatric
hospital and others) with diverse life histories, presenting distinct ways of behaving, thinking and acting.
This diversity, comprehending its advantages and disadvantages, make us reflect on the meaning of identity as far
as childhood educators are concerned. According to Dubar “identity is the result of both stable and temporary,
individual and collective, subjective and objective, biographical and structural, of the different socialization processes that, together, build individuals and institutions” ( 1991, 105). An attempt will be made to the premises of
this assertion throughout the communication, aiming at analyzing childhood educators’ identities. A cross analysis
of all of these conditions requires us to feature different areas of knowledge and allows us to gauge the growing
complexity of identity shaping. However, the centrality of the same nucleus will be kept in order to develop work as
a service relationship i.e. the pedagogical relationship with children.
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As Identidades Profissionais em Educação de Infância 1
“A identidade não é mais do que o resultado simultaneamente estável e provisório, individual e colectivo, subjectivo e objectivo, biográfico e estrutural, dos
diversos processos de socialização que, em conjunto,
constroem os indivíduos e as instituições” (Dubar,
1991, 105).
A construção da identidade profissional requer sempre a acção directa dos elementos do grupo profissional, num processo de permanente relação com múltiplas condições: históricas,
políticas, culturais, sociais e organizacionais. Neste processo interactivo, há condições e tempos de maior ou de menor dependência entre alguns dos factores. O caso das educadoras de
infância é disso um exemplo. As educadoras de infância constituem um grupo profissional que
emergiu das novas condições sociais, económicas e culturais do século XX, das concepções
sobre a infância2, bem como das expectativas face à sua educação.
É hoje consensual que em todos os grupos profissionais nos temos que referir a identidades e
não a identidade, na medida em que se sabe que não há homogeneidade na composição, nas
funções, nas perspectivas, nos valores e nas atitudes de todos os membros da mesma área.
Assim se passa com o grupo das educadoras de infância que, formadas em escolas diferentes, inseridas ou não em associações profissionais, a desenvolverem a acção profissional em
contextos organizacionais diversos e com finalidades também diferentes (jardins-de-infância,
centros de actividades de tempos livres, serviços de prolongamento de horário, ludotecas, pediatrias hospitalares e outros), com histórias de vida distintas, apresentam formas de ser, de
pensar e de agir muito variadas. Há, em qualquer profissão, um núcleo comum face ao qual
todos os membros se identificam, ainda que as formas de estruturação e expressão individual
se possam diferenciar; é nesta base que, ao longo do texto, nos iremos referir a identidade(s):
o ponto comum a todas as educadoras de infância é a relação pedagógica com crianças, podendo, no entanto, ser assumida e manifesta de diferentes formas.
A identidade profissional corresponde a uma construção inter e intra pessoal, não sendo, por
isso, um processo solitário: desenvolve-se em contextos, em interacções, com trocas, aprendizagens e relações diversas da pessoa com e nos seus vários espaços de vida profissional,
comunitário e familiar. Como dizíamos anos atrás (Sarmento, T., 1999), reflectir sobre as
identidades profissionais de educadoras de infância obriga a analisar um processo de construção social, no qual cada uma joga a sua história de vida com a história de vida do grupo
profissional a que pertence, com as crianças, com as comunidades e com os contextos onde se
desenvolve a sua acção educativa, transformando essa teia de interacções numa forma própria
de ser e de agir.
É nessas interacções que os valores profissionais se poderão (re)construir, facilitando a percepção de cada educadora de infância como um elemento significativo de um grupo profissional. É também neste cruzamento entre o individual e o social, nas formas e nas manifestações
da apropriação que cada educadora de infância faz dos ‘atributos específicos’ da profissão,
que o processo se desenvolve.
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Dubar diz que “A identidade não é mais do que o resultado simultaneamente estável e provisório, individual e colectivo, subjectivo e objectivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos
de socialização que, em conjunto, constroem os indivíduos e as instituições” (1991, 105). Ao
longo deste texto procuraremos esmiuçar as premissas desta afirmação, numa perspectiva
de análise da construção da(s) identidade(s) das educadoras de infância. Uma vez que em
trabalho anterior demos já especial realce aos aspectos individual e colectivo, subjectivo e objectivo, biográfico e estrutural (através de histórias de vida e da história da profissão3), neste
texto, aprofundaremos em especial a primeira premissa, dadas as grandes alterações que se
têm verificado nos últimos anos nas condições intervenientes na re-construção das identidades profissionais das educadoras de infância. Na nossa perspectiva, justifica-se, no entanto,
uma referência às demais premissas para garantir uma abordagem global e a referenciação do
objecto de estudo. Uma análise cruzada de todas estas componentes obriga-nos ao recurso de
diferentes áreas de conhecimento e permite-nos aferir a complexificação crescente desta construção identitária que mantém a centralidade nuclear para o desenvolvimento da profissão, ou
seja, a relação pedagógica com as crianças.
Ao nascer cada indivíduo inicia a sua construção identitária, processo este que se (re)constrói
ao longo da vida (Dubar, 1991). A construção do eu identitário dá-se no cruzamento entre
múltiplos factores internos e externos, em que o próprio exerce o papel principal na estruturação desse sistema. A integração de um actor social num grupo profissional e a noção de
pertença ao mesmo, com a partilha de referenciais identitários como as suas normas e valores,
decorre de um processo activo e negociado com os outros membros. Ou seja, a construção
da identidade social, traduzida neste caso na identidade profissional, desenvolve-se a partir
do cruzamento entre a identidade individual e a identidade colectiva, o que implica “um certo
trabalho na estrutura da identidade pessoal e no estilo de vida do actor” (Lopes, 2001: 188).
A incorporação numa identidade individual de uma identidade social, implica uma acção
concertada do actor social, por adesão e/ou confronto com outras identidades sociais, quer
do próprio grupo (os pares profissionais), quer de outros grupos (as crianças, as famílias, os
professores de outros níveis educativos, etc.), numa dinâmica constante entre o eu e os outros,
em que cada actor social delineia estratégias para, de uma forma autónoma, conseguir a sua
inserção no colectivo profissional.
Em termos teóricos, encontramos diferentes concepções sobre as identidades, podendo estas
ser agrupadas especialmente em duas correntes: a essencialista e a nominalista ou existencialista. Uma concepção essencialista da identidade sugere “a existência de uma identidade
básica, uma verdade mais autêntica e mais profunda que torna o indivíduo naquilo que ele
é, (…) repousa sobre a crença nas ‘essências’, nas realidades essenciais, nas substâncias ao
mesmo tempo imutáveis e originais” (Dubar, 2006:7), independentemente do seu percurso
vivencial. Por sua vez, e continuando com Dubar, a concepção nominalista ou existencialista,
assume as mudanças que surgem ao longo da vida, pelo que a identidade de cada um depende
da época em que ocorre e do ponto de vista que se adopte. Assim, o processo identitário é
contingente, articula-se com o tempo e com as circunstâncias, resulta de uma dupla operação: a diferenciação e a generalização. Ou seja, pela primeira – a diferenciação - procura-se
encontrar “a singularidade de alguém ou de alguma coisa em relação a uma outra coisa ou a
outro alguém; a identidade é a diferença”. Na segunda – a generalização - procura-se “definir
o ponto comum a uma classe de elementos todos diferentes dum outro mesmo: a identidade
é a diferença comum” (ibidem: 9).
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O nosso posicionamento vai na linha desta perspectiva existencialista, que se recusa a considerar que existam elementos essenciais imutáveis; valorizamos o indivíduo em si mesmo e o
poder que este possui em reconstruir significados e acções ao longo da sua trajectória identitária, inserindo-se e criando laços de pertença a um grupo profissional. Entendemos a(s)
identidade(s) profissionais das educadoras de infância como “Fruto de um processo de socialização complexo e diversificado, os diferentes tipos de identidade que podemos encontrar
dentro de um mesmo grupo profissional têm em comum a partilha da consciência de serem
um grupo, com uma história comum, cujos desempenhos obedecem às mesmas normas de
funcionamento” (Cardona, 2006: 92).
Retomando a definição de Dubar sobre as identidades vamos procurar desconstrui-la, analisando cada uma das suas componentes.
A identidades como processo estável e provisório
Para a identificação sobre o que se considera estável nas identidades profissionais das educadoras de infância, pesquisamos a definição utilizada por associações profissionais, por investigadores, bem como em bases legais actuais. Não existindo uma definição universal, é possível
uma aproximação a partir das finalidades previstas, das condições de exercício profissional e
das funções esperadas das profissionais.
Segundo a associação Child Development Associate Consortium (Saracho e Spodek, 1992),
para o exercício da educação de infância exige-se: a) o estabelecimento e a manutenção de um
contexto saudável para as crianças; b) a existência de competências físicas e intelectuais; c) o
equilíbrio e o desenvolvimento emocional e social; d) o estabelecimento de relações positivas
com as famílias; e) a capacidade de seleccionar programas que respondam responsavelmente
às necessidades dos participantes, das crianças ou dos agentes educativos; f) a manutenção
de contactos com profissionais.
Por sua vez, Lilian Katz (s/d), investigadora americana, especialista nas questões da educação
de infância, refere: 1. a essencialidade do trabalho realizado com crianças até aos 5/6 anos para
que a sociedade se desenvolva da melhor maneira; 2. o valor altruísta da profissão, defendendo a
importância do voluntarismo entendido como o sentido de missão e que ultrapasse o mero sentido técnico; 3. a autonomia profissional baseada em conhecimentos especializados, em princípios e técnicas; e, por fim, refere 4. a relevância das associações profissionais para a construção
de códigos éticos. A questão da missão, apontada por Katz, articula-se com o sentido altruísta
da acção docente, enquanto compromisso com o desenvolvimento da sociedade.
Em 2001, o Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores (INAFOP), trabalhou na definição do perfil de desempenho profissional de educadoras de infância e dos
professores do 1º ciclo, baseando-o nas funções e nas áreas de actuação dos profissionais.
O documento produzido começa por definir educador e professor a partir das suas áreas de
acção concreta. Segundo o Perfil de Desempenho Profissional dos Educadores de Infância, o
educador de infância é quem concebe e desenvolve o currículo, planificando, organizando e
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avaliando o ambiente educativo, as áreas e os projectos curriculares, com vista à construção
de actividades integradas.
Numa leitura transversal a estas três aportagens sobre a educação de infância e às suas profissionais, podemos já encontrar alguns elementos comuns:
—— o trabalho das educadoras desenvolve-se principalmente e prioritariamente com as
crianças pequenas;
—— o trabalho com as crianças implica envolvimento dos pais e de outros parceiros educativos;
—— a capacidade de relação é comummente apontada como o recurso principal para se
trabalhar adequadamente com as crianças;
—— o profissionalismo dos especialistas do humano requer competências múltiplas que
integram os quatros pilares da educação: Aprender a Conhecer, Aprender a Fazer,
Aprender a viver Juntos e Aprender a Ser;
—— um trabalho de qualidade obriga a uma forte implicação pessoal;
—— a responsabilidade profissional tem uma componente ética fundamental.
Daqui se realça a centralidade da acção com a criança, a dimensão humana e ética desta
actividade, a pertinência do conhecimento, da formação e da cultura para o desempenho
profissional adequado. Como temos vindo já a apontar, dada a vulnerabilidade da criança
e a dependência em relação ao adulto a nível emocional, social e físico, a acção junto das
mesmas, configura, na profissão de educadora de infância, uma forte conexão entre o cuidar
e o educar, entre a função pedagógica e a de cuidados e custódia, o que alarga o papel destas
profissionais em relação ao de professores de outros níveis de ensino.
O sentido estrito de ‘cuidados e custódia’ ou de ‘guarda’, no sentido de ter as crianças seguras, com um adulto presente, é amplamente rebatida nos contextos pedagógicos actuais.
Peter Moss, investigador que se tem preocupado com o problema da ética do cuidado, define
esta designação – CARE – num sentido integrador, em que atende, ao mesmo tempo, ao que
atende e a quem atende. Ou seja, numa perspectiva ética, ‘tomar cuidado com’ implica não só
‘ter cuidados com = preocupar-se’, mas também ‘receber cuidados’. Esta actividade baseia-se
numa componente relacional, interactiva, muito forte, necessariamente com implicações em
vários sentidos: quer nas crianças, quer nos adultos. Moss et al (2001) aponta, assim, para
uma ética do cuidado, situada e contextualizada, aberta ao imprevisto, à complexidade, à
multiplicidade de possibilidades e, daí, à busca de alternativas adequadas a cada situação.
Investigadores portugueses (Formosinho, J. e Sarmento, T., 2000; Vasconcelos, T. 2009) e
estrangeiros (Moss et al, 2001) têm reafirmado constantemente a impossibilidade de, em educação de infância, destrinçar uma função social de outra função educativa, apresentando a
relevância do educare como o conceito mais consistente e integrador dessas duas dimensões.
Ser educadora de infância é, nesta base, cuidar e educar. A profissão de educadora de infância
não pode deixar de estar conectada com a satisfação dos aspectos afectivos e emocionais das
crianças porque dessa satisfação depende o desenvolvimento e o equilíbrio da mesma.
Quando falamos em crianças pequenas referimo-nos, em termos pedagógicos, a crianças
até aos 6 anos de idade. No entanto, quando hoje se fala em educação de infância, em Portugal, temos que precisar esta divisão etária na sua articulação com os contextos que são
pensados para o seu acompanhamento e/ou para a acção das educadoras de infância. Um
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recente estudo apresentado pelo Conselho Nacional da Educação (2009), aponta para o alargamento das idades inseridas na “educação e cuidados para a infância, de modo a englobar as
crianças dos 0 aos 12 anos” (Vasconcelos, 2009: 86), justificada na importância de o acompanhamento educativo dever obedecer a “modelos curriculares baseados na globalização e na
iniciação (portanto, ainda distantes da compartimentação disciplinar do saber), comungando
de uma organização pedagógica baseada na monodocência ou na monodocência ‘coadjuvada’” (ibidem: 87). Este estudo avança com a defesa de “espaços das crianças” (ibidem: 87),
com um atendimento que pressupõe qualidade educativa e intencionalidade pedagógica e que
poderá ser efectivado por educadoras de infância em ATLs, bibliotecas e ludotecas, campos de
férias, ateliers dedicados a expressões artísticas, entre outras.
Para o Estado português não é linear que a acção com as crianças até aos 3 anos de idade cumpra finalidades educativas na medida em que, sendo o Ministério da Educação responsável por
todo o sistema educativo português, e só assumindo como responsabilidade sua o atendimento
a crianças a partir dos 3 anos, transmite a ideia de que até aí não há finalidades educativas. Esta
é a idade fronteira, definida na Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar (LQEPE), através do Decreto-Lei nº 5, de 10 de Fevereiro de 97, deixando para o Ministério do Trabalho e da Solidariedade
Social a coordenação da acção junto das crianças mais novas.
Esta situação reforça a clivagem entre os grupos de educadoras de infância que trabalhem
com uma ou outra idade. As educadoras de infância que trabalham na valência de jardim-deinfância (3-6 anos) da rede privada (IPSS, cooperativas ou particulares), ainda que sujeitas à
regulamentação contratual vinda através do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social,
encontram-se defendidas por um estatuto de docentes, na medida em que a sua acção profissional está regulamentada pela LQEPE; ou seja, esta é uma lei que coordena, organiza, inspecciona
e avalia toda a acção educativa desenvolvida com crianças entre os 3 e os 6 anos, em toda a rede
nacional de jardins-de-infância (públicos e privados).
Um outro aspecto que permanece como estável é a feminilidade desta profissão4, recorrentemente justificada com as funções atribuídas à educação de infância e a idade das crianças
com que esta se desenvolve. Como analisamos em trabalho anterior, a “ligação aos conceitos de maternidade e de educação de infância das crianças, está sustentada numa concepção tradicional de que a educação das crianças é para ser feita em contextos domésticos,
por mulheres (…), o que dificulta a aceitação de que homens possam optar pela profissão”
(Sarmento, T. 2002: 99), sendo muito poucos os homens que conseguem ultrapassar a
barreira simbólica do género (Raminhos, 2005). Estas concepções ainda hoje muito enraizadas nas representações sociais portuguesas encontram a sua legitimação em instituições
sociais como a igreja e a família. Como nos diz Cardona, durante muitos anos, “a imagem
da boa educadora era muito próxima da imagem da boa mãe: um modelo idealizado difícil
de atingir, assente essencialmente nas características pessoais” (2006: 26).Não podemos
esquecer que o início do acompanhamento das crianças fora do espaço doméstico ocorre
por necessidade de arranjar substitutas das mães na altura da entrada massiva de mulheres
no mundo do trabalho, tendo a igreja assumido um grande espaço de acção nesse serviço.
Estes factores ajudaram a sustentar uma retórica que alimenta a ideia de que existem profissões masculinas e profissões femininas. Amâncio assinala que a “questão não se situa,
portanto, ao nível da actividade desenvolvida, mas sim ao nível do significado social que
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lhe é atribuído e da posição do indivíduo no sistema social associado a esse significado, tal
como mostra a análise sociológica da construção social do género” (1994: 26). Ou seja, o
que está em causa, segundo esta corrente, não é uma realidade imutável e geneticamente
constituída, mas sim a estruturação de um forte dispositivo ideológico que continua a investir na naturalização de que a condição de género justifica, em si mesma, a distribuição
de homens e mulheres por profissões diferentes. Segundo Raminhos (2005), como pano de
fundo fica a ideia que existem profissões para as quais as mulheres possuem habilitações
naturais, dado crer-se que o sexo tem consequências inevitáveis quando à forma de pensamento, sentimentos e comportamentos. No entanto, as perspectivas criticas, no âmbito dos
estudos de género, mostram como existem estratégias vitais criadas e sustentadas com vista
a uma hierarquia ocupacional no mercado de trabalho. Com elas, o género masculino procura apoderar-se das profissões com maior prestígio social a que está normalmente associada uma maior remuneração, deixando para as mulheres outros espaços socialmente pouco
reconhecidos. Para lá das razões sociológicas que nos ajudam a analisar a composição do
grupo profissional, verifica-se a realidade imediata que nos mostra que a socialização profissional se faz efectivamente entre pessoas do mesmo género, concretamente entre mulheres,
nas suas circunstâncias efectivas e nas lutas que as mesmas vão empreendendo por um maior
reconhecimento social.
As condições ou circunstâncias que mostram a provisoriedade na construção identitária das
educadoras de infância são várias. Começa pelo facto de que as suas identidades, como quaisquer outras, constroem-se na articulação entre dois eixos: um eixo vertical, diacrónico, sustentado na história de vida da pessoa e na história de vida da profissão, ou seja, na história de
vida individual e na história de vida do grupo profissional; e um eixo horizontal, sincrónico,
correspondente ao eu-pessoa, eu/grupo-profissional, nas condições da actualidade. Há grandes diferenças entre ser educadora de infância hoje e ter sido educadora de infância há 30
anos atrás, diferenças essas que têm a ver com a contextualização histórica, sócio-económica,
cultural e ideológica.
“As educadoras de infância são agentes educativos com um saber específico sobre pedagogia
da infância e das ciências que ajudam a desenvolver adequadamente o acto educativo, saber
especifico esse garantido pela existência de um corpo de conhecimentos sistemático, adquirido num longo período de tempo” (Sarmento, T. 2002: 99). Ora, este corpo de conhecimentos, vindo sobretudo de áreas como a pedagogia, a psicologia, a sociologia da educação, a
sociologia da infância, a administração e organização escolar, e outras tem sofrido um avanço
enorme ao longo das últimas décadas, com implicações evidentes no desenvolvimento profissional e na acção das educadoras de infância. A sustentabilidade teórica da acção profissional
é um contributo essencial para uma reflexividade interveniente na estruturação identitária.
Um aspecto central para a (re)construção das identidades das educadoras de infância prendese com a visão existente sobre a infância, uma vez que o seu valor tem uma repercussão directa
no valor social das actividades profissionais desenvolvidas para ou com a mesma. Ao longo do
último século, as perspectivas sobre as crianças e a acção a desenvolver para ou com as mesmas, tem-se alterado significativamente, e continua a não ser consensual o entendimento do
seu estatuto de sujeito. O reconhecimento de “uma criança com voz, indutora de novos estares
profissionais e dos adultos, constitui sem dúvida uma nota de optimismo” (D’Espiney, 2009: 9),
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com “direito a um presente próprio” (ibidem), continua a conviver de perto com uma visão
de criança a quem é atribuída uma “categoria vulnerável (definida por) um tempo de espera e
de dependência” (Madeira, 2009: 115). A postura de cada educadora de infância face a uma
destas posições depende de factores internos tais como a idealização da infância, as memórias
de infância, a formação e experiência profissional, a reflexividade critica que possuem, entre
outras, bem como, por outro lado, por razões externas como seja o enquadramento institucional, as finalidades atribuídas pelo sistema educativo e as expectativas educativas ditadas pela
orientações ministeriais, também entre outras. A criança, em contexto institucional de pendor
escolarizante como o é o espaço em que a educação de infância se desenvolve, pode ser vista
como pessoa em si mesma, ou na sua reduzida versão de aluno, o que ajuda a definir o seu
estatuto relacional. Alejandro Cussianovich (in Schibotto, 20095) propõe a seguinte distinção
entre ‘agente’ e ‘actor’: agente: aquele que deve cumprir uma tarefa que lhe foi atribuída. É
fenomenologicamente actuante, mas de algo sobre o que não tem domínio nem capacidade
de se sentir criador, inovador, produtor de sentido e de significação; actor: acentua níveis de
consciência, de responsabilidade, de participação nas decisões; mas, sobretudo, o actor projecta a sua acção num horizonte maior que a simples execução de tarefas ou de actividades
justapostas. Ora, consoante o entendimento que cada educadora de infância tiver das crianças, como pessoas ou só alunas, como agentes ou actores, assim se desenvolverão relações
intergeracionais e profissionais numa lógica de parceria ou de dependência.
As questões organizacionais, no campo da educação de infância, têm sofrido grandes alterações ao longo do tempo. Desde cedo Portugal se preocupou com o cuidar das crianças,
inicialmente numa vertente caritativa e assistencial, associando-lhe, posteriormente, a vertente
educacional. Datam já dos séculos XVlll e XlX as casas da roda, as misericórdias e as casas
de órfãos. Em finais do século XlX e inícios do século XX, começam então a perspectivar-se
as questões educativas propriamente ditas. As preocupações pela ligação entre a instrução e
o desenvolvimento nacional, desenvolvidas no período da 1ª República, a par do início dos
processos de industrialização, começam a dar uma grande relevância à educação das crianças
pequenas, no entendimento da sua preparação como base de investimento futuro no país.
Deste período há que reconhecer os esforços desenvolvidos por João de Deus, poeta e pedagogo português que, com o trabalho promovido na educação de infância e com o incremento
das escolas móveis, chamou a atenção para a mudança do carácter meramente assistencialista
para o carácter pedagógico a realizar com as crianças pequenas.
Com o início do processo de industrialização, seguido, mais tarde, pela guerra colonial e os
surtos emigratórios, dá-se toda uma alteração a nível económico e social de que sobressaem
duas situações que aqui nos interessa realçar: as mulheres entram no campo do trabalho, e
geram-se surtos migratórios para as cidades com implicações na diminuição do funcionamento das redes familiares, pelo que aumenta a necessidade de criar contextos extra-familiares de
apoio para as crianças.
A par destes factos ou fenómenos históricos, realçamos também todo o trabalho desenvolvido
pelo Movimento da Educação Nova, com difusão de novos ideários pedagógicos. A designação das acompanhantes das crianças revela a evolução conceptual que se foi processando ao
longo destes tempos: de jardineiras (designação introduzida por Pestalozzi para se referir às
cuidadoras das ‘flores’ como eram entendidas as crianças), passaram a professoras do ensino
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infantil (designação utilizada nos primeiros programas para as escolas infantis6) e, posteriormente, já com Veiga Simão7, promove-se a designação de educadoras de infância.
A este primeiro período de algum entusiasmo e investimento neste sector, logo se segue outro,
correspondente à fase do Estado Novo, acompanhado do retrocesso e desinvestimento no
campo da educação infantil (designação utilizada nessa altura), encerrando-se as (ainda que
poucas) escolas infantis, e destituindo-se as professoras do ensino infantil. A retórica política
de então defendia que o ‘mau-estar moral’ resultava da entrada das mulheres no mercado de
trabalho e no ‘incumprimento’ que isso trazia a nível das famílias, particularmente na entrega
da educação das crianças a agentes externos às mesmas, logo, o encerramento desses núcleos
infantis e a obrigatoriedade de a educação das crianças se realizar no seio familiar resolvia, na
perspectiva ideológica vigente, a questão da moralização do país.
Em 1973 surge então a Reforma Educativa de Veiga Simão, com a determinação do investimento na formação especializada de educadoras de infância, o que vem a acontecer de imediato, e
com a criação de uma rede pública de jardins-de-infância, o que se verificou só em 1978. Esta
Reforma continua a ser considerada como um valor muito grande no desenvolvimento de todo
o processo educativo em Portugal. Os primeiros jardins-de-infância eram muito isolados em
termos locais e face aos outros sectores educativos, com dimensões muito pequenas, quando
muito com duas salas por local, o que potenciou uma cultura profissional muito auto-centrada. A preservação da designação de educadoras de infância foi muito reforçada em todo este
período, o que era entendido como uma estratégia de afirmação identitária. Assim, a partir da
década de 70, particularmente a partir de 73, evoluem algumas escolas oficiais de formação
de educadoras de infância. Não se pode ignorar a importância que o ensino privado teve no
período anterior; desde 1954 que já existiam escolas privadas de formação de educadoras8, as
quais tiveram uma acção fundamental já que, na ausência de um serviço público de educação
de infância, foi o sector privado que conseguiu dar resposta à necessidade efectiva de acompanhamento das crianças. As escolas oficiais que surgiram na década de 70 foram abertas
por educadoras que se tinham formado nas escolas privadas, o que evidencia um processo
de continuidade e do reconhecimento da importância dessas outras educadoras de infância.
Outros aspectos que vão ocorrendo e influenciando a (re)construção identitária das educadoras de infância são a criação e expansão da rede pública, o desenvolvimento de associações profissionais, a passagem da formação inicial para o ensino superior, a integração das
educadoras de infância que trabalham na rede pública no Estatuto Docente das Educadoras
de Infância e dos Professores do Ensino Básico e Secundário, a Lei Quadro da Educação PréEscolar, a inclusão dos jardins-de-infância em Agrupamentos inicialmente horizontais e agora
verticais. A afirmação de uma profissão, logo, da identidade profissional dos elementos que
a desenvolvem, está muito dependente da representação social que existe sobre a mesma;
para além dos aspectos estruturais, os aspectos simbólicos têm um peso muito significativo
nesta afirmação. Quer nos aspectos referentes à formação como nos que se prendem com a
inserção no grupo profissional mais amplo e na regulamentação do sistema, a estruturação
e a simbolização são evidentes: a formação especializada, aprofundada, atribuída e reconhecida pelo ensino superior, são condições que, em princípio, melhoram a preparação para a
acção profissional e, ao mesmo tempo, integram as componentes identificadas pelos teóricos
da sociologia das profissões para o reconhecimento efectivo da profissão; a integração na
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mesma carreira profissional dos professores dos restantes níveis do ensino básico e secundário
melhora as condições de carreira e viabiliza uma maior noção de pertença ao ser professor; a
regulamentação das instituições e do serviço prestado, sustenta a organização pretendida e
credibiliza publicamente a sua existência.
Não podemos esquecer, entretanto, as educadoras de infância que trabalham em unidades de
educação pré-escolar enquadradas em instituições particulares de solidariedade social, que se
inscrevem nalgumas das condições apontadas anteriormente mas que, no entanto, em termos
de condições de carreira se encontram em situação diversa das anteriores: as desigualdades
evidenciam-se sobretudo a nível de horários de trabalho, de salários, de calendário escolar e
de acesso à formação contínua. Ainda dentro deste grupo, como já referimos atrás, podem
encontrar-se diferenças contratuais, consoante trabalhem na valência creche ou na valência
jardim-de-infância, com evidentes repercussões nas condições para a construção identitária
das educadoras de infância e da sua inserção no grupo profissional em termos gerais.
A inserção, a nível da rede pública, em Agrupamentos de Escolas é um dos factores que, na
actualidade, está a criar uma grande clivagem entre as educadoras de infância que trabalham
na rede pública e o grupo de educadoras de infância que trabalham na rede privada. Em
1991, inicia-se, de forma experimental, o processo de implementação do Regime de Gestão e
Administração das Escolas9, confirmado depois em 199810, com o qual se criam condições
para que se quebre o ciclo de isolamento dos jardins-de-infância, logo, das educadoras de
infância. Numa primeira fase, houve a possibilidade de aqueles se integrarem num dos dois
modelos existentes: ou agrupamento horizontal, em conjunto com outros jardins-de-infância
e escolas do 1º ciclo da área territorial (possibilitando maior contacto com outras educadoras
de infância e com professores do 1º ciclo), ou num agrupamento vertical, em conjunto com
os 1º, 2º e 3º ciclos da escola básica da zona (possibilitando maior contacto com professores
de todo o ensino básico). A partir de 2003, com a regulamentação definida no Despacho n.º
13 313/2003, impõe-se como norma a verticalização de todos os agrupamentos, sem oportunidade de escolha pelos próprios profissionais e sem se atender às dinâmicas entretanto geradas. Ora, a passagem para a verticalização trouxe muitas condições de exercício novas para
as educadoras de infância. A partir de então, apesar de na maioria dos casos cada ciclo (logo,
cada educadora ou professor) se conservar na mesma escola ou jardim-de-infância, passa a,
obrigatoriamente, conviver com colegas de outros ciclos educativos, em termos de encontro
directo nas reuniões gerais de agrupamento, ou, em representação, nos órgãos de gestão do
agrupamento – no Conselho Executivo (CE), no Conselho Pedagógico (CP) e na Assembleia.
O Conselho de Docentes (CD) é um órgão onde há uma relação horizontal entre as educadoras de infância, criado com a finalidade de debaterem os assuntos que se prendem com a sua
área específica de trabalho e a preparação de documentos a seguirem, através da coordenadora, para o Conselho Pedagógico. Dada a multiplicação de documentos que a burocratização
do sistema implica, segundo narrativas das educadoras, raramente este órgão serve como
fórum de debate sobre o quotidiano educativo com as crianças. A ‘projectocracia’ de papel
suplanta, assim, a efectiva implicação em processos em que se projecte, de facto, a educação.
Para além disto, interessa também referir a obrigatoriedade que os 1º, 2º e 3º ciclos sempre tiveram de redigir sumários e preencherem fichas de avaliação em modelos uniformes, práticas não
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seguidas pelas educadoras de infância, porque não é possível formatar num sumário comum
o modo como se gerem o tempo e as actividades em jardim-de-infância. Por sua vez, na educação pré-escolar faz-se uma avaliação formativa, descritiva, logo, muito diversa da avaliação
sumativa seguida nos outros níveis de ensino.
Assim, sabendo que a construção identitária se faz na articulação entre a imagem que cada um
tem de si, e a imagem que os outros têm sobre si, há agora novos cenários em que os confrontos
são mais presentes: a interacção obrigatória com docentes de diferentes níveis ocorre agora,
obrigatoriamente, de forma mais frequente. Bottero (2004), num estudo sobre as identidades
e a hierarquização de classes, refere que existe uma separação entre as condições de classe – entendida aqui como grupo profissional - e as percepções e reacções subjectivas de cada classe;
ou seja, no caso aqui abordado, as educadoras de infância têm as mesmas condições estatutárias dos outros professores (regem-se pelo mesmo estatuto profissional, têm o mesmo grau
de formação base); no entanto, a representação que têm sobre si mesmas e a representação
que os professores dos outros níveis educativos têm sobre elas, pode ser diferente. A Sociologia
das Profissões, na sua abordagem sobre as representações sociais das profissões, mostra que
em todos os grupos profissionais há hierarquias, definidas por vários factores como o seja, no
campo da educação, o valor atribuído às crianças; o valor atribuído às diferentes funções da escola e, concomitantemente, aos níveis em que as mesmas se desenvolvem. A necessidade que as
educadoras de infância requerem de se sentirem ‘como iguais’ aos professores dos outros níveis
educativos, leva muitas delas a adoptarem estratégias de maior proximidade, como, por exemplo, rejeitarem discursivamente as componentes dos cuidados como uma atribuição educativa
a desenvolverem, bem como aceitarem processos de avaliação incongruentes com as vertentes
formativas preconizadas para este nível educativo (Sarmento, T., 2008).
Há que atender ao facto de muitas se sentirem coagidas a enveredarem pela aceitação quase
passiva do sistema, dado que, como diz Licínio Lima (2006), a nova legislação manifestou um
total desprezo pelos actores, processos e dinâmicas anteriores, inviabilizando, entre outros aspectos, que a força de resistência que encontravam nas redes a que pertenciam, não funcionem
porque foram desfeitas. Preconizando-se a construção de sentidos de identidade e de pertença,
a imposição de as educadores se integrarem em grandes estruturas (no sentido da dimensão
organizacional bem como do elevado grupo de professores que pertencem ao mesmo agrupamento), sem se respeitar as redes anteriormente tecidas e as identificações existentes, criaramse condições para a ocorrência de rupturas geradoras de desmobilização e de desinvestimento.
A identidade profissional das educadoras de infância que exercem na rede pública está, assim,
num forte processo de reconfiguração, em que, com base num jogo de reconhecimento, procuram ganhar um novo espaço no grande grupo dos professores. Neste processo, é já evidente
a construção de novas representações acerca do trabalho e do saber das educadoras, mas, ao
mesmo tempo, de risco de perda de muitos dos aspectos essenciais da pedagogia da infância
própria da educação de infância a favor de práticas educativas estritamente pré-escolarizantes.
Outros aspectos centrais na construção identitária das educadoras de infância prendem-se
com a formação, a investigação e a produção/publicação de saberes produzidos na área da
educação de infância.
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O curso de formação inicial é indicado como o primeiro momento de socialização profissional, quer em termos de preparação para a acção profissional, quer em termos simbólicos de
inserção num grupo profissional. Dubar (1997: 47) refere que na dinâmica da construção
das identidades, mais importante do que o trabalho feito é o sentido que lhe é dado, a forma como este é vivido e descrito. Ora, o processo formativo é essencial na construção das
identidades profissionais, facilitando simultaneamente a relação entre o trabalho e a carreira
profissional. Mª João Cardona (2006) refere que o processo de socialização profissional e de
identificação têm que ser vividos de forma crítica e reflexiva, logo, cada educadora de infância
vai-se apropriando dos saberes mais importantes que se acumularam na história da profissão,
mas, ao mesmo tempo, tem um papel activo cortando com lógicas de funcionamento pouco
adequadas e descontextualizadas, no sentido de uma maior consciência e nível de exigência no
desempenho profissional.
A história da formação das educadoras de infância11 é mais um dos aspectos em que se têm
verificado contínuas provisoriedades. Senão vejamos: a primeira informação que encontramos sobre a formação de educadoras de infância reporta-se ao início do século XX12, ainda
que se restrinja à realização de práticas pedagógicas nas escolas infantis anexas às escolas
normais, e à abordagem de alguns métodos específicos para o ‘ensino infantil’, depois de
uma formação de base feita em conjunto com as alunas que pretendiam seguir o ensino
primário. A Reforma de Veiga Simão, em 1973, vem explicitar a necessidade de a formação
das educadoras de infância ser específica e diferente em relação à formação dos professores
primários. Será com esta reforma e com o investimento na educação de infância que se inicia a intervenção estatal na formação de educadoras de infância, com a criação de Escolas
Normais de Educadoras e, posteriormente, alargando a formação através de cursos realizados em Escolas do Magistério Primário, inicialmente com o grau de ensino médio. Em1986
surge a Lei de Bases do Sistema Educativo13 em que se explicita a exigência de uma formação
específica e aprofundada para cada nível de ensino, obrigando a que a mesma se realize no
ensino superior. A formação inicial das educadoras de infância irá, então, progressivamente
tornar-se mais prolongada14, passando, a partir do ano lectivo de 1998-99, a ser exigido
o grau de licenciatura15 como habilitação profissionalizante dos docentes de educação de
infância. Actualmente, a formação inicial está numa nova fase de alteração, com o processo
de Bolonha, sendo que o diploma de educadora de infância se adquire ao fim de quatro ou
cinco anos, com o grau de Mestrado, consoante se siga uma linha de especialização unicamente na educação de infância ou se opte pela dupla formação: em educação de infância e
1º ciclo do ensino básico.
Numa muito breve referência aos conteúdos dos cursos de formação inicial, poderemos dizer
que as práticas pedagógicas constituíram o fulcro central da formação até à entrada no ensino
superior, sendo que, neste âmbito, se procurou investir mais na articulação entre a teoria e a
prática para, actualmente, se estar numa fase de prevalência da formação teórica.
A formação contínua e, mais recentemente, a formação especializada, constituem áreas em
que de forma mais activa na medida em que mais articulada com a experiência profissional,
as educadoras têm o poder de reconfigurar as suas práticas e re-analisar os seus saberes. As
oportunidades de as educadoras de infância intervirem directamente na re-construção dos
saberes profissionais, efectiva-se hoje de forma mais clara na realização de Mestrados e de
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Doutoramentos, em que algumas destas profissionais confrontam os saberes prévios com a
experiência e com a investigação. Este é um novo papel usufruído pelas educadoras que as
põe em contacto com novos agentes (os académicos) e as torna co-produtoras dos saberes
da educação.
É hoje evidente a preocupação sistemática em reflectir, produzir novo, aberto e complementar
conhecimento, e em difundi-lo de forma a que possa ser partilhado entre os diferentes agentes
educativos, mais ou menos formais, que tenham um papel a desenvolver com as crianças e,
por elas, entre si. De destacar ainda a criação de duas estruturas que nos parecem de especial
importância – a Associação de Profissionais de Educação de Infância (APEI) e o Grupo de
Estudos e Desenvolvimento da Educação de Infância (GEDEI) - pelo facto de serem pólos de
criação de sentido de pertença das educadoras de infância e de outros agentes especializados
em educação, bem como reveladores da investigação produzida e da manifesta preocupação
na sua difusão.
A identidade entre o individual e o colectivo
Diz Dubar que “Não se faz a identidade das pessoas sem elas e, contudo, não se pode dispensar os outros para forjar a sua própria identidade” (1991, 107). Estas afirmações remetem-nos
para a importância do “Eu”, do indivíduo em si mas também na sua relação com parceiros,
que seja reflexo de uma noção de pertença constitutiva da inserção num grupo profissional.
Como analisamos já nas Histórias de Vida de Educadoras de Infância (2002), as identidades
individuais, sociais e profissionais dos indivíduos, não estão de todo dissociadas, sobretudo
em determinados actores sociais, entre os quais se inscrevem as educadoras de infância. A
identidade pessoal corresponde à percepção subjectiva que um indivíduo tem da sua individualidade. A sua construção poderá ser entendida como uma conquista em que se estabelece
uma congruência entre o presente e o passado, o que possibilita uma personalidade capaz de
lógica, de projectos e de autonomia. Essa conquista constitui um processo progressivo, dependente das relações afectivas, de sustento pedagógico e de respostas atentas, sendo necessário
o auto-reconhecimento bem como o reconhecimento pelos outros para que uma autonomia
diferenciada se estabeleça. Nesta linha, interessa referir a importância que a história do grupo
profissional e as histórias de vida profissionais de algumas educadoras têm para as educadoras da actualidade. Os indivíduos de cada geração reconstroem as identidades sociais a partir
de identidades sociais herdadas das gerações precedentes, a par das identidades virtuais adquiridas no decorrer da socialização inicial e das identidades profissionais possíveis, acessíveis
durante a socialização secundária, implicando sempre a participação individual. Nesta socialização secundária, no caso das educadoras de infância, há que atender às interacções estabelecidas quer com os pares profissionais, como com os pais das crianças e outros elementos
da comunidade, na medida em que, sendo esta uma actividade relacional por excelência, as
identidades profissionais são forjadas nessas relações.
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A identidades como dinâmica subjectiva e objectiva
Ao longo do texto temos (re)afirmado que a educação de infância é uma actividade relacional
por excelência, em que o pensar e o sentir de cada pessoa-profissional é essencial na forma
como a sua acção pedagógica decorre. A importância do vivido, das emoções que cada uma
assume e que os outros reconhecem, são factores essenciais para esta prática profissional que
é uma prática de relação e de interacção entre pessoas. A subjectividade e as inter-subjectividades têm, assim, um valor fundador para as identidades profissionais das educadoras de
infância. Em contacto directo com profissionais verificamos que estas procuram transmitir
uma noção de continuidade nas suas vidas: o eixo diacrónico constituído pelas experiências
passadas, pelos valores (re)construídos nos diferentes contextos habitados (família, escolas,
associações, etc.), pelas opções tomadas, pela formação recebida, são expressas como integradas num contínuo justificável. Ao mesmo tempo manifestam uma aceitação natural do processo de socialização profissional com as suas descontinuidades, desequilíbrios e reequilíbrios. A
configuração da sua identidade actual é apresentada como estando articulada entre um passado vivido e reflectido e a interacção que realizam actualmente com os diferentes contextos
que habitam, entendendo-se como num ponto situado num espaço e num tempo que projecta
futuros em que cada uma se assume como actor social activo. Ao contarem a sua história de
vida, as educadoras de infância produzem discursos racionalizadores, procurando dar às suas
identidades o sentido que subjectivamente mais lhes agrada. Cada uma selecciona quatro ou
cinco situações de vida, identificados como momentos fundadores e tempos decisivos, construindo uma ‘ilusão biográfica’ (Bourdieu, 1986), a partir da qual querem transmitir a ideia de
que possuem uma vida com sentido.
Esta subjectividade confronta-se com a objectividade específica da acção pedagógica com as
crianças, estruturada num saber pedagógico, numa visão de criança e de sociedade e enunciada, num outro ângulo, na regulamentação para a educação de infância, mais concretamente
na Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar e nas Orientações Curriculares para a Educação PréEscolar, de que já falamos.
Para Dubar, as expressões identidade pessoal e identidade profissional marcam bem a passagem duma concepção objectivista da identidade “para outro” a uma elaboração subjectiva e
virtual da identidade “para si”. Na realidade, “ela não é uma pertença herdada de uma cultura
fossilizada assim como não constitui um vínculo a uma categoria estatutária dada, imutável;
ela é um fenómeno de apropriação de recursos e de construção de referências, uma aprendizagem experiencial, a conquista permanente duma identidade narrativa (si – projecto) pela e
na acção colectiva com outros eleitos” (Dubar, 2006:170). Assim, mais importante do que o
processo em si é o sentido que lhe é dado, a forma como este é vivido e descrito.
A Identidade como processo biográfico e estrutural
A profissão de educadoras de infância insere-se nas designadas por Bidou (1984) como “especialistas do humano”, no sentido em que se desenvolve por pessoas junto de pessoas, forjadas,
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portanto, num sistema cultural com valores próprios e sustentada em práticas éticas, que têm
em atenção o Outro (criança, pais, comunidade) enquanto Pessoa. Ora, cada educadora de
infância só conseguirá trabalhar bem com pessoas assumindo o seu “Eu”, a sua identidade
pessoal. É neste sentido que assumimos o pensar, o sentir, o agir de cada um enquanto operante na identidade profissional de cada educadora de infância. Como nos diz Dubar (1995),
“as identidades reais inerentes à transacção biográfica só podem ser analisadas através das
trajectórias dos indivíduos, tal como contadas por si”, pelo que se torna especialmente relevante a história de vida de cada educadora de infância como estruturante do seu ser e fazer.
A identidade surge assim como a articulação entre a noção de pertença que cada um possui
(quem sou, quais as minhas referências, de onde sou, como me vejo e vivo), com a imagem
que os outros possuem sobre o sujeito. No primeiro eixo situa-se o processo biográfico, enquanto que no segundo se encontra o processo relacional, comunicacional; ou seja, num
processo de construção identitário, cada actor social desenvolve um papel central, no entanto,
não o desenvolve numa situação de isolamento. O pensar, o sentir, a voz de cada educadora
de infância, são elementos construtivistas na sua identidade profissional, na forma como se
relaciona com os outros – crianças, pais, comunidades, contextos - e promove a sua acção
educativa (Kelchtermans, 1995; Butt e Raymond, 1987; Grant, 1995). Nas suas histórias de
vida, cada educadora constrói os seus conhecimentos, os seus valores, as suas energias, para,
num diálogo com os contextos que habita, ir dando forma à sua identidade. Ao contar ou
ao reflectir na sua história de vida, cada educadora identifica as continuidades e rupturas, as
coincidências no tempo e no espaço, os focos das suas preocupações e interesses, enfim, os
seus referentes nos diversos espaços do quotidiano, sendo este processo reconstrutivo da sua
identidade, pelo que “Se as identidades são entendidas como construções realizadas por cada
agente social na interacção com a multiplicidade de contextos de que participam, antecipa-se
que a passagem por um número alargado de experiências sócio-profissionais poderá enriquecer ou clarificar a identidade de cada um” (Sarmento, T. 2002: 273). Não é, pois, possível
construir uma identidade biográfica e uma identidade estrutural sem atender aos outros com
os quais nos articulamos.
Numa tentativa de síntese sobre as identidades profissionais das educadoras de infância importa
referir a defesa de Nóvoa (1987) de que as construções identitárias se fazem no triplo processo
de adesão, de acção e de auto-consciência. Em primeiro lugar, é preciso querer ser educadora de
infância; depois, tem que se sustentar a acção pedagógica em saberes específicos e, por último,
tem que se activar um contínuo processo de reflexão sobre a acção profissional.
Quando falamos em identidades profissionais referimo-nos a grupos profissionais que naturalmente se justificam pela partilha de algo conjunto, do que é comum a um colectivo profissional. No caso específico das educadoras de infância, a investigação mostra-nos que:
—— a construção das identidades profissionais das educadoras de infância começa na
infância e (re)constrói-se ao longo da vida;
—— as educadoras de infância são actores sociais activos na construção das suas identidades profissionais;
—— as educadoras de infância assumem que o ‘gostar de crianças’ faz parte do processo
de construção identitária;
—— as identidades profissionais das educadoras de infância jogam-se nas interacções
que fazem entre os seus diferentes papéis sociais;
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—— as educadoras de infância definem estratégias para tornar o processo de construção
das suas identidades profissionais um processo partilhado;
—— as educadoras de infância produzem um discurso em que defendem que há uma
especificidade na acção pedagógica com as crianças;
—— as educadoras de infância consideram que a formação – inicial, contínua e especializada – se constitui como momento decisivo para a (re)construção das suas identidades profissionais;
—— as educadoras de infância afirmam a sua identidade pela realização de acções morais
procurando transmitir que razões éticas norteiam as decisões pedagógicas.
Esta questão de ser profissional, de pertencer a um grupo profissional, naturalmente tem que
decorrer de um acto voluntário, implica a criação de um sentido de pertença, sentir-se par
de outro, participar da partilha e da adesão a valores, ideias e finalidades de um colectivo. A
identidade profissional é uma identidade social a que se associa um processo de identificação
de um sujeito a um grupo social, neste caso, a classe profissional que nesta altura, como já
dissemos, se confronta em muitos mais contextos com profissionais de outros ciclos de ensino. A promoção de acções éticas, baseadas numa reflexão critica, é uma das bases principais
desta ‘profissão do humano’, daí que as identidades profissionais em educação de infância se
definam na base da adesão a um conjunto de princípios, valores e investimentos positivos nas
potencialidades das crianças. As educadoras de infância assumem a sua autonomia profissional baseada em saberes específicos, em responsabilidades partilhadas entre profissionais e
com outros parceiros, numa base de negociação, de confiança e, fundamentalmente de comunicação, num processo que se pretende estável, mas que se apresenta sempre como provisório
face a novos processos de socialização.
Como dissemos já em pontos anteriores, as identidades profissionais das educadoras de infância constroem-se nas interacções que se estabelecem quer a nível dos elementos do mesmo
grupo profissional, quer com todos os Outros com quem a acção profissional - que é uma
acção humana/relacional - se desenvolve. Estamos a falar dos saberes, das comunidades, das
famílias, mas em especial estamos a falar das crianças, desses Outros que continuam a ser a
fonte inspiradora e central da acção profissional das educadoras de infância.
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. Programa para as escolas infantis
Proposta de Lei de 2 de Julho de 1923
. Reforma de Camoesas
Decreto-Lei nº 6:137, de 29/09/1919
. Regulação do exercício da actividade docente
Decreto-Lei nº 5/1973, de 25 de Julho
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Lei nº46/1986, de 14 de Outubro
. Lei de Bases do Sistema Educativo
Decreto-Lei n.º 139/A/1990, de 28 de Abril
. Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e
dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário
Decreto-Lei nº172/1992, de 10 de Maio
. Regime de Gestão e Administração das Escolas
Decreto-Lei nº7, de 10/2/97
. Lei Quadro da Educação Pré-Escolar
Decreto-lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio
. Regime de autonomia, administração e gestão dos
estabelecimentos públicos da educação pré-escolar
e dos ensinos básico e secundário
Decreto-Lei n.º 240/2001, de 30 de Agosto
Perfil Geral do Professor e do Educador (INAFOP)
Despacho n.º 13 313/2003
. Ordenamento da rede educativa
Notas
1
Este artigo resulta de um já longo percurso de reflexão sobre as identidades profissionais das educadoras de infância, que se iniciou com a investigação tendente à dissertação de doutoramento da autora, e que se encontra
publicada na obra: Sarmento, T. (2002). Histórias de vida de educadoras de infância. Lisboa: Col. Ciências da
Educação, nº47, IIE.
2 Os estudos desenvolvidos por Philippe Ariés (1973) sobre a infância e prosseguidos, mais tarde, por autores
como, por exemplo, Ana Nunes de Almeida (2009), vêm dar conta de outras perspectivas sobre as crianças e as
suas possibilidades de acção e interacção que, como mostraremos mais à frente, terão uma influência bastante
significativa na própria (re)construção identitária das educadoras de infância.
Locus SOCI@L 2/2009: 64
3 Cf. Sarmento, T. (2002). Histórias de vida de educadoras de infância. Lisboa: Col. Ciências da Educação, nº47,
IIE
4 O facto de este grupo profissional ser composto quase exclusivamente por mulheres, justifica que este texto
utilize o género feminino sempre que se referenciam as profissionais, ou seja, as educadoras de infância.
5 Schibotto, Giangi (2009). Espaço Público e Participação Infantil, in Ciclo de Conferências em Sociologia da
Infância. Braga: IEC
6 Diário do Governo nº73, de 30/03/1911 - programa para as escolas infantis; Proposta de Lei de 2 de Julho de
1923 - Reforma de Camoesas
7 Decreto-Lei nº 5, de 25/7/1973 – Reforma do Ensino
8 As escolas particulares de formação de educadoras de infância, abertas até 1973, foram criadas nas seguintes
datas e locais: na Associação de Jardins-Escola João de Deus, realizou-se o primeiro Curso de Formação de Educadoras de Infância em 1943 - Lisboa; Instituto de Educação Infantil - 1954 – Lisboa; Escola de Educadoras de
Infância - 1954 – Lisboa; Escola de Educadoras de Infância de Nossa Senhora da Anunciação - 1963 – Coimbra;
Escola de Educadoras de Infância Paula Frassinetti - 1963 - Porto
.
9 Decreto-Lei nº172 de 10 de Maio - Regime de Gestão e Administração das Escolas
10 Decreto-Lei n.º 115-A, de 4 de Maio
11 Para análise mais detalhada deste ponto, ver Sarmento, T. (2002). Histórias de Vida de Educadoras de Infância.
Lisboa: IIE
12 Decreto-Lei nº 6:137, de 29/09/1919 – Regulação do exercício da actividade docente
13 Decreto-Lei nº 46, de 14 de Outubro de 1986 - Lei de Bases do Sistema Educativo.
14 Deliberadamente não se utiliza aqui o conceito de mais exigente dado que os critérios para a sua definição
parecem bastante dependentes das condições internas e externas dos formandos, e aos efeitos na sua posterior
profissionalidade, e não necessariamente à duração dos cursos.
15 Até esta data era concedido o grau académico de licenciado às educadoras de infância que após a realização do
bacharelato de educação de infância, concluíssem com sucesso um CESE de domínio directamente relacionado
com a docência (Art. 56º do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos
Básico e Secundário – Decreto-Lei n.º 139/A, de 28 de Abril de 1990). O Decreto-Lei nº 115, de 19 de Setembro de 1997, determina que a formação inicial das educadoras de infância bem como os professores do ensino
primário, passe a ser de licenciatura, deixando para posterior regulamentação as condições em que os titulares
do grau de bacharel ou equivalente possam adquirir o grau de licenciado.
Peer Review Process
Recepção artigo | 09 • Junho • 2009
Paper reception
Admissão artigo | 16 • Junho • 2009
Paper admission
Arbitragem anónima por pares | 3 • Julho • 2009 / 30 • Novembro • 2009
Double blind peer review
Aceitação artigo para publicação | 16 • Dezembro • 2009
Paper accepted for publication
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Locus SOCI@L 2/2009: 67–80
A política de cuidados domiciliários em
instituições de solidariedade social:
risco ou protecção efectiva?
Maria Irene Lopes B. de Carvalho
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
[email protected]
Resumo
Este artigo pretende analisar a política de cuidados (como risco e como desafio) enquanto resposta à questão da
dependência. Pretende ainda reflectir como é que, em Portugal, essa política, especialmente a de cuidados domiciliários prestados em instituições de solidariedade social, promove a participação, a protecção e a saúde das pessoas
mais idosas. Dentro desta ideia geral, considera-se a noção de dependência como um processo multidimensional
a ter em conta na construção da política de cuidados. A partir dos dados recolhidos numa instituição de solidariedade social especializada na prestação de cuidados no domicílio, reflecte-se o modo como esta área política
responde à multidimensionalidade das situações de dependência, a partir da identificação das características dos
utilizadores, dos cuidados informais familiares prestados e dos serviços formais que usufruem.
Abstrat
This article intends to analyze the politics of cares (either as a risk and as a challenge) when it’s an answer to the
matter of dependence. It also wants to reflect on how, in Portugal, this politics (specially the ones of domiciliary
care given in institutions of social solidarity), promote the participation, the protection and the health of the most
elderly people. In this general idea, we consider the notion of dependence as a multidimensional process taken into
account in the construction of the politics of cares. Through the data gathered in an institution of social solidarity
specialized in the installment of cares in the residence, we reflect on how this politic area responds to the multiple
dimensions of the dependence situations. To do this, we identify of the characteristics of the users, of the family
cares and of the formal services available.
Introdução
Palavras Chave
Pessoas idosas;
dependência;
política de cuidados
domiciliários
...
Key Words
Elderly people; dependence; politics
of domiciliary cares
Nas sociedades pós-industriais quando se associa o risco social às pessoas idosas consideramse aspectos previsíveis e imprevisíveis (Titterton, 2005) decorrentes dos efeitos da saída do mercado de trabalho e entrada na reforma, do aumento do número de anos de sobrevivência na
velhice, da maior probabilidade de existência de situações de dependência, da necessidade de
cuidados e de cuidadores disponíveis e das mudanças na dinâmica da família. A dependência
é um processo gerador de riscos sociais com múltiplas consequências não só para o indivíduo,
mas para o grupo familiar, para a comunidade e para o estado e são esses riscos que vamos
aqui analisar, considerando as políticas existentes para promover a autonomia dos indivíduos
e famílias com idosos a cargo. Dentro deste enquadramento analítico apresentamos os resultados preliminares de um estudo que estamos a realizar1 onde pretendemos aferir o nível de
protecção e de risco existente nas políticas de cuidados domiciliários organizados e prestadas
por instituições de solidariedade social. Para a concretização desta pretensão aplicou-se um
questionário ao coordenador do serviço de apoio domiciliário2. Este questionário pretendia
aferir o nível de conhecimento do coordenador face ao utilizador de SAD relativamente: à situação económica e habitacional; o nível de dependência física e cognitiva; as características
da família e do suporte informal recebido; o nível de integração na comunidade e o suporte
formal recebido, e o modo de intervenção do Serviço Social identificando os níveis de risco e de
protecção face ao serviço de apoio domiciliário recebido, tendo em conta as especificidades
das situações de dependência nas pessoas idosas que usufruem dos cuidados.
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I – A dependência nas pessoas idosas
A noção de “dependência” surge correntemente associada às pessoas idosas e muito idosas.
Esta relação decorre da maior probabilidade de, a partir dos 65 anos, ocorrerem perdas físicas,
cognitivas e intelectuais que afectam negativamente o processo de autonomia relativamente às
decisões e escolha do modo de vida que se quer prosseguir. Define-se correntemente a dependência na velhice como “um estado em que se encontram as pessoas que por razões ligadas
à falta e/ou perda de autonomia física, psíquica, intelectual, têm necessidade de assistência e
de suportes para realizar as actividades correntes da vida diária” (Cabrero, 2000; Conselho da
Europa, 1999; Decreto de Lei nº 265, 1999; Johnson, 1996. Este “estado” pode ser temporário
ou permanente e impede durante esse período a autonomia das pessoas, isto é o exercício dos
direitos de cidadania, não tanto nas que se encontram dependentes fisicamente mas em maior
grau nas que se encontram com dependência psíquica e intelectual.
Como refere Gough (1998), a dependência remete para um limite de capacidades que o indivíduo manifesta para desempenhar o seu papel social, implicando uma certa “desvantagem”3.
Contudo a dependência, em si mesma, não determina o sucesso da participação do indivíduo,
mas pode condicionar a capacidade de efectuar uma escolha informada, designadamente, o
que deve ser feito, como e por quem e condiciona a sua autonomia crítica. Esta está associada ao acesso ao conhecimento, o que permite efectuar uma escolha informada/decisão, e
acesso e efectivação de direitos de cidadania4. A autonomia do indivíduo pode estar em risco
quando a dependência está associada a problemas mentais e cognitivos e intelectuais que
condicionam objectivamente a participação do indivíduo (Doyal e Gough, 1998). Nestes casos, a autonomia organizacional5, deve accionar mecanismos de defesa da autonomia desses
indivíduos, através da concretização mecanismos para defesa das liberdades e garantias, dos
mesmos, como por exemplo uma lei da dependência que defenda os direitos das pessoas nessas circunstâncias concretizada através de instituições sociais para esse efeito. A autonomia
implica necessariamente a existência de uma sociedade democrática que proteja os direitos
fundamentais dos cidadãos e que, por sua vez, os cidadãos possam exercitar e efectivar os
seus direitos livremente (Doyal e Gough, 1998). Neste enquadramento, a palavra dependência
remete não só para um limite de capacidades físicas, cognitivas e intelectuais, mas também
para outros factores que interferem nesse processo como a perda de rendimento, o baixo nível
de escolaridade e de participação social, a escassez de contactos familiares e de vizinhança, a
inexistência de recursos sociais e de saúde adequados e as consequências negativas que esses
factores podem ter para o exercício da autonomia critica (participação e escolha).
II – Configurações da dependência nas pessoas idosas e dependentes
Geralmente o “estado” de dependência é medido através de indicadores que determinam vários
graus e tipos de dependência6. Estes combinam o índice das limitações pessoais e sociais para
efectuar as actividades da vida diária7 - AVD, e o índice das actividades instrumentais da vida
diária8 - AIVD. Esta tipologia relaciona as necessidades físicas, cognitivas e intelectuais determinando níveis de dependência e necessidade de cuidados por diferentes categorias: a independente, a levemente dependente, a moderadamente dependente e a gravemente dependente. A falta
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de dados relativamente à situação de dependência física, intelectual e cognitiva em Portugal
não nos permite analisar objectivamente esta questão. Contudo a partir dos dados do censo
de 2001, verifica-se de um modo geral, que as taxas de prevalência de incapacidades de tipo
funcional, embora menos elevadas, assumem valores significativos na população portuguesa a
partir dos 50 anos, com especial incidência nas mulheres (Cabral, 2003). Verifica-se também
que a dependência é maior no grupo de 85 e mais anos, com 19,45%, seguindo-se o grupo
entre os 75 e os 84 anos com 14,2% e, por último, o grupo dos 65 aos 74 anos com 10,8%
(Cabral, 2003). Todavia, uma análise global aos dados demográficos relativos ao aumento da
esperança de vida, aos índices de mortalidade e de morbilidade, correlacionados com alguns
tipos de incapacidade física e funcional9, permitem perceber, em relação à população portuguesa, que a esperança de vida sem incapacidade aumentou quer para os homens quer para
as mulheres (Cabral, 2003). A esperança de vida feminina é superior à dos homens, traduzindo esta, contudo, um maior índice de incapacidade. Isto quer dizer que apesar das mulheres
viverem mais tempo, os homens podem viver mais tempo sem incapacidade física de longa
duração (Cabral, 2003).
Num estudo recente, efectuado pela OCDE (2007), com o objectivo de definir a evolução
dos factores que determinam incapacidade nas pessoas mais idosas e, consequentemente, a
necessidade de cuidados de longo termo em vários países10 conclui que existe uma ligeira diminuição da dependência das pessoas idosas em cinco países estudados, a saber, Dinamarca,
Finlândia, Itália, Holanda e EUA. Em três países estudados, Bélgica, Japão e Suécia, verificouse um aumento ligeiro da dependência nos idosos. Em dois países, Austrália e Canadá, esse
rácio estabilizou e nos restantes, França e Reino Unido não foi possível chegar a uma conclusão, por falta de dados OCDE (2007: 4). O estudo demonstrou também que a dependência
decorrente de situações de doença é mais comum na população com mais de 65 anos de
idade, com clara prevalência para os mais idosos a partir dos 75 e mais anos, mas também
que a dependência está associada ao grau escolar. Quanto maior for o grau escolar, menor é a
dependência e quanto menor for o grau escolar, maior é a dependência. As doenças crónicas11
como artrite, problemas de coração, diabetes, hipertensão e obesidade prevalecem na população idosas, existindo contudo diferenças relativamente aos países estudados. Por isso a ideia
de que a dependência é um estado é criticada por aqueles que intervêm nesta área e defendem
uma noção mais integrada e holista da noção de dependência no caso das pessoas idosas já
que esta pode ser modificada. Neste sentido a dependência é entendida como um processo relacionado com as circunstâncias ocorridas na vida quotidiana, com o espaço e o tempo onde
a mesma ocorre, onde estão envolvidos vários factores que vão desde o biológico ao social e
do psicológico ao cultural e ao político (Quaresma, 2004; Rodríguez, 2005).
Em suma, para além dos aspectos funcionais, cognitivos e intelectuais devem ser consideradas
outras variáveis sociais que podem ser determinantes para perceber as situações de dependência, denominadas múltiplas, onde se integram o nível de escolaridade, o tipo de profissão
exercida, a situação na profissão, o nível de participação social e os valores prosseguidos, o
nível de pobreza e exclusão associadas à diminuição de rendimento, ao sentimento de solidão
e índice de isolamento social, ao estilo de vida pessoal e ao nível de desenvolvimento de determinada sociedade, assim como o acesso aos serviços e saúde e o nível de protecção social
disponível, para essas circunstâncias.
Locus SOCI@L 2/2009: 69
III – A política de cuidados nas situações de dependência
Em Portugal o apoio à dependência para as pessoas idosas ou doentes dependentes e deficientes é efectuado tanto por transferências financeiras, sob a forma de pensões e complementos,
como por recursos sociais e de saúde sob a forma de equipamentos e serviços e também de
isenções fiscais. Na área dos recursos sociais e de saúde a política de cuidados para as pessoas
idosas foi desenvolvida nesta última década com ênfase nos serviços de apoio domiciliário e/
ou serviços de apoio domiciliário integrado (Walker, 2001). Os suportes sociais e de saúde
para as pessoas idosas e dependentes são da responsabilidade do Estado, do mercado, da
sociedade civil e da família. Ao Estado cabe o co-financiamento e a criação de normas legislativas, regras de acesso, fiscalização e à sociedade civil e à família cabe organizar-se no sentido de prestar o referido suporte e simultaneamente contribuir para o seu financiamento. Os
cuidados prestados às pessoas idosos e dependentes são predominantemente desenvolvidos
no âmbito familiar e por organizações de solidariedade não lucrativas, quer sejam laicas ou
religiosas. Estas organizações têm tipologias diversas preponderando as IPSS – Instituições
Particulares de Solidariedade Social, as quais têm uma relação de proximidade com o Estado,
sobretudo a nível da tutela e da dependência financeira12. Estas instituições têm estatutos próprios regulados pelo Decreto de Lei 119/83 e desenvolvem suportes para as pessoas idosas em
equipamentos tipo, lares e serviços de apoio domiciliário, centros de dia e convívio e também
cuidados de saúde, especialmente nas irmandades da misericórdia, variando em número e
taxa de cobertura conforme as regiões.
Além destes suportes sociais existem ainda outras respostas denominadas integradas, desenvolvidas no âmbito da saúde e solidariedade, focalizados na continuidade de cuidados de
saúde e sociais após a alta hospitalar, consubstanciadas no Decreto de Lei 101 de 2006 lei dos
cuidados continuados. Esta lei constitui uma inovação e uma abertura face à política neste domínio13. Esta orienta-se para a responsabilização de todos os actores sociais pelos cuidados,
dirigindo a sua acção para os indivíduos que se encontram com alta hospitalar e necessitam
de continuidade de cuidados de curto prazo, médio prazo, longo prazo e cuidados paliativos.
Pretende tornar mais eficientes e eficazes as respostas para estas novas necessidades construindo serviços dirigidos a “novos doentes”, cada vez mais envelhecidos e com patologias diversas
orientando-se para a incapacidade prolongada e para situações de dependência quando esta
já está instalada. Os cuidados desenvolvidos por esta rede são da responsabilidade, dos centros de saúde e de hospitais em articulação com o sistema de segurança social e coordenados
por equipas especializadas14. Complementarmente a estes suportes, existem ainda as ajudas técnicas, a formação aos cuidadores informais, o Tele-Alarme e vários programas específicos, como
a segurança 65, a prevenção da violência institucional e a certificação da qualidade dos equipamentos e serviços para os idosos. Além destes suportes solidários têm surgido nestes últimos
anos suportes privados principalmente ao nível do apoio domiciliário e das residências assistidas
e/ou medicalizadas, sobretudo para as famílias com grandes possibilidades financeiras.
Em Portugal existe ainda muito a fazer nesta área, que exige não só organização e coordenação,
mas também o aumento e diversificação de respostas sob a forma de complementos de cuidados no sentido da concretização de uma política de cuidados compreensiva para os idosos em situação de dependência. Esta política pode ser definida como processo de apoio a pessoas idosas
e deficientes em situação de dependência para as AVD15 e AIVD16, e ao cuidador familiar. É um
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processo que requer a integração da área social e da saúde, da responsabilidade das entidades estatais e entidades lucrativas ou não lucrativas, formais e/ou informais que coordenam,
organizam e prestam os cuidados, executados por profissionais pagos e/ou não pagos, como
no caso de voluntários, do cuidador familiar e do próprio beneficiário.
IV – A especificidade dos serviços de apoio domiciliário das instituições de
solidariedade social
Quando falamos da política de cuidados no domicílio, reportamo-nos aos cuidados necessários à manutenção da vida das pessoas idosas e em situação de dependência nesse contexto17.
Estes cuidados, sob a forma de serviços, têm como objectivo a manutenção do quotidiano
familiar (Guerreiro, 2001), tendo em vista a protecção, promoção, e autonomia das pessoas
idosas em situação de dependência e do seu cuidador familiar. Em Portugal as instituições
e associações de solidariedade e irmandades da misericórdia são proprietárias da maioria
dos equipamentos sociais existentes em Portugal18. Estas instituições promovem uma acção
organizada por “valências” com vista à satisfação das necessidades dos utilizadores. A maioria da rede de equipamentos e serviços pertence a entidades lucrativas e não lucrativas, estas
últimas têm um peso substantivo relativamente ao primeiro19. Segundo dados estatísticos da
carta social (MTSS, 2006), existe um universo de 5.596 entidades não lucrativas e lucrativas
em Portugal. O sector não lucrativo é responsável por 72,7% dos equipamentos existentes e a
restante percentagem, 27,3% pertence ao sector lucrativo. Do total da percentagem do sector
não lucrativo 65,8 % corresponde a instituições do tipo IPSS20, 3,0% são equipadas a IPSS, 1,9
% são organizações particulares sem fins lucrativos, mas não são IPSS, 1,7 % são entidades
públicas, 0,2% % são empresas sociais e 0,02% corresponde à acção da SCML21. Ainda segundo a mesma fonte, nos últimos oito anos o número destes equipamentos aumentou 80,9%.
Este desenvolvimento relativamente ao surgimento destas organizações tem mais expressão
nas zonas urbanas, nas zonas litorais e nas capitais de Distrito, havendo contudo excepções
(MTSS, 2006)22. A maioria dos equipamentos desenvolve respostas para as pessoas idosas,
para a infância e juventude, na reabilitação integral da pessoa com deficiência, na família e
comunidade, com as pessoas em situação de dependência, na toxicodependência, na doença
mental e com as pessoas infectadas pelo HIV/Sida. Verifica-se também uma desigualdade na
distribuição do número de equipamentos e serviços por essas áreas (MTSS, 2006)23, prevalecendo os serviços para os idosos com 51,1 % dos equipamentos existentes, e da infância e
juventude com 36,4%. A restante percentagem corresponde a 5,4% na área da reabilitação e
deficiência, família e comunidade em 3,7%, pessoa em situação de dependência em 1,9 %,
toxicodependência em 0,6 %, saúde mental, 0,4%, e HIV/sida com 0,3%.
Em 2006 existiam em Portugal cerca 2261 valências ou serviços de apoio domiciliário apoiando
cerca de 67,716 indivíduos com 65 e mais anos, correspondendo a uma taxa de cobertura de
3,9% (Martin e Neves, 2007). Esta é a valência, que comparativamente com a taxa de cobertura
dos lares (55,266 indivíduos) 3,5%, e com o centro de dia (41,204 indivíduos) 2,6% apoia o
maior número de pessoas idosas. O serviço de apoio domiciliário tem a função de “assegurar
a prestação de cuidados individualizados no domicílio a indivíduos e famílias que, por motivos
de doença ou incapacidade, não consigam assegurar por si as suas necessidades básicas” (MTS,
2000: 270). Tem como finalidades “proporcionar condições de bem estar, vivência saudável no
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meio e uma participação activa na vida social, de modo a facilitar uma vida normal e integrada
no meio de vida habitual, diminuindo assim as situações de isolamento, visando retardar a admissão noutras respostas destinadas a idosos, como lares e residências. Esta resposta tem como
objectivo principal prevenir situações de dependência, a promoção de autonomia e a prestação
de cuidados de saúde, quer de ordem física quer psicossocial”(MTS, 2000:270).
Os serviços prestados por este suporte visam satisfazer as necessidades básicas como a alimentação, higiene pessoal e cuidados de saúde, higiene do domicílio à modificação do domicílio
adequando-o ao bem-estar do utente e efectuar o acompanhamento ao exterior sempre que
seja necessário. Na carta social (MTS, 2000:275) podemos identificar o tipo de cuidados
prestados pelos serviços domiciliários assim como a sua frequência. Estes dão especial ênfase
à prestação de cuidados de higiene e conforto e igual expressão à confecção, transporte e/ou
distribuição de refeições, seguindo-se o tratamento de roupas e a arrumação e limpeza no domicílio. De destacar, em sentido contrário, os cuidados relativos à melhoria da habitação e as
pequenas reparações no domicílio, assim como o acompanhamento psicossocial aos utentes
e familiares, a inexistência de serviços de reabilitação, ainda que os cuidados médicos e de enfermagem com 46%, se refiram, a meu ver, maioritariamente a actos médicos e de enfermagem
de transcrição de receitas médicas e à medição da pressão arterial, e não a um acompanhamento sistemático da situação de doença no domicílio, estando esta a cargo dos centros de
saúde – médico de família – ou da medicina privada.
V – O apoio domiciliário e os serviços prestados às pessoas idosas em situação
de dependência
Neste estudo24 o serviço de apoio domiciliário começou a funcionar em 1980 decorrente da
transformação social e política do pós-25 de Abril e da abertura face à construção de “novas
políticas sociais” como direitos. Nesta data apoiava 15 utentes e os cuidados que prestava eram
a higiene, alimentação e limpeza do domicílio. Passados 28 anos apoia 75 utentes. Actualmente,
além dos serviços prestados inicialmente, tais como a higiene pessoal, a distribuição de refeições
e a “pequena higiene doméstica”, inclui a manutenção da roupa na instituição, a articulação
com os cuidados continuados, o cuidar de feridas com supervisão, a administração de medicamentos em casos pontuais, sobretudo nas saídas ao exterior, que também estão incluídas como
serviços. Este serviço de apoio domiciliário funciona com um coordenador, com formação em
Serviço Social, cujas competências são de coordenar a equipa, planear e supervisionar os serviços
prestados mas também intervir junto dos utentes e família, na análise diagnostica, na elaboração
do plano de cuidados e o acompanhamento e avaliação do mesmo. O serviço funciona com ajudantes de acção directa que concretizam os cuidados no domicílio. Os recursos logísticos para
realizar o apoio são duas carrinhas, acrescido do equipamento da cozinha e as funcionárias:
uma cozinheira e auxiliares de cozinha. As principais mudanças identificadas durante os últimos
vinte anos são a diversidade de serviços e qualificação dos profissionais e dos serviços. A qualificação dos profissionais está associada à formação contínua das ajudantes de acção directa e
das assistentes sociais. A qualificação dos serviços prende-se com, a adequação dos serviços às
necessidades dos utilizadores, a construção de instrumentos de registos das tarefas de coordenação e prestação do serviço, a promoção da segurança do utente, a avaliação da satisfação dos
utentes, e o aumento dos recursos humanos e logísticos.
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Características dos utilizadores
Actualmente este serviço apoia 68 indivíduos/processos sociais, a quem foi aplicado o questionário. Destes, 52,9% são do sexo feminino e 47,1% são do sexo masculino. Neste serviço
de apoio domiciliário a diferença entre o número de mulheres e homens não é significativa. A
idade dos indivíduos varia entre os 25 anos e os 97 anos. A média de idade é de 77,39 anos
e a idade mais frequente é de 80 anos. Quanto ao estado civil 55,2% dos indivíduos são casados, 37,3% são viúvos, 6% são solteiros e 1,5% são separados. Dos 68 indivíduos sabe-se a
escolaridade em 47 indivíduos. Destes 66% têm o 1 ciclo do ensino básico, 25,5% não sabe ler
nem escrever e 8,5% têm o terceiro ciclo, predominando a escolaridade básica. A escolaridade
está de acordo com a profissão exercida predominantemente não qualificada. De 68 indivíduos, sabe-se a profissão em 51 indivíduos. Destes 13,2% têm a profissão de doméstica, 8,8%
empregado fabril, 7,4% o trabalhador da construção civil e 4,4% o trabalhador rural. Excepto
um indivíduo que se encontra incapacitado para o trabalho todos os indivíduos são reformados. O que se encontra incapacitado para o trabalho é um “grande deficiente”. A maioria
dos indivíduos tem como sistema de protecção social a segurança social 83,8% e 7,4% têm a
ADSE25, os restantes não têm dados quanto ao sistema de protecção. Quase todos os indivíduos usufruem da pensão de velhice, esta é a mais comum em 77,9% e o seu valor encontra-se
entre os 169,97 euros e 830,24 euros, sendo a média de 324,35 euros. A pensão de invalidez
corresponde a 5,9% dos indivíduos e o seu valor varia entre os 143,43 euros e os 230,16 euros
sendo a média de 204,78 euros e a pensão de sobrevivência corresponde a 4,4% e o seu valor
varia entre 31,43 euros a 140,22 euros. Usufruem do complemento de dependência26 11 indivíduos, correspondendo a 16,2%.
As despesas conhecidas neste grupo de idosos são várias e incidem sobretudo nas despesas
com a saúde nomeadamente medicamentos, fraldas e cremes, mas também a renda de casa e
despesas com a manutenção da habitação, água, luz, telefone e condomínio. As despesas que
predominam são a luz, o gás, a água, o telefone e as despesas com a saúde. O tipo de habitação é a vivenda27 em 59,1% e a maioria, 89,2%, tem condições de habitabilidade contudo se
nos debruçarmos relativamente às barreiras arquitectónicas verificamos que só uma pessoa é
que vive numa habitação sem essas barreiras, e para um indivíduo as barreiras impedem grandemente a mobilidade. Relativamente à situação de dependência, física, cognitiva e intelectual
para as actividades da vida diária e instrumentais da vida diária esta varia desde gravemente
dependente em 30,9% dos indivíduos, moderadamente dependente em 25% dos indivíduos,
levemente dependente em 25% dos indivíduos e independente em 19,1% dos indivíduos. As
doenças mais frequentes são as sequelas de AVC28 em 50,8%, as demências em 18,5%, os
diabetes em 16,9%, as cardiopatias em 16,9% e outras doenças como a convalescenças pósoperatória, a amputação dos membros inferiores, as doenças nervosas, as fracturas e a tetraplégia em 27,7% dos indivíduos. Em suma são as pessoas idosas e muito idosas, que usufruem
do serviço. Estas não têm na sua maioria nenhum grau escolar, são reformados sendo a média
da pensão inferior ao valor do ordenado mínimo nacional. As despesas destes indivíduos são
basicamente as despesas com a habitação e com a saúde. Metade dos indivíduos encontra-se
gravemente e moderadamente depende e cerca de metade tem sequelas de acidente vascular
cerebral.
Locus SOCI@L 2/2009: 73
Situação familiar e apoio informal prestado
De 68 indivíduos 67,6 % vivem acompanhados e os restantes não. Os que vivem acompanhados 25% vive com a esposa, e 11 % com o esposo, 7,4% vive com a filha, 4,4% vive com a esposa e com pessoa contratada, 2,9% vive com a filha e o genro, 2,9% vive só com o filho, 2,9%
vive com a esposa e com o filho. Alguns indivíduos vivem perto dos familiares numa distância
que pode ser percorrida a pé em 8%, sobretudo perto da filha, sobrinha, amiga vizinhas. As
relações familiares são sobretudo de amizade e de afecto, estas são mais comuns com a esposa em 25%, com a filha em 13,2%, com esposo em 8,8%, e com o filho em 5,9%. Também a
relação entre os familiares de apoio em cuidados básicos é mais comum com a filha em 10,3%
e com a esposa em 7,4%, com o esposo e com a irmã e a nora em 2,9% cada, e por último o
esposo, os filhos em 1,5% cada. Dezassete indivíduos têm apoio emocional. Destes, 52% têm
apoio em situações de stress, 45,6% apoio moral, 36,8% apoio relativamente à escuta e à conversa. Quanto ao apoio instrumental, os familiares dos idosos prestam cuidados de higiene
em 38,2%, apoio alimentar em 38,2%, apoio para vestir em 35,8%, na gestão do dinheiro e
apoio económico em 35,3%, tomar a mediação em 44,1% e limpar a casa em 39,7%. Quanto
a apoio de informação e integração social, 4,4% tem apoio familiar no aconselhamento sobre
assuntos do quotidiano, 50% tem apoio para idas ao médico, 8,8% tem apoio familiar para ir
às compras, 5,9% tem apoio para celebrar o aniversário, 30,9% tem apoio familiar para supervisionar os cuidados.
Os cuidados, emocionais, instrumentais e informativos e de integração social são prestados
pela esposa, pela filha e pela esposo por essa ordem. Verifica-se igualmente que a seguir ao
esposo, em todos os itens, anteriormente identificados, segue-se um conjunto de pessoas que
presta apoio em “grupo” como por exemplo o filho, a filha, os vizinhos, ou amiga, a esposa e
os filhos, ou o esposo e os filhos. Relativamente aos recursos sociais a que têm acesso, a maioria 98,5% frequenta o centro de saúde regularmente sobretudo nas consultas do médico de
família. Destes 25% têm também outros serviços do centro de saúde. Nenhum indivíduo tem
apoio da Câmara Municipal, nem da junta de freguesia nem usufrui do programa segurança
65, nem serviços do supermercado para levar compras, nem apoio do banco alimentar nem
serviços de voluntariado nem fisioterapia. Só um indivíduo tem apoio de outra IPSS e os outros dois têm às vezes. Apenas um indivíduo usufrui de transporte adaptado e três frequentam
regularmente o cabeleireiro. As pessoas com quem se relacionam com mais frequência são os
vizinhos em 87% e todos se relacionam com as ajudantes de acção directa do serviço de apoio
domiciliário.
Em suma neste grupo de pessoas idosas existem relações familiares privilegiadas que percorrem uma linha de género onde predomina o feminino em detrimento do masculino. Prevalecem os cuidados femininos sejam instrumentais, emocionais e informativos prestados pelas
esposas e filhas. Contudo verifica-se nalguns itens um conjunto de pessoas que presta apoio
enquanto grupo. Este pode ser constituído pelo esposo, pela filha pelo filho, pelos vizinhos.
Relativamente à integração social estes indivíduos frequentam preferencialmente o centro de
saúde e relacionam-se preferencialmente com os vizinhos.
Locus SOCI@L 2/2009: 74
Os cuidados recebidos do serviço de apoio domiciliário
Relativamente aos cuidados prestados pelo serviço de apoio domiciliário verifica-se que na
sua maioria são os familiares 62,7%, que se dirigem ao SAD29 para solicitar cuidados para
as pessoas idosas a cargo, seguem-se os próprios indivíduos em 23,9% e o Serviço Social do
hospital e dos centros de saúde em 10,5%, por último os vizinhos e amigos com 3%. Cerca de
metade dos utilizadores 52% foi admitido no serviço por fragilidade social, associado a este
aspecto está a necessidade de apoio para as actividades da vida diária em 27,9% e necessidade
de apoio nas actividades instrumentais da vida diária em 22,1%; segue-se a indisponibilidade
familiar para prestar apoio ao utente em 42,6%, só em 5,9 % foram admitidos por situações
de abandono e isolamento social. Nenhum foi admitido por violência física e psíquica do cuidador familiar. A maior parte dos indivíduos são utilizadores destes serviços entre 3 a 5 anos
em 39,7% e entre 1 a 2 anos em 35,3%. Os restantes 23,9% usufruem dos serviços à menos de
um ano. Os serviços prestados são, predominantemente, a alimentação e a higiene pessoal. A
alimentação no domicílio é extensiva a 61,8% dos indivíduos, destes, 54,4% tem esse serviço
cinco vezes por semana e 7,4% tem esse apoio também aos fins-de-semana. São escassos os
que têm o serviço de acompanhamento na refeição. Dos 3 indivíduos em que isso acontece,
um têm apoio diariamente, um tem apoio duas vezes por semana e um tem apoio três vezes
por semana.
O apoio na higiene pessoal e tratamento de ferimentos é prestado a 44,1% dos indivíduos,
sendo este efectuado diariamente em 14,7% dos indivíduos, efectuado uma vez por semana
a 2,9% dos indivíduos, duas vezes por semana em 8,8% dos indivíduos, três vezes por semana
a 16,2% de quatro vezes por semana a 1,5%. Só um indivíduo é que tem apoio para mudar a
roupa de cama duas vezes por semana. Nenhum indivíduo tem apoio na adequação do domicílio à dependência, ajudas técnicas, adaptações no domicílio ou apoio na mobilidade em
casa. Nenhum indivíduo tem limpeza da casa e conforto da mesma, nem usufrui do serviço de
lavandaria, nem de apoio passar a ferro no domicílio. Assim como não usufruem de serviço de
cabeleireiro, nem manicura nem pedicura, assim apoio em compra e entregas no domicilio,
acompanhamento em saídas ao exterior, e ou apoio a escolher a ementa, apoio na gestão do
dinheiro, aconselhamento legal, apoio de serviços religiosos. Também não usufruem de apoio
psicossocial, nem participam em grupo de auto ajuda ao próprio e ao cuidador, não tem
terapia da fala nem ocupacional nem terapia com animais. Assim como não tem transporte
adaptado, nem apoio médico nem apoio na administração de medicamentos, nem cuidados
de enfermagem ou reabilitação física. Não participa em actividades de animação no exterior
nem o cuidador tem apoio em tempo de descanso ou formação para cuidar. Na verdade os
serviços de refeição e higiene são predominantemente prestados por profissionais denominados ajudantes de acção directa.
Relativamente à intervenção do Serviço Social no serviço de apoio domiciliário consideramos
o acolhimento, o acompanhamento e a avaliação do processo. Deste modo foi efectuado o
acolhimento a todos os indivíduos. O acolhimento foi efectuado em 89,7% através da visita
domiciliária e da elaboração do plano de cuidados. Para 8,8% foi efectuado exclusivamente a
visita domiciliária e para um indivíduo, além da visita domiciliária foi efectuado o acolhimento
na instituição e com frequência do centro de dia. O acompanhamento e supervisão dos cuidados é efectuado a todos os indivíduos e os procedimentos para este acompanhamento é
Locus SOCI@L 2/2009: 75
preferencialmente a reunião semanal com as ajudantes de acção directa em 92,6% dos casos.
Em 4,4% a reunião com as ajudantes de acção directa completou-se com visitas domiciliárias
de acompanhamento e em 1,5% dos casos foi a reunião com as ajudantes de acção directa e a
revisão do plano de cuidados e igualmente em 1,5 % dos casos foi a reunião com o familiar e
reunião com as ajudantes de acção directa. Apesar do acompanhamento do processo implicar
avaliação, esta é efectuada só em alguns casos correspondendo a 20%. Os procedimentos de
avaliação para esses casos foram a integração dos utentes noutros serviços do centro, o reajustamento do plano de cuidados e diligências para acesso a outros recursos da comunidade da
área de residência. Em suma verifica-se que a família é o principal actor na procura do serviço
para fazer face às situações de dependência. A maioria das pessoas usufrui de alimentação
e higiene pessoal há mais de uma ano. Os serviços prestados são essencialmente cuidados
básicos, e não são promovidos os serviços complementares e ou alternativos. A intervenção
do Serviço Social privilegia o acolhimento, o diagnóstico da situação problema do utilizador e
familiar, a elaboração de um plano de cuidados e o acompanhamento dos cuidados prestados
pelas ajudantes familiares. Este acompanhamento é efectuado preferencialmente através das
reuniões com as ajudantes de acção directa, não existindo um acompanhamento e avaliação
in locus de cada pessoa e familiar apoiado.
Para concluir
A política de cuidados domiciliários para as pessoas idosas tem tomado forma nestes últimos
cinco anos, decorrente da pressão demográfica, da mudança dos papéis familiares e também
da complexidade de situações de dependência e da pressão das orientações de política da
união europeia na política social em Portugal. Contudo apesar do investimento do estado e de
outras entidades da sociedade civil nesta área, com a lei dos cuidados continuados, a maioria
dos cuidados prestados aos idosos é efectuada por organizações sem fins lucrativos de carácter religioso e ou filantrópico, com claro predomínio para a prestação de cuidados sociais.
Estas organizações estão incluídas no sistema de segurança social como entidades promotoras
dos princípios da universalidade, igualdade, solidariedade, equidade, diferenciação positiva,
subsidiariedade, inserção, coesão, complementaridade, unidade, descentralização, participação, eficácia entre outros com o Decreto de lei nº 4 de 2007 actual lei de bases da segurança
social, mas também orientam-se tanto por valores associados aos direitos sociais como valores de filantropia e de solidariedade religiosa, prevalecendo estes últimos sobre os primeiros,
na maioria dos casos (Decreto de Lei nº 119 de 1983).
Estas instituições prestam serviços preferencialmente em situações de carência múltiplas e este
caso não é excepção. Se tivermos em conta o tipo de necessidades das populações visadas,
verificamos que as pessoas que recorrem aos serviços para solicitar apoio são na sua maioria
os familiares, por incapacidade de cuidar ou por indisponibilidade para o fazer. As pessoas
idosas que usufruem dos serviços manifestam índices de pobreza relativa sobretudo no que diz
respeito à baixa escolaridade ou à sua inexistência e a rendimentos, de pensão e ou reforma,
inferiores ao valor do ordenado mínimo nacional. Destas cerca de um quarto de pessoas que
vive só metade manifesta situações de dependência total e acentuada. Contudo se tivermos
em conta os serviços que recebem, conferimos em primeiro lugar, que apesar de serem os familiares que recorrem aos serviços estes não estão incluídos no plano de cuidados nem como
Locus SOCI@L 2/2009: 76
cuidador nem como sujeito de cuidados. Em segundo lugar para a quase a totalidade das
pessoas idosas a maioria dos serviços que recebe é a refeição em casa seguindo-se os cuidados
com a higiene, predominado essa prestação a uma hora por dia da semana. Apesar de existirem outros projectos e recursos noutras instituições parceiras, nenhuma pessoa idosa usufrui
de serviços complementares como ajudas técnicas ou cuidados continuados de saúde, por
exemplo.
Se a finalidade dos serviços de apoio no domicílio para as pessoas idosas é a prevenção da dependência e a promoção da autonomia, atenuando e agindo em situações concretas de risco
social, verifica-se que estas se centram sobretudo nas actividades de subsistência incidindo nas
actividades de banho, vestir, comer, andar, e não tanto nas actividades instrumentais da vida
diária tais como sair de casa, usar o telefone, limpar a casa, e apoio psicossocial ao utilizador
e cuidador (Cf. Bonfim e Veiga, 1996; Despacho Normativo nº 62, 1999). Deste modo pode
considerar-se que os serviços prestados orientam-se para a sobrevivência das pessoas idosas
associada às necessidades básicas, a alimentação e a higiene e são homogéneos isto é os serviços prestados são idênticos para os que têm família e para os que não têm. Pois parece que
as políticas de cuidados domiciliários não têm atenção, não só, a quem tem familiares mas a
quem não os têm. Significa que quem cuida de um familiar idoso não tem apoio para as suas
necessidades (autonomia) e as pessoas idosas sem familiares também não o tem.
Apesar de tudo pode considerar-se que estas instituições ao prestarem serviços de nível comunitário e de proximidade têm um potencial acrescido na protecção das pessoas idosas, mas
este processo exige no mínimo o complemento de outros serviços, quer sociais quer de saúde,
tais como transporte adaptado, compras, cabeleireiro, suporte voluntário para companhia,
ajudas técnicas e adaptações no domicílio, apoio psicossocial ao utilizador e ao cuidador, assim a integração dos serviços prestados numa rede de outras valências como o centro de dia e
de noite, residências assistidas e de reabilitação e lares com serviços para as pessoas idosas dependentes e serviços de apoio para os familiares cuidadores. O Serviço Social poderia ter neste
processo um papel fundamental na diminuição do risco social substantivo neste grupo, mas
com a escassez de recursos humanos, quer em quantidade quer em qualidade, traduzida na
não diversidade de formações da equipa de prestação de cuidados, não favorece a promoção
de boas práticas neste domínio. Este facto aliado à adopção de um processo de intervenção,
sobretudo centrado na pessoa idosa e baseado no diagnóstico individual e não num processo integrado de análise, planeamento, execução, avaliação continua e reflexiva, dificultam a
promoção da autonomia deste grupo, composto pelas pessoas idosas e pelos familiares com
idosos a cargo.
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Notas
1
2
3
4
Doutoramento em Serviço Social.
Este questionário foi preenchido directamente pelo coordenador a partir da ficha do processo social.
A palavra desvantagem foi substituída pela OMS por “restrição da participação” OMS (2003).
A palavra cidadania decorre da noção de cidadão e está relacionada com o desenvolvimento e o exercício de
direitos cívicos, políticos e sociais, enquanto direitos humanos fundamentais. A cidadania pode ser definida
como a pertença a uma sociedade comum, mas esta pertença implica participação e escolha, constituindo uma
condição essencial para a satisfação das necessidades). Exercer a cidadania constituiu uma pré-condição para
a satisfação das necessidades humanas (Barbalet, 1989).
5 Concretizada pelas instituições judicial, legislativa e política.
6 Estamos a referir-nos às escalas de Katz; Criceton; Bartel; Easy Care, entre outros.
7 As actividades da vida diária incluem indicadores como a capacidade para efectuar a higiene pessoal, de se
vestir, ir à casa de banho, controlar os esfíncteres, alimentar-se, mover-se no interior e exterior do domicílio e
efectuar escolhas.
8 As actividades instrumentais da vida diária incluem indicadores como a capacidade de limpar e lavar a casa,
preparar refeições, gerir os medicamentos, manusear o dinheiro, utilizar o telefone, os transportes públicos e/
ou particulares e resolver assuntos administrativos.
9 Escala de medição da funcionalidade das pessoas idosas aceite internacionalmente que correlaciona os indicadores relativos às actividades da vida diária com os indicadores relativos às actividades instrumentais da vida
diária: 1- indivíduos confinados à cama ou cadeira com incapacidade reveladora de dependência total; 2 - restringidor da actividade, como indivíduos semidependentes ainda com alguma capacidade motora revelador
de semidependência; 3 - sem incapacidade para a locomoção, revelador de independentes com ajuda; 4- sem
nenhum tipo de incapacidade, revelador de independência total.
10 O estudo foi efectuado em 12 países dessa organização: Austrália, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Finlândia,
França, Itália, Japão, Holanda, Suécia, Reino Unido e EUA.
11 As doenças, no caso dos idosos, ganham importâncias distintas consoante os países. As que prevalecem com
mais frequência em quase todos os países estudados são a hipertensão e a artrite (OCDE, 2007: 7).
12 Estas instituições são tuteladas a nível central, pelo Ministério do Trabalho e da Segurança Social e a nível regional são pelos Institutos da Segurança localizados nas capitais de distritos, contudo estes executam as directivas
centrais, não existindo autonomia administrativa a nível regional e também porque estas organizações têm uma
gestão autónoma
13 Para a prossecução deste projecto, agora de lei, foram efectuados protocolos entre os Ministérios do Trabalho
e da Segurança Social, da Saúde e as IPSS no sentido de potenciar e melhorar os recursos existentes.
14 As equipas efectuam a avaliação e encaminham os doentes para o domicílio ou para equipamentos como os
lares onde serão acompanhados no sentido da reabilitação, tratamento, ou se for o caso, cuidados paliativos.
15 Actividades da Vida Diária.
16 Actividades Instrumentais da Vida Diária.
17 O domicílio é a residência habitual da pessoa, a sua morada. Domiciliário refere-se a algo que acontece no
domicílio.
18 Estas organizações podem assumir formas diversas como centros sociais paroquiais, centros comunitários,
santas casas da misericórdia, fundações de solidariedade, mutualidades de solidariedade, cooperativas de solidariedade entre outras.
19 A proporção é de 6 equipamentos da rede solidária por 1 equipamento da rede lucrativa
20 Instituições Particulares de Solidariedade Social – Decreto de Lei 119/1983 que define os seus estatutos.
21 Santa Casa da Misericórdia de Lisboa equiparada a Instituto Publico desde 1979
22 As excepções são Bragança, Castelo Banco, Coimbra, Évora, Guarda, Portalegre e Viseu.
23 No caso da distribuição espacial dos serviços de apoio domiciliário verifica-se que esta é maior na região centro,
seguindo-se a região norte e a região de Lisboa, respectivamente. Os distritos da Guarda, Braga e Lisboa são os
que têm maior número destes serviços. Contudo, o distrito com maior capacidade de atendimento domiciliário
é Lisboa, seguida do Porto. Ainda segundo a mesma fonte, as regiões que apresentam o menor número são o
Algarve e o Alentejo, existindo em 2004 um total de 2144 Serviços de Apoio domiciliário em Portugal Continental com uma capacidade para prestar apoio a 68.092 pessoas idosas.
24 A instituição estudada é uma IPSS, localiza-se na periferia de Lisboa na zona metropolitana. Surgiu no início da
década de oitenta (1980) por iniciativa da população local, ligada à igreja católica (movimento católico).
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25 ADSE – Sistema de Protecção dos funcionários do Estado
26 No segundo grau estão 5 indivíduos e no primeiro grau 6 indivíduos
27 A maioria reside em vivendas porque esta localidade tem vários bairros considerados clandestinos, onde as
próprias pessoas construíram as suas habitações, apesar de actualmente estarem em processo de requalificação
e legalização dos bairros.
28 Acidente Vascular Cerebral
29 Serviço de apoio domiciliário
Peer Review Process
Recepção artigo | 16 • Abril • 2009
Paper reception
Admissão artigo | 7 • Maio • 2009
Paper admission
Arbitragem anónima por pares | 9 • Maio • 2009 / 8 • Julho • 2009
Double blind peer review
Aceitação artigo para publicação | 30 • Setembro • 2009
Paper accepted for publication
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PEQUENOS ACONTECIMENTOS PARA NOVOS
RUMOS: Um estudo de caso sobre os factores
promotores de trajectórias de inclusão na intervenção
com jovens com percursos de risco
Ana Maria da Costa Oliveira
Faculdade de Ciências Humanas – Universidade Católica Portuguesa
Assistente Social no CSPCG
[email protected]
Resumo
Este artigo resulta de um estudo de carácter exploratório sobre os factores promotores de trajectórias de inclusão
junto de jovens com percursos de risco, o qual visa compreender quais os capitais aportados pelas intervenções
sociais ao longo do percurso dos jovens, de forma a constituir uma base de análise sobre a diversidade das práticas
profissionais e institucionais junto destes sujeitos. Este trabalho pretende, assim, constituir-se como um contributo
no âmbito da intervenção em Serviço Social com jovens em risco, ao nível das respostas sociais para esta população.
Abstract
This research consists of an exploratory study that intends to instigate and constitute a reflection on the promotional factors of inclusion trajectories next to youngsters with risk paths and, by this means, to understand which
capitals are brought by social interventions throughout young people pathways. It aims at the constitution of an
analysis base for professional practices. Thus, this work intends to bring a concrete contribution in the scope of
Social Work intervention.
Introdução1
Palavras chave:
Risco, Factores
de Protecção, Intervenção Social com
Jovens, Inclusão
...
Key Words:
Risk, Protection
factors, Social
Intervention with
young people,
Social Inclusion
Actualmente, é exigido ao Serviço Social, de modo muito incisivo, que possa adaptar-se de
forma activa e criadora aos desafios que a realidade social e a intervenção social colocam,
articulando prática, pensamento, vivências e representações. É neste contexto que a postura
investigativa representa cada vez mais no quadro do Serviço Social um desafio e uma responsabilidade. Neste propósito, o presente artigo pretende trazer um contributo concreto ao nível
da intervenção do Serviço Social, junto de jovens com percursos de risco, não apenas ao nível
micro da intervenção mas também a um nível macro, no quadro da formulação e análise das
Políticas Sociais. Um dos pontos de partida da investigação realizada prendeu-se com a necessidade de descobrir quais as condições e os factores promotores de trajectórias de inclusão
em jovens com percursos de risco e, neste sentido, pretendeu-se compreender quais os capitais
aportados pelas intervenções sociais ao longo do percurso dos jovens. O contexto de risco em
que muitos jovens se desenvolvem traduz a necessidade de uma reflexão profunda sobre um
problema que se apresenta como complexo, multidimensional, envolvendo dimensões materiais e simbólicas, psicológicas e sociais.
O número crescente de jovens sinalizados, as dificuldades e as soluções que surgem na intervenção, os contextos de vida nos quais se manifestam, a qualidade de vida e de resposta à adversidade por parte dos sujeitos, bem como a diferença entre o legislado e o vivido, constituem o núcleo
substantivo do itinerário de conhecimento que se quer construir. Da protecção à promoção há
um caminho a percorrer; este que passa não apenas por identificar os factores de risco, como
também todos os factores exógenos e endógenos que possibilitem uma resposta inclusiva.
Locus SOCI@L 2/2009: 81
A identificação destes factores poderá, eventualmente, permitir construir metodologias de intervenção mais centradas nos factores de protecção do que nos factores de risco, e construir/
melhorar as intervenções realizadas neste contexto.
Para a consecução dos objectivos propostos, a orientação metodológica que se tentou privilegiar neste estudo foi uma abordagem qualitativa de natureza exploratória. Pretendeu-se
estudar os contributos das intervenções sociais como factores promotores de inclusão. Partiuse, assim, da reconstituição de um projecto de intervenção, tendo em conta as trajectórias de
vida de jovens e as condições sociais favoráveis ou desfavoráveis a essa inclusão, a partir dos
seus discursos, e da recolha e análise de diferentes documentos. Neste sentido, a estratégia
qualitativa está orientada para descobrir, captar e compreender uma teoria, explicação, um
significado (cf. Olabuénaga, 1999).
Obedeceu-se, desta forma, a uma lógica de combinação de uma postura investigatgiva inspirada nos princípios da grounded theory, tal como colocados já em 1967 por Glaser e Strauss
com as preocupações levantadas pelos modelos da Investigação-Acção que consideram o
actor investigador e vice versa (cf. Guerra, 2000: 53). Efectivamente, o facto de pretender
olhar para os factores promotores de inclusão em jovens em situação de risco a partir de uma
intervenção, transforma a autora deste trabalho em actora e em investigadora, uma vez que o
seu campo de trabalho é também o seu campo de estudo.
1.O «clube de jovens» como estudo de caso na análise dos
processos de intervenção
A análise dos factores promotores de trajectórias de inclusão apontou para a constituição de
um estudo de caso como um micro-cosmos de um sistema de acção em que a intervenção
do Assistente Social acontece. De acordo com os preceitos metodológicos estabelecidos, o
estudo de caso constitui-se como uma descrição e análise holísticas da entidade seleccionada
(cf. Hébert e Beardsley, 2002), permitindo preservar as características mais significativas dos
processos de intervenção observados (cf. Yin, 2002). Neste sentido, o fenómeno em estudo é
compreendido como um sistema complexo que se centra nas interdependências, também elas
complexas, sem as reduzir a meras variáveis lineares e/ou a relações de causa-efeito.
Contemplou-se na análise uma dimensão objectiva, que implicou focar a atenção sobre os contextos de risco, das intervenções institucionais e técnicas, no quadro das políticas sociais dirigidas aos jovens; e uma dimensão subjectiva, que supôs uma aproximação qualitativa aos quadros
de vida dos jovens, às vivências pessoais e modos de apropriação e produção de sentido da
realidade, entendendo que «os sujeitos interpretam as situações, concebem estratégias e mobilizam os
recursos» (cf. Guerra, 2006:17), agindo em função dessa interpretações.
O caso escolhido para a realização do estudo consiste num projecto de intervenção com jovens em situação de risco: «o Clube de Jovens». A selecção do caso fez-se com base num pressuposto de representatividade teórica e foi presidida por critérios de relevância do caso face
ao fenómeno em estudo e pela exequibilidade e acesso ao campo, atribuindo-lhe o estatuto de
observatório social do fenómeno.
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O «Clube de Jovens» é um projecto de intervenção com jovens em situação de risco que funciona desde 2002, com cerca de trinta jovens, mantendo um núcleo fixo de jovens em acompanhamento desde o seu início até à actualidade. É, assim, uma intervenção com aproximadamente
sete anos, que facilita não somente uma leitura das trajectórias dos jovens acompanhados,
como permite também identificar, através de situações concretas, quais os factores de inclusão, privilegiando todas as dimensões de análise.
A população-alvo do projecto está marcada por uma especial vulnerabilidade social observável nas características dos cuidadores, dos jovens, do contexto familiar e do contexto sóciocultural, numa zona sem respostas sociais compatíveis com estas necessidades.
O projecto «Clube de Jovens», no âmbito de uma intervenção que pretende a diminuição ou a
eliminação do risco em jovens, revela-se particularmente pertinente por pretender:
a. a participação dos jovens e suas famílias como agentes do seu próprio processo de
mudança;
b. o envolvimento comunitário mediante o estabelecimento e integração de redes de
solidariedade locais;
c. uma parceria interinstitucional e intersectorial, integrando vários saberes e perspectivas pertinentes para as áreas de actuação do projecto;
d. uma intervenção precoce, promovendo respostas que actuem preventivamente nos
factores de risco social que afectam os jovens, evitando situações de marginalização
e exclusão social;
e. a flexibilidade e a inovação, motivando o desenvolvimento de capacidades criativas
na acção, de modo a demarcar-se das respostas tradicionais;
f. uma avaliação da intervenção, enquanto processo sistemático, participado, aberto e
pluridisciplinar respeitante a processos e resultados.
Estas características conferem ao projecto interesse analítico na perspectiva do conhecimento
dos mecanismos e processos de protecção que estão envolvidos e, reciprocamente, a compreensão dos mecanismos e processos de risco.
A natureza dos factores de protecção é heterogénea, o que torna o «Clube de Jovens» um
objecto de estudo pertinente por estar localizado numa freguesia com grande diversidade em
termos populacionais, com características etárias, étnicas e sociais diferenciadas e por ser promovido por uma instituição bastante enraizada na comunidade, o que facilita o estudo dos
diferentes factores intervenientes.
O projecto dinamiza e é suportado localmente por uma parceria constituída por entidades
diversificadas na comunidade, sendo considerado uma intervenção exemplar, constituindo-se,
deste modo, igualmente, como um posto de observação da cultura de parceria .
De acordo como o quem vendo assinalado o «Clube de Jovens» condensa assim um conjunto
de características que o permitem considerar um caso teoricamente representativo de uma
intervenção com jovens em risco.
Locus SOCI@L 2/2009: 83
Os procedimentos de recolha de dados utilizados seguem uma «estratégia de combinação»,
na medida em que se optou por proceder à triangulação entre técnicas de cariz qualitativo e
de cariz quantitativo. Assim, utilizaram-se os dados estatísticos (caracterizações diagnósticas
através dos processos sociais) na construção da evolução do perfil dos jovens desde o início
ate à actualidade no projecto, mas utilizaram-se também os dados provenientes da pesquisa
documental (relatórios de avaliação, relatórios de estágio, projectos educativos do Clube de
Jovens), para complementar a informação recolhida através das técnicas principais, o focus
group com os diferentes actores e as entrevistas semi-estruturadas aos jovens.
A consulta dos processos sociais permitiu traçar o perfil social dos jovens abrangidos pelo
projecto e, simultaneamente, conhecer as suas trajectórias.2, Privilegiou-se a riqueza da informação permitida pela consulta de processos, mesmo se, em algumas dimensões, não lhe
pôde ser atribuído igual rigor, por não existir um registo sistemático de informações sobre a
intervenção junto dos jovens.
A análise dos documentos do projecto (Fundamentação, Relatórios, Projectos Educativos)
permitiu captar os princípios e grandes orientações do projecto. Uma segunda vertente deste
estudo de caso, concretizada após a análise documental, consistiu na realização de três focus
group, com a finalidade de procurar o sentido e a compreensão do fenómeno social em estudo.
Uma terceira vertente do estudo de caso do «Clube de Jovens» visou conhecer e analisar a
trajectória dos jovens e a sua perspectiva sobre a intervenção realizada. Para este efeito foram
realizadas entrevistas semi-estruturadas, considerando-se como entrevistados os jovens que
estavam presentes no grupo de discussão, de modo a poder recolher dados mais concretos
sobre a sua trajectória individual e, de certo modo, reconstruir o seu percurso através de acontecimentos considerados significativos.
2. O jogo da intervenção promotora face a vulnerabilidades
incapacitantes: factores críticos para a inclusão
A compreensão dos factores promotores de inclusão em jovens numa situação de risco e
de adversidade pode permitir descobrir, conhecer e identificar os factores externos e internos, de ordem estrutural e pessoal que permitam a construção de trajectórias de inclusão.
Ao objecto de estudo definido encontram-se associadas duas dimensões teóricas:
a) Os factores de risco, factores de protecção e resiliência;
b) A desafiliação social/inclusão social.
No primeiro eixo de análise, considerando o conceito de Juventude, procurou-se compreender
a noção de «risco», partindo da definição da Resolução do Conselho Nacional de Saúde ,
como a possibilidade de danos à dimensão física, psíquica, moral, intelectual, social, cultural
ou espiritual do ser humano. Ampliando esta perspectiva, recorreu-se à abordagem de Schonert (2000) que se reporta a um conjunto de dinâmicas presumidas de causas e efeitos que
fazem com que o jovem se possa encontrar em situações negativas.
Locus SOCI@L 2/2009: 84
Neste contexto, ensaiou-se a distinção entre os conceitos de risco e perigo, aprofundando com
especial enfoque nos factores de risco nos seus diferentes modelos de análise, concedendo
maior ênfase à abordagem multifactorial. A literatura mostra a influência de múltiplos factores
no desenvolvimento infantil, sendo importante a investigação tanto dos factores centrados na
criança/jovem quanto daqueles relacionados ao ambiente.
Em seguida, aprofundaram-se os factores de protecção como a outra face da mesma realidade. Actualmente, as investigações destacam que uma situação não é somente determinada
pelos factores de risco presentes, mas pela combinação e interacção destes com os factores de
protecção, o que contribui para a diversidade de respostas por parte dos indivíduos.
Esta abordagem articula-se com a noção de resiliência, que se entronca com a ideia dos factores de protecção definidos por Gramezy (1985) como as características dos indivíduos e acontecimentos capazes de contrariarem ou limitarem os efeitos dos factores de risco. Apesar das
diferentes abordagens, o presente trabalho, encara a resiliência como uma capacidade exibida
por certos indivíduos para superar a adversidade – traduzida em dificuldades ou problemas
de ordem biológica, psicológica e social (cf. Haggerty, Sherrod, Garmezy & Rutter, 1996) –
capazes de mobilizar os recursos internos e externos úteis para lidar com as situações difíceis.
Identificar a natureza dos factores de protecção torna-se essencial no âmbito deste estudo,
dado que estes podem permitir uma resposta positiva, numa situação de risco e por isso
mesmo, interessa compreender como se podem accionar ou desenvolver. No segundo eixo de
análise, reflectiu-se sobre as intervenções que podem contribuir para trajectórias inclusivas em
jovens com percursos de risco.
Desde aqui, introduz-se a temática da inserção, uma vez que esta constitui uma das preocupações centrais da actualidade, apelando a uma intervenção que contraria trajectórias de
vida marcadas pelo risco de exclusão. O conceito de exclusão social é aprofundado e aliado
ao conceito de inclusão e cidadania social, uma vez que nos jovens com percursos de risco se
encontram traços de exclusão social. Sendo a exclusão um fenómeno multidimensional, que
abrange uma multiplicidade de trajectórias de desvinculação, justifica-se, então, a necessidade
de analisar mais de perto como criar instrumentos e estratégias que permitam contrariar este
fenómeno.
Numa linha de continuidade, abordam-se algumas metodologias significativas na intervenção
com jovens, nomeadamente a intervenção em grupo, o trabalho em rede, a intervenção comunitária com jovens e outras metodologias mais específicas que se podem apresentar como
chaves de leitura no quadro dos objectivos propostos.
A abundante literatura existente sobre as temáticas abordadas que representam as várias perspectivas de análise, bem como os diferentes modelos, teorias e disciplinas, reflectem a necessidade de um olhar interdiscipinar para uma realidade em si mesma complexa e multifacetada
como é o processo de intervenção em jovens com percursos de risco. No entanto, este facto
conduz a um risco inerente de uma não exaustividade dos temas que se apresentam, o que
supõe uma fragilização na análise que se realiza e, inclusive, alguma insatisfação investigativa. Não obstante, consciente das limitações, é convicção de que a preocupação transversal à
análise realizada é a construção de um processo interpretativo da realidade social em estudo.
Locus SOCI@L 2/2009: 85
« Virar a Seta»: factores promotores de inclusão no projecto «Clube de Jovens»
Considerando os diferentes discursos e o facto dos jovens se encontrarem no que foi definido
como uma situação de «alto risco» ou de «vulnerabilidade», observou-se a existência de uma
relação entre os factores de risco e de protecção, sendo esta circunstância essencial para fazer
face a uma possibilidade de viragem da situação e a possíveis determinantes de uma intervenção de sucesso. O testemunho dos jovens permite sublinhar:
—— Da importância do grupo como processo de pertença e identidade pessoal;
—— Do papel dos profissionais gerando quer capacidade de relação, mas também cimentando a estabilidade necessária ao evoluir dos processos de identificação positiva;
—— Do impacte nas identidades e na construção de projectos de vida que o grupo e a
intervenção teve nos jovens.
Variáveis Intervenientes na promoção da Inclusão de Jovens com percursos de Risco
– Projecto «Clube de Jovens»
Fonte: Elaboração própria
A figura pretende sintetizar os resultados da análise realizada, apresentando as diferentes componentes, e ensaiando uma compreensão dos factores de sucesso presentes na intervenção do
Clube de Jovens, e ilustrar, igualmente, a construção e desenvolvimento de uma intervenção
promotora de inclusão em jovens com percursos de risco. Apresenta deste modo uma visão
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geral e sumária, enfatizando que o foco da intervenção deve estar centrado na promoção e
desenvolvimento dos seis domínios de resiliência já referidos.
De acordo com as variáveis referidas pelos actores, é possível definir os seguintes eixos:
a) Factores relacionados com o grupo de pares e a sua dinâmica, bem como com a
motivação individual para a mudança;
b) Factores relacionados com o tipo de intervenção social, que se relacionam com
a equipa técnica, mas também com as acções, actividades e com os objectivos que
foram definidos pelo projecto;
c) Factores relacionados com a orientação dada à (re) construção identitária e do
projecto de vida do jovem.
Considera-se importante referir, como já anteriormente foi salientado, que estes factores não
parecem funcionar de uma forma isolada ou separados do contexto específico no qual o jovem se move. Um simples factor não prediz uma inclusão positiva, existindo múltiplas combinações de factores de protecção que actuam em conjunto e que podem contribuir ou não
para um percurso inclusivo.
Estes factores funcionam como factores protectores, ou seja, como oportunidades positivas
de um desenvolvimento «recalibrado», constituindo uma possibilidade de superação de situações adversas de forma construtiva.
A Relevância dos Processo de Afiliação
Os discursos dos três tipos de actores são bastante consensuais, acentuando a dimensão grupal como fundamental. Deste modo, os depoimentos revelam que a dinâmica do grupo é um
dos factores centrais, gerando um sentimento de pertença, uma identificação com os pares,
e um relacionamento afectivo, enquanto papel estruturante no desenvolvimento dos jovens.
O sentido de pertença
A identidade social adquire-se através dos processos intergrupais, desenvolvendo-se no contexto da interacção grupal e estando associada ao desenvolvimento do sentimento de pertença
aos grupos sociais e ao significado emocional e avaliativo dessa pertença. As redes de compromisso cívico, as normas de confiança mútua e a riqueza do tecido associativo são factores fundamentais para dar respostas ao nível da infância e juventude. As estruturas de socialização influenciam o ajustamento social dos jovens na medida em que lhes proporcionam orientações
normativas e, simultaneamente, aprendizagens através da exposição às acções dos outros.
«Há realmente um sentimento enorme de pertença, e acho que eles próprios, há muitos que
são amigos, são os amigos com quem eles combinam, que trazem e que chamam para irem
para o Clube. O que a eles os une é um sentimento de união e de responsabilidade de algo que
é deles, e só deles, e num espaço em que são responsáveis uns pelos os outros, mesmo que não
seja para ir festejar e para sair à noite e para ir tomar café e conversar, eles partilham de um
sentimento que acaba por ser só deles e é uma realidade que só eles conhecem.» (V1, Voluntário, integrado no projecto em 2004)
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No entanto, a identificação com os pares, com o grupo, é apresentada como uma condição
de integração. Nos depoimentos recolhidos, o ter um objectivo, a relação de ajuda que estabelecem, a partilha de experiências passadas, mas também de vivências e responsabilidades,
proporciona união, aprendizagem cooperativa, identificação positiva, estímulo e orientação.
«Eu entrei no Clube e vi pessoas de todas as cores, de todas as etnias. E senti ali um grupo. Tinha medo de ir para um sítio onde ninguém tinha o mesmo passado do que eu e onde ninguém
estava ali pelas mesmas razões que eu.” (E1, Jovem, integrado no projecto em 2004)
Os afectos como cimento da pertença
A análise dos discursos permite evidenciar a afectividade como um aspecto central na intervenção com esta faixa etária, sendo determinante de sucesso ou insucesso. A amizade, a relação,
é mesmo considerada uma via de inclusão, descrita como possibilidade de superar bloqueios
ou como oportunidade de desencadear intervenções a outros níveis. Os discursos dos jovens
revelam que o «sentir-se único e especial», foi essencial para marcar a diferença. Nesta perspectiva,
a identidade é realçada como um processo que integra as experiências dos sujeitos ao longo
da vida, na interacção entre o sujeito e o mundo que os rodeia, a identidade dos jovens evolui
e reconstrói-se.
«Na adolescência, estamos entre os 13 e os 17 anos, acho que é fundamental nós sentirmo-nos
amados, e que alguém goste de ti realmente. E acho que ajuda muito as pessoas chegarem aqui
e sentirem que há uma base e que há alguém que se preocupa realmente com elas e que cada
um é diferente e cada um é especial.» (J3, Jovem, integrado no projecto em 2002)
«Eu acho que uma coisa fundamental foi fazer-nos sentir especiais e únicos. E tu saberes que
está ali alguém que gosta de ti assim, como tu és. (…) E senti, de um momento para o outro,
que pessoas, que eu se calhar conhecia há muito pouco tempo, gostavam de mim de uma maneira única e especial e faziam-me sentir única e especial. Acho que isso ajudou imenso.» (E1,
Jovem, integrado no projecto em 2004)
A construção da responsabilização individual
Uma outra perspectiva que se articula com a à anterior é a participação do jovem no grupo e
com o grupo, que é realçada nos depoimentos como um aspecto positivo da intervenção. Os
jovens sentem-se chamados a escolher, a decidir, a organizar eles próprios as actividades e a
vida do grupo. O conceito de ajuda mútua emerge como um fenómeno natural para os membros do grupo, traz um apoio recíproco e é central.
«Nós também aprendemos que somos todos iguais e que nós também temos de partilhar as
nossas ideias. Então, é como se cada um como se fosse animador. Não eram só os animadores
que falavam. Falávamos todos.» (J5, Jovem integrado no projecto em 2002)
«Eu acho essencial porque nós criamos as coisas, não fazemos parte de uma criação de alguém.
Criamos as coisas e, então, é muito mais fácil.» (J2, Jovem, integrado no projecto em 2002)
Locus SOCI@L 2/2009: 88
A pertença ao grupo permite um sentimento de esperança que surge ao conhecer pessoas que
ultrapassaram situações semelhantes, pois os membros aprendem não só a receber mas a dar
ajuda, o que provoca efeitos ao nível pessoal e comportamental. O grupo fornece ainda um lugar seguro para aprender novos conhecimentos, experimentar novos comportamentos: a aceitação dos outros da expressão das suas ideias reduz a ansiedade, liberta energias para atingir
os objectivos. Poder comparar a percepção dos outros com a sua reduz os riscos de deformação em relação a si mesmo, dos outros e das situações. O grupo apresenta-se, então, como
um meio importante para influenciar o jovem e a própria sociedade, entre outros aspectos.
O Suporte Profissional: entre a interacção, a estabilidade familiar e a competência profissional
No conjunto dos depoimentos sobressai outro aspecto importante, relativo ao perfil e desempenho dos profissionais na intervenção. As ideias expressas nos discursos dos actores identificam a relação com os profissionais e o papel que estes assumem ao longo dos percursos
dos jovens como factores de sucesso, considerando-os como referência central. A visão que
se tem do papel profissional concilia três dimensões particularmente sugestivas: por um lado,
a referência a uma figura paternal, por outro, a estabilidade dessa figura e, por outro ainda a
competência profissional.
A figura identificadora do animador profissional
As características que os jovens identificam como fazendo parte do perfil dos profissionais
reportam para uma capacidade de gerar e manter a relação, de produzir confiança, enquanto
requisitos da vinculação e de um processo de mudança.
«Haver uma equipa técnica que estava sempre em cima de nós. Eles próprios diziam que o
Clube era como se fosse a nossa segunda casa. Eles iam à escola ter com os professores, arranjavam-nos explicações, se nós queríamos ir para aquele curso naquela escola arranjavam-nos
sempre vaga. Isso era importante. Podiam não fazer isso, não ter essa capacidade. A preocupação que tinham connosco e não desistiam. Se nós falhávamos tentavam perceber porque é que
falháramos. Davam-nos sempre outras oportunidades e acreditavam sempre em nós: Tu és
capaz, não te podes ir abaixo. Haver uma equipa técnica que estava sempre em cima de nós.»
(E2, Jovem, integrado no projecto em 2002)
A estabilidade da equipa e dos técnicos
A questão da relação torna-se mais central uma vez que é necessário produzir o jovem/cidadão
como pessoa, o que requer um trabalho de instauração ou restauração identitária, mas também um trabalho ao nível da produção local de laços sociais.
A relação parece constituir-se, deste modo, como um dos elementos de base da construção
da confiança que possibilita a inserção dos jovens. A dimensão relacional do processo de intervenção constitui-se como o cenário onde a acção toma um significado e no seio da qual a
intervenção adquire um carácter formal.
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«É importante mais que não seja, porque nós também sendo modelos, somos a voz da consciência, somos a voz da razão, aquilo que eles não têm lá fora, acabam por ter aqui essa voz, essa
voz mais consciente da realidade que os pode ajudar, ou seja, se um jovem tiver insucesso escolar e eventualmente não quiser continuar na sua progressão escolar e decidir trabalhar, tem
de se mostrar quais são os prós e os contras.» (T2, Técnico, integrado no projecto em 2003)
As competências profissionais
Importa referir que, numa dinâmica grupal, os profissionais assumem um papel de relevo,
nomeadamente pelo lugar de moderadores e dinamizadores que ocupam e que permite uma
interacção com todos os elementos. Assim, os profissionais são convidados a ter uma atitude
de análise atenta às relações e interacções que se estabelecem no grupo e entre os seus membros, bem como ao impacto que estas produzem.
«Toda a equipa técnica que trabalha no Clube, tão diversificada, de experiências de vida, mesmo o facto de ser crentes ou não crentes, de bairros diferentes, de zonas diferentes, uns que
estudaram, outros que pararam de estudar ou os que estão a trabalhar. Todas estas hipóteses
dão-lhes a possibilidade de olharem à volta e poder encontrar várias referências em pessoas
diferentes.» (V1, Voluntário, integrado no projecto em 2004)
O crescimento de novas identidades e novos projectos de vida
Relativamente à construção de perspectivas futuras, esta vertente não surge nos discursos formulada como tal. No entanto e de uma maneira geral, quando questionados sobre os objectivos do projecto e as mudanças produzidas na vida dos jovens, evidenciam-se aspectos
relacionados com esta dimensão.
A aprendizagem do «eu»
Essa construção de projectos de vida é possível, essencialmente porque há uma emergência do
eu, mais reflexiva e mais construtivista. A forma como a expressão é eloquente da descoberta
de si para além dos outros. De acordo com os jovens, a intervenção que os fez experimentar
como únicos e especiais marcou a diferença, alterando a trajectória da sua vida, expressandose numa valorização pessoal e num crescimento individual.
«Mas o Clube de Jovens fez-me pensar em coisas da minha vida que eu se calhar nunca ia pensar. Ajudou-me a crescer e a valorizar, a dizer: Tu és importante. Tu podes marcar a diferença.
Era uma coisa que eu não acreditava. Que eu podia marcar a diferença. Ao longo dos tempos,
eu percebi que podia mesmo marcar a diferença.» (J2, Jovem, integrado no projecto em 2002)
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Novos projectos, novas vidas
O perspectivar de novos projectos, como construção de uma «nova vida» emerge dos discursos como uma nova forma de olhar para si e para os outros, integrando positivamente
dimensões que anteriormente eram experienciadas como destabilizadoras, nomeadamente a
frequência escolar, e o núcleo familiar.
Configuram-se novos projectos, fala-se em «virar a seta» numa construção de um projecto
de vida onde surgem sentidos obrigatórios e proibidos, alterações e retomadas de caminhos.
«Acho que nesta altura não estava na escola. Nem estava aqui a falar contigo, estava a dormir.
Ontem tinha ficado em casa, ali na boa, até às 5 ou 6 da manhã. As minhas opções seriam
diferentes. Em vez de optar pela seta que está virada para aquele caminho não, acho que ia
em sentido contrário, virava a seta para o outro lado.» (E5, Jovem, integrado no projecto em
2002)
A resiliência indispensável para concretizar o projecto de vida
De acordo com os depoimentos analisados, o desenvolvimento de competências sociais e
pessoais aparece como central. Por um lado como um objectivo que se quer atingir através
das actividades e do desenvolvimento do projecto e, por outro lado, como um dos objectivos
alcançados e, nesse sentido, promotor de mudança.
A resiliência indispensável na reorganização das formas de trabalhar, capaz de permitir novas
aprendizagens e novas interpretações, emerge nos discursos, como uma forma de sobrevivência criativa a situações adversas para o desenvolvimento.
A resiliência constrói-se na interacção entre a pessoa e o contexto, não dependendo exclusivamente do envolvimento do indivíduo com o meio. Nesta perspectiva, as competências sociais
e pessoais, num sentido lato, aparecem como um conjunto de acções, atitudes e pensamentos
que o jovem apresenta em relação à comunidade, aos indivíduos com que interage e a ele
próprio. A qualidade desta interacção é resultante da conjugação de dados inatos com os
processos de socialização. Partindo do modelo de aprendizagem (Bandura, 1976), o comportamento social pode ser adquirido como qualquer outro comportamento motor.
A Intervenção como um processo de restauração individual e social
A natureza das acções e as actividades propostas assumem um lugar significativo nos discursos dos actores, como promotoras de um desenvolvimento positivo dos jovens tendo um
efeito activo na diminuição dos factores de risco.
A importância do tipo de actividades de tempos livres para o desenvolvimento psicológico,
cognitivo, físico e social dos jovens é largamente reconhecida. Os programas apropriados de
ocupação de tempos livres constituem medidas eficazes da prevenção do risco.
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As actividades como estruturantes de uma nova forma de estar
As actividades parecem envolver a construção de novas experiências, o enfrentar de acontecimentos até então não vivenciados, o experimentar de novos papéis e o aprender de novos
comportamentos.
«Eu acho que há dois tipos de actividades: as sérias, que supostamente, que nos fazem pensar
na nossa vida e nos ajudam. Mas acho que as práticas, as que são mais informais, também são
importantes porque cria-se ali um espírito de grupo e através das coisas informais nós vamo-nos
conhecendo.» (E2, Jovem, integrado no projecto em 2002)
O acompanhamento social como factor diferenciador da intervenção
O acompanhamento social é um elemento que parece evidenciar-se no discurso de todos os
actores, apresentando-se como um factor diferenciador, na medida em que se transforma
num suporte concreto ao desenvolvimento do projecto de vida dos jovens.
«Eu acho que há aqui quase dois níveis, a parte do grupo, da pertença, de criar aqui um sentimento de bem estar para que possa vir e se possa trabalhar e depois o aspecto ao nível do
trabalho individual, que depois é esse que acaba por marcá-los, esta relação também individual que foi estabelecida com eles. Portanto, estes dois níveis, tem de haver a parte do grupo,
mas tem de haver também a parte individual quando necessária.» (T1, Técnico, integrado no
projecto em 2002)
A visão sistémica construtora de novas estratégias
Pese embora a ideia de que o acompanhamento seja sublinhado com especial destaque nos
depoimentos, não é menos verdade que estes apontam para a existência de um trabalho em
rede e de suporte ao jovem, como elementos da intervenção, e aspectos diferenciadores na
trajectória de inclusão dos jovens.
«Eu acho que uma boa intervenção não passa só pelo jovem em si, mas passa também muitas
vezes por agarrar tudo o que está à volta dele, ou seja, desde a família, desde a escola, como é
que os miúdos estão na escola, que eu sei que fazem já neste momento, toda a envolvência que
eles têm.» (V3, Voluntário, integrado no projecto em 2005)
De acordo com os testemunhos analisados, pode dizer-se que o acompanhamento social surge como um factor de inclusão, considerado numa dimensão individual e colectiva. Constituise como um processo interactivo, de restauração de laços sociais e de pertença social, onde
o jovem se constrói como um sujeito de direitos, mas também como pessoa, reorientando a
sua vida. Segundo Ion (1998) é um trabalho de instauração ou restauração identitária, um trabalho
social no singular.
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Os discursos recolhidos revelam uma imagem do acompanhamento como referência central
de toda a intervenção e destacam a mudança interior, a relação de confiança e empatia como
aspectos fundamentais.
3 - Pequenos Acontecimentos para Novos Rumos: proposta
para uma modelização da intervenção
A reflexão é assumida como uma tentativa de modelização da intervenção junto de jovens em
situação de risco, e tem como princípios de orientação a construção de um percurso metodológico de intervenção a partir da experiência . A construção do modelo é fundamentada
através do levantamento das estruturas-tipo, ou seja, de um processo de construção abstracta
com base na identificação dos pressupostos e formas de acção sem pendor avaliativo definindo a especificidade que o processo pode alcançar. Esta reflexão quer constituir-se como um
elemento adjuvante ao desenvolvimento de uma nova abordagem baseada na identificação da
coerência interna de práticas profissionais reflexivas (Payne, 2002), passíveis de generalização
e de continuação de acrescentos de base generativa. O produto deste artigo não constitui uma
directriz, nem tem carácter vinculativo, apenas pretende potenciar a reflexão sobre as práticas
a implementar, por parte dos agentes de mudança, constituindo-se como um elemento que
apoia a tomada de decisão e a transmissão organizada de informação entre profissionais; o
produto visa constituir-se como um referencial que apoia a aplicação de um modelo de acção
e a identificação de estratégias que potenciem a sua implementação.
A acção pode orientar-se, por uma capitalização de forças, através de um diagnóstico das
necessidades e competências dos jovens, famílias e comunidade que emergem de uma análise
cuidada das forças e do modo de as aproveitar através da construção de soluções com base
nos recursos disponíveis – as pessoas, as famílias, as comunidades tentando mobilizá-las para
a concepção dessas soluções.
Após a análise dos dados recolhidos, torna-se possível identificar dimensões essenciais para
a construção de um processo de intervenção inclusivo. Estas dimensões, representadas na figura seguinte, não estão definidas temporalmente, nem são sequenciais, podendo ocorrer em
simultâneo, devendo ser adequadas a cada indivíduo e ao seu contexto.
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Dimensões do Processo de Intervenção
Fonte: Elaboração própria
Destacam-se como dimensões essenciais num processo de intervenção com jovens:
—— O acompanhamento social: entre o sujeito e o grupo;
—— O grupo como vector da construção do «Eu»;
—— As competências como uma janela de oportunidade de inclusão;
—— Uma intervenção centrada na autonomia e na auto-capacitação do jovem.
A combinação e interacção de diferentes factores de protecção, pode contribuir para uma
diversidade de respostas por parte dos indivíduos. Ilustrando a capacidade do indivíduo de
superar situações adversas de forma positiva e construtiva, verifica-se no projecto analisado
que alguns jovens são vulneráveis, mas revelam-se «invencíveis», conseguindo transformar-se
em jovens integrados e com competências.
Nesta perspectiva, a resiliência surge como uma forma de sobrevivência criativa a situações adversas para o desenvolvimento, através de processos transaccionais entre o sujeito e o seu meio
envolvente, explica as diferenças observadas nos comportamentos individuais em situações de
tensão e dificuldade, a partir do esclarecimento dos mecanismos e processos implicados nas respostas positivas. A resiliência traduz um saldo positivo na confrontação individual com o meio,
produto final das possibilidades do indivíduo para lidar com situações de especial dificuldade.
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Considera-se que a construção de factores de protecção é importante, até porque uma estratégia opcional para a prevenção poderá significar «o robustecimento dos factores de protecção»
(Spence e Matos, 2000) e consequente diminuição das situações de risco e uma activação dos
recursos de apoio.
O acompanhamento social: entre o sujeito e o grupo
Uma das dimensões emergente dos discursos produzidos sobre os factores promotores de
inclusão, reforça a importância de um acompanhamento individual concomitante com uma
intervenção grupal.
O acompanhamento social e individual destaca-se como uma orientação nuclear da intervenção, podendo constituir uma das primeiras etapas do processo de inserção de jovens com
percursos de risco, tendo como elemento-chave a relação, construída na base da confiança,
da compreensão, do conhecimento e do compromisso.
No entanto, este acompanhamento é mais eficaz durante o período da adolescência, quando em simultâneo, o jovem se insere numa intervenção grupal, onde se trabalha ao nível da
reconstrução identitária, e igualmente se intervêm no estabelecimento de laços sociais, tendo
em vista a produção de indivíduos inseridos ao nível individual (identidade e auto-estima), ao
nível dos grupos sociais e ao nível societário.
A área do acompanhamento social e individual, evidencia a necessidade de uma intervenção
onde estejam presentes componentes de natureza interactiva, afectiva, e comunicacional, num
processo individualizado e pouco codificado em procedimentos institucionais, permitindo
uma reconstrução identitária, mas por sua vez aliada a um processo de intervenção colectiva,
possibilitando a reconstrução social, visando a inserção do jovem. O acompanhamento social
constitui-se como um dispositivo interactivo, de construção de um domínio comum de preocupações, de inteligibilidade comum que permitirá ao jovem reorientar a sua trajectória de
vida.
O grupo como vector da construção do «Eu»
A intervenção em grupo evidencia-se como outra das dimensões essenciais para a promoção
de inclusão. A construção de um trabalho em grupo assume-se como uma dimensão colectiva
da intervenção, onde o encontro com os pares surge como uma dinâmica de identificação, encontro e inter-ajuda. O grupo parece oferecer uma imensidão de oportunidades para partilhar,
aprender, apoiar, desafiar, criar uma acção conjunta, modelar papéis, e construir relações.
Mas o elemento mais significativo a ressaltar é que o grupo se destaca como uma oportunidade para o reforço individual, e crescimento na auto-estima e na auto-confiança. Curiosamente, a confiança transmitida pelo grupo de pares parece ser prévia à coragem de afirmação
individual.
Locus SOCI@L 2/2009: 95
A construção do grupo, as actividades propostas, o sistema avaliação implementado, estabelece-se em função desse objectivo, apresentando como componentes importantes a mudança,
a partilha, a inter-ajuda, a reconstrução identitária e a socialização, num processo de construção de aprendizagem e desenvolvimento social.
As competências sociais como uma janela de oportunidade de inclusão
O desenvolvimento de competências sociais e pessoais destaca-se como outra dimensão essencial para uma intervenção inclusiva, apresentando resultados positivos ao nível da vida em
sociedade, mobilizando diferentes factores da personalidade, tais como a motivação, a antecipação, a responsabilidade, a imagem de si próprio, etc.
Neste sentido, os programas de competências sociais aparecem num contexto de trabalho
de grupo como um todo, apresentando resultados mais eficazes através da experimentação e
vivência de situações reais e simuladas.
A promoção de programas de desenvolvimento de competências pessoais e sociais tem um
carácter muitas vezes lúdico, mas deve existir uma intencionalidade clarificada nos objectivos
propostos nas actividades que se realizam, nomeadamente, a promoção de comportamentos
assertivos, o fortalecimento do sentido de pertença a um grupo, ou o desenvolvimento de atitudes livres e saudáveis.
Os programas de competências sociais e pessoais, surgem como uma das práticas do projecto
com maior relevo, traduzindo-se em variadas expressões positivas relativas à inserção na sociedade e mudança de comportamento do jovem.
Na intervenção social, não é suficiente que o jovem domine certos comportamentos relacionais. Este necessita de ter oportunidades relacionais para experimentar os progressos e realizar
ajustamentos, obtendo assim ganhos pessoais e sociais. Neste sentido, a promoção de competências apresenta-se como uma estratégia preventiva do desajustamento social e pessoal.
Intervenção centrada na autonomia e na auto-capacitação do jovem
Uma intervenção centrada no jovem como um sujeito activo é uma orientação que parece
ser transversal a todas as dimensões da intervenção. O jovem parece solicitar ser constituído
como parceiro da acção, realçando vontade de ser escutado e envolvido nas decisões sobre a
sua vida, e promovendo a sua participação como agente da própria mudança.
Esta perspectiva entronca num processo de empowerment, entendido como o processo de capacitação dos indivíduos e grupos para fazerem escolhas. O processo de intervenção onde o
jovem está no centro só é possível se efectivamente são criadas as condições para que assim
suceda. Uma intervenção vocacionada para a promoção da autonomia e para a auto-capacitação assenta num investimento em termos de auto-estima e auto-confiança, promovendo a
reflexão sobre todas as acções e o envolvimento do jovem em todos os momentos da acção.
Locus SOCI@L 2/2009: 96
4.Ideias-força de um referencial para a intervenção
Um projecto de intervenção junto de jovens com percursos de risco, situa-se no quadro de
uma cooperação mais ampla ao nível institucional, o que interpela a um trabalho sistémico,
em rede e com uma dinâmica de parceria; dispor de uma equipa madura e interdisciplinar; e
utilizar uma metodologia específica, que parte dos jovens e que estabelece objectivos a curto,
a médio e longo prazo.
O percurso de inserção, entendido como o processo que se estabelece na interacção entre diferentes actores, situações e contextos, no qual se vão desencadeando novas perspectivas, possibilidades e mudanças, deve ser desenhado como uma «ponte», onde o jovem, com o apoio
de um profissional, define o que procura ser, e onde está hoje, mas também onde quer chegar.
Neste sentido, um percurso compreende, em geral, várias etapas intermédias, e objectivadas,
realizadas com um profissional em relação com o indivíduo.
Depois de ter sido clarificado o objectivo final que o jovem procura atingir, a construção do
percurso de inserção é adaptado e personalizado, em função da categoria das dificuldades
recenseadas, e do objectivo real proposto pelo próprio.
Em consonância com esta perspectiva, realça-se a matriz relacional em todo o processo, por
entender-se que a construção deste percurso não seria possível sem esta condição.
Uma intervenção promotora de inclusão com jovens em risco, partindo da analise realizada,
pode ser vista a partir dos critérios de partida e de chegada dos jovens, e sobretudo, possibilitar a que sejam de facto os jovens a decidir sobre os seus percursos (Osmont, 2002), permitindo o desenvolvimento de «actores activos» e a apropriação de algum «poder». A intervenção
tem como opção uma tomada de consciência e a cooperação como meios para realizar uma
partilha mais igual das riquezas culturais, sociais e materiais, diminuindo assim as desigualdades e as desvantagens sociais. É preciso ainda considerar o processo em si, que pretende uma
identificação com uma aprendizagem pela via democrática, de característica pluralista, não
sexista, multiracial e não militarista, onde a animação surge como um meio de intervenção.
Esta perspectiva não exclui o contexto do jovem, uma vez que a colaboração sistemática entre
o jovem e o profissional interveniente tem um papel de destaque, assumindo-se como um «laço
afectivo» que pode ser fundamental na recriação dos laços com a sociedade.
Os quatro processos anteriores estruturam-se a partir de três componentes do processo de
intervenção que progressivamente emergiram da reflexão e análise neste trabalho e que sublinham a necessidade de uma avaliação e adaptação metodológica permanente na intervenção
junto de jovens com percursos de risco: o processo de afiliação; a identidade construída entre
o «eu» e o «outro»; a competência individual como chave de inserção.
O processo de afiliação, entendido como o recriar de um espaço de afectividade, de pertença,
de responsabilização, permite entender que a exclusão, não será unicamente um estado, mas
um resultado (cf. Castel, 2000) que pode e deve ser invertido.
Locus SOCI@L 2/2009: 97
Clarificar e consagrar o princípio da prevalência das relações afectivas é um elemento determinante, no esclarecimento do entendimento do desenvolvimento saudável de um jovem, onde
as características dos indivíduos e acontecimentos contrariam ou limitam os efeitos dos factores
de risco. Mesmo quando a ciência tem dificuldade em lidar com os afectos, é essencial perceber como estes são pré-condição à existência de um sujeito saudável. A pertença a grupos,
nomeadamente família e pares, parece serem as pedras base de um percurso de inserção.
São as relações que, do ponto de vista material, emocional e social, constituem um estímulo
adequado às necessidades e capacidades dos indivíduos, ao longo da sua trajectória desenvolvimental, que as configuram. A adequação ou ajustamento ideal, que incrementa o potencial
de oportunidade, pode resultar do cruzamento de três vias distintas: a experiência, o conhecimento e a negociação. É neste percurso que o encontro com figuras de identificação, num amplo leque de possibilidades, permite ao jovem o florescimento da sua personalidade própria e
a abertura relacional estável para o mundo social e actuante.
Uma abordagem onde o amor e a força têm de ser superiores à dor da devastação emocional
anterior, implica uma intervenção que corresponde a uma luta para resgatar o lado mais saudável dos jovens. Implica a existência de meios capazes de produzir e manter relações afectivas estáveis e de qualidade. A coesão exterior aumenta a possibilidade dos jovens adquirirem
sentimento de pertença a eles próprios, bem como de o fazerem em ligação a outros, com a
realidade envolvente.
A vivência de experiências positivas é essencial para ajudar os jovens a superar as situações de
perda, para uma reconstrução da sua identidade e para os ajudar a ultrapassar a adversidade.
São apresentadas como condições para a reparação do «eu» dos jovens: a confiança, a segurança e a estabilidade.
A percepção que as identidades são construídas num jogo entre o «eu» e o «outro», reforça esta dimensão relacional da construção identitária, nomeadamente na adolescência onde os modelos externos são estruturantes e nos meios mais difíceis estão pouco presentes. A sua noção de
identidade, baseia-se em elementos através dos quais o jovem se reconhece, sabe o que quer
sabe como agir, muitas vezes com total independência e de maneira diferente de todos os outros, e mais, possui consciência da sua situação no espaço e da sua continuidade temporal, de
um passado que não esquece, de um presente que domina, de um futuro em que se projecta
Este «Eu» constrói-se num processo de conhecimento de si mesmo, através da informação
interna que colhe de si próprio – das suas necessidades, dos seus impulsos, dos seus desejos;
das suas fantasias, dos seus projectos, da criação imaginária que forja de si e do mundo; das
suas finalidades ou alvos e do destino que lhes prevê; tudo o que resulta, portanto, da capacidade de memória, análise e previsão, e de um processo de auto-identificação (no sentido do
reconhecimento da sua originalidade pessoal e da sua continuidade no tempo – o de saber-se
um ser diferente dos seus semelhantes e com um passado, um presente e um futuro).
Mas é um «Eu» que se situa numa relação com «Outros», sendo um processo de construção
da identidade por assimilação da identidade do outro. E um processo normal de crescimento
psíquico, de aculturação (no sentido de aquisição da cultura em que se nasce ou vive), fulcral
na formação da personalidade.
Locus SOCI@L 2/2009: 98
Neste sentido, a intervenção em grupo promove a reconstrução identitária e social. O grupo
é assumido como um meio de crescimento e mudança, em que a identidade individual cresce
com os pares. O estar com outros é associado ao respeito pelo grupo pela semelhança consigo; oferece oportunidade de partilha, aprendizagem, apoio, trocas, relação, construção, etc.
a oportunidade de potenciar a sua auto-estima e auto-confiança.
Os grupos que desenvolvem um sentido de pertença colectivo oferecem oportunidades aos
jovens ao nível individual (por ex. aumento da confiança e da auto-estima) e ao nível social
(por ex. modos de resolução de problemas práticos e de dificuldades). O apoio do grupo e a
solidariedade também podem ser uma fonte de força e um recurso para a mudança.
Conclusão
A sociedade moderna altera a lógica da inserção social. Mais dos que os processos de socialização as competências individuais são a chave de inserção, o que revela a importância do desenvolvimento de programas de competências gerais e especificas que alarguem o reportório de
comportamentos sociais e ajudem os jovens na reconstrução de laços sociais, na medida em
que identificam situações, problemas, procuram e implementam soluções e avaliam os resultados, alterando, se necessário, as suas estratégias.
As actividades realizadas surgem como suporte ao desenvolvimento de competências sociais
e pessoais. Não são um fim em si mesmo, mas unicamente um meio, um suporte de intervenção. Escolhem-se as actividades pela influência que podem exercer sobre o desenvolvimento
e aprendizagem individuais, sobre a ajuda mútua e o cumprimento da tarefa. São um instrumento precioso para a vida dos grupos: permitem o desenvolvimento das capacidades físicas,
intelectuais e artísticas; facilitam o contacto, criam laços relacionais; dão a oportunidade de
comunicar, de forma verbal e não verbal, de expressar sentimentos de amizade, solidariedade, hostilidade ou indiferença; oferecem possibilidades inesgotáveis de experiências novas, de
descobrimentos, de abertura, de exploração; trazem alegria, momentos de prazer, que mais
tarde são recordados; permitem aprender em qualquer idade e fazer aquisições em diferentes
âmbitos.
A promoção e desenvolvimento de competências é considerado uma estratégia preventiva do
desajustamento social e pessoal, facilitando uma inserção positiva dos jovens ao nível escolar,
laboral e social de um modo geral, na medida em que os pode habilitar a participar activamente nas decisões sobre a sua vida e na resolução dos seus problemas.
Estes programas de competências são processos que envolvem a construção de novas experiências, o enfrentar de acontecimentos até ao momento não vivenciados, o experimentar novos
papéis e a aprendizagem de novos comportamentos, fundamentais para o processo de construção da identidade e da autonomia. As intervenções no âmbito da prevenção e da protecção devem promover um crescimento saudável através do desenvolvimento de competências
e opções. Neste sentido, o treino de habilidades envolve competências como a auto-estima e
auto-conceito, a tomada de decisões, lidar com situações que envolvem ansiedade, resistência
à pressão dos pares, manutenção de relações interpessoais, assertividade, entre outros.
Locus SOCI@L 2/2009: 99
O grupo evidencia-se neste ponto como um espaço de re-dinamização de competências sociais. A proposta é considerar o grupo em dois ângulos: como um lugar de recurso e como
um espaço de dinamização de competências sociais. É ideia geral que as pessoas que estão
num processo de exclusão vêm as suas competências sociais diminuídas e o seu isolamento
acentuado. A participação numa acção colectiva permite adquirir e reaprender certos comportamentos sociais. As competências para viver em sociedade são numerosas e referem-se a
vários domínios, como a capacidade de gerir o orçamento, a família, a formação, a saúde, a
casa, etc. têm na mobilização de diferentes factores da personalidade, tais como a motivação,
a antecipação, a responsabilidade, a imagem de si próprio, etc. Estas competências sociais são
fragilizadas pelas situações de exclusão e por isso a participação num colectivo pode permitir
activar essas competências.
Nesta perspectiva e face a um grupo de jovens cujo percurso esteja marcado por vivências de
risco, com algumas características de marginalização, lacunas ao nível dos conhecimentos e
das aptidões, com uma desconfiança em relação às instituições significativa, e onde exista
uma desvalorização de si próprios e uma vivência centrada no aqui e agora, a intervenção deve
ser orientada para o futuro, com objectivos concretos, situados a curto prazo, com solicitações delimitadas, controladas e com ofertas reais de sucesso.
A intervenção social é, assim, essencial no sistema de novas oportunidades, tornando-se necessário um grande investimento nestes jovens com comportamentos disfuncionais e percursos de risco de forma a prevenir uma entrada irreversível em situações de exclusão. Intervir com
base nesta perspectiva implica planear de forma integrada, tendo em conta todas as dimensões dos problemas que têm de ser consideradas nas soluções e planear os objectivos que se
querem alcançar, mas também a forma de os alcançar.
Ao nível da prevenção, esta não pode ser entendida como uma prótese. É necessário que se
transforme numa atitude – é antecipação, pró-acção. A intervenção precoce tem que ser uma
política obrigatória, que alastre por toda a parte, e que promova o desenvolvimento equilibrado do jovem. O carácter avulso de medidas isoladas, a falta de vectores estratégicos de acção,
a inexistência de canais de comunicação definidos e funcionais, permitem que um núcleo duro
da protecção infantil e juvenil persista ao longo do tempo, numa estabilidade que tende para
a rigidez. Olhar para a política social como um instrumento de emancipação e efectivação
dos direitos de cidadania, permite dar respostas «localizadas», às necessidades dos jovens em
risco.
«Pequenos acontecimentos para novos rumos» é, deste modo, a síntese que se considera pertinente
na reflexão sobre um processo de intervenção que é em si mesmo, um processo, que se constrói passo a passo, numa interacção entre diferentes factores.
Como afirma um dos jovens do projecto «Clube de Jovens»: «Posso dizer que me sinto contente e
orgulhosa da pessoa que sou hoje.»
Locus SOCI@L 2/2009: 100
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Notas
1 Este artigo resulta da dissertação de mestrado realizada pela autora, apresentada à UCP e intitulada «Pequenos Acontecimentos para Novos Rumos.» (2009). Uma discussão mais profunda da metodologia e resultados do estudo desenvolvido
pode ser encontrada na referida dissertação.
2 Esta recolha efectuou-se no período compreendido entre 2002 (início do projecto) e 2008.
3 No período compreendido entre 2002 (início do projecto) e 2008
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Peer Review Process
Recepção artigo | 15/07/2009
Paper reception
Admissão artigo | 27/07/2009
Paper admission
Arbitragem anónima por pares | 01/09/2009; 20/10/2009
Double blind peer review
Aceitação artigo para publicação | 12/11/2009
Locus SOCI@L 2/2009: 102
Locus SOCI@L 2/2009: 103–114
A INVESTIGAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL EM
PORTUGAL: uma aproximação a partir da
formação pós-graduada1
FERNANDA RODRIGUES
Universidade Católica Portuguesa, CR Braga
Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE)
da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação - Universidade do Porto
[email protected]
FRANCISCO BRANCO
Centro de Estudos de Serviço Social e Sociologia
Faculdade de Ciências Humanas , UCP
[email protected]
Resumo
Esta comunicação visa constituir-se numa reflexão crítica sobre a investigação na área de Serviço Social em Portugal, dando conta do estado e âmbito do conhecimento construído.
Toma como base as dissertações de mestrado e teses de doutoramento produzidas no âmbito da qualificação
pós-graduada em Serviço Social, tituladas por várias instituições universitárias nacionais e algumas estrangeiras no
período de 1990 a 2003 .
De entre os eixos de análise possíveis sobre a produção existente, visa-se reflectir sobre a agenda implícita da investigação em Serviço Social em Portugal e a sua relevância para a produção de um conhecimento disciplinar. Serão
igualmente exploradas linhas de análise comparada com os contextos europeu e internacional.
Além da visão retrospectiva a que se acederá, serão ensaiadas reflexões propositivas para a construção de uma
agenda investigativa significante para o desenvolvimento académico e científico do Serviço Social, em contexto da
sociedade portuguesa. A presente comunicação retoma e desenvolve um trabalho preliminar de 2003
Abstract
Palavras Chave
Serviço Social,
Investigação em
Serviço Social, Formação Pós-Graduada em Serviço
Social, Desenvolvimento Académico
do Serviço Social,
Portugal
This communication essays a critical reflection on Social Work research in Portugal, reporting the status and scope
of the knowledge produced in this field.
It is based on the master’s dissertations and doctoral theses produced in the post-graduate qualification in Social
Work developed in Portuguese universities and some foreigners from 1990 to 2003.
Among the possible lines of analysis on the existing production, the paper aims to reflect on the implicit agenda of
Social Work research in Portugal and its relevance to the production of a disciplinary knowledge. Will be explored
lines of analysis in a comparative perspective with European and international contexts. Complementary to the realized retrospective, will be essay to contribute to build a significant research agenda for the academic and scientific
development of Social Work in the context of Portuguese society. This communication takes up and develops a
preliminary work of 2003.
...
Key Words
Social Work, Social
Work Research,
Social Work
Pos-Graduate Programmes, Social
Work Academic
Development,
Portugal
Introdução
O Serviço Social ocupa uma posição particular como campo de saber(es) uma vez que se
apresenta, ao mesmo tempo, como uma disciplina relevante no domínio das Ciências Humanas e das Ciências Sociais, e como um campo de práticas profissionais ancorado em diversos
contextos institucionais.
Locus SOCI@L 2/2009: 103
Não se tratando de uma circunstância exclusiva do Serviço Social, uma vez que se pode igualmente observar noutras especialidades no campo das designadas profissões sociais, esta dupla
inscrição cientifico-disciplinar e profissional conduziu a funções e problemáticas específicas ao
nível da investigação, influenciando, de forma significativa, o seu processo de desenvolvimento
e natureza.
Na Europa, a inserção universitária do Serviço Social conheceu dinâmicas de desenvolvimento
diferenciadas, sendo que esta se processou mais cedo e de forma mais célere na Europa Central e do Norte, à semelhança do que ocorreu na América do Norte a partir dos anos 30 do séc.
XX (Chambon, 2003; Dominelli, 2005).
Na Europa do Sul em geral, e em Portugal especificamente, o processo de construção do
conhecimento em Serviço Social como disciplina profissional no campo das ciências sociais
apresenta um carácter tardio e complexo, como se evidencia na história da atribuição do nível
universitário ao Serviço Social e na ausência de oferta de formação pública até um período
muito recente (2000) 2 3 .
O processo de reconhecimento académico, com estatuto universitário, num caminho de paulatina
consolidação que percorre os últimos 20 anos, e se reforça no presente com a criação dos primeiros programas de doutoramento em Serviço Social em Portugal, abre novas perspectivas para a
reconcepção dos dispositivos de investigação e difusão do conhecimento e respectiva tradução
na agenda do Serviço Social em Portugal. A situação actual é, no entanto, caracterizada por uma
ainda baixa organicidade e difusão pública da investigação em Serviço Social. É neste quadro que
surge como pertinente um trabalho de caracterização e análise da produção de conhecimento
no contexto dos programas de pós-graduação académica em Serviço Social, interrogando o
seu papel e relevância para a produção de um conhecimento disciplinar, sua interlocução e
afirmação científica do Serviço Social.
A presente comunicação, centrando-se na experiência portuguesa, procura igualmente enquadrar-se numa perspectiva comparada, reportando-se, embora de forma não extensiva, à experiência registada noutros países e regiões e trazendo à análise trabalhos e debates recentes
no mesmo campo de análise. Neste sentido são particularmente significativos os ensaios de
Iamamoto (2004) e Sposati (2007), que haviam sido antecedidos por trabalho de Kameyama
(1998) todos relativos à experiência brasileira. Nestes trabalhos encontrou-se respaldo, quer
pela proximidade do ângulo de análise adoptado, quer devido ao papel da cooperação científica brasileira na formação pós-graduada em Serviço Social em Portugal.
I. Formação Pós-Graduada em Serviço Social em Portugal: breve
contextualização
A formação pós-graduada inscreve-se na estratégia de desenvolvimento profissional e académico do Serviço Social em Portugal, orientada, desde a restauração do regime democrático
em Portugal (Abril de 1974), por dois desígnios centrais: a integração da formação em Serviço
Social no ensino superior público e o reconhecimento do nível universitário desta formação
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consubstanciado na atribuição do grau académico de licenciatura aos diplomados em Serviço
Social. Assim, desde designadamente o início dos anos 80 do sec. XX, o Instituto Superior de
Serviço Social de Lisboa, desenvolveu um conjunto de esforços tendentes ao início da formação
pós-graduada, ao nível de mestrado e doutoramento, como programas de qualificação de
docentes e formação de investigadores, requisitos essenciais à afirmação académica e desenvolvimento científico do Serviço Social.
Na sequência dos esforços empreendidos inicia-se, em Fevereiro de 1987, o I Programa de
Mestrado em Serviço Social ao abrigo de um Protocolo de Cooperação Científica com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o qual conheceria várias edições. Em
Junho de 1996, vem a ser criado, em termos semelhantes, o Programa Especial de Doutoramento em Serviço Social.
Dando seguimento ao processo de reconhecimento da Licenciatura em Serviço Social (1989),
em 1995 são criados os primeiros programas de Mestrado em Serviço Social, da responsabilidade de instituições de ensino portuguesas: Institutos Superiores de Serviço Social de Lisboa
e do Porto.
Actualmente, existem em Portugal 6 programas de Mestrado e 2 4 programas de Doutoramento em Serviço Social.
Figura 1: Programas de Pós-graduação Académica em Serviço Social em Portugal
(2007/2008)
Programas de Mestrado em Serviço Social
Programas de Doutoramento em Serviço Social
- Instituto Superior Miguel Torga (2000)
- Universidade Católica Portuguesa – Lisboa
(2003)
- Instituto Superior de Serviço Social do Porto
(1995)
- Universidade Católica Portuguesa - Lisboa
(2003)
- Universidade Lusíada (criado em 2004 no ISSSL
em cooperação com o ISCTE).
- Universidade Católica Portuguesa - Braga
(2006)
- Universidade Lusíada (iniciado no ISSSL em
1995)
- Universidade Lusófona T. Humanidades (2007)
II. A Formação Pós - Graduada e a Construção do Conhecimento em Serviço Social em Portugal
Como se referiu, esta comunicação visa contribuir para traçar o estado da arte da investigação
em Serviço Social em Portugal, tomando como foco a produção de conhecimento no âmbito
dos programas de pós-graduação académica.
Locus SOCI@L 2/2009: 105
Apesar do carácter relativamente recente destes programas no campo do Serviço Social em
Portugal, é particularmente pertinente e instigante o ângulo de análise aqui adoptado uma vez
que a investigação nesta área se tem feito, sobretudo, a coberto da formação, sendo muito
recente e embrionário, além de em reduzido número as unidades de pesquisa existentes dedicadas a esta área de saber.
Figura 2: Unidades de Investigação em Serviço Social formalmente constituídas em
Portugal, 2008
Unidades de Investigação
Natureza e Inserção
- Centro Português de História e Trabalho Social CPIHTS (1993)
- Associação não lucrativa não integrada em
unidade de ensino
- Unidade I&D junto FCT (2003-2006)
- Centro de Investigação em Serviço Social e Estudos
Interdisciplinares - CISSEI
- Centro de Estudos de Serviço Social e Sociologia –
CESSS (2003)
- Centro de Investigação em Ciências do Serviço Social
(2003) 6
- Centro Lusíada de Investigação em Serviço Social e
Intervenção Social – CLISSIS (2007)
- Centro de Investigação em Serviço Social no Espaço
Lusófono - CISSEL (2007)
- Associação não lucrativa não integrada em
unidade de ensino.
- Unidade orgânica da Universidade Católica
Portuguesa
- Candidatura para reconhecimento como
Unidade I&D junto da FCT (2007-2010)
- Unidade orgânica Instituto Superior de
Serviço Social do Porto
- Unidade orgânica da Universidade Lusíada
- Unidade orgânica da Universidade Lusófona
Toma-se como base de análise as dissertações de mestrado e teses de doutoramento produzidas no âmbito da qualificação pós-graduada em Serviço Social, tituladas por várias instituições universitárias nacionais e algumas estrangeiras.
O corpus da investigação realizada abarca o universo temporal de 1990 a 2003 7 (13 anos) e é
constituído por 66 trabalhos, sendo 55 dissertações de mestrado e 10 teses de doutoramento
realizados no âmbito de cursos de Mestrado e/ou Doutoramento na PUC/SP, ISSSL (Lisboa),
ISSSP (Porto), ISMT (Coimbra), para além de outras Universidades Europeias (Holanda e
Suíça).
Do material analisado extraíram-se dados para análise quer do perfil dos autores dos trabalhos, quer quanto às temáticas e objectos de investigação, quer, ainda, quanto ao grau de
socialização do conhecimento produzido.
Locus SOCI@L 2/2009: 106
Do predomínio dos profissionais-docentes à baixa representação de outros profissionais
Os trabalhos produzidos no âmbito dos cursos de mestrado e doutoramento em Serviço Social, no período em análise, são em 83% (48) da autoria de docentes das unidades de ensino
da área e apenas 26% (17) foram realizados por profissionais sem relação com a actividade
docente. Observa-se no entanto que, designadamente nos cursos de mestrado mais recentes,
se manifesta uma tendência de inversão sendo os autores dos trabalhos exteriores à docência
e investigação académica. Estes resultados, relativamente expectáveis dada a natureza diversa
das carreiras académica e profissional dos Assistentes Sociais, revelam a dificuldade dos cursos de pós-graduação académica em Portugal, atraírem e estabeleceram uma maior capilaridade com o mundo profissional. Naturalmente que se torna relevante observar o impacte neste
padrão dos cursos que se iniciaram depois de 2003 e particularmente os cursos realizados após
a reforma introduzida pelo Processo de Bolonha, que produziu, pelo menos numa primeira
fase, uma procura acrescida dos cursos de mestrado em Serviço Social. Note-se no entanto
que, à luz da reforma de Bolonha, os cursos de mestrado mudam significativamente o seu
perfil, relativizando-se o peso da investigação científica entendida na sua formatação mais
clássica (podendo o trabalho final ser também um projecto de outra natureza ou um relatório
de estágio).
Da preponderância da investigação em Políticas Sociais à baixa densidade da produção de um saber disciplinar em Serviço Social
A análise dos trabalhos de investigação realizados no âmbito dos programas de pós-graduação em Serviço Social no universo temporal que medeia desde a sua criação até ao ano de
2003, revela que os eixos temáticos dos projectos de investigação se podem agrupar em torno
de duas grandes linhas de concentração: i) a área das Políticas Sociais e, ii) a área da inserção e
intervenção profissional do Serviço Social propriamente dita. No universo abrangido, 42 (63,6
%) projectos privilegiam temáticas no âmbito das políticas sociais, enquanto que 24 (36,4
%) adoptaram como campo de investigação temáticas relativas ao Serviço Social enquanto
disciplina e profissão.
A tabela 1, permite constatar que na linha de concentração de Política Social a maioria dos
projectos (21: 31,8 %) se reportam a campos específicos como as políticas de velhice, de
protecção de crianças e jovens e da saúde, designadamente. As problemáticas mais gerais da
política social na actualidade e campos emergentes neste domínio, representam 9 projectos
(13,6 %) e 7 (10,6 %) respectivamente. No domínio do Serviço Social a preponderância dos
projectos relativos à história do Serviço Social é claramente expressa através de 11 dos estudos
(16,7 %), representando a pesquisa sobre o Serviço Social em campos específicos de actividade 12,1 % (8) e outros projectos 7,6 % (5).
Locus SOCI@L 2/2009: 107
SERVIÇO SOCIAL: HISTÓRIA, CAMPOS
DE PRÁTICA E DEBATES
POLÍTICAS SOCIAIS E SOCIEDADE
Tabela 1: Eixos Temáticos da Pesquisa de Pós-Graduação em Serviço Social em
Portugal, 1990-2003
Temas
Sub -Tema
Política de Assistência Social e de
Mínimos Sociais
Política de Assistência Social em Portugal
Regimes de Assistência, Acção Social e
RMG
Políticas Luta contra Pobreza
Solidariedades e Políticas Sociais
Política Social: Solidariedade, Descen- Descentralização e Políticas Sociais
Parcerias e Políticas Sociais
tralização e Parcerias
Associativismo, Análise Organizacional e
Participação
Campos Específicos
Velhice e Protecção Social / Serviços
Sociais
Protecção & Maus Tratos de Crianças e
Jovens
Desemprego e Políticas de Emprego e
Formação Profissional
Políticas de Habitação
Saúde, Doença e Sociedade
Sinistralidade e Protecção Social
Apoio social ao retorno de emigrantes
Campos Emergentes
Violência sexual
Estudos femininos e questões de género
Grupos Étnicos, Etnicidade e Género
Novas tecnologias informação
Suicídio e Adolescência
História e Serviço Social em Portugal
Génese, Institucionalização e Formação
Académica
Serviço Social e Contemporaneidade
Serviço Social, Profissionalização e Representações Sociais
Associativismo Profissional
Serviços Sociais em Campos Específicos
Serviço Social Hospitalar
Serviço Social na Habitação
Serviço Social e Educação
Serviço Social Autárquico
Serviço Social nas Organizações
Trabalho Comunitário
Serviço Social: Outros Campos e
Debates
Mediação em Serviço Social
Poder na Prática Profissional AS
Democracia Local e Movimentos Sociais
Nº
2
2
1
5
4
1
2
2
9
5
%
7,6
13,6
5
2
2
5
1
1
21
1
2
2
1
1
7
42
4
2
4
1
11
2
1
2
1
1
1
8
2
1
2
5
24
31,8
10,6
63,6
16,7
12,1
7,6
36,4
Fonte: Rodrigues, F e Branco, F e Nunes, M. Helena (2003). A Formação Pós - Graduada e a Construção do Conhecimento em Serviço Social. I Congresso RNESS
Os resultados observados suscitam diferentes linhas de análise e reflexão sobre a investigação
em Serviço Social no âmbito da pós-graduação em Portugal.
Num primeiro plano, observa-se a preponderância da investigação em Políticas Sociais e uma
mais baixa densidade da produção noutros campos específicos da profissionalidade em Serviço
Locus SOCI@L 2/2009: 108
Social. Constata-se, pois, que este primeiro e iniciático conjunto de análises vai privilegiar
locais de reflexão que se constituem nos campos abrangentes e de enquadramento da
disciplinaridade do Serviço Social, os quais em simultâneo são áreas de fronteiras partilhadas
com outr@s pesquisadores/as.
Sem prejuízo de outras dimensões de análise a considerar, deve-se sublinhar que esta linha
de força pode constituir-se como particularmente crítica para o desenvolvimento científico e
afirmação académica do Serviço Social como disciplina, uma vez que o potencial de pesquisa
não subsidia tão directamente (isto é, de forma mais direccionada e focalizada), as áreas de
especificidade de intervenção assim podendo adiar a produção de conhecimento pertinente
à construção e aprofundamento dos saberes disciplinares do Serviço Social. Compreensivelmente os projectos de pesquisa realizados em diferentes domínios das políticas sociais podem contribuir para afirmar os assistentes sociais como cientistas sociais profissionais, assim
ganhando interlocução e suscitando contributos para um campo mais amplo de práticas,
aspecto sem dúvida relevante. A questão que poderá colocar-se é, até que ponto, nas circunstâncias de tardio e incompleto desenvolvimento, esta orientação predominante nos trabalhos
pós-graduados pode ter como contraponto um mais frágil investimento em objectos de maior
centralidade para as práticas profissionais noutros terrenos (os dominantes até há pouco
tempo) do campo disciplinar? Há razões para se pensar que o processo de desenvolvimento
académico e profissional do Serviço Social, inicial e não suficientemente consolidado, poderia
requer uma outra dinâmica de produção de conhecimento e investigação. Trata-se-ia, neste
caso, do Serviço Social participar daquilo que Groulx designou um “processo mais largo de
academização disciplinar do Serviço Social [...] e que pode ser interpretada como uma estratégia de legitimação intelectual no campo propriamente universitário” (Groulx, 1993, citado
por Kérisit, 2007).
Num segundo plano de análise, regista-se de alguma forma, no que respeita mais especificamente ao domínio do Serviço Social, uma reduzida presença de projectos mais centrados nos
debates teóricos e metodológicos, ainda que se deva sublinhar que o trabalho até agora realizado de análise do corpus empírico considerado não permite extrair conclusões muito aprofundadas sobre esta matéria. De qualquer forma, observa-se um maior número de projectos
no âmbito da investigação da história e/ou formação e também da profissionalização, a par
de uma relativa dispersão dos campos de investigação.
Num terceiro plano, estes resultados suscitam igualmente a importante questão da política científica do Serviço Social em Portugal e, mais especificamente, a da definição pelos diferentes programas de pós-graduação de áreas de concentração da investigação, nas quais o campo disciplinar específico não pode deixar de ser nuclear, sem prejuízo (como se observou dominantemente
no período estudado) de o processo de produção de conhecimento poder ser decorrente de
lógicas vindas de interesses particulares e contando com investigadores isolados.
Importa saber que o estabelecimento de uma política de investigação científica em Serviço Social não pode ser decretada como orientador único e irá sempre envolve aspectos complexos
e sensíveis, designadamente quanto à relação entre os interesses de investigação vindos d@s
investigadores-formand@s individualmente considerados e as linhas de concentração estabelecidas ou a estabelecer pelos diferentes programas. Mas não são as dificuldades a resolver
Locus SOCI@L 2/2009: 109
que retiram a vantagem da existência de (um caminho para) uma agenda do desenvolvimento
académico e científico do Serviço Social em Portugal. Sabe-se, hoje, que as agendas são também lugares de expressão e articulação face a temas que passaram a ser relevados noutros
espaços que não só o nacional, o que, neste caso, abrirá lugar para experiências e dispositivos
transnacionais de pesquisa.
Da presumível relevância social à baixa difusão e socialização do conhecimento
A análise dos eixos temáticos privilegiados nas pesquisas efectuadas no âmbito da pós-graduação em Serviço Social em Portugal evidencia o interesse do campo das políticas sociais, dos
seus campos e problemáticas bem como da sua dinâmica no contexto actual (marcado por
uma vincada reorientação e transformação). Para além do interesse específico para o Serviço
Social, o que se retomará mais adiante, importa sublinhar a relevância social dos campos e
problemáticas que concitam o labor investigativo dos pesquisadores e profissionais de Serviço
Social. Como ilustra tabela 1, trata-se de um vasto leque de domínios para cujo estudo os
assistentes sociais e docentes pós-graduandos se encontram particularmente bem situados,
pela sua reconhecida proximidade e imersão no campo e que atestam igualmente o nível de
interlocução do Serviço Social com a sociedade, carreando para a sociedade em geral e para a
comunidade científica em particular, conhecimento sobre um significativo conjunto de questões sociais com implicações para o que Sposati designou de agenda da justiça social (Sposati, 2007). Refira-se aliás, que esta mesma preocupação com as questões e políticas sociais
é igualmente observável na trajectória da pesquisa em Serviço Social noutros países. Como
assinala Kérisit, reportando-se ao Quebeque, “se existe um ponto comum entre as pesquisas
passadas e actuais em Serviço Social, é a sua vontade de alcançar resultados susceptíveis de
conduzir à acção, de melhorar a situação em que se encontra um indivíduo ou um grupo vulnerável (Kérisit, 2007: 270).
No entanto, mesmo com prejuízo da análise da qualidade e rigor dos trabalhos produzidos,
admitindo-se uma boa qualidade média, um fortíssimo constrangimento limita profundamente o impacte social do conhecimento produzido, uma vez que se regista uma reduzida difusão
e socialização deste acumulo de conhecimento sobre a realidade social portuguesa e sobre as
políticas sociais em Portugal. Na verdade, a pesquisa empírica realizada revela que apenas 3
teses de doutoramento e 10 dissertações de mestrado foram publicadas até 2003, o que representa aproximadamente 20 % do universo. Acresce ainda que, de um modo geral, as edições,
com apenas uma excepção, foram publicadas por editoras sem peso no mercado editorial
português, o que limitou consideravelmente a sua difusão fora do universo profissional mais
estrito. Alguma atenuação deste efeito vai sendo alcançada pela apresentação dos trabalhos
efectuados em eventos públicos ou em pequenas recensões publicadas.
Ao mesmo tempo, outro forte constrangimento decorre do facto da comunidade científica do
Serviço Social, que hoje se estrutura em torno dos programas de pós-graduação referenciados
e de alguns, poucos centros de investigação, não está articulada em rede, não ocorrendo a
cooperação e partilha de projectos entre pesquisadores. Registe-se, até, o declínio (e talvez
mesmo morte) de um dispositivo que chegou a ser constituído com o sentido de uma articulação das instituições de ensino, o que poderia constituir-se em campo importante de análise,
Locus SOCI@L 2/2009: 110
se não se quiser simplisticamente concluir que se trata de tendência que estritamente retrata
a lógica da competitividade no, por alguns designado, mercado da formação e investigação.
III. A Investigação em Serviço Social: notas de uma breve
análise comparativa
É particularmente instigante observar que as principais tendências registadas na produção de
conhecimento no campo do Serviço Social, vistas a partir dos programas de pós-graduação em
Serviço Social em Portugal, são claramente convergentes com o que se constata na experiência
brasileira. Dois trabalhos recentes, de Iamamoto (2004) e Sposati (2007) coincidem de facto,
no essencial do diagnóstico sobre os caminhos da pesquisa em Serviço Social no Brasil nos
últimos 30 anos.
Iamamoto procede no seu artigo a uma análise das linhas de pesquisa activas e projectos
dos programas de pós-graduação brasileiros em Serviço Social, apurando que num conjunto
de seis grandes linhas de concentração da pesquisa o Serviço Social surge em penúltimo lugar com 12,7 % das linhas de pesquisa e 5,8 % em número de projectos, assumindo a maior
expressão (como no caso português) o domínio das Politicas Sociais (34,5 % em termos de
linhas de pesquisa e 41% no que se refere a projectos) 8.
Num plano mais analítico, a autora sublinha que os resultados apurados evidenciam quer uma
intensa interlocução do Serviço Social com a sociedade como uma relação mimética entre políticas sociais e Serviço Social diluindo e obscurecendo a visibilidade e particularidades das acções
profissionais no âmbito das políticas sociais (cf. Iamamoto, 2004: 15). Assinala igualmente Iamamoto que são raras as produções recentes de peso e de ponta, que tenham o Serviço Social
como objecto central das suas elaborações, havendo o risco, no seu ponto de vista, de diluição
das particularidades desta área de pesquisa e que observa uma pouca relevância no tratamento
dado aos fundamentos teórico-metodológicos, históricos e às questões éticas no Serviço Social
(cf. Iamamoto, 2004: 19). Merece ainda nota da autora, a partir da análise do corpus referenciado, que, num pólo positivo, se regista um trabalho de particularização do exercício profissional
em situações e domínios concretos e, num pólo critico, a quase ausência de pesquisas sobre o
campo da profissão e da sua regulação legal ao mesmo tempo que os estudos sobre a formação
profissional não têm expressão significativa (cf. Iamamoto, 2004: 20-21).
A abordagem de Sposati (2007), tendo um âmbito distinto, pois tematiza de uma forma mais
global a questão da pesquisa e produção de conhecimento no Serviço Social, aborda também
a dimensão da investigação no âmbito da pós-graduação, uma vez que a autora reconhece
que esta é a principal base da produção de conhecimento e da investigação no Serviço Social
brasileiro (Iamamoto, 2004: 10).
No seu artigo, Aldaíza Sposati recupera o processo percorrido pelo Serviço Social brasileiro,
assinalando marcos e conquistas essenciais de um caminho apesar de tudo recente. A autora
sublinha o papel essencial da implantação da pós-graduação em Serviço Social para o desenvolvimento da investigação, e para a existência generalizada de núcleos de pesquisa associados aos
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diferentes programas9. Como expressão da institucionalização da pesquisa no serviço social no
Brasil a autora referencia quer a existência da ABEPSS – Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social quer o reconhecimento das agências de financiamento da investigação
institucional da Capes e CNPq. Sposati assinala no entanto, na sua análise, pontos particularmente críticos como o facto da comunidade científica do serviço social não estar estruturada e
não funcionar em rede, ocorrendo deste modo o isolamento e fragmentação das investigações.
Mas, no ponto de vista da análise que aqui nos ocupa, a dimensão mais sugestiva, assenta
no comentário dos resultados analisados por Iamamoto. Nesse particular, Sposati argumenta
o grande interesse do campo da Política Social para o Serviço Social assinalando a estreita
relação entre agenda política e agenda da justiça social na qual @s Assistentes Sociais estão
claramente posicionad@s, e que os trabalhos de pesquisa referenciados subsidiam (cf. Sposati, 2007: 7). Reconhecendo embora que o aprofundamento da pesquisa sobre o processo
de trabalho d@ Assistente Social é frágil, e como tal não facilita a demarcação do espaço do
Serviço Social no âmbito das diferentes políticas sociais, a autora sustenta que importa, no
entanto, não confundir distinção ou diferenciação com distanciamento, podendo deste modo
desconsiderar-se as áreas das políticas sociais e sua relevância para o trabalho d@s Assistentes
Sociais (cf. Sposati, 2007: 8).
Estamos assim, em face de pontos de vista e interpretações distintas, ainda que não antagónicas, sobre a questão da relação entre Politicas Sociais e Serviço Social, a qual emerge, à luz
da experiências brasileira e portuguesa de investigação em Serviço Social, como uma dimensão
central do debate teórico disciplinar e de relevante transcendência para a agenda e política de
investigação científica em Serviço Social, aqui, como do outro lado do Atlântico.
Importante ponderador nesta questão poderia ser também dada pela análise das lógicas curriculares adoptadas a partir da formação graduada, dado o seu papel de instigador iniciático
para uma adequada ênfase na investigação e na articulação desta com os campos, ditos concretos, das práticas profissionais mais consolidadas.
IV. Conclusão: contributos para uma agenda da Investigação
em Serviço Social em Portugal
Da análise ensaiada neste artigo podem identificar-se vários pontos relevantes para uma agenda da investigação em Serviço Social em Portugal. Assim, em primeiro lugar, parece fundamental, como acima se referenciou, o debate teórico sobre as grandes áreas de concentração
da pesquisa e das suas relações conceptuais. Um debate contextualizado na fase actual de
desenvolvimento académico do Serviço Social em Portugal, nos traços identitários da profissão e do lugar que neles ocupam a pesquisa e, também, na pluralidade desejável dos projectos
profissionais do Serviço Social no país.
Em segundo lugar, revela-se igualmente nuclear um conjunto de iniciativas favorecedoras da
definição de política(s) de pesquisa para o Serviço Social pela sua comunidade científica, contrariando o isolamento e fragmentação, sem prejuízo da diversidade de orientações. Mais uma
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vez requere-se uma acção contextualizada na situação actual da institucionalização da investigação académica em Serviço Social, caracterizada pela instalação e afirmação de diferentes
unidades de pesquisa, bem como na sua articulação com os interesses extra-académicos.
Numa dimensão mais específica, e estritamente articulada com as anteriores, surge como particularmente relevante a questão da difusão e socialização da investigação em Serviço Social,
para que se torna necessário a adopção de estratégias e plataformas ajustadas às tendências
observadas neste domínio particular. Em último lugar, julga-se necessário o aprofundamento
da pesquisa sobre a investigação em Serviço Social em Portugal, na linha do presente trabalho.
Trata-se não só de alargar o corpus de análise mas também prosseguir outras linhas de pesquisa, designadamente quanto ás orientações teórico-metodológicas emergentes da produção
realizada no âmbito dos programas de pós-graduação e das unidades de investigação activas.
Reflectindo sobre uma década e meia de produção no campo da investigação, o Serviço Social português tem pela frente o debate de como se consolida, depois da sua emergência,
uma comunidade cientifica. De entre os factores contributivos, o equacionamento da resposta
pontua antes de tudo o carácter colectivo da tarefa, com o que se quer significar o Serviço Social em diálogo com todo o universo dos intervenientes e em todas as escalas compreendidas
do conhecimento (da sua criação, transmissão e disseminação).
Referências
Branco, Francisco, Rodrigues, Fernanda e Nunes, Maria Helena. 2003. A Formação Pós - Graduada e a Construção do Conhecimento em Serviço Social. In I Congresso da RNESS.
Lisboa.
Chambon, Adrienne. 2003. La recherche en travail social. In Introduction au travail social, eds.
Jean Pierre Deslauriers Yves Hurtubise (pp. 163-181). Lyon: Chronique Sociale.
Dominelli, Lena. 2005. Social Work Research: contested knowledge for practice. In Social
Work Futures: crossing bounderies, transforming practice, ed. Lena Dominelli Robert
Adams, Malcon Payne (pp. 223-236). Wales: Palgrave.
Iamamoto, Marilda. 2004. Os caminhos da pesquisa no Serviço Social. In IX encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social: os desafios da pesquisa e produção do conhecimento em Serviço Social. Porto Alegre.
Kameyama, Nobuco. 1998. A Trajetória da produção de conhecimentos em Serviço Social:
avanços e tendências (1975 a 1997). Directrizes Curriculares e Pesquisa em Serviço Social. São Paulo: Ed. Cortez.
Kérisit, Michéle. 2007. Recherche et Service Social. In Introduction au Travail Social, eds. JeanPierre Deslauriers and Yves Hurtubise (pp. 267-294). 2ª edição. Laval: Les Presses de
l’Université du Laval.
Nóvoa, António. 1992. Os Professores e sua Formação. Lisboa: Publicações D. Quixote.
Sposati, Aldaíza. 2007. Pesquisa e produção de conhecimento no campo do serviço social.
Revista Kátalisys 10 (especial): 15-25.
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Notas
1 Comunicação sujeita a peer reviewing e apresentada na 19ª Conferência Mundial de Serviço Social, Salvador da
Bahia – Brasil, 16 a 18 de Agosto de 2008.
2 O primeiro curso de formação de Assistentes Sociais (Licenciatura em Serviço Social), no ensino público é criado no ano de 2000.
3 A comparação com grupos profissionais como os Enfermeiros e os Educadores de Infância tem particular interesse analítico (cf. Escobar, 2004 e Nóvoa, 1992).
4 No Instituto Superior de Serviço Social do Porto, em cooperação com Universidade do Porto, foi criado em
2003, um Programa de Doutoramento e Mestrado em Ciências do Serviço Social, orientação que não se enquadra na tradição e parâmetros correntes dos programas de pós-graduação em Serviço Social a nível internacional.
5 Em 2006 registou-se a transmissão dos cursos ministrados no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa
para a Universidade Lusíada.
6 Cf. Nota 5.
7 À data desta recolha de dados cerca de 25 Dissertações Mestrado e 3 Teses de Doutoramento aguardavam
discussão pública ou encontravam-se em fase de elaboração de dissertação / tese.
8 Os restantes domínios são respectivamente: Relações e processos de trabalho (14,5 e 17,7 %); Cultura e identidades (14,5 e 14,3 %); Família e relações de género (10,9 e 12,9 %); Movimentos sociais (12,7 e 5,8 %).
9 Em 2004 existiam no Brasil 8 cursos de doutoramento e 19 cursos de mestrado para um universo de 174 cursos
de graduação em Serviço Social (dados citados por Iamamoto, 2004).
Peer Review Process
Recepção artigo | 14 • Julho • 2009
Paper reception
Admissão artigo | 30 • Setembro • 2009
Paper admission
Arbitragem anónima por pares | artigo não publicado já submetido a PR *
Double blind peer review
Aceitação artigo para publicação | 16 • Dezembro • 2009
Paper accepted for publication
* Artigo submetido a peer review no âmbito 19ª Conferência Mundial de Serviço
Social, Salvador da Bahia – Brasil, 16 a 18 de Agosto de 2008.
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