Cartas para o futuro - acervo da memória socialista

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Cartas para o futuro - acervo da memória socialista
Cartas de Agosto
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Dalton Rosa Freitas
Ficha catalográfica
C 837c
Cartas de Agosto – O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e
revistas. Coletânea de artigos. Evaldo Costa (Org.) – Fundação
João Mangabeira : Brasília, DF, 2007.
21cm., 126p.
1. Política. 2. Artigos. I. Autor. II. Fundação João Mangabeira.
III. Título.
CDU 324
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Cartas de Agosto
Evaldo Costa | Organizador
2007
Sumário
Apresentação
Evaldo Costa ........................................................................................................ 9
Arraes – Memória sem lágrimas e com afeto
Aluízio Falcão .................................................................................................... 11
Adeus ao guerreiro do povo brasileiro
Ângelo Castelo Branco.................................................................................... 19
Rosas vermelhas
Arthur Carvalho.............................................................................................. 21
Arraes e a fraternidade dos inconformados
Augusto Buonicore.......................................................................................... 23
Mito
Bernardo Arraes Valença................................................................................ 31
Arraes, ao morrer, pede a palavra sobre a crise política
Bernardo Joffily............................................................................................... 33
Arraes e o Brasil possível
Chico Villela.................................................................................................... 37
Miguel Arraes, um forte
Cleofas Reis......................................................................................................... 43
O “véio Arraia” e o livrinho
Clóvis Rossi......................................................................................................... 45
Arraes taí
Cristovam Buarque............................................................................................ 47
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Morreu Arraes?... Não, Arraes está vivo! Vive entre nós!
Amparo Araújo............................................................................................... 17
Senado homenageia Miguel Arraes
Dilze Teixeira...................................................................................................... 49
A modernidade em Miguel Arraes
Eduardo Campos............................................................................................. 51
Arraes no Palácio do Povo
Everardo Norões.............................................................................................. 53
Coerência política
Fernando Antônio Gonçalves......................................................................... 55
Miguel Arraes
Fernando Castilho........................................................................................... 57
Arraes e a importância de empreender lutas inglórias
Gilliatt Falbo.................................................................................................... 61
Miguel Arraes e o sentimento do mundo
Gonzaga Patriota............................................................................................ 63
Arraes, o imprescindível
Inaldo Leitão................................................................................................... 65
Miguel Arraes
Inaldo Leitão....................................................................................................... 67
Arraes, o amigo do povo
Ítalo Rocha ......................................................................................................... 69
O símbolo
Jânio de Freitas................................................................................................... 71
Evaldo Costa (Org.)
Dr. Arraes, presente!
José Áureo Bradley............................................................................................. 73
6
As duas vidas de Miguel Arraes de Alencar
Luis Felipe de Alencastro................................................................................... 77
Miguel Arraes
Manuel Correia de Andrade ............................................................................ 79
Um líder nordestino à moda antiga
Maria Victoria Benevides.................................................................................. 83
Arraes
Mauro Santayana............................................................................................... 89
Meu encontro com Arraes
Michel Zaidan Filho........................................................................................... 91
Cartas de Agosto
Um líder coerente
Marisa Gibson ................................................................................................... 87
Heróis
Nei Duclós........................................................................................................... 93
Morte de Miguel Arraes encerra ciclo dos primeiros
esquerdistas do Brasil
Paulo de Vasconcellos......................................................................................... 95
A falta que ele faz
Paulo Sérgio Scarpa........................................................................................... 97
Duas mãos e o sentimento do mundo
Raimundo Carrero............................................................................................. 99
Miguel Arraes de Alencar (16/12/1917 – 13/08/2005)
Ricardo Noblat.................................................................................................. 103
Uma trajetória que ajuda a pensar o Brasil
Roberto Freire................................................................................................... 105
Um forró para Arraes
Samarone Lima................................................................................................ 109
O tempo parou para Arraes
Sérgio Miguel Buarque..................................................................................... 113
Miguel Arraes de Alencar
Sérgio Montenegro Filho.................................................................................. 115
Miguel Arraes, 1916-2005
Urariano Mota.................................................................................................. 117
O mito fica na história
Valdecarlos Alves.............................................................................................. 121
Meu Pernambuco
Vitor Hugo Soares............................................................................................ 123
7
A
presentação
Na madrugada de 17 de junho de 2005, o autor destas linhas foi tirado da cama por uma chamada telefônica. A voz apreensiva dava a notícia
bombástica e fazia uma convocação. O ex-governador Miguel Arraes, de
89 anos, estava internado no Hospital Esperança. E a família pedia os seus
préstimos como porta-voz, atuando para manter informada a sociedade
pernambucana sobre a evolução do tratamento.
Não era só um desafio profissional gigantesco. Os 57 dias de vigília
acabaram por ser uma prova de resistência pessoal, nos planos físico e,
principalmente, emocional. Atender a imprensa em jornada de 24h diárias,
divulgar os boletins periódicos e manter atualizado o site do PSB, onde eram
difundidas as notícias sobre as visitas ao hospital e os milhares de votos do
pronto restabelecimento, eram algumas das tarefas executadas.
O volume que o leitor tem nas mãos é a última etapa da missão. Está
sendo publicado como uma homenagem a Arraes – um dos personagens
mais importantes da história política brasileira – mas também como uma
contribuição à história do País, com a disponibilização, em livro, de artigos publicados de forma dispersa e que, de outra maneira, estariam condenados ao esquecimento.
Nas páginas seguintes, estão agrupados textos – artigos, crônicas,
comentários e notas – que resumem, de forma mais ou menos completa,
o que foi publicado na imprensa nos dias que se seguiram à partida de
Miguel Arraes. Como em qualquer coletânea, vai a público com inevitáveis lacunas. E, considerando que o conteúdo não foi – nem poderia
ser – combinado entre os autores, há repetições e omissões. Também não
houve a pretensão de juntar tudo o que foi publicado a partir daquele 13
de agosto. Seria preciso muito mais do que este pequeno livro para conter
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Cartas para o futuro
o grande volume de artigos, comentários, reportagens e notícias publicados no Brasil e no exterior.
Foi selecionado para a coletânea material produzido por jornalistas
e historiadores, políticos e sociólogos, gente do Brasil e do exterior, numa
seqüência determinada pela ordem alfabética. Com suas características
próprias, cada texto cumpriu seu destino no momento em que foi publicado. E todos têm qualidades que se revelam à primeira leitura, mas que
já podem ser imaginadas à simples menção dos nomes. Não há barreiras ideológicas. Nem hierarquização por razões metodológicas. De certo
modo, buscou-se dar relevo à diversidade dos pontos de vista.
Se há tantas diferenças, igualmente importantes são as semelhanças.
A mais evidente é que todos os artigos foram elaborados para registrar,
no calor do momento, a visão pessoal do autor sobre a vida e a trajetória
política de Miguel Arraes, num diálogo assumido com a história. Retratam a grande comoção que se abateu sobre o Brasil e, deste modo, ajudam
a compreender o peso da presença e o tamanho da ausência deste grande
brasileiro.
O compromisso essencial de Miguel Arraes com os mais necessitados, a grande obra de governo realizada em suas três passagens pelo Palácio do Campo das Princesas e a capacidade de resistência nas mais difíceis condições – tudo pode ser revivido nos textos aqui reunidos, como
lições de coragem e dignidade aos brasileiros de todas as gerações.
Estas Cartas de Agosto são, em suma, mensagens para o futuro, relatos carregados de emoção sobre a ação política de um homem que marcou
um tempo da vida brasileira.
Dois anos depois, é preciso repetir o grito da multidão que acompanhou o sepultamento no cemitério de Santo Amaro:
Evaldo Costa (Org.)
Arraes vive!
10
Evaldo Costa, jornalista, é
Secretário de Imprensa
do Estado de Pernambuco
Arraes – Memória sem
lágrimas e com afeto
A
gora que cessaram as lágrimas e os discursos, podemos lembrar Miguel Arraes
de um jeito que ele aprovaria. Sem
voz embargada, litanias ou excessos
de retórica. O morto era homem de
fala comedida e avesso a eloqüências. Melhor evocá-lo em tom de
conversa, que foi o seu estilo de fazer política e amizades.
Conheci Arraes em Caruaru,
numa campanha qualquer dos anos
50. Eu era um rapaz da esquerda
local, tão generosa quanto boêmia, desorganizada e inexpressiva.
Ele, deputado estadual respeitado
e atuante, cujo desempenho admirávamos à distância. Buscava, sem
grandes apoios, uma difícil reeleição. Estava na cidade para falar em
comício. Apresentei-me como seu
eleitor e disposto a conseguir “talvez
meia dúzia de votos”. Respondeu
sorrindo: “Pra quem precisa, tudo
serve”. E convidou-me a sentar à
mesa do restaurante Guanabara, que
ele dividia com Otávio, um amigo
do Recife. Palestramos, deixou-me o
telefone, fiquei de procurá-lo.
Reelegeu-se com dificuldade.
Na capital, vimo-nos casualmente
na avenida Guararapes. Iniciou-se
um longo convívio político e pessoal. Lembro-me que estabeleceu
como rotina irmos juntos aos comícios e eventos em associações
populares da periferia. Eu chegava
mais cedo em sua casa, no bairro
do Cordeiro. Trocávamos idéias a
respeito da campanha e dos discursos que deveria fazer. Ali conheci a
doce e elegante figura de Célia, sua
primeira mulher, que veio a falecer,
e a filharada já então numerosa.
Depois rumávamos para os subúrbios, ele dirigindo um velho fusquinha. Por sermos ambos egressos
do interior, o deputado animava o
percurso narrando situações divertidas, protagonizadas por matutos.
Eu retribuía com estórias de Caruaru e seus tipos populares.
Todo homem do interior, por
mais viajado que seja, tem uma
nostalgia incurável de suas origens.
Aí estão as crônicas de Rubem Braga sobre Cachoeiro do Itapemirim,
peças de Ariano Suassuna, romances de Zé Lins, Graciliano, Guimarães Rosa. E aquele poema Itabira,
de Drummond, talvez a mais bela
página já escrita sobre uma cidade
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Aluízio Falcão
e a memória permanente de quem
nela viveu sua juventude. O Arraes que conheci falava do Cariri
de forma recorrente e cobria de
riso, para disfarçá-la, uma saudade teimosa, que sempre habitou o
seu coração de sertanejo. Quando
governador costumava responder,
se perguntado sobre uma possível
candidatura à presidência, que o
seu plano de maturidade era ser
prefeito do Crato. 
Evaldo Costa (Org.)
Eleito prefeito do Recife, depois de árdua batalha, tirou uma
semana de folga, e convidou-me
para uns dias em sua terra. Fizemos longa viagem de automóvel,
sertão adentro. De repente, em
plena caatinga, avistamos um oásis, que ele apontou com entusiasmo. Em larga extensão de terra,
coberto de verde, revelava-se o
vale do Cariri cearense, palco das
evocações de  infância.
12
Conheci então sua mãe, dona
Benigna, com aquela placidez
que lhe garantiu longa existência.
Quando falava em ajudar os pobres, deixava transparecer o que os
filósofos chamam de amor mundi (amor ao mundo). Acho que o
jovem Miguel aprendeu com ela,
e não com Marx, este sentimento que moveu sua vida. Na mesa
grande, conversas animadas, em
voz baixa. Sim, em voz baixa. Este
é um diferencial entre a gente do
sertão e a gente da mata. Dona
Benigna, quase em sussurro, comentando o entusiasmo dos netos
e outros meninos pelos filmes de
faroeste: “Não sei porquê. Tiro é o
que não falta aqui perto, nos dias
de feira”. E ria baixinho, e todos
riam, do mesmo jeito.
Veio a posse na Prefeitura.
Cabe aqui ligeira nota sobre o Movimento de Cultura Popular, o mais
simbólico evento de sua gestão. De
vez em quando leio especulações a
respeito de quem idealizou o MCP.
Ora, deixemos de rodeios: a idéia
foi de Miguel Arraes de Alencar.
Logo na primeira semana depois
de empossado, forneceu-me um
inventário elaborado por seu amigo Jorge Melo, dirigente esportivo
no Recife.  Ali estavam listadas as
sedes de pequenos clubes suburbanos. Arraes disse que o seu plano
era criar escolas naqueles e noutros
espaços mantidos pela comunidade: sacristias, salões de culto evangélico, associações de bairro.
Em vários fins de semana, um
grupo de voluntários percorreu os
subúrbios do Recife, localizando
as sedes e conseguindo autorização para a instalação de unidades
de ensino. O levantamento permitiu ao MCP, nesta área sob a
liderança de Anita Paes Barreto,
montar uma rede que em menos
de dois anos chegou a 200 escolas
isoladas e grupos escolares, com
20 mil alunos.
Também no âmbito do Movimento, Paulo Freire criava uma
nova pedagogia para alfabetização
de adultos. Norma Coelho e Josi-
Prefeito e logo em seguida governador, eleito sob intenso fogo
do conservadorismo. Na formação
do secretariado, um episódio que
exemplifica a sua habilidade. Estou contando o caso pela primeira
vez. João Guerra e eu estávamos
escolhidos para integrar o primeiro escalão de governo. Guerra, secretário da Fazenda, eu, secretário
particular do governador. Para a
Secretaria de Saúde Arraes escolhera o deputado Ferreira Lima Filho, do PSD, e não Miguel Newton
Alencar, nosso candidato ao posto,
jovem médico integrante de equipe séria, que definira um plano de
saúde pública. Dessa equipe faziam
parte os médicos caruaruenses Vital Lira e Francisco Santino. Guerra
e eu, num gesto de imaturidade, entregamos os cargos antes da posse.
Arraes ouviu com atenção
nosso protesto e falou pacientemente de sua escolha. Precisava
de apoio na Assembléia Legislativa, garantia que Ferreira Lima
poria em prática o sistema elaborado pela equipe médica. Esperava compreensão. Com a nossa
arrogância juvenil, insistimos.
Depois de esgotar os argumentos
políticos, ele saiu da sala. Madalena, sua segunda mulher, mandou
servir cafezinho aos dois rebeldes
sem causa. Pessoa culta, educada,
e boa conhecedora do estilo do
marido, fez um pouco de sala. Comentou amenidades, até que ele
reapareceu com uma argumentação irrefutável, que tento aqui reconstituir de memória: “Admitamos que vocês estão certos e que
eu tenha cometido um erro. Não
devo, porém, revogar o convite
que fiz a um parlamentar aliado.
Suponho que tenha sido este um
primeiro erro, pois vocês, meus
amigos, jamais reclamaram. Agora pergunto: que amigos são esses,
que depois do único erro de um
amigo, agem de forma rancorosa
e intransigente?”. Entreolhamonos, pedimos desculpas, ficamos
no governo.
Cartas de Agosto
na Godoy elaboravam a respectiva
cartilha, Abelardo da Hora ensinava desenho a jovens de baixa renda. Joacir Castro montava grupos
de teatro. Paulo Rosas e Germano
Coelho repensavam o Brasil e sua
cultura. Outros, muitos outros,
trabalhavam no plano artístico e
conceitual. Lamento não haver
espaço para nominá-los. Na base
de tudo, a militância cotidiana dos
estudantes e a decisiva inspiração
do prefeito.
Muito já se escreveu sobre
o seu primeiro governo, quando
viabilizou o chamado Acordo do
Campo, que gerou repentinamente gigantesca e inédita onda de
consumo alimentar nos estratos
sociais abaixo da linha de miséria.
Uma revolução sem armas, interrompida em 1964 pela força das
metralhadoras, tanques e fuzis.
Veio esse golpe, aconteceu o
que todo mundo sabe. Em 1969,
13
Evaldo Costa (Org.)
Arraes exilado na Argélia, fui a
Paris, onde ele passava uns dias.
Seu filho José Almino esperou-me
no aeroporto, deixou-me no hotel
para descansar um pouco. Três horas depois reapareceu com o pai.
Arraes abraçou-me fortemente.
Trazia uma garrafa de uísque para
festejar o reencontro. Fomos para
a casa de Violeta (sua irmã) e Pierre Gervaiseau. Em longa conversa,
que entrou pela noite, passamos
em revista a situação brasileira.
Contei que participava de um grupo de jornalistas em São Paulo que
editava clandestinamente o jornal
Resistência, distribuído por baixo
das portas, durante a madrugada.
14
Mostrei o pequeno exemplar
de quatro páginas. Interessou-se vivamente, promoveu uma conversa
com Marcio Moreira Alves, buscando ampliar as dimensões do jornaleco. Não deu em nada essa conversa,
porque Marcito limitou-se a palpites
editoriais. Tive com Arraes um segundo encontro antes que ele regressasse para o seu desterro em Argel e
eu ao Brasil já mergulhado nas sombras do AI-5. Deu-me um exemplar
do seu livro Le Brésil- le peuple et le
pouvoir, editado por François Maspero. Dedicatória: “Ao Aluízio, na
esperança de que essas reflexões
possam animar o debate dos problemas do nosso povo e que o debate
aclare os caminhos que a nossa ação
deve abrir para a libertação do Brasil – e também com a amizade e um
abraço do amigo de sempre Miguel
Arraes. Paris, 28/06/69”.
Dez anos depois, fim do AI-5.
Retorno dos exilados. Encontramonos aqui em São Paulo, quando lhe
disse que estava longe da política,
embora com as mesmas convicções
da vida inteira. Compreendeu, falou
dos seus planos para a unificação
do arco democrático. Em 1986, a
recuperação, pelo voto, do mandato
arrebatado pela força. Colaborei de
longe. Passo a palavra a Eurico Andrade, que assim registrou o que fiz,
em seu depoimento no livro A vitória de Arraes, organizado por Antonio Lavareda:
[...] “Melhor foi o uso das imagens do trem na tevê, acopladas
com a música Ele está voltando. A
idéia de usar a música de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro
tinha sido de Helmut, um redator
da CBBA-Propeg, mas a nova letra
não estava suficientemente emocionante. Liguei para Aluízio Falcão,
antigo colega de política, de jornalismo, de publicidade e de mesa
de bar, ex-secretário de Arraes e
velho combatente esquerdista de
Pernambuco que saiu do Recife no
golpe junto com todos nós. Aluízio
fez uma paródia linda, magnífica,
com o toque adequado de emoção. Krause atribuiu letra e música
a Chico Buarque e eu só desmenti
depois da eleição, que não era burro pra desmentir, nem Aluízio era
estúpido para pedir crédito numa
hora daquelas”.
Fui ao Recife assistir à posse.
Dias antes, falei com Arraes em seu
Voltei a São Paulo, onde vivo
há mais de 41 anos, trabalhando
muito, e longe da política. Em 2002,
eu estava assistindo a cobertura da
posse do presidente Lula pela tevê.
De repente a câmera focalizou o
plenário do Congresso e lá estava
Miguel Arraes de Alencar, em marcha para os seus 90 anos. Estava de
pé, sozinho, com um sorriso tranqüilo. Vontade muita de levantarme da poltrona, entrar pela tevê
adentro, e abraçar o amigo com o
afeto de sempre. Mas logo a câmera
se deslocou para outros líderes, outras multidões, outros tempos.
Cartas de Agosto
escritório político, ele brincando
com a minha “carreira” de compositor e o sucesso do jingle de campanha: “Vai ficar mais conhecido
que o candidato”. Convidou-me
para ir à sua casa: “Isso aqui é um
enxame de gente”. Fiquei de ir, não
fui. Estive em Palácio no dia da
posse, mas não me aproximei dele.
O “enxame” era bem maior. Curti a
emoção com as poucas pessoas do
meu tempo: Maximiano Campos,
Tânia Bacelar, Têca Calazans, Miguel Newton, José Almino.
Aluízio Falcão é colunista
de O Estado de S. Paulo.
Fonte: revista Caruaru Hoje
15
Morreu Arraes?... Não,
Arraes está vivo! Vive entre nós!
Amparo Araújo
Carlos Eugênio, tal qual Arraes, ao voltar do exílio, não estacionou no tempo. Poeta e músico,
gravou CDs, escreveu os livros
Viagem à Luta Armada e Nas trilhas da ALN. Hoje, com armas que
não matam nem ferem, milita no
PSB, ao lado de Arraes, intensamente nos últimos tempos.
Sob a ponte, o rio Capibaribe, que quer dizer rio das capivaras. Hoje, capivaras já não há, foram exterminadas, como querem
exterminar nossos sonhos. Não
conseguirão.
As águas deslocam-se barrentas, turvas, mas quem liga para
as aparências? Nossos corações e
nossas almas querem enxergar é a
direção das correntes. Com a sabedoria daquele que nos guiou até
agora, encontraremos no azul das
ondas o rumo e prumo.
Na rua da Aurora, aurora não
há; estamos ao entardecer, ao entardecer do dia e das nossas vidas,
apenas nos olhamos. No alto de
um prédio, um senhor segurava
um cartaz com dizeres, apenas uma
pomba branca lhe fazia companhia,
a pomba branca e o céu azul, infinito, como nossa vontade de viver
e reviver.
Naturalmente, como humanos
que somos, igual a Severino, personagem de João Cabral de Melo
Neto, ao ver o rio, sentimos medo
de não cumprir nosso destino, o de
mudar o mundo. Nossos corações
se apertam, nossas mãos também,
essa é a senha... não vamos desistir.
Não falamos nada, nossas mãos entrelaçadas, sentiam intensamente
como a vida é severina.
O monumento Tortura Nunca Mais, raios de sol para nos fazer
refletir sobre o que dizer ou não
dizer, sobre o que fazer ou não
fazer. Resolvemos pensar juntos o
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
F
izemos o percurso que liga o
Palácio do Campo das Princesas ao Cemitério de Santo Amaro, passando pela ponte
[Princesa Isabel], rua da Aurora,
monumento Tortura Nunca Mais,
ao entardecer, de mãos dadas, eu
e o único Comandante da Ação
Libertadora Nacional sobrevivente da resistência contra a ditadura
militar.
que não poderíamos dizer e o que
não poderíamos deixar de fazer.
Não poderíamos dizer que
encerrava-se um capítulo de nossa História, seria muito pouco,
ele, longevo e coerente, viveu vários capítulos de nossa História;
Não­poderíamos pensar no
nosso partido, o PSB, do qual ele
era o ponto de equilíbrio, e demonstrar nossas preocupações
quanto ao que virá, Arraes ultrapassava as fronteiras dos partidos;
Evaldo Costa (Org.)
Não poderíamos lamentar,
como nordestinos que somos,
pela perda de um de nossos irmãos mais destacados na política,
ainda seria pouco, ele foi marcante para gente de todas as regiões
de nosso país;
18
Preferimos pensar e lembrar
de Miguel Arraes de Alencar como
uma mistura de tudo isso, e mais:
morreu um brasileiro preocupado
com os outros brasileiros, um humanista que sonhava com as transformações em nosso Brasil.
Temos orgulho de ter trabalhado e militado com Miguel Arraes, quanto ao que vamos fazer, não
temos dúvida, continuaremos a sua
luta que é a luta de todos nós brasileiros comprometidos com a ética,
a coerência e a conquista da paz.
Amparo Araújo é fundadora e atual
presidente do Movimento Tortura
Nunca Mais/PE (Artigo escrito com
colaboração de Carlos Eugênio).
Fonte: JC Online
Adeus ao guerreiro
do povo brasileiro
M
ais de 15 mil pessoas passaram, no fim de semana,
pelo velório do deputado
federal e presidente nacional do
PSB, Miguel Arraes, no Palácio
Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco. O enterro
foi por volta das 18h no cemitério
de Santo Amaro, no Recife. O corpo de Arraes foi levado em carro
aberto do Corpo de Bombeiro até
o cemitério. O trajeto (1,5 quilômetro) durou cerca de 40 minutos.
Durante o cortejo, as pessoas cantaram ‘’Arraes, guerreiro do povo
brasileiro’’ e o hino nacional.
Na saída da sede do governo, ao
som do Pai Nosso, todos aplaudiram
e acenaram com chapéus de palha,
bandeiras do MST e da Federação
dos Trabalhadores na Agricultura.
Pouco antes foi realizado um culto
ecumênico com a participação de familiares, que fizeram questão de Arraes ser enterrado em cova simples,
coberta com grama. Na lápide: ‘’O
homem marcado pelas duas mãos
e o sentimento do mundo’’, lembra
poema de Carlos Drummond de
Andrade, citado por Arraes na volta
do exílio em 1979.
O presidente Luiz Inácio Lula
da Silva foi aplaudido por populares quando chegou, às 9h45, ao
Palácio do Campo das Princesas
em companhia dos ministros Ciro
Gomes, Dilma Roussef e Agnelo
Queiroz. Estavam também o portavoz da Presidência, André Singer; o
presidente da Infraero, Carlos Wilson Campos; o governador de Pernambuco em exercício, Mendonça
Filho; e o prefeito do Recife, João
Paulo. O presidente permaneceu
cerca de 1 hora e voltou à Brasília.
Nesse meio tempo, Lula desabafou
com alguns parlamentares, dizendo
estar se sentindo mal e muito machucado com a crise.
A cúpula nacional do PSDB
foi representada pelo governador
de São Paulo, Geraldo Alckmin,
e pelo prefeito da capital paulista,
José Serra, acompanhados pelo senador Sergio Guerra e pelo deputado Raul Jungmann (PPS).
A liderança popular de Arraes
foi reconhecida. Cerca de 20 caravanas de trabalhadores rurais foram
ao Recife prestar homenagens ao
deputado. A primeira, com 50 trabalhadores rurais, do município de
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Ângelo Castelo Branco
Caruaru, no agreste de Pernambuco,
chegou por volta do meio-dia.
Evaldo Costa (Org.)
O presidente da Infraero,
Carlos Wilson, explicou que um
dos programas lançados pelo exgovernador foi o Chapéu de Palha,
para possibilitar, na entressafra da
indústria açucareira, o emprego
da mão-de-obra ociosa na recuperação de estradas e escolas. Fruto
de tal empenho, no fim do velório,
400 camponeses, com chapéu de
palha, caminharam até o palácio
para se despedir de Arraes – “nosso maior aliado”.
20
A família de Arraes – que deixa 10 filhos – recebeu pesar do presidente de Cuba, Fidel Castro, que
também enviou uma coroa de flores ao velório. Em sua declaração,
Fidel assinalou que foi com grande
tristeza e consternação “que recebemos a infausta notícia da morte
do nosso amigo e companheiro de
luta antiimperialista, Miguel Arraes de Alencar. Sua vida política o
consagrou por inteiro a favor dos
humildes e despossuídos, tanto do
seu estimado Nordeste brasileiro
como do resto do Brasil, que foi
interrompida momentaneamente
quando era governador do Estado
de Pernambuco por conta do golpe
militar de 1964. Seu exemplo servirá de estímulo para as gerações
atuais e futuras do Brasil e América Latina. Sempre recordaremos
sua atitude valente, solidária com
o nosso povo e a revolução”.
O cantor Caetano Veloso
acompanhou o cortejo. Ele disse
ter conhecido Arraes no exílio e
desde então mantém relação afetiva com a família. Para ele, Arraes
deixa exemplo de integridade na
vida pública. Caetano participa de
um documentário sobre o político, que está sendo feito pelo seu
filho, o cineasta Guel Arraes. A
produtora Paula Lavigne, a pedido
de Guel, gravou cenas do velório e
do enterro para o filme.
Surpreendido com a notícia da morte de Arraes em plena
apresentação de folclore regional,
ao vivo pela TV, o compositor popular Getúlio Cavalcanti versou
de improviso: ‘’O Sertão é só tristeza/ O povo perdeu a paz/ Corre
o pranto em correnteza/ Lá se foi
Miguel Arraes’’.
Ângelo Castelo Branco é jornalista.
Fonte: Jornal do Brasil
Rosas vermelhas
Arthur Carvalho
A igreja está superlotada, mas
não faz calor – pelas portas laterais, sopra a brisa fresca do mês de
agosto, que vem da Península de
Itapagipe e do Porto dos Tainheiros. Do púlpito, o padre prega o
Evangelho, em linguagem simples
e direta, prendendo a atenção dos
devotos, quase hipnotizados por
ele. Demonstração de fé que impressiona, emociona e contagia até
incrédulos e agnósticos. Alguns
tiram o terço, com olhar fixo na
imagem do Senhor do Bonfim,
entronizada no altar-mor. De repente, Roberto Koch se aproxima
e segreda ao meu ouvido: “Miguel
Arraes morreu”.
Por mais que saibamos da
gravidade do estado de saúde de
uma pessoa a quem admiramos,
recebemos, com surpresa e chocados, a notícia de seu falecimento – no íntimo, torcemos por sua
recuperação. Desci as escadas da
igreja, respirei fundo e saí andando em direção a Monte Serrat.
Era um dia claro, de céu azul
e sol amarelo, navios petroleiros
fundeados na Baía de Todos os
Santos aguardavam a vez de atracar para abastecer na refinaria de
Aratu. Do Monte Serrat, tomei a
Avenida Barão de Cotegipe e segui, a pé, até o Cais do Porto. Entrei no Mercado Modelo, virei um
conhaque, subi o Elevador Lacerda e sentei num banco do Belvedere. Pensei em telegrafar para
Ana Lúcia e Tonca, mas desisti, e
fiquei ali, estático, no Belvedere.
Fitando a Ilha de Itaparica,
defronte, me lembrei de um almoço em Boa Viagem, com parentes
meus, e um deles, ainda jovem,
perguntou a meu filho Eduardo
por que ele só se referia a Arraes,
num encontro tão intimo, como
sendo “Dr. Arraes”, não fazendo o
mesmo quando mencionava outros políticos. Eduardo respondeu
que nem todo político tinha a história de Arraes.
Tomei outro conhaque e prossegui caminhando até o Pelourinho,
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
E
stou assistindo à missa na Basílica do Bonfim e observo os fiéis
ao meu redor. São homens e
mulheres das mais diversas idades,
cor, raça e classe social, orando, sérios e contritos.
entrando num bar onde, certa noite,
fiz uma farra com Waldick Soriano.
No bar, encontrei Marcelo Gomes,
filho de Orlando Gomes, e Dudu
Catharino, filho de Luís Catharino.
E a conversa girou sobre os grandes
políticos que o Brasil teve, porque
a hora era de pesar pelo desaparecimento de um deles. Falou-se em
João Mangabeira, Afonso Arinos
de Melo Franco, Joaquim Nabuco e
no Visconde de Mauá. Tememos o
(incerto) futuro do País, e os sinos
da catedral dobraram. Resolvi visitar o Axé Opô Afunjá, no Cabula,
e de lá estiquei até o Bate-Folha, na
Mata Escura do Retiro. Sozinho,
como faço nessas ocasiões.
Evaldo Costa (Org.)
Ao anoitecer, peguei um táxi,
regressei ao Pituba Plaza Hotel,
adormeci exausto. No dia seguinte, li o editorial do jornal A Tarde, sobre Arraes, e me lembrei de
uma vez em que fui entrevistado
pela Veja para revelar certos epi-
22
sódios acontecidos no Recife, durante o golpe de 64. No meio da
entrevista, disse ao repórter que
alguns detalhes seriam mais bem
explicados por Arraes, tendo o
jornalista me respondido que já
tentara obtê-los, mas o ex-governador se recusara a tocar no assunto. Miguel Arraes de Alencar
não guardava brasas em pote nem
ressentimentos pessoais. Tão bela
quanto o editorial de A Tarde foi
a coroa de rosas vermelhas enviadas por Fidel Castro à família do
lendário cearense. Morre o homem, fica a fama. Ou o mito.
Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é membro da Academia
Olindense de Letras.
Fonte: Jornal do Commercio
Arraes e a fraternidade
dos inconformados
N
o último sábado a esquerda brasileira perdeu um
dos seus líderes mais importantes. Um homem cuja vida
se vinculou intimamente às causas populares, democráticas e nacionalistas. Talvez ele tenha sido
o último sobrevivente daquela
plêiade de políticos que nas décadas de 1950 e 1960 sonharam em
construir um país soberano e ao
mesmo tempo mais justo para seu
povo. Um sonho abruptamente interrompido pelo golpe militar de
1964. Hoje o pavilhão nacional e a
bandeira vermelha do socialismo
estão à meio-pau em homenagem
a esse insigne brasileiro chamado
Miguel Arraes de Alencar.
Arraes nasceu em 1916, numa
pequena cidade do interior do Ceará chamada Araripe, divisa com
os estados de Pernambuco e Piauí.
Filho de classe média empobrecida, com muito esforço conseguiu
cursar a conceituada Faculdade de
Direito do Recife. Após sua formatura foi trabalhar no Instituto do
Açúcar e do Álcool.
Em 1948 iniciou sua atuação
na vida política, quando foi indicado pelo governador de Pernambuco, Barbosa Lima Sobrinho, para
o cargo de secretário estadual da
Fazenda. Ali se destacou por suas
qualificações técnicas e políticas.
Por isso, dois anos depois, acabou
sendo eleito deputado estadual
pelo Partido Social Democrático.
Conseguiu um segundo mandato em 1954 e entrou em choque
aberto com o novo governador,
general Cordeiro de Farias. Este
havia sido eleito com o apoio dos
coronéis do Sertão e Agreste – e se
destacava pelo seu anticomunismo.
Formou-se, então, um amplo movimento de oposição assentado nos
setores urbanos – operários, classe
média e burguesia industrial.
Aproveitando-se de um novo
aumento nos impostos estaduais,
os industriais e comerciantes de
Recife reagiram com um lockout,
fechando quase todas fabricas e
lojas. À frente deste protesto, que
tinha apoio da esquerda, estava o
industrial-usineiro Cid Sampaio,
ligado à UDN. Um editorial do
jornal comunista Folha do Povo
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Augusto Buonicore
afirmou: “Trata-se de uma luta
que interessa também aos trabalhadores, pois a formação de
maior número de núcleos industriais fará crescer novos e poderosos contingentes de operários,
que se constituirão em novas
forças para ampla luta pela nossa
emancipação econômica, política
e social”.
Evaldo Costa (Org.)
O mesmo Cid Sampaio, em
1958, encabeçou uma coligação
de forças oposicionistas para a
eleição do governo do Estado. O
próprio Prestes, recém-saído da
clandestinidade, foi fazer a campanha em Pernambuco. Milhares
de recifenses foram às ruas assistir ao encontro histórico entre o
líder dos usineiros e o mais famoso líder comunista brasileiro. Este
parecia ser o melhor retrato da
política de união nacional – entre burgueses e operários – contra
as oligarquias feudais. Estávamos
naquela época sob o signo da Declaração de Março de 1958, um
dos pivôs da cisão dos comunistas
brasileiros.
24
A resposta da reação pernambucana foi imediata. O arcebispo de Olinda e Recife declarou:
“Candidatos que adotam princípios ideológicos e ações contrárias à doutrina da Igreja não
poderão receber os votos dos católicos. Nem mesmo aqueles que,
apesar de oriundo de uma família
católica, tornam-se um mero instrumento dos vermelhos e sobe
aos palanques em comícios promovidos por líderes comunistas
cujas mãos estão manchadas de
sangue”. De nada valeu a condenação da Igreja, Cid ganhou por
mais de 100 mil votos.
Arraes comandou a campanha no interior do Estado e acabou se descuidando de sua própria
candidatura à reeleição. Ele não se
elegeria, mas como retribuição foi
chamando para dirigir novamente
a secretaria da Fazenda estadual.
No ano seguinte já era candidato
a prefeito de Recife pelo minúsculo Partido Social Trabalhista. Sua
candidatura se tornou expressão
de uma ampla frente política que
ia da UDN até o Partido Comunista do Brasil. Isso lhe garantiu
uma votação expressiva e impôs
outra derrota fragorosa das oligarquias pernambucanas. Corajosamente indicou dois notórios comunistas para o seu secretariado:
Hiram Pereira e Aluísio Falcão,
respectivamente secretários de
Administração e de Cultura.
Um de seus programas mais
importante foi intitulado Movimento de Cultura Popular, cujo
principal objetivo era a massificação da alfabetização de adultos. Foram produzidas e distribuídas milhares de cartilhas que traziam na
sua primeira lição a frase: “O voto
pertence ao povo” e em outra “Um
trabalhador, num sindicato de trabalhadores, é um homem forte”. O
MCP organizou outras atividades,
Durante a campanha presidencial de 1960, Arraes e Cid
Sampaio se desentenderam politicamente. O primeiro apoiou
o Marechal nacionalista Teixeira
Lott e o segundo, Jânio Quadros.
Contra a vontade de Cid Sampaio, em 1962, Arraes foi lançado
candidato ao governo do Estado,
novamente pelo PST. Seu maior
concorrente foi João Cleofas,
apoiado por Cid Sampaio. Arraes,
novamente, teve o apoio dos trabalhistas, socialistas, comunistas
e das Ligas Camponesas, dirigidas
por Francisco Julião. A disputa
interoligárquica levou que parte
do PSD decidisse por uma aliança
com a esquerda e indicasse Paulo
Guerra como candidato a vicegovernador na chapa de Arraes.
A direção do PSD tentou
ainda impor uma condição para
seu apoio integral: Arraes deveria assumir o compromisso de
não nomear nenhum comunista
para o seu governo e tranqüilizar os setores conservadores. Ele
respondeu: “Não assumo compromisso dessa ordem. Se eleito
governador do Estado, escolherei
livremente o meu secretariado”. O
Partido então liberou seus correligionários.
Arraes enfrentou uma dura
campanha. Seus opositores eram
apoiados pelo Instituto Brasileiro
de Ação Democrática, que investiu milhares e milhares de dólares
para derrotá-lo. Montou-se uma
grande campanha anticomunista
tentando atingi-lo. Chegaram a
construir uma réplica do Muro de
Berlim em pleno centro de Recife.
Panfletos apócrifos mostravam
Arraes ajoelhado e rezando com
um rosário de foices e de martelos. O sociólogo conservador
Gilberto Freyre comandava os
ataques contra as ligações de Arraes com os comunistas pernambucanos.
Cartas de Agosto
como um festival de cantadores
que teve como tema “A terra pertence àqueles que nela trabalham”
e uma exposição fotográfica sobre
a Albânia socialista, que já estava
em turras com a URSS.
Arraes venceu a eleição por
apenas 13 mil votos. No Rio de
Janeiro o candidato derrotado
anunciou: “O comunismo tomou
conta de Pernambuco”. Um evidente exagero, mas o fato era que
a esquerda estava, pela primeira vez, no comando político do
Estado. Arraes respondeu assim
as críticas que lhe faziam: “Os
poderosos sabem que não sou
comunista e não temem meu esquerdismo. Temem outra coisa, a
unidade do povo”.
No seu discurso de posse, em
janeiro de 1963, afirmou: “Que
ninguém se iluda: assim como
não conseguiram me transformar
em agitador e incendiário, também não conseguiram e jamais
conseguirão me transforma em
bom-moço, acomodado aos privi25
Evaldo Costa (Org.)
légios que sempre combati e posso agora mais e melhor combater
no governo do Estado”. Ele diz fazer parte de “uma espécie de fraternidade dos inconformados: inconformados com a miséria, com
a fome, com o atraso, com o analfabetismo. Inconformados com a
condição de país subdesenvolvido e atrasado”. E contra Gilberto
Freyre arrematou: “Fraternidade
dos que lutam contra o falso culto
do passado e da tradição, em que
ainda se comprazem intelectuais
saudosistas, muito mais interessados na manutenção do status quo
que em qualquer outra coisa. Para
esses, a tradição significa o povo
na senzala e eles na casa-grande”.
26
Ao assumir o governo fez algo
inédito: deu ordem para que a polícia não se envolvesse nos conflitos
entre camponeses e proprietários de
terra. Ou seja, a força pública não seria mais utilizada como instrumento
de repressão ao movimento social.
Arraes também pressionou os usineiros para que pagassem o salário
mínimo e os direitos constantes da
nova legislação voltada à defesa do
trabalhador rural. Sob cobertura do
poder público estadual os sindicatos
rurais e as greves proliferaram. Em
resposta a um artigo pago publicado
pelos latifundiários, que apresentava uma lista de supostos atos de
violência praticados pelos camponeses, Arraes mandou publicar no
mesmo espaço uma lista de crimes
cometidos pelo latifúndio contra os
trabalhadores.
O novo governador manteve e
ampliou sua atuação na área de educação, passando a adotar o revolucionário método de alfabetização de
adultos criado por Paulo Freire, que
se tornaria uma referência mundial.
Assim uma verdadeira revolução se
operou na política pernambucana.
As principais associações
empresariais responderam decretando lockout contra a suposta
insegurança reinante no Estado,
os usineiros retiraram o açúcar
do mercado. Arraes afirmou: “Fiquem certo de que a ordem será
mantida. Não a ordem da minoria, mas a ordem do povo, a ordem que o povo estabeleceu neste
Estado” e mandou confiscar mais
de 40 mil sacas da Cooperativa dos Usineiros. “Os donos da
terra – continuou Arraes – estão
subvertendo a ordem, praticando
arbitrariedades e violências, por
não terem ainda se acostumado
com a idéia de que no governo
não está um deles, para oficializar
a violência e encarcerar os que reclamam direitos como até pouco
acontecia”.
A luta de classes atingiu níveis explosivos e a oposição direitista começou a estocar armas
e se preparar militarmente para
o confronto com as forças democráticas e populares e derrubar o
governo Arraes. Seu velho aliado
da UDN Cid Sampaio liderava a
conspiração. Caixas de metralhadoras começavam a chegar clan-
to o centro de Recife. Argumentou-se que se tratava de simples
manobras.
Em maio de 1963, numa atitude ousada, Arraes rompeu com
a Aliança para o Progresso, patrocinada pelos Estados Unidos. Argumentou que os acordos que passavam ao largo do governo federal
atentavam contra a soberania e a
segurança nacionais. No mesmo
ano a esquerda, com dificuldades,
conseguiu eleger novamente o socialista Pelópidas Silveira para a
prefeitura de Recife. Isso fortaleceu a idéia do lançamento de Arraes para vice-presidente da República em 1965.
Apesar das divergências com
Jango, Arraes se engajou com todas as suas forças na campanha
pelas reformas de base. Ele foi um
dos principais oradores do grande
comício da Central do Brasil, realizado no dia 13 de março de 1964.
Naqueles dias Arraes já sentia o
cerco da reação se fechando sobre
o governo e as forças populares.
A partir daí surgiram os primeiros conflitos políticos entre
Arraes e Goulart. Quando em outubro de 1963, o presidente requereu que o Congresso decretasse
Estado de Sítio, Arraes temeu que
isso fosse utilizado para destituílo do governo. Acreditava que o
presidente aproveitaria a ocasião
para matar dois coelhos com uma
única paulada: desalojar o governador direitista da Guanabara,
Carlos Lacerda, e também seu
adversário de esquerda, Miguel
Arraes. Existia, na ocasião, uma
forte pressão para uma intervenção federal no estado, argumentando-se o perigo de insurreição
no campo. Estranhamente, no dia
que Arraes faria o seu discurso
contra o Estado de Sítio, tropas
do IV Exército tomaram de assal-
Cartas de Agosto
destinamente ao Estado. Existiam
informações que agentes da CIA
estavam infiltrados em toda parte.
Numa entrevista, realizada tempos depois, afirmou: “Eu
sabia que o golpe iria acontecer
porque estive no comício de 13 de
março de 64 na Central do Brasil,
no Rio de Janeiro. De lá fui para
Juiz de Fora participar de uma
concentração, e quase não consigo discursar, porque existiam 200
homens civis armados nas ruas.
Eles eram comandados por um
cidadão chamado Adão Rafael,
que, acho, era deputado, sustentado pelo general Olympio Mourão [...] No dia 17 ou 18 de março
conversei com Jango e disse a ele
que o golpe estava na rua”.
Na madrugada de 31 de março começou o movimento militar que derrubaria o governo
constitucional de João Goulart.
Em Pernambuco o IV Exército
imediatamente tomou o lado dos
conspiradores. Querendo evitar
conflitos armados, Arraes deu
ordens para que a polícia militar
permanecesse nos quartéis. Mas,
27
muito sangue haveria de correr
pelas ruas do Recife. No dia seguinte uma manifestação de estudantes tomou as ruas da capital
do Estado gritando o nome de Arraes. As tropas reprimiram à bala
e mataram três estudantes. Estas
foram as primeiras vítimas fatais
da ditadura que se implantava.
Evaldo Costa (Org.)
No início da tarde um grupo
de militares se dirigiu a sede do governo e pediu que Arraes o abandonasse. Arraes respondeu: “Não
concordo em ser deposto. Recebi
meu mandato do povo e somente
ele poderá tirá-lo de mim. Permanecerei aqui, com minha família”.
À noite os militares voltaram e decretaram sua prisão. Ele foi conduzido até o Quartel de Socorro, em
Jaboatão dos Guararapes, e em seguida enviado para ilha-prisão de
Fernando de Noronha, onde permaneceu por longos onze meses.
28
Poucas horas depois da prisão, a Assembléia Legislativa,
cercada por tropas, aprovou por
47 votos contra 17 a destituição de Arraes. A argumentação
foi de que na situação que ele se
encontrava não poderia exercer
suas funções. No dia seguinte seria a vez do prefeito de Recife ser
destituído e preso. Novamente se
repetiu o mesmo ritual “democrático” e a Câmara dos Vereadores
desta vez por 20 votos a 1, decidiu
retirar-lhe do cargo.
A repressão invadiu a sede
do Serviço de Extensão Cultural
da Universidade Federal, dirigido
por Paulo Freire. Este seria preso
alguns meses depois. Todos os
programas sociais foram destruídos e centenas de pessoas presas.
O Palácio Episcopal foi invadido e o recém-empossado bispo
de Olinda e Recife, Dom Hélder
Câmara, telefonou para o comandante do IV Exército, general Justino Bastos, e reclamou que aquilo não eram as boas-vindas que
esperava.
Meses depois Arraes foi
transferido para o Rio de Janeiro
e ficou preso na Fortaleza de Santa Cruz, até que no início de 1965
um habeas corpus veio libertá-lo.
Ameaçado por novas prisões entrou na clandestinidade e se exilou na embaixada da Argélia, país
no qual acabou permanecendo
por 14 anos.
Somente em 1979 pôde retornar ao Brasil. No dia 16 de
setembro chegou ao Recife e foi
recepcionado por mais de 50 mil
pessoas. Imediatamente se engajou no movimento oposicionista
e, em 1982, elegeu-se deputado
federal com a maior votação do
Nordeste. Entre 1984 e 1985 esteve à frente da campanha das Diretas Já! e em defesa dos candidato
único das oposições no Colégio
Eleitoral.
Em 1987 voltou a ocupar a
cadeira no Palácio das Princesas
da qual havia sido retirado pelos
golpistas de 1964. No ano de 1990
Nestes dias, todos os membros da grande “fraternidade dos
inconformados”, que hoje já for-
mam legiões, choram a perda de
um de seus mais fiéis e diletos
membros. Choram, mas carregam
no peito a persistente esperança
de que os que se nutrem no culto
do passado – e pretendem manter o povo na senzala, enquanto
desfrutam das benesses da casagrande – não sairão vencedores
nos grandes conflitos políticos e
sociais que se anunciam.
Cartas de Agosto
ingressou no PSB, partido do qual
se tornou presidente. Seria eleito
pela terceira vez governador por
uma diferença superior a 300 mil
votos. Foi um crítico ardoroso do
neoliberalismo, por isso mesmo
se colocou no campo de oposição
a Collor e FHC. Em 1998 tentou
sua quarta eleição ao governo de
Pernambuco, mas foi derrotado.
Em 2002 participou ativamente da
terceira campanha de Lula e se elegeu novamente deputado federal.
Morreu apoiando o governo que
ajudou a eleger.
Augusto Buonicore é historiador e membro do Comitê
Central do PCdoB.
Fonte: www.vermelho.org.br
29
Mito
Bernardo Arraes Valença
Tua presença me faz falta
quando entrava em alto mar
quando deitava na rede
e lia um livro pra descansar
ou quando estava escrevendo
e não podíamos atrapalhar
Tua presença me faz falta
o teu jeito de sonhar
de pensar sempre no melhor
de pensar sempre em ajudar
mais que um avô, era um símbolo
um exemplo para apreciar
Tua presença me faz falta
quando falava “o que é que há?”
o teu abraço apertado
o teu jeito de nos olhar
hoje só restam lembranças,
Miguel Arraes de Alencar
Bernardo Arraes Valença
é poeta, autor de Onomatopéia
do Silêncio (Bagaço, 2007).
Fonte: www.psbpe.org
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Tua presença me faz falta
o sentar na cadeira, o jeito de fumar
as conversas na varanda
que eu, menino, não entendia
mas que, um dia, poderei contar
Arraes, ao morrer, pede
a palavra sobre a crise política
Bernardo Joffily
O luto desce sobre o Sertão, o
Agreste, a Zona da Mata, o Litoral
de Pernambuco, o Brasil. No cabo
da enxada, no carro de boi, na casa
de taipa, na jangada, na palafita,
pois ainda há delas neste país desigual, uma legião incontável chora a morte do homem que virou
mito, a ponto de se ver venderem
nas feiras objetos que ele tocara, tidos como mezinhas infalíveis para
todo tipo de doença.
Uma biografia pede a palavra
A tristeza é mais funda porque a morte Arraes, líder político
de esquerda, eleitor de Lula desde
1989, e na vitória de 27 de outubro
de 2002, encontra o governo Lula e
as esquerdas brasileiras em crise.
É verdade que a onda de denúncias de corrupção apelidada
pela mídia de “mensalão” poupou
o PSB, que o velho sertanejo do
Araripe presidia. Mesmo assim,
do Hospital Esperança, no Recife,
onde lutou contra a morte por 58
dias, Arraes procurava se informar
sobre a crise política sempre que as
condições de saúde o permitiam.
E agora, morto, ele de alguma forma pede a palavra e intervém no
nervoso debate sobre a crise. Intervém com a sua biografia, com o
seu pensamento, o seu exemplo e
o seu legado.
Ouçamos o que diz. Ele merece ser ouvido.
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
M
orreu Miguel Arraes. O
presidente da República
decreta luto oficial por três
dias e muda a agenda para comparecer ao velório. O senador Antonio Carlos Magalhães rebusca toda
a sua longa trajetória até recordar
um fugaz momento, em 1963, em
que os dois tiveram posições coincidentes. Duzentas mil pessoas
passam pelo velório, no mesmo
Palácio das Princesas de onde Arraes saiu em 1º de abril 1964, preso pelos generais golpistas, e para
onde voltou por mais duas vezes,
eleito governador pelo voto.
Um líder da Experiência Frentista
Pernambucana
Evaldo Costa (Org.)
O cearense Miguel Arraes de
Alencar, morando em Pernambuco
desde a adolescência, ali se projetou como dirigente político – o
mais destacado e emblemático – de
uma concepção e uma prática das
esquerdas que poderiam tomar o
nome de Experiência Frentista Pernambucana. Um experimento que
guarda semelhanças com outras
alianças progressistas, em outros
pontos do Brasil, mas onde se destacam os traços originais, pioneiros,
em muitos sentidos, e cheios de ensinamentos de validade nacional.
34
remotos, o fato é que, a partir dos
anos 50 do século 20, Pernambuco
viveu uma experiência política de
aliança entre forças políticas – comunistas, socialistas, trabalhistas – e sociais – sindicatos, Ligas
Camponesas, movimento estudantil. Após numerosos embates com
o bloco oligárquico-conservador,
memoráveis e cheios de reviravoltas, essa frente chegou ao governo,
pelo voto, na Prefeitura do Recife e
no governo estadual, com Barbosa Lima Sobrinho e a seguir com
Miguel Arraes, na sua primeira e
legendária administração, truncada pelo golpe de 1964.
Seria possível talvez remontar as raízes da Experiência Frentista Pernambucana até a alvorada
da formação nacional brasileira,
até a Insurreição Pernambucana do século 17, que expulsou
do Nordeste os holandeses, sem
apoio da Coroa de Portugal – e foi
uma aliança sócio-político-militar de forças muito díspares, mas
coincidentes na decisão de lutar
para jogar ao mar os ocupantes. A
Revolução Republicana de 1817,
a Confederação do Equador em
1824 e a Revolução Praieira de
1848, todas com epicentro em
Pernambuco, também foram experiências frentistas.
Nos anos 1980, durante o
crepúsculo da ditadura militar,
a experiência pernambucana de
frentes de esquerda ressurgiu em
novas condições. Serviu de base
de apoio para os dois governos de
Arraes (1986 e 1994), e também da
administração municipal recifense
eleita em 1986 com Jarbas Vasconcelos (este mais tarde se passou
para o campo oposto e hoje governa o Estado). Sua trajetória pode
ser acompanhada até as coligações
para as eleições municipais do
ano passado, vitoriosas no Recife,
Olinda e outros municípios.
Trajetória antes e depois do golpe
Quando se examina mais de
perto a Experiência Frentista Pernambucana, constata-se uma considerável dança de siglas e perso-
Havendo ou não uma conexão
histórica com esses episódios mais
Formatos mutantes, conteúdo
coerente
Miguel Arraes foi talvez o
maior artífice, protagonista e
guardião dessa coerência. E também no plano nacional foi um
lutador pela aliança das forças
populares, democráticas e patrióticas, de suas distintas vertentes
– a comunista, a socialista, a trabalhista, às quais se somou mais
tarde a petista.
A eleição de Lula em 2002 foi
a maior vitória já alcançada no Brasil por uma aliança com estes contornos, acrescida ainda por setores
de centro – como, aliás, ocorreu
amiúde na Experiência Pernambucana. No primeiro turno o PSB de
Arraes lançou Anthony Garotinho
como candidato presidencial próprio, por razões circunstanciais, mas
em seguida compôs a aliança para
o segundo turno e a montagem do
governo Lula, enquanto Garotinho
se distanciava.
Onde reside a coerência de verdade
Hoje, um dos mais visíveis
efeitos da crise política é a fragmentação na frente que dá sustentação ao governo Lula, a começar pelo interior do seu principal
partido, o PT, e para a alegria
da oposição conservadora e neoconservadora. E, no entanto,
as forças e personagens componentes desta frente, mais do que
nunca, precisam de unidade. Só
uma visão tão míope como a da
senadora Heloísa Helena pode
conceber que uma possível derrota do governo Lula, pelo bloco
PSDB/PFL, possa redundar em
algum benefício para as esquerdas, ou que alguma força de esquerda, alimentando-se com as
migalhas que caírem da mesa do
conluio oligárquico-conservador,
possa se afirmar às custas da derrota do governo Lula.
Cartas de Agosto
nagens, que à primeira vista pode
confundir. Na disputa estadual
de 1954, por exemplo, o candidato apoiado pelas esquerdas é João
Cleofas, da reacionária UDN, o
mesmo Cleofas que em 1962 seria
derrotado por Arraes. Mas, através desses formatos mutantes e
até extravagantes, há um conteúdo
político-social coerente, de forças
avançadas que se unem, sem perder suas identidades nem ocultar
suas diferenças, e assim se tornam
mais fortes no embate com a direita oligárquica.
Ao morrer, Arraes deixa esta
advertência, escrita com toda uma
vida: o alerta para a necessidade e
a urgência de reconstruir o quanto antes a aliança das forças de
esquerda, plural, contraditória,
mas esteada em sólidos pontos de
unidade e nos imperativos do confronto com a reação.
É aí que reside a coerência de
verdade, aquela que resiste ao teste
implacável do tempo; aquela que
se agiganta nas horas cruciais e difíceis, quando a tropa do general
golpista Justino Alves Bastos cerca
o Palácio das Princesas. Aquela que
35
Miguel Arraes ensinou. Aquela que
todos nós precisamos aprender, e
praticar.
Bernardo Joffily é jornalista
e autor do atlas histórico
IstoÉ Brasil 500 anos .
Evaldo Costa (Org.)
Fonte: www.vermelho.org.br
36
Arraes e o Brasil possível
“Um fantasma ronda a
Europa –
o fantasma do comunismo.
Todas as potências da velha
Europa unem-se numa Santa
Aliança para conjurá-lo: o
papa e o czar, Metternich e
Guizot, os radicais da França
e os policiais da Alemanha
[...]”.
O
cintilante e pobre Karl Marx
e o luminoso e rico Friedrich
Engels assim abriram o livro-manifesto mais importante da
história ocidental contemporânea.
Maus tempos aqueles em que os comunistas eram perseguidos; maus
tempos aqueles em 1964, em que as
forças armadas associaram-se aos
desejos da corte imperial e intervieram com violência para manter
a ordem colonial.
Coleciono antiguidades como
pensar que direita e esquerda ainda
são conceitos operantes, variáveis
com a época. Coleciono sincronicidades também, e me licencio do
desvelo que deve proteger a intimidade para relatar uma ao leitor.
Meu parceiro de trabalho designer
gráfico Walter Mota ligou-me na
manhã do aziago 13 de agosto pátrio para solicitar a revisão urgente
de um livro em reedição, publicado em 1981, tarefa da direção nacional do PSB. Mesmo contrário
ao trabalho em fim de semana, por
razões sólidas entre as quais sobressai a saudável preguiça, senteime para trabalhar pouco antes do
meio-dia. À noite, recebi a notícia
de que Arraes morrera, às 11h40,
no momento em que comecei a
trabalhar no seu livro O Jogo do
Poder no Brasil, panorama da economia do País e análise política
do golpe de 64. O livro, de forma
insuperável e oportuna, abriga
elementos que induzem reflexão a
respeito da crise atual.
Um fantasma ronda o Brasil:
o fantasma do impeachment. Todas
as potências do velho Brasil unemse numa Santa Aliança para conjurá-lo: desde políticos matreiros
de partidos tradicionais até vozes
insuspeitas como as do pensador
Leonardo Boff e do jornalista independente Elio Gaspari. Afora oportunistas da condenação do pecado
alheio, quase ninguém quer que
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Chico Villela
Lula seja defenestrado; há ainda o
consenso de que seria pior para o
País e de que a “governabilidade”
seria posta em risco. Aí está um
conceito digno de análise.
Evaldo Costa (Org.)
O czar tupi, encarnado pelo
melífluo FHC, autoproclamado donatário da tal governabilidade, clama para que os “restauradores da
ética” atenham-se aos fatos atuais e
não se dediquem ao fuçamento de
mazelas anteriores. A ele e ao seu
pequeno grupo interessam o impeachment e uma transição rápida
e turbulenta. Só dessa forma seria
possível jogar fora o bebê (seu passado digno de muitas CPIs) junto
com a água das articulações que
poderiam fazer emergir concorrentes sem prontuário, como Serra.
FHC pretende-se o candidato “natural” para este momento.
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Arraes escreve que o golpe
de 64 (acrescente-se: e também os
governos do medíocre Sarney, do
dúbio Itamar, do lamentável Collor,
do subserviente FHC e do desgovernante Lula) expressou algo mais
profundo: a manutenção da agenda econômica imposta ao país por
interesses externos, e contra a qual
Arraes identifica apenas dois adversários no século: Getúlio e, secundariamente, Jango. Arraes afirma:
“O Presidente Vargas retoma
[em 1950] o seu projeto de reforçar
a burguesia industrial brasileira,
valendo-se mais fortemente do Estado. Cria a Petrobrás, o BNDE e
outros instrumentos destinados a
alargar a autonomia do País, dentro da visão que sempre mantivera,
mas agora de forma mais nítida,
apoiando-se nas massas urbanas
que o haviam eleito. Elevou salários
para alargar o mercado interno e
possibilitar a expansão das indústrias tradicionais, produtoras de
bens de consumo popular.
“Novo golpe que o leva ao
suicídio. Nas análises do seu governo, verifica-se a intensificação
das pressões internacionais destinadas a inviabilizar a política que
desejava desenvolver. [...] Largas
concessões foram feitas, entretanto, por Café Filho, a começar pela
Resolução 113 que possibilitava a
entrada maciça do capital estrangeiro no Brasil. Essa presença, que
se intensificou no governo de Juscelino Kubitschek, não foi suficiente
para liquidar todas as conquistas
anteriores. Entretanto as empresas
internacionais, implantadas com
facilidades excepcionais que lhes
foram dadas, ganharam hegemonia
no setor industrial e aumentaram,
em conseqüência, sua força política
no País.”
O livro inscreve o golpe em
seu contexto de política menor, porém necessária aos donos do Império perante a ameaça da União Soviética e seus aliados, mas sempre
na perspectiva de que esse alinhamento militarizado, estimulado à
exaustão sob a vigência da doutrina
de segurança nacional, tinha a função principal de garantir que a eco-
De saída, Arraes descarta
soluções parciais e aponta para
um complexo articulado de campos em que a intervenção pró-nacional se faria necessária: “Há um
impasse que afeta a vida do País,
na sua globalidade. Não se trata
de dificuldades políticas que meras
negociações poderiam remover. O
impasse atinge todos os planos. É
inútil separá-los, na esperança de
que as coisas melhor se resolveriam cuidando de cada plano a seu
tempo. O cultural, o econômico, o
social, o político, o militar formam
um todo indivisível”.
Ao contemplar os movimentos internos do sistema instaurado
em 1964 e suas alterações, Arraes
identifica um núcleo permanente
e duro: a política econômica, e
reconhece as mudanças impostas
pelas iniciativas traduzidas em
megaprogramas:
“No plano econômico, o regime tem conseguido vender também
a idéia de ‘avanço’. O País dispõe
de uma infra-estrutura incomparavelmente mais bem montada do
que antes, estradas, sistema de comunicação moderno. Cresce o valor da produção de manufaturados
em relação ao dos bens primários.
Dizer o contrário – insistem – seria
negar a evidência. Acontece que a
aceitação da premissa condiciona
o pensamento, fecha o círculo de
giz dentro do qual se deverá girar
forçosamente. Já que há ‘avanço’ e
desde que os rumos da economia
estão inapelavelmente definidos,
restaria discorrer sobre medidas
circunstanciais que podem ou não
ser tomadas. Se coincidem com as
do governo ou delas discordam,
pouco importa. Não alteram os rumos do ‘capitalismo avançado do
ponto de vista produtivo’, implantado no País”.
Cartas de Agosto
nomia e seus condutores permanecessem a serviço dos seus ditames
e entregassem obedientemente os
mercados às suas fabricações e as
matérias-primas vitais à manutenção da sua produção.
Essa visão rósea lembra certos
ministros que hoje enaltecem, por
exemplo, as peripécias do agronegócio, que interessa basicamente
às multinacionais que fornecem
sementes, vendem máquinas,
adubos, fertilizantes e insumos
variados, exportam a produção e
controlam seus preços. Uma reorientação desse modelo não interessaria a essas forças nem a seus
representantes explícitos. Interessaria a quem? Ouçamos uma pequena seleção de Arraes:
“E é justamente o que ocorre
no plano social, em que as distorções
são por demais conhecidas: marginalização, desemprego, milhões
de jovens carentes e abandonados,
violência urbana, baixos salários,
conflitos de terra, crescimento desordenado das periferias das cidades. É inegável o agravamento das
condições de vida do povo, após o
golpe de 1964. Há, por conseguinte,
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Evaldo Costa (Org.)
um retrocesso que atinge a maioria
da população, e o País, afogado em
dívidas, com suas riquezas e até
grande parte do seu solo alienados.
Uma minoria avançou e a ela interessa um consenso em torno da
idéia de continuar avançando. Mas
à maioria, cujas condições de vida
se tornam intoleráveis, interessa
que se diga que não houve ‘avanço’, que houve retrocesso e que o
caminho seguido até agora deve ser
abandonado.”
40
A grita pelo impeachment,
ainda átona demais para ecoar nas
ruas, o que criaria a outra condição necessária ao seu prosseguimento, passou a interessar quase
exclusivamente ao grupo de FHC
e seus aliados clássicos, políticos,
da mídia e empresariais, pelas razões expostas. E à esquerda, o que
interessa agora? Deve-se retornar
a Arraes, pensar sobre suas palavras: “interessa que se diga que
houve retrocesso e que o caminho
seguido até agora deve ser abandonado”. O que deveria interessar à
esquerda é então a reorientação da
política econômica e do conjunto
articulado dos campos de ação da
sociedade. É a definição de novas
políticas públicas que farão do
Brasil um Estado-Nação, embora
tardio, tarefa inconclusa pela presença cada vez mais forte do interferente estrangeiro. E uma pergunta essencial se coloca: o que fez
Lula, que se declara representante
da esquerda?
César Benjamin, petista fundador que pulou da barca no início
dos anos 90 ao perceber os rumos
do partido nas mãos do Campo
Majoritário – que desembocaram
no que se vê agora –, identifica em
Lula comportamentos esquizofrênicos, como bradar que a elite
não manda nele e ao mesmo tempo trocar o irrepreensível Olívio
Dutra pelo indicado do repreensível Severino. Ou: “Depois de dois
anos e meio na chefia do governo,
continua a atribuir as dificuldades
a uma herança maldita que ele só
fez agravar”. Em plano mais vasto,
pode-se documentar a esquizofrenia do governo na comparação de
suas políticas interna e externa.
Aproximações com Chávez e
outros desagradados de Washington na América Latina, oposição
na OEA aos planos bushistas de
“estabelecer controle” sobre a “democracia” na região, alianças estratégicas com China, África do
Sul e Índia, namoros com Rússia
e a CEI, censura velada à invasão
do Iraque, pretensão de assento
permanente no Conselho de Segurança da ONU, combate ao protecionismo agrícola dos ricos, aproximações com árabes e africanos
etc.: a lista configura um arsenal
típico da política externa de um
país afirmativo e independente.
No plano interno, o oposto, e
basta uma constatação: a manutenção da macropolítica econômica,
do pagamento dos juros mais altos
será candidato? Por qual partido?
Ou qual PT? Os controladores
até ontem do PT serão expulsos
e a esquerda predominará? Ou os
“puros” deixarão o partido e esvaziarão para sempre aquele que foi
a grande esperança dos brasileiros
e da esquerda latino-americana,
com projeção mundial?
Ao lado disso, nenhum gesto
na direção de iniciativas que poderiam realmente desenvolver o país
e beneficiar a população: a produção de bioenergia (que empregaria
milhões, criaria tecnologia própria
e alavancaria as exportações, o que
não interessa nem às petroleiras
nem ao agronegócio), o controle
dos capitais externos, os esforços
aplicados nas culturas da biodiversidade, uma política nacional para a
água, a produção de alimentos, uma
nova política de transportes com
ênfase em hidrovias e ferrovias, a
implantação de uma indústria farmacêutica dedicada às doenças de
pobres, a ancestral reforma agrária
etc. Absoluto descompasso: o Brasil dança samba lá fora e chacoalha
jazz aquém-fronteiras.
E a pergunta terrível se impõe: já que internamente Lula
representa a continuidade das
práticas da direita, agravadas pela
adoção do caminho da corrupção
de governo, o impeachment interessa à esquerda? Esta talvez seja a
indagação mais inquietante, desde
que se estabeleceu, como axioma
político, que o Lula mantenedor
das orientações neoliberais e líder
do grupo arquiteto de uma catedral de corrupção não interessa a
ninguém. Talvez devêssemos mais
uma vez ouvir de Arraes suas perenes reflexões de mais de duas
décadas atrás:
As perspectivas da esquerda
ainda são nebulosas. Sob ataque,
ao menos enquanto a artilharia
não se move para outros alvos
ainda pouco visíveis, encara a necessidade de defesa do mandato
de Lula ao mesmo tempo em que,
nesse compasso, outorga tempo
ao “lado limpo” da oposição para
articular-se e ganhar espaços. Lula
Cartas de Agosto
do mundo, do superávit primário,
do seqüestro de recursos destinados ao social (como as rendas do
INSS e da CPMF) para remunerar
rentistas, medidas camufladas por
programas sociais paliativos que se
recusam a decolar, e ainda arrocho
salarial aplicado ao funcionalismo.
Ou seja: o cenário de sempre.
“A questão nacional volta,
portanto, a ser posta com toda a
força. É preciso definir se o Brasil
é uma Nação e que nação é o Brasil nos dias que correm. São complexos os interesses que se cruzam
dentro de seu território, muitos dos
quais são direcionados de fora. No
Brasil, o Estado deixou de estar a
serviço da sociedade. Afastou-se
dos problemas humanos. Desligouse da Nação.
“Noutros termos, os homens
no poder são menos importantes do
41
que os mecanismos implantados ao
longo do tempo, seguindo uma estratégia bem definida.
A estrutura produtiva teria
que se adaptar a necessidades existentes e que passariam a poder ser
satisfeitas, em vez de continuar a
ser função das pressões causadas
pela dívida externa, pelos juros,
dividendos, renda de capitais que
absorvem por volta de setenta por
cento das exportações.
A construção da Nação não
pode ser confundida com o atendimento dos interesses de grupos que
hoje dominam a economia. Estes
agem como meros ocupantes de
um espaço que lhes foi aberto e que
interessa à sua busca de maiores
lucros. Consiste na construção de
uma sociedade em que todos caibam, sem discriminações.
Evaldo Costa (Org.)
É tarefa que só o povo tem
condições de executar. Para tanto, é necessário que detenha o Poder. Embora todas as Constituições, inclusive a outorgada e em
vigor, declarem que ele emana do
povo, o fato é que nunca o exer-
42
ceu. Cabe lutar para que isso seja
uma realidade”.
A esquerda, as forças sociais,
os movimentos populares, os realmente democratas, ou que nome
tenham, além de determinar o
que pretendem no poder, devem
comprometer-se a respeitar suas
próprias determinações. Estas últimas palavras de Arraes podem ser
lidas em programas e documentos
do PT. Mas não é de palavras que
se trata, e, sim, da diferença entre
estadistas e negocistas.
Se houver estadistas na esquerda, que se apresentem; caso
contrário, deixem-nos em paz.
Miguel Arraes de Alencar, preso
em 64 por recusar-se a renunciar
pela força das armas, exilado durante catorze anos, único brasileiro eleito três vezes ao governo de
um estado, pensador e humanista,
retirou-se da cena. Respeite-se o
seu legado.
Chico Villela é escritor e editor.
Fonte: www.lainsignia.org
Miguel Arraes, um forte
Cleofas Reis
Por questão de oportunidade, sem nunca me ter aproximado
dele pessoalmente, admirava-o
de longe. Tive chance, entretanto, de manifestar essa admiração
de público, primeiramente na sua
campanha para governador, naquele mesmo ano, quando, ainda
terminando o segundo grau, cheguei a dela um pouco participar,
circulando num carro de som e
convocando os ouvintes pelo microfone: “Derrubem três usineiros de uma só vez (João Cleofas,
Cid Sampaio e Armando Monteiro Filho), votando em Arraes
para governador.” Também tentei
ser orador num palanque, na periferia do Recife, beirando o pi-
toresco: “Até eu, que sou Cleofas,
escolhi Arraes”, bradei.
No ano seguinte, Arraes, já
ocupando o Palácio das Princesas,
tive nova oportunidade de apóialo, dessa vez através do jornalzinho
A Voz do Colégio Estadual. De circulação restrita mais aos corredores e salas do antigo Ginásio Pernambucano, escrevi dois editoriais
no pequeno periódico. Num deles,
sob título “Falsa intranqüilidade”,
defendia o governador de ataques
da imprensa e de seus adversários,
destacando que eram motivados
pelo fato de Arraes querer mudar
e corporificar um governo que não
se dispunha, como sempre ocorrera, a ser “capitão-de-mato de latifundiários e usineiros”.
A propósito desse clima forjado de instabilidade, o próprio Arraes, num discurso em julho de1963,
para cerca de 100 mil pessoas e na
presença do presidente João Goulart, denunciava que a direita estava criando no país “um falso clima
de intranqüilidade, de ameaça às
instituições”, com isso abrindo caminho “para aventuras golpistas
que detenham nosso processo de
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
A
passagem de um mês da
morte de Miguel Arraes me
reporta ao já longínquo ano
de 1962, quando exerci pela primeira vez a ação de cidadania do voto.
E como diz a sabedoria popular que
do primeiro voto (vale também para
outras atitudes, garante-se) a gente
nunca esquece, tal me ocorreu, tanto mais porque foi uma decisão de
que jamais me arrependeria e que
seria repetida por três vezes.
emancipação política e econômica
graças à supressão das liberdades
democráticas”. Foi o que ela conseguiu menos de um ano depois, com
o golpe de abril de 1964.
Evaldo Costa (Org.)
Quando de sua primeira reeleição, em 1986, assinei artigo
no Diário de Pernambuco. Eis um
trecho: “Só deu Arraes na cabeça.
Porque na cabeça do povo estava
forte ainda a figura de um governante que, há pouco mais de 20
anos, tentou mudar as diretrizes
de governo em favor dos mais humildes, procurou deslocar o eixo
da máquina estatal para beneficiar
os mais necessitados, pela primeira vez na história de Pernambuco
buscando retirar a estrutura do
Estado de eterno instrumento dos
privilegiados. E por isso foi deposto, preso e exilado”.
44
Se possível resumir a figura
de Miguel Arraes num termo, penso que a palavra “forte” combina
com sua trajetória de vida. Forte
ele foi, como tantos outros nordestinos, quando cedo deixou seu
Sertão para tentar vôos mais altos
na cidade grande; forte mantevese quando escolheu uma posição
política que olhava para as classes
carentes, diferentes da média a que
pertencia; forte mostrou-se quando optou pela prisão e pelo exílio
ao invés de submeter-se aos militares e renunciar ao Governo de
Pernambuco, como estes queriam
em 1964; forte mostrou-se dando a
volta por cima, ao sofrer a grande
derrota eleitoral quando pela quarta vez tentou governar o Estado; e
forte permaneceu durante toda a
vida, posicionando-se sempre com
hombridade e coerência em quaisquer circunstâncias da sua carreira
política, diversamente do que tem
acontecido com a grande maioria
dos eleitos para cargos executivos
e legislativos em nosso País.
Para atingir posição tão alta
no coração do povo e na história,
Miguel Arraes não precisou apresentar-se como mágico salvador
da pátria, pois sempre contou com
a participação popular na sua ação
de administrador e político. Estava certo ao encerrar o discurso
de posse como governador pela
primeira vez, quando afirmou citando Drummond: “Acredito ter
tudo o que um homem precisa
ter para o trabalho, e que outra
coisa não é senão o que foi dito
pelo poeta: ‘Tenho apenas duas
mãos e o sentimento do mundo’”.
Cleofas Reis é jornalista.
Fonte: Jornal do Commercio.
O “véio Arraia” e o livrinho
Clóvis Rossi
Certo ou errado nas suas propostas, o fato é que valia a pena
conversar com Arraes. Não, não
estou dizendo que era um santo,
só porque morreu, como é do hábito brasileiro. Mas visto agora em
perspectiva, ainda mais na comparação com esse pessoal do PT que
se dizia de esquerda (como ele,
Arraes), é até covardia. O que mais
me incomodava nas conversas com
Arraes (e também com Leonel Bri-
zola) era sabê-los vítimas de uma
anomalia: um e outro poderiam
ter sido presidentes da República,
não tivessem suas carreiras políticas interrompidas pela violência
de uma ditadura.
Não sei como seria uma Presidência Arraes ou Brizola.
Mas aposto que, se as coisas tivessem seguido o curso normal, com
eleições nas épocas previstas, sem
cassações e banimentos por motivos
ideológicos ou perseguição política,
o país seria melhor do que é.
É por isso que, contra a cobrança de muito leitor, continuo
achando que seguir o que está escrito na Constituição é mais correto do que inventar Constituinte,
eleição antecipada, vetar o vice
porque é a favor da queda dos juros ou qualquer outra mágica que
não esteja no livrinho.
Talvez o Brasil tenha líderes
tão medíocres justamente porque
o arbítrio obrigou tantos outros a
hibernarem por tanto tempo.
Clóvis Rossi é jornalista.
Fonte: Folha de S. Paulo.
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
N
a cobertura das eleições estaduais de 1986, calhou de
eu ser convidado por Miguel
Arraes, o candidato (do PMDB)
que acabaria vitorioso, para viajar
com ele para o Sertão pernambucano. Inesquecível. Melhor que todo
um curso de sociologia e política.
O “véio Arraia”, como era chamado
pelos sertanejos, parecia um “padim Ciço” para a gente humilde,
mas era ao mesmo tempo um dos
raros políticos capazes de conversar
sobre o Brasil como país. A maioria
dos outros, seus contemporâneos
ou os atuais, fala do Brasil apenas
como um colégio eleitoral, um manancial de votos. O país em si que
se dane, como bem mostra o escândalo em curso.
Arraes taí
Cristovam Buarque
Q
uando morrem os líderes, a
orfandade vem, sobretudo,
da ausência de bandeiras
deixadas para seus seguidores.
Fica o vazio, o silêncio da xmorte.
O vazio de hoje está amplificado
pela falta de bandeiras próprias
da esquerda: não temos quem fale
por nós, nem o que dizer por nós
mesmos. E se soma à frustração
com o governo que esses mesmos
líderes ajudaram a construir – o
governo Lula.
Mas o sentimento de Arraes já
era de frustração, como pude perceber em nossa última conversa,
uma semana antes de sua hospitalização. Ele percebia que a esquerda
havia perdido o rumo. Não estávamos nos ajustando, mas sim nos
entregando à realidade dos novos
tempos. Mais do que aceitar a realidade da economia e do mundo que
se seguiu à queda do Muro, à globalização, ao liberalismo, tínhamos
abandonado valores e princípios
que são permanentes.
A esquerda, e sobretudo o
governo, tinham abandonado o
povo para ficar com as corporações, deixado de lado a educação
básica para atender às reivindicações dos universitários, preferindo
os sindicatos à Nação, comemorando pequenas assistências em
lugar de programas transformadores. E Arraes sabia que era preciso reorientar nossa luta, buscar a
unificação de todos aqueles que ainda desejam um Brasil diferente.
Arraes, assim como os demais líderes citados acima, morreu tentando. Morreu carregando
no coração de 88 anos os mesmos
compromissos feitos aos 18. Morreu como o líder das esquerdas, o
último líder que conduziu minha
geração. Deles podemos e devemos
discordar, mostrar seus acertos e
erros. Mas não podemos negar que
tinham em comum o sonho de um
Brasil diferente.
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Nem Brizola nem Prestes,
nem Darcy nem Furtado, nem
Barbosa Lima nem Marighela,
nem Gregório nem
Betinho, nem Dom Hélder
nem Arraes. A esquerda de
hoje ficou completamente
órfã. O último de nossos
líderes partiu.
Esses líderes acreditavam que
era possível construir um Brasil
soberano, com uma população
bem educada, uma renda desconcentrada, uma desigualdade regional diminuída, com recursos
nacionais a serviço da Nação e
do povo. Lutaram para completar
nossa Independência, a Abolição e
a República. Seus caminhos eram
as reformas, a mobilização social,
não eram as pesquisas de opinião
e o marketing político. Todos eles
foram homens de diálogo, com
princípios, todos se ajustaram às
mudanças da realidade, mas não se
entregaram a ela, não abandonaram seus princípios e sonhos.
Evaldo Costa (Org.)
É por isso que dei a Arraes
meu primeiro voto, em 1962, para
governador de Pernambuco, e 43
anos depois, só tenho orgulho do
voto que então lhe dei. Talvez seja
esse o maior conforto que possamos ter, no momento da morte: o
48
fato de não termos nos arrependido de votar nele. É o melhor elogio que um político pode receber.
Votaria nele outra vez e com maior
admiração.
Por seu exemplo permanente
e por suas bandeiras permanentes
é que “Arraes taí”. Com esse slogan
comemoramos sua volta, depois de
quase duas décadas no exílio. Esse
slogan continua válido. Porque
o que ele começou ainda não foi
completado.
Arraes taí, e nós temos a obrigação de continuar lutando pela
causa que ele carregou com coerência, coragem, lucidez. Ajustando-a
quando necessário, mas sem entregá-la jamais.
Cristovam Buarque é
senador pelo Distrito Federal.
Fonte: Jornal do Commercio.
Senado homenageia Miguel Arraes
A
trajetória do ex-governador
Miguel Arraes na vida pública foi exaltada por correligionários e adversários, ontem,
no Senado Federal. Ao final da
sessão, os senadores fizeram um
minuto de silêncio em reverência
à sua memória.
“sempre foi um adversário correto
e ético” e o comparou aos principais homens públicos do Brasil
– como Tancredo Neves, Ulysses
Guimarães e Leonel Brizola – e
de Pernambuco – como Joaquim
Nabuco, João Cleofas e Agamenon
Magalhães.
No discurso que fez em homenagem ao ex-governador e exdeputado Miguel Arraes (PSB), o
senador Sérgio Guerra (PSDB-PE)
destacou dois aspectos de sua vida:
a luta contra a pobreza e o compromisso com a união dos países
emergentes, contra as imposições
dos países desenvolvidos. O senador lembrou como foi liderado por
Arraes, “cuja vida foi marcada pela
coerência”. “Aqueles que desejam
fazer um Brasil melhor e moderno
devem seguir o caminho de Arraes”, recomendou Sérgio Guerra.
Após lembrar que começou
a conviver com Arraes na década
de 60 – “sempre em campos opostos, salvo algumas exceções como
o movimento pela redemocratização do País” –, o senador Marco
Maciel (PFL-PE) ressaltou – no
discurso no qual homenageou o
ex-governador – “a coerência, seu
espírito público, a firmeza de suas
convicções e o forte instinto de nacionalidade que sempre marcaram
a vida do ex-governador”.
O líder da Minoria, senador
José Jorge (PFL-PE), lamentou o
desaparecimento de Arraes, que,
como interlocutor do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, poderia
bem aconselhá-lo na crise que o
País está enfrentando. José Jorge
reconheceu que o ex-governador
“O ex-governador e ex-deputado Miguel Arraes foi um grande
brasileiro que fará muita falta ao
País”, disse a líder do PT, senadora
Ideli Salvatti (SC), ao reverenciar a
memória de Arraes. Após lembrar
que ingressou no PSB a convite do
ex-governador, o senador Antônio
Carlos Valadares (PSB-SE) disse
que “com a morte de Miguel Arra-
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Dilze Teixeira
es desaparece um dos líderes históricos da nacionalidade do Brasil
que vai fazer uma falta enorme”.
“De Miguel Arraes vai restar, principalmente, a memória da
luta pela libertação do homem no
campo, base de toda sua ação política”, disse o ex-presidente e senador José Sarney (PMDB). “O que
vai ficar daquela figura legendária
é aquele político capaz de despertar fidelidades em gerações e em
multidões do Brasil e de sua terra”,
concluiu Sarney.
Após reconhecer divergências
com Miguel Arraes em relação à
condução dos processos político e
econômico do País, o líder tucano
Arthur Virgílio exaltou a honradez,
coerência e o espírito público do
ex-governador de Pernambuco.
Evaldo Costa (Org.)
Já o senador Cristovam Buarque (DF), que se prepara para deixar o PT, observou que apesar de ter
passado por vários partidos políticos Arraes nunca mudou um ponto sequer em seus compromissos,
especialmente com os nordestinos.
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Segundo ele, “o sonho de Miguel
Arraes de um País independente
com a inclusão das massas sociais
não vai sair dos atuais partidos
políticos”.
Depois de registrar que sempre manteve uma relação de cordialidade com Arraes, o senador
Antônio Carlos Magalhães (PFLBA) contou um episódio ocorrido
em 1963, por ocasião do 10º aniversário da Petrobras, quando foi procurado pelo então governador de
Pernambuco. Na ocasião, contou,
Arraes pediu-lhe para “trabalhar
contra o estado de sítio que o expresidente João Goulart queria implantar no País para retirar Carlos
Lacerda do governo da Guanabara.
Em compensação, o Exército exigia
que Jango retirasse Miguel Arraes
do governo de Pernambuco”.
Dilze Teixeira é
correspondente do Jornal do
Commercio em Brasília.
Fonte: Jornal do Commercio
A modernidade em Miguel Arraes
A
forte e emocionada participação do povo pernambucano no funeral de Miguel
Arraes iluminou ali, naquele momento denso, a existência de um
vínculo raro. De um vínculo de
companheirismo entre um homem
público e sua gente. Vínculo que se
criou – e se aprofundou no tempo
– em conseqüência do compromisso de Arraes com as lutas do
povo e de sua visão do lugar desse mesmo povo na construção da
verdadeira modernidade nacional.
Moderno. Esta é a palavra
certa, talvez para provável surpresa daqueles que têm uma visão
restritiva do termo. Para esses, não
custa lembrar que, para milhões
de famílias de brasileiros, em todas as regiões, estar atualizado é
alimentar-se, ao menos frugalmente, três vezes a cada dia. Não
há modernidade no vácuo – ela
existe em circunstâncias históricas
concretas. E a modernidade que se
vê na trajetória de Miguel Arraes
é de outra natureza. Nasce de seu
enraizamento em nossa experiência social. E da consistência de
suas ações.
Deputado estadual, prefeito,
deputado federal, três vezes governador, refundador e presidente
nacional do Partido Socialista Brasileiro, Dr. Arraes foi, ao longo de
meio século, referência permanente para a esquerda brasileira por
sua determinação na luta democrática, na defesa da soberania nacional e na crença na força da organização popular. São princípios
políticos que norteiam toda a sua
vida, gestados desde a convivência
com a fome dos sertanejos nordestinos até o testemunho da miséria
das massas de trabalhadores das
regiões metropolitanas do país.
Mas dr. Arraes foi, também,
um pioneiro, um homem com visão de futuro. Ele pensou e realizou
40 ou 50 anos atrás o que só muito
tempo depois outros governos de
outros Estados ousaram fazer.
Na Prefeitura do Recife, em
1961, mobilizou artistas, intelectuais e estudantes no Movimento
de Cultura Popular, levando educação e cultura às multidões de
miseráveis dos morros e alagados
da capital pernambucana.
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Eduardo Campos
Em seu segundo governo,
criou a fundação de amparo à pesquisa mais antiga do Brasil, depois
da de São Paulo. E, com um intenso programa de eletrificação rural,
incluiu 200 mil famílias pernambucanas no mundo da produção e
do consumo em bases modernas.
Pernambuco é, hoje, o Estado nordestino com maior índice de eletrificação rural graças a esse trabalho.
Conforme dizia o próprio Dr. Arraes, modernidade, para quem não
tem acesso a energia ou água tratada, pode ser “um bico de luz e uma
torneira jorrando água em casa”.
Evaldo Costa (Org.)
Ainda no seu primeiro governo, interrompido pela brutalidade
da ditadura de 64, ele implantou o
Lafepe, laboratório pioneiro que,
até hoje, produz remédios a baixíssimo custo para a população,
sendo o embrião de projetos como
o Farmácia Popular. Em 1987, pôs
em funcionamento o primeiro
laboratório de biotecnologia do
Nordeste. E, com essas iniciativas,
uniu o saber dos cientistas à sabedoria do povo no desenvolvimento
de soluções adequadas aos problemas concretos da população.
52
Essas experiências tiveram
importância vital para que eu pudesse dar conta da tarefa atribuída
pelo presidente Luiz Inácio Lula da
Silva quando me nomeou ministro
da Ciência e Tecnologia. O povo
na agenda dos cientistas, a ciência
no cotidiano do povo. Não há nada
mais moderno do que isso.
O Brasil, hoje, é um escândalo
social. Para que venha a se realizar
plenamente como nação moderna,
investimentos em infra-estrutura
e atualizações científicas e tecnológicas serão ferramentas fundamentais, mas insuficientes.
Nossa modernização terá
de passar, necessariamente, pela
correção, em profundidade, das
perversões geradas pelo modelo
econômico imposto à nação por
décadas e do qual, apesar dos esforços de setores do governo do
presidente Lula, ainda não conseguimos nos libertar.
Contra esse modelo se insurgiu Miguel Arraes por toda sua vida
com as armas que tinha às mãos: a
clareza e a firmeza de suas idéias, a
capacidade de lutar por elas todos
os dias e o poder de aglutinar, com
as suas palavras, o apoio de milhares de pernambucanos, de nordestinos, de brasileiros.
Esta é a lição que Arraes nos
deixa. Lição ao mesmo tempo radical e generosa: ser moderno é
combater a miséria e a ignorância. É promover a inclusão social.
É assegurar o acesso de todos aos
benefícios do conhecimento. Não
são tarefas fáceis. Comprometerão
o trabalho de gerações. Mas são
tarefas possíveis para quem, como
Miguel Arraes, sabe que, para que
avance a luta do povo, basta – como
ensinou o poeta – ter as duas mãos
e o sentimento do mundo.
Eduardo Campos é governador do Estado de Pernambuco.
Fonte: Folha de S. Paulo
Arraes no Palácio do Povo
O
Palais du Peuple – Palácio do
Povo – ocupa um quarteirão da cidade de Argel e faz
esquina com a Avenida Franklin
Roosevelt, uma das artérias mais
movimentadas da cidade. O palácio, como quase todo o casario ao redor, é caiado de branco,
com portas e janelas pintadas de
azul. Ali, no número 21, Miguel
Arraes, governador de Pernambuco, banido pelo regime militar,
inaugurou, em 1965, um exílio
de 15 anos. O destino assim o
quis. Conforme dizem os árabes:
Maktub, estava escrito. Tendo recusado a submeter-se à vontade
dos militares e jurado honrar o
cargo que o povo pernambucano
lhe outorgara, aquele palácio certamente surgira a Arraes como
uma espécie de metáfora. Os aposentos anexos do Palácio do Povo,
retomado dos franceses após sete
anos de uma das guerras coloniais
mais violentas, serviram para
abrigar, por um dos acasos da
História, aquele que, durante toda
sua vida, centrara o pensamento
sobre o destino de um outro povo,
o brasileiro.
A Avenida Franklin Roosevelt,
onde residiu Arraes, desemboca
numa das principais ruas do centro da cidade, a Didouche Mourad,
nome de um herói e mártir, lugar
de muitos embates da Batalha de
Argel. Muitas vezes descemos juntos aquela rua ladeirosa, em busca
de notícias chegadas com atraso à
caixa-postal da Grande Poste – o
prédio de arquitetura mourisca do
correio central. As comunicações
eram falhas, a vigilância policial
no Brasil era cerrada, não convinha usar endereços residenciais.
Caixas-postais e brasileiros que
chegavam à Europa eram as fontes
de informação mais seguras.
No caminho de volta sentávamos no Café Bardo, vizinho
ao museu de etnologia de mesmo
nome, para tomar um café, falar de
política, de trabalho, da situação
internacional, de leituras. Arraes
tinha sempre uma história para
cada circunstância, uma ilustração
para cada caso. Depois da conversa, seguíamos para seu escritório,
simples: uma mesa de madeira e
estantes improvisadas, que abrigavam documentos, livros e jor-
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Everardo Norões
nais, nas mais diferentes línguas.
Suas anotações, numa caligrafia
tortuosa e graúda, concatenavam
observações que desembocariam,
mais tarde, no livro publicado pela
famosa editora parisiense François
Maspero, Brésil, le pouvoir et le
peuple, proibido no Brasil.
Eu gostava de olhar suas
mãos quando ele escrevia. Mãos
delicadas que contrastavam com
sua maneira quase rude, mãos de
gestos raros, que acompanhavam
um falar quase silêncio, de cortes
ríspidos, induzindo o interlocutor
a perseguir a linha de pensamento
do estrategista nato. O raciocínio,
instintivamente dialético, nem
sempre era fácil de ser alcançado
por pessoas habituadas às categorias da lógica formal.
Evaldo Costa (Org.)
Quando estava exposto no
Palácio das Princesas, morto, pude
mais uma vez olhar suas mãos, finalmente cruzadas. E, à vista delas, chegaram-me lembranças que
a História nunca vai contar, de um
exilado solitário e firme, apesar de
abandonado por muitos, até mesmo por alguns que depois voltaram a cercá-lo no mesmo palácio
que o acolheu pela última vez. Em
54
Argel, sonhava com um Brasil bem
diferente daquele que encontraria
no seu retorno. Nas vezes em que
o futuro lhe inquietou, certamente
foi por ter pressentido que a nossa
tragédia coletiva poderia resvalar
para uma quase comédia...
O carisma é um atributo especial de um indivíduo e Arraes teve
esse dom, percebido não apenas
por nós, pernambucanos e brasileiros. No exílio ele era também
observado assim, e o povo que o
acolheu o considerava como um
dos seus: um frére, um irmão. Fato
singular, o nome Arraes, em árabe,
significa cabeça, chefe, senhor do
barco.
Os argelinos que o conheceram, quando cruzarem agora aquela esquina do Palácio do
Povo, lembrar-se-ão dele e hão de
murmurar, como fazem ao pensar
num irmão defunto:
“Deus é o mais alto, o Misericordioso e o Misericordiador.”
Everardo Norões é
poeta e tradutor.
Fonte: www.psbpe.org
Coerência política
D
iante da crise política que está
atordoando a cidadania brasileira, desmascarando vestais e
travestindo trânsfugas de ontem e
hoje trambiqueiros, uma releitura
de Miguel Arraes – Pensamento e
Ação Política, coletânea organizada por Juareiz Correya, Raimundo
Carrero, Ricardo Leitão e outros,
edição Topbooks, reoxigenaria
ideários, afastando a tentação de
votar nulo e branco nas próximas
eleições, ato muito covarde.
O livro caberia como uma
luva naqueles que acreditam numa
esquerda nada sectária e extremamente criadora – a expressão é
de Antônio Callado, no prefácio
–, que acreditam num Brasil soberano, nunca amedrontado nem
tampouco arrogante, como sempre se portou o ex-governador de
Pernambuco, tanto nos tempos de
poder como nos períodos de vacas
magras, no exílio. O texto último
do seu terceiro discurso de posse,
em 1994, ratifica opinião do prefaciador do livro: “Trata-se de um
dos homens mais contidos, mais
bem educados que me foi dado a
conhecer”.
Em 1963, quando da sua posse primeira, a advertência foi por
demais crivada de responsabilidades: “Eu não tenho, como não têm
Vossas Excelências, o direito de
ignorar que, pelo menos historicamente, a era do indiferentismo e
do faz-de-conta já acabou, os tempos agora são outros, e não é preciso ser profeta para entender o dia
de ontem e o de hoje.” Sem arroubos, sem comparar-se a ninguém,
percebendo-se parcela nutricional
da ânsia de um povo sofrido em
tornar-se também partícipe do desenvolvimento.
Sem desejar nunca ser o Sassá
Mutema da novela famosa, personagem que bem poderia ser analisado pelo atual presidente da República, Dr. Arraes já advertia no
dia da sua primeira posse: “Pois
ninguém se iluda: assim como não
me conseguiram transformar em
agitador e incendiário, também
não conseguiram e jamais conseguirão transformar-me num bom
moço, acomodatício aos privilégios que sempre combati e posso
agora mais e melhor combater, no
governo do Estado”.
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Fernando Antônio Gonçalves
Evaldo Costa (Org.)
O ex-governador conhecia
como deveria se processar o desenvolvimento das grandes regiões do planeta: “O capitalismo, ou
qualquer sistema só existe quando
atravessa toda a sociedade, amarrando interesses das diferentes
camadas, de forma a que constituam um todo homogêneo, mesmo que as contradições perdurem
entre elas. Por não ter conseguido
constituir esse todo homogêneo, é
que ruíram regimes do Leste”.
56
E não se descuidava da conjuntura brasileira: “É fundamental reexaminar, setor por setor, a
economia do País e escolher um
caminho que os possam preservar, removendo, ao mesmo tempo, os males do cartorialismo e
do corporativismo que estão na
base de muitos deles”. E ainda
percebia a inocuidade de certos
debates: “Não defendemos nem
um Estado mínimo nem máximo.
Defendemos e lutamos, isso sim,
por um Estado que, a partir de
suas peculiaridades, cumpra suas
finalidades públicas, que busque
proteger os mais fracos e carentes da voracidade e da ambição
dos mais fortes, que atue como
elemento indutor do desenvolvimento econômico dentro da
economia de mercado, que promova uma efetiva redistribuição
das nossas imensas riquezas, que
garanta, enfim, a prevalência de
nossa soberania e de nossa independência. Essa a essência do
nacionalismo contemporâneo, do
nosso nacionalismo”.
Na crise atual, as reflexões
de Dr. Miguel Arraes de Alencar
farão muita falta. Seguramente, a sua não-mediocridade será
por demais sentida. Suas análises
não-setorializadas não mais clarificarão os jovens, muito embora sua autenticidade política, seu
desassombro diante do arbítrio e
sua imensa capacidade de saber
fazer a hora jamais tornar-se-ão
desprezadas pelos politicamente
atilados, que contribuem para o
fortalecimento das instituições
populares.
Reler o que não mais pode
ser reelaborado é um modo de
comprovar a coerência política
do ex-governador Arraes. Com
quem um dia conversei, levado
pelas mãos do escritor Maximiano Campos. Para nunca mais dele
me esquecer.
Fernando Antônio Gonçalves
é professor universitário
e pesquisador social.
Fonte: Jornal do Commercio
Miguel Arraes
G
overnador de Pernambuco por
três vezes, Miguel Arraes definitivamente não será lembrado
por obras que tenha feito nas suas
administrações. Ficou na lembrança dos pernambucanos mais por
atitudes em defesa deste ou daquele
segmento social do que por construções em pedra e cal. E é, exatamente por isso, que Miguel Arraes
sempre será lembrado de forma tão
apaixonada no imaginário coletivo.
Advogado no IAA, economista da Secretaria da Fazenda,
Arraes escolheu a política para
ganhar a vida e...votos. Virou
deputado, prefeito e governador
para fazer aquilo que na época foi
uma espécie de revolução. Colocar o Estado como árbitro em lugar de parte nas questões sociais.
O Acordo do Campo entre trabalhadores rurais e empresários
da agroindústria canavieira nada
mais foi do que o reconhecimento
de direitos sociais elementares ao
homem do campo. Dito isso, hoje
parece natural nas relações de trabalho. Na época não foi. E até foi
usado pelos seus adversários nas
conspirações de 1964.
Pode ser contraditório que
um homem que, por três vezes governou Pernambuco, tenha como
referencial administrativo eventos
como um acordo de 1961 e mais
tarde (já no segundo governo, em
1987), quando logo após a posse,
evitou um novo choque entre trabalhadores rurais e produtores de
cana-de-açúcar, celebrando novo
acordo. Mas talvez essa seja mesmo a marca de Miguel Arraes, que
agora entra para história.
ICMS e palha de cana
Qualquer pessoa que investigue a obra administrativa de
Arraes encontrará essa referência.
Em 1988, quando ele diferiu o
ICMS cobrado pela Secretaria da
Fazenda da cana-de-açúcar entre
os plantadores e a usina e passou
a cobrá-lo no produto final, adaptando-se à tendência fiscal na indústria, segue sua linha histórica.
E mesmo programas como eletrificação rural, expansão dos recursos hídricos, crédito agrícola e o
Chapéu de Palha (que assistia os
trabalhadores rurais da Mata) são,
essencialmente, dessa linha.
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Fernando Castilho
Soluções...
Pedro Eugênio, que foi secretário de Fazenda, lembra que Dr.
Arraes sempre via soluções de economia a partir de soluções tecnológicas de baixo custo. Ele lembra
que Arraes foi ao confronto com
técnicos da Celpe quando eles resistiram à eletrificação monofásica
com a qual poderia eletrificar bem
mais propriedades.
... de baixo custo
O argumento, segundo Pedro
Eugênio, hoje diretor do Banco do
Nordeste, era simples. O sistema
monofásico era o que o homem
do campo precisava para iluminar
sua casa e ligar uma motobomba
para irrigar um pequeno pedaço
de terra. Se o negócio prosperasse,
a Celpe voltava lá e colocava um
sistema mais forte.
Evaldo Costa (Org.)
A decisão de vender a Celpe
58
Dilton da Conti, hoje presidente da Chesf, diz que a venda da
Celpe foi sua decisão mais difícil.
Quando a revelou a FHC e ele a
saudou, Arraes cortou: “Estou sendo obrigado. O Dnae não autoriza
reajustes na tarifa e as vizinhas já
foram vendidas”.
Frustração no final do processo
Da Conti acha que Mendonça de Barros, então no BNDES,
não respeitou a biografia de Arra-
es quando pediu o adiantamento.
Postergou o processo até ele se
inviabilizar. Arraes que dera sua
palavra, e até elogiou FHC, achou
que teria reciprocidade. Perdeu.
Acesso à água...
Tânia Bacelar, que também
foi sua secretária, destaca uma
preocupação do ex-governador
pouco destacada em sua biografia
política: o profundo interesse pela
água. O acesso à água para as pessoas combinando tecnologias. Ele
dizia que China e Europa tinham
sucesso por combinar tecnologia
tradicional e a de ponta.
... era obsessão
Bacelar lembra que Dr. Arraes ia ao enfrentamento quando
se insistia apenas nas soluções de
ponta. Radicalizava na defesa do
pequeno projeto se o grupo insistia na defesa do grande projeto. E
até em relação ao setor canavieiro,
que era defensor da atividade, entendia a necessidade da diversificação, mas não sua substituição.
João Recena, que transformou-se num dos mais próximos
secretários de Arraes no último
governo, diz que é injusta a percepção de não se preocupar com
os grandes projetos de Pernambuco. Arraes, lembra Recena, vendeu
o Bandepe. Isso para um político
com sua história foi uma decisão
emblemática. Mas era importante
para Pernambuco. Recena lembra
que ele iniciou os gastos com o
Até em relação a Suape, a
participação de Arraes não ficou
marcada no imaginário empresarial, diz Recena. Ele, com ajuda de
FHC, foi quem fez a dragagem da
bacia externa, construiu a proteção
e abriu os arrecifes, fez a dragagem
interna e iniciou a construção do
berço 1.
O maior drama de Arraes,
segundo Recena, ficou para o final
do último ano do terceiro Governo. A tentativa da venda Celpe.
Defensor da presença do Estado
na economia, teve que se render
aos fatos. Não foi uma decisão fácil
para ele, conclui Recena.
Cartas de Agosto
Prodetur I (herdado de Joaquim
Francisco), inclusive recebeu, em
Guadalupe, o presidente do BID,
Enrique Iglesias. Mas o que se registra são as declarações em que
questionava os objetivos do setor.
Fernando Castilho é colunista econômico do Jornal do Commercio.
Fonte: Jornal do Commercio
59
Arraes e a importância
de empreender lutas inglórias
Q
uando criança, subindo uma
íngreme ladeira sem calçamento chamada Capitão Salgueiro, rumo ao Alto do Céu, na
localidade de Ponto de Parada,
zona norte do Recife, me deparei
pela primeira vez com um chafariz
e uma lavandaria pública. Havia
sido construída por Arraes. Até
então as lavadeiras da comunidade desciam até a avenida Beberibe
para trazer água em latas e baldes,
enquanto no alto da ladeira ficava
um dos reservatórios que abastecia a cidade.
Sou médico, filho de um médico e de uma professora primária, estudei em escola paroquial e
colégio jesuíta. Fui marcado pela
Teologia da Libertação, é deste lugar que observo o cidadão Miguel
Arraes de Alencar.
Tive oportunidade de tratar
com Dr. Arraes sobre vários assuntos em muitas ocasiões. Trabalhei
com ele por duas vezes. A primeira,
como diretor da Secretaria de Saúde, na gestão do exemplar médico
Ciro de Andrade Lima. Na segunda
vez que trabalhei com Dr. Arraes
foi no terceiro governo como se-
cretário de Saúde. Nas conversas
que tivemos, o ambiente pautava a
descontração sem diminuir a importância do assunto. Passava-me
a impressão de que sempre falava
sério. Em cada conversa havia sempre, para um atento observador,
uma mensagem, uma dúvida, um
questionamento; às vezes passados
em um olhar arregalado, um cenho
cerrado, um pender de cabeça, um
sorriso escancarado. Era um homem eloqüente no ouvir.
Foram muitos os rótulos
cunhados pelos seus adversários:
subversivo, comunista, centralizador, cacique, mito, caduco, Pinochet,
atrasado, dinossauro e outros mais.
No entanto nunca o vi tratar um
adversário político de maneira
desrespeitosa.
Tinha uma convicção que as
necessárias mudanças deveriam
vir por meio de uma ampla aliança
de forças com objetivos nacionais
e populares. Porquanto cuidava de
não fechar portas. Tinha a paciência necessária com aqueles que estavam aprendendo a fazer política e
tolerância com aqueles outros que
nunca aprenderam.
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Gilliatt Falbo
Durante toda a vida trabalhou
para construir este acúmulo de forças, e com a mesma tenacidade se
esforçava para ajudar a nossa população excluída a resistir, muitas
vezes a sobreviver, para participar
como protagonista desta ação.
Evaldo Costa (Org.)
Isto pôde ser observado inúmeras vezes nos programas dos
seus governos com o Movimento
de Cultura Popular, Companhia
de Revenda e Colonização, Lafepe,
Chapéu de Palha, Cestão do Povo,
dessalinizadores, Eletrificação Rural, Boa Visão, Expresso Cidadão...
Comunidades esquecidas faziam
parte das suas preocupações: Galiléia, Bem-te-vi, Matriz da Luz etc.
Consciente que havia sido eleito
pela maioria, para ela governava. Sempre pude identificar nos atos
e omissões de Miguel Arraes algo
que concorria para a liberdade
e autonomia do nosso povo. Era
implacável com o saber opressor
62
dos “técnicos”. Desconfiado e arredio com propostas “avançadas”
que serviam mais às vaidades e ao
capital que às populações. O seu
compromisso popular o levou a
firmar posições muitas vezes desagradáveis e mal compreendidas
em certos momentos, para posteriormente se constatar a pertinência das suas afirmações. Arraes
tratou desigualmente os desiguais,
não arredou das suas convicções
e nos deu exemplos da importância de resistir e empreender lutas
inglórias. Agora cumprida a sua
missão, ele nos deixou.
Vai Arraes, pois certamente
esqueceste uma semente n’algum
canto do jardim.
Gilliatt Falbo, médico,
é ex-secretário de Saúde de
Pernambuco.
Fonte: Diario de Pernambuco
Miguel Arraes
e o sentimento do mundo
C
onheci Miguel Arraes em
1962, logo após se eleger governador de Pernambuco. Foi
nas comemorações de sua vitória,
em Sertânia, minha cidade natal,
quando passei a admirá-lo pela
coragem e popularidade.
Já aos 16 anos procurei conhecê-lo melhor e, pesquisando sobre
sua história, acabei me aproximando da família Arraes. Nos idos
de 70, quando estudava Direito na
Universidade Estadual do Ceará,
no Crato, conheci a mãe de Miguel Arraes, Dona Benigna, como
também suas irmãs, as “meninas”,
como eram chamadas pelo irmão:
Ana, Maria Alice e Almina.
Mesmo à distância, acompanhei a trajetória política do ex-governador e de outros patriotas que
amargaram o exílio no exterior.
Assisti à batalha deles contra a terrível ditadura, em que não se curvaram ante o chicote dos tiranos
comandantes do Golpe de 1964.
Ao atingir a maioridade, criei
o MDB em Salgueiro, candidateime a prefeito do município, em
1976, e passei a defender a anistia
e a volta dos exilados.
O retorno triunfal de Miguel
Arraes ao Brasil, em 1979, marcado pela manifestação popular para
o homenagear, foi um dos momentos mais emocionantes da história
política do Brasil. Mais de 100 mil
pessoas se juntaram no Largo de
Santo Amaro para ver, ouvir e tocar no Dr. Miguel Arraes.
Convivi com o Dr. Arraes durante 27 anos. Participei das eleições de 1982, quando fui eleito deputado estadual, e ele, federal. Em
1986 cheguei a deputado federal
constituinte enquanto Arraes conquistou a direção do governo de
Pernambuco, ainda pelo PMDB.
Quem aprendeu com o professor Miguel Arraes, jamais errou
na carreira política. Meus encontros com ele serviram de lastro e
consistência para a vida pública.
Após sua partida “precoce”
para a eternidade, recordo com
muita saudade o último encontro
com Arraes, no dia 2 de junho, em
poltronas vizinhas, 01 e 02, no vôo
2632 da Varig. Durante mais de 2
horas, entre Brasília e Recife, conversamos sobre as ações do governo federal na região sertaneja do
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Gonzaga Patriota
Evaldo Costa (Org.)
64
Estado. Falamos dos projetos: Luz
para Todos, Bolsa Renda, Pronaf,
Interligação de Bacias Hidrográficas, Ferrovia Transnordestina,
dentre outros. “O povo está consciente dessas ações? Os programas
estão sendo discutidos com a população? Não estão. Assim não se
resolve esses e outros problemas”,
sentenciou Arraes.
Falou também sobre as decepções
que teve na vida pública, as quais
jamais o fizeram desistir de sua
luta em prol de um país mais justo
e igualitário. Miguel Arraes partiu, porém, ficaram gravados, em
mim, a sua história, o seu carisma
e a frase de Carlos Drummond
de Andrade: “Tenho apenas duas
mãos e o sentimento do mundo”.
Comentou uma vez da sua
estada na Argélia, das dificuldades
na comunicação com os brasileiros, dos seus filhos, dos problemas
enfrentados pelo presidente Lula.
Gonzaga Patriota é deputado federal,
advogado e jornalista.
Fonte: Portal psbpe.org
Arraes, o imprescindível
Inaldo Leitão
O que parecia um aviso logo
foi confirmado. Acessei a Internet
e lá estava a notícia. O ex-governador e deputado federal Miguel Arraes de Alencar, presidente nacional do PSB, havia falecido naquele
sábado 13 de agosto, pouco antes
do meio-dia, talvez na mesma
hora do inexplicável aviso que eu
teria recebido. Devo dizer que não
sou espírita, tampouco entendo do
assunto e acho que Arraes também
não. Até pensei em não mencionar
este fato, mas agora é tarde.
De Doutor Arraes, como era
chamado respeitosamente pelos
pernambucanos, tenho boas lembranças e uma prévia admiração.
Estudante no Recife, na fase da na-
tural rebeldia, costumava bradar
um “viva Arraes” em certas ocasiões, como que para demonstrar
indignação pela injustiça contra
ele cometida – a cassação do mandato, a prisão e o exílio.
Noutra vez, já advogado, fui
fazer uma audiência no fórum do
Crato, Ceará. Visitei a mãe de Arraes, que me mostrou fotos, cartas
e outros objetos que abrandavam a
imensa saudade que sentia do filho
distante. Na saída da privilegiada
visita, disse a dona Benigna que Arraes voltaria em breve e que seria
governador de Pernambuco e, quem
sabe, presidente da República.
O que jamais poderia imaginar, naquele momento, era que 23
anos depois eu estaria lado a lado
com o mito da minha juventude
na Câmara dos Deputados, no
exercício da representação popular, como se fôssemos iguais. Perto
dele, eu me sentia maior do que
era. Conversamos muitas vezes no
cafezinho da Câmara, onde os parlamentares se refugiam para a prática do fumo. Certa vez, depois de
uma baforada no cachimbo, ele me
disse numa voz quase inaudível:
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
C
ertas coisas são inexplicáveis,
estranhas mesmo. Estava em
viagem ao exterior, praticamente incomunicável, sem telefone celular e temporariamente desligado da crise que se abateu sobre
o Planalto Central. De repente,
não mais que de repente, como
diria o poeta, veio-me à mente a
imagem de Miguel Arraes, que
estava internado em estado grave
num hospital do Recife.
“Leitão, política é um processo, se
você está dentro do processo...”.
Noutra ocasião, marcamos
um café da manhã para discutirmos minha filiação ao PSB. Estávamos eu, o neto Eduardo Campos
e o deputado carioca Alexandre
Cardoso. Ao final da conversa, Arraes me disse: “Confio em você. O
comando do partido na Paraíba é
seu”. Por problemas locais não foi
possível ingressar no PSB, mas
guardo aquelas palavras como
uma referência biográfica.
Evaldo Costa (Org.)
Arraes partiu, dizemos os
crentes, para a eternidade. Eternas, aliás, são suas lições de coerência, de fidelidade aos ideais que
66
sempre professou e às bandeiras
populares das quais jamais se afastou. No dia 1º de abril de 1964 o
governador estava sob a mira de
canhões, pressionado pelos militares a renunciar ao mandato. Não
renunciou, pois não ia “trair os
que me elegeram”. Acabou preso,
mas com aquele gesto simbolizou
o Arraes de todos os tempos – um
político de coragem e um homem
imprescindível, como nos versos
de Brecht.
Inaldo Leitão é deputado federal
pelo Estado da Paraíba.
Fonte: Correio da Paraíba
Miguel Arraes
Inaldo Leitão
Já Pedro Simon viu na morte do “mito” o fim de um ciclo de
políticos que se dedicaram intransigentemente à defesa do nacionalismo econômico e Cristovam
Buarque não perdeu a oportunidade de salientar que ele mudou de
partido quatro vezes, sem, no entanto, mudar de lado. Caetano Veloso disse no velório que Arraes se
manteve reto e íntegro até o final
de sua vida e Carlos Heitor Cony,
na Rádio CBN, que ele pertenceu
a uma extirpe de políticos que não
desonraram a vida pública.
Muito ainda será dito por
cientistas políticos, sociólogos,
e quem mais se dedique ao estudo de sua personalidade, da sua
obra de pedra e cal nas três vezes
em que governou o Estado, e também dos seus escritos, a maioria
dos quais sobre questões políticas
e econômicas. Esses haverão de
concluir que se tratava do único
político nordestino, e talvez brasileiro, que transmitia sinceridade
absoluta quando pronunciava a
palavra “povo”.
Inaldo Leitão é deputado federal
pelo Estado da Paraíba.
Fonte: Correio da Paraíba
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
D
e Miguel Arraes já se disse
tudo depois de sua morte, sábado, aos 88 anos de idade.
Uns, como o senador Marco Maciel, fizeram questão de destacar a
sua dedicação integral à vida pública, a sua coerência política e a sua
defesa intransigente dos interesses
nacionais. Outros, como o deputado Roberto Freire, enfatizaram a
fidelidade dele às camadas menos
assistidas da população e a forma
digna como portou-se no governo
estadual ao ser deposto pelos militares no dia 1º de abril de 1964.
Arraes, o amigo do povo
Ítalo Rocha
Durante o período de internamento hospitalar, um fato me
chamava sempre a atenção: muitos
colegas de profissão pouco sabiam
sobre a obra administrativa do
homem que, quando prefeito do
Recife, cuidou da alfabetização de
crianças, jovens e adultos pobres,
construiu as avenidas Sul, Abdias
de Carvalho e Conselheiro Aguiar,
ergueu a ponte do Limoeiro, concluiu a avenida Norte e concretou
a avenida Boa Viagem. Realizações
que ficaram para sempre no traçado urbano da cidade.
Pois bem, deparei-me, várias
vezes, com a pergunta: “Ele fez
o quê como prefeito?” Também
sabiam pouco sobre o trabalho
desenvolvido por Arraes como
governador de Pernambuco. Do
Acordo do Campo, assinado no
primeiro governo, no Palácio do
Campo das Princesas, que regulamentou e tornou menos injusta
a relação dos trabalhadores rurais
da cana-de-açúcar com os usineiros, poucos dos meus colegas mais
jovens tinham ouvido falar.
Aproveitei e falei também para
alguns sobre a preocupação que
Miguel Arraes teve, em todos os
seus três governos, em tentar diminuir as desigualdades sociais, com
a criação de programas para levar
à população pobre do interior luz
elétrica, água e crédito agrícola.
Mas compreendi a falta de
conhecimento de alguns colegas
em relação à obra do líder político Miguel Arraes. Sou testemunha
da aversão que ele tinha de aparecer nos veículos de comunicação.
Nunca gostou.
Lembro bem que, em 1990, ao
ser eleito, proporcionalmente, o deputado federal mais votado do Brasil, o Jornal Nacional, da Rede Globo, quis entrevistá-lo. Ele resistiu o
quanto pôde. Finalmente, cedeu. Na
manhã do dia seguinte, quando che-
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
C
ompareci com freqüência ao
Hospital Esperança, no bairro da Ilha do Leite, no Recife,
nos quase 60 dias em que o ex-governador Miguel Arraes esteve internado. Carrego comigo, até hoje,
com muito orgulho, o fato de ter
trabalhado na assessoria de comunicação de Miguel Arraes, entre
1986 e 1990.
gou ao Crato para uma comemoração familiar, sentiu na pele a força
da mídia. Foi lembrado por todo
mundo na cidade pela entrevista
que dera ao JN na noite anterior.
Evaldo Costa (Org.)
No dia da sua morte, 13 de
agosto (ele não gostava desse número), alguns colegas mostraram
desconhecimento também sobre a
deposição do governador Miguel
Arraes, ocorrida na madrugada do
dia 1º de abril de 1964. Algumas
matérias que foram ao ar diziam
que “Arraes renunciou sob pressão
dos militares”. Muito pelo contrário. Ele não aceitou a pressão dos
militares para renunciar ao governo de Pernambuco e, em troca,
ganhar a liberdade. Pagou caro.
Foi deposto, preso e exilado. E não
abriu mão das suas convicções.
70
Mas Dr. Arraes era assim
mesmo. Não fazia marketing pessoal, não gostava de dar entrevistas, nunca quis alimentar projetos
editoriais sobre a sua vida. Não
propagava as obras realizadas por
ele. Achava que era uma obrigação
fazê-las, e que ao povo cabia julgálas e divulgá-las. Não sei se ele estava certo. Mas talvez essa aversão
à mídia seja a responsável pelo fato
de alguns dos meus colegas desconhecerem um pouco da trajetória
do ícone da esquerda brasileira:
Miguel Arraes de Alencar, o amigo
do povo!
Ítalo Rocha é jornalista.
Fonte: Jornal do Commercio
O símbolo
Jânio de Freitas
verno maravilhosamente original,
criativo e eficiente, o seu primeiro
governo em Pernambuco, encerrado pelo golpe militar.
Miguel Arraes fica como símbolo de honradez política e de caráter pessoal.
Jânio de Freitas é jornalista.
Fonte: Folha de S. Paulo
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
M
iguel Arraes foi o mais injustiçado dos políticos relevantes que os militares
massacraram. A direita pintou-o
como extremista perigoso, e Miguel Arraes, de esquerda, sim, foi
sempre anti-radical, sempre convencido de que era possível abrir
caminhos para a justiça social sem
entrar em guerra com as forças
que a criaram e a mantêm. Foi o
que fez como condutor de um go-
Dr. Arraes, presente!
José Áureo Bradley
Tive o privilégio de entrar
com ele no Palácio do Campo
das Princesas, nas quatro principais ocasiões de sua prodigiosa vida política, e só sofri na
última, dia 13 de agosto. Sempre
agosto. Nessa ocasião, as lágrimas já não me eram exclusivas,
nem tão pouco aos meus queridos amigos, seus familiares. A
emoção resplandecia nos rostos
humildes e sofridos daqueles que
sempre identificaram em Arraes o homem símbolo que jamais
tergiversara em defesa das causas
e anseios populares. Para nosso
querido Dr. Arraes, apenas e exclusivamente um norte era divisado, mesmo que as intempéries
de uma sociedade corrupta, corroída e nefasta o obrigassem, em
certos momentos, pela prudência ou pelos porões da ditadura,
a diminuir os passos, sem jamais
desviá-los do caminho que seria
seu objetivo: os anseios do povo
pobre e carente.
Na madrugada do seu adeus,
presenciei uma cena que guardarei de forma indelével no coração, como uma marca do amor e
do respeito dedicados a este ícone
da política séria brasileira. Madrugada adentro, chegou diante
do esquife, onde dormia seu último sono o grande guerreiro, um
velhinho vestido com simples e
rotas roupas. Calmamente, retirou de um dos bolsos um chapéu
de marinheiro e tentou dar-lhe o
formato original. Colocou-o sobre a cabeça e, com uma postura
que resplandecia altivez, perfilado,
fazendo continência, proclamou:
“Governador Miguel Arraes, um
humilde marinheiro, como o seu
povo, se diz, presente”.
O simbolismo daquele ato tocou a todos. Ali estava o guerreiro, um verdadeiro estadista, que,
como tal, teve que sofrer com as
perfídias dos subservientes, injus-
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
T
alvez para alegria do grande
poeta Lourival Batista, ele dessa
vez saiu pela porta que entrou.
Saiu nos braços do seu povo, não
mais sob a arrogância das baionetas caladas e das botas deslustradas,
mas nos ombros de cadetes que,
com suas fardas, polainas e trinchetes reluzentes, pareciam pedir perdão pela truculência de outrora.
tos e ingratos, que tentaram, de todas as maneiras possíveis, denegrir
a imagem irretocável deste exemplar estadista, esquecendo que a
sua blindagem moral era intransponível, e as aleivosias atiradas
sobre ele se dissiparão no tempo,
como já perdidas estão na justiça e
no coração das pessoas sérias, que
aprenderam a dedicar-lhe um profundo sentimento de admiração.
A ninguém será facultado o
direito de desconhecer, por maiores que sejam suas restrições para
com o doutor, que em qualquer
foro, nacional ou fora das nossas
fronteiras, ele se afirmou com uma
das maiores lideranças pensantes
da política do ontem, do hoje e,
sem dúvida, do amanhã e sempre.
Evaldo Costa (Org.)
Foi com o surgimento emblemático do pensamento de Dr. Arraes que os deserdados do passado
começaram a receber uma cacimba de água, um bico de luz em suas
casas. Os trabalhadores sentaramse à mesa com o governador para
discutir questões inerentes aos pobres e isso é compromisso evidente
com as causas populares.
74
As verdades e posturas irretocáveis de um dos maiores homens públicos que este País já teve
e aprendeu a respeitar e admirar,
retratam-se bem no seu próprio
dizer: “As reivindicações do povo
têm que ser colocadas e o povo há
de compreender o que pode e o que
não pode ser feito, porque não vamos governar às escondidas, vamos
governar dizendo ao povo o que é
possível e o que não é possível fazer,
para que o possível se faça logo, e
para que o impossível o povo ajude
a construir para o futuro.”
Este é o governador do povo
e o homem que guardarei no peito, enquanto me for possível a
vida. Por outro lado, seguirei por
todas as plagas defendendo aquele que sempre acompanhei, sem
tergiversar um só minuto, a quem
aprendi a respeitar por sua firmeza
de caráter, liderança indiscutível e
postura ideológica, que jamais conheceu o verbo trair.
Forte, bravo guerreiro, brigou
quase 60 dias com a morte, para
que ela, covardemente, recorrendo
a trilhões de soldados inimigos,
transvestidos em infames bactérias, pudessem quedar seu corpo,
mas, jamais conseguiriam dobrar
suas idéias e seu incomensurável
querer bem ao povo. Não temos
como buscar sua empatia com o
povo, porém, o exemplo a que todos teremos que seguir é o da bravura e do destemor de defender,
seja em que trincheira for, a dignidade, probidade, honradez e coragem cívica do nosso grande líder.
Dr. Arraes, este seu eterno liderado, que teve o orgulho
de ser seu líder, na qualidade de
deputado na Assembléia Legislativa, perfila-se, mesmo sem o
roto chapéu de marinheiro, para
dizer sem subserviência, mas com
muito querer bem: ontem, hoje,
José Áureo Bradley, advogado, exdeputado e ex-suplente de senador.
Fonte: Jornal do Commercio
Cartas de Agosto
amanhã e sempre – presente. Ao
guerreiro do povo, a certeza de
que Arraes taí, Arraes taí, de novo
e eternamente.
75
As duas vidas de
Miguel Arraes de Alencar
M
iguel Arraes, líder histórico da esquerda brasileira,
morreu em decorrência de
uma infecção respiratória sábado,
13 de agosto, no Recife. Ele estava
com 88 anos.
Nascido em 15 de dezembro
de 1916, em Araripe (Estado do
Ceará), em uma tradicional família do Nordeste do Brasil, Miguel
Arraes cresceu no coração do sertão. Durante sua infância, ele via
passar os camponeses perseguidos
pela seca e os cangaceiros, bandidos de honra.
Partiu para fazer direito no
Rio de Janeiro, depois transfere-se
para o Recife e, em 1950, é eleito
para a Assembléia do Estado de
Pernambuco. Em 1959, torna-se
prefeito do Recife. Três anos mais
tarde, encabeçando uma frente de
esquerda, é eleito governador do
estado. Deu origem ao movimento de alfabetização popular e da
instauração, pela primeira vez no
Brasil, de um salário mínimo para
os trabalhadores rurais. Miguel
Arraes ganha agora um renome
nacional.
Com a aproximação das eleições presidenciais de 1965, ele
surge como um dos candidatos da
esquerda. Mas a erupção do golpe
de Estado militar de 1964 quebra
a ordem constitucional e instala
uma ditadura que se prolonga até
1985. Miguel Arraes é encarcerado
em um quartel no arquipélago de
Fernando de Noronha, em pleno
oceano Atlântico. Na seqüência de
um acórdão do Supremo Tribunal,
que ainda resistia aos militares, e
de uma campanha internacional
de solidariedade da qual participaram François Mauriac e Graham
Greene, ele foi libertado em 1965 e
deixa o Brasil rumo à Argélia, que
oferece a ele asilo político.
Próximo ao presidente Lula
Começa agora a segunda vida
de Miguel Arraes. Recebido na Argélia com todas as manifestações
de respeito, ele se liga aos dirigentes da África lusófana, dividida
em facções rivais, entregando-se
à uma áspera disputa junto ao governo argelino e a Organização da
Unidade Africana (OUA). É um
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Luis Felipe de Alencastro
dos que ajudam o MPLA (Movimento Pela Libertação de Angola)
e o Frelimo (Frente pela Libertação de Moçambique) a crescer em
poderio na Argélia.
Após a independência de
Moçambique (1974) e de Angola
(1975), é recebido em Luanda e
Maputo com honras de chefe de
Estado. À época, também vai a
Lisboa, onde participa de reuniões
com militares de esquerda que dirigiam Portugal após a “Revolução
dos Cravos”.
Evaldo Costa (Org.)
Enquanto isso, a situação política brasileira evolui, na seqüência da vitória obtida quando das
eleições legislativas de 1974, pela
oposição tolerada sob a ditadura.
Miguel Arraes desloca-se então
freqüentemente para Paris, onde
empenha-se a tecer relações entre a esquerda francesa e a nova
esquerda emergente no Brasil.
Graças à Anistia de1979, ele retor-
78
na ao Recife, onde é recebido por
uma grande massa popular.
Eleito deputado federal, depois Governador de Pernambuco
por duas vezes (1986 e 1994), Arraes dirige o Partido Socialista Brasileiro (PSB), aliado do Partido dos
Trabalhadores (PT). Sob esta legenda, ele participaria das quatro campanhas presidenciais de Luís Inácio
Lula da Silva (1989, 1994, 1998 e
2002) e se tornaria um conselheiro
próximo do atual presidente.
Com a morte de Miguel Arraes, a esquerda brasileira perde um
de seus líderes mais prestigiados no
movimento de independência das
colônias portuguesas na África.
Luiz Felipe de Alencastro
é professor de História do Brasil na
Universidade de Paris.
Fonte: Le Monde
Miguel Arraes
P
ernambuco perdeu, a 13 de
agosto passado, um dos líderes políticos mais expressivos
dos últimos 50 anos. Arraes tem
um lugar na história pernambucana. Com numerosas figuras que
o antecederam na administração e
condução política do Estado, ele se
posiciona dentro das figuras mais
eminentes, ao lado de Duarte Coelho, no século 16, e de Dantas Barreto, já no século 20.
De coragem incontestável e
honestidade a toda a prova, com
um senso de equilíbrio e fidelidade ao povo incomparáveis, ele dedicou sua vida à busca de corrigir
injustiças herdadas da colonização,
e a atenuar desigualdades sociais.
Na sua luta em favor do povo, este
cearense de nascimento e pernambucano de coração igualou-se a
Nabuco, um dos maiores pernambucanos de todos os tempos; na
preocupação com as condições de
vida e alimentação dos necessitados, ele lembra Josué de Castro; na
luta para melhorar a situação dos
camponeses, relembra Francisco
Julião; na tentativa de encontrar
soluções para os desafios enfren-
tados pelos discriminados, lembra
João Alfredo, realizando a abolição de escravatura sem indenização aos proprietários de escravos.
Na defesa da organização dos trabalhadores rurais em sindicatos,
lembra Gregório Bezerra, sempre
lutando pela extensão da legislação trabalhista ao campo.
Analisando-se a figura de
Arraes, o reformador, o estadista,
observa-se nele uma série de qualidades políticas que desenvolveu,
mantendo a coerência da linha de
pensamento deste os seus dias de
estudante até o fim da vida. Seu
desejo era que os problemas do
povo fossem resolvidos com a
participação popular. Seu empenho pela liberdade de manifestação do pensamento e da ação
dos mais humildes, seu senso de
disciplina, sua preocupação com
as condições de vida do povo fizeram dele o ídolo popular que
todos reconhecemos.
Demonstrou coerência nas
horas mais difíceis do seu primeiro mandato, quando pugnou
pela aplicação da lei que levasse
ao campo os direitos concedidos,
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Manuel Correia de Andrade
deste 1943, aos trabalhadores da
cidade, garantindo ao trabalhador
rural benefícios que repercutiram
sobre a vida de cidades e vilas do
interior. Para fortalecer este direito, contribuiu para a difusão do uso
do rádio de pilha, para o homem
mais simples tomar conhecimento
do que acontecia no mundo.
Não podendo realizar reforma agrária em nível estadual,
procurou levar o crédito agrícola
a juros mais baixos, chegou aos
pequenos agricultores, impedindo
a ação de agiotas que detinham o
controle da comercialização da pequena produção do campo.
Evaldo Costa (Org.)
Com o desenvolvimento do
movimento sindical e de organizações populares, Arraes levou o
povo à participação nas deliberações políticas, fazendo com que
se interessasse pelo que se passava
na roda do poder. A preocupação
com a elevação educacional levouo, ainda quando prefeito do Recife, a criar o Movimento de Cultura
Popular, demonstrando que a educação não era apenas a instrução
formal, mas a formação cultural
como um todo.
80
Não era menor a preocupação de Arraes com a saúde e a
habitação das camadas populares,
além do meio ambiente, quando
combateu o uso, muito difundido, do lançamento dos resíduos
industriais no leito dos rios, uso
proibido, desde 1908, no Governo
de Herculano Bandeira.
Deposto em 1964, quando
um golpe militar impediu que o
Brasil se desenvolvesse, através de
uma série de reformas, inclusive
a agrária e a urbana, foi preso e
exilado para Argélia, onde permaneceu quase 15 anos. Período em
que, apesar de distante, não deixou
de observar e estudar o Brasil, e de
dar assistência aos países subdesenvolvidos da África.
De volta ao Brasil, em 1979,
foi recebido entusiasticamente pelo
povo, mas não se candidatou ao
governo, a fim de não atropelar lideranças de oposição que, na sua
ausência, se formaram na luta em
defesa da restauração da democracia. Foi eleito deputado federal,
atuando na Constituinte. Seu candidato, Marcos Freire, não foi eleito face à modificação feita na legislação eleitoral, com a vinculação
dos votos municipais, estaduais e
federais. Em 1986 foi eleito governador do Estado, readquirindo o
mandato que lhe foi violentamente
tirado em 1964. Seria novamente
eleito em 1994, dirigindo o Estado
até 1998, quando foi derrotado na
tentativa de uma reeleição.
Na trajetória política de Arraes observa-se uma permanente
coerência com os princípios que
sempre o nortearam. Pugnava por
um esquerdismo reformista, defendia modificações nas estruturas
nacionais que respondessem aos
desafios dessa realidade. Por tudo
isto, o povo, bem mais que as elites,
Exilados do Nordeste, lançado pela
Editora Universitária, no próprio
mês do seu falecimento.
Manuel Correia de Andrade, historiador, geógrafo e membro da
Academia Pernambucana de Letras.
Cartas de Agosto
o entendeu e permaneceu ligado e
fiel a ele até a sua morte. A literatura sobre Arraes, incluindo seus
próprios livros, é abundante, mas
certamente a sua vida será assunto
de seminários, ensaios e análises.
Ela já começou, com o livro da
socióloga cearense Lucili Grangeiro Cortez, O Drama Barroco dos
Fonte: Jornal do Commercio
81
Um líder nordestino
à moda antiga
Maria Victoria Benevides
Formou-se em direito no Recife e trabalhou como delegado do
antigo Instituto do Açúcar e do
Álcool até 1948, quando assumiu
a Secretaria da Fazenda do Estado,
no governo Barbosa Lima Sobrinho. Nunca mais se desligou da
política, permanecendo essencialmente um político do Nordeste e,
acima de tudo, de Pernambuco.
Foi deputado estadual, prefeito do Recife (1959), governador
(1962), cassado, preso em 1964,
exilado em 1965, anistiado em
1979, deputado federal em 1982
e vice-presidente do PMDB; volta
ao governo em 1986, apóia Tancredo, apóia Sarney, rompe com
o partido, é deputado federal pelo
PSB em 1990, e, finalmente, volta
ao governo do Estado em 1994,
com amplo apoio popular e das
esquerdas, mas não consegue a
reeleição (aliás, votara contra essa
emenda no Congresso) em 1998,
derrotado por Jarbas Vasconcelos,
do PMDB.
De sua intensa e honrada vida
política, fica a marca da identidade
com as lutas populares – sobretudo
com os trabalhadores rurais, pela
sindicalização e pela reforma agrária – e com a defesa das teses nacionalistas. Fica, também, o estilo
de um populista rural, personalista,
conciliador e pragmático (embora
com fama de radical), com o perfil
carismático de um chefe rude, austero e venerado, pai de dez filhos.
Dos anos 50 em diante, a
história política pernambucana,
assim como a saga da esquerda,
dos comunistas aos católicos, permanece entrelaçada com a vida
de Arraes, apesar de seu longo e
forçado exílio. O mito político se
constrói com história e carisma.
Arraes sempre teve ambos. Pela
biografia, surge como bastião da
luta pelas reformas de base e como
reserva ideológica do nacionalismo “puro e duro”. Surge, também,
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
O
mais popular político de
Pernambuco veio do Ceará,
nascido em Araripe (1916),
criado no Crato e estudante no
Rio de Janeiro, então capital da
República. De família ligada a terra, Miguel Arraes de Alencar tem
parentesco com outros ilustres cearenses, como José de Alencar e o
marechal Castello Branco.
com a autoridade moral de quem
foi deposto, preso e exilado pelo
regime militar e que, anistiado,
tem a coragem de criticar o governo por proteger “os responsáveis
pelos desaparecimentos, pela tortura, pelas mortes e pelas prisões
arbitrárias”. (Só em 2005 Arraes
recebe indenização devida às vítimas da ditadura)
Evaldo Costa (Org.)
Por outro lado, o carisma de
Arraes assenta-se no modelo messiânico e sebastianista do nordestino. É assim que ele pôde passar
por vários partidos e mesmo algumas alianças eleitorais espúrias,
sem perder o prestígio popular e
o respeito das esquerdas. Tem o
carisma do “pai patrão”, severo e
sempre igual “no seu modo sertanejo de ser”, renegando o “progresso” do gravador, da televisão,
em troca do contato pessoal nas
visitas a povoados, feiras, mercados municipais, romarias, andanças pelas ruas do Recife.
84
O “dotô Arraia” tem o carisma do chefe religioso, de quem se
espera a chuva no agreste e a cura
no chá com pedaços de sua foto
em cartaz de campanha... Daí se
entende os nomes de seus programas no governo: “Vaca na Corda”,
“Chapéu de Palha” ou “Água na
Roça”. Acima de tudo, Miguel Arraes tem o carisma “daquele que
voltará” – e sua eleição em 1986,
22 anos após a prisão e o exílio,
renova a velha esquerda, mas também o velho sebastianismo.
Essa oposição entre o homem
da esquerda democrática e o cacique tradicional, entre a reivindicação e a bênção, reforça o mito no
plano regional, mas o enfraquece
no nacional. A força do mito é,
portanto, limitada. O político antigo “do conchavo e do comício”,
como diziam os próceres do velho
PSD, do qual fez parte, não logrou
liderança no plano nacional, não
entusiasmou os novos movimentos sociais nem a juventude politizada. Não conseguiu disputar com
Luiz Inácio Lula da Silva ou com
Leonel Brizola a liderança nacional da esquerda.
Sua trajetória circunscrevese à geografia político-eleitoral
de Pernambuco. Em nome desses
interesses, fez arranjos e concessões de todo tipo, acima dos partidos e das demarcações ideológicas. “Não vamos pedir atestado a
quem nos apóia”, insistia sempre.
Nas fronteiras pernambucanas foi
aliado e adversário de quase todos
os líderes políticos – como João
Cleofas, Cid Sampaio, Francisco
Julião, Marcos Freire, Fernando
Lyra, Cristina Tavares e Jarbas
Vasconcelos – ao sabor das conjunturas eleitorais. Nas duas vezes em que chegou ao governo do
Estado, construiu um amplo arco
de alianças, agregando ostensivamente setores da oligarquia mais
conservadora.
Em 1962, é eleito pela Frente
do Recife, que reunia comunistas,
Outro exemplo da predominância de interesses provincianos
em suas decisões políticas é o relacionamento com o presidente José
Sarney, em 1987. Até então defensor do governo, Arraes rompe com
Sarney devido à nomeação, para o
Ministério do Interior, de um adversário seu em Pernambuco. A
nomeação foi considerada “uma
afronta ao PMBD pernambucano”, mas, na verdade, tomou como
desfeita a ele próprio, que não fora
consultado.
Em 1989 articula para ser o
candidato do PMDB à Presidência
da República, acreditando ser uma
boa oposição ao também nordestino Fernando Collor. Perde a indicação para Ulysses Guimarães
e jamais se conformará com essa
derrota, uma nova “desfeita”. No
segundo turno das eleições nacionais, Arraes está com Lula (no
primeiro turno apoiou o velho
companheiro Brizola) e assim se
impõe como a principal ponte entre o PT e o PMDB. No entanto,
essa adesão a Lula tem impacto
muito menor, por exemplo, do que
o apoio de Brizola e de alguns tucanos, como Mario Covas.
Em 1990, eleito deputado federal com a maior votação absoluta e proporcional naquele ano
(10,47% do total de votos), Arraes
continuou pouco visível no cenário nacional. Assim como ocorreu
com Lula, Arraes não é homem do
Legislativo. Era de se esperar uma
atuação vigorosa no Congresso
ou a liderança sobre uma ampla
bancada interestadual como ocorre com Sarney, por exemplo. Mas
Arraes não se destacou sequer na
batalha do impeachment, embora
tenha votado a favor, é claro.
Cartas de Agosto
socialistas, trabalhistas e militantes católicos. Mas o vice era conservador e a vitória contou com
os votos preciosos do cabresto de
“coronéis”, como o famoso Chico
Heráclio. Em 1986, elege-se pelo
PMDB, na nova Frente Popular,
que reunia desde o PCB e o MR-8
até malufistas – e seu vice é oriundo da antiga Arena.
Conseguiu, por outro lado,
acender e ampliar a chama histórica do nacionalismo, pois rompera
com o PMDB justamente por se
opor “à política de privatização e
desnacionalização do Estado” do
governo Collor. E, em 1993, pouco se sabe das posições de Arraes
sobre a revisão constitucional, as
reformas eleitoral e partidária ou o
propalado choque econômico.
Apoiou o governo do vice
Itamar Franco, acolhendo em seu
PSB a deputada Luiza Erundina,
convidada para o ministério da
transição. Logo partiu para os conchavos e peregrinações pelo interior de Pernambuco, em campanha para o Palácio das Princesas,
sendo reeleito em 1994.
Teve problemas com a Justiça,
por conta dos precatórios, mas não
85
chegou a ser condenado. Em 2002,
com mais de 80 anos, volta ao Congresso como deputado e também
presidente do PSB. Em 2003, leva
seu partido a compor a base parlamentar do governo Lula e consegue
indicar o neto, Eduardo Campos,
seu único herdeiro político, para
ser ministro de Ciência e Tecnologia. De lá para cá, manteve-se discreto aliado.
Evaldo Costa (Org.)
De Miguel Arraes os historiadores deverão aprofundar esse
exemplo notável do político sério à
moda antiga. E que, se não conse-
86
guiu ser uma expressiva liderança
nacional, continuou em sua terra
sertaneja com a marca indelével
do grande chefe: ele é o forte, mas
é também uma espécie de santo,
aquele a quem artistas identificam
com o povo e cantam que tem “um
nome que se faz poesia”.
Maria Victoria Benevides
é socióloga, professora titular
da Faculdade de Educação da USP.
Fonte: Folha de S. Paulo
Um líder coerente
Marisa Gibson
E, Arraes encerra a sua trajetória na vida como deputado
federal, pelo PSB, sem nunca ter
negado os princípios que nortearam sua vida. Cedo, ele fez opção
de trabalhar para os pobres, instalou um governo popular e arrastou
multidões que o veneraram como
a um messias. Tornou-se um mito.
E, como tal, governou Pernambuco
três vezes, sempre com uma linha
divisória entre as elites e o povo.
Teve acertos e erros, como todos os governantes. Foi elogiado e
criticado, como todo homem público. Mas, a sua força política era
tamanha que, para derrotá-lo, foi
necessário a formação de uma das
maiores alianças já vista no Estado,
entre políticos de esquerda, centro e
direita que se uniram num mesmo
palanque, em 1998, decretando o
fim da era Arraes. O ex-governador
tentava o seu quarto mandato. Foi
derrotado por Jarbas Vasconcelos.
Retirou-se, então, do grande
palco da política pernambucana,
mas permaneceu presente em cada
grotão do Estado, onde famílias
pobres continuam a lhe reverenciar pelas cacimbas e pelos bicos
de luz. Registre-se: essas cacimbas
e esses bicos de luz não são marcas
de seus governos, mas de sua grande sensibilidade.
Referência
Miguel Arraes, Leonel Brizola, Ulisses Guimarães e Tancredo
Neves, cada um com suas peculiaridades, marcam um longo período da História do Brasil. Eles
fazem falta no cenário político
brasileiro sob todos os aspectos,
seja em tempos de paz, seja em
dias de ira. Hoje, o Brasil não tem
um só político que seja uma grande referência nacional.
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
A
coerência do discurso de
Miguel Arraes, ao longo
de 58 anos de vida pública, é uma lição para o Brasil, um
país que já passou pela experiência amarga da ditadura e que teve,
justamente, na figura do ex-governador de Pernambuco, o maior
símbolo de resistência em torno
de ideais políticos.
Papel
Único político pernambucano a governar o Estado três vezes,
Miguel Arraes teve um papel fundamental no encaminhamento da
questão agrária no País, que terminou se transformando num dos
pretextos para a ditadura militar.
Décadas
Cobranças
Para se avaliar a ousadia de
Arraes em implantar um governo
popular no Estado, passos que ele
já havia iniciado como prefeito
do Recife, em 1959, foram necessários quase 40 anos para que
o Brasil elegesse um presidente
– Lula – com ideais semelhantes.
Resta agora torcer pelo Governo
Lula, que passa momentos de riscos, mas por outros motivos.
Em Pernambuco, as cobranças, em torno de Eduardo Campos
serão maiores. É, no Estado, onde
vão aflorar as comparações entre o
avô e o neto. E, sobre este aspecto, o ministro deve deixar claro, o
mais rápido possível, que ele é herdeiro mas não o continuador da
vida nem do estilo de Arraes.
Evaldo Costa (Org.)
Herdeiro
88
pendente de posições partidárias.
Essa atenção deve-se principalmente a três motivos: o fato de
ser neto de Arraes, o seu temperamento afável e a sua capacidade
de negociador. Mesmo assim, ele
vai precisar aumentar a sua resistência imunológica.
Agora, o deputado Eduardo
Campos, inicia uma nova fase na
sua vida político-partidária. Na
qualidade de herdeiro das idéias
e do prestígio político-eleitoral do
seu avô, Miguel Arraes, o deputado Eduardo Campos vai ter que se
desdobrar, para corresponder às
expectativas...
Resistência
Eduardo Campos é um político querido em Brasília, inde-
Sucessão
É evidente que essa nova
realidade terá um grande impacto na performance eleitoral
do PSB nas eleições do próximo
ano. Mas é cedo para se avaliar o
que vai acontecer com a possível
candidatura de Eduardo Campos
ao Governo do Estado. Esta vai
ser uma questão crucial para o
deputado.
Marisa Gibson é colunista política
do Diário de Pernambuco.
Fonte: Diário de Pernambuco
Arraes
Mauro Santayana
Não há, na história republicana, outro homem público que
tenha sido eleito diretamente pelo
povo governador de um Estado
três vezes. Só isso basta para mostrar a força política de Miguel Arraes, um socialista que tinha os pés
no chão.
Mauro Santayana é jornalista.
Fonte: Jornal do Brasil
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
A
morte de Arraes faz nascer
um novo mito no Nordeste.
Os sertanejos pobres, em
sua intimidade com o Absoluto e
com a morte, têm, agora, depois de
Antonio Conselheiro e do Padre
Cícero, outro ícone a venerar.
Meu encontro com Arraes
E
u tinha 13 anos quando o
governador de Pernambuco,
Miguel Arraes de Alencar, foi
deposto e preso pelos militares
do Quarto Exército, no Recife.
Naquela época, não tinha como
entender a gravidade dos acontecimentos políticos, senão através
da angústia e expectativa de meus
familiares, alimentadas pela histeria anticomunista que tomava
conta do País. De lá para cá, muita água correu debaixo da ponte.
O ex-governador voltou ao Brasil,
foi eleito deputado federal, governador do Estado, deputado outra
vez e finalmente, governador pela
terceira vez. Apesar de sempre ter
votado nele, fui um duro crítico de
sua terceira e última gestão, seja
em livros, em artigos, em entrevistas a jornais locais e nacionais.
Tive a oportunidade de conhecêlo pessoalmente numa reunião
do PSB, onde fui convidado a fazer um balanço das perspectivas
do governo Lula, no seu início. E
gostaria, aqui, de relembrar o diálogo que então tivemos.
Naquela ocasião, o ex-governador – então eleito deputado fe-
deral e presidente de seu partido
– encontrava-se muito gripado e
quase não se ouvia direito a sua
voz. Mas foi ele quem abriu o encontro com suas conhecidas opiniões sobre a necessidade de união
das esquerdas, contra a dominação
externa e seus aliados no País. Antes, porém, que se retirasse para
cumprir outros compromissos políticos, pedi a palavra para cumprimentá-lo e dizer da minha satisfação em conhecê-lo pessoalmente,
naquele encontro.
Nesta minha única conversa
com o ex-governador, disse-lhe
que era um dos últimos políticos
dotados de espírito público que o
Estado e o País tinham conhecimento. E que, por isso mesmo, ele
devia ser preservado como uma
espécie de reserva cívica e republicana da política brasileira, ao invés
de se expor em suas múltiplas andanças, como dirigente partidário.
O velho político ouviu calado a
minha saudação e replicou, com
bom humor, que aquilo que o
mantinha vivo e (era) a razão de
sua sobrevida era a política e a luta
democrática por um país melhor.
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Michel Zaidan Filho
E que, se não fosse por isso, não
valeria continuar vivo.
Evaldo Costa (Org.)
Saí do encontro comovido e
repensei as duras críticas que lhe
dirigi, em seu último mandato.
Miguel Arraes foi um representante de sua geração e jamais se modificaria para se adequar aos ritos
da chamada democracia participativa, com suas assembléias, fóruns
e conselhos. Mas dentro da moldura terceiro-mundista, nacionalpopular de seu pensamento, ele
nunca abjurou suas convicções, ao
contrário dos falsos democratas
que assumiram o governo, depois
dele. Gestores autoritários, intole-
92
rantes, preocupados acima de tudo
em vender o patrimônio público a
preço de banana, na bacia das almas. “Salesmem”, como chamava
a revista inglesa, uma safra de políticos definitivamente desprovida
de espírito público e generosidade
política. O povo de Pernambuco
ainda vai ter muita saudade do exgovernador, quando descobrir que
ficou mais pobre e menos livre.
Viva Arraes! Viva o povo brasileiro! Viva o Brasil!
Michel Zaidan Filho
é cientista político.
Fonte: Jornal do Commercio
Heróis
A
morte de Arraes na maré
alta da crise revelou algumas forças poderosas do
atual momento. Em primeiro lugar, como notou Urariano Mota
em seu artigo no La Insignia, a
identificação total com o povo que
o idolatrava, sinal de que uma vida
dedicada às necessidades populares se foi para sempre.
E não porque, com Arraes,
pela primeira vez as pessoas pobres
tiveram acesso ao rádio de pilha,
como notou, toscamente, o presidente Lula no velório (ele acha
que o povo é mendigo, não tem
grandeza). Mas sim porque Arraes
representa uma linhagem de políticos dedicados à causa nacional, e
que por isso foram perseguidos e
imobilizados. Outra força revelada
foi a da existência, entre nós, de
pessoas com real valor, ou seja, o
Brasil tem capacidade de produzir
homens públicos memoráveis, o
que pode nos libertar dos grilhões
da mediocridade vigente.
O encontro (sem cumprimentos) entre José Dirceu e Caetano Veloso na madrugada diante
do corpo presente, como conta
Noblat no seu imprescindível blog,
mostra dois vetores contraditórios
da mesma geração. Dirceu encarna a pobreza cultural dos militantes de 68 que queria tomar o poder, mas eram conservadores na
estética e na política, exatamente a
denúncia de Caetano num festival
de música.
O pranto de Caetano diante do corpo presente nos devolve
também o artista que rompeu e
ampliou as comportas da música
popular. Vê-lo chorando é lembrar
o quanto foi importante nos anos
de chumbo, quando sua palavra,
seu som e seu exemplo eram nossos companheiros de estrada. Não
se trata de um revival. Mas a revelação (mais uma) de que os grandes artistas estão vivos e podem ser
fundamentais nesta quadra de incertezas que atravessamos. Precisamos da transcendência da cultura
para decifrar o enigma. A vida do
país é importante demais para ser
deixada apenas para os políticos.
Nei Duclós é escritor.
Fonte: http://outubro.blogspot.com/
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Nei Duclós
Morte de Miguel Arraes encerra ciclo
dos primeiros esquerdistas do Brasil
Paulo de Vasconcellos
Ao ser sepultado no final da
tarde de ontem no Recife, Miguel
Arraes terminou de enterrar com
ele também a primeira geração
de políticos que ajudou a fundar
a hoje combalida esquerda brasileira. Talvez lhe tenha servido de
consolo ter partido como certamente imaginou: acompanhado
por uma multidão formada por
brasileiros humildes que viam naquele nordestino de fala quase incompreensível, mau humor crônico e feições duras, um dos maiores
símbolos populares do país.
Cerca de 300 mil pessoas
passaram pelo velório do deputado federal e ex-governador de Pernambuco no Palácio do Campo
das Princesas. Luiz Inácio Lula da
Silva foi aplaudido ao chegar para
reverenciar a memória do aliado,
mas representantes do Partido
da Social Democracia Brasileira
(PSDB), que pede o impedimen-
to do presidente da República por
causa da vaga de corrupção no governo, entraram e saíram vaiados
pela multidão.
Miguel Arraes morreu aos
88 anos. Até o fim manteve-se fiel
a Lula. Desde a morte de Leonel
Brizola, no ano passado, era o remanescente dos inimigos figadais
do regime militar de 1964. Os dois,
mais o líder camponês Francisco
Julião, formavam um trio mais temido pela ditadura militar do que
aqueles que aderiam à luta armada. Por eles, o processo de redemocratização sofreu idas e vindas
e a anistia foi adiada.
A morte de Miguel Arraes,
apeado do poder e acusado de corrupto e subversivo, foi quase transformada uma manifestação natural
de desagravo a Lula. O Presidente
viajou acompanhado de seis ministros. Ficou dez minutos a consolar
a viúva, dona Magdalena, segunda mulher de Arraes, enquanto a
multidão gritava “Olê, olê, olá, olê,/
Lula, Lula, acreditamos em você”.
A comoção pela morte do
maior líder político de Pernambu-
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
O
velório do ex-governador acabou por ser uma manifestação de desagravo a Lula. O
Presidente foi aplaudido e membros de partidos que lhe fazem
oposição, vaiados.
co não impediu a reação negativa
à chegada do governador de São
Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB),
e do prefeito da capital paulista,
José Serra (PSDB). Também foram
vaiados o ex-ministro do Meio
Ambiente do governo Fernando
Henrique Cardoso, Raul Jungmann, e o presidente nacional do
Partido Popular Socialista (PPS),
deputado Roberto Freire. Os dois
são pernambucanos e fazem oposição a Lula.
Preso e exilado
“Foi durante o governo Arraes que muita gente comprou o
primeiro colchão, o primeiro rádio de pilha e ganhou luz elétrica.
O que conforta é que a passagem
de Arraes pela Terra valeu a pena”,
disse Lula à viúva. Governador de
Pernambuco pela primeira vez,
Miguel Arraes negociou em 1963
um acordo que tirou os camponeses do regime semi-escravo de
trabalho.
Evaldo Costa (Org.)
Um ano depois seria deposto
pelo golpe militar. O Palácio do
Campo das Princesas, no Recife,
amanheceu cercado por tropas em
1º de abril de 1964. Os golpistas
96
exigiram que o governador renunciasse. Arraes recusou. Não queria
trair o voto do povo. Acabou preso
no Arquipélago de Fernando de
Noronha – numa época em que o
lugar servia de masmorra aos adversários do novo regime e ainda
não era uma das maiores atrações
turísticas do Brasil – e outros presídios por onze meses.
Um habeas-corpus levou-o
para a Argélia. Ficou exilado por
14 anos. Voltou em 1979 com a Lei
da Anistia. Foi eleito governador
no primeiro escrutínio para as administrações estaduais depois da
redemocratização. Voltaria ao cargo ainda uma terceira vez.
Miguel Arraes foi internado
em 16 de junho vítima de infecção
no pulmão. Nas últimas 24 horas a infecção espalhou-se. O exgovernador morreu às 11h30 da
manhã de sábado. O atestado de
óbito aponta como causa da morte choque séptico provocado por
infecção respiratória agravado por
insuficiência renal.
Paulo de Vasconcellos é jornalista
Fonte: Publico.pt
A falta que ele faz
M
iguel Arraes faz parte da
história do Brasil, esteve
presente nos últimos 50
anos e ao lado de políticos da estatura de Tancredo Neves, Petrônio
Portela, Ulysses Guimarães, Leonel Brizola. Tinha como princípio a luta pelos mais pobres, mas
suas análises abraçavam o mundo
porque foi político preocupado
com as liberdades e oportunidades
oferecidas a todos, indistintamente. Como governador teve a oportunidade de colocar em prática o
que pregou, mas nem sempre con-
seguiu transformar o desejado em
fato. Se preocupava, acima de tudo,
com o futuro deste País, sem nunca ter sido homem atado ao passado. Foi nacionalista de olho na
modernidade. E fez de Pernambuco o centro de sua vida particular e
política. Hoje, mais do que nunca,
sua voz e postura fazem falta. Até
como um Norte.
Paulo Sérgio Scarpa é jornalista
Fonte: Jornal do Commercio
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Paulo Sérgio Scarpa
Duas mãos e o
sentimento do mundo
E
le não pôde sequer receber os
desenhos que os filhos, ainda crianças, prepararam para
homenageá-lo no Dia dos Pais.
Naquele dia, silencioso, mas não
sombrio, permaneceu isolado num
canto da capela, cercado de soldados armados, à espera de um casamento que se anunciava tenso. O
casamento da filha Ana Lúcia com
o escritor Maximiano Campos,
ainda quase adolescentes, na Base
Aérea do Recife. Chegou e partiu
como prisioneiro, sob o domínio
de baionetas, com licença apenas
para abraçar os filhos.
O governador deposto de Pernambuco pelo golpe militar de 1964,
Miguel Arraes de Alencar, acabava
de deixar, por breves instantes, o
presídio do arquipélago de Fernando de Noronha, para onde fora levado, sem julgamento, acusado de
instabilizar o poder conservador do
Brasil e de levar Pernambuco para
os obscuros caminhos do comunismo. Um homem firme mas humilde, que chegara ao poder recitando
os versos de Drummond: “Tenho
apenas duas mãos e o sentimento
do mundo.” Eram tempos escuros
e pesados. Mas ele não perdia a serenidade. Respondeu a inquéritos
e foi jogado no exílio da Argélia.
Tornou-se membro do Bureau Internacional Bertrand Russel Para
a Liberdade, amigo de Jean-Paul
Sartre, Gabriel Garcia Márquez,
Pablo Neruda, e de José Saramago.
Na época do exílio, tinha 48 anos
de idade.
Acostumou-se a governar
com o povo, percorrendo feiras
no interior do Estado, ouvindo
queixas e reclamações, o que lhe
custou a acusação dos inimigos
de trabalhar somente pelos grotões. Foi ali, porém, que escutou
um homem dizer, na simplicidade do chapéu amassado nas mãos:
“Querem levar Dr. Arraes para o
purgatório, mas ele vai mesmo é
para o céu”.
Os inimigos o acusavam de ter
alterado as listas de pessoas, com
nomes fictícios ou de mortos, com
direito a indenização – os precatórios, na expressão jurídica. Mais
tarde, se verificou ser uma inverdade, com direito a absolvição no
Supremo Tribunal Federal.
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Raimundo Carrero
Evaldo Costa (Org.)
Nos sábados à tarde, costumava receber amigos e políticos
no terraço do casarão da rua Dona
Olegarinha da Cunha, em Casa
Forte, cercado de árvores, quase
sempre ao lado de dona Madalena,
a esposa, mãe de Pedro e de Mariana. Boa conversa regada a uísque,
gargalhadas e brincadeiras. Às vezes, um charuto. Foi justamente o
cigarro que lhe provocou os maiores problemas na saúde, embora
nem todos os médicos concordem.
Fumou muito desde os doze anos
de idade, quando ainda morava
com os pais, no Crato, Ceará.
100
Gostava de rir, mas era contido na afetividade. Sabia dosar uma
conversa e tinha o ritmo no discurso. Esse traço do caráter do ex-governador, aliás, foi destacado pelo
escritor Antônio Callado: “Eu diria que se trata de um dos homens
mais contidos, mais bem educados
que me foi dado conhecer. O mais
importante é dito às vezes por ele
em tom de quem fala, digamos, do
tempo: ‘vai ou não chover, ficará ou
não nublado à tarde’. E Arraes pode
estar falando em tiro e não em
trovoada, em fechamento do Congresso e não do horizonte meteorológico. O homem é imperturbável,
daqueles que, mesmo quando estão
narrando, ou evocando passagens
realmente duras de suas vida, o fazem com um distanciamento raro”.
Conta-se que esse comportamento vem do pai, também cercado de lendas. Doente, teria pedido
ao médico que não o deixasse morrer deitado. Em coma, foi levantado
pelos amigos e morreu de pé. No
meio da sala.
No terceiro governo, teve que
trabalhar apenas com o dinheiro de
Pernambuco, porque o governo federal lhe negava recursos, sistematicamente. Mesmo assim, fez questão de não fazer críticas constantes,
em público, da atitude do governo.
Discreto, sempre discreto. Discreto
e resistente.
Acompanhava com muita
atenção as artimanhas da direita
brasileira, que via nele um político
astuto e competente. “A elite está
sempre trabalhando contra mim,
mas eu furo por baixo, com o povo”,
dizia enquanto comentava os rumos da política brasileira, no vasto terraço do casarão. Ali também
costumavam se reunir escritores
e intelectuais de toda ordem para
ouvi-lo. Tinha um projeto para o
Brasil, que está consagrado no livro
Miguel Arraes: Pensamento e Ação
Política, publicado em 1997, pela
editora Topbooks.
Para ele, o “Estado, privatizado pelas elites, foi industrializado
para fomentar a concentração do
sistema financeiro e apoiar a consolidação de cartéis e monopólios
privados. Dois Brasis surgiram deste projeto. Um, mínimo, formado
pela elite que vai do operário especializado da grande indústria à
alta classe média e aos ricos, outro,
máximo, que vai dos miseráveis
No hospital, atendido por
médicos e enfermeiras, não podia
conversar com políticos de todas
as tendências e partidos que se aco-
tovelam nos elevadores. Na solidão
da UTI, era possível recordar os
versos por ele preferidos do poema
do pernambucano Joaquim Cardozo: “Sou um homem marcado em
País ocupado pelo estrangeiro”.
Cartas de Agosto
que dormem nas ruas às camadas
médias, cada vez mais incapacitadas de manter seu nível anterior de
vida. Dois Brasis separados em seus
extremos pelo fosso de vergonha
entre os que comem três vezes ao
dia e os que nada comem”.
Raimundo Carrero é
jornalista e escritor.
Fonte: Argumento
101
Miguel Arraes de Alencar
(16/12/1917 – 13/08/2005)
A
baria o presidente João Goulart. O
país viveria sob ditadura pelos 21
anos seguintes.  
Quem foi Miguel Arraes
Nascido em Araripe, Ceará,
chegara ao Recife em 1932 para
concluir o curso de Direito. Era o
caçula e o único homem de uma família de sete filhos. Por sua vez, seria pai de 10 filhos e se casaria duas
vezes. Seu primeiro emprego foi de
funcionário público no Instituto do
Açúcar e do Álcool (IAA).
caba de morrer no Recife o
deputado Miguel Arraes,
presidente do Partido Socialista Brasileiro e por três vezes
governador de Pernambuco. Era o
último representante ainda vivo da
geração de políticos que marcou
fortemente a história do Brasil nos
últimos 50 anos – entre eles, Leonel Brizola, Ulysses Guimarães e
Tancredo Neves.
Do lado de fora do Palácio do
Campo das Princesas, no Recife,
militares fortemente armados não
deixavam ninguém passar. Com
canhões apontados para o prédio,
exigiam que o governador de Pernambuco renunciasse ao cargo e
abandonasse o local. Perto dali,
uma centena de estudantes preparava uma passeata.
Miguel Arraes de Alencar recusou-se a cumprir a ordem “para
não trair” a vontade dos que o elegeram. Foi preso então. Era 1º de
abril de 1964, uma quarta-feira.
No dia anterior, havia sido deflagrado o golpe militar que derru-
Escoltado por oficiais do IV
Exército, metido dentro de um
fusquinha, ao cair da noite Arraes
saiu do palácio para entrar de vez
na história política do país.
Ali, conheceu Barbosa Lima
Sobrinho. Por indicação dele,
então governador de Pernambuco, foi secretário da Fazenda em
1949. Dali a quatro anos, se elegeu deputado estadual pelo PSD.
Reelegeu-se em seguida. Para em
1959 ganhar a prefeitura do Recife
apoiado por uma frente de partidos de esquerda.
Com 47,98% dos votos, se
elegeu governador de Pernambuco
em 1962 pelo Partido Social Tra-
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Ricardo Noblat
balhista (PST), apoiado pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB)
e setores do PSD. Fez seu discurso
de posse do lado de fora do palácio. Diante de uma multidão, citou a certa altura o poeta Carlos
Drummond de Andrade:
“entrar pela porta que saiu” e voltar
a governar Pernambuco. Pela mesma porta entraria uma vez mais em
1994. Por ela sairia em 1998 quando tentou se reeleger e foi derrotado pelo atual governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos.  
– Tenho apenas duas mãos,
mas todo o sentimento do mundo.
Entre voltar e sair do Palácio
do Campo das Princesas, foi mais
duas vezes deputado federal, uma
delas como o mais votado do Nordeste, abandonou o PMDB e aderiu ao Partido Socialista Brasileiro
(PSB), do qual se tornou presidente. Morreu esta manhã no Recife
depois de 59 dias internado em
um hospital. 
Ganhou o governo pela esquerda. Governou pela esquerda. 
Forçou usineiros e donos de
engenho da Zona da Mata do Estado a estenderem o pagamento
do salário mínimo aos trabalhadores rurais. E deu forte apoio à
multiplicação de sindicatos, associações comunitárias e às Ligas
Camponesas.
Evaldo Costa (Org.)
Deposto, foi levado para a
ilha de Fernando de Noronha,
onde ficou preso por 11 meses.
Passou depois pelas prisões da
Companhia da Guarda e do Corpo de Bombeiros, no Recife, e da
Fortaleza de Santa Cruz, no Rio.
Solto em 25 de maio de 1965 por
meio de um habeas corpus, foi para
o exílio na Argélia.
104
Em 1979, beneficiado pela
anistia decretada pelo presidente
João Figueiredo, quando a ditadura começava a se esgotar, Arraes
voltou ao Brasil e à política. Virara
mito em Pernambuco e referência
para a esquerda no resto do País.
Os mais pobres tinham o retrato
dele nas paredes de suas casas. 
Pelo PMDB, se elegeu deputado federal em 1982. Para em 1986
Tinha 88 anos. Estava disposto a se reeleger deputado federal
em 2006. Havia fumado durante
72 anos. Bebera bem durante todos esses anos. Comera bem. E
imaginava viver tanto ou mais do
que sua mãe, que morreu aos 96
anos. Foi amigo pessoal de Lula, a
quem apoiou desde sua primeira
campanha presidencial. 
Deixa um herdeiro político
– o neto Eduardo Campos, deputado federal, ex-ministro da Ciência e Tecnologia de Lula. Campos
planeja ser candidato no próximo
ano ao governo de Pernambuco.
Ricardo Noblat
é jornalista e escritor.
Fonte: Blog do Noblat
Uma trajetória que
ajuda a pensar o Brasil
Certas personalidades políticas brasileiras, com sua forte presença na formatação de fatos que
influenciam a vida de toda uma
sociedade, só podem ser analisadas
com mais rigor à luz da história,
contando com a benevolência da
decantação dos anos. Entendê-las
em sua dimensão contemporânea,
quando ainda pairam no ar relações pessoais e a paixões acesas,
talvez seja uma tarefa impossível.
O governador e deputado Miguel
Arraes enquadra-se, ao meu ver,
nesse cenário.
Arraes fincou em Pernambuco um estilo de fazer política
e, dessa maneira, se inseriu com
competência na articulação de
momentos ricos da história brasileira. Não à toa, foi referência de
uma postura popular no pré-golpe de 64, continuou como um dos
símbolos da resistência no período da ditadura e, com a redemocratização do País, converteu-se
em interlocutor regional de larga
influência, ramificando-a Brasil
afora por meio do partido que reconstruiu, o PSB.
Porém, corramos alguns riscos e façamos algumas abordagens
de sua rica trajetória.
Em minha avaliação, a maior
realização política e histórica de
Arraes foi o fato de ter celebrado,
na condição de governador nos fins
dos 50 e início dos 60, o primeiro
contrato coletivo de trabalho no
campo, preconizando uma economia moderna que dera grandes
passos com Getúlio Vargas e que
se afirmara, após 55, com Juscelino
Kubsticheck e seu famoso plano de
metas. Em um cenário de relações
quase escravocratas no campo, Arraes teve a coragem de reconhecer
um novo tempo e de regular práticas modernizantes capitalistas ante
Sem sombra de dúvidas, é
quase impossível falar da vida política nacional dos últimos 50 anos
sem se lembrar do líder pernambucano. Diria, é impossível – ou então
a “história seria mentirosa”, para
usar uma expressão do canto do
cordelista Octacílio Batista – riscálo das grandes biografias políticas
se o foco é o Nordeste. Esquecê-lo,
em se tratando de Pernambuco, a
atitude então seria obra de ressentidos ou criminosos intelectuais.
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Roberto Freire
Evaldo Costa (Org.)
106
um sistema que teimava em se perpetuar, moldado nas velhas e seculares práticas do latifúndio.
econômico alcançado pelo Brasil
no período em que vicejou entre
nós o regime militar.
A iniciativa de Arraes muitas
vezes nem sempre é compreendida
e fica restrita aos corredores acadêmicos ou a estudiosos das relações
de trabalho no País. Mais interessante: o governador dá este passo
no mesmo momento em que Julião está empenhado em organizar
ligas camponesas, precursoras do
atual modelo do MST, uma perspectiva conservadora, pois concebida e reproduzida no interior do
sistema agonizante e desconectada
da modernidade. Se a Ligas apontam para a simples distribuição
de terra, Arraes avança e sugere
a organização dos trabalhadores
em sindicatos, instrumentos mais
propícios para disseminar consciências e atividade produtiva.
Ou seja, a vocação modernizante e mudancista do Arraes do
primeiro governo não se verificou
nos seus governos posteriores ou
em suas posturas como líder, no
pós-ditadura. Cedeu a uma visão
um tanto restauradora da sociedade, embora matizada por compromissos pessoais nítidos para
com as grandes massas deserdadas. Compromissos esses que não
podiam se realizar em virtude
da nova estrutura econômica e
social que o cercava. Em seu segundo período de atuação, Arraes
procurou agir politicamente com
um corpo de idéias de uma formação histórica passada – daí, ter
dificuldades para se afirmar em
Pernambuco como uma corrente
de lastro sólido e para se lançar
ao País como uma alternativa de
transformações reais.
O mais instigante ao se analisar a figura de Arraes é se perguntar o porquê de sua fixação à
política regional, quando outros
líderes como Brizola buscaram
vôos mais universais, chegando
a polarizar o debate nacional e
até mesmo a disputas pela presidência da República. Entre as
muitas respostas possíveis, uma
delas seria o fato de Arraes ter
resistido a romper com os paradigmas da década de 60, muito
marcados pelo nacionalismo e
por um viés populista também
próprio daquele período e que
esgotara com o forte crescimento
Em se tratando de Pernambuco, onde deixa marcas profundas – particularmente, as relacionadas ao seu inegável altruísmo
como homem público –, Arraes
descortinou toda a sua habilidade como político, pois conseguiu
manter seus espaços diante de
uma esquerda modernizante (os
comunistas e os petistas) e de uma
direita igualmente forte e com lideranças expressivas. Porém, seu
projeto de uma social-democracia
tardia, baseada no diálogo direto
ção para o Senado Federal, em
1994.
O PPS – todos sabem – sempre manteve com Arraes relações
políticas tensas, fundadas em razões históricas e doutrinárias. Entretanto, nunca deixou de render
tributo ao líder maior dos pernambucanos por quase meio século,
ao homem que amou o seu povo
e dedicou boa parte de sua vida a
mudar o destino dos brasileiros.
Entender Arraes, ação e
idéias, acertos e erros, é abrir-se
à construção de novos caminhos
ao País. Um tema atual e necessário às esquerdas quando temos
à nossa frente os descaminhos do
governo Lula.
Particularmente, lembro com
carinho da sua dedicação ao processo que resultou na minha elei-
Cartas de Agosto
entre o líder e as grandes massas
populares, não se consolidou.
Roberto Freire é presidente nacional
do Partido Popular Socialista (PPS).
Fonte: www.lainsignia.org
107
Um forró para Arraes
Samarone Lima
Miguel Arraes de Alencar, 88
anos, ex-prefeito do Recife, três vezes governador de Pernambuco e
no terceiro cargo de deputado federal, pelo PSB, sai da cena política e
passa a habitar o nosso imaginário,
na forma indelével da lembrança.
Não vou aqui fazer a louvação do que merece ser louvado.
A história de Arraes foi sendo
escrita com um cinzel, nas pedras
da vida. Ele foi um homem, uma
raça, do início ao fim. É difícil
uma pessoa ser tão querida pelo
povo, essa gente simples, os menos favorecidos, e ao mesmo tempo ser tão respeitada pelos adversários políticos.
Como sempre, prefiro buscar
no cotidiano as marcas e os con-
tornos da trajetória humana em
tudo o que a vida leva e traz – alegrias e tristezas, dores e conquistas, vitórias, empates, derrotas.
Ontem à noite, estávamos
aqui nesta esquina de seu Vital,
no Poço da Panela, quando aconteceu, por obra de nossas vidas e
memórias, uma singela homenagem ao velho Arraes.
Estávamos bebendo umas cervejas, logo após o jogo do Santinha,
quando nosso Chiló decidiu buscar a sanfona. Começamos então a
cantar e dançar várias músicas, até
que surgiu das almas a canção que
atravessou tantos corações:
“O povo quer/ Aquele que fez mais/
Arraes, Arraes, Arraes/ Em 86 só
vai dar Arraes”.
Cantamos vária vezes esta
pequena e modestíssima canção, e
sempre que escuto os relatos sobre
aquele momento histórico de Pernambuco, tenho a sensação esquisita de ter chegado ao Recife atrasado
em um ano. Também sou do Crato,
como Arraes, mas só cheguei aqui
em 1987, vindo de Fortaleza.
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
N
ão sei quem me deu a notícia, ou se foi a própria notícia que se deu. Ontem, no
final da manhã, Arraes morreu.
Me perdoem, mas quando você
diz “Arraes morreu”, todos sabem
o que aconteceu. Mais que isso, o
que significa, neste momento da
política nacional em que tudo está
perplexo e confuso.
Ao escutar a música, Emília chorou discretamente. Disse
que só viu o pai chorar duas vezes
– uma delas foi durante o guia eleitoral de Arraes, então candidato a
governador, em 1986. Depois Emília parou de ser discreta e chorou
mesmo pra valer, quando cantamos a música-tema daquela famosa campanha:
“Olha nos olhos do povo e vai notando / um brilho novo está voltando”.
Evaldo Costa (Org.)
Sim, certos momentos na
vida de um povo são mesmo para
arrancar lágrimas. Lá pelas tantas,
embevecidos pelo clima e com a
ajuda das muitas cervejas servidas por seu Vital, decidimos ir ao
Palácio do Campo das Princesas,
fazer uma homenagem musical.
De repente, estávamos todos ali,
defronte ao Palácio, com sanfona,
zabumba e triângulo, dispostos a
cantar “Arraes, Arraes, Arraes /em
86 só vai dar Arraes”. Seria, creio,
emocionante. Mas o clima estava muito sério, o povão, a massa,
ainda não tinha chegado. Estavam
somente políticos, jornalistas e
familiares. E aos poucos, fomos
minguando nossa homenagem.
Não era o momento, pensamos.
110
Na verdade, a homenagem já
tinha sido feita, aqui na esquina de
Vital. Enquanto cantávamos, passei pela minha memória este momento que não vivi, a campanha
de 1986, como um estrangeiro que
chega a uma cidade e a reconhece
pelo coração, como se fosse uma
cidade que já viveu, em algum
tempo nunca explicável. Senti minha presença no Recife, com 17
anos, distribuindo panfletos e cantando com o povo nas ruas que eu
ainda não ousara desvendar, numa
cidade que eu ainda não tinha
amado. Tive então uma memória
retroativa de um passado que me
dei de presente, apesar de não tê-lo
vivido como queria.
Vi Emília dançando, cantando, se emocionando, e em todos
os olhos de uma gente mais moça,
havia uma espécie de agradecimento ao velho Arraes, por tudo
o que foi, é, e será. Lembrei que
Edinaldo Miranda, seu pai, também foi um exilado para sobreviver. À saída do nosso festivo
grupo, seu Vital, que nunca fala
de política, disse uma curta frase:
“Em todas as eleições que ele concorreu, votei nele”.
Entrei no salão, onde estava o
corpo já sem vida, dei meu tímido
adeus, o “segue em paz, meu velho”, e voltamos, em silêncio.
Estou aqui com os jornais de
hoje, e não há como sentir uma
certa emoção ao ler um trecho do
seu discurso de posse, no segundo mandato como governador de
Pernambuco, em março de 1987,
publicado no suplemento do Diário de Pernambuco:
“Sou um homem marcado,
mas esta marca temerária entre as
cinzas das estrelas há de um dia se
Comentei a frase com minha
tia Flocely, há pouco, ao telefone.
Ela está com 78 anos, os cabelos
branquinhos, e só não vai ao enterro por problemas de saúde.
“E se apagou... ou meu Deus”, disse
ela, entre lágrimas.
Para Arraes, na memória do
coração.
Samarone Lima é jornalista e escritor.
Cartas de Agosto
apagar”. É a citação de um poema
de Joaquim Cardoso (Canto do
Homem Marcado, de 1952).
Fonte: JC Online
111
O tempo parou para Arraes
Sérgio Miguel Buarque
Ontem foi um dia diferente.
Foi um dia em que o povo, povo
mesmo, foi às ruas. Usavam e agitavam chapéus de palha. Mas não
era revolução, nem protesto, nem
mesmo comemoração. Foi dia de
lembrar o passado, para muitos,
melhor. De imaginar como o futuro poderia ser melhor se... Foi um
dia de “se”. “Se” Arraes estivesse
vivo, na ativa, Lula teria um alia-
do para tentar sair da crise, repetiram muitos. “Se” todos políticos
fossem iguais a Arraes nem crise
teria, responderam outros tantos.
Ontem também foi um dia
curioso. A tristeza podia ser respirada no ar. Mas, em determinados momentos parecia mais uma
festa. Como aquela da posse em
86. Talvez porque todos estavam
ali por causa da mesma pessoa,
na frente do mesmo palácio. Mas
o sentimento era bem diferente.
Não existia mais aquela esperança
nos olhos do povo. Todos sabiam
que não existirá outro Arraes.
Nem outro 1986. Foram momentos de nostalgia. Mas que parecia
outra época, parecia. Parecia os
tempos de Arraes. Tempos que
não voltam mais.
Sérgio Miguel Buarque é jornalista.
Fonte: Diário de Pernambuco
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
P
or um momento, a crise política e ética que domina o País
parou. Ou, pelo menos, ficou
em segundo plano. Por um instante, estavam no mesmo espaço físico e espiritual adversários históricos, inimigos recentes e desafetos
eternos. Nos dias de hoje, quem
esperava cruzar num mesmo salão
com o presidente Lula e o prefeito
de São Paulo, José Serra? Ver juntos Eduardo Campos e Mendonça
Filho? Heloisa Helena e Marco
Maciel? Todos sem brigar, sem falar de política.
Miguel Arraes de Alencar
D
outor Miguel Arraes não vai
ser enterrado. Vai ser plantado”. Uma frase como essa
não precisa de interpretação. Ela
é simples no seu significado. Tão
simples como o homem do campo que a pronunciou, quase como
uma tentativa de consolo próprio,
menos pela perda do homem Arraes, e muito mais pelo desaparecimento de um herói do povo.
Aquele cuja imagem sofreu
todo tipo de ataque dos opositores, porque incomodava, mas
que, no imaginário dos “pés descalços”, dos “excluídos” – como
ele chamava – deve continuar
intocada.
Miguel Arraes era um homem
de bem, na acepção da palavra. Polêmico. Às vezes duro. Quase sempre dócil. Um negociador hábil até
com os adversários, que só se recusou a negociar com seus carrascos, em 1964. Para muitos, era um
político difícil de ser interpretado,
porque não gostava de falar muito.
Mas era por seus gestos e atitudes
que se podia entender o que ele
queria dizer.
Foi isso que aprendi em quase
duas décadas de jornalismo, tempo em que mantive muitos contatos com o “velho”. Terminei premiado, se posso dizer assim, por
ter sido a mim que ele concedeu
sua última, e longa, entrevista. Foi
para a série sobre os vinte anos da
Nova República – publicada pelo
JC entre janeiro e março de 2005
– e reeditada no caderno especial
publicado neste domingo.
O encontro foi partilhado
pelo cientista político e amigo
Túlio Velho Barreto e pelo companheiro Paulo Sérgio Scarpa, colunista do JC e um homem apaixonado por Arraes como poucos
que conheci. Foram quase três
horas de conversa sobre política
na mais pura essência. O “doutor”
falava com a mesma facilidade sobre conjuntura municipal, sobre o
cenário nacional e sobre política
internacional, sem perder o bomhumor característico. Fomos brindados, naquele dia, com várias das
suas boas gargalhadas.
No sábado, ao ouvir a frase
do matuto sobre o “Pai Arraia”,
como era chamado nas suas tu-
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Sérgio Montenegro Filho
multuadas visitas ao Sertão – que
lhe valeram o apelido de “acabafeira” – caí na real: Arraes morreu! E o duro é saber que isso
significa, acima de tudo, o fim de
uma geração de políticos com P
maiúsculo, que com suas lutas populares marcou a agitada segunda
metade do século XX.
Era uma gente que nada tinha a ver com essa “politiquinha”
que se faz hoje. Ou “politicagem”,
se preferir o leitor. Miguel Arraes foi juntar-se a homens como
Leonel Brizola, Tancredo Neves,
Ulysses Guimarães, Luís Carlos
Prestes, João Goulart, Juscelino
Kubitscheck, e outros tantos. Ideologias – e simpatias – à parte,
essa foi uma geração se esforçou
para deixar aos seus descendentes
políticos um exemplo bravo de
luta. Uma lição que, lamentavelmente, poucos aprenderam.
Evaldo Costa (Org.)
Arraes não gostava de ser chamado de mito. Dizia que não era
infalível. E não era. Como político,
havia os que o antipatizavam, criticavam ou condenavam por seus
atos. E como homem comum, ele
também tomou decisões erradas e
fez desafetos.
116
Mas também enfrentou situações diante das quais muitos
homens comuns poderiam ter
sucumbido. Imagine entrar na
política pensando em trabalhar
pelo bem comum, pelo homem
do campo, pelos pobres. De repente, exatamente por causa
desse ideal, foi declarado inimigo do Estado, preso, deposto do
cargo para o qual foi eleito pelo
voto popular livre, e condenado
a viver por quase vinte anos no
exterior, proibido de retornar ao
seu País.
Assim foi com Miguel Arraes
e com vários outros. Alguns voltaram, mas desistiram de lutar. Outros
amargaram seqüelas permanentes.
O ex-governador deposto optou por
levantar a cabeça e buscar, novamente, o campo de batalha.
Nacionalista, porém aberto às
mudanças no mundo. Duro crítico
dos oligarcas e dos monopólios.
Defensor ardoroso do homem
simples, oprimido. Assim era Miguel Arraes.
Mas Arraes também era o
marido de Madalena, pai de dez
filhos, avô, bisavô. Gostava de
arte e literatura. Fumava cachimbo e charuto. Apreciava um bom
uísque e a comida regional. Um
retrato modesto de um homem de
bem, que tirou da vida o que ela
pôde lhe oferecer, sem reclamar
mais. E deixou uma enorme lição
de humanidade.
Só temos que agradecer.
Sérgio Montenegro Filho
é repórter, colunista e blogueiro
do Jornal do Commercio.
Fonte: JC Online
Miguel Arraes, 1916-2005
O
s obituários que sempre esvoaçam e rondam a agonia dos
grandes homens desta vez falharam no alcance e na sua mira.
Abutres, de bom faro e argúcia,
desta vez os obituários erraram o
cadáver do brasileiro que se vai. E
não exatamente por falta de tempo
e de informações.
Miguel Arraes de Alencar,
presidente do Partido Socialista
Brasileiro, encerrou sua vida neste
13 de agosto depois de quase dois
meses internado em um hospital.
Na altura de lúcidos e incansáveis
88 anos de idade, tempo, importância, fatos e história não foram
parcos. Os obituários que temos
diante dos olhos, no entanto, foram todos redigidos e arquivados
como se ele passasse por nós como
uma sombra do golpe de 1964,
como um sobrevivente que resistisse a nos lembrar aquela infâmia,
com uma insistência cujo desagrado era inevitável.
“Em seu primeiro mandato
como governador, foi deposto pela
ditadura militar. Exilou-se na Argélia, em 1965, e só retornou ao
Brasil 14 anos depois, beneficiado
pela Lei da Anistia. Já foi eleito três
vezes deputado federal”, diz-nos a
Folha Online, relacionando dramas históricos como a ocorrência
de chuvas, sol e gripes passageiras.
Como fatalidades fúteis. O Globo
On Line, com menos má vontade e
omissão, evita a economia na gravação dos dados de uma vida venturosa. Mas o mal vem informado
no título, “o último representante
da velha esquerda”. De Pernambuco, na imprensa local, o JC Online
informa, desinforma, mal informa,
nada informa: “Quando a ditadura
militar foi instalada, o governador
foi deposto e permaneceu quase
um ano preso na ilha de Fernando
de Noronha. Depois de conseguir
um habeas corpus, o político embarcou para a Argélia, onde viveu
14 anos no exílio”.
Nada, em suma, que alcance o homem que esteve sob seus
olhos e olfato a padecer nos últimos 58 dias. Nada à altura dos 88
anos que se vão como um fio de luz
neste sábado de agosto. E nem precisariam compor uma hagiografia,
um perfil de um santo, o mais convencional e falso perfil que se faz
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Urariano Mota
Evaldo Costa (Org.)
de alguém que morre. Não. Esse
homem que se vai gerou também
desgostos, inimizades e queixas no
interior da própria esquerda brasileira. Havia militantes sindicalistas
que o descreviam como coronel,
caudilho, autoritário, pouco afeito
a ouvir a divergência, porque, no
governo, não atendia às reivindicações dos servidores públicos.
Outros havia, ex-companheiros do
tempo da resistência democrática,
que o acusavam de concentrador,
porque não distribuía com justiça
cargos, valores e representações,
e, pior, não abria espaço para que
os ex-companheiros também ascendessem ao poder no tempo
bom. E, por unanimidade quase,
ONGs se irmanavam em condenálo como um ser atrasado, do século
19, a ver o mundo com os olhos das
populações analfabetas do Nordeste brasileiro. Por coincidência, este
foi o mesmo conceito com que o
viu o Estado neoliberal no Brasil,
dos Fernandos Collor e Henriques
Cardoso aos conservadores de todas as convicções.
118
Mas por que e para que tanto
furor contra esse dinossauro, mau
orador, incapaz de discurso de arrepiar as massas, que falava baixo
e ruim e com dicção difícil? – O
povo o amava. O povo o idolatrava. O povo se rasgava por ele. O
povo entrava em febre por ele. O
povo entregaria a própria vida por
ele. Uma das maiores dificuldades
de Gregório Bezerra, no primeiro
de abril de 1964, foi convencer
camponeses a não virem ao Recife. Massas de trabalhadores se
dispunham a vir à luta armados
apenas de facões, facas e enxadas
contra fuzis e tanques do exército
brasileiro. Bastaria este fato para
dar a dimensão desse homem que
se foi. Mas ainda é pouco. A coisa
dita assim, até parece que massas
ignorantes, fanatizadas, dispunham-se ao sacrifício, a entregar
o próprio corpo ao genocídio.
Mas não. Tal amor é manifestação
testemunhal por atos concretos
do que foi o primeiro governo
Miguel Arraes. É com ele que surge o revolucionário, o pioneiro e
odiado “Acordo do Campo”: trabalhadores da cana-de-açúcar
tiveram os mesmos direitos que
os trabalhadores urbanos de Pernambuco: salário, décimo terceiro, carteira assinada... deixavam
de ser escravos. Daí o fanatismo
desses atrasados. Impossível não
lembrar as palavras de um espartano citadas por Marx: “Você
sabe o que é ser um vassalo, mas
nunca provou a liberdade para
saber se ela é doce ou não. Porque, se a tivesse provado, teria
nos aconselhado a lutar por ela
não apenas com lanças, mas também com machados”.
Um homem assim, que gera
tais sentimentos, quando se vai,
deixa sempre na gente o gosto
amargo da sua ausência. Mas quando isto se dá numa hora como a que
todos no Brasil passamos, o que dizer? Talvez esperar em silêncio que
“Como homem público, tenho que esperar tudo, sem queixa,
porque é minha obrigação ir pra
cadeia, se é pra manter a minha
posição de defesa do povo e não capitular diante dele. É minha obrigação ir pro exílio, se não posso ficar
na minha terra. É minha obrigação
manter a posição, manter firmemente a posição que pode mudar o
nosso país e melhorar as condições
de Pernambuco”.
Mais Miguel Arraes, urgente.
Cartas de Agosto
renasçam políticos à semelhança
do Miguel Arraes de Alencar, que
em discurso, entre pigarros e sem
levantar a voz, declarou:
Urariano Mota é jornalista.
Fonte: www.lainsignia.org
119
O mito fica na história
M
iguel Arraes de Alencar faleceu, nesse sábado, aos 88
anos, após quase dois meses hospitalizado, e deixa um legado: o de fazer política com a alma
e com rumo. Em toda sua história,
fez muitos adversários, mas pouquíssimos inimigos. Era respeitado por todos, não só por sua força
política, mas pela forma como atuava e por tudo que enfrentou.
Era de falar pouco, porém, quando se pronunciava, era
ouvido porque sempre tinha um
algo mais a dizer. Daí, ter sido considerado um mito e visto até como
um enviado dos céus pelos mais
humildes. A morte todos esperam,
contudo há pessoas que parecem
que viverão eternamente, e uma
dessas era Miguel Arraes.
Para o Brasil, seu desaparecimento ocorreu num momento
em que o País vive a maior crise da
história, e o ex-governador, pelo
que representava, seria fundamental para sairmos desse turbilhão.
Arraes era o último ícone da esquerda que estava na ativa e poderia dar uma grande contribuição
ao presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (PT). Mas quis o destino que
não fosse assim, lamentavelmente.
Pernambuco perde um dos
seus maiores líderes, pois, apesar
da idade avançada, o deputado se
mantinha disposto e combativo
em prol do Estado. Só nos resta
prestar nossos sentimentos à família e ao PSB. As forças de esquerda
ficam órfãs e sem aquele que poderia ser uma referência.
Valdecarlos Alves é jornalista.
Fonte: Folha de Pernambuco
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Valdecarlos Alves
Meu Pernambuco
P
deputado Fernando Gabeira para
mexer com arraigados temores
– no Congresso, nas igrejas e na
classe média.
Compreender melhor os seus
últimos esperneios para manter-se
no alto da árvore onde jamais poderia ter chegado sem os braços, a
cumplicidade e os votos de muita
gente que agora se mostra incomodada e com vergonha da sua
companhia.
Pode parecer prosaico, mas
só não consegui engolir, até agora,
a parte em que Severino Cavalcanti falou do “meu Pernambuco querido, cujo povo me conhece bem”.
Por esta razão – acredita – recebeu
mais de 80 mil votos no pleito passado e ainda elegeu a filha para
ampará-lo nas largas caminhadas
por corredores entupidos de câmeras, fios e microfones – diante
dos quais o terceiro nome na linha
de sucessão do presidente da República costuma cometer os seus
maiores desvarios.
A esta altura, só falta o desfecho para esta típica história de
realismo fantástico começar a ser
cantada integralmente nas feiras e
rodas de cordel. Desde domingo,
nada dá certo para Severino: o desempenho de ator mambembe; o
charme da velha raposa da política
com sotaque engraçado e origem
pobre que venceu no Planalto; a
pretensa sagacidade do conservador capaz de mirar no cangote do
Leio um comovente texto
jornalístico (inédito), produzido
pelo jovem repórter Cláudio Leal,
sobre a recente passagem do escritor Ariano Suassuna pela Bahia.
Começa com um registro digno
da obra do escritor que glosa a sua
própria vida. Logo na entrada, o
autor de O Auto da Compadecida – convidado para falar em um
evento de moda em Salvador – foi
barrado na porta. “O acesso ainda
assei a semana com a entrevista do deputado Severino
Cavalcanti  atravessada no esôfago maltratado. De domingo para
cá – com a cassação do deputado
Roberto Jefferson e o aparecimento do cheque da propina que arrasta  para a fila da forca o pescoço do
presidente da Câmara –, consegui
processar algumas atitudes do tosco parlamentar de João Alfredo.
O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas
Vitor Hugo Soares
não é permitido”, avisou um segurança. “Mas eu sou o palestrante!”,
argüiu o escritor. “Confira!”, ordena uma auxiliar do evento. “Não é
a primeira vez. Não tenho cara de
autoridade, minha filha. Sempre
me barram!”, explica o mestre de
olhos espantados e sobrancelhas
eriçadas a uma jornalista que o reconhece na porta.
Evaldo Costa (Org.)
O texto me recorda também
que o criador do Movimento Armorial de Pernambuco nasceu na
cidade de Nossa Senhora das Neves, atual João Pessoa, capital da
Paraíba. Foi secretário de Cultura
e um dos maiores amigos de Miguel Arraes, este o cearense mais
pernambucano que já vi, em cujo
rastro dei os primeiros passos de
militante estudantil na campanha
para o governo de Pernambuco,
em 1962.
124
Aluno do Colégio Dom Bosco, dos padres salesianos em Petrolina (PE), exercia então o cargo
de secretário-geral da aguerrida
União Petrolinense dos Estudantes Secundários (Upes), ainda
sem idade para votar, mas colado
na campanha do nordestino que
carregava nas duas mãos “todos os
sentimentos do mundo”, como está
escrito em sua lápide no cemitério
do Recife.
Embora nascido no lado baiano das barrancas do Rio São Francisco, Pernambuco sempre esteve
perto de mim. Tudo que toca ou se
diz sobre aquela terra e sua gente
bole comigo. E isso vem do tempo de menino, quando acordava
todos dias ao compasso dos frevos de Capiba e Nelson Ferreira,
ou dos baiões e xaxados do gênio
de Exu, Luiz Gonzaga, transmitidos pela Rádio Jornal do Comércio,
“falando para o mundo”.
O mundo, então, era a cidade de Santo Antônio da Glória,
cujo território municipal abarcava
também Paulo Afonso, gigantesco canteiro de obras onde tomava
forma o sonho de Delmiro Gouveia a que Apolônio Sales deu jeito
e forma e um decreto de Getúlio
Vargas mandou executar. Engenheiros e milhares de “cossacos”
nordestinos construíam a grande
Hidrelétrica do São Francisco – a
Chesf. Paulo Afonso da época era
uma espécie de território livre de
Pernambuco na Bahia.
A relação afetiva estreitouse com os anos, apesar de ter aumentado a distância física. São
pernambucanos muitos dos meus
melhores amigos e algumas das figuras que mais admiro – intelectual e profissionalmente: na música,
na literatura, na poesia, no teatro,
no jornalismo, na política. Gente
que só conheço de livros, discos
e palcos, ou parceiros de estudo,
trabalho e de muita conversa jogada fora em décadas de carnavais e
mesas de bares.
De Capiba e Gonzagão a
Geraldo Azevedo – este vi cantando serenatas para as meninas
que eu vou/ Busco-a em mim mesmo, onde Olinda sou”.
Estes ficarão na memória do
meu Pernambuco querido. Severino Cavalcanti, não.
Cartas de Agosto
do colégio das freiras, na avenida
Guararapes, em Petrolina. De Julião a Arraes; de Hermilo Borba
Filho a João Cabral; de Nelson
Rodrigues a Guel Arraes e Jomard
Muniz de Brito. De Noblat a Celso Marconi e Felix de Athayde
– colega do Jornal do Brasil, parceiro das lutas e exílio de Arraes,
saudoso amigo do peito –, o poeta que produziu um dos versos
mais belos de amor a Pernambuco:
“Quando eu quero Olinda, não é lá
Vitor Hugo Soares é editor
de Opinião do jornal
A Tarde, de Salvador.
Fonte: blogdonoblat.com.br
125
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