Farinheiras do Brasil.indb - Mestrado em Desenvolvimento

Transcrição

Farinheiras do Brasil.indb - Mestrado em Desenvolvimento
Valdir Frigo Denardin | Rosilene Komarcheski
(Organizadores)
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas
da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
MATINHOS/PR
ufpr litoral
2015
Valdir Frigo Denardin | Rosilene Komarcheski
(Organizadores)
FARINHEIRAS DO BRASIL:
TRADIÇÃO, CULTURA E PERSPECTIVAS
DA PRODUÇÃO FAMILIAR DE FARINHA DE MANDIOCA
CATALOGAÇÃO NA FONTE
F226
Farinheiras do Brasil: tradição, cultura e perspectivas da produção familiar
de farinha de mandioca / Organizadores: Valdir Frigo Denardin; Rosilene
Komarcheski. - Matinhos: UFPR Litoral, 2015.
297 p.
ISBN 978-85-63839-23-7
1. Farinheiras - Brasil. 2. Farinha de mandioca - produção. I. Denardin,
Valdir Frigo. II Komarcheski, Rosilene.
CDD 664.72272
Maikon Patrick Garcia, CRB 9/1681
Revisão técnica: por pares
Revisão do texto: dos autores
Revisão final: dos organizadores
Projeto gráfico e editoração: William Leal
Capa: William Leal
Universidade Federal do Paraná
Setor Litoral
R. JagUariaíva 512 | Caiobá
CEP 83260-000 | Matinhos/PR | Brasil
SUMÁRIO
Apresentação 07
Parte I - HISTÓRIA, TRADIÇÃO E CULTURA
12
Capítulo 113
Viver e sobreviver da farinha de mandioca no Litoral
do Paraná no século XIX
José Augusto Leandro
Capítulo 237
Os engenhos de farinha em Florianópolis: apontamentos
para uma história plural
Adriane Schroeder Lins Leiroza
Capítulo 359
Casas de farinha: cenários de (con)vivências, saberes
e práticas educativas
Cirlene do Socorro Silva da Silva, Maria das Graças da Silva
3
Parte II - REPRODUÇÃO SOCIOECONÔMICA
82
Capítulo 483
Homens, mulheres e artefatos na produção da farinha
de mandioca no Alto Rio Juruá - Acre
Lucia Hussak van Velthem
Capítulo 5109
Mulheres e patriarcado: relações de dependência e
submissão nas casas de farinha do Agreste Alagoano
Milka Alves Correia Barbosa, Fátima Regina Ney Matos,
Ana Paula Ferreira dos Santos, Ana Márcia Batista Almeida
Capítulo 6129
A Organização dos assentados da reforma
agrária para o processamento da mandioca:
o caso de Capão do Cipó - RS
Vilson Flores dos Santos, Paulo Roberto
Cardoso da Silveira, Ana Cecília Guedes
Capítulo 7147
Produção de farinha de mandioca e de farinha
de tapioca no estado do Pará como oportunidades
de negócios para empreendedores e agricultores
na Amazônia
Moisés de Souza Modesto Junior, Raimundo Nonato Brabo Alves
4
Parte III - IDENTIDADE E TERRITORIALIDADE 174
Capítulo 8175
A multitransterritorialidade dos territórios
camponeses da farinha no Vale do Juruá - Acre
Cleilton Sampaio de Farias, César Gomes de Freitas,
Edna Maria S. Cabral, Cintia Raquel da C. Ferreira,
Paulo Cesar C. Lima, Maria Raquel O. Pinho, Phamella M. Souza,
Camila Félix
Capítulo 9197
Farinheiras no Litoral do Paraná: uma análise a
partir da noção de sistema agroalimentar localizado
SIAL Farinheiras
Valdir Frigo Denardin, Mayra Taiza Sulzbach, Rosilene Komarcheski
Capítulo 10219
A “feitura da farinha”: notas etnográficas de uma
farinhada no Alto Sertão da Bahia
Andrea Lima Duarte Coutinho
Parte IV - RELAÇÕES ENTRE SOCIEDADE E NATUREZA
244
Capítulo 11245
Fornos quentes, terra vestida
Natalia Ribas Guerrero
Capítulo 12273
A produção de farinha de mandioca em Guaraqueçaba - PR:
entre sustentabilidade, interações e conflitos socioambientais
Rosilene Komarcheski, Valdir Frigo Denardin
5
APRESENTAÇÃO
A ideia de organizar um conjunto de trabalhos sobre o
tema “farinheiras do Brasil” surge, por parte dos organizadores, em
decorrência de um conjunto de atividade de pesquisa-ação realizadas
junto às farinheiras do Litoral do Paraná. Em 2008 iniciou-se um
diagnóstico para mapear farinheiras nos sete municípios que compõem
o Litoral paranaense (Antonina, Guaratuba, Guaraqueçaba, Matinhos,
Morretes, Paranaguá e Pontal do Paraná), motivados pelos relatos da
importância socioeconômica e cultural da atividade produtiva na Região.
No inicio, coletou-se informações referentes ao número de farinheiras,
equipamentos utilizados, organização da produção, potencialidades
e dificuldades etc. Ao longo dos anos, num processo de aproximação
extensionista com as farinheiras comunitárias, foi possível conhecer
a realidade das famílias produtoras de farinha e, consequentemente,
ampliar os conhecimentos sobre a atividade produtiva. Ao final de quase
seis anos de pesquisa-ação com as farinheiras do Litoral do Paraná, se
observa que “as farinheiras” experimentam um momento de inflexão em
sua história; o futuro da atividade é incerto e teme-se pela perda desta
prática produtiva e cultural.
Com a coletânea Farinheiras do Brasil: tradição, cultura e
perspectiva da produção familiar de farinha mandioca se reúne
um conjunto de saberes científicos produzidos em diferentes estados
brasileiros (RS, PR, SC, BA, AL, MA, PA, AC), evidenciando a riqueza
7
8
de elementos sociais, ambientais, econômicos, culturais e territoriais
inerentes a atividade familiar de farinhar.
O conjunto de textos desta coletânea deve possibilitar aos
leitores um contato com um tema carregado de histórias e de saberes
fazer, inerentes à cultura brasileira. No seu bojo, apresenta um conjunto
de expressões que estão presentes nos convívios sociais e nas práticas
produtivas de quem sabe farinhar, que possibilitariam elaborar um
dicionário; “dicionário da farinha”. A presente coletânea não tem este
propósito, mas possibilitará ao leitor o acesso a uma diversidade de
expressões e saberes que estão além dos dicionários tradicionais.
A primeira parte da coletânea História, tradição e cultura é
composta por três contribuições. O texto Viver e sobreviver da farinha de
mandioca no Litoral do Paraná no século XIX, de José Augusto Leandro,
menciona que o ambiente rural no Litoral do Paraná, na segunda metade
do Século XIX, foi marcado pela intensa transformação da mandioca
em farinha. Salienta que ao redor da raiz da terra emergiu uma notável
cultura material destinada à transformação do vegetal em massa, em
farelo e em pó. O segundo texto, de Adriane Schroeder Lins Leiroza, Os
engenhos de farinha em Florianópolis: apontamentos para uma história
plural aborda a questão da patrimonialização do modo de fazer farinha
de mandioca polvilhada e relata que no engenho se constroem relações
e interações entre o trabalho e o lúdico expressas em brincadeiras e
canções durante a produção da farinha; “a farinhada”. Apresenta o
engenho como um assentamento de colonos luso-açorianos que têm sua
cultura, num primeiro momento, confrontada com a do europeu e, em
períodos mais recentes, cria sua identidade, o homem do litoral com sua
farinha de mandioca. Finalizando as contribuições da primeira parte,
o texto Casas de farinha: cenários de (con)vivências, saberes e práticas
educativas, de Cirlene do Socorro Silva da Silva e Maria das Graças da
Silva, relata o contexto socioeducativo e cultural das casas de farinhas em
suas dinâmicas de produção e convivência em um município do estado
do Pará. Neste, a produção da farinha e as relações de convivência são
descritas como um processo de construção e socialização de saberes e
práticas educativas desenvolvidas no espaço das casas de farinha.
A segunda parte da coletânea, Reprodução socioeconômica,
contempla quatro contribuições que se complementam ao descreverem a
importância da farinha na vida dos brasileiros. O texto Homens, mulheres
e artefatos na produção da farinha de mandioca no Alto Rio Juruá – Acre,
de Lucia Hussak van Velthem, descreve o processo da farinhada desde a
chegada da mandioca na casa de farinha até a obtenção do produto final,
relatando a percepção dos que trabalham na casa de farinha sobre os
artefatos utilizados na produção: fornos, prensas, gamelas, entre outros.
Na sequência, o texto Mulheres e patriarcado: relações de dependência
e submissão nas casas de farinha do agreste alagoano, de Milka Alves
Correia Barbosa, Fátima Regina Ney Matos, Ana Paula Ferreira dos
Santos e Ana Márcia Batista Almeida, objetiva analisar os aspectos do
trabalho das mulheres nas casas de farinha do Agreste Alagoano que,
segundo as autoras, reproduzem o padrão de dominação do patriarcado
tradicional brasileiro, apresentando a divisão sexual do trabalho na rotina
das casas de farinha. O texto A organização dos assentados da reforma
agrária para o processamento da mandioca: o caso de Capão do Cipó – RS,
de Vilson Flores dos Santos, Paulo Roberto Cardoso da Silveira e Ana
Cecília Guedes, que dá sequencia as leituras, apresenta as dificuldades
inerentes à proposição e efetivação da alternativa de renda com a
produção da farinha de mandioca para assentados da reforma agrária.
Relata a experiência na elaboração de um projeto de viabilidade de uma
agroindústria de farinha, bem como as dificuldades enfrentadas na
liberação de recursos e a falta de apoio do poder público local. A segunda
parte do livro encera com o texto Produção de farinha de mandioca e
de farinha de tapioca no estado do Pará como oportunidades de negócios
para empreendedores e agricultores na Amazônia, de Moisés de Souza
Modesto Junior e Raimundo Nonato Brabo Alves. Neste, os autores se
propõem a apresentar uma analise de rentabilidade de duas pequenas
farinheiras de propriedade individual que produzem farinha de mesa e
farinha de tapioca. Para tal, apresentam os fluxogramas de produção, as
receitas operacionais, o ponto de equilíbrio, a margem de contribuição,
9
10
a lucratividade e a taxa de retorno dos empreendimentos pesquisados.
A terceira parte da coletânea, Identidade e territorialidade,
inicia com o texto A multitransterritorialidade dos territórios camponeses
da farinha no Vale do Juruá – Acre, de Cleilton Sampaio de Farias et al.
no qual os autores demonstram que o cultivo da mandioca, a produção
da farinha e de outros derivados são centrais nos aspectos econômicos,
sociais e culturais para as famílias de dois municípios do Acre. O texto de
Valdir Frigo Denardin, Mayra Taiza Sulzbach e Rosilene Komarcheski,
intitulado Farinheiras no Litoral do Paraná: uma análise a partir da
noção de Sistema Agroalimentar Localizado - SIAL Farinheiras apresenta
e caracteriza a atividade produtiva de “fazer farinha”, a partir das
dimensões histórica, técnico-teórica e institucional; categorias de análise
de um Sistema Agroalimentar Localizado. Tal metodologia permite
eleger recursos e ativos tangíveis e intangíveis do território, necessários
para pensar o desenvolvimento local, no caso específico das farinheiras
no Litoral do Paraná. A terceira parte encerra-se com o texto A “feitura
da farinha”: notas etnográficas de uma farinhada no Alto Sertão da Bahia,
de Andrea Lima Duarte Coutinho. A autora descreve as relações de
trabalho no plantio da mandioca, na roça, e na produção da farinha em
uma comunidade camponesa no Alto Sertão da Bahia, desvelando nas
relações de trabalho a divisão social por gênero e geração, como também
as noções de autonomia alimentar e identidade social próprias do grupo
pesquisado.
A quarta e última parte da coletânea, Relações entre sociedade
e natureza, inicia com o texto Fornos quentes, terra vestida, de Natalia
Ribas Guerrero, através do qual a autora apresenta a produção de farinha
realizada numa Reserva Extrativista (Resex) no estado do Maranhão
como o fio condutor para uma reflexão acerca das distintas dinâmicas
de ocupação territorial de grupos que nela se encontram. A população
local, através de um processo de resistência e luta frente a ameaça de
expropriação, reivindica o reconhecimento de um território quilombola,
cuja a solução para o conflito fundiário veio na forma de uma reserva
extrativista. O texto de Rosilene Komarcheski e Valdir Frigo Denardin
A produção de farinha de mandioca em Guaraqueçaba – PR: entre
sustentabilidade, interações e conflitos socioambientais finaliza a presente
coletânea, promovendo uma reflexão acerca do contexto socioambiental
que envolve a produção de farinha de mandioca em duas comunidades
do município de Guaraqueçaba – PR, a partir de uma caracterização
dos elementos socioculturais, econômicos e ambientais da produção
de farinha. Os autores apresentam situações de interações e de conflitos
socioambientais que levam a questionamentos sobre perspectivas de
desenvolvimento sustentável para as comunidades.
Os organizadores agradecem o apoio e a confiança depositados
pelos autores dos textos neste projeto.
Boa Leitura!
Os organizadores.
11
Parte I
HISTÓRIA, TRADIÇÃO E CULTURA
CAPÍTULO 1
VIVER E SOBREVIVER DA FARINHA DE MANDIOCA
NO LITORAL DO PARANÁ NO SÉCULO XIX
José Augusto Leandro 1
Introdução
Este artigo debruça-se sobre o território abrangido pela comarca
de Paranaguá no período da segunda metade do século XIX. Vasta
e diversificada em suas paisagens, a comarca, na época aqui estudada,
possuía domínio jurídico e administrativo sobre populações que viviam
na cidade de Paranaguá, na vila de Guaratuba (ao Sul) e na freguesia de
Guaraqueçaba (ao Norte); nesse domínio também estavam incluídas as
‘almas’ que habitavam em algumas ilhas e as que residiam em inúmeros
quarteirões esparramados pelo interior da Floresta Atlântica.
O texto que segue demonstra que o ambiente rural da região
estudada foi, no século XIX, marcado pela intensa conversão da mandioca
em farinha.2 Ao redor da raiz da terra emergiu, no litoral do Paraná, uma
notável cultura material destinada à transformação do vegetal em massa,
1 Doutor em História Cultural, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR. Email: [email protected]
2 Algumas passagens deste texto já foram publicadas pela Revista Brasileira de História, no artigo “A roda, a prensa,
o forno, o tacho: cultura material e farinha de mandioca no litoral do Paraná” (LEANDRO, 2007).
13
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
em farelo e em pó.3
É necessário, já de saída, que esquemas explicativos generalizantes
sobre o padrão alimentar brasileiro sejam afastados, como o de Josué de
Castro (1937, p. 148), por exemplo, que dividiu o país em cinco zonas
“correspondendo cada uma delas a um tipo de alimentação usual, e
característico”. Para a zona que abarca a Região Sul, o espaço litorâneo
parece ter sido ignorado, de acordo com a explanação do médico
pernambucano, pois as ‘substâncias alimentares’ principais mencionadas
não incluíram a farinha de mandioca. Seriam compostas por leite, carne,
pão (de trigo), arroz, batata inglesa, manteiga, açúcar, verduras, frutas e
café.4
A região do litoral do Paraná também ficou obliterada diante da
sugestão, pelo historiador Stuart Schwartz, de divisão do Brasil colonial em
duas grandes zonas referentes à produção de alimentos.5 Segundo ele, para
o período seria possível identificar “a zona rural da mandioca e a zona rural
do milho, já que esses eram os dois principais alimentos que serviam de base
para a dieta na maioria dos lugares”. Ao norte e nordeste corresponderia
a mandioca e a farinha dela extraída e, para as “regiões agrícolas mistas
de São Paulo para o sul”, o milho e o trigo seriam as culturas prediletas.
(SCHWARTZ, 2001, p. 126-127).
Cecília Westphalen, por sua vez, percebeu que a fabricação da farinha
14
3 Seguindo os ensinamentos de Fernand Braudel (1995, p.92), tudo indica que ao lado do trigo (Ocidente e partes
do mundo oriental), do arroz (Oriente) e do milho (América), a mandioca também possa ser entendida como
uma planta de civilização, ‘dominante’ para o Brasil, pois a partir dela “alimentos majoritários” foram gerados,
organizando “a vida material e por vezes a vida psíquica dos homens com grande profundidade, a ponto de se
tornarem estruturas quase irreversíveis”.
4 Obviamente Josué de Castro não estava se referindo ao Brasil do século XIX, e seu modelo explicativo não está
necessariamente ‘incorreto’; o que vale reforçar aqui é o fato de que as especificidades do sul litorâneo parecem
muitas vezes ‘desaparecer’ em esquemas generalizantes da história econômica, social e cultural do país. Se uma
pesquisa específica sobre padrões alimentares fosse realizada na década de 1930 no litoral do Paraná, certamente a
farinha ali despontaria como integrante do cardápio das substâncias principais. Muitas localidades litorâneas não
se encaixam nos modelos comumente aceitos para o entendimento do desenvolvimento histórico da Região Sul
do Brasil: o modelo das estâncias de gado-peonagem ou o modelo da pequena propriedade imigrante geradora de
excedentes de produtos alimentares comercializáveis.
5 Toma-se a liberdade de chamar de Paraná, para o período colonial, o território que era Capitania de São Paulo, e
posteriormente denominado de Quinta Comarca da Província de São Paulo. A Província do Paraná foi criada no
final de 1853.
pARTE i
CAPÍTULO 1
de mandioca na região litorânea paranaense durante o período colonial
constituiu atividade de relevo. Segundo ela, “a historiografia tradicional
paranaense, como de resto a historiografia brasileira, tem enfatizado o
achamento de ouro de Paranaguá, no século XVII, para depois, de um salto,
referir-se ao ciclo da erva-mate, já no século XIX”. A pesquisadora lembra,
no entanto, que, se de algum modo sobreveio decadência após o fracasso das
atividades de mineração na região, esquecem-se os historiadores de registrar
um importante interciclo colonial, baseado no comércio exportador da
farinha de mandioca. Ele manteve, “desde o final do século XVII, e por todo
o XVIII, o incipiente comércio externo de Paranaguá”. (WESTPHALEN,
1976, p. 73).
Esta característica econômica moldada ao longo do período a que
se refere a historiadora permaneceu presente por todo o século XIX na
região, apesar de a farinha já não estar mais tão fortemente voltada para o
abastecimento externo à província. Para além do melhor entendimento da
circulação do produto no Paraná dos oitocentos – tema que aguarda reflexões
mais encorpadas de historiadores –, o objetivo deste artigo é modesto:
demonstrar que a cultura da farinha de mandioca esteve profundamente
arraigada na vida da família rural do litoral do Paraná na segunda metade
do século XIX, moldando, em muitos aspectos, o seu cotidiano. No dia a dia
das gentes que viveram ao redor do ‘grande mar redondo’6, utensílios como a
roda, a prensa, o forno e o tacho eram tão comuns quanto imprescindíveis à
sobrevivência dos grupos familiares. Tais utensílios expressam uma parcela
da história da cultura material litorânea e conduzem os pesquisadores a um
melhor entendimento sobre “as condições de trabalho, as condições de vida
ou a margem entre as necessidades e sua satisfação”. (PESEZ, 2001, p. 210211).
A principal base empírica deste artigo foi composta por
documentos jurídicos da esfera cível do período compreendido entre 1849
a 1887. Inventários post-mortem constituem um excelente material para
6 Grande mar redondo é o significado da palavra indígena Pernagoá. A baía de Paranaguá engloba outras baías
menores: baía de Guaraqueçaba, baía das Laranjeiras, baía de Pinheiros, baía de Serra Negra. Vale lembrar que a
comarca de Paranaguá, no período analisado, também englobava os habitantes que se estabeleceram ao redor da
baía de Guaratuba, situada ao sul.
15
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
investigações históricas, pois possibilitam aos pesquisadores captar uma
série de aspectos que compõem as facetas materiais de uma determinada
sociedade. Outros documentos jurídicos, de outras alçadas, também
foram utilizados. Eles reforçam que a fisionomia da vida cotidiana no
ambiente rural, naquela época, era desenhada, sobretudo, a partir das
lidas ao redor da raiz da terra.
Do cultivo da mandioca e dos ‘bens que o uso reclama’
Com relação ao cultivo da mandioca no Brasil, vários autores
ressaltam que a raiz da terra era facilmente adaptável a quase todo tipo de
solo, porém era plantada com mais frequência em solo arenoso, comum
nas regiões litorâneas brasileiras. Em Santa Catarina, província do sul do
país que mais produzia o produto no século XIX, Laura Hübener assim
descreve o cultivo da mandioca:
Para o trato da terra utilizavam o sistema de coivara ou queimada,
para logo após revolvê-la com o auxílio da enxada. Sem a aplicação
de qualquer outro tipo de adubo, a terra era, em geral, preparada
entre os meses de maio e julho, reservando agosto para o início do
plantio. Da colheita do ano anterior eram retiradas e guardadas
mudas que deveriam medir cerca de 30 a 50 cm de comprimento e
plantadas isoladamente. O cultivo da mandioca era relativamente
fácil, pois exigia mínimos cuidados; raramente era acometida de
doenças e pragas. Sua colheita era efetuada após um período de
dois anos e geralmente no mês de abril. (HÜBENER, 1981, p. 78).
16
De maneira geral, não havia muitas variações regionais nas
técnicas de plantio da mandioca em diversas partes do Brasil no século
XIX. Os lavradores faziam diversas covas no terreno e, em cada uma delas,
enterrava-se “uma ‘rama’ (denominação que se dá à haste da mandioca)
que [devia] ficar inclusa no solo uns 10 cm, de maneira levemente
inclinada”. (COSTA, 1995, p. 27).
Obviamente, o número de covas para o plantio da mandioca
dependia das dimensões do terreno. Na comarca de Paranaguá, durante
os oitocentos, as propriedades não podem ser classificadas como do tipo
pARTE i
CAPÍTULO 1
plantation. Dados acerca do tamanho das propriedades na segunda metade
do século XIX, a partir dos inventários post-mortem, não diferem dos
dados extraídos do registro de terras em pesquisa efetuada por Baracho.
Afirma a autora que a estrutura fundiária de Paranaguá, nesse período,
era formada basicamente por imóveis que podiam ser considerados de
pequeno porte. No período 1854-1857, revela, “a maioria deles não atingia
500 braças e no período 1893-96, as áreas eram, em geral, inferiores a 60
hectares”. Segundo sua amostragem de 184 imóveis para o período 18541857, 84,78% possuíam medidas inferiores a 400 braças. Ainda segundo a
pesquisadora, as propriedades mais comuns registradas – “sítios” – eram,
em sua grande maioria, compostas de unidades entre menos de 50 até
200 braças. (BARACHO, 1995, p. 85 e 91).
Entretanto, existiam algumas poucas exceções. Vale aqui destacar
duas propriedades – a Fazenda Boa Vista e a Fazenda das Palmeiras –
porque elas exemplarmente fazem o papel de contraponto para a pouca
riqueza existente no ambiente rural da comarca daquela época; e porque
no interior de uma dessas propriedades (que pertenceram ao último
capitão-mor de Paranaguá, e cuja esposa foi inventariada em 1855) o
ambiente físico de trabalho na produção de farinha de mandioca e a
moradia dos escravos confundiam-se.
A Fazenda Boa Vista, em Guaraqueçaba, possuía a extensão
de 3 mil braças de terra (a maior em toda a documentação analisada).
Principiava no lugar denominado “Ponta Calva”, corria o rio Tagaçaba
e findava no rio denominado Borrachudo, “onde havia uma marca”. No
inventário, anotou-se ainda que nela estavam “contidos os seus fundos,
águas vertentes e cultivados”. Valia 7 contos e 500 mil réis. A Fazenda das
Palmeiras, também localizada em Guaraqueçaba, com 2.500 braças de
frente, possuía “uma capela com seus ornamentos” e uma casa de morada
térrea avaliada em 5 contos de réis. Principiava no Rio Pirassununguinha,
corria rio acima até o rio das Canoas, e seus fundos alcançavam a
montanha denominada “Tromomô”. Valia, sem os seus pertences, 15
contos de réis.
Na descrição pelo avaliador da Fazenda Boa Vista foi registrado
17
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
algo bastante incomum nos inventários da comarca – senzalas. Foram
arroladas duas, da seguinte forma: a primeira foi apresentada como “uma
casa térrea coberta de telha com paredes de pedra e cal que serve de
senzala e fábrica de farinha, tendo 72 palmos de frente e 77 de fundos”; a
segunda foi descrita como “três casas pequenas unidas cobertas de telha
sobre baldrame de pedra e cal com 6 portas e serve de senzala com 80
palmos de frente e 35 de fundos”. A senzala conjugada à fábrica de farinha
foi avaliada em 1 conto de réis, e as outras três casinhas em 400 mil réis.
As duas senzalas acomodavam um total de 11 escravos roceiros.7
A civilização da mandioca que se constituiu no litoral do Paraná
tinha a seu favor a facilidade dos lavradores em desenvolver a cultura
levando-se em conta o tipo de solo litorâneo, chamado pelo cronista
oitocentista Vieira dos Santos de “areento”. A mandioca encontrava-se em
todos os cantos das baías de Paranaguá e Guaratuba, mas, segundo ele, as
plantações que prosperavam “otimamente” ficavam em terras “situadas
desde o rumo de Leste a Sul; ou desde as Ilhas do Mel, Raza e Cotinga e
em toda a costeira desde a Barra do Sul e Rios de Gurguassu, Correias,
Macieis, Almeidas, Taguaré, até o Emboguassu, e inclusivamente até o
Rio das Pedras”. (SANTOS, 1950, v. 1, p. 89).
Barickman (1998, p. 167), ao estudar aspectos socioeconômicos
do Recôncavo Baiano entre 1780 e 1860, destaca que um dos fatores que
explica a popularidade da cultura da mandioca naquela região devia-se
ao fato de ela não estar vinculada necessariamente a alguma sazonalidade,
como ocorre com outras culturas, embora os meses de março e abril
fossem os melhores períodos para se plantar. Julius Platzman, alemão
que residiu na Ilha dos Pinheiros, na região de Guaraqueçaba, entre 1858
a 1864, anotou que as plantações de mandioca se renovavam usando os
seus próprios ramos:
18
7 1855. Sem capa. Inventário de Dona Leocadia Antonia Pereira da Costa. Museu da Justiça, Curitiba. Na Fazenda
das Palmeiras havia 27 escravos. O inventário post-mortem da esposa de Manoel Antonio Pereira indicou o
espetacular (para os padrões litorâneos paranaenses daquela época) monte-mor bruto de 237 contos, 884 mil e
155 réis.
pARTE i
CAPÍTULO 1
De roças do ano anterior são arrancados ramos que ainda
permanecem nos canteiros, juntados, amarrados em feixes e
carregados para os novos canteiros, Estes ramos, com a grossura
de mais ou menos um dedo e vários pés de comprimento,
aforquilhados, parecem ser muito nodosos, ainda mais ao
tato; são cortados em pedaços com cerca de quatro polegadas
chamados Piques. Lançados num cesto, são carregados ao longo
dos canteiros onde são metidos, inclinadamente no centro das
Covas com os nós e olhos para cima. (PLATZMANN, 2010, p.
177).
Uma vez assentada em terreno propício, a cultura da mandioca
não demandava grandes cuidados, era relativamente de fácil trato.
Hebe Castro (1987, p. 84) informa que “apesar de não se constituir em
uma cultura permanente, possui a característica de poder ficar até dois
anos sem ser colhida após o seu amadurecimento, podendo, portanto,
ser literalmente armazenada na própria terra, colhida em função das
necessidades do produtor”.
Se o cultivo da mandioca não era lá tão complicado, a preparação
da farinha, por seu turno, era circundada por uma complexidade de
afazeres. Eliminar o ácido venenoso da mandioca para transformá-la em
farinha bruta envolvia várias tarefas. Nos escritos de Julius Platzmann,
publicados na Alemanha em 1872, ele resumiu as etapas destacando
primeiramente a atividade de ralar, pela roda: “as raízes tinham sido
trazidas lavadas e limpas com uma faca [...] Enquanto o homem se
ocupa na manivela, a mulher monta no seu ‘cavalo’ diante da roda,
aproximando as raízes brancas à voraz periferia da roda que, à velocidade
de um raio, lança massa das raízes para baixo e para fora”; na sequência,
a atividade de prensar/socar, que extraía boa parte do veneno da raiz,
chamado ‘mantiqueira’: “aos habitantes da casa, não faltam repetidos
exercícios ginásticos mediante a movimentação do eixo de acionamento
da Prensa...” (PLATZMANN, 2010 p. 181 a 184). Por fim, mais duas
atividades, peneirar e torrar, foram anotadas pelo viajante alemão:
19
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
A massa, ainda venenosa [...] é retirada e passada por uma Peneira
de Taquarubu trançada com muita precisão e extraordinariamente
fina. O material peneirado, liberto dos fiapos maiores, a massa,
a Massa coada, imediatamente é levada pela esposa do dono da
casa ou por suas filhas – tão logo o comprimento de seus braços
o permita – até a panela de cobre e, com o auxílio da Apá – uma
pequena pá – é mexida continuamente para evitar que se queime.
[...].
O veneno desaparece e – nosso pão diário – a Farinha quando
pronta, jogada para o alto deve estar bem pulverizada.
(PLATZMANN, 2010, p. 186).
20
Alguns autores apontam que o trabalho de fabricação da farinha,
na maior parte do Brasil, era feito no inverno. Tal período era, por
excelência, a época de se farinhar, ou seja, de se produzir a farinha de
mandioca. (COSTA, 1995, p. 27).
A forma de se produzir a farinha, diferentemente do cultivo da
mandioca, comportava mais variações regionais no Brasil oitocentista,
como até hoje. De maneira geral, é possível afirmar que o tipo de produção
e a consequente qualidade do produto estavam diretamente ligados aos
utensílios disponíveis no interior das unidades produtivas.
Ao se acompanhar a narrativa de Platzmann sobre as etapas
para o fabrico da farinha de mandioca no litoral do Paraná, percebemse similaridades com as técnicas utilizadas no século XIX em Capivari,
na Província do Rio de Janeiro. Naquela região, Hebe Castro identificou
três tipos de beneficiamento da mandioca visando à sua transformação
em farinha e que produziam farinha d’água ou farinha gorda, farinha
d’água de mistura e farinha seca. No primeiro tipo, apenas o forno era
requerido, sendo primeiramente a mandioca amolecida em água exposta
ao sol, espremida à mão e coada em peneira grossa. No segundo tipo, o
forno de cobre e a roda de ralar eram indispensáveis, e a mandioca era
“primeiramente ralada e depois misturada com água, espremida à mão e
passada em peneira fina, misturando então o que ‘passou’ e o que ficou na
peneira, de modo a formar novamente uma só massa, de novo espremida
e levada ao forno”. No terceiro tipo, entravam em cena os utensílios mais
pARTE i
CAPÍTULO 1
comuns no preparo da chamada “farinha seca”: “a mandioca raspada é
lavada e ralada em um ralador que pode ser movido à mão ou a água,
submetida neste estado durante várias horas à ação de uma prensa,
passada em peneira fina e levada ao forno ou tacho para ser cozida e
torrada”. (CASTRO, 1987, p. 86).
Inventários post-mortem da comarca de Paranaguá confirmam
a popularidade do beneficiamento da mandioca com técnicas que
produziam farinha a partir da roda, da prensa, do forno e do tacho.
Em 196 documentos pesquisados para o período que compreende
os anos de 1849 a 1887, os inventariados que legaram aos seus herdeiros
bens do ambiente rural ou bens mistos (que se distribuíam tanto no
ambiente urbano como no ambiente rural) totalizaram 96, dos quais 74
eram de proprietários de escravos e 22 não possuíam cativos.
Dentre os inventariados que possuíam escravos, em 12
documentos detectou-se a presença da produção da farinha de
mandioca articulada com outro tipo de produção (açúcar, aguardente,
arroz, madeira, milho, pescado, cal); por sua vez, em 38 inventários foi
constatado somente o cultivo da mandioca e a produção de farinha no
interior da unidade rural. Dessa feita, tem-se um total de 50 propriedades
(quase 70% dos documentos analisados com mão de obra escrava) cujo
cotidiano do trabalho relacionava-se direta ou indiretamente à raiz da
terra. (APÊNDICE, quadros 1 e 2).
Dentre o total de 22 inventários que não possuíam cativos, 11
deles apresentaram a mandioca e a farinha de mandioca como principal
referência de produção alimentar no interior da propriedade agrícola.
(APÊNDICE, quadro 3).
Assim, nas unidades rurais com ou sem mão de obra escrava, os
bens mais comuns descritos nos inventários – a roda, a prensa, o forno
e o tacho – revelam a existência de uma prevalente cultura material da
farinha de mandioca no litoral do Paraná no século XIX. Aqueles que não
possuíam tais bens – e certamente muitos lavradores pobres da comarca
viviam esta realidade – provavelmente seguiam a receita de um jesuíta
que residiu em Paranaguá em meados do século XVIII. Ele sugeriu:
21
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Se tiveres tão grande falta de dinheiro, e se for tão precário o
orçamento da casa, de modo que sejas incapaz com os gastos,
mesmo módicos, que exija uma máquina mais simples, pede
auxílio ao engenho e desgasta com fricções frequentes tudo o que
o teu pobre campinho tiver produzido numa tábua cujo dorso
polido se revista de um pequeno ralo, a ele encostado. Coloca,
assim, as raspas obtidas em cestos de junco; e (já que a pobreza
cruel impede a fabricação de prensa) faze com que um grande
peso estique aqueles cestos pendurados sobre uma alta viga.
Torrarás a raspa, finalmente seca, revolvendo-a ao fogo, e logo
porás na pobre mesa o mantimento com que se aplacará a dura
fome. Isso façam os camponeses desprovidos dos bens que o uso
reclama. (MELO, 1997, p. 109).
22
Todos comiam farinha de mandioca, principalmente os livres pobres
e os escravos
A importância da mandioca e da farinha de mandioca no litoral
do Paraná por todo o oitocentos tem paralelos com o que Barickman
(1998) identificou para o Recôncavo Baiano no período 1780-1860,
a despeito desta região ser identificada também como de plantation,
diferente, portanto, da configuração econômica e territorial da comarca
de Paranaguá. Em todo caso, as fazendas de mandioca do Recôncavo
foram sempre as fisicamente menores se comparadas às fazendas de canade-açúcar e de fumo, e as que utilizavam os menores plantéis de escravos.
O que tornava singular a importância da farinha de mandioca
naquela região da Bahia, para Barickman, era o fato de o produto
representar o principal componente na dieta alimentar dos moradores
da região, fossem eles livres ou escravos. Da raiz da terra provinha a
principal fonte calórica dos que ali viviam, inclusive da gente simples que
vivia em ambientes urbanos. O pesquisador ainda apontou que na época
por ele estudada o costume de se fazer pão com farinha de mandioca era
mais disseminado do que com farinha de trigo.
Platzmann (2010, p. 187) destacou o costume de se fazerem bolos
com farinha de mandioca, os beijus. Registrou que as crianças do litoral
pARTE i
CAPÍTULO 1
paranaense eram impacientes diante da espera do assado: “Se o forno não
fosse muito alto para seus curtos bracinhos, há muito teriam tirado um
Beiju das mãos da mãe”.
Exemplo do alto consumo da farinha de mandioca na comarca de
Paranaguá pode ser captado quando da construção de uma embarcação.
A “conta de mantimentos para a gente que se tem empregado no Brigue
Cascudo desde o seu princípio até o dia 9 de outubro de 1846”, apresentada
por Jozé Francisco Barrozo, um dos responsáveis pela construção da
embarcação, permite verificar alguns aspectos do consumo de alimentos
pelos trabalhadores.8 O documento listou um total de 41 indivíduos
livres e 33 escravos que atuaram na construção do referido brigue.
Os cativos, porém, trabalharam apenas puxando madeiras do mato e
somente em alguns dias santos. Ao se calcular o consumo de alimentos
pelos 41 homens livres, em uma média de 130 dias de trabalho, percebese que o consumo de carne, 70,5 arrobas, foi excepcionalmente alto.
Respondeu por 56,5% das despesas alimentares da conta apresentada.
Tal fato certamente pode ser considerado incomum na comarca. Por sua
vez, esses mesmos trabalhadores consumiram um total de 59 alqueires
e meio de farinha de mandioca que foram responsáveis por quase 20%
das despesas alimentares da conta apresentada. Os outros itens presentes
no cardápio dos trabalhadores do brigue Cascudo eram o feijão, o arroz,
o toucinho, o charque, a tainha, o sal e o vinho. Representavam, no
montante das despesas alimentares, respectivamente 6,6%, 2,9%, 9,4%,
1%, 2,9%, 0,3% e 0,4%.
Dois anos após a feitura da conta do Cascudo, a farinha de
mandioca também foi registrada em documento sobre uma embarcação.
Nesse caso, porém, de uma barca ligada ao infame comércio que singrava
as turvas águas da baía de Paranaguá. Antonio Pedro d’Alencastro, inspetor
do porto, em ofício enviado ao Inspetor da Tesouraria Geral da Província
de São Paulo, anexou cópia àquela autoridade do manifesto da carga da
8 1847. Juizo de Orfaos da Cidade de Paranaguá e seu Termo. Autuação de huma petição em que he supplicante Joze
Francisco Barrozo morador desta cidade e Supplicados os herdeiros do finado José de Souza Guimarães. Museu
da Justiça, Curitiba.
23
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
barca norte-americana Luiza, datado de 30 de outubro de 1848 e assinado
pelo capitão Carl Pranch. A embarcação conduzia para Bombaim pelo
rio da Prata e Zanzibar “254 sacos com 508 alqueires de arroz pilado; 146
sacos com 292 alqueires de feijão; 50 sacos com 100 alqueires de farinha;
20.700 achas de lenha; 09 barricas com roscas e bolachas; 55 barris com
03 pipas de aguardente; 05 peças de baeta; 15 clavinas e sabres; 100 cascos
com aguada para lastro, e mais batatas e charque, além de obras de folha
e um alambique”. Para o inspetor do porto era evidente que se tratava de
um navio negreiro, pois o carregamento do Luiza era parecido com o
das embarcações utilizadas na travessia atlântica. Carregamento este que
abastecia a tripulação e os cativos, e que também era mercadejado com
traficantes na costa africana.9
Quando da construção do brigue Cascudo, em 1847, o valor do
alqueire de farinha de mandioca era de 1 mil e 200 réis. Em 1872, o alqueire
custava em média 5 mil réis. (SANTOS, 1995, p. 130). Em tempos de
encarecimento do produto, muito provavelmente a população litorânea
paranaense comportava-se da mesma maneira que os habitantes do
Recôncavo Baiano. Nesta região nordestina, quando o preço aumentava,
muitos “não tinham escolha; tinham de pagar. Podiam comprar menos
carne; podiam se endividar; mas comprar menos farinha era a última
opção possível. E, nesses casos, isso significava fome”. (BARICKMAN,
1998, p. 53).
Viver e sobreviver da farinha de mandioca
Pequenos fragmentos de histórias de sujeitos que viveram no
litoral do Paraná no século XIX possibilitam visualizar a civilização da
farinha de mandioca como algo de ‘carne e osso’; e, para além da ‘retórica
da curiosidade’, esses fragmentos apresentam o “interesse de reintroduzir
o homem na história, por intermédio da vivência material”. (PESEZ,
2001, p. 210-211).
A lavradora Anna do Carmo, moradora do quarteirão do rio
24
9 Ofícios. Antonio Pedro d’Alencastro para o Inspetor da Tesouraria Geral da Província de São Paulo. Paranaguá,
1848. Arquivo do Estado de São Paulo.
pARTE i
CAPÍTULO 1
Retiro, em Paranaguá, viveu muitos anos como se casada fosse com José
Pereira e com ele teve, ao longo do relacionamento, sete filhos. Em narrativa
de seu representante legal ao Juiz de Órfãos, em 1859, foi registrado que
Anna e José com o “fruto do comum trabalho adquiriram meios para a
compra de uma fábrica de fazer farinha, quatro canoas pequenas, um
tacho de cobre e mais objetos grosseiros próprios à serventia doméstica”;
que a família plantou “quatro roças de mandioca”; e que o casal construiu
“uma casa de palha aonde se abrigavam”. Entretanto, logo após a morte
do companheiro, Anna precisou recorrer à Justiça porque sua sogra
Joaquina passou a “assenhorear-se” de diversos bens de sua propriedade,
“começando por um tacho”.10
Assenhorear-se das terras de outrem também levava os
personagens do período à Justiça. Em 1872, João Antonio Ricardino
Pedroso queixou-se de seu cunhado Ireno Gonçalves dos Santos, pois
não conseguia “conciliar” com este último, que “estava lavrando em seus
terrenos”, com fundos para o rio Itiberê, próximo à cidade de Paranaguá.
Nesse caso, João afirmou que Ireno fez o roçado “sem sua autorização”.
Para melhor garantir o bom desfecho de sua queixa, João de imediato
anexou no processo o “primeiro traslado de escritura pública de um sítio
com casa coberta de telha e fábrica de fazer farinha e árvores frutíferas
com duzentas e trinta e duas e meia braças de terra no lugar denominado
Ribeirão”.11
Conflito em virtude de disputa por instrumentos necessários ao
fabrico da farinha de mandioca também desuniu – pelo menos durante
o ano de 1888 – dois irmãos que moravam no Tromomô, região de
Guaraqueçaba. Pedro e João agrediram-se fisicamente porque o último,
juntamente com sua mulher e dois filhos, dirigiu-se à propriedade de sua
mãe (viúva que residia com Pedro, filho solteiro) no intuito de, a todo
custo, retirar de lá uma roda de ralar mandioca.12
10 1859. Juizo de Órfãos da Cidade de Paranaguá. Autos cíveis de entrega de bens em que é Anna do Carmo
supplicante. Museu da Justiça. Curitiba.
11 1872. Juizo Municipal da Cidade de Paranaguá. Autos de petição para despejo de terrenos em que são João
Antonio Ricardino Pedroso supplicante e Ireno Gonçalves dos Santos supplicado. Museu da Justiça, Curitiba.
12 1888. Subdelegcia de Policia da Villa de Guaraqueçaba. Autos de corpo de delito ex-officio. Ofendido Pedro
25
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Determinadas histórias familiares acenam para uma vivência de
pobreza, para um cotidiano pautado pela experiência de mínimos vitais.13
Quando da morte de algum dos genitores, por exemplo, a escassez material
partilhada pelos membros da família poderia ficar mais evidente. O caso
da viúva Dona Margarida de Souza e Silva é ilustrativo. Mesmo tendo a
finada legado aos cinco filhos herdeiros a propriedade de um escravo, a
totalidade do valor dos seus bens, em 1855, atingiu pouco menos de 500
mil réis. Seu patrimônio incluía, além do cativo Constantino, de 45 anos
(que vivia nas terras do genro inventariante), uma casa velha coberta de
telha e alguns móveis; um oratório com cinco imagens; uma roda, uma
prensa, um forno e um tacho para fabricar farinha.14
José Maia Bezerra Neto e Sidiana de Macêdo (2009, p. 4-5) afirmam
que dentre as práticas alimentares dos cativos da Amazônia, no século
XIX, destacava-se a farinha de mandioca ao lado do peixe seco. Segundo
os pesquisadores, os cativos daquela região eram tão dependentes da
farinha de mandioca “que escravos fugidos, em trânsito ou sem pouso
certo, ou que não tinham como fazer suas próprias roças de mandioca,
tinham que se valer de sua astúcia e da cumplicidade com outros sujeitos
a fim de obter a farinha”. No litoral do Paraná não devia ser muito
diferente. O caso de Gaspar, de 22 anos, ilustra a dependência da raiz da
terra. Porém, ao que parece, ele contava com um quinhão de terra para
roçada em meados da década de 1860. Fugido do seu senhor José Antonio
Oliveira, passou a viver na região do Boguassu, um dos quarteirões rurais
de Paranaguá daquela época. Ali Gaspar vivia como lavrador e habitava
em uma pequena casinha de palha com sua companheira Úrsula. Depois
de um ano e meio como livre, sua sorte modificou-se quando uma escolta
policial conseguiu apanhá-lo. No momento da prisão, conforme relatou
um dos guardas, Gaspar estava “deitado”, “descansando numa esteira”,
26
Antonio Ribeiro. Ofensor João Antonio Ribeiro. Arquivo da Primeira Vara Criminal de Paranaguá.
13 A noção de ‘mínimos vitais’ para a análise de comunidades interioranas brasileiras surgiu com Antonio Candido
(1977, p. 27) em seu estudo sobre o modo de vida dos caipiras de Bofete, interior de São Paulo. “Dir-se-á, então, que
um grupo ou camada vive segundo mínimos vitais e sociais quando se pode, verossilmente, supor que com menos
recursos de subsistência a vida orgânica não seria possível... “.
14 1855. Sem capa. Margarida de Souza e Silva inventariada. Agostinho Jose Pereira inventariante. Museu da
Justiça, Curitiba.
pARTE i
CAPÍTULO 1
“tendo acabado de raspar umas mandiocas...”.15
A sorte também parece ter abandonado, em 1859, os libertos
Fermino, Protazio, Justino, João e Proto, ex-escravos de Manoel Luizino
de Nores, um dos poucos bem afortunados do litoral do Paraná no século
XIX. Nores, proprietário da Fazenda Santa Cruz, citado como principal
destaque entre os fazendeiros da comarca na crônica de Vieira dos Santos
(1950, v. 2, p. 300)16, deixou todos os seus escravos livres em testamento
(com ônus de trabalho, por quatro ou oito anos, para Ricardo José da
Costa). Além disso, deixou para eles a Fazenda Santa Cruz, “com as
terras, engenhos, fábricas, ferramentas [...] com expressa cláusula de que
tomariam conta de tudo depois de concluído o ônus de seu testamento”.
Porém, cumprida a cláusula testamentária, Ricardo José da Costa teimava
em não dar a liberdade aos ex-cativos como também negava-se a darlhes posse da fazenda. Na Santa Cruz havia plantações de café, arroz,
cana, mandioca e produzia-se farinha. Os cinco libertos que foram
à Justiça deixaram uma narrativa (escrita por José Marques da Silva a
rogo dos suplicantes) que demonstrou as graves consequências da falta
de acesso aos produtos básicos da terra, uma vez que a fazenda entrou
em decadência. Eles alegaram viver “em um estado dúbio, de incertezas,
receios, e necessidades, por efeito de tais conjecturas”. A fazenda estava
“no mais deplorável estado”, e “os suplicantes” viviam “como peregrinos,
aqui, ali, e acolá, procurando trabalho”; os libertos se disseram “pessoas
miseráveis” e “não tendo quem os proteja” [...] porque ninguém se quer
inimizar e comprometer com o Sr. Ricardo José da Costa...”.17
15 1868. Traslados dos autos-crime do réu Gaspar escravo de José Antonio de Oliveira cujos autos sobem por
apelacção para o Tribunal da Relação do Districto sendo o Juízo ex-officio apelante e o dito Gaspar preso na cadeia
desta cidade apelado. Arquivo da Primeira Vara Criminal de Paranaguá. Na ocasião de sua prisão Gaspar tratou de
safar-se e acabou dando no soldado João Antonio Duarte uma lançada mortal na região do baço.
16 Na crônica de Vieira dos Santos, oferecida à Câmara Municipal de Paranaguá em 1850, Manoel Luizino de Nores
aparece como possuidor de “mais de 60 escravos”. (SANTOS, 1950, p. 300). Infelizmente, a pesquisa não localizou
o inventário de Nores.
17 1859. Juizo de Direito da Comarca da Cidade de Paranaguá. Autuação de uma petição e documentos em que é
o Doutor Promotor Público supplicante e Ricardo Jose da Costa supplicado. Museu da Justiça, Curitiba. Pela
pesquisa de Baracho (1995, p. 55) é possível saber que o conflito foi resolvido apenas em 1894, com registro a
favor de Sérgio Arantes e outros 27 ex-escravos; também é possível saber que a Fazenda Santa Cruz possuía, nesse
ano, 2450 hectares 25 ares “tendo como confrontantes a Colônia Maria Luiza e o morro do Inglês, da Colônia
27
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Os fragmentos das histórias narradas revelam, com bastante
propriedade, um aspecto comum à maioria das famílias de lavradores
que viveram em algum dos diversos quarteirões rurais que compunham
a comarca de Paranaguá no século XIX: a estratégia de sobrevivência do
grupo familiar, ligada, de maneira inextricável, à mandioca e à farinha de
mandioca. Labutar ao redor da raiz da terra propiciava a sobrevivência
cotidiana e garantia condições para que uma família, sobretudo a com
muitos componentes, não transpusesse a barreira que separava a pobreza
da miserabilidade, à época.
Conclusão
A partir dos inventários analisados é possível concluir que
o principal traço do ambiente rural da comarca de Paranaguá era a
vinculação das suas propriedades agrícolas ao cultivo da mandioca e
sua transformação em massa, farelo e pó. A maioria das propriedades
inventariadas possuía utensílios relacionados ao mundo da farinha,
aquilo que o jesuíta José Rodrigues de Melo chamou, em meados do
século XVIII, de ‘bens que o uso reclama’.
No universo rural da comarca de Paranaguá, nas unidades
agrícolas com ou sem mão de obra escrava, foi possível observar a
existência de um notório modo de vida cujo trabalho girava ao redor da
raiz da terra. Pela análise dos documentos é possível afirmar que a farinha
de mandioca constituiu uma espécie de pão comum aos afortunados e
minimamente afortunados do mundo rural da comarca. Ela estava
presente na mesa daqueles que possuíam uma certa riqueza de bens para
serem legados aos herdeiros e também foi notória entre os que deixaram
cabedal de pouca monta no ambiente rural.
A farinha de mandioca garantia os mínimos vitais da população,
sobretudo dos livres pobres e dos escravos. Estes a tinham como a sua
principal referência alimentar, a sua primordial fonte calórica disponível
à época. Era fundamentalmente na lida com a raiz da terra que a vida
28
Alessandra, contendo dois córregos que desaguavam no rio Ribeirão, bem como engenhos movidos por animais
“para fazer açúcar e aguardente” e “fábricas” de fazer farinha”.
pARTE i
CAPÍTULO 1
dos menos favorecidos da comarca de Paranaguá, na segunda metade do
século XIX, seguia seu curso.
Diante da marcante presença da civilização da farinha de
mandioca no litoral paranaense nos oitocentos, é necessário reforçar
a impropriedade de determinadas imagens construídas para a história
do Paraná. Dentre elas, a que desconsidera o papel da cultura indígena
e luso-africana na conformação do modo de vida paranaense deve ser
reiteradamente refutada.
Assim é o Paraná. Território que, do ponto de vista sociológico,
acrescentou ao Brasil uma nova dimensão, a de uma civilização
original construída com pedaços de todas as outras. Sem
escravidão, sem negro, sem português, e sem índio, dir-se-ia que
sua definição humana não é brasileira. (MARTINS, 1989, p. 446).
Nada mais distante da asserção transcrita do que a história da
comarca de Paranaguá, situada na Região Sul do Brasil. A incrível
civilização da farinha de mandioca que existiu nos oitocentos – e que ainda
pulsa ao redor do grande mar redondo – constitui prova de um Paraná
colorido e radicalmente diferente do quadro social monocromático,
equivocado, pintado por Wilson Martins em livro de 1955.18
Nada mais brasileiro, por ‘definição’, no século XIX, do que viver
e sobreviver ao redor da raiz da terra.
18 O livro teve uma nova tiragem de 2 mil exemplares, em 1989, com apoio da Secretaria do Estado da Cultura. Na
reedição, não houve espaço para comentários críticos à obra. Tampouco foi revisto, pelo autor, algum aspecto do
conteúdo ali presente passados 34 anos. Martins entende como Paraná o espaço que se configurou a partir do
final de 1853, com a criação da Província. A citação que ignora o passado luso-africano constitui parte do último
parágrafo da obra.
29
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
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31
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Apêndice
QUADRO 1
PERFIL DAS PROPRIEDADES NOS INVENTÁRIOS RURAIS COM ESCRAVOS DA COMARCA DE
PARANAGUÁ-1849-1887
32
TIPO DE
N°.
PRODUÇÃO
ESCRAVOS
Roda, prensa, forno, tacho
Farinha
3
Não cita
Roça de mandioca
7
Rio dos Correias
(Paranaguá)
Tacho, prensa, forno, roda
Farinha
12
1852
Rio Cubatão
(Guaratuba)
Não cita
Não identificado
2
1852
Ilha Rasa
(Paranaguá)
Fábrica de fazer farinha, tacho
Farinha
3
1854
Riozinho
(Paranaguá)
Casa de fazer farinha, engenho de cana,
alambique
Farinha, açúcar,
aguardente
12
1855
Cassoeiro
(Paranaguá)
Roda, prensa, forno, tacho, almofariz
Farinha
1
1855
Rio dos Almeidas
(Paranaguá)
Forno e tacho de cobre
Farinha
3
1856
Medeiros
(Paranaguá)
Fábrica de fazer farinha, roda, prensa,
forno, tacho
Farinha
7
1856
Ijipijessara
(Paranaguá)
Casa com fábrica de fazer farinha, roda,
prensa, forno, cocho, casa de alambique
com duas fábricas, uma de soque de doze
mãos e outra de cana
Farinha, aguardente
7
1860
Rio Tagaçaba
(Guaraqueçaba)
Casa de fazer farinha, roda, prensa,
forno, tacho
Farinha
6
1861
Rio Descoberto
(Guaratuba)
Não cita
Roça de mandioca
2
1861
Segundo Distrito
(Guaraqueçaba)
Casa de engenho com fábrica, casa com
fábrica de fazer farinha, alambique
Aguardente, farinha
33
1863
Olho d’Água
(Paranaguá)
Roda, prensa, forno, cocho
Farinha
7
1864
Tromomo
(Guaraqueçaba)
Não cita
Não identificado
4
1866
Rio das Pedras
(Paranaguá)
Moenda, casa de fazer farinha, alambique
e capelo
Aguardente, farinha
6
1866
Rio dos Almeidas
(Paranaguá)
Fábrica de fazer farinha
Farinha
2
1868
Guaratuba
Não cita
Não identificado
4
1869
Bocuhy (Paranaguá)
Roda de ralar mandioca, tachos
Farinha
1
1870
Guaraqueçaba
Fábrica de fazer farinha
Farinha
1
1871
Barra do Sul
(Paranaguá)
Roda e prensa
Farinha
5
1871
Tagaçaba
(Guaraqueçaba)
Não cita
Não identificado
3
1872
Rio das Pedras
(Paranaguá)
Roda de ralar, forno de cobre 28 libras
Roça de mandioca e
farinha
8
1873
Rio dos Meros
(Guaratuba)
Roda para fazer farinha, forno de cobre,
tacho de cobre
Farinha
5
ANO
LOCAL
UTENSÍLIOS
1849
Rio Grogussu
(Paranaguá)
1849
Não identificado
1850
pARTE i
CAPÍTULO 1
1873
Guaratuba
Roda, prensa, forno
Farinha
7
1873
Saco Tambarutaca
(Paranaguá)
Roda, prensa, forno de cobre, tacho
Farinha, duas roças de
mandioca
7
1874
Guaraqueçaba
Não cita
Não identificado
2
1874
Retiro (Paranaguá)
Prensa, forno, tacho
Mandioca e farinha
6
1875
Ponta Grossa
(Paranaguá)
Roda, prensa, forno, tacho de cobre
Farinha
4
1876
Rocio Grande
(Paranaguá)
Fábrica de fazer farinha, forno, tacho
Farinha
4
1878
Barra do Sul
(Paranaguá)
Fábrica de fazer farinha com roda e forno
de cobre, tacho de cobre
Farinha
2
1879
São João Pequeno
(Guaratuba)
Roda, prensa, forno, tacho
Farinha
9
1880
Não identificado
Não cita
Não identificado
1
1881
Buquera (Paranaguá)
Engenho de socar
Arroz
5
1884
Guaraqueçaba
Não cita
Farinha
1
1879
Rio do Cedro
(Guaratuba)
Alambique, forno de cobre
Aguardente
6
1880
Sítio Retiro
(Paranaguá)
Roda, prensa, forno, tacho, bolandeira
Farinha
4
1881
Descoberto
(Guaratuba)
Roda de ralar mandioca, forno de cobre
Farinha, roça de
mandioca, 200
alqueires de arroz
6
1881
Rio Cubatão
(Guaratuba)
Engenho para fabricar aguardente com
casa de palha e pertences, roda, prensa,
forno, tacho
Aguardente, farinha
4
1881
Rio das Pedras
(Paranaguá)
Fábrica de fazer farinha com forno e dois
cochos, tachos de cobre, rede de lancear
com cabos e mais pertences, rancho para
depósito de cal
Farinha, pescado, cal
7
1881
Itaqui
(Guaraqueçaba)
Engenho para cana com caldeira,
alambique, fábrica para fazer farinha com
roda, prensa e forno
Aguardente, farinha
6
1881
Saco Tambarutaca
(Paranaguá)
Não cita
Não identificado
6
1882
Bocuhy (Paranaguá)
Não cita
Não identificado
11
1882
Barra do Sul
(Paranaguá)
Fábrica para fazer farinha com roda,
prensa, forno e tacho
Farinha
3
1883
Guaratuba
Engenho com casa e acessórios
Aguardente, açúcar
2
1884
Não identificado
Moenda de ferro, dois alambiques, forno
de cobre
Aguardente
4
1886
Imbocuhy
(Paranaguá)
Casa de fazer farinha, roda e prensa para
ralar mandioca com dois fornos
Farinha
9
1887
Tagaçaba
(Guaraqueçaba)
Fábrica para farinha, casa para farinha
Farinha, mandioca,
vigas, milho
1
1887
Guaratuba
Engenho de cana
Aguardente, açúcar
3
FONTE: Inventários post-mortem da comarca de Paranaguá.
33
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
QUADRO 2
PERFIL DAS PROPRIEDADES NOS INVENTÁRIOS MISTOS COM ESCRAVOS DA COMARCA
DE PARANAGUÁ - 1849-1887
ANO
LOCALIDADE
UTENSÍLIOS
TIPO DE PRODUÇÃO
Nº.
ESCRAVOS
1849
Rio Morato
(Guaraqueçaba)
Não cita
“Cultivados”
(mandioca)
16
1849
Olho d’Água
(Paranaguá)
Prensa, tacho, forno, cocho
Farinha
6
1852
Rio das Pedras
(Paranaguá)
Não cita
Não identificado
30
1854
Valadares
(Paranaguá)
Não cita
Não identificado
8
1855
Fazendas Boa Vista
e das Palmeiras
(Guaraqueçaba)
Fábrica de fazer farinha, 2 ranchos para
depósito de madeira
Farinha, madeira
38
1859
Riozinho
(Paranaguá)
Casa de farinha com roda, prensa e forno
de cobre
1860
Rio Grogussu
(Paranaguá)
Casa de fazer farinha
Farinha
2
1864
Guaraqueçaba
(Local não definido)
Casa com fábrica de fazer farinha, 2
engenhos de serrar madeira
Farinha, madeira
2
1864
Serra Negra
(Guaraqueçaba)
Roda, prensa e forno para fabricar farinha
Farinha
4
1867
Tagaçaba
(Guaraqueçaba)
Não cita
Não identificado
2
1868
Rio Guaraqueçaba
(Guaraqueçaba)
Engenho e casa de fazer farinha
Farinha
10
1868
Não identificada
Fábrica de farinha, roda, prensa e forno
Farinha
7
1868
Guaratuba
Não cita
Não identificado
5
1868
Rio Tagaçaba
(Guaraqueçaba)
Não cita
Não identificado
8
1871
Rio dos Correias
(Paranaguá)
Não cita
Não identificado
5
1871
Rio das Pedras
(Paranaguá)
Forno, bolandeira
Farinha
3
1877
Guaraqueçaba
Casa de engenho
Não identificado
2
1877
Itiguassu
(Paranaguá)
Roda, prensa, forno
Farinha
2
1883
Guaratuba
Alambique de cobre, cochos de madeira,
depósito de aguardente, casa de engenho,
bomba de cobre, cocho para água, pipas,
roça de cana
Açúcar, aguardente
2
1878
Não identificado
Alambique, bolandeira
Aguardente
2
1873
Rio Cubatão
(Guaratuba)
Não cita
Não identificado
1
1876
Guaraqueçaba (local
não identificado)
Casa com fábrica de farinha, engenho de
socar arroz;
Arroz, farinha
31
1876
Rio Guaraguassu
(Paranaguá)
Não cita
Não identificado
2
1879
Barra do Sul
(Paranaguá)
Roda, prensa e forno
Farinha
1
1880
Bocuhy (Paranaguá)
Fábrica de farinha com pertences
Farinha
5
FONTE: Inventários post-mortem da comarca de Paranaguá
34
Farinha
6
pARTE i
CAPÍTULO 1
QUADRO 3
PERFIL DAS PROPRIEDADES NOS INVENTÁRIOS RURAIS E MISTOS SEM ESCRAVOS DA COMARCA
DE PARANAGUÁ – 1857/1884
ANO
LOCAL
UTENSÍLIOS
TIPO DE PRODUÇÃO
1857
Barra do Sul
Roda, prensa, forno, tacho
Mandioca, farinha de mandioca
1868
Rio dos Correias
Roda, prensa, forno
Mandioca, farinha de mandioca
1869
Grogussu/Cachoeira
Tacho de cobre
Mandioca, lenha
1869
Ribeirão
Roda, prensa, forno, tacho
Mandioca, farinha de mandioca
1870
Rio Itiberê
Rede para lancear
Pescado, frutíferas
1871
Paranaguá (“sítio”)
Forno de ferro, tacho de cobre
Mandioca, farinha de mandioca
1872
Guaratuba
Engenhoca p/cana, alambique
Aguardente
1873
Rio Borrachudo /
Rio das Canoas
Engenho e depósito de madeiras
Madeira
1876
Rio Guaraguassu
Não cita
Não identificado
1876
Rio Guaraguassu
Não cita
Não identificado
1876
Sufrague
Não cita
Café
1878
Brejatuba
Forno, tacho
Mandioca, farinha de mandioca
1880
Serra Negra
Roda, prensa, forno, tacho
Mandioca, farinha de mandioca
1880
Serra Negra
Não cita
Não identificado
1880
Rio Pequeno
Não cita
Não identificado
1882
Emboguassu
Não cita
Mandioca
1882
Tagaçaba
Não cita
Não identificado
1883
Emboguassu
Fábrica de fazer farinha
Mandioca, farinha de mandioca
1884
Barra do Sul
Fábrica de fazer farinha
Mandioca, farinha de mandioca
1884
Serra Negra
Casa de cana e alambique
Aguardente
1885
Embocuhy
Fábrica de fazer farinha, tacho
Mandioca, farinha de mandioca
1887
Não identificado
Alambique de cobre, forno velho
Aguardente
FONTE: Inventários post-mortem de comarca de Paranaguá.
35
CAPÍTULO 2
OS ENGENHOS DE FARINHA EM FLORIANÓPOLIS –
APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA PLURAL
Adriane Schroeder Lins Leiroza1
Introdução
O presente capítulo tem por objetivo fazer um apanhado das
pesquisas sobre os engenhos de farinha que efetuei e trazer, brevemente,
algumas outras questões, principalmente em relação à patrimonialização
do modo de fazer farinha de mandioca polvilhada. Durante a graduação
em História, movida pela ligação deste tema com a história de minha
família materna e da região onde nasci e cresci, em Capoeiras, bairro
continental de Florianópolis. Trabalhei as interações do trabalho e
do lúdico – as brincadeiras e interações sociais presentes no processo
de produção da farinha (a farinhada). Durante o mestrado, ampliei
a pesquisa, trabalhando os discursos em torno do tema advindos da
historiografia, da imprensa, da memória, enfocando aspectos correlatos ao
chamado processo de modernização regional e à tradição, seguidamente
1 Bacharel, licenciada e mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bacharel em
Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Advogada (OAB∕SC 23746). Doutoranda em
História pela UFSC. Professora titular de História Contemporânea pela Universidade da Região de Joinville e
professora efetiva da Disciplina de História na rede municipal de ensino da Prefeitura Municipal de Florianópolis
(em licença para aperfeiçoamento∕Doutorado em ambas as instituições). Endereço: Rua Doralice Ramos Pinho,
262, AP. 501, Bairro Jardim Cidade, São José, Santa Catarina. CEP 8811-310. E-mail: adriane.schistoria@gmail.
com.
37
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
associados ao termo “açorianismo” e assemelhados. Nestes trabalhos
utilizei fontes diversificadas: relatos de viajantes, entrevistas, jornais,
obras da literatura catarinense - em especial Virgílio Várzea (inclusive
textos ficcionais); na dissertação, acrescentei a estas algumas legislações
municipais e estaduais, bem como relatórios de órgãos oficiais. Utilizei
referências metodológicas mais correlatas à História Cultural para
embasar conceitos como identidade, memória e representações.
Na pesquisa para a graduação, as conclusões principais foram
que o trabalho, o lúdico (brincadeiras como a aposta do capote, cantigas
como as da ratoeira), bem como as sociabilidades estavam amalgamados,
não havia um entrecorte temporal no estilo “hora de trabalhar”, “hora de
cantar a ratoeira”, por exemplo. As abordagens metodológicas apontaram
que em trabalhos predominantemente artesanais tal interação é frequente,
(por exemplo, Benjamin2). A amplitude de temáticas elencadas neste
primeiro trabalho levou à elaboração do projeto e posterior pesquisa para
a dissertação.
Na composição desta, verificou-se que vários autores catarinenses
destacam o aspecto econômico da farinha, que foi o principal produto
da economia catarinense destacando por cerca de 200 anos3. O produto,
algumas descrições da forma de produção, modos de comer e mesmo
38
2 BENJAMIN, Walter. O narrador, in: Obras Escolhidas, vol. I. São Paulo, Brasiliense,1985.
3 Ver, por exemplo: BRITO, Paulo José M. de. Memoria Política sobre a Capitania de Santa Catharina. Florianópolis,
Sociedade Literária Bibliotheca Catarinense, 1932; CABRAL, Oswaldo Rodrigues. História de Santa Catarina.
Florianópolis, Lunardelli, 1987,500 p.; CUNHA, Idaulo. Evolução Econômico-Industrial de Santa Catarina.
Florianópolis, Fundação Catarinense de Cultura, 1982. 216 p.; DALLANHOL, Vilmar & OLINGER, Glauco (org.).
A Mandioca em Santa Catarina. Florianópolis, ACARESC, s/d. 160 p.; HÜBENER, Laura Machado. O Comércio
na Cidade de Desterro do Século XIX. Florianópolis, Imprensa Universitária (UFSC), 1981. 120 p.; LAGO, Paulo
Fernando. Santa Catarina - A terra, o homem e economia. Florianópolis, Imprensa Universitária∕UFSC, 1965 (?). 340
p.; MATTOS, Jacintho Antônio de. Colonisação [sic] do Estado de Santa Catharina – dadoshistóricos e estatísticos
(1640-1916). Florianópolis, Gab. Typ. d’ O Dia, 1917; MIRA, Crispim. Therra Catharinense. Florianópolis, Typ. da
Livraria Moderna, 1920. 286 p.; PEREIRA, Nereu do Valle. A origem e a tecnologia dos engenhos de farinha de
mandioca na Ilha de Santa Catarina, in: Anais da Segunda Semana de Encontros Açorianos (1987) Florianópolis,
Editora da UFSC, 1989. 343 p.; PEREIRA, Nereu do Valle. Os Engenhos de Farinha de Mandioca da Ilha de Santa
Catarina. Fundação Cultural Açorianista, 1993. 208 p. PIAZZA, Walter F. A mandioca e sua farinha. Florianópolis,
Faculdade Catarinense de Filosofia, 1956. 42 p. PIAZZA, Walter F. Santa Catarina: Sua História. Florianópolis,
UFSC, 1983. 750p. ROSA, José Vieira da. Chorografia de Santa Catharina. Florianópolis, Livraria Moderna, 1905.
320 p.
PARTE i
CAPÍTULO 2
julgamentos sobre a qualidade da farinha (inclusive no sentido de
provocar doenças dentárias, de ser um alimento inferior e outros) são
encontrados em fontes como os relatos de viajantes4. A análise destas
fontes pela ótica metodológica evidenciou que a qualidade em si do
produto era mais um ponto nos discursos de “superioridade” europeia
que transparecem em tais relatos. Ainda, tais discursos refletiam a
construção de identidade europeia em aspectos como: alimento (os
itens “europeus” ou mais assemelhados a estes eram em geral descritos
como mais saudáveis, por exemplo); população (descendentes dos povos
germânicos e italianos eram descritos favoravelmente em relação aos
“mestiços”, indígenas e “portugueses”); traços do cotidiano e da cultura.
A tônica de “superioridade” de tais fontes é associada ao processo
de expansão europeia, em especial ao longo do século XIX analisadas
algumas impressões sobre o engenho e sua farinha, destacando a
perspectiva econômica.
As impressões da historiografia também apresentam seus
julgamentos à qualidade da farinha: há autores que “defendem” a farinha
do engenho como “típica” e “de melhor qualidade”, enquanto outros a
qualificam de “inferior, grosseira”. A maior parte dos autores catarinenses
relaciona o engenho com o assentamento de colonos luso-açorianos5.
4 Ver: AVÉ-LALLEMANT, Roberto. Viagem pelo Sul do Brasil no ano de 1858 (primeira parte). Rio de Janeiro,
Instituto Nacional do Livro, 1953. 398 p.; CARVALHO, Alfredo de. Uma visita à Santa Catharina em 1803-1804,
in: Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catharina. Vol. IV (I a IV trimestres), 1915.
Florianópolis, Typ. da Escola de Aprendizes Artifices, 1916.; LANGSDORF, George Heinrich Von. Bemerkungenauf
Reiseun die Welt , in: Ilha de Santa Catarina — Relato de viajantes nos séculos XVIII e XIX, 3. ed. revisada. UFSC/
Lunardelli, 1992. (p. 157-184); LISIANSKY, Urey. A Voyage round the word, in: Ilha de Santa Catarina Relato
de viajantes nos séculos XVIII e XIX, 3. ed. revisada. UFSC/Lunardelli, 1992. (p.147-156).; PERNETTY, Dom.
Histoire d’un voyage aux Isles Malouines , loc. cit. (p. 77-108); SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à Provincia
de Santa Catharina (1820). São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1936; SHEVOLKE, George. A voyage round the Word,
in: Ilha de Santa Catarina — Relato de viajantes nos séculos XVIII e XIX, 3. ed. revisada. UFSC/Lunardelli, 1992. (p.
31-48); SEIDLER, Carl Friedrich Gustav.Zehn Jahre in Bralisien Wahrend, in: loc. cit. (p. 277-309).
5 Ver: PEREIRA, Nereu do Valle. Cultura popular açoriana na Ilha de Santa Catarina, in: Anais da Segunda Semana
de Encontros Açorianos (1987 - Florianópolis - UFSC). Florianópolis, Editora da UFSC, 343 p.; PEREIRA, Nereu
do Valle et alli. Ribeirão da Ilha - vida e retratos. Florianópolis, Fundação Franklin Cascaes, 1990. 502 p.; PIAZZA,
Walter F. A Epopéia Açórico-Madeirense (1748-1756). Florianópolis, UFSC/Lunardelli, 1992. 490 p.; PIAZZA,
Walter F.A vitória da cultura popular açoriana em Santa Catarina. Separata do 16º Boletim do Instituto Histórico
da Ilha Terceira. Angra do Heroísmo, Tipografia Andrade s/d. 14 p.; PIAZZA, Walter F. Fandangos e ratoeiras, in:
Boletim Trimestral da Comissão Catarinense de Folclore, ano II, setembro e dezembro de 1951 (n. 9 e 10), s/ed.
39
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Podem ser destacados quatro tipos principais de discursos relativos a
esta questão: 1) - o habitante do litoral e toda sua produção e cultura são
classificados como “atrasados”, “inferiores”, “desnutridos”, “preguiçosos”
e outros adjetivos do gênero, valorizando-se os “europeus”, em especial
os de ascendência germânica; 2) por contraposição ao germanismo,
em 1948, o I Congresso Catarinense de História reabilita o “homem do
litoral” como o açoriano, legítimo portador da brasilidade; é inaugurado
um monumento à colonização luso-açoriana, e à “brasilidade” desta;
3) com o desenvolvimento do turismo cultural, o “homem do litoral”
é elevado a legítimo portador do açorianismo, sendo essa imagem
constante na imprensa, chegando a aparecer em relatos orais; 4) um debate
historiográfico da legitimidade açoriana é posto a campo, envolvendo
nomes como o dos profs. Luís Felipe Falcão, Vilson Francisco de Farias e
Maria Bernadete Ramos Flores6. A “qualidade” ou não da farinha está de
várias formas envolta nesses meandros, especialmente nos três primeiros
tipos de discurso. Tanto as falas da imprensa atual quanto as de diversos
setores relacionados à propaganda e às representações do município e do
40
1951. 121 p.; PACHECO, Darcy. Engenho-de-farinha [sic], in: loc. cit., ano XVI, n. 27/28 (jan. 1962/ jan. 1963), s/
ed. 129 p.; ALBUQUERQUE, Cleide M. C. P. de. Trabalho e lazer numa localidade pesqueira de Santa Catarina
in: Anais do Museu de Antropologia da UFSC. Florianópolis, Imprensa Universitária, 1993 (p. 57-74); BECK, Ana
Maria (org.). Roça, pesca e renda: trabalho feminino e reprodução familiar, in: loc. cit. Florianópolis, Imprensa
Universitária,1993 (p. 43-56); BLASKE, Helga. O tipiti, in: loc. cit., ano XVI, n. 27/28(jan. 1962/ jan. 1963), s/
ed. 129 p. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro — Memória II. Florianópolis, Imprensa da
UFSC,1972. 284 p.; CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Os Açorianos. Separata do volume II dos Anais do Primeiro
Congresso de História Catarinense. Florianópolis, Imprensa Oficial, 105 p. CASCAES, Frankilin J. Franklin Cascaes,
vida, arte e a colonização açoriana (org. Caruso, Raimundo C.). Florianópolis, UFSC,1981. CREMA, Ângelo. O
carro de bois. in: Boletim da Comissão Catarinense de Folclore, ano XVI, n. 27/28 (jan. 1962/ jan. 1963), s/ed.
129 p.; SANTOS, Silvio Coelho dos. Rio Vermelho, uma póvoa no interior da Ilha de Santa Catarina, in: loc. cit.,
ano XVI, n. 27/28(jan. 1962/ jan. 1963), s/ed. 129 p. ROCHA, Elton Batista. Os engenhos de farinha de mandioca
da Ilha de Santa Catarina e suas transformações, in: Anais do Museu de Antropologia da UFSC. Florianópolis,
Imprensa Universitária, 1993(p.75-94). Sobre esta questão no Rio Grande do Sul, conferir: BUNSE, Heireich A.
W. “Mandioca e açúcar - contribuição ao estudo das respectivas culturas e do folclore étnico e lingüísticas no
Rio Grande do Sul”, in: Comissão Gaúcha de Folclore, v. 27. Porto Alegre, Departamento de Imprensa Oficial do
Estado, s/d. 23 p.
6 Conferir: ANDERMANN, Adriane Schroeder, op. cit. (Cap.III); FLORES, Maria Bernardete. A invenção da
açorianidade, in: Jornal Ô Catarina!, n.18. Florianópolis, julho/agosto de 1996 (p.4); Teatros da vida, cenários da
História. A farra do boi na Ilha de Santa Catarina - leitura e interpretação. Tese de Doutorado. São Paulo, PUC,
1991. 341 p. HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence (orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1984. 316 p.
PARTE i
CAPÍTULO 2
estado pelo governo bebem da fonte açorianista e tendem a classificar
tudo que é florianopolitano ou litorâneo como “açoriano”.
O aporte metodológico principal para minhas pesquisas foi
o da História Cultural, que usei como base para a análise e discussões
das fontes e da historiografia, em especial os conceitos de identidade,
memória e representações, fazendo um diálogo com a História Oral,
em especial pelo uso de entrevistas, principalmente as discussões acerca
do uso deste tipo de fonte e dos debates sobre a memória, seus usos e
possibilidades.
Atualmente, grupos relacionados à cultura e patrimônio e setores
da sociedade tem trabalhado em projetos para buscar o reconhecimento
do modo de fazer a farinha polvilhada como patrimônio imaterial
catarinense7, o que se percebe como possibilidade de um novo viés para
pesquisas. Tais aspectos remetem à pluralidade que este tema apresenta,
bem como à pertinência das pesquisas de diversas áreas em torno dele.
Os engenhos de farinha em Florianópolis – apontamento para uma
história plural
“Os propósitos da historia são variados. Mas um deles é o de prover
aqueles que a lêem de um sentido de identidade, de um sentido de
sua origem” (Jim Sharpe)
A Expressão “engenho”, em quase todo estado de Santa Catarina,
é imediatamente associada à farinha de mandioca; ambos estão ligados à
história e cultura local em Florianópolis e região, tanto quanto estes estão
relacionados ao debate açorianista; este termo é uma remissão à chegada
de imigrantes vindos dos Açores e ilhas vizinhas para o litoral do estado
e em especial para Florianópolis e região. Agora, estão sendo utilizadas
como chamariz do chamado turismo cultural e sendo ressignificadas
como patrimônio imaterial do estado de Santa Catarina. A importância
7 É o caso do projeto em andamento “Ponto de Cultura Engenhos de Farinha”, iniciado em 22 de maio de 2010, o
qual foi idealizado pelo CEPAGRO (Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo), que recebe o
patrocínio do Ministério da Cultura. Fonte: http://engenhosdefarinha.wordpress.com/2010/07.
41
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
da farinha de mandioca na identidade cultural é tal que, na linguagem
popular em geral “farinha” refere-se à de mandioca, deixando a
qualificação para as demais (assim, “farinha de trigo”, “de milho” e outras).
Minha própria vida familiar está diretamente relacionada à
produção, consumo e venda da farinha de mandioca, tanto que meu avô
materno era chamado de “Seu Zé do Engenho” e minha avó de “Dona
Bia do Seu Zé do Engenho”. Vindos do município vizinho de Biguaçu,
região de Três Riachos, onde já viviam em torno do engenho, tornaramse agregados de um engenho maior, pertencente à família do Sr. Bento
Ouriques, situado na região de Capoeiras, na parte continental do
município de Florianópolis. Cresci ouvindo histórias de engenho, vendo
a “ruralidade” daquela região cada vez mais ir se esvaindo. Minha avó
ainda criava patos e galinhas e meu avô plantava hortaliças e feijão no
terreno vizinho, enquanto este não foi vendido no processo de loteamento
do que era o sítio dos Ouriques8; ainda havia carroceiros que trocavam
ferro velho por pintinhos e árvores frutíferas nos quintais. Assim,
primeiramente farei um apanhado das minhas pesquisas deste tema ao
mesmo tempo tão familiar e tão distante para mim – posto que minha
vivência dele resumia-se às memórias de meus familiares.
Em torno do Engenho: vivência pela memória, vivência pela pesquisa
Envolta nas lembranças acima descritas, escolhi o tema do engenho
e sua farinha já na graduação em História; neste trabalho inicial, abordei
as interações entre o trabalho e o lúdico9: as brincadeiras, as cantigas de
ratoeira e o capote dos quais eu ouvira falar faziam parte desse primeiro
texto, que também contemplou as brincadeiras e interações sociais
presentes no processo de produção da farinha (a farinhada). Ampliei a
temática durante o mestrado, destacando temas correlatos à economia,
cuidados com a produção e imagens tecidas sobre os engenhos10.
42
8 Denominado informalmente como “loteamento São Bento”; agora, a rua onde se localizava o engenho recebe o
nome de Rua São Bento.
9 SCHROEDER, Adriane. Num engenho de farinha (...) deve ter três cantadô (...) – o trabalho e o lúdico nos
engenhos de farinha de mandioca em Florianópolis. Trabalho de Conclusão de Curso. Florianópolis: UFSC, 1991.
10 ANDERMANN, Adriane Schroeder. Histórias de Engenho: os engenhos de farinha de mandioca em
PARTE i
CAPÍTULO 2
Destaquei os discursos em torno do tema advindos de origens diversas,
em especial da historiografia, imprensa e memória, bem como aspectos
correlatos ao chamado processo de modernização regional e da tradição.
Estes pontos estão de várias formas associados ao termo “açorianismo”
e congêneres. Nestes trabalhos utilizei fontes diversificadas: relatos
de viajantes, entrevistas, jornais, obras da literatura catarinense - em
especial Virgílio Várzea (na dissertação incluí textos ficcionais, como
os encontrados na coletânea “A canção das Gaivotas11); na dissertação,
acrescentei a estas algumas legislações municipais e estaduais, bem como
relatórios de órgãos oficiais, relacionados à higiene pública. Utilizei
referências metodológicas mais correlatas à História Cultural para
embasar conceitos como identidade, memória e representações. Mais
tarde, publiquei pela UNIVILLE12, universidade onde leciono, o livro no
qual abordei alguns aspectos da dissertação, da qual foram selecionados
questões relacionadas às ideias de tradição e modernidade, bem como
das representações sobre os engenho e sua farinha.
Na pesquisa para a graduação, as conclusões principais foram
que o trabalho, o lúdico (brincadeiras como a aposta do capote13, que
ajudava a acelerar a produção e a cantigas como as da ratoeira14, ambos
Florianópolis. Economia, cuidados com a produção, imagens (1917-1920). Dissertação de Mestrado. Florianópolis:
UFSC, 1996.
11 ______. A Canção das Gaivotas (contos selecionados). Florianópolis, Lunardelli, 1985. 236 p.
12 SCHROEDER, Adriane. Histórias de Engenho - os engenhos de farinha de mandioca em Florianópolis.
Tradição, modernidade, representações. Joinville: Editora da UNIVILLE, 2007.
13 O capote consistia em uma espécie de aposta entre as pessoas do grupo que iria fazer raspagem das raízes, em
que o (a) mais rápido (a) detinha a vitória. Uma pessoa raspava a metade da raiz, jogando-a para outra pessoa,
que devia dar conta da velocidade da primeira. O vencedor era quem ficava com menos “capotes” para raspar.
Assim, o capote, além de um jogo, era também uma forma de passar o tempo, não só acelerando a produção, mas
se constituindo como um espaço privilegiado de convívio e socialização. O termo advém da “capa” que encobre
as raízes. Tanto as referências quanto as entrevista definem da mesma forma este “jogo”. Em geral formado por
mulheres e crianças, a roda do capote algumas vezes incluía homens de idades diversas.
14 A ratoeira era uma brincadeira no estilo cantiga de roda; as pessoas cantavam e dançavam; um dos participantes
era colocado no centro da roda, ficando “preso na ratoeira” e então tinha que cantar um verso, às vezes de improviso,
às vezes usando um já conhecido, como o que transcrevo e que era cantado por minha família materna (o qual
contém muitas variações): “Ratoeira bem cantada faz chorar, faz padecer∕ Também faz um triste amante do seu
amor se esquecer.∕ Meu cravo encarnado, meu manjericão,∕ dá três pancadinhas no meu coração”. Vencido o desafio,
era a vez de outro ficar preso na ratoeira, e assim por diante, até todos participarem. Em geral, as quadrinhas citadas
por são mais de fundo amoroso, ligadas (como uma grande parte das músicas de ratoeira) a frustrações ou alegrias
43
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
também se constituindo em um modo de tornar o lento trabalho menos
penoso), bem como as sociabilidades (como o namoro, as “fofocas”, a
troca de saberes em relação a remédios e outras) estavam amalgamados,
Não havia um entrecorte temporal linear, no estilo “hora de trabalhar”,
“hora de cantar a ratoeira”, por exemplo. As abordagens metodológicas
apontaram que em trabalhos predominantemente artesanais tal
interação e ausência de linearidade do tempo é frequente, (por exemplo,
Benjamin15); a amplitude das temáticas elencadas neste primeiro trabalho
e sua interação com outras estimularam-me na elaboração do projeto e
posterior pesquisa para a dissertação.
Na análise de relatos de viajantes, uma fonte primária
seguidamente utilizada mas nem por isto esgotada, há seguidas referências
à farinha, que incluem algumas descrições da forma de produção
(inclusive descrição de um engenho rudimentar) e comércio (preços e
considerações sobre o valor do produto), modos de comer (sem uso de
talheres) e mesmo julgamentos sobre a qualidade da farinha aparecem em
tais relatos, inclusive em relação à saúde. Aqui, seu consumo foi associado
a doenças dentárias, especificamente cáries; também foi descrita como
um alimento inferior, responsável pela “palidez” e pouca “robusteza” dos
que a consumiam, entre outras críticas16. A análise destas fontes pela
44
do namoro; algumas delas são ligadas ao trabalho do engenho, onde a vida dessas pessoas se desenrolava. Um
exemplo dessa mescla é citada por Cascaes (1981:57): “Quando o engenho de farinha∕Está coberto de poeira∕É sinal
que neste ano∕Foge muita moça solteira.”. Aqui, o “fugir” refere-se a um hábito comum das moças, principalmente
as de família pobre, “fugirem” com seus namorados para forçar o casamento. Um verso da ratoeira integra este tipo
de cantiga com a aposta do capote: Ó Maria pega a faca∕E vai chamar o Migote∕Que já está chegando gente∕Mode
jogar o capote” (Pereira, 1991: 203). Conferir, ainda: Piazza (1951 e 1956).
15 BENJAMIN, Walter. O narrador, in: Obras Escolhidas, vol. I. São Paulo, Brasiliense,1985.
16 Ver, por exemplo: AVÉ-LALLEMANT, Roberto. Viagem pelo Sul do Brasil no ano de 1858 (primeira parte). Rio
de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1953. 398 p.; CARVALHO, Alfredo de. Uma visita à Santa Catharina
em 1803-1804, in: Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catharina. Vol. IV (I a IV
trimestres), 1915. Florianópolis, Typ. da Escola de Aprendizes Artifices, 1916.; LANGSDORF, George Heinrich
Von. Bemerkungenauf Reiseun die Welt, in: Ilha de Santa Catarina — Relato de viajantes nos séculos XVIII e
XIX, 3. ed. revisada. UFSC/Lunardelli, 1992. (p. 157-184); LISIANSKY, Urey.A Voyage round the world, in: loc.
cit. (p.147-156); PERNETTY, Dom. Histoire d’un voyage aux Isles Malouines, in: loc. cit. (p. 77-108); SAINTHILAIRE, Auguste de. Viagem à Provincia de Santa Catharina (1820). São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1936;
SHEVOLKE, George. A voyage round the world, in:loc cit.(p. 31-48); SEIDLER, Carl Friedrich Gustav. Zehn Jahre
in Bralisien Wahrend, in: loc. cit. (p. 277-309).
PARTE i
CAPÍTULO 2
ótica metodológica, relacionando-a à época em que foram produzidas
(séculos XVIII e XIX), evidenciou que a qualidade em si do produto não
era realmente o aspecto ou a preocupação central; tratava-se de mais
um ponto nos discursos de “superioridade” europeia que transparecem
em tais relatos. O reflexo dessa construção identitária neste contexto é
encontrado numa ampla variedade de discursos relacionados a diversos
caracteres. Por exemplo, em relação à alimentação, os itens “europeus” ou
mais assemelhados a estes eram em geral descritos como mais saudáveis,
como o uso de farinha de milho (que, apesar de originariamente ser
das Américas, já estava incorporado aos hábitos europeus)17 em vez
da de mandioca e de embutidos e carnes, em vez de peixes (embora
também se consumam peixes em solo europeu). Quanto à população,
os descendentes de povos germânicos e italianos eram descritos
favoravelmente em relação aos “mestiços”, indígenas e “portugueses”, seja
no aspecto físico (palidez versus robustez, por exemplo), seja em traços
do cotidiano e da cultura (tais como preguiça versus trabalho). Este traço
praticamente unânime de “superioridade” encontrado nestes relatos de
viajantes é associado ao processo de expansão europeia, cuja hegemonia
política, econômica e cultural no ocidente é representada e reforçada por
estes e outros discursos.
As impressões da historiografia também apresentam seus
julgamentos à qualidade da farinha, mas novamente a qualidade em si é
um dado a mais e não necessariamente uma preocupação ou problemática
em si. Há autores que «defendem» a farinha do engenho como “típica”,
“tradicional” e “de melhor qualidade”, enquanto outros a qualificam de
17 Sobre aspectos relacionados à alimentação, percepções e representações de produtos nativos das Américas na
Europa, vide, por exemplo: COE, S. D. Los alimentos do novo mundo. Los produtos del Nuevo Mundo. In: Las
primeiras cocinas de América. México: FCE, 2004. p. 26-105; SANFUENTES ECHEVERRIA, Olaya. Europa y
supercepción del nuevo mundo a través de lãs especies comestibles y los espacios americanos em El siglo XVI.
Historia (Santiago), dic. 2006, vol.39, no.2, p. 531-556, disponível em: http://www.scielo.cl/scielo.php?pid=S071771942006000200006&script=sci_arttext; LACOSTE, Pablo; CASTRO, Amalia; YURI, José Antonio. Construcción
de la cultura de apreciación de la fruta: aporte de Las mil y una noches. Varia hist., Belo Horizonte, v. 28, n. 48, Dec.
2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-87752012000200009&lng=e
n&nrm=iso>. accesson 24 June 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-87752012000200009; ARNOLD, D. La
invención de latropicalidad. In: La Naturaleza como problema histórico. El médio, la cultura y La expansión de
Europa. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 130-153.
45
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
“inferior”, “grosseira”, “feita num atrasado modo de produção”. Em relação
aos aspectos culturais, a maior parte dos autores catarinenses relaciona o
engenho com o assentamento de colonos luso-açorianos18, apesar de haver
engenhos de farinha em regiões de colonização germânica e italiana, por
exemplo19. Vários autores catarinenses destacam o aspecto econômico
da farinha, que foi o principal produto da economia catarinense por
um período de cerca de 200 anos20. O engenho em si era abordado
46
18 Ver: PEREIRA, Nereu do Valle. Cultura popular açoriana na Ilha de Santa Catarina, in: Anais da Segunda
Semana de Encontros Açorianos (1987 - Florianópolis - UFSC). Florianópolis, Editora daUFSC, 343 p.; PEREIRA,
Nereu do Valle et alli. Ribeirão da Ilha - vida e retratos. Florianópolis, Fundação Franklin Cascaes, 1990. 502
p.; PIAZZA, Walter F. A Epopéia Açórico-Madeirense (1748-1756). Florianópolis, UFSC/Lunardelli, 1992. 490 p.;
PIAZZA, Walter F. A vitória da cultura popular açoriana em Santa Catarina. Separata do 16º Boletim do Instituto
Histórico da Ilha Terceira. Angra do Heroísmo, Tipografia Andrade s/d. 14 p.; PIAZZA, Walter F. Fandangos e
ratoeiras, in: Boletim Trimestral da Comissão Catarinense de Folclore, ano II, setembro e dezembro de 1951 (n. 9 e
10), s/ed. 1951. 121 p.; PACHECO, Darcy. Engenho-de-farinha [sic], in: loc. cit., ano XVI, n. 27/28 (jan. 1962/ jan.
1963), s/ed. 129 p.; ALBUQUERQUE, Cleide M. C. P. de. Trabalho e lazer numa localidade pesqueira de Santa
Catarina in: Anais do Museu de Antropologia da UFSC. Florianópolis, Imprensa Universitária, 1993 (p. 57-74);
BECK, Ana Maria (org.). Roça, pesca e renda: trabalho feminino e reprodução familiar, in: loc. cit. Florianópolis,
Imprensa Universitária,1993 (p. 43-56); BLASKE, Helga. O tipiti, in: loc. cit., ano XVI, n. 27/28(jan. 1962/ jan.
1963), s/ed. 129 p. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro — Memória II. Florianópolis,
Imprensa da UFSC, 1972. 284 p.; CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Os Açorianos. Separata do volume II dos Anais
do Primeiro Congresso de História Catarinense. Florianópolis, Imprensa Oficial, 105 p. CASCAES, Frankilin J.
Franklin Cascaes, vida, arte e a colonização açoriana (org. Caruso, Raimundo C.). Florianópolis, UFSC,1981.
CREMA, Ângelo. O carro de bois. in: Boletim da Comissão Catarinense de Folclore, ano XVI, n. 27/28 (jan.
1962/ jan. 1963), s/ed. 129 p.; SANTOS, Silvio Coelho dos. Rio Vermelho, uma póvoa no interior da Ilha de Santa
Catarina, in: loc. cit., ano XVI, n. 27/28(jan. 1962/ jan. 1963), s/ed. 129 p. ROCHA, Elton Batista. Os engenhos de
farinha de mandioca da Ilha de Santa Catarina e suas transformações, in: Anais do Museu de Antropologia da
UFSC. Florianópolis, Imprensa Universitária, 1993 (p.75-94). Sobre esta questão no Rio Grande do Sul, conferir:
BUNSE, Heireich A. W. “Mandioca e açúcar - contribuição ao estudo das respectivas culturas e do folclore étnico
e lingüísticas no Rio Grande do Sul”, in: Comissão Gaúcha de Folclore, v. 27. Porto Alegre, Departamento de
Imprensa Oficial do Estado, s/d. 23 p.
19 Recentemente, visitei um engenho desativado, movido a roda d’água, na região de Nova Trento, SC, pertencente
à família Wisenteiner, parentes de Amábile Lúcia Wisenteiner, a “Santa Paulina”; também visitei engenhos em
Orleans (Museu ao Céu Aberto); estes estão ligados à colonização italiana (o sobrenome austríaco se deve aos
processos de expansão da Áustria em relação à região de Trento, de onde vieram famílias como a Wisenteiner);
Águas Mornas, Rancho Queimado e Angelina, de famílias descendentes de germânicos.
20 Ver, por exemplo: BRITO, Paulo José M. de. Memoria Politica sobre a Capitania de Santa Catharina.
Florianópolis, Sociedade Literária Bibliotheca Catarinense, 1932; CABRAL, Oswaldo Rodrigues. História
de Santa Catarina. Florianópolis, Lunardelli, 1987, 500 p.; CUNHA, Idaulo. Evolução Econômico-Industrial
de Santa Catarina. Florianópolis, Fundação Catarinense de Cultura, 1982. 216 p.; DALLANHOL, Vilmar &
OLINGER, Glauco (org.). A Mandioca em Santa Catarina. Florianópolis, ACARESC, s/d. 160 p.; HÜBENER,
Laura Machado. O Comércio na Cidade de Desterro do Século XIX. Florianópolis, Imprensa Universitária (UFSC),
1981. 120 p.; LAGO, Paulo Fernando. Santa Catarina - A terra, o homem e economia. Florianópolis, Imprensa
PARTE i
CAPÍTULO 2
mais como centro produtor, com poucas referências ao modo de vida
em torno dele; alguns autores apresentam descrições do trabalho e das
peças, e, dentre estes, há os que tecem críticas à rusticidade do engenho
e os que abordam o lado “folclórico”, bem como os que ligam as peças
à colonização açoriana, enaltecendo os itens do engenho como “avanço
tecnológico” que comprovaria o “valor dos açorianos”.
Os discursos historiográficos, conforme minha percepção, podem
ser elencados em quatro tipos principais. O primeiro tende a repetir ou
reforçar ideias encontradas nos relatos de viajantes, abordados acima;
o habitante do litoral e toda sua produção e cultura são desvalorizados,
aparecendo descrições destes como “atrasados”, “inferiores”, “desnutridos”,
“preguiçosos” e outros adjetivos do gênero, valorizando-se os “europeus”,
em especial os de ascendência germânica e italiana. Aqui também se
repetem ou retomam as impressões relacionadas a alimentos que trazem
os relatos: a farinha de mandioca é desqualificada como pouco nutritiva
e responsável pela “palidez” e “desnutrição”, por serem os litorâneos “mais
franzinos” que os “saudáveis”, “robustos” e “corados” descendentes de
germânicos e italianos.
No segundo tipo, que recebe as influências do I Congresso
Catarinense de História, em 1948. Busca-se a reabilitação do “homem
do litoral”, procurando descrevê-lo como “o açoriano”, valente e
trabalhador, legítimo portador da brasilidade, inventivo, criativo e outras
representações do gênero; os historiadores catarinenses traçam uma
contraposição ao então reinante germanismo, que enaltecia o “progresso”
das regiões colonizadas por germânicos, em especial aquelas em que as
fábricas despontavam (tais como Blumenau e Joinville). No bojo dessas
Universitária∕UFSC, 1965 (?). 340 p.; MATTOS, Jacintho Antônio de. Colonisação [sic] do Estado de Santa
Catharina - dados históricos e estatísticos (1640-1916). Florianópolis, Gab. Typ. d’ O Dia, 1917; MIRA, Crispim.
Therra Catharinense. Florianópolis, Typ. da Livraria Moderna, 1920. 286 p.; PEREIRA, Nereu do Valle. A origem
e a tecnologia dos engenhos de farinha de mandioca na Ilha de Santa Catarina, in: Anais da Segunda Semana de
Encontros Açorianos (1987) Florianópolis, Editora da UFSC, 1989. 343 p.; PEREIRA, Nereu do Valle. Os Engenhos
de Farinha de Mandioca da Ilha de Santa Catarina. Fundação Cultural Açorianista, 1993. 208 p. PIAZZA, Walter F.
A mandioca e sua farinha. Florianópolis, Faculdade Catarinense de Filosofia, 1956. 42 p. PIAZZA, Walter F. Santa
Catarina: Sua História. Florianópolis, UFSC, 1983. 750 p. ROSA, José Vieira da. Chorografia de Santa Catharina.
Florianópolis, Livraria Moderna, 1905. 320 p.
47
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
discussões e ressignificações, inaugura-se um monumento à colonização
luso-açoriana e à “brasilidade” desta; esse monumento pode ser entendido
como uma evidência de que tais discursos não ficam apenas “na academia”,
mas fazem parte do contexto da época, relacionado à construção da ideia
de nacionalismo que crescera durante a “Era Vargas” (1930-1945) e que
ainda era influente em vários sentidos.
Uma “inversão” dessa perspectiva pode ser notada quando, a
partir do desenvolvimento do turismo cultural no Brasil, principalmente
a partir da década de 1990, formando o terceiro tipo de discurso
detectado. Em relação a Santa Catarina, o “homem do litoral” é elevado a
legítimo portador do açorianismo quando no tipo anterior “o açoriano”
era o bastião da brasilidade; tal representação do litorâneo como “o
açoriano” é uma imagem constante na imprensa, chegando a aparecer
em relatos orais e em textos acadêmicos, principalmente os relacionados
à cultura. Ainda hoje observa-se a permanência desse discurso, que
também inclui uma ressignificação do estereótipo do “manezinho”21, que,
antes designando um olhar pejorativo sobre o habitante da Ilha de Santa
Catarina especificamente e do litoral em geral, passou a representar algo
desejável, visto com simpatia. Entretanto, isto não significa que o olhar
deste num nível caricato, que ainda contém traços depreciativos, tenha
desaparecido; porém, hoje está mais levado para o aspecto cômico, como
se observa na criação de personagens que representam o “manezinho”
(como o “Seu Maneca”, a “Dona Bilica” e o “Odilho”)22.
O quarto tipo apresenta um debate historiográfico do
açorianismo em suas diversas vertentes, questionando inclusive a
especificidade açoriana em relação aos demais grupos de origem lusa.
48
21 Um exemplo que ilustra bem essa ressignificação foi a criação, em 1988, do concurso “Manezinho da Ilha” pelo
jornalista Aldírio Simões; a intenção do concurso era reconhecer o nativo ilhéu, bem como sua identificação com
o açoriano, valorizando o que antes era menosprezado. Vide, neste sentido: FANTIN, Márcia. Cidade Dividida.
Florianópolis. Cidade Futura, 2000.
22 A chamada desta matéria é significativa neste sentido: “Personagens baseados em típicos manezinhos arrancam
risadas da platéia”; embora se procure moderar o tom ao longo do texto, de certa forma fazendo um “elogio” ao
manezinho, mantendo a associação litorâneo∕açoriano, este é também relacionado à comédia, à caricatura. Fonte:
http://ndonline.com.br/florianopolis/plural/102021-personagens-baseados-em-tipicos-manezinhos-da-ilhaarrancam-risadas-da-plateia.html.
PARTE i
CAPÍTULO 2
Nomes como o dos professores Luís Felipe Falcão, Vilson Francisco de
Farias e Maria Bernadete Ramos Flores se destacam neste processo,
inclusive contextualizando a emergência do conceito de “açorianismo”
em relação aos debates acadêmicos da época em que este emergiu23. As
considerações sobre a “qualidade” ou não da farinha, portanto, não é
uma problemática em si, como já exposto, mas é um argumento a mais,
estando de várias formas envolto nos meandros destes debates, e mais
enfaticamente aparecendo nos três primeiros tipos de discurso. A questão
açorianista de que o terceiro tipo elencado trata é ainda presente nas
falas da imprensa atual, sendo também apropriada por diversos setores
relacionados à propaganda, sendo fácil encontrar representações relativas
aos Açores em nomes de edifícios, ligados a produtos dos mais diversos
tipos e outros; também o município e o estado usam este discurso em
eventos e outros. Ainda é forte, portanto, em vários discursos, o uso do
açorianismo, havendo a tendência de praticamente e classificar tudo que
é florianopolitano em particular e litorâneo em geral como “açoriano”.
Em relação à cultura e identidade, não apenas a farinha, mas o
tipo de vida e de trabalho desenvolvido nos engenhos deixou marcas
profundas na memória das pessoas. Em torno deles, diversas práticas e
discursos se ergueram, sendo objeto de pesquisas de diversos matizes e
áreas; também na área da propaganda e na imprensa o engenho e sua
farinha são utilizados, por meio do estereótipo do manezinho da ilha,
do descendente e mantenedor da cultura açoriana, e que constrói sua
imagem de engenho nesse sentido.
O engenho constitui-se como cenário para os acontecimentos
desenrolados na vida das pessoas. A infância, o namoro, o casamento, o
trabalho e até mesmo a morte estão ligados à rotina do engenho. Inclusive
os objetos auxiliares do engenho estão bem presentes nessas memórias.
Estes objetos eram utilizados para fins diversos, além da produção de
23 Conferir: ANDERMANN, Adriane Schroeder, op. cit. (Cap.III); FLORES, Maria Bernardete. A invenção da
açorianidade, in: Jornal Ô Catarina!, n.18. Florianópolis, julho/agosto de 1996 (p.4); Teatros da vida, cenários da
História. A farra do boi na Ilha de Santa Catarina - leitura e interpretação. Tese de Doutorado. São Paulo, PUC,
1991. 341 p. HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence (orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1984. 316 p.
49
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
farinha: nas brincadeiras (esconde-esconde: a parte interior do engenho,
a prensa, os tipitis); na paiolagem: como camas (cochos, fora da época
da farinhada); para pôr galinhas a chocar (tipitis velhos), para guardar
objetos de metal (paióis com farinha), e até mesmo como esconderijo.
Conforme pondera Flores, os objetos do engenho eram também parte
dessa interação entre a produção e o convívio social bem como os demais
espaços da socialização: “A casa materna, o quintal, um pedaço da rua e
do bairro, o conjunto dos objetos domésticos, etc., as pedras da cidade,
são lugares de memória da infância e da juventude.” (1991:189-190).
Mesmo o convívio com os bois que tocavam o engenho marcou
a memória, fortemente marcada com imagens e sons que evocam a
infância; estes se insinuaram pelas lembranças das pessoas, trazendo
consigo memórias de medos, de alegrias e mesmo de limitações. São “as
lembranças da dimensão cômica do cotidiano e do sagrado, a cantoria
e a ratoeira (...), o jogo do capote na farinhada (...).” (Flores, op. cit.:
191), aparecendo de forma intensa na memória, mesclando o trabalho
à brincadeira, os cuidados na produção com a interação social, inclusive
namoros. Sendo uma produção manual e demorada, o trabalho no
engenho abria espaço para essas interações entre a produção, os cuidados
com esta e as relações sociais e lúdicas, como lembra Benjamin, comuns
ao ambiente artesanal (1989:25-30). A alegria e o convívio social fazem
parte da lida, de acordo com diversos que tratam do tema24.
Talvez por estar tão interligado à vida das pessoas, existam, nos
causos, referências a fantasmas de pessoas trabalhando no engenho. Das
cantorias e brincadeiras na hora do capote, do namoro ao casamento, da
infância à morte, a vida no engenho marcou essas lembranças, deixandolhes certa nostalgia por ser agora todo esse convívio perdido no tempo, na
névoa do passado. Com cuidado às vezes pictórico, as pessoas descrevem
com detalhes sua vida e seu trabalho, reproduzindo, algumas vezes, até
mesmo o ranger das engrenagens. Como bem destaca Flores (1991, op.
cit.) “A memória do trabalho é tão viva e tão presente que se transforma
no desejo de repetir o gesto com as mãos e ensinar o ofício a quem escuta”.
50
24 Conferir, por exemplo: Cascaes (1981: 64-65), Costa (1995: 29); Piazza (1956: 31- ss.), Schroeder (1991: 23-44).
PARTE i
CAPÍTULO 2
Mostrando sua importância social, o engenho, sendo um bem
difícil de ser adquirido, congregava em torno de si e de seu dono toda
uma rede de trabalhadores: dos empregados a pessoas da comunidade
que a ele acorriam na época da farinhada para ajudar na lida, cuja forma
de pagamento variava conforme a função ou trabalho desempenhado. O
engenho é, assim, o espaço de memória, cuja lembrança evoca os sons, o
trabalho e as brincadeiras, a sociabilidade, o aprendizado, as recordações
da infância e algumas vezes, à própria morte.
A farinha à mesa: identidade, cultura e patrimônio imaterial
Tanto em minha família quanto ao longo das pesquisas, não
apenas o engenho é visto de diversas formas e faz parte da construção
social e identitária: mesmo a farinha não se apresenta apenas como
um produto ou um item a mais na mesa. Ela também está presente no
linguajar, na memória, na identidade não apenas da região litorânea, mas
em praticamente todo estado de Santa Catarina. Em todos os municípios
onde estive – e conheci praticamente todas as regiões catarinenses –
encontrei farinha à mesa e histórias de engenho na vida das pessoas.
Quando saí de meu estado natal, em qualquer região que fosse sentia
falta da “nossa” farinha; por outro lado, conversando com pessoas das
mais variadas regiões do Brasil, ficou ainda mais evidente que a farinha
está na mesa de todos, mas não da mesma forma.
“A farinha de vocês é muito fina”, reclamavam amigos e colegas.
Outros, conquistados pelo paladar diferenciado da nossa farinha
polvilhada, seguidamente encomendam quilos dela. A região norte e
nordeste é famosa por produzir muitos tipos de farinha, desde a que vem
em flocos à que se assemelha ao sagu, em cores distintas, também – da
mais alva à mais amarelada. Mas a farinha catarinense se distingue pela
presença maior do polvilho, que a deixa mais macia, o que faz com que
os pratos elaborados a partir dela fiquem mais sedosos. Por exemplo, ao
preparar o nosso famoso pirão de peixe com a farinha que levei daqui,
vi amigos e familiares se surpreenderem com a textura e brilho do pirão,
graças à maior presença de polvilho. O sucesso da receita se espalhou e
51
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
modificou a forma de se fazer pirão entre muitos, que se tornaram fãs da
farinha polvilhada.
Essa experiência pessoal remete à amplitude de sabores da culinária
brasileira em geral, bem como aos aspectos culturais relacionados a ela. A
alimentação é um ponto importante da cultura e identidade de um povo,
e as receitas carregam memórias afetivas e conhecimentos que passam
de geração em geração, tanto de forma escrita, nos livros de receita de
família, como de forma oral, ainda que não seja percebida desta forma,
como expõem, por exemplo, Certeau, Giard & Mayol (2000).
Do ponto de vista da análise historiográfica, a culinária regional
se insere como objeto de análise como bem cultural a partir do início do
século XX, em especial a partir do movimento dos Annales; não apenas
o alimento e sua elaboração em si: passou-se a pesquisar, entre outros
pontos, aspectos como as práticas alimentares e os ritos em torno delas
e sua contribuição para o estabelecimento, o reforço e a reprodução dos
elos sociais. Quando se trata de alimentação, portanto, inclui-se a todo
seu entorno, desde as chamadas receitas “típicas” de um local, o modo
de preparar o prato e aos pratos definidos como identificadores de uma
região; os modos de preparar e usar a cozinha e demais utensílios, e,
ainda, o modo de consumo que são comuns a determinados grupos.
Em relação às políticas públicas, por muito tempo estas eram
adstritas ao patrimônio material e à chamada “grande cultura”, havendo
estigmatização do conhecimento tradicional como atrasado, inferior ou
mero “folclore”. Tal painel começou a se modificar institucionalmente a
partir das novas definições elencadas pela UNESCO (Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), a partir das
quais foi organizada a Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais
cujas decisões foram sintetizadas na Declaração do México (1985)25,
que ampliou a definição de cultura para incluir aspectos relacionados às
mentalidades, religiões, intelectuais, questões afetivas, e, extensivamente,
os diversos pontos relacionados à alimentação, entre outros. Tal
documento de projeção mundial corroborou, em termos políticos,
52
25 Íntegra do documento: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=255.
PARTE i
CAPÍTULO 2
para que fossem buscadas ações que visassem proteger, no sentido da
legislação, bem como preservar, através de políticas públicas, aspectos
relativos à identidade cultural de um povo neste sentido mais amplo
que foi dado ao termo. Um dos postulados dessa declaração destaca
que a “[...] humanidade empobrece quando se ignora ou se destrói a
cultura de um grupo determinado” (Declaração do México, 1985, p. 2).
Seguindo tais diretrizes, vários governos passam a incentivar e promover
o reconhecimento da culinária como patrimônio; por exemplo, no Brasil,
Morais (2004) evidencia que a Fundação Cultural de Curitiba (1984) e o
Estado de Minas Gerais (1985) já apontavam na direção de reconhecer a
alimentação como patrimônio.
A amplitude deste reconhecimento pela UNESCO (Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) ficou ainda
mais evidente com a instituição do Comitê Intergovernamental para
a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da Humanidade, em 2003.
O Brasil é estado membro da Comissão para o período de 2012 a
201626. Os alimentos e modos de fazer artesanais estão na pauta desta
comissão e fazem parte de políticas públicas de vários países buscar tal
reconhecimento; por exemplo, em 16 de novembro de 2010, a UNESCO
estendeu sua proteção à refeição gastronômica à moda francesa, à dieta
mediterrânea, à culinária tradicional do México e ao pão de mel croata27;
recentemente, a culinária japonesa recebeu esta titulação28; o Brasil
enviou para registro o Sanduíche Bauru (por São Paulo) e a Empada ou
Empadão de Goiás (por este estado)29.
Tais considerações são importantes no sentido de compreender
que os aspectos correlatos à alimentação estão intimamente relacionados
à identidade, por vezes tornando-a visível; por exemplo: muitos de nós
26 Dados principais:http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?lg=en&pg=00430; http://www.unesco.org/
culture/ich/index.php?lg=en&pg=00024.
27 Fonte: http://www.france.fr/pt/arte-e-cultura/gastronomia-francesa-entra-para-o-patrimonio-mundialimaterial-da-unesco.html.
28 Fonte: http://www.ipcdigital.com/br/Noticias/Japao/Sociedade/Unesco-oficializa-culinaria-japonesa-comoPatrimonio-Cultural_06122013.
29 Fonte: http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1110:reportage
ns-materias&Itemid=39.
53
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
54
temos uma memória afetiva ligada a uma receita de família a um alimento
a ela relacionado, como citei acima. Ainda, é possível, ainda que correndo
riscos de estereotipar e homogeneizar aspectos que são complexos,
relacionar uma região a um tipo de alimentação, a um “prato típico”, ao
modo de se elaborar um alimento. Assim, não se trata simplesmente de
satisfazer uma necessidade básica, a alimentação: um prato “de família” ou
um considerado “típico” traz representações de experiências, estabelece
uma ligação simbólica com o passado de sua família, de seu grupo, ao
mesmo tempo em que o representa, bem como, de certa forma, relaciona
o passado ao presente.
Esse processo se acelera como resistência aos discursos que
emergem no final dos anos de 1970, no contexto do que se convencionou
chamar de “globalização”, em que da comida rápida (fastfood) era um
dos símbolos da alegada vitória absoluta do capitalismo. O discurso de
“aldeia global”, de homogeneização dos padrões, condutas, costumes
era mostrado como inexorável. Tudo que não se enquadrasse nessa
lógica era apresentado como ultrapassado, dando-se a impressão que
agora viveríamos num presente contínuo, como apontou Hobsbawn: “A
destruição do passado (...) é um dos fenômenos mais característicos e
lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem
numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com
o passado público da época em que vivem.” (1995. p. 13).
Na contramão dessa perspectiva, vários grupos ergueram suas
críticas e novas práticas, em oposição às aparentemente imbatíveis
imposições do “mundo globalizado”, em que a reinvenção da identidade
é um dos pontos fortes, o que inclui os aspectos alimentares, que ganhou
um movimento cujo nome já é um aviso de resistência: Comida Lenta
(SlowFood), criado em 1986. Esse movimento enfoca comidas não apenas
feita sem pressa, mas que retomem temperos, receitas, modos de fazer
que evoquem identidades.
Ainda hoje há quem corra às feiras e engenhos remanescentes
para adquirir a farinha polvilhada, que evoca todos essas histórias,
texturas e sabores, um modo de fazer, muitos modos de ser. Assim, a
PARTE i
CAPÍTULO 2
busca do reconhecimento do modo de fazer farinha como patrimônio
imaterial do estado pode exemplificar as possibilidades de outro viés
aberto a novas pesquisas. Em relação à farinha de mandioca, portanto,
seu consumo e produção envolvem outros aspectos além das questões
identitárias relativas à alimentação; por outro lado, os usos da farinha
de mandioca não se restringem a aspectos alimentares. Por exemplo,
há referências nos relatos orais e na imprensa que consultei para a
dissertação ao uso medicinal da farinha de mandioca, bem como à
sua distribuição para a caridade ou para fins partidários, por meio de
doações ligadas ou não a candidatos eleitos ou que pretendiam alçar
algum cargo político30. Destaca-se, ainda, sua importância econômica na
região de Florianópolis, tanto em termos de abastecimento interno como
de exportação e utilização em políticas públicas (por meio de impostos
principalmente). Portanto, de muitos modos, o engenho e sua farinha
fazem parte da identidade e dos discursos historiográficos e da imprensa,
da propaganda e do cotidiano.
Conclusões
No presente capítulo, fiz um apanhado das pesquisas sobre
o engenho e sua farinha, iniciadas na graduação. Retomei algumas
questões referentes às interações entre o trabalho e o lúdico no processo
de produção da farinha que desenvolvi então, bem como as questões
que trabalhei na dissertação, destacando os discursos em torno do tema
advindos da historiografia, com algumas remissões à imprensa e fontes
orais que usei para tanto; Também fiz remissões aos relatos de viajantes,
bem como de influências de alguns destes discursos na historiografia
catarinense especificamente.
Retomei as conclusões principais de ambos os textos, enfocando a
questão da qualidade da farinha, tanto nos relatos como na historiografia.
O que ficou pontuado foi que a qualidade ou não da farinha não é a
30 Por exemplo, a doação, pela Junta Republicana, de diversos alimentos aos pobres, incluindo a farinha de
mandioca (20 sacos), em honra de Hercílio Luz, governador recém eleito de Santa Catarina (O Estado, 28/09/18).
Uma comissão, encarregada do “Natal dos Pobres”, relata diversas doações e anuncia que aceita propostas em carta
fechada para o fornecimento de diversos produtos , incluindo a farinha de mandioca “dos Barreiros”, valorizada na
época por sua qualidade (O Estado, 12 e 15/12/19).
55
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
problemática em si, nestes textos, mas que se trata de mais um dos
aspectos dos discursos desses textos – cada qual, certamente, produto
do contexto histórico em que foram erguidos. Também a questão do
“açorianismo” foi revista, bem como seu reflexo na ressignificação do termo
“manezinho”, que se liga a este conceito. Fiz uma breve classificação dos
discursos relativos a esta questão em quatro tipos principais, bem tracei
um pequeno panorama das apropriações do açorianismo por diversos
setores, em especial da propaganda e às representações do município e
do estado. Como ponto que pode ser objeto de novas pesquisas, trouxe a
questão dos projetos que intentam o reconhecimento do modo de fazer
a farinha polvilhada como patrimônio imaterial catarinense, bem como
alguns pontos da legislação e da historiografia correlatos a ele. O tema,
portanto, permanece plural, bem como se abre a novas possibilidades de
pesquisas e abordagens.
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56
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CAPÍTULO 2
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57
CAPÍTULO 3
CASAS DE FARINHA: CENÁRIOS DE (CON)VIVÊNCIAS,
SABERES E PRÁTICAS EDUCATIVAS
1
Cirlene do Socorro Silva da Silva2 e Maria das Graças da Silva3
Introdução
O interesse em estudar o contexto socioeducativo e cultural das
casas de farinhas em suas dinâmicas de produção e convivência originouse de minha vivência enquanto educadora numa escola de Ensino Médio
da rede estadual localizada no município de Mãe do Rio – PA, integrante da
Amazônia brasileira. Dentre as muitas situações que marcam o cotidiano
de uma escola em um município que ainda guarda muitas características
rurais, uma, particularmente, inquietou-me e despertou meu interesse
de conhecer os saberes práticos de jovens agricultores familiares que
1 Este texto é um recorte da Dissertação de Mestrado intitulada “Casas de farinha: espaço de (con)vivências, saberes
e práticas educativas”, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação, Mestrado em Educação da Universidade do
Estado do Pará (PPGED/UEPA), em 2011.
2 Socióloga, Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Pará - Linha de
Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia, pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Educação e Meio
Ambiente (GRUPEMA). E-mail: [email protected].
3 Socióloga Doutora em Planejamento Urbano e Regional (UFRJ/2002), com Estágio de Pós-Doutoramento em
Sociologia Ambiental (ICS/PT), professora Adjunto IV do Centro de Ciências Sociais e Educação e do Programa de
Pós-Graduação, Mestrado em Educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA), Líder do Grupo de pesquisa
em Educação e Meio Ambiente – GRUPEMA (CNPq). E-mail: [email protected]. Orientadora da Dissertação.
59
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
60
se deslocavam todos os dias de vários assentamentos e comunidades
do interior desse município para estudar nessa escola. Portanto, esse
interesse começou a ser pautado na preocupação de perceber que a escola
não possuía em seu projeto pedagógico uma proposta de reconhecimento
e incorporação desses saberes locais nas suas práticas educativas.
A necessidade de conhecer os saberes culturais que esses
sujeitos construíam fora do espaço escolar, especialmente nas atividades
relacionadas ao mundo do trabalho, orientou a escolha pelas práticas
educativas socializadas nas casas de farinha, uma vez que, estas, quase
sempre foram vistas apenas como espaços de produção econômica, onde
são beneficiadas as raízes de mandioca que passaram anteriormente por
um processo de plantio e colheita. Esse processo envolve a realização de
várias etapas e atividades, como descascar, ralar, prensar, peneirar, torrar,
entre outras, que permitem chegar ao produto final, que é a chamada
farinha de mandioca. Por meio desse produto, historicamente, grupos
sociais, geralmente camponeses, têm construído suas condições de
reprodução cultural e material de existência.
Na busca de construir epistemologicamente argumentos em favor
de que em todo processo produtivo cultura e educação estão inscritas, a
pesquisa foi realizada no cotidiano de uma comunidade rural camponesa
identificada pelos seus moradores como Comunidade Santo Antônio do
Piripindeua, localizada no município de Mãe do Rio, no Estado do Pará,
visando analisar formas de educação praticadas no espaço das casas de
farinha.
Em vista dessa perspectiva, definiu-se como objetivo geral
da pesquisa: analisar, a partir da produção da farinha e das relações
de convivências, o processo de construção e socialização de saberes
e práticas educativas desenvolvido no espaço de três casas de farinha
tipificadas inicialmente como: Familiar, Mutirão e Comunitária. Para dar
conta da produção de um conjunto de dados que pudessem conformar
esse objetivo foi realizada uma pesquisa de campo, que de acordo com
Minayo (2000, p. 105), na pesquisa qualitativa, o campo “é o recorte
espacial que corresponde à abrangência, em termos empíricos, do recorte
pARTE i
CAPÍTULO 3
teórico correspondente ao objeto da investigação”.
Para a realização do estudo de caso, que é concebido por Martins
(2008) como uma investigação empírica que pesquisa fenômenos dentro
de seu contexto real, foram utilizadas as seguintes técnicas: a) a foto
etnografia, que de acordo com Achutti (1997), tem a função de registrar ,
e documentar as ocorrências cotidianas, no caso, o saber-fazer da farinha;
b) a observação participante, que para Martins (2008) está fundamentada
na necessidade de registrar os relatos detalhados e contextualizados; e
entrevistas semiestruturadas que foram realizadas, por se tratar na
concepção de Macedo (2010, p. 104) de “recurso metodológico para a
apreensão de sentidos e significados e para a compreensão das realidades
humanas”. Para preservar a identidade dos sujeitos, na escrita do texto
utilizei códigos que são: AFF – para agricultor da Casa de Farinha
Familiar; AFM – para agricultor da Casa de Farinha Mutirão; e AFC –
para agricultor da Casa de Farinha Comunitária.
Dessa forma, este artigo traz resultados de registros e análises da
pesquisa e tem a perspectiva de contribuir para a construção de uma base
epistemológica e de reflexão critica para os profissionais que atuam com
questões da agricultura familiar, como é o caso da produção de farinha.
Objetiva também o fortalecimento e visibilidade da identidade cultural
desses produtores, em seus contextos socio-histórico, econômico, cultural
e ambiental.
Casas de farinha e seus cenários de convivências
Os agricultores familiares da Comunidade Santo Antônio do
Piripindeua organizam espaços específicos para desenvolverem suas
práticas de fazer farinha. São as casas de farinha, conhecidas também na
comunidade por “retiro” ou ainda, “retirinho”. Na definição do SEBRAE
(2008), as casas de farinha são estabelecimentos dedicados à produção de
farinha e geralmente se refere a empreendimentos de pequeno porte, em
contraste com as grandes farinheiras, que são aquelas voltadas para uma
produção em escala industrial.
Na expressão de um dos entrevistados: “a gente chama de retiro,
61
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
62
mas retiro hoje é outra coisa, o certo é casa de farinha mesmo, os indígenas
chamavam casa de forno, hoje é casa de farinha” (AFC, 03). Embora se
considere a autodenominação de produtores locais que se referem às
casas onde se produz a farinha como “retiro”, neste estudo optamos por
utilizar a de casa de farinha, por considerar que além da transformação
da matéria prima, raízes de mandioca em farinha e, em alguns casos, em
outros produtos como a goma e o tucupi, o fazer farinha configura-se
como um processo que está para além do resultado final de um sistema
produtivo, porque alberga também relações de convivência e vínculos
familiares na sua prática.
Na Casa de Farinha, onde as práticas são dinamizadas a partir
da organização da família nuclear, que estabelece o controle de todas as
etapas do fazer farinha, inclusive dos instrumentos de trabalho, foi, neste
estudo, denominada de Casa de Farinha Familiar pelo fato de que é o
núcleo familiar (pais e filhos) que constitui a força de trabalho no fazer
farinha.
De acordo com a percepção de um dos agricultores entrevistados,
a participação familiar no processo de produção garante a reprodução
social do grupo familiar, conforme indica o depoimento a seguir: “A
casa de farinha, para mim, é só pra gente de casa mesmo [...]. Tem tanta
importância que dali tô tirando o pão de cada dia, direto, toda semana,
na casa de farinha” (AFF, 01).
A forma de organização dessa atividade produtiva aproxima a
família por meio de laços de solidariedade e de colaboração, conforme
indica a noção de sociabilidade construída por Martins (2008, p. 32), para
quem o trabalhador “em sua produção de subsistência se produzia (e se
produz ainda) um mundo de relações sociais não capitalistas”. De acordo
com essa ideia, as relações assumem um sentido familiar e comunitário.
Na casa de farinha na qual o processo de produção ocorre a partir
de diferentes relações de parentesco, de relações de ajuda mútua entre
vizinhos, e está localizada em um terreno agrícola afastado da vila da
Comunidade, neste trabalho denominamos de Casa de Farinha Mutirão.
Várias atividades são desenvolvidas de forma partilhada e por meio do
pARTE i
CAPÍTULO 3
espírito de pertencimento, conforme pode-se perceber no depoimento a
seguir: “o meu sogro ali, se ele precisar de um serviço lá, se eu não tiver
marcado com meus companheiros, eu deixo o meu aqui e vou ajudar ele.
Sempre quando vem de lá vem dois me ajudar. É assim que vai” (AFM,
01). Isso acontece, segundo Castro (2000) por haver uma integração entre
a vida econômica e social, uma vez que a produção faz parte da cadeia de
sociabilidade e a ela é indissociavelmente ligada, facilitando, entre outros,
encontros interfamiliares.
Na casa de farinha que neste trabalho denominamos de
Comunitária, as práticas de fazer farinha são dinamizadas a partir de uma
diversidade de relações objetivadas no seu interior, como as de natureza
familiar, de compadrio, de trocas, mutirão. Existe uma organização
prévia da produção, que é discutida em uma reunião mensal. Essa casa
foi instalada por uma política pública, um projeto do Governo Federal
em parceria com o poder público municipal, que tem a função de atender
não apenas os produtores de farinha da Comunidade Santo Antônio do
Piripindeua, mas, também de outras comunidades próximas.
A partir das narrativas dos sujeitos produtores de farinha e
das observações realizadas constatou-se que nas casas de farinha da
comunidade as relações de convivência, mediadoras do fazer farinha,
existem sob o formato de: a) Relações familiares, que tem por base a
organização social da família nuclear, em que as relações entre pais e filhos
se dão unicamente em termos de participação do processo produtivo do
fazer farinha; b) Relações de cooperação, que se constituem a partir das
relações entre as famílias, de ajuda mútua que envolve a participação de
vizinhos, conhecidos, diaristas, ou até, algumas vezes, de familiares que
mesmo recebendo pagamento pelo dia de trabalho não possuem carteira
assinada ou salários fixos. Essa relação é indicada pelos produtores como
sendo uma ajuda ao parente. Em geral, estes sujeitos não participam de
todo o processo produtivo, mas apenas de alguma(s) prática(s) que são
previamente estabelecidas pelo “dono da farinha”.
Trata-se de relações que guardam semelhanças com a concepção
de relações pré-capitalistas de Marx (1985), para quem o trabalhador é
63
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
o proprietário das condições objetivas do seu trabalho. Independente
de qual seja a denominação, ele possui uma existência objetiva, o que
permite que o indivíduo seja em relação a si mesmo, proprietário e dono
das condições de sua realidade.
A organização do espaço para fazer farinha e seus processos educativos
O fazer farinha inclui um conjunto de práticas que vai além de
plantar e de colher a mandioca, uma delas é a organização dos espaços das
casas de farinha. O estudo revelou que existe por parte dos agricultores
a preocupação com a organização e manutenção dos espaços que são
apropriados e usados nas diferentes etapas do processo produtivo,
como indica a seguinte fala: “Meu dia de trabalho no retiro: começo
arrumar tudo, direitinho, começa a botar a mandioca, vai trabalhando,
trabalhando, quando chega o final do dia limpo todinho, [...] pra começar
de novo” (AFF, 01).
As raízes, em geral, são armazenadas em espaços que por sua
localização, facilitam a entrada ou aproximação do carro de boi ou outro
meio de transporte. O depoimento a seguir identifica a ampliação e
reorganização do espaço existente, em face do uso pelas famílias:
O espaço estava pequeno demais. Tem semana que tem aqui oito
famílias, precisou aumentar mais (...) melhorou muito. O cara
que está trabalhando aqui sabe a necessidade, pra trabalhar, aí (na
mudança do espaço) fizemos em três diárias, cada dia, veio cinco,
seis... No primeiro dia, foi tirado as caixas de dentro tudinho. No
segundo dia, foi lavado e colocado o piso e no terceiro dia foi pra
arrumar tudinho. Ficou bom (AFC, 07).
Essa fala evidencia que os agricultores sentiram a necessidade
de modificar a arquitetura original da Casa de Farinha Comunitária,
ampliando o espaço físico com a construção de uma área, onde armazenam
as raízes de mandioca e realizam o descascamento. Essa ampliação foi
necessária em decorrência de que, em alguns dias, o número de famílias
que produzem farinha nessa casa era superior à sua capacidade. Como
64
pARTE i
CAPÍTULO 3
afirma Gadamer (1999), as obras arquitetônicas não estão à margem da
história, uma vez que esta as arrasta consigo, faz parte de sua vivência ou
da relação das pessoas com os lugares em determinado tempo.
Nesse sentido, a organização do espaço das casas de farinha
incorpora um saber que emerge das relações de (con)vivência ou da
relação com o espaço praticado, e resguarda, de acordo com o pensamento
de Freire (1985), a dimensão de uma educação humanista e libertadora,
uma vez que mostra a tomada de consciência que se opera nos homens
enquanto agem e trabalham.
A organização do espaço demonstra uma ordenação sequencial
do saber-fazer farinha. Em referência ao processo de produção, o primeiro
espaço é reservado à “acolhida” das raízes, na sequência, a apropriação do
espaço é feita para o desenvolvimento da prática do descascar a mandioca,
que em seus discursos, os agricultores também denominam de “prática
de raspar”. Ao perguntar o porquê dessa variedade de denominações,
uma agricultora explicou:
Pra nós, que torra a farinha da massa, porque eles [de outra
comunidade] que mexe com goma, essa parte que fica [próxima à
casca] não é aproveitada, por isso que eles fazem o raspador. Na
Ponte Nova, no mesmo da que eles sevam eles tiram a goma, né?
Se eu raspar e deixar a mandioca aí, no outro dia, ela está toda
roxa, por isso, que nós faz descascar (AFC, 01).
Ficou evidenciado nesse discurso que para fazer a goma, “raspar
as raízes” é mais indicado, porque o amido é preservado. Entretanto, na
comunidade a atividade inicial de beneficiamento da raiz é o descascar,
porque ali a mandioca é destinada primeiramente para fazer farinha,
portanto, é a técnica mais apropriada para fazer farinha por impedir que
as raízes passem por alteração na sua coloração original. O descascar,
conforme retrata a figura 01, consiste em “cortar a casca”, e o raspar, como
mostra a figura 02, configura-se apenas na prática de “passar a faca na
casca da mandioca” (AFC, 01).
65
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
FIGURA 01 - O DESCASCAR
Fonte: Silva (2010).
FIGURA 02 - O RASPAR
Fonte: Silva (2010).
Antes, quando eu era solteira, a gente não descascava, a gente
colocava de molho, no igarapé, né? E depois ia tirando tudo
com a mão. Já viemos descascar assim, depois do motor, antes,
deixava de molho pra ficar bem molezinha pra depois socar com
a mão de pau, agora não, tem que descascar assim, [utilizando
instrumentos cortantes] pra poder passar no motor (AFC, 01).
66
pARTE i
CAPÍTULO 3
O discurso acima evidencia que a necessidade de mudança na
prática do descascamento das raízes da mandioca relaciona-se com
a introdução de outros artefatos e tecnologias, como motor a diesel.
Essa mudança exigiu que o saber descascar, fosse reelaborado e/ou
reconstruído, uma vez que, no período anterior ao uso do motor a diesel,
os agricultores usavam apenas as mãos para o descascamento. Atualmente
são utilizados instrumentos cortantes para preparação da matéria prima
antes de sevar.
De acordo com as observações realizadas durante o trabalho
de campo, à organização das casas de farinha configura um cenário
que permite, conforme mostra a figura 03, o encontro de gerações e de
socialização de informações e saberes. Trata-se de saberes da experiência
que foram adquiridos ou socializados nos fazeres cotidiano de homens
e mulheres, que por serem sujeitos da práxis, constroem seus projetos
de vida, resistem e “tecem representações sobre o mundo vivenciado”
(OLIVEIRA, 2008, p. 64).
FIGURA 03 – A PRÁTICA DE DESCASCAR
Fonte: SILVA (2010).
Os registros dão conta de que o descascamento por vezes, é
realizado por etapas: a mãe “faz o capote” e o filho “tira o capote”. Fazer
67
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
o capote significa descascar a parte superior da mandioca, que é a parte
mais grossa e mais difícil, enquanto tirar o capote consiste no ato de
retirar a casca da parte inferior da raiz.
Em uma das ocasiões durante a realização da pesquisa, presenciei
um diálogo entre mãe e filho a respeito de fazer ou não o capote, o
filho dizia: “eu vou tirar, eu já sei fazer o capote”. Fazer o capote quer
dizer dominar uma técnica de descascamento. A mãe, no entanto,
desaconselhava a fazer: “não faz o capote, se não a mandioca escurece!
(AFF, 02)”. Em outras palavras, compromete a qualidade da farinha.
Este diálogo indica que fazer o capote é tarefa para os mais experientes,
enquanto tirar o capote é atividade que pode ser praticada por aqueles
que estão iniciando.
O fazer o capote facilita o descascamento e configura-se como
uma prática educativa, pois, durante a sua realização são feitas várias
orientações e/ou observações pelos que possuem mais experiência. Uma
das orientações em relação à manutenção do capote é com relação à
higiene da matéria prima durante seu manuseio, pois, contribui para que
a parte já descascada da raiz seja mantida com menos impurezas, o que
agrega qualidade ao produto.
Essa ideia fica evidente no depoimento de uma agricultora ao
responder o que era fazer o capote:
É descascar meia mandioca e deixar meia, faz parte da limpeza
também, porque se eu pegar aqui [mostra a parte limpa] eu já
sujei, né? Aí o outro pega aqui [gestos], aí já não tem mais essa
sujeira que descascar assim [toda a mandioca] e também fazendo
o capote sai mais rápido. De primeiro, a gente não fazia isso não,
a gente aprendeu com um cearense que veio pra cá, trouxe essa
técnica de descascar a mandioca e nós aprendemos assim (AFC,
01).
O depoimento demonstra que há na prática de fazer farinha um
processo de aprendizagem, no contexto do qual, procedimentos que
fazem parte do saber-fazer farinha são socializados não apenas entre
68
pARTE i
CAPÍTULO 3
pais e filhos da comunidade, mas até mesmo entre pessoas que vieram
de outras regiões ou territórios, o que indica que estes sujeitos no que
se refere à construção ou reconstrução de seus saberes são favoráveis
a aprendizagens que facilitem o seu fazer. Ou, como se refere Charlot
(2000), existe um diálogo de saberes locais e saberes de fora.
Nesta perspectiva, é possível considerar a casa de farinha
como cenário de educação que se aproxima da ideia de ‘cenários de
cultura’ de Brandão (2002, p. 21), pois, “propicia aos que ali convivem,
a internalização não apenas de coisas, habilidades, condutas, saberes e
valores, mas aprendizagem, [...] interações e integrações complexas de e
entre tudo isto”.
Se para alguns agricultores o saber descascar é fácil, para outros
não. Trata-se de uma prática que exige, além do manuseio de uma
ferramenta que é uma faca amolada, um conhecimento que ajuda a
identificar as espécies de mandioca que podem ou não comprometer a
qualidade da farinha, como revela o depoimento a seguir: “o cara corta a
mandioca, muitas vezes, tem vários tipos de mandioca que deixa a farinha
ruim, boa, amarga, às vezes. Se a pessoa não sabe identificar, tá rodado”
(AFC, 05). Nesse sentido, Freire (1985) considera que no processo
de aprendizagem, só aprende os que se apropriam do conhecimento,
o transformam e o reinventam, com a possibilidade de aplicá-lo em
situações concretas.
Durante a realização da pesquisa, observou-se que a prática
do descascamento favorece o diálogo e a manifestação de processos
educativos e de formação. Em um desses diálogos, uma mãe na Casa
de Farinha Comunitária disse para a filha adolescente: “não pegue
para descascar somente as grandes, não!”, referindo-se ao tamanho das
raízes da mandioca. Esta fala expressa a percepção da mãe de que não
é justo deixar para as outras pessoas as raízes menores, já que é um
manuseamento mais difícil. São valores éticos que, ao serem socializados
no cotidiano das casas de farinha, promovem a educação do ser humano
no sentido de construir relações de (con)vivência baseadas na justiça e
equidade.
69
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Essa educação identificada nas casas de farinha está presente em
diferentes práticas, como, por exemplo, na prática da lavagem. O seu
desenvolvimento é quase sempre realizado próximo à cevadeira. Lavar a
mandioca demonstra um zelo no fazer farinha, um saber construído no
cotidiano e materializado no cuidado com a limpeza das raízes, conforme
se pode perceber no discurso a seguir.
A gente tem que jogar a mandioca para dentro do tanque da casa
pra poder a gente começar a fazer a farinha, porque se a gente ir
só daqui e chegar lá, não zelar das coisas da gente ...porque a gente
tem que lavar a mandioca, não é só chegar lá e jogar pra dizer que
a gente vai fazer a farinha não, a gente tem que lavar (AFC, 01).
70
No entanto, nem todos os agricultores procuram colocar em
prática esse zelamento. “Tem gente que faz a farinha, mas, não zela
a mandioca. Só faz chegar com a mandioca, joga lá, não lava. Traz do
roçado, só vai lavar ela, joga lá e pronto, e já vai torrar. Tem que primeiro
lavar ela” (AFC, 06). Por alguns não participarem dessa assimilação social
ou aprendizagem (PAIS, 2008), as tensões se manifestam, uma vez que os
sujeitos que buscam manter o zelo no fazer farinha passam a criticar os
que não têm o hábito de zelar.
Na medida em que as etapas do processo de fazer farinha vão
sendo realizadas, torna-se mais evidente que a organização do espaço
das casas de farinha influencia direta ou indiretamente contribui no
desenvolvimento dessa prática produtiva. Por exemplo, é possível
perceber que: “A cevadeira fica próxima da prensa; a prensa, a cevadeira e
a canoa onde se peneira têm que ficar próximas umas das outras. Porque
da cevadeira vai pra prensa e não pode ficar longe” (AFM, 02).
Alguns espaços das casas de farinha demandam cuidados e mais
atenção dos pais com relação à aproximação dos filhos, como é o caso da
cevadeira, onde se seva a mandioca, prática inerente ao processo do fazer
farinha. Crianças e adolescentes são orientados a manterem-se afastados
deste espaço. Essa orientação acontece em virtude dos riscos de acidente
que o motor representa em funcionamento: “agora já faz quase tudo,
pARTE i
CAPÍTULO 3
quando era menor, de pequeno começou assim, rapava mandioca, ele só
não fez foi sevar mandioca, que eu tenho medo dele sevar ainda” (AFF,
01). O cuidado demonstrado por alguns adultos em relação à presença
de crianças na casa de farinha é uma atitude que demonstra atenção,
ou como afirma Boff (2008, p. 33), “o cuidar é mais que um ato”, é zelo,
desvelo, preocupação, responsabilização, envolvimento afetivo com o
outro.
Na casa de farinha mutirão a prensa fica localizada na parte dos
fundos da casa. Sua localização é explicada na fala de uma produtora:
“você não pode sentar ela pra cá [na frente da casa], no meio ou na chegada
tem que ser sempre no final, porque o tucupi escorre. Se ficar pra cá, vai
molhar tudo, olha como fica aí no fundo” (AFM, 02). Ao considerar que
a prensa não poderia ficar localizada na frente da casa, essa fala revelou
a preocupação com a estética da casa de farinha, ou conforme Brandão
(2006) há uma condição de permanente recriação da própria cultura, que
se realiza uma experiência humana subjetiva e intersubjetiva.
Saberes que a organização do espaço revela
No item anterior as análises mostram que saber organizar os
espaços das casas de farinha incorporam práticas que vão para além
do processo produtivo, revelam processos de socialização de saberes e
experiências, que não só valorizam a qualidade do produto final como
também mantém a tradição da prática de fazer farinha. Neste item as
análises buscam dar conta dos saberes que estão inscritos na organização
do espaço, que também se configura como um saber que incorpora um
conjunto de práticas e iniciativas.
Um dos saberes que a organização da casa de farinha revela é o
saber prensar. De acordo com o conhecimento local, prensar “é enxugar
a massa, a massa fica prensada lá dentro, coloca no saco pra prensar”
(AFC, 01). Prensar configura-se como uma atividade, cuja realização
demanda um saber experiente, ou seja, é realizada pelos mais experientes,
porque nem sempre é o que parece à primeira vista, conforme indica o
depoimento a seguir: o cara vê no plano de cima: “tá boa”. Mas, quando
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FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
olha debaixo, às vezes sempre o canto fica mole. Às vezes as outras pessoas
que estão acostumados dizem: “Pode tirar, que já tá bom já” (AFC, 05).
Dessa maneira, o saber-fazer farinha é perpassado por um
conhecimento técnico, que nas relações cotidianas é compartilhado como
se fosse um segredo de como fazer farinha de boa qualidade. Assim, ao
realizarem as práticas coletivamente, os agricultores criam possibilidades
para demonstrarem a experiência acumulada e promoverem a socialização
desse saber como uma prática educativa.
Outro saber que emerge como parte do desenvolvimento das
práticas de fazer farinha, é o saber peneirar. Ao referir-se a essa prática,
uma agricultora explicou: “quando a massa vem lá da prensa, ela ainda
vem com uns pedaços de mandioca” (AFM, 02). O saber peneirar permite,
entretanto, que a massa passe por um processo de refinamento. Assim,
descascar e peneirar são os primeiros saberes que são ensinados aos que
estão aprendendo a fazer farinha, conforme demonstra o discurso:
Eu iniciei com meu pai, porque a gente aprende logo com a
família da gente, assim como meus filhos vão aprendendo com
a gente, desde, peneirar uma massa, que é isso que tu dá conta,
vai descascar uma mandioca, aí a gente vai aprendendo, vai
crescendo e vai aprendendo cada vez mais, né? (AFM, 02).
72
Assim, é por meio de um processo de ensino aprendizagem
que crianças, jovens, homens e mulheres agricultores aprendem e se
apropriam dos diferentes saberes que fazem parte do saber-fazer farinha.
Por exemplo, antes de saber peneirar, precisam saber descascar para
alcançar o conhecimento mais amplo da prática de fazer farinha. Em
outras palavras, o discurso revela que há uma distribuição das práticas de
acordo com o acúmulo de conhecimento dos sujeitos, que começa pelo
que “dá conta” do saber-fazer, sempre orientado por um olhar familiar.
Para Brandão (2007), entre os que ensinam e aprendem o saber
atravessa, entre outros, os códigos sociais de conduta ou as regras de
trabalho. Nesse sentido, nas casas de farinha, os sujeitos aprendem na
prática, “vão crescendo” e ao mesmo tempo vão construindo e ampliando
pARTE i
CAPÍTULO 3
o saber inicial, até mais tarde terem autonomia na realização da prática de
fazer farinha, a partir dos seus próprios saberes.
Na Casa de Farinha Mutirão fica evidente de como a aprendizagem
a partir da prática, influencia no saber organizar o espaço. Naquela casa,
a partir do segundo esteio do lado direito, surge uma fileira composta de
três fornos de cobre, como mostra a figura 04, que ficam distantes um do
outro cerca de setenta centímetros. Essa disposição, de acordo com uma
jovem agricultora acostumada a torrar farinha guarda relação com uma
prática preventiva “porque o vento leva a fumaça pra lá. Se fosse do outro
lado, o vento, o vento vem e carrega a fumaça e fica tudo no rosto da gente
e a gente não consegue mexer a farinha [...] o forno é de acordo com o
vento” (AFM, 02).
FIGURA 04 – A DISPOSIÇÃO DOS FORNOS NA CASA MUTIRÃO
Fonte: Silva (2010).
Esse saber prático orienta não só a disposição dos instrumentos
de fabricação da farinha, mas, também as interferências que fenômenos
da natureza podem ocasionar nas condições de trabalho dos agricultores.
Freire (2008) considera que a prática nos ensina, ou seja, no trabalho,
73
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
o ser humano usa o corpo inteiro, e isso faz dos trabalhadores da roça,
intelectuais também.
Guarda em cima, pras crianças não pegarem e ficar mexendo
no chão. Então parou o serviço, boto lá e quando for torrar, se
ficar sujo o cabo, a pessoa tem que lavar, botar pra enxugar, pra
quando chegar a hora de torrar, já está no jeito de sair (AFM, 02).
Essa fala revela que os rodos que manuseiam a torração da
farinha são guardados, após o uso, próximo do telhado e da prensa, para
que se tornem inalcançáveis para as crianças. Essa ação mostra o cuidado
em preservá-los de sujeiras, por serem instrumentos que são colocados
em contato direto com a massa da farinha. Para Silva (2008) os sujeitos
são capazes de construírem habilidades e atitudes frente a situações
socioambientais que permitem incorporarem-se no trabalho coletivo, em
práticas onde o exercício da solidariedade objetiva um ambiente saudável.
Na distribuição das práticas, por exemplo, saber torrar é um
fazer desenvolvido pelos que possuem mais experiência, porque envolve
técnicas de aperfeiçoamento que só o tempo pode assegurar: “nós chama
de torrar e pra deixar ela bem sequinha, escalda, põe pra escaldar, que
diminui a quantidade de água que ela tem” (AFC, 02). Trata-se de uma
prática que está diretamente relacionada com a qualidade final da farinha.
O que dá a cor na farinha é o escaldamento dela. Se você não
escaldar, dá uma farinha ruim, não é uma farinha cheirosa, aí a
gente escalda ela, e depois que ela estiver escaldada passa pra ali
(indicou o outro forno). Passou daqui o fogo, é de um jeito, pra
escaldar o fogo é de um jeito pra torrar é de outro, pra escaldar
o fogo é mais alterado, tem que ser mais quente o forno que é
pra poder dá essa liga que a gente chama, mas, também se passar
muito vai ficar só uma cola e do jeito que ela tá ali (indica o outro
forno) tem que ser com o forno bem brando, que é pra poder não
queimar o pó, pra ela sair bem branquinha (AFC, 02).
O discurso acima demonstra o conhecimento sobre a técnica do
74
pARTE i
CAPÍTULO 3
escaldamento, que é o procedimento que assegura o sabor característico
à farinha. Para isso, saber controlar a temperatura adequada do forno
aprimora sua qualidade. Essa técnica pode ser explicada por um
conjunto de conhecimentos (químicos, físicos, biológicos) que permitem
a transformação da massa da mandioca in natura, em farinha, que
embora os agricultores não expressem ou não se deem conta, é inerente
ao processo. Depois que a massa “dá a liga”, é preciso uniformizá-la. O
forno é desligado e a massa é retirada para ser esfarelada. Para facilitar
a execução dessa prática, a caixa do esfarelador é disposta próxima do
forno de escaldamento. Esse saber é essencial para garantir que os grãos
da farinha fiquem uniformes na torração. Esses conhecimentos são
inerentes ao tratamento técnico da massa de mandioca, por isso na fala
de um agricultor, para “fazer farinha”:
É preciso o cara saber trabalhar, saber quando tá no ponto de
tirar. O mais difícil é o cara torrar ela. Mas agora não, agora é
muito fácil, quando era no rodo, deixava o cara cansado, quando
era mais novo não dava conta não, mas, agora está mais fácil pra
mexer. Se não souber mexer, tem o risco de queimar a farinha. É
mais fácil de fazer porque tem o forno elétrico já (AFC, 05).
Esta fala evidencia que o saber torrar era considerado um dos
saberes mais relevantes do fazer farinha. Isto se deve ao fato de que
nas casas onde a prática da torração ainda é manual, ou onde se “puxa
a farinha” é exigido do torrador mais esforço físico e atenção em sua
realização.
A torração da farinha nos fornos manuais é feita com a ajuda
do rodo. O seu manuseio requer uma habilidade técnica, cujo saber é
construído também pela observação atenta dos sujeitos: “O rodo tem que
botar na posição certa para puxar e para empurrar. Na escaldação, ele
para empurrar pode amassar, e é só puxar, vai amassando e vai afinando”
(AFM, 02).
Para torrar a farinha, os rodos são movimentados com força e
técnica. Geralmente os torradores manuseiam a farinha de um lado para
75
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
o outro, jogam pra cima, como mostra a figura 05, prática que requer uma
multiplicidade de movimentos corporais. Talvez, por isso, nem todos os
torradores conseguem ter domínio dessa habilidade: “eu não sei jogar
a farinha pra cima” (AFM, 01), afirmou o mais experiente produtor de
farinha da Casa Mutirão.
FIGURA 05 – A FINALIZAÇÃO DA TORRAÇÃO
Fonte: Silva (2010).
76
O jogar a farinha para cima configura-se em um movimento de
finalização da prática da torração e possui uma finalidade que é eliminar
componentes que não qualificam a farinha de acordo com os padrões
regionais. Assim: “jogando a farinha pra cima sai o farelo e o cuí, o cuí é
bem pequeninho, é o pó, e o farelo é cumprido” (AFM, 02). Da mesma
forma, o movimento de manuseio do rodo, possibilita que o pó queimado
da farinha seja retirado, melhorando sua qualidade.
Entretanto, na Casa de Farinha Comunitária, a maneira como os
fornos estão dispostos no seu interior permite que os torradores, homens
e mulheres, circulem ao seu redor, o que facilita a prática do escaldamento
e torração. Nessa casa, o forno fica para o lado esquerdo: “fica para o
outro lado, porque lá é tampado, fica uma parede” (AFM, 02). De acordo
pARTE i
CAPÍTULO 3
com as informações locais, para que a prática da torração da farinha seja
realizada de maneira mais rápida, na Casa de Farinha Comunitária, os
agricultores não manuseiam rodo como nas demais casas pesquisadas.
O tipo de forno requer o manuseio de outro utensílio, as palhetas, como
mostra a figura 06, cujo formato é semelhante a uma espátula e são
confeccionadas em madeira.
FIGURA 06 – O MANUSEIO DA PALHETA
Fonte: Silva (2010).
Nas palavras de um torrador: “as palhetas são utilizadas para
ajudar na torração da farinha, mas tem que saber usar, pode machucar o
braço no forno” (AFC, 07). O cuidado revelado está associado ao tipo de
forno, pois, os cilindros, fazem as espátulas girarem, mas, não realizam
sempre a mesma trajetória no forno. Em alguns momentos as espátulas
se aproximam das bordas e em outros, distanciam-se. O manuseio da
palheta requer uma habilidade técnica, que só é adquirida por meio do
aprender - fazendo.
Na percepção dos agricultores com a introdução do forno elétrico,
a prática da torração, trouxe modificações neste saber, permitindo que
os agricultores o reconstruíssem, pois ao invés de “puxarem a farinha”,
utilizam as espátulas na prática de manusear a farinha. Conforme Freire
77
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
(1983) o ser humano é um ser histórico e inserido num permanente
movimento de procura, possui a capacidade de fazer e refazer
constantemente o seu saber.
Em conversa, um dos agricultores relatou conhecer pelo barulho
da farinha e pelo cheiro, a hora certa de tirar do forno. A experiência
deste agricultor remete ao pensamento de Certeau (2008, p. 219), para
quem o preparo de alimentos “exige uma inteligência programadora:
é preciso calcular com perícia o tempo de preparação e de cozimento”,
além de uma “receptividade sensorial que também intervém”.
O saber organizar o espaço possibilita que os sujeitos realizem
duas práticas em um mesmo lugar, na caixa (canoa), onde a farinha é
resfriada e posteriormente classificada. Classificar implica em peneirar
a farinha para retirar a “coruba”, que são grãos maiores que não foram
desfeitos no escaldamento, refinando o produto. Na Casa Mutirão, a
“coruba” é triturada no pilão e na Casa Comunitária, passa-se em um
esfarelador, que uniformiza os grãos para que sejam incorporados à
farinha já beneficiada.
Na Casa de Farinha Comunitária, alguns espaços foram
redimensionados a partir da percepção de que a proximidade da
caixa de resfriamento da caixa de sevar poderia umedecer a farinha e
comprometer sua qualidade. Dessa forma, fizeram o deslocamento das
caixas de resfriamento para o espaço que fica próximo de onde se pesa a
farinha. Esse deslocamento da caixa de resfriamento, juntamente com o da
caixa de esfarelamento que não estava sendo utilizada, permitiu ampliar
um pouco mais o espaço da casa, o que demonstra que a organização
do espaço, informa saberes práticos, os quais, os sujeitos produtores
são portadores, assim como guardam relação com as práticas que são
desenvolvidas no processo.
78
Considerações finais
Na introdução foi revelada a intenção dessa pesquisa transgredir
a ideia das casas de farinha ser consideradas apenas como espaços de
produção material. Nesse sentido, o diálogo com teóricos de várias áreas
pARTE i
CAPÍTULO 3
do conhecimento contribuiu para a interpretação e análise de saberes e
práticas educativas, que emergem dos processos de apropriação e usos
desses espaços e das práticas cotidianas de fazer farinha dos agricultores
familiares.
A pesquisa revelou que o fazer farinha requer de saberes que são
transmitidos por meio da oralidade e de experiências que socializados
pelos portadores desses saberes, cuja aprendizagem se dá na prática,
nas vivências dos aprendizes, que buscam seguir o exemplo dos que
possuem mais habilidade na execução das práticas de fazer farinha
e não são construídos de forma isolada, mas, guardam relações de
interdependência entre si. De maneira que o saber colher depende do
saber plantar a maniva, que saber cuidar da casa e dos instrumentos
influencia na qualidade do produto e, portanto, agrega valor na prática da
comercialização. Ou ainda, que manusear os instrumentos e utensílios,
guarda relação com a prevenção de acidentes dos praticantes e informa
saber cuidar de si e do outro.
Esses saberes, de acordo com os agricultores, enaltecem a
qualidade da farinha que produzem, por isso, buscam aperfeiçoar cada
vez mais suas práticas, ampliar seus conhecimentos. Eles defendem a
necessidade de zelar na/pela prática de fazer farinha como maneira de
fortalecer suas identidades de agricultores familiares camponeses, com
isso, evidenciam a farinha como símbolo da comunidade.
Dessa forma, é possível afirmar que nos cenários das casas
de farinha, os saberes são construídos num movimento espiralar, a
partir das relações de convivência dos agricultores, que dinamizam
os processos socioeducativos de maneira lenta e gradual: os menos
experientes vão se inserindo e sendo inseridos nas práticas consideradas
mais fáceis de aprender e guardam relação com o desenvolvimento de
suas capacidades físicas e cognitivas. Essa “educação familiar” que os
pais desenvolvem com as crianças, permite a inserção, delas, desde cedo
no fazer farinha e previne possíveis resistências ao processo produtivo ou
à sua aprendizagem, pois, na percepção deles (pais), depois que crescem,
interessam-se menos por essa atividade.
79
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Portanto, considera-se que os resultados da pesquisa trouxeram
indicações de estudos de outras questões como: o processo de socialização
de saberes; o diálogo com as práticas dos jovens agricultores familiares;
as relações de gênero nas casas de farinha, a invisibilidade da mulher
camponesa, entre outros.
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pARTE i
CAPÍTULO 3
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81
Parte II
REPRODUÇÃO SOCIOECONÔMICA
CAPÍTULO 4
HOMENS, MULHERES E ARTEFATOS NA
PRODUÇÃO DA FARINHA DE MANDIOCA NO ALTO
RIO JURUÁ-ACRE
Lucia Hussak van Velthem1
Introdução
A farinha de mandioca conhecida como “Farinha de Cruzeiro
do Sul” é produzida em grandes quantidades e comercializada em
municípios do Alto Rio Juruá, Estado do Acre. Possui destaque de venda
nos estados vizinhos, sobretudo nas cidades de Manaus e Porto Velho,
e alcança, ainda o Estado do Paraná2. Adquiriu reputação favorável
em decorrência das características que apresenta e por qualidades que
se revelam no paladar, por se tratar de uma “farinha especial”. Nos
últimos anos, várias cooperativas e instituições públicas interessaramse pelo potencial econômico desta farinha de mandioca e passaram a
explorar meios de valorizar esse produto e de melhorar a sua qualidade,
pois foi considerada sem uniformidade, em decorrência do processo
de produção (VELTHEM e KATZ, 2012). Paralelamente, iniciativas
governamentais procuram garantir a tradição de produção artesanal da
1 MPEG/SCUP – Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.
2 Os comerciantes de Cruzeiro do Sul afirmam que a farinha que produzem é misturada no Paraná à farinha local
para dar-lhe tempero e assim torna-la mais saborosa.
83
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
farinha de mandioca de Cruzeiro do Sul, com vistas a aplicar-lhe o rótulo
de indicação geográfica3 (EMPERAIRE et al., 2012).
A produção da “Farinha de Cruzeiro do Sul” é artesanal e
exige conhecimentos e habilidades técnicas de homens e mulheres.
Localmente, a sua percepção representa o resultado de um processo
que compreende múltiplos indicativos, relacionados com os saberes e as
técnicas de produção com as potencialidades dos cultivares e também
com os significados e efeitos produzidos pelos artefatos empregados.
Constitui o resultado de um processo rotulado enquanto “pensamento
da prática” (MATHIEU et al., 2004: 21) que é construído a partir das
experiências e conhecimentos dos produtores, nas condições sociais que
lhes são próprias. A atividade produtiva que resulta em uma “farinha
especial” possui componentes culturais que se conectam ao histórico de
migrações dos produtores das regiões áridas do Nordeste para as terras
de florestas úmidas da Amazônia, e também da atualidade dos sistemas
sociais de trocas e da transmissão de experiências e de informações.
Implementos específicos são necessários para a produção de
farinha de mandioca. Estão instalados em uma estrutura específica,
conhecida no Acre como casa de farinha. Ao ser visitada, se apresenta
como um espaço que abriga artefatos e utensílios ásperos e rudes, sem
maiores atrativos do que a capacidade de processar as raízes de mandioca.
As exegeses dos proprietários e usuários das casas de farinha do vale do
Juruá revelaram um universo material extremamente estruturado, tanto
do ponto de vista conceitual como relacional, aspecto que representa um
dos principais eixos de sua valorização.
Essa constatação permitiu que os dados coletados estabelecessem
um diálogo com os recentes estudos de cultura material, cujas análises
se baseiam, sobretudo em sua agencia, em termos do que as coisas
fazem (STRATHERN, 1988 e GELL, 1992, 1998), e menos nas estruturas
formais e materiais. Na presente abordagem dos artefatos das casas de
3 Entre as quais está a EMBRAPA - ACRE (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).
84
pARTE ii
cAPÍTULO 4
farinha do Acre, foi repensada a própria noção de objeto para se enfocar
questões que pudessem extrapolar as dimensões estritamente conectadas
com a sua materialidade e atuação funcional.
Essa abordagem salientou a possibilidade de se observar as
complexas “relações entre as séries humana e não humana” (VIVEIROS
DE CASTRO, 2002: 364) que são estabelecidas no trabalho que é
executado na casa de farinha. Neste artigo busca-se, assim, compreender
os utensílios empregados neste espaço a partir da apreensão dos próprios
produtores. Estes enfatizam que os artefatos são capazes de se organizarem
socialmente, de articularem e construírem interações e relacionamentos
que se caracterizam por serem de diferentes ordens.
FIGURA 1 – O ALTO RIO JURUÁ E A COMUNIDADE DE BELFORT
Fonte: LHVV.
As pesquisas foram realizadas em 2007 e 2008 no âmbito de
um projeto multidisciplinar sobre agrobiodiversidade e conhecimentos
tradicionais nos municípios de Cruzeiro do Sul e de Marechal
Thaumaturgo4. No primeiro município, os estudos concentraram4 Programa PACTA, “Populações Locais, Agrobiodiversidade e Conhecimentos Tradicionais Associados na
Amazônia”, CNPq - Unicamp / IRD – UR 169, n° 492693/2004-8 com financiamentos IRD, CNPq, ANRBiodivalloc e BRG. Autorização 139, DOU (04/04/2006). As pesquisas de campo na Vila São Pedro e nos ramais
dos Paulino, Macacos e Cruz ocorreram em novembro/dezembro 2007 e na comunidade de Belfort e sitio do
Caxixo em maio 2008.
85
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
se na Vila São Pedro, atravessada pela rodovia BR 364, e nos sítios da
vizinhança, localizados nos ramais dos Paulino, dos Cruz, dos Macacos.
Em Marechal Thaumaturgo compreendeu a comunidade de Belfort,
instalada às margens do alto Rio Juruá e o sitio do Caxixo, no afluente
Rio Tejo, em território abrangido pela Reserva Extrativista Alto Juruá
(REAJ)5.
Os sítios6 e também a comunidade nos municípios mencionados
são habitados por famílias de pequenos proprietários rurais. Constituem
agricultores familiares, pois são “portadores de uma tradição, (cujos
fundamentos são dados pela centralidade da família, pelas formas de
produzir e pelo modo de vida) mas que devem se adaptar-se às condições
modernas de produzir e de viver em sociedade, uma vez que estão
inseridos no mercado moderno e recebem a influência da chamada
sociedade englobante” (WANDERLEY, 2003:47-48).
Farinhada: o dia da produção de farinha
A produção agrícola no Estado do Acre baseia-se principalmente
em quatro cultivos: mandioca, milho, arroz e feijão (BERGO, 1993).
Entretanto, como ocorre em toda a Amazônia, verifica-se que a mandioca
constitui o elemento básico para a alimentação, sob diversas formas:
farinha, beiju, bolo, ou então simplesmente cozida. As variedades de
mandioca usadas pelos agricultores do vale do Rio Juruá são em sua
maioria mansas, tais como caboquinha, mulatinha, amarelinha, santa
rosa, fortaleza, curimé, mas existem duas variedades um pouco tóxicas,
a mansi-braba e a panati. A listagem da ocorrência de outras subespécies
é muito mais ampla, pois foram mencionadas três dezenas para a
Reserva Extrativista do Alto Juruá (EMPERAIRE, 2002), e uma dúzia
de variedades de mandiocas para os roçados da Vila São Pedro (RIZZI,
2011). O fator que determina o plantio de certa variedade de mandioca é
seu rendimento quando da produção de farinha para venda e consumo.
86
5 Foram entrevistadas vinte e nove famílias. Dezesseis vivem em sítios nos ramais dos Paulino, dos Macacos e dos
Cruz -São Pedro - e treze na comunidade de Belfort e Caxixo.
6 Os sítios são identificados nominalmente, tais como São José, Boa Esperança, Deus me Ajude, São Raimundo,
Boa Vista e outros.
pARTE ii
cAPÍTULO 4
Os produtores instalados nos ramais no entorno da Vila São
Pedro chamam todas as variedades cultivadas de mandioca7, ao passo que
na comunidade de Belfort o termo macaxeira é mais corriqueiro. Esse
tubérculo é considerado “como um legume” (RIZZI, 2011:116) dotado
de cabeça e rabo, cuja parte interna, a carne, é envolta por uma pele. A
maniva ou planta de mandioca é também identificada como roça, mas o
lugar de cultivo de mandioca é designado como roçado.
FIGURA 2 – CASA DE FARINHA NO RAMAL DOS PAULINO
Fonte: LHVV.
O sistema de cultivo da mandioca, praticado no vale do Rio Juruá,
constitui um processo tradicional em que os roçados são instalados em
sucessão à vegetação primária ou em áreas de capoeira, após a limpeza,
derrubada e queima da vegetação existente. Após o terceiro ano a área de
plantio é considerada de baixa produtividade e é abandonada (SANTOS
et al., 2003; RIZZI, 2006; SIMONI, 2009). O local e a composição do solo
em que a mandioca foi plantada influenciam diretamente na qualidade
de suas raízes e, futuramente, da farinha que é produzida.
O processo de produção da farinha ocorre em um espaço
específico, designado como casa de farinha8, que abriga grandes e
7 Os termos de uso local foram identificados em itálico em sua primeira apresentação no texto.
8 A denominação “casa de farinha” predomina nos estados do Norte e Nordeste, e constituem estruturas produtivas
87
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
complexos artefatos utilitários. Esses locais podem ser individuais ou
coletivos, como é o caso das casas de farinha geridas pelas cooperativas
ou então construídas através de programas governamentais. Nas casas de
farinha do primeiro grupo, o processamento da mandioca congrega toda
a família, porém em funções diversificadas e, em São Pedro, trabalhadores
diaristas, não aparentados. Os homens executam a maioria das tarefas,
exceto descascar os tubérculos, uma atribuição sobretudo feminina. O
ciclo de produção de farinha constitui uma puxada e se prolonga por dois
ou três dias, incluindo atividades nos roçados e na casa de farinha.
Nos municípios de Cruzeiro do Sul, Rodrigues Alves e Mâncio
Lima existem cerca de 2.000 casas de farinha9. Na Vila São Pedro e
nos ramais foram minuciosamente inventariadas doze casas de farinha
de aspecto e dimensões diferenciadas. Nesta região predominam as
estruturas de uso familiar o que corresponde aos pais, filhos casados
e outras pessoas ligadas por compadrio. No ramal dos Macacos foi
registrada uma casa de farinha que é de uso coletivo. Em Marechal
Taumaturgo, o levantamento abrangeu três casas de farinha, duas delas
de uso coletivo. Localizam-se preferencialmente em área que apresenta
ligeiro declive em relação às residências, mas suficientemente próximas
para serem constantemente admiradas e vigiadas. Algumas casas de
farinha podem ser cobertas de folhas da palmeira caranaí, chão de terra
batida e serem desprovidas de paredes, outras têm cobertura metálica,
piso cimentado e meias paredes de alvenaria e telas de náilon. Entretanto,
todos os tipos possuem dois espaços distintos: o corpo e a varanda. O
corpo corresponde à parte central e é relativamente espaçoso, abrigando
o instrumental para o processamento da mandioca. As varandas são em
número variável e estão dispostas nas laterais e na parte de trás das casas
de farinha, onde se abrem as fornalhas e se amontoa a lenha.
Nos dois municípios mencionados, os homens atribuem o
sucesso da produção de uma farinha de qualidade à utilização adequada
dos objetos empregados. As mulheres, entretanto, julgam que é a matéria-
88
baseada na mão-de-obra familiar.
9 Segundo técnico da SEAPROF – ACRE (Secretaria de Estado de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar).
pARTE ii
cAPÍTULO 4
prima o elemento determinante, muito embora algumas reconheçam
que é a conjugação desses dois condicionantes que resulta em uma boa
farinha. Ao estabelecerem esta distinção, homens e mulheres revelam
a esfera em que mais especificamente atuam, e na qual possuem mais
amplos conhecimentos.
O dia de fazer farinha é conhecido como sendo o da farinhada,
um termo corriqueiro na Amazônia para essa atividade (FRAXE, 2004,
EMBRAPA, 2005). Antes do início dos trabalhos, a casa de farinha
é previamente varrida e os utensílios são cuidadosamente limpos e
lavados. A limpeza dos objetos é reconhecida como sendo um aspecto
fundamental para a produção de uma boa farinha, pois evita que a massa
de mandioca azede rapidamente.
Em São Pedro, a produção de farinha tem início de manhã bem
cedo nos roçados, quando as raízes são arrancadas e posteriormente
conduzidas em carro de boi até a casa de farinha. Os tubérculos
apropriados para uma boa farinha devem ser “novos” e assim não
excederem um período superior a 12 meses sob a terra. A mandioca
considerada “velha” é a que possui cerca de dois anos de plantio. Segundo
uma produtora, “se a macaxeira não for nova, você pode praticar [exercer
os seus conhecimentos] que a farinha não sai boa”.
FIGURA 3 – A CHEGADA DAS MANDIOCAS/RAMAL DOS PAULINO
Fonte: LHVV.
89
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Ao chegarem à casa de farinha, as mandiocas são jogadas no chão.
No mesmo dia são descascadas e colocadas em recipientes específicos, as
gamelas ou cochas10. Uma farinha de qualidade exige que os tubérculos
sejam arrancados e descascados no mesmo dia. Outrora, as mandiocas
tinham o revestimento interno raspado com a faca, mas atualmente
ele é inteiramente retirado. O descascamento da mandioca precisa ser
cuidadoso para não deixar fragmentos de casca e nem as partículas pretas
que existem na carne das raízes. Em São Pedro é usado um expediente
- fazer capote –que torna este trabalho mais rápido e impede que os
tubérculos retenham muita sujeira. Nesse processo algumas mulheres
retiram metade da casca, do lado da cabeça, deixando a mandioca apenas
de capote (termo local para camisa). Posteriormente outras produtoras
tiram a que sobrou, do lado do rabo, a saber, o capote!
Após serem descascados, os tubérculos são lavados em recipientes
específicos, os tanques ou buques11. A mandioca precisa ser bem lavada,
com uma escova, para produzir uma farinha de qualidade, não amargosa.
Nessa atividade, a qualidade da água é fundamental, sendo sempre retirada
de poços artesianos e cacimbas, pois como afirmou um produtor: “a água
melaça [água barrenta] do rio não presta para dar uma farinha especial”.
As mandiocas lavadas passam para uma armação de madeira
(banco) para serem trituradas, uma tarefa que compete aos homens,
pois a partir desse estágio assumem completamente o processamento da
farinha. Acomodadas no recipiente central, em forma de U, as raízes são
polvilhadas com açafrão (açafrão) (Curcuma longa L.) para adquirirem
uma coloração amarelada. Essa prática teve início em 2000, a pedido dos
comerciantes, já que os consumidores de várias regiões preferem uma
farinha amarelada a uma de cor branca. A farinha amarelada pelo açafrão
perde a cor com o passar do tempo, mas isso não impede o seu consumo
pelo produtor.
10 O primeiro é provido de pernas, o outro repousa no chão.
11 Os tanques podem ser de alvenaria ou de madeira, os buques são feitos de pneus velhos.
90
pARTE ii
cAPÍTULO 4
FIGURA 4 – MANDIOCAS POLVILHADAS COM AÇAFRÃO/RAMAL DOS PAULINO
Fonte: LHVV.
No cumprimento da orientação dos comerciantes, os produtores
devem adquirir certa expertise na dosagem da açafroa, porque senão
obterão uma farinha amarga e de várias tonalidades que não são
apreciadas. Outro problema que pode ocorrer é a formação de grânulos
esbranquiçados, quando a massa de mandioca ralada não adquire,
de modo uniforme, a cor amarelada desejada. Esses grânulos, quando
associados aos resíduos de um descascamento apressado das raízes,
atestam visualmente que se trata de uma farinha que não é de boa
qualidade.
Devidamente polvilhados com açafroa, os tubérculos são
empurrados para serem triturados pelo ralador (bola ou caititu). Os
produtores denominam esse processo de cevar ou roer, verbos que
descrevem a própria ação desse artefato. Compreendido como dotado
de particularidades de ação, o ralador procederia como o próprio porco
caititu (Tayassu tacaju L), o qual “rói a mandioca para se alimentar e
tornar-se cevado [gordo]”. O elemento que rala a mandioca é um cilindro
de madeira onde foram encaixadas estreitas serras de metal (tariscas).
Para ralar bem a mandioca e valorizar a farinha, o artefato deve comportar
30 tariscas, todas do mesmo tamanho, alinhadas e afiadas como os dentes
91
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
deste animal. Caso as mandiocas não sejam finamente trituradas, a massa
não ficará homogênea, pois ocorrerá a multiplicação de grânulos grandes
(croeira), que posteriormente deverão ser descartados.
O amido (goma) é muito apreciado pelas famílias dos produtores
e é retirado da massa de mandioca depois de triturada. É então aspergida
com água, espremida em uma peneira e o líquido posto a decantar.
Com amido é produzida a farinha de tapioca ou são preparados beijus,
mingaus, bolos. Para a produção de uma farinha de qualidade, saborosa,
o amido não deve ser extraído, ou então apenas uma pequena parcela.
Quando o amido não é retirado a massa triturada é logo aparada
em um recipiente de madeira, a gamela de massa do qual é retirada para
ser envolvida em fragmentos de tela de náilon e formarem os forros
de massa ou pneus, a serem dispostos na prensa. Em São Pedro são
utilizados dois tipos de prensa, a prensa de varão e a de parafuso12. Em
Belfort só é encontrada a prensa de varão, com duas variantes: caixa e
arapuca. Uma vez acomodados os pneus de massa, a prensa é acionada
para os comprimir durante umas doze horas, o que permite eliminar
um líquido, a manipuera, e secar a massa de mandioca. Uma prensa só
contribui para a qualidade da farinha se ela “estiver bem aprumada” e os
seus componentes ajustados. Caso contrário, a massa retém líquido e fica
molhada e a farinha “não sai boa, não fica alvinha, fica escura” conforme
o comentário de um produtor de Belfort.
No dia seguinte, a massa de mandioca volta para o banco e é
novamente triturada para ficar bem fina. Passa então por uma peneira
circular, disposta em um dos lados de um comprido recipiente para a
retirada de fiapos e grânulos de croeira. Em seguida esta massa é levada
ao menor dos fornos para ser escaldada ou grolada, com o auxílio de uma
pá semicircular de madeira ou com o rodo. Essa atividade corresponde a
uma primeira secagem e precisa ser rápida, em baixa temperatura, e aos
poucos, para a massa não ficar “meio crua” e não influir negativamente
na qualidade da farinha.
Retornando à gamela, a massa é passada em outra peneira para a
92
12 Para referências mais completas sobre estes artefatos consultar Velthem (2008).
pARTE ii
cAPÍTULO 4
retirada dos grumos resultantes da primeira secagem. Para a valorização
da farinha é fundamental que a massa de mandioca ralada seja peneirada
duas vezes, pois uniformiza a sua textura e evita a produção de uma
farinha cheia de fiapos e caroços. Peneirar a farinha já torrada dispensa
uma das operações, mas isso não é considerado compensatório.
O passo seguinte é a secagem completa da massa já escaldada,
em maior quantidade e mais lentamente no outro forno, com o auxílio
de um instrumento de cabo comprido, o rodo. A secagem adequada da
massa exige uma fornalha que tenha uma boa e constante pressão do
fogo, o que é também garantido pela qualidade da lenha empregada.
Em Belfort, o combustível apreciado é classificado como lenha forte,
pois queima devagar e fornece carvão em brasa. Provém sobretudo das
árvores conhecidas como mulateira, murici, envira-preta, urana.
FIGURA 5 – ESCALDANDO E TORRANDO A FARINHA/RAMAL DOS PAULINO
Fonte: LHVV.
Os fornos são retangulares e podem ter tamanhos diferentes.
São compostos de uma chapa ou torrador e de uma moldura de madeira.
Apoiam-se em uma armação de alvenaria sob a qual está a fornalha. Os
fornos são os mais importantes utensílios da casa de farinha e influem
diretamente na torrefação da farinha: «quem vai mandar, [determinar]
93
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
que a farinha vai ser boa é o torrador». Muitos cuidados são tomados
com a sua instalação, pois não podem ser muito altos para não gastar
muita lenha, uma vez que aquecem dificilmente e esfriam muito rápido,
mas também não podem ser muito baixos porque as chapas metálicas
esquentariam demasiadamente. Ademais, a chapa precisa ser grossa,
porque uma chapa fina aquece muito rapidamente e assim queima o pó13
da farinha que adquire uma cor avermelhada. Quando os fornos estão
separados há maior controle da temperatura de cada um deles, o que não
ocorre quando estão juntos, pois se aquecem mutuamente.
O elemento fundamental da produção de farinha é o conhecimento
humano. O aprendizado tem início nas atividades de escaldar a massa de
mandioca, mas este saber se aprofunda na etapa posterior, pois o torrador,
o homem que executa essa tarefa deve ser evidentemente, um especialista.
Para ser um torrador consagrado é preciso ter grande habilidade no
manejo do rodo e também preparo físico: “tem de estar acostumado, pois
quem não está acostumado a trabalhar no forno, queima o pó da farinha”.
Ademais, deve saber o momento preciso de tirar ou de colocar lenha para
regular a temperatura da chapa e ainda de ser capaz de orquestrar uma
percepção multissensorial que indica que a farinha está torrada, que ela
“está no ponto”.
Assim que a farinha está torrada é transferida para um grande
recipiente de madeira, a caixa, de onde é retirada para ser acondicionada
em sacos duplos, dos quais um é de fibra sintética. A farinha deve ser
ensacada no mesmo dia, ainda quente, para permanecer crocante.
Quando essa tarefa é adiada, o produto esfria e perde excelência como
pondera uma produtora de Belfort, se a farinha “pega frieza, fica mole,
deixa de ser seca”. A farinha especial, de boa qualidade, tem uma grande
durabilidade, basta estar bem acondicionada e armazenada.
94
13 A farinha é composta de caroço e pó.
pARTE ii
cAPÍTULO 4
FIGURA 6 – FARINHA PRONTA PARA SER ENSACADA/RAMAL DOS PAULINO
Fonte: LHVV.
As sacas, pesando 50 quilos14 são fechadas e depositadas em um
estrado, para a farinha não umedecer no contato com o chão, enquanto
se aguarda a vinda do comerciante ou do atravessador de Cruzeiro do
Sul que pesa e compra a farinha nos ramais de São Pedro. Em Belfort,
os produtores dirigem-se à Marechal Thaumaturgo para vendê-la, mas
também a transacionam na própria comunidade ou em comunidades
vizinhas. Uma farinha de primeira qualidade, deve ter uma produção
limitada, que não exceda 250 quilos, o que significa que os produtores
devem «puxar somente para cinco sacas».
Um importante aspecto do trabalho executado na casa de
farinha é o âmbito em que as diferentes tarefas estão organizadas e que
afeta igualmente os humanos e os utensílios. Algumas pessoas e objetos
trabalham na frieza e outros trabalham na quentura, atividades que são
diametralmente opostas. A primeira condição compreende todas as
atividades em que não há aquecimento nas etapas de produção da farinha:
arrancar as mandiocas e transportá-las para a casa de farinha, descascá14 Outrora a medida para a farinha era o paneiro, cuja capacidade correspondia a cerca de 25 kg ou então a duas
latas de farinha.
95
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
96
las e lavá-las, ralar os tubérculos, prensar a massa, ralar novamente
a massa e, por fim, a peneirar. A segunda, por seu turno, compreende
justamente as etapas em que há calor nos procedimentos: acender o fogo
sob os fornos, escaldar e peneirar a massa e também torrá-la e secá-la nos
fornos, transferir a farinha para a caixa e depois ensacá-la ainda quente,
retirar as brasas da fornalha.
Pessoas e artefatos que trabalham na quentura não trabalham na
frieza e vice-versa. Apenas um utensílio, a gamela de peneirar a massa
de mandioca, trabalha nas duas esferas tendo, portanto, uma posição
intermediária. Entretanto, estas esferas não são intercambiáveis, pois um
dos lados desse utensílio recebe sempre a massa fria retirada da prensa e
o outro a massa escaldada provinda do forno. Algumas gamelas possuem
mesmo uma divisão interna para bem delimitar os diferentes espaços.
Esse é igualmente o motivo porque são duas as peneiras, uma para a
massa triturada e outra para a massa escaldada e, para não haver trocas,
uma é circular e a outra é retangular.
No processamento da mandioca, o âmbito da quentura é
considerado como o mais importante, o crucial, pois está em jogo a
qualidade da farinha produzida. As mulheres realizam diferentes tarefas
no âmbito da frieza tais como descascar, lavar, ou mesmo triturar a
mandioca, mas raramente trabalham em atividades que envolvem calor e
quando o fazem não é por muito tempo. As pessoas não devem transitar
por essas esferas antagônicas e, sobretudo, não podem estar sujeitas à sua
dupla ação. Esse é um dos motivos porque o local onde está instalada a
abertura da fornalha recebe um telheiro, uma vez que a pessoa que retira
as brasas não pode se molhar com alguma chuva repentina.
A oposição frieza/quentura não consiste em uma estratégia que é
restrita aos trabalhos na casa de farinha, mas opera em outros domínios
da vida dos produtores rurais do vale do Juruá, como a produção de
rapadura. A bipolaridade constitui um pressuposto que está no “cerne
do pensamento das populações tradicionais do Acre” (CUNHA e
ALMEIDA, 2002:12). Essa oposição é fundamental na produtividade dos
roçados e desta forma, consideram os produtores de farinha de Belfort, as
pARTE ii
cAPÍTULO 4
manivas que despontam no solo, estão na quentura, mas as suas raízes, as
mandiocas, por estarem enterradas, estão na frieza. Esta dupla condição
é ideal para o desenvolvimento desta planta (FRANCO et al. 2002).
Entretanto, as manivas não podem ficar muito aquecidas, porque senão
escaldam e não crescem. Assim, devem ser plantadas de modo espaçado,
para não aumentar o mútuo aquecimento, da mesma forma que os fornos
devem estar separados para permitir o controle do calor distribuído pelas
chapas.
Os que “vivem” na casa de farinha
A percepção dos produtores do Alto Rio Juruá dos artefatos que
guarnecem as casas de farinha, não comporta categorias indefinidas.
Desta forma, cada utensílio é sempre identificado, nomeado, uma vez
que o nome lhe fornece sentido, permitindo a sua inserção cultural. A
maioria dos artefatos da casa de farinha são complexos e fixos: o banco,
a prensa, os fornos, as gamelas, mas outros são móveis, como as peneiras,
rodos e recipientes diversos.
Os artefatos encontrados na casa de farinha são compreendidos
como “vivendo” neste espaço, do qual não se afastam para serem
utilizados no âmbito doméstico. Uma vez que “vivem” na casa de farinha,
os objetos possuem cada qual o seu lugar, que é referido como sendo o
seu canto. Trata-se de um espaço que corresponde à posição - sentada
ou deitada - que ocupam permanentemente ou na qual se imobilizam
quando não estão sendo empregados. Os grandes artefatos como a
prensa ou os fornos são fixos no chão e, portanto, estão “sentados em
seu canto”, outros descansam sobre os grandes artefatos ou são suspensos
em suportes presos nos pilares ou vigas e, assim, estão “deitados em seus
cantos”.
97
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
FIGURA 7 – A PENEIRA DEITADA E O BUQUE SENTADO, CADA QUAL
EM SEU CANTO/SÃO PEDRO E BELFORT
Fonte: LHVV.
A disposição dos artefatos na casa de farinha obedece a uma
sequência linear permitindo descortinar, de seu principal acesso, uma
paisagem que compreende, da esquerda para a direita: o recipiente
para receber a mandioca descascada e logo atrás o tanque para lavá-la,
ao lado está instalado o banco, e logo depois a prensa e a gamela com
as peneiras. Mais adiante estão os fornos, que podem ser unidos ou
separados e que fecham esse alinhamento paralelo. A gamela de aparar
a massa, que pertence ao complexo do banco, está disposta próxima a
este; a caixa, o estrado e o trapiche do forno, estão perpendiculares
aos fornos, mas paralelos entre si. Essa forma de dispor os artefatos na
casa de farinha constitui, segundo os produtores, uma estrutura que
lhes é própria, definida como “um modelo coordenado por nós”. Esse
alinhamento é considerado ideal porque potencializa os trabalhos de
produção de farinha e assim estabelece uma nítida separação entre dois
campos de disposição e de utilização dos artefatos que são necessários ao
processamento da mandioca.
A casa de farinha e todos os objetos existentes são geralmente de
propriedade de um indivíduo, o “cabeça da família” que é o genitor. Este
possui o direito de vendê-la e aos artefatos que a guarnecem, transação
98
pARTE ii
cAPÍTULO 4
que é feita, geralmente com uma pessoa aparentada. O proprietário
pode ter confeccionado a totalidade dos objetos empregados ou apenas
alguns destes, encomendando outros a um artesão mais habilidoso
ou os adquirindo no comércio de Cruzeiro do Sul ou de Marechal
Thaumaturgo15.
Os artefatos e utensílios da casa de farinha são todos de
confecção masculina, exceto os cestos cargueiros feitos de cipó (titica ou
morceguinho), que geralmente são de confecção feminina. As matériasprimas empregadas na produção dos artefatos compreendem madeiras
de diferentes tipos, identificadas como angelim, bacuri, biridiba,
birro, branquinha, cedro aguina, cedroado, itaúba, louro, louro bacate
[louro abacate], morapiranga [muirapiranga], quaricoara [acariquara],
tamacoaré, tarumã, toari, cuúba [ucuuba]16. São retiradas dos trechos
de mata secundária e de velhas capoeiras que ainda persistem nos lotes
ocupados. O que determina a escolha de uma espécie vegetal é antes a
sua disponibilidade do que uma imposição técnica. Alguns apetrechos
constituem exceções, como os mourões e os bolinetes da prensa que devem
ser de muirapiranga ou acariquara porque constituem lenhos resistentes
à pressão que estes artefatos recebem. Os rodos, ao contrário, devem ser
sempre de louro para se tornarem leves e relativamente maleáveis ao
serem empregados.
Nesse repertório de matérias-primas naturais se insere as
industriais: telas e sacos de náilon, chapas de metal, pneus de carro e
caminhão e o filtro do motor de trator, considerado indispensável para a
confecção de uma peneira eficiente e durável. Não devem ser esquecidas
as ferragens que integram a prensa de parafuso e o pequeno motor a
diesel que gira o ralador de mandioca.
Um artefato ou utensílio deteriorado está “no fim da rama” e pode
ser consertado ou então reciclado para ter outra serventia. Entretanto,
quando a degradação é intensa, o objeto passa a ser referido como defunto,
o que pressupõe o seu descarte em local afastado da casa de farinha.
15 Como peneiras de arame, feitas em Petrópolis, Estado do Rio.
16 Para a identificação botânica consultar Emperaire (2002).
99
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Os artefatos e suas “famílias”
Cada utensílio da casa de farinha estabelece interações de
diferentes ordens com aquele que o confeccionou e com o seu proprietário,
e também com aqueles que o utilizam. Efetivamente, a propriedade de um
artefato da casa de farinha não pressupõe uma utilização exclusiva, pois o
dono compartilha seu uso com a família, representada por uma parentela
extensa que inclui a esposa, os filhos e filhas, as noras, os genros, os irmãos
destes, sobrinhos, primos. Os vizinhos próximos, ligados ao proprietário
através de laços de compadrio, também estão aptos a utilizá-los. O uso
individual e exclusivo de um artefato ocorre quando há a possibilidade
do mesmo adquirir, do usuário, um “determinado jeito” que influencia
a sua durabilidade. Este é o caso do terçado, cuja empunhadura logo
se parte se esta ferramenta for utilizada por muitas pessoas. Homens e
mulheres possuem, assim, cada qual o seu terçado.
FIGURA 8 – A PRENSA, UM COMPLEXO ARTEFATO/BELFORT
Fonte: LHVV.
A interação dos artefatos entre si estabelece uma íntima relação
que resulta na formação de um “conjunto coerente” (BONNOT, 2002:8)
que é complexo, porque os utensílios estão destinados ao cumprimento
100
pARTE ii
cAPÍTULO 4
de funções igualmente complicadas. Ademais, um conjunto possui a
característica de ser organizado porque é submetido a certa disciplina
– simbólica e efetiva - que é determinante para a efetivação do
processamento da mandioca (VELTHEM, 2008). Assim sendo, no
cumprimento de suas funções, os artefatos se aglutinam em conjuntos
coerentes e organizados que são percebidos pelos produtores enquanto
“famílias”, o que é potencializado pelo fato de “viverem” sob um mesmo
teto, a casa de farinha.
O sentido de família, aplicado aos artefatos, representa a plena
inserção das coisas no sistema de produção local, estreitamente relacionado
com a unidade doméstica (CUNHA e ALMEIDA, 2002). Portanto,
como os humanos produzem farinha a partir da estrutura familiar, os
objetos também precisam se organizar da mesma forma para atingirem
os mesmos objetivos, comparando-se assim, a pessoas. Os elementos
que permitem definir o parentesco dos artefatos são as coincidências de
nomenclatura, de aspecto formal ou de função. O parentesco estabelecido
acarreta uma relação de parceria e de complementaridade entre artefatos
na execução das funções requeridas para o processamento da mandioca
e são fundamentais para o seu êxito.
FIGURA 9 – A FAMÍLIA DO BANCO/RAMAL DOS PAULINO
Fonte: LHVV.
Na casa de farinha, imperam três grandes famílias: banco, prensa
e forno, as quais possuem um número variado de componentes. Em todas
101
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
essas famílias, um elemento constitui o genitor ou genitora, referido
como sendo o “cabeça da família”, tal como ocorre entre os humanos. O
que determina se a família de objetos é regida por um pai ou por uma
mãe é a designação, masculina ou feminina, do elemento principal. Esse
elemento constitui o componente que executa a função que é atribuída
à sua família, e da qual ele é parte integrante. Em outros termos, tratase daquele fundamental componente que permite que uma determinada
família de objetos torne-se efetiva e produtiva. Para a maioria dos
produtores de farinha não há hierarquias entre as famílias, todas são
igualmente importantes no processamento da mandioca.
A posição preponderante do objeto “cabeça de família” não lhe
confere, entretanto, o direito de nomear o conjunto que dirige, mas pode
particulariza-lo, como no caso da prensa que comporta, na atualidade,
dois diferentes tipos, a prensa de parafuso e a prensa de varão. O parafuso
e o varão são considerados, portanto, os elementos principais da família
da prensa porque são os que permitem espremer a massa de mandioca.
Na família do banco, o elemento de maior importância é o caitetu porque
ele rala a mandioca, e na família do forno é a chapa, porque é ela que seca
a massa, transformando-a em farinha.
FIGURA 10 – DOIS PARES DE IRMÃOS: OS RODOS E OS FORNOS/BELFORT
Fonte: LHVV.
O sentido de família, operante entre os artefatos não se resume a
essas considerações. Ele se expressa de outra forma, quando ocorre um
102
pARTE ii
cAPÍTULO 4
detalhamento do parentesco. Assim, são considerados da mesma família,
por serem irmãos, os artefatos que tem o mesmo nome, seja ele masculino
ou feminino, muito embora possam ter aspecto formal diferenciado,
como é o caso das peneiras que são circulares ou retangulares. Nessa
mesma acepção, os rodos são considerados irmãos entre si, assim como
os fornos. As gamelas, as pás, as peneiras, por terem nomes femininos,
formam diferenciados grupos de irmãs. O conjunto dos irmãos pode
se diferenciar entre primogênitos e caçulas, de acordo com a ordem de
confecção ou com o tamanho, como é atestado entre os fornos. O de secar
a massa é maior e assim é o “mais velho”, o de escaldar é o “mais novo”,
uma vez que é sempre menor e, em alguns casos, mais baixo.
O estado de conservação do artefato, o esmero de sua confecção
ou o aspecto formal determina apreciações de outra ordem, relacionadas
com a estética corporal, exclusiva dos objetos considerados femininos,
pois os masculinos não são alvo de apreciações desse teor. No conjunto
das gamelas existem as “irmãs mais feias” e que são as que acondicionam
a mandioca descascada e as que recebem a massa triturada. Diferenciamse da gamela em que são peneiradas a massa crua e a escaldada que é
considerada a “irmã mais bonita da família”. Esse atributo deve-se ao
fato deste artefato se apoiar em uma armação elevada, identificada como
sendo “as suas canelas, que são finas” e por isso mesmo apreciada, ao
contrário das demais gamelas que repousam diretamente no chão, ou se
elevam em “pernas curtas e grossas”.
Os objetos da casa de farinha se reúnem em famílias não apenas
pelos motivos acima referidos, mas, sobretudo porque há sobre os
mesmos a nítida percepção de que “trabalham”. Nos municípios do Alto
Rio Juruá, a organização do trabalho gira em torno dos laços familiares,
na unidade doméstica, aspecto que é válido tanto para pessoas como para
artefatos. Assim congrega pais e filhos, genros, noras, netos, sobrinhos e,
além da produção de farinha, embasa momentos de socialização e envolve
processos culturais de transmissão de conhecimentos entre gerações
de uma mesma família, como também assinalaram Cunha e Almeida
(2002) e Rizzi (2006). Para as peneiras, fornos, prensas e outros objetos
103
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
utilitários, o trabalho na casa de farinha constitui a própria razão de ser,
porquanto são essencialmente utilitários. Em outros termos, a função é
o elemento que identifica o trabalho dos artefatos e para que o mesmo
seja eficaz é necessária a sua aglutinação em um conjunto coerente e
organizado: a família.
Ação, interação e transcendência
Os estudos que enfocam a cultura material de povos indígenas
na Amazônia brasileira se multiplicaram nas duas últimas décadas
(VELTHEM, 2003, LAGROU, 2007). A complexidade técnica e
conceitual, atribuída aos artefatos indígenas, proporcionou requintadas
análises através do prisma da antropologia da arte, acarretando grande
visibilidade para o tema. Essas pesquisas permitiram revelar categorias de
percepção estreitamente relacionadas com a cosmologia e a organização
social, e apontaram para a importância da estética na construção de
identidades.
No outro extremo, a ausência de atributos estéticos seria uma das
características dos objetos produzidos em outras sociedades amazônicas,
tais como a dos pequenos agricultores, dos pescadores artesanais,
dos ribeirinhos. Esse aspecto acarretaria desinteresse pelos estudos da
materialidade existente nesses segmentos sociais, gerando invisibilidade
e desconhecimento de aspectos pertinentes sobre o tema17. Esse quadro
precisa ser reavaliado e, para tanto, o estudo antropológico que se
defronta com objetos aos quais não se atribui, a priori, nenhum tipo de
valorização, deve ultrapassar o utilitarismo das usuais abordagens - caso
da maioria dos estudos sobre o processamento da mandioca – e neles
encontrar a transcendência oculta.
As páginas anteriores procuraram demonstrar que os artefatos
das casas de farinha encontradas nos municípios de Cruzeiro do Sul e
Marechal Thaumaturgo são percebidos por seus proprietários como
dotados de atributos que extrapolam a sua utilização. Essas características
se expressam de diferentes formas, uma das quais compreende um
104
17 Evidentemente há exceções, um das quais é o estudo de Carlos Sautchuck (2007).
pARTE ii
cAPÍTULO 4
estatuto individual, próprio a cada objeto, e que permite identificá-lo,
através do nome e do sexo. Há igualmente uma apreensão coletiva dos
artefatos que os insere em um sistema que reflete diferentes relações, as
quais são de base familiar, porquanto cada um se associa a outros através
de laços de parentesco consanguíneo e afim. Assim, na casa de farinha
“moram” objetos que são identificados enquanto irmãos, pais e filhos ou
casais.
As interações operantes no espaço da casa de farinha englobam
ainda as que são estabelecidas entre os objetos e as pessoas. Desta forma
se evidencia uma participação mútua em uma cadeia de dominação que
compreende a dos humanos sobre os não-humanos, os objetos, e a que estes
exercem sobre as mandiocas. Consequentemente, as pessoas dominam os
artefatos através da sua ordenação na casa de farinha, colocando cada
qual em “seu canto”, e também por intermédio das matérias-primas de
confecção, que lhes transmitem robustez ou leveza e, ainda, do uso de
medidas que impedem a sua locomoção. A forma como os objetos agem
sobre as mandiocas não é anódina, pelo contrário, como demonstra o
vocabulário empregado pelos produtores: a faca rapa, ou melhor, esfola
os tubérculos; o ralador rói a mandioca, o que significa que a tritura com
seus afiados dentes; a prensa achocha a massa de mandioca ou a espreme
em “apertado abraço”; o forno, ao secar a massa, na realidade a desidrata
completamente.
A resistência dos artefatos é decorrente das complexas ações
transformativas que são requeridas, de coisas e pessoas, para o
processamento da mandioca. Os objetos utilitários compreendem seres
providos de ação, robustos e eficazes, que complementam a ação dos
corpos humanos, porquanto representam eles mesmos, outros “corpos”18,
masculinos e femininos. Este é o motivo porque devem espelhar o
referencial humano e, portanto, o funcionamento dos artefatos, é
percebido como sendo um “trabalho” o qual, em sua estruturação, deve
refletir a principal organização social operante na região, que é justamente
a família.
18 A respeito da corporalidade dos artefatos ver, entre outros, Velthem, 2003 e Lagrou, 2007.
105
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
A ação dos artefatos não é apenas evidente, mas é fundamental
no espaço da casa de farinha, pois são compreendidos como “pessoas”
que dominam o processo que transforma a mandioca em farinha. Sem a
ação dos artefatos nada acontece e, portanto, é preciso considerar nesse
processo que os objetos não são passivos, mas oferecem resistência,
são cheios de “vontades”: a prensa deve “querer” apertar a massa de
mandioca, o rodo precisa se tornar “dócil”; o forno é que “determina”
se a farinha será boa ou não. Nesse contexto, cabe a afirmação de Gell
(1992: 48) para quem é a “resistência” oferecida pelos objetos o elemento
que verdadeiramente os valoriza. Essas considerações enfatizam,
portanto, que nas casas de farinha dos municípios de Cruzeiro do Sul e
Marechal Thaumaturgo, objetos e pessoas constituem presenças que ao
compartilhar um mesmo cenário, podem ter uma mesma atuação, pois
constituem formas de agir complementares, as quais reforçam, efetivam
e transformam os relacionamentos já estabelecidos.
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107
CAPÍTULO 5
MULHERES E PATRIARCADO: RELAÇOES DE
DEPENDÊNCIA E SUBMISSÃO NAS CASAS DE
FARINHA DO AGRESTE ALAGOANO
Milka Alves Correia Barbosa1, Fátima Regina Ney Matos2, Ana
Paula Ferreira dos Santos3, Ana Márcia Batista Almeida4
Introdução
A divisão de trabalho entre indivíduos e grupos advém do início
da vida humana grupal, podendo ser encontrada em todas as sociedades
do passado e contemporâneas; contudo guardando formas peculiares
decorrentes do processo histórico e civilizatório de cada povo, nação ou
grupo.
Segundo Carloto (2001), a divisão sexual do trabalho é uma
constante na história das mulheres e homens. E as explicações para tal,
frequentemente, apoiam-se no discurso do determinismo biológico que
1 Doutoranda em Administração. Universidade Federal de Alagoas – Campus Arapiraca. Av. Manoel Severino
Barbosa, s/n, Bom Sucesso, Arapiraca – AL, CEP: 57309-005. E-mail: [email protected].
2 Doutora em Administração. Universidade de Fortaleza. Av. Washington Soares, 1321, Bloco P, Sala 17, Bairro
Edson Queiroz, Fortaleza – CE, CEP: 60811-905. E-mail: [email protected].
3 Pesquisadora. Universidade Federal de Alagoas. Av. Manoel Severino Barbosa, s/n, Bom Sucesso, Arapiraca – AL,
CEP: 57309-005. E-mail: [email protected].
4 Doutoranda em Administração. Universidade Federal de Pernambuco – Centro Acadêmico do Agreste. Rodovia
BR-104, Km 59 - Nova Caruaru, Caruaru - PE, 55002-970. E-mail: [email protected].
109
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
procura ratificar o papel das mulheres como protagonistas da reprodução
biológica:
A tentativa de construir o ser mulher como subordinado vai
ter a marca da naturalização, do inquestionável, já que dado
pela natureza. A diferença biológica vai se transformar em
desigualdade social e tomar uma aparência de naturalidade
(CARLOTO, 2001, p. 02).
110
De fato esta divisão não se dá sem consequências; a ela são
atribuídas práticas que “mudam conforme os diferentes tipos de
sociedades e seu momento histórico” (CARLOTO, 2002, p. 01). Apesar
disso, observando-se a sociedade capitalista percebe-se que o trabalho
das mulheres ainda não recebe a mesma valorização e remuneração
atribuídas ao trabalho masculino.
Para Marx (1982), o trabalho das mulheres começou a ser
utilizado pelo sistema capitalista com a chegada da maquinaria que
revolucionou a mediação formal das relações do capital, o contrato entre
trabalhador e capitalista: “o trabalhador vendia anteriormente sua própria
força de trabalho, da qual dispunha como pessoa formalmente livre.
Agora vende mulher e filho. Torna-se mercador de escravos” (MARX,
1982, p. 23). Assim, a mulher foi submetida à dupla exploração; de um
lado ao capital diretamente nas fábricas; de outro, propriedade de seu
marido. Ao afastarem-se do “lar” – seu habitat “natural” – as mulheres
que trabalhavam nas fábricas viram seus filhos perecerem e tornaram-se
degradadas moralmente.
Note-se ainda que, a noção de divisão sexual de trabalho pode
ser compreendida como prática social, na medida em que assume formas
conjunturais e históricas, bem como conserva tradições que ordenam
tarefas masculinas e femininas na indústria (LOBO, 1991). Neste sentido,
tal divisão “não é a causa da subordinação e da desigualdade das mulheres
no mercado de trabalho, mas sim está inserida na divisão sexual da
sociedade com uma evidente articulação entre trabalho de produção e
reprodução” (BRITO; OLIVEIRA, 1997, p. 252).
PARTE ii
Capítulo 5
Em outras palavras, pode-se entender que as relações de gênero
(especialmente o feminino) e as relações de trabalho inserem-se em um
sistema de práticas e relações sociais existentes ao longo da história de
determinada sociedade.
Especificamente no caso da história do Brasil, sabe-se que
o processo de colonização caracterizou-se por unidades familiares
orientadas pelo latifúndio, escravagismo e patriarcado. Até as primeiras
décadas do século XX, as mulheres brasileiras não tinham garantido
ainda os direitos civis dos quais gozavam os homens. Assim, a posição
da mulher na família e na sociedade ainda demonstrava que a família
patriarcal tinha sido um elemento determinante em nossa organização
social.
Por outro lado, reconhece-se que a sociedade brasileira vem
passando por significativas transformações econômicas, sociais e
demográficas nas últimas duas décadas; dentre elas o aumento acentuado
da participação feminina no mercado de trabalho. No entanto, apesar da
desintegração do patriarcado rural, a mentalidade patriarcal permaneceu
na vida e na política brasileira, pelas vias do coronelismo, do clientelismo
e do protecionismo (CHAUÍ, 1989). Desta forma, a gênese de atitudes
autoritárias com a condição feminina verificadas nos meios urbano e rural
contemporâneos pode ser entendida à luz dos esquemas de dominação
que caracterizaram o patriarcado tradicional brasileiro (SOUZA, 2000;
FREITAS, 1997).
Vale dizer, ainda que as mulheres possuam o mesmo ou
melhores níveis de escolaridade que os homens, não se pode afirmar
que a igualdade entre os gêneros já foi alcançada. Não raro muitas delas
continuam percebendo remuneração menor que a do homem, ainda que
ocupem cargos iguais ou semelhantes, ou mesmo que desempenhem
dupla jornada de trabalho. Diante dessa desigualdade, os estudos
organizacionais que abordam a questão do gênero estão distantes de
serem esgotados, conquanto várias questões sobre esse fenômeno ainda
precisem ser esclarecidas (CAPPELLE et al., 2006).
O interesse por trabalhos que abordem as relações de gênero
111
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
112
tem crescido e justifica-se na medida em se faz necessário lançar
questionamento sobre o conjunto das relações sociais e econômicas no
universo do trabalho no Brasil. Nesse sentido, acredita-se que a casa de
farinha pode ser tomada como lócus no qual a divisão sexual de trabalho
pode ser observada com vistas a compreendê-la.
A casa de farinha é o lugar onde acontece a fabricação da farinha
de mandioca. Muitas dessas casas ainda guardam a mesma forma
que tinham na época da colonização: “uma edificação normalmente
realizada sem vedações laterais, coberta de palha, deixando evidente
os equipamentos de produção” (SILVA; ALCIDES, 2006, p. 4). Para as
autoras, as casas de farinha asseguram a permanência de um patrimônio
de cunho produtivo, com forte impacto na vida de inúmeras comunidades
espalhadas por grande parte do norte e nordeste brasileiro.
Oportuno esclarecer que mesmo nas casas de farinha que já
utilizam energia elétrica e equipamentos ainda há manutenção de
hábitos como a cantoria, o trabalho associativo, a reunião e a cooperação
de grupos familiares. A fabricação da farinha, também conhecida como
farinhada, continua a agregar o núcleo familiar, a despeito da tecnologia
empregada no processo (SILVA; ALCIDES, 2006).
Neste cenário, o objetivo deste trabalho foi analisar os aspectos
do trabalho das mulheres nas casas de farinha do Agreste Alagoano que
ainda reproduzem o padrão de dominação do patriarcado tradicional
brasileiro.
Em Alagoas, a mandioca é a segunda maior produção agrícola,
caracterizando-se pela forte presença da agricultura familiar. Somente
no agreste, a subsistência de cerca de 25 mil famílias está relacionada à
cadeia produtiva da farinha (MDIC, 2004). Historicamente, a tradição de
fazer farinha vem passando de geração a geração. A quantidade de casas
de farinha é expressiva nos municípios da região do agreste alagoano:
são 459 unidades, sendo 67 comunitárias (15%) e 392 particulares (85%).
Os municípios de Girau do Ponciano (15 unidades), Arapiraca (14) –
onde ocorreu a pesquisa – e Igaci (12) foram os que mais investiram em
unidades comunitárias (MDIC, 2004).
PARTE ii
Capítulo 5
Um traço comum à maioria dessas casas é que se tratam de
empreendimentos familiares, que contam com a participação de homens,
mulheres e crianças na produção, sendo cada um dos membros da família
responsável por diferentes tarefas do processo produtivo. Fazer farinha é
uma arte centenária que atravessa gerações e retrata a cultura local e a
verdadeira história de homens, mulheres e crianças da região.
O presente estudo adotou uma perspectiva predominantemente
qualitativa. O enfoque qualitativo adotado justifica-se na medida em
que se trabalhou com um nível de realidade que dificilmente pode ser
quantificado e que procurou responder a questões muito particulares,
específicas de um determinado contexto (MINAYO, 2004).
No desenvolvimento do trabalho procurou-se conservar os
aspectos definidos por Bogdan e Biklen (1994) que melhor caracterizam
a pesquisa qualitativa: o ambiente natural (as casas de farinha) como
fonte direta dos dados e o pesquisador como instrumento-chave;
ênfase na descrição; a preocupação do pesquisador com o processo e
não simplesmente com os resultados e o produto; os dados analisados
indutivamente e a captação de significados como preocupação essencial.
Merriam (1998) classifica a pesquisa qualitativa em cinco tipos,
a saber: estudo qualitativo básico ou genérico, estudo etnográfico,
fenomenologia, grounded theory e estudo de caso. Nesta pesquisa optouse pela realização de um estudo de caso. Casos podem ser constituídos por
indivíduos, grupos, programas, organizações, culturas, regiões, Estados,
incidentes críticos, fases na vida de uma pessoa, ou seja, qualquer evento
que possa ser definido como um sistema delimitado, específico, único
(PATTON, 2002).
O caso em estudo foi constituído pelo conjunto de casas de
farinha, formais e informais, da região do agreste alagoano. O critério
para escolha dos empreendimentos baseou-se na tipicidade e desta forma,
foram escolhidas aquelas casas de farinha que refletiam uma situação ou
eram exemplo do fenômeno de interesse do pesquisador (MERRIAM,
1998). A pesquisa deu-se em seis casas formais de farinha do município de
Arapiraca e quatro casas informais do município de Girau do Ponciano.
113
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
114
No estado de Alagoas, existem unidades industriais particulares
e coletivas de pequeno e médio porte; casas de farinha comunitárias
baseadas na prática cooperativa; e pequenas casas de farinha propriedade
de pequenos produtores – as casas de farinha onde se deu a presente
investigação fazem parte deste grupo.
O estudo de caso apresenta um caráter particularizante e tem
poder de generalização limitado (BRUYNE et al., 1977). Desta forma,
os resultados obtidos nesta pesquisa não devem ser transpostos para
contextos semelhantes. O que se pretendeu não foi generalizar, mas
analisar um grupo de casas de farinha situado no agreste alagoano
considerando suas especificidades.
Como técnicas de coleta de dados foram utilizadas análise
documental, entrevista semiestruturada e observação participante.
Deste modo, adotou-se o expediente da triangulação: a combinação de
diferentes técnicas no estudo do mesmo fenômeno (DENZIN; LINCOLN,
2000), tendo por objetivo abranger a “máxima amplitude na descrição,
explicação e compreensão do foco em estudo” (TRIVIÑOS, 1987, p.
138) e diminuir “a influência dos vieses do pesquisador no resultado
final das análises” (VIEIRA; ZOUAIN, 2004, p. 23). As entrevistas foram
realizadas nas casas de farinha ou na casa das trabalhadoras, entre os
meses de novembro de 2010 a março de 2011.
Os sujeitos da pesquisa foram mulheres que trabalham nas
casas de farinha quer seja realizando todo o processo ou apenas partes.
Foram selecionadas as respondentes que pudessem efetivamente ajudar
a compreender o fenômeno em estudo (MERRIAM, 1998), portanto, a
seleção proposital, intencional ou deliberada foi adotada.
A quantidade de sujeitos participantes foi determinada pelo
princípio da redundância ou saturação, ou seja, à medida que foram
sendo vivenciados casos similares, adquiriu-se confiança empírica de que
não mais se encontraria dados que pudessem contribuir para a pesquisa
(GLASER; STRAUSS, 1967).
A saturação foi atingida na décima entrevista, mas como não
existe fórmula que assegure a saturação e essa depende exclusivamente do
PARTE ii
Capítulo 5
discernimento do pesquisador, achou-se por bem continuar as entrevistas
até uma margem considerada segura, tendo em vista que a quantidade
de sujeitos é menos importante do que a qualidade das informações.
Para efeito da pesquisa, foram considerados os dados obtidos nas dez
primeiras. Esclarece-se que, das entrevistadas, seis foram provenientes
de casas de farinha de Arapiraca e quatro de Girau do Ponciano. Em
respeito ao anonimato dos sujeitos, as falas das mesmas serão seguidas
pela palavra ‘Entrevistada’, seguida por numeral que varia entre 1 e 10, de
acordo com a ordem em que foi realizada a entrevista.
A observação direta participante também foi escolhida como
método de coleta de dados por trazer um contato em firsthand com o
fenômeno que se pretende estudar e por proporcionar entendimento
de aspectos que dificilmente seriam captados somente por meio de
entrevistas ou documentos (MERRIAM, 1998; VERGARA, 2008). Foram
realizadas 08 (oito) visitas às casas de farinha com duração aproximada
de uma hora.
Também foram realizadas observações durante o Fórum
Permanente da Mandioca que acontece mensalmente e conta com a
presença de trabalhadores do setor. Quanto a análise documental, tevese acesso a relatórios do Arranjo Produtivo Local (APL) de Mandioca, a
relatórios do Sebrae, a websites, folhetos, manuais das casas de farinha.
Realizadas a observação e as entrevistas, procedeu-se à análise
de conteúdo (BARDIN, 2004), sendo os dados coletados tratados
fundamentalmente de forma qualitativa: categorizados e analisados a
partir dos termos e categorias analíticas definidas a posteriori. Sendo
assim, a próxima seção está organizada de acordo com as categorias que
emergiram durante o tratamento dos dados.
A divisão sexual do trabalho na rotina das casas de farinha
Embora difundida em todo o Estado de Alagoas, é no Agreste que
se encontra a maior concentração de produtores e de casas de farinha,
respondendo por aproximadamente 58% da produção estadual. Na
grande maioria são pequenos e médios produtores que utilizam a mão-
115
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
de-obra familiar para a produção de farinha (SEBRAE, 2008).
O início dos trabalhos é celebrado com o cantarolar e as conversas
das mulheres. Em geral, elas trabalham 10 horas diárias, com pequenos
intervalos para alimentação, com horários alternativos em função da
demanda. O horário de trabalho é definido pelo dono da casa de farinha,
e no período da safra de mandioca, com o aumento da produção de
farinha, o ritmo de trabalho torna-se mais forte:
Não tem horário certo, mas a gente chega umas seis horas e para
umas onze e meia e começa de novo uma da tarde e vai até cinco.
Às vezes é de segunda a sexta, às vezes vai até o sábado meio dia
(Entrevistada 5).
Não tem horário certo, pego de seis horas largo no fim da tarde,
dependendo do tanto de mandioca, trabalho de terça a sábado
(Entrevistada 2).
Não tem dia, nem horas; só é a gente chegar na casa de farinha
e começa de sete até às cinco; quando tem muita mandioca é de
segunda a sábado (Entrevistada 8).
Não vou falar que tem horário porque quando a casa de
farinha está funcionando as mulheres brigam pra [sic] chegar
determinado horário e raspar mais, questão de ganhar mais. É
três horas da manhã, quatro horas, sete horas até umas oito horas
da noite. No período da safra, de fazer farinha que é setembro, são
quase todos os dias (Entrevistada 3).
Nas casas de farinha pesquisadas, observou-se que o
processamento da farinha de mandioca segue as seguintes etapas:
transportadas em caminhões, camionetas, carroças ou mesmo em carros
de bois, as raízes chegam às casas de farinha. Lá são distribuídas em lotes
(também conhecidos como caçuás, ou balaios) para serem descascadas
ou raspadas, operação que é executada por mulheres.
Descascada as raízes, são depositadas em caixas plásticas,
em lonas, para evitar o contato com impurezas (o que nem sempre
acontece). Como poucas casas de farinha possuem o equipamento
lavador/descascador, foi desenvolvido o processo de “repinicagem”, um
116
PARTE ii
Capítulo 5
tipo de triagem realizada por mulheres para melhorar a qualidade final
do produto processado. Na sequência, as raízes são transportadas para
o ralador. A massa resultante do processo de ralação é então depositada
em um tanque de alvenaria revestido por azulejos. Com auxílio de pás ou
baldes, essa massa é transportada para a prensa para que seja retirado o
líquido conhecido como manipueira que é bastante tóxico no seu estágio
inicial. A referida massa é colocada em panos de algodão para ser levada
à prensa. Assim, depois de seca a massa é retirada da prensa, e quebrada
e peneirada em peneiras (ou raladores). Após essa etapa, a massa é levada
aos fornos para ser torrada até atingir o nível de umidade desejado.
Finalmente, uma vez pronta, a farinha é deixada em cochos de madeira
para esfriar, e ser peneirada e embalada em sacos de polipropileno.
Todas as etapas descritas no parágrafo anterior são executadas por
homens. Eventualmente, ou melhor, somente em casos extraordinários as
mulheres participam dessas fases. No máximo peneiram a massa. Cabe
a elas exclusivamente a raspagem da mandioca, a limpeza da casa de
farinha (varrer, lavar banheiros), juntar as cascas e colocá-las em sacos:
As mulheres raspam e os homens arrancam a mandioca e carregam
o carro pra [sic] espalhar pra casa da gente (Entrevistada 3).
A gente raspa a mandioca e quando acaba cedo, ai por conta de
nós mesmo ai a gente limpa para ajudar o patrão (Entrevistada 1).
Os homens mexem e imprensam a massa e as mulheres raspam,
lavam o banheiro todo dia; às vezes faz a limpeza, varre o terreiro
(Entrevistada 4).
Os homens impressa [sic] traz da roça e bota aqui, as mulheres já
raspa, daqui eles pega bota no motor e do motor vai pra prensa e
da prensa vai pro forno (Entrevistada 6).
As mulheres também às vezes mexe [sic] a farinha, às vezes
boto prensa ai, ajudo a apanhar mandioca; agora não é todas as
mulheres; as mulheres dos maridos associados é as que trabalha
mais aqui e as outras as vezes rapa mandioca e vão embora, e
outra tem que ficar aqui (Entrevistada 5).
Essa divisão de trabalho é definida pelos donos da casa de farinha
117
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
– que em sua totalidade são homens. Não há inversão de tarefas ou
outra forma de divisão de trabalho. Aos homens cabe o trabalho com
as máquinas, o transporte da mandioca; às mulheres cabe o trabalho
manual. Quando chegam para trabalhar na casa de farinha elas já sabem
o que devem fazer, pois sua tarefa já está previamente definida pelo dono
da casa de farinha:
A mulher não vai pegar lenha para botar no forno, não pode
pegar em saco de farinha pra pesar [sic], isso tudo as mulheres
não podem. As mulheres podiam peneirar somente, porque já ia
aliviando mais o trabalho (Entrevistada 10).
Os homens mesmo decidem: as mulheres vai raspar e nós vamos
fazer os outros serviços (Entrevistada 7).
O dono da casa de farinha é quem decide o que a gente vai fazer:
varrer a casa de farinha, raspar a mandioca, tirar a tapioca; a gente
faz só o básico mesmo (Entrevistada 9).
Verificou-se que o trabalho masculino está direcionado a outras
atividades que demandam maior força física, maior destreza e habilidade
com máquinas, e que envolvem risco de perigos eminente tais como
fogo, por exemplo. Enquanto às mulheres cabe o trabalho manual e
teoricamente mais leve, de raspagem da mandioca. Assim, a divisão do
trabalho nas casas de farinha é justificada principalmente pelo discurso
das diferenças corporais entre mulheres e homens, reforçando a divisão
sexual do trabalho (DURKHEIM, 1999). Juntamente a essa realidade,
tem-se a concentração do trabalho feminino em tarefas manuais que
remonta às tarefas domésticas que lhes eram atribuídas na estrutura de
organização patriarcal.
Observou-se também que essa segmentação reproduz-se
na definição dos espaços físicos da casa de farinha, deixando claro
onde homens e mulheres devem realizar as suas tarefas. De fato essa
segmentação sexuada dos espaços profissionais vem acompanhada das
relações de dominação/subordinação, conforme apontado por Matias
dos Santos (2007).
118
PARTE ii
Capítulo 5
Como o processamento da mandioca obedece a etapas bem
definidas, então a tarefa da raspagem executada pelas mulheres influencia
todo o andamento das demais. Qualquer atraso nessa etapa compromete
todos os procedimentos seguintes. Somente sob este ponto de vista, as
tarefas desempenhadas pelas mulheres e o papel feminino no processo
já poderiam ser consideradas como relevantes: o trabalho realizado por
elas dá inicio a um processo que resultará em renda para empresários,
famílias, além manter a tradição da mandiocultura da região.
Não obstante tal argumento, grande parte das entrevistadas não
reconheceram a importância do trabalho que realizam e quando o fizeram
associaram ao reconhecimento por parte dos donos da casa de farinha:
Não ganho nenhum dinheiro pelo meu trabalho. O primeiro
dono valorizava mais, mas o segundo não valoriza. O primeiro
não dava nada, mas ele chegava, conversava mais com a gente, ele
gostava, colocava mandioca a vontade pra quem quisesse. Levou
nós prá [sic] praia no final da safra. E o segundo já não gostei
(Entrevistada 3).
A agricultora é sempre a mais fraca, ai ninguém reconhece nosso
trabalho, ele não reconhece nosso trabalho (Entrevistada 7).
Tinha uns patrões que além de pagar ainda me davam farinha, me
ajudava com qualquer coisa (Entrevistada 4).
Só recebo mesmo o pagamento, mas eu acredito que valia mais
(Entrevistada 5).
Eles são muito bons aqui; eu faço o meu, mas não sei se
reconhecem ou não (Entrevistada 1).
Tem pessoas que não acham que esse trabalho é um trabalho, não
reconhecem, pensa que isso é um passatempo (Entrevistada 8).
O perfil das mulheres das casas de farinha
As mulheres entrevistadas eram casadas e solteiras, a grande
maioria com pelo menos três filhos. Nenhuma delas tinha nível de
escolaridade acima do ensino médio incompleto; algumas eram algumas
analfabetas. A faixa etária das entrevistadas compreendeu dos 21 a 69
anos. As entrevistadas trabalham nas casas de farinha há pelo menos
119
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
cinco anos e eram de famílias que já lidam com a mandiocultura há
gerações.
Apesar de considerarem o trabalho desgastante, reconhecem que
ele é imprescindível para ajudar no sustento de suas famílias e para sua
satisfação pessoal:
Meu trabalho é bom, nós depende [sic] tudo daqui, roupa,
calçado, comida, tudo, tudo (Entrevistada 2).
Não é um trabalho muito favorável, é cansativo, o trabalho aqui
não é bom, mas é o suficiente para quem não tem renda. Eu não
tenho renda; a renda é essa aqui, ai eu acho bom (Entrevistada
10).
Pra mim é demais, a gente tem alegria trabalhando. A gente ficar
em casa só esperando, esperando por quem? Só por Deus não
dá. Para mim é demais quando eu trabalho lá na casa de farinha
(Entrevistada 3).
Ajudar o esposo, a família, a questão familiar porque são poucos
o dinheiro recebido, mas ajuda muito na família (Entrevistada 5).
Se eu não fizer outra pessoa faz, não é obrigatório. Porque eu
ganho dinheiro, é divertido, agora nós tá no verão às vezes fica
sem fazer nada e o que aparecia era até bom, nós aqui fazia [sic]
nossas resenhas, para não ficar parada (Entrevistada 9).
Vínculos e relações sociais nas casas de farinha
As mulheres não têm vínculo empregatício formal; prestam serviço
informalmente para a casa de farinha, num sistema de subcontratação e
facção. A escolha das pessoas (homens e mulheres) para trabalharem na
casa de farinha ainda se pauta em laços de parentesco, amizade (ainda
que remotos); talvez essa característica reforce a casa de farinha ainda
como lócus de trabalho de família, de amigos, de comunidade, de união
(Da Matta, 1991).
Nesse cenário os laços econômicos, de solidariedade e de lealdade
aos donos das casas fortalecem-se, reforçando a relação de subalternidade
e de submissão das mulheres aos homens, posto que são eles quem
decidem o que e o quanto deve ser produzido, o quanto deve ser pago pela
120
PARTE ii
Capítulo 5
raspagem da mandioca, decidem o horário de trabalho e a organização do
processo produtivo. Enfim, são os homens os protagonistas do processo
de produção nas casas de farinha. Entendendo o patriarcado como poder
masculino, e não poder do pai, a autoridade centrada no poder masculino
se fez presente nas casas de farinha estudadas (Narvaz; Koller, 2006;
SCOTT, 1995).
Nas casas de farinha estudadas, a compreensão de que o privado/
público, o patriarcado e as relações de gênero articulam-se entre si
mostrou-se particularmente importante para explicar a dinâmica das
relações de subordinação/dominação, das práticas organizacionais e
interações sociais lá encontradas.
No fórum da mandioca realizado mensalmente, observou-se
que as mulheres são minoria e permanecem a maior parte do tempo
caladas, sem expressar qualquer ideia ou opinião, mesmo que os assuntos
discutidos tenham relação direta com sua realidade de trabalhadoras
na cadeia produtiva da mandiocultura. Nos documentos analisados
percebeu-se que os grupos de participantes de missões e visitas técnicas
organizados pelo SEBRAE são formados basicamente por homens.
Pode-se ainda considerar a casa de farinha como um ambiente
que favorece a interação social dessas mulheres, pois, ao mesmo tempo
em que trabalham de forma coletiva, elas conversam, trocam ideias,
dividem suas tristezas e alegrias. Entretanto, seria prematuro afirmar que
há encaminhamento para reorganizar relações de trabalho, ou a divisão
do trabalho nas casas de farinha.
Condições de trabalho e relações de submissão nas casas de farinha
Para realizarem a tarefa de raspagem as mulheres usam facas e
ficam sentadas em tamboretes de madeira ou mesmo no chão batido. São
remuneradas de acordo com a quantidade de quilos, ou a quantidade de
caçuás/balaios que conseguirem descascar. O valor pago por caçuá está
em torno de R$ 3,00 (três reais).
Deste modo, seguindo a tradição, as mulheres são remuneradas
com valores irrisórios para trabalhos desenvolvidos em condições
121
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
precárias - com dores fortes no corpo, devido ao esforço repetitivo e
a posição em que executam o trabalho, por exemplo. O baixo nível de
remuneração exige também que mais elementos de uma mesma família
trabalhem para proporcionar aumento na renda familiar, ultrapassando
o limite legal de oito horas diárias de trabalho.
Ainda sobre a baixa remuneração do trabalho das mulheres,
poder-se-ia tentar justificá-la pelo discurso instrumentalista de que isso
talvez aconteça pelo fato de os donos das casas de farinha não poderem
pagar mais por esse trabalho, sob pena de inviabilizar financeiramente
a atividade, considerando a composição dos custos. Outra possibilidade
é realmente a priorização do lucro. De fato, em qualquer uma das
situações, dentro do contexto econômico e social, as mulheres da casa
de farinha continuam subordinadas hierarquicamente aos donos da casa
de farinha, conquanto as atividades realizadas por elas são definidas,
supervisionadas, subordinadas às definidas para eles e realizadas por eles.
Importa esclarecer que foi possível visitar casas de farinha que
contam com tecnologia e maquinário moderno e mulheres trabalhando
em estações de trabalho. Entretanto, mesmo em tais ambientes, as
relações também eram centradas na figura masculina da “pessoa do dono
da casa de farinha” (Entrevistada 3), plena de poder - o chefe da parentela
descrito por Davel e Vasconcelos (1997).
Resgatando-se o nível de escolaridade das mulheres envolvidas
no processo produtivo, coadunado com o baixo nível de remuneração e
com as relações de trabalho, mantêm-se as condições que promovem e
reafirmam a submissão das trabalhadoras ao homem - dono da casa de
farinha - além de alijá-las de participar de outros ambientes de trabalho
que demarcam exigências diferenciadas, como o grau de instrução, por
exemplo.
Algumas mulheres vislumbram que poderiam participar de outra
maneira e em outras etapas da produção da farinha, mas ainda assim,
continuariam em tarefas manuais:
122
PARTE ii
Capítulo 5
As mulheres poderiam participar mais com a limpeza, poderiam
tirar a goma, que a gente sabe que dá dinheiro, mas a maioria
das mulheres daqui não faz, simplesmente só raspa a mandioca e
acabou (Entrevistada 3).
Antes da reforma as mulheres peneiravam, a gente podia voltar a
peneirar (Entrevistada 7).
Há perspectiva de implantação de uma mini fábrica de biscoitos
à base de mandioca, a ser comandada pelas trabalhadoras casadas com
os produtores de mandioca. Trata-se de um grupo de aproximadamente
vinte mulheres que já trabalham de forma rudimentar há dois anos; e
foram capacitadas pelo Senac e Sebrae para prepará-las para essa forma
de gerar renda e emprego.
Talvez isso sinalize uma oportunidade de mudanças nas condições
de vida de algumas das mulheres e suas respectivas famílias. Entretanto,
cabe um olhar mais crítico no sentido de perceber se esse será mais um
espaço em que as mulheres estarão desempenhando somente atividades
manuais (de preparo de alimentos) sob a supervisão de homens ou se
terão, de fato, autonomia para gerenciar a mini fábrica, caminhando na
direção de ruptura da relação de submissão a que estão submetidas.
Conclusões
Considerando o objetivo deste trabalho, pode-se afirmar que
vários aspectos do trabalho das mulheres nas casas de farinha do Agreste
Alagoano ainda reproduzem o padrão de dominação do patriarcado
tradicional brasileiro. Os dados coletados (principalmente a fala das
entrevistadas) mostraram que nesse mesmo ambiente a divisão sexual
do trabalho é aceita como resultado de diferenças físicas entre homens e
mulheres.
Assim sendo, aparentemente dever-se-ia aceitar de pronto que
nas casas de farinha estudadas o gênero figura como variável binária
apoiada na diferença sexual entre homens e mulheres, e como tal, a partir
de uma visão estática, esse padrão de divisão do trabalho dificilmente
mudará. Entretanto, analisando essa realidade a partir de uma perspectiva
123
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
histórico-social, vê-se que essa divisão sexual do trabalho aproxima-se do
binômio exploração-dominação descrito por Saffioti (2008), que vincula
a dominação masculina aos sistemas capitalista e racista. Para a autora,
[...] o patriarcado não se resume a um sistema de dominação,
modelado pela ideologia machista. Mais do que isto, ele é também
um sistema de exploração. Enquanto a dominação pode, para
efeitos de análise, ser situada essencialmente nos campos político
e ideológico, a exploração diz respeito diretamente ao terreno
econômico (SAFFIOTI, 2008, p. 50).
124
Assim, a dupla jornada de trabalho (casa de farinha e trabalhos
domésticos), a baixa remuneração, as condições precarizadas de trabalho,
o respeito e a lealdade à autoridade do dono da casa de farinha – como
provedor de salário, comida, trabalho -, são algumas das condições que
alimentam a exploração sob as quais as trabalhadoras estão submetidas.
Agregue-se a isso o caráter histórico das relações desiguais de
gênero que se fazem presentes na sociedade brasileira desde a colônia
e chega-se aos dias atuais observando-se que nas casas de farinha do
agreste alagoano, a base material do patriarcado não foi destruída, não
obstante os avanços femininos.
Pode-se questionar como não encontrar relações de dominação
patriarcal numa casa de farinha, já que lá a divisão de trabalho baseiase originalmente na diferença sexual entre homens e mulheres. Neste
sentido, pontua-se que relações de gênero não são necessariamente
imutáveis tampouco são desiguais por natureza. Entretanto, para que
mudem e tornem-se mais igualitárias, faz-se necessário pelo menos o
questionamento das relações de poder determinadas pelo patriarcado que traz ao seu cerne desigualdade, controle e medo.
A despeito de programas e iniciativas - como a criação do APL
de Mandioca - que buscam melhorar também a geração de empregos, de
renda e agregar valor a mandiocultura -, a realidade dessas trabalhadoras
das casas de farinha mostra que as relações de gênero continuam desiguais
e hierarquizadas. Nesse aspecto, concorda-se com Matias dos Santos
PARTE ii
Capítulo 5
(2007) que “a divisão sexual do trabalho é algo que se reatualiza e vai
permanecendo, embora adquirindo novas formas” (p. 07). Na presente
pesquisa, a divisão sexual do trabalho perpetua-se com a dominação
patriarcal e reflete-se nas condições precarizadas de trabalho sob as quais
se encontram as mulheres das casas de farinha estudadas.
Como contribuição tentou-se ilustrar a presença da dominação
patriarcal na divisão do trabalho das casas de farinha do Agreste Alagoano.
Para aquelas mulheres ainda há um longo caminho a ser percorrido até
que seu local de trabalho caracterize-se por relações mais igualitárias
de poder. De fato, talvez essa realidade não seja exclusiva deste grupo.
Assim, como direção para futuras pesquisas, seria oportuno conhecer a
realidade em outras casas de farinha e outros ambientes organizacionais,
a partir da abordagem feminista pós-colonialista enfocando-se aspectos
de gênero articulado com classe, raça, entre outros.
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127
CAPÍTULO 6
A Organização dos assentados da reforma
agrária para o processamento da
mandioca: o caso de Capão do Cipó - RS
Vilson Flores dos Santos1, Paulo Roberto Cardoso da Silveira2 e
Ana Cecília Guedes3
Introdução
Nos últimos vinte anos têm sido intensos os debates em torno
da importância da agricultura familiar no cenário agrícola e agrário do
país. Abramovay (1998, p.57) destaca a agricultura familiar como capaz
de fornecer melhores condições de vida ao homem rural, considerando
este local como possuidor de valores da tradição, do folclore e da pureza,
contrapostas ao cenário urbano, onde estas características não estariam
mais presentes. Para o autor “faz parte dos valores que a agricultura
familiar incorpora a primazia do desenvolvimento e do poder locais e a
1 Doutor em Extensão Rural, Pesquisador e Coordenador do grupo NEMAD, Pesquisador do grupo NEPALS,
Professor do PROIPE – Programa de Inovações Pedagógicas da UFSM. E-mail: [email protected].
2 Zootecnista, Msc. Extensão Rural, Doutor pelo Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas, Prof. do
Departamento de Educação Agrícola e Extensão Rural da UFSM, Coordenador do Núcleo Interdisciplinar em
Extensão e Pesquisa sobre Alimentação e Sociedade – NEPALS. E-mail: [email protected].
3 Tecnóloga em Gestão de Cooperativas, Engenheira Agrônoma, Mestranda em Extensão Rural pela Universidade
Federal de Santa Maria, pesquisadora do grupo NEPALS-UFSM; E-mail: [email protected].
129
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
ideia de que, neste plano, os negócios públicos podem ser geridos com a
participação direta dos cidadãos”.
De acordo com Oliveira e Ribeiro (2002), a agricultura familiar
pode ser vista como uma possível alternativa para um desenvolvimento
rural menos excludente e ambientalmente mais equilibrado. Destacamse suas características específicas no tocante à produção capaz de gerar
renda e ocupação para um contingente expressivo, além de contribuir
econômica e socialmente, através da produção de alimentos, da
distribuição mais equitativa da renda e no fortalecimento dos laços
comunitários e organizacionais.
Como reconhecimento deste potencial da agricultura familiar e a
considerando como instrumento de preservação dos recursos naturais, o
estado brasileiro tem destinado a este segmento um conjunto de políticas
públicas, as quais vão desde o crédito, os serviços de Assistência Técnica
e Extensão Rural - ATER, comercialização4 e programas de formação
para as famílias agricultoras. Além destas políticas de ação conjuntural,
ressaltam-se aquelas que têm o objetivo de reestruturar as relações cidadecampo, destacando-se neste aspecto os incentivos à agroindustrialização
das matérias-primas agrícolas e os projetos de assentamentos de reforma
agrária.
A primeira política busca reintroduzir nos espaços rurais o
processamento das matérias-primas agrícolas, o qual nos anos 1950
foi assumido pelas grandes agroindústrias processadoras de alimentos
em uma conjuntura em que a legislação sanitária constituiu barreiras
intransponíveis para os agricultores familiares e pequenas unidades
processadoras (SILVEIRA e ZIMERMANN, 2004; GUIMARÃES
e SILVEIRA, 2007, SULZBACHER, 2011). A segunda visa alterar a
estrutura fundiária vigente, redistribuindo a posse da terra no Brasil.
No entanto, tais políticas apresentam limites, os quais têm raízes
no modelo agrícola brasileiro que privilegia a monocultura voltada
130
4 Neste caso, assume destaque pelo número de beneficiados o PAA – Programa de Aquisição de Alimentos
gerenciado pela CONAB- Companhia Nacional de Abastecimento e o PNAE – Programa Nacional de Alimentação
Escolar, gestado pelo MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário em parceria com as instituições de ação local.
PARTE ii
Capítulo 6
à exportação, a qual tem proporcionado um crescimento intenso da
agricultura de larga escala e marginalizado um grande contingente de
agricultores familiares. Neste contexto, os assentamentos de reforma
agrária não têm conseguido contrapor a tendência de concentração
fundiária e nem aplacado os conflitos pela posse da terra, cada vez
mais intensos em zonas de expansão recente deste tipo de agricultura,
chamada popularmente de agronegócio5. Da mesma forma, as
chamadas agroindústrias familiares rurais têm enfrentado dificuldades
diante da concorrência das grandes redes agro-alimentares, as quais
forçam a manutenção de uma ordem institucional desfavorável ao seu
desenvolvimento (VENTORINI e SILVEIRA, 2011; SULBACHER e
SILVEIRA, 2012; DEON et al., 2013).
De acordo com Fernandes (2005), a conjuntura agrária atual é
resultado do avanço do capitalismo no campo, pois de um lado há uma
apologia ao agronegócio como setor importante para o crescimento
econômico e, de outro, a criminalização da luta pela terra, ambos
produzindo conflitos em relação ao processo de desenvolvimento em
curso no país. Embora os movimentos sociais ligados à agricultura
familiar e os movimentos de luta pela reforma agrária, como o Movimento
dos Trabalhadores Sem Terra (MST), tentem contrapor as políticas
governamentais com a denúncia de um modelo agrícola exportador,
excludente e ambientalmente insustentável, percebe-se a consolidação da
hegemonia do agronegócio.
A experiência aqui analisada se situa em um ambiente onde
se entrecruzam essas duas políticas públicas de corte estrutural: a
organização de um processo de agroindustrialização e a consolidação dos
assentamentos de reforma agrária.
Ao defrontar-se com o desafio de constituir um projeto capaz
de aumentar a renda das famílias agricultoras e, ao mesmo tempo,
5 No Brasil este termo tem sido usado como sinônimo de uma agricultura em grande escala, voltada para produção
de commodities e com objetivo de maximizar a lucratividade do capital investido. Este segmento representado
por grandes proprietários de terra e agricultores integrados às agroindústrias processadoras tem sido acusado da
degradação ambiental em função dos métodos de produção utilizados, baseados no intenso uso de agroquímicos
e mecanização pesada.
131
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
alavancar um processo de desenvolvimento local no assentamento “Nova
Esperança”, município de Capão do Cipó – RS, surge à proposição de
desenvolver a partir da cultura da mandioca (a qual apresenta um grande
potencial de produção local), um empreendimento agroindustrial
(unidade de processamento da matéria-prima). Buscava-se evitar que a
venda in natura fosse à única possibilidade de comercialização, pois se
verificava a relação desfavorável dos agricultores assentados diante dos
equipamentos de varejo.
Sabe-se que projetos de desenvolvimento rural para a agricultura
familiar devem respeitar as especificidades regionais, envolvendo culturas
com potencial de produção, mas que também possam possibilitar a
apropriação pelos agricultores da maior parte do valor agregado gerado
e que dialoguem com a formação de identidades e a diferenciação das
regiões no cenário econômico mais amplo (ABRAMOVAY, 2000).
Neste sentido, tratava-se de buscar uma atividade que pudesse oferecer
lucro aos quatro assentamentos de Capão do Cipó, os quais envolvem
mais de duzentas famílias, despertando assim uma perspectiva de
desenvolvimento.
Muitas vezes, estes projetos dependem da capacidade de ação
coletiva dos agricultores e da atuação dos agentes de desenvolvimento,
efetivando a animação social, considerada um processo de potencialização
da ação local pelos agentes externos quando do “start” inicial das
experiências de construção social (SILVEIRA e GUIVANT, 2011). E no
caso em discussão havia a necessidade da construção social de mercados,
pois não se tratava de organizar os agricultores para inserir-se em uma
cadeia produtiva tradicional6.
Assim, os assentados foram induzidos a agir coletivamente,
criando uma organização em torno do projeto em desenvolvimento,
pois seria inviável a implantação de uma unidade de processamento sem
uma gestão coletiva e sem a participação de um conjunto de famílias.
Tal situação é imposta pela necessidade de justificar a aplicação de
132
6 Considera-se aqui uma cadeia produtiva tradicional aquela em que os compradores são conhecidos e as regras de
relacionamento entre os diferentes agentes envolvidos são de conhecimento público.
PARTE ii
Capítulo 6
recursos públicos no empreendimento de processamento de mandioca e
a organização necessária para produção de matéria-prima.
Cabe destacar que os agricultores assentados encontravam-se
descapitalizados, após vários projetos de produção frustrados, sendo
necessário trabalhar com base nas condições presentes no local sem exigir
vultosos investimentos em capital. Assim, decidiu-se pela estruturação e
qualificação da cadeia produtiva da mandioca visando assim: a) produzir
uma cultura com pouca necessidade de investimento e capaz de gerar
renda; b) trabalhar com uma cultura já em produção nos assentamentos
locais e que as famílias conhecessem o processo produtivo; c) trabalhar
com uma cultura agrícola com bom desempenho nas condições locais
de solo e microclima; d) agregar valores a esta produção, através do
processo de agroindustrialização; c) oportunizar a participação de todos
os agricultores assentados por mínima que seja sua produção.
Salienta-se que a Manihot Esculenta, popularmente conhecida
como mandioca, é um dos produtos mais populares da alimentação
brasileira desde os primórdios da colonização portuguesa. Segundo Pinto
(2002), a mandioca está “Fortemente presente no imaginário popular, a
mandioca é portadora de tradições [...]. Produzida de norte a sul do país,
o baixo custo da produção permite o seu cultivo pela população mais pobre,
da qual constitui alimento básico [...]”.
Decide-se então trabalhar-se a cultura da mandioca, sendo que
seu processamento poderia servir como alternativa de renda para estes
agricultores familiares assentados de reforma agrária. Esta experiência
se desenvolveu no município de Capão do Cipó, o qual se localiza na
mesorregião Centro Ocidental Rio-grandense, possui cerca de 3.180
habitantes, abrigando em seu território quatro Projetos de Assentamento
de Reforma Agrária: Assentamento Federal Novo Santiago, Assentamento
Federal Quatorze de Julho, Assentamento Federal Sepé Tiarajú e
Assentamento Estadual Nova Esperança, numa área de 3.847 hectares
onde foram assentadas 197 famílias, e nos tempos atuais vivem cerca de
227 famílias (devido a subdivisão de lotes para os filhos, que passaram
a viver na mesma gleba), representando cerca de 20% da população do
133
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
município e tendo significativa importância na economia local.
Devido a temática aqui desenvolvida apresentar particularidades
em relação aos demais públicos relacionados com a agricultura, optou-se
por relatar esta experiência como um desafio proporcionado por novos
espaços rurais criados a partir dos assentamentos da reforma agrária na
região das missões no sul do Brasil. A reflexão que aqui realizamos se
ancora na participação dos autores em momentos diferentes do processo
transcorrido, desde a gestação da ideia até a concretização do projeto da
unidade de beneficiamento, incluindo o acompanhamento do esforço
organizativo e as negociações em torno da viabilização dos recursos para
sua efetivação.
A sistematização da experiência, visando sua análise e
documentação utilizou a pesquisa qualitativa, a qual, no entendimento de
Creswell (2007), ocorre em ambiente “natural” (onde não se artificializa
um momento de investigação) e permite ao pesquisador apreender um
maior nível de detalhamento sobre as ações locais.
Lança-se mão de dados colhidos no escopo da vivência dos
autores nos assentamentos da região e na efetivação dos projetos de
extensão: A ação da universidade na re-construção sócio-ambiental das
práticas alimentares em assentamentos rurais – o caso dos assentamentos
do município de Capão do Cipó/RS desenvolvido pelo NEPALS (Núcleo
Interdisciplinar em Extensão e Pesquisa sobre Alimentação e Sociedade)
da UFSM, desde 2010 e o Programa SOMAR7, realizado através de
convênio entre UFSM e INCRA-RS com objetivo de assessorar a
implantação de agroindústrias nos assentamentos de reforma agrária no
RS (2009-2012). Através dos procedimentos metodológicos utilizados,
estabeleceu-se uma relação entre a teoria e a prática, esta analisada via
discursos instituídos dos atores sociais envolvidos.
A metodologia baseou-se em uma pesquisa descritiva, que
de acordo com Rudio (2003), se interessa em descobrir e observar os
fenômenos, procurando descrevê-los e interpretá-los.
134
7 Sistema de Orientação e Mobilização Assistida com Responsabilidade Técnica.
PARTE ii
Capítulo 6
A experiência vivenciada
1. As primeiras tratativas
Quando da atuação como professor da rede pública estadual do
Rio Grande do Sul na Escola Estadual Chico Mendes no assentamento
Sepé Tiarajú, no ano de 2008, o primeiro autor deste artigo foi convidado
por um grupo de agricultores familiares dos Assentamentos Nova
Santiago (conhecido como Santa Rita), Sepé Tiarajú, 14 de Julho e
Nova Esperança no município de Capão do Cipó, para uma reunião. O
objetivo deste encontro era para contribuir na busca de alternativas que
possibilitassem viabilizar novas fontes de renda para estes agricultores
familiares que se encontravam com problemas financeiros, oriundos da
quebra de safra da soja, a qual era produzida em monocultura.
Com a presença de cerca de oitenta agricultores dos quatro
assentamentos foram discutidos várias possibilidades, sendo que entre as
quais as duas que mais receberam a aceitação foram: a produção de canade-açúcar para ser comercializada na usina de produção de álcool que
se localiza no município de Porto Xavier; e a produção e transformação
da mandioca com a possibilidade de produzir a farinha de mandioca,
comercializar a mandioca pré-cozida e embalada a vácuo. Esta segunda
hipótese foi muito bem aceita pelos agricultores familiares assentados.
FIGURA 1 – REUNIÃO COM PRODUTORES
Fonte: Arquivo pessoal de Vilson Santos.
135
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Nascia assim, a ideia da produção em escala comercial de
mandioca nesta região, que já de início apresentava alguns desafios, como
a distância dos centros consumidores já que não se podia contar com
o mercado local: o município possuía na época 3.180 habitantes sendo
estes distribuídos entre 428 habitantes na cidade e 2.752 habitantes no
rural8, logo o mercado consumidor seria incipiente para o projeto que se
buscava. O segundo desafio era como envolver os diferentes seguimentos
de agricultores familiares do município e da região (agricultores
familiares assentados e agricultores tradicionais9); o terceiro desafio
era como superar as distâncias dos centros consumidores, uma vez que
o município de Santiago fica distante a cerca de 50 Km, o município
de Santa Maria (sede regional de redes de supermercados), cerca de
200 Km, e o município de Santo Ângelo, a uma distância de 200Km.
Isto evidenciava uma necessidade de um investimento em logística de
transporte, considerando as exigências sanitárias.
Na busca de superar estes obstáculos foi sugerido pelo Prof. Vilson
F. dos Santos a criação de uma comissão permanente para coordenação
do projeto, sendo que este passou a atuar como mediador do processo
de animação social, considerando-se a necessidade de estimular os
agricultores a não desistir diante das dificuldades surgidas e a moderação
diante dos conflitos existentes no processo de organização. Montada esta
comissão ela passa a propor as discussões que resultou na promoção de
muitas reuniões e a apresentação de propostas para superar as duvidas
que fossem surgindo ao longo do processo, entre as quais estariam:
como produzir, como qualificar o produtor, como adquirir o maquinário
adequado, quais as variedades apropriadas ao tipo de solo local, quais
técnicas a serem utilizadas, formas de comercialização, armazenamento
na entre safra, escoamento da produção. Na seqüência, a comissão
permanente aponta ser necessário para que o projeto tenha seu início
dois pontos básicos:
136
8 Grande parte dos habitantes do município direta ou indiretamente está envolvida com a agricultura, tendo acesso
aos alimentos produzidos localmente.
9 Entende-se aqui os agricultores familiares da região que não são assentados da reforma agrária.
PARTE ii
Capítulo 6
a) O primeiro seria qualificar os produtores que iriam se
envolver no processo inicial, sendo que a idéia era de que estes deveriam,
posteriormente, realizar a qualificação dos demais produtores que
desejassem participar. Foi então contatado o SENAR de Santiago, o
qual prontamente atendeu a solicitação de envio de instrutor para
ministrar o curso que foi realizado na propriedade do agricultor Claudio
no assentamento Nova Esperança. O curso envolveu 40 h realizado
durante uma semana, no mês de janeiro de 2009, no qual participaram
27 agricultores, onde se debateram as técnicas básicas de produção de
mandioca.
b) O segundo ponto seria a escolha de variedades que mais se
adaptassem a região, já que tecnicamente esta região não é considerada
própria para este tipo de cultivo. Sendo então buscado o contato com o
Instituto Federal Farroupilha - IFF de São Vicente do Sul, onde era sabido
haver uma pesquisa de campo sobre variedades de mandioca para esta
região. Foram disponibilizados pelo Departamento de Extensão Rural
do IFF, com auxílio da COPTEC10, 21 variedades de mandioca, as quais
foram plantadas de forma experimental na propriedade do agricultor
Claudio (Figura 02), onde passaram a ser observadas pelos agricultores e
por técnicos da COPTEC.
Após este tempo e com a distribuição para algumas famílias
de algumas varas para sementes das variedades que se julgaram mais
apropriadas, o projeto sofre uma estagnação, pois passou a ter forte
influência as dificuldades vivenciadas na comercialização dos primeiros
cultivos (não havia transporte, o produto era in natura e os produtores
não desejavam vender a varejo, além da exigência dos compradores de
entregas sistemáticas de produtos); neste período, somente o agricultor
Claudio levou em frente seu comércio, resumindo-se a venda de algumas
centenas de quilos do produto de forma in natura.
10 Cooperativa de Prestação de Serviços Técnicos.
137
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
FIGURA 2 – ÁREA EXPERIMENTAL DE MUDAS DE MANDIOCA
Fonte: Arquivo pessoal de Vilson Santos.
Após este período de estagnação, no ano de 2010 acontece uma
retomada deste processo a partir de ações de extensão do Grupo SOMAR/
UFSM11 em moinho colonial no Assentamento Santa Rita, onde acontece
o reencontro dos extensionistas com os agricultores organizados para
produção da mandioca, quando tem início novamente a discussão de
como retomar-se o projeto.
Neste contexto, marcaram-se então os primeiros encontros, os
quais foram muito promissores no sentido de uma nova estruturação
do trabalho com base na experiência anterior, desta vez contando com
mais apoio das autoridades locais, órgãos representativos dos agricultores
e empresas constituídas de extensão rural, e principalmente, com a
experiência dos integrantes da equipe SOMAR/INCRA/UFSM12. Assim,
tomou corpo a nova proposta que resultaria em um projeto de uma
unidade de beneficiamento de mandioca.
2. A Retomada do Projeto
Com o reinício das discussões da nova proposta a ser
implantada, definiu-se que seriam necessárias algumas ações, sendo estas
necessariamente interligadas entre si:
a) A primeira parte seria a constituição de uma associação de
produtores assentados, o que demandou várias reuniões para construção
138
11 Projeto coordenado pelo segundo autor.
12 Contando com arquiteto, administrador, técnicos na área de tecnologia de alimentos e em gestão ambiental,
além de extensionistas rurais (onde se inserem os autores deste artigo).
PARTE ii
Capítulo 6
de estatuto, o qual versa sobre a relação entre os associados;
b) A assistência técnica a cargo da COPTEC e com apoio de
extensionistas da UFSM, deveria estruturar a produção (área a ser
plantadas, variedades, gestão e encaminhamento da produção) e os
projetos para aquisição de maquinário destinado ao preparo do solo e
coleta da matéria prima, recursos estes que deveriam ser captados nas
esferas administrativas (Federal, Estadual e Municipal), além de emendas
parlamentares de políticos ligados à região;
c) Caberia à equipe SOMAR a elaboração de projeto da unidade
de beneficiamento, o qual exigiu varias reuniões para discussão dos
muitos aspectos envolvidos, como a escala de produção pretendida, tipos
de produtos a serem produzidos e quais os subprodutos que poderiam
ser gerados e que possuem possibilidade de encadeamento com outras
atividades produtivas locais, como a produção leiteira.
3. O Projeto Elaborado
Com base na construção coletiva, foi elaborado um plano de
implantação da unidade de processamento de mandioca, envolvendo um
conjunto de ações necessárias para que seus objetivos fossem alcançados,
as quais deveriam ser coordenadas e fiscalizadas pelo grupo gestor do
projeto (constituído por agricultores assentados e as instituições de apoio:
Prefeitura Municipal, COPTEC, NEPALS-UFSM). Destacam-se aqui os
principais aspectos a serem contemplados:
a) O cadastramento dos produtores – Coube ao grupo gestor
cadastrar os agricultores que desejavam participar do plano de produção
da mandioca; neste cadastro estava explicito a área a ser plantada de cada
um dos agricultores; desta forma, obteve-se a estimativa de área plantada
e, por consequência, a produção pretendida;
b) A produção – O calculo da produção foi realizado com base no
numero de produtores inscritos, sendo 21 produtores, onde onze destes
plantariam cerca de meio hectare, oito plantariam um hectare, e dois
gostariam de plantar cerca de dois hectares. Assim, em primeiro plano
teríamos uma área de produção inicial estimada em 17,5 hectares que
139
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
140
com uma media produtiva nesta região resultaria em uma estimativa de
210 toneladas de mandioca in natura, nesta fase inicial. Ficou também
acertado que os demais produtores que poderiam a vir a se somar neste
contexto produtivo, seriam inscritos para as próximas safras, uma vez
que era necessário planejar a venda do produto;
c) Entretanto, o cálculo final debatido com o grupo gestor era
que a meta final seria de atingir 30 ha de mandioca, considerando 12
ton\ha de produtividade, teríamos 360 ton\ano; se considerarmos que a
mandioca seria processada por oito meses, visando manter a qualidade
da matéria-prima, teríamos 45 ton\mês; se estimarmos uma venda in
natura de 15 ton\mês, teremos que processar 30 ton\mês; trabalhando
22 dias\mês, teremos 1360 Kg\dia; a instalação de beneficiamento teria
que comportar este volume, o que foi utilizado como critério para seu
dimensionamento. E para descascar toda esta quantidade foi constatada
a necessidade de mecanizar tal atividade;
d) A assistência técnica – tendo por base que a assistência técnica
nestes assentamentos rurais estava a cargo da COPTEC, por força
de edital de contratação pelo INCRA, a mesma passaria a ser o vetor
principal de assistência técnica aos agricultores assentados, mas contaria
com apoio de extensionistas da Secretaria Municipal de Agricultura e da
Universidade Federal de Santa Maria, através do Grupo NEPALS/UFSM
(principalmente na área de gestão do empreendimento e na viabilização
de parcerias interinstitucionais);
e) Em relação à unidade de beneficiamento, a equipe SOMAR em
discussão com grupo gestor resolveu aproveitar a significativa quantidade
de resíduos representada pelas cascas, sendo projetada a possibilidade
de produção de adubo orgânico via compostagem a ser utilizado para
recuperação do solo. Pensou-se utilizar as folhas e ramas para produção
de ração, vinculando-a aos resíduos do processamento de farinha no
moinho colonial existente no assentamento Nova Santiago, o qual estava
previsto para entrar em operação em 2012;
f) Para que nesta primeira parte do processo, a implantação da
produção de mandioca tenha sucesso eram necessários equipamentos e
PARTE ii
Capítulo 6
maquinas que permitissem aos agricultores um cultivo adequado, com
base em suas experiências, formação e conhecimento. Assim foi projetado
que deveria ser disponibilizado um trator equipado para o preparo do
solo com equipamento adequado ao plantio (poderia ser viabilizado pelo
poder público municipal, pois este estava recebendo recursos federais
para aquisição de patrulha agrícola); este mesmo trator deveria ser
equipado com reboque, pois ele faria inicialmente a preparação do solo
e o transporte de insumos se necessário, além do produto da lavoura dos
produtores para a agroindústria rural de transformação. Houve também
acalorada discussão em torno de uma maquina artesanal de arrancar
mandioca. Ressalta-se que este conjunto de equipamentos deveriam ser
adquirido com verbas de emendas parlamentares ou captado junto aos
Ministérios do Desenvolvimento Agrário e Desenvolvimento Social,
além de recursos advindos do governo do Estado.
A obra física da agroindústria rural projetada é constituída da
construção de instalações para processamento da produção em uma área
de 228 m², incluindo cercamento e tratamento de efluentes (Figura 03).
O projeto da unidade de beneficiamento foi elaborado em
duas partes conexas, mas potencialmente separadas, viabilizando sua
implantação em partes: a unidade de processamento da mandioca e a
unidade de preparação de ração.
Para a realização do projeto foi necessário uma série de
negociações entre os agricultores, pois de fato eram representantes
de quatro assentamentos rurais, onde todos tinham o desejo de sediar
a agroindústria rural. Decidiu-se, entretanto, que iriam prevalecer os
princípios técnicos para a localização e, assim, técnicos da equipe SOMAR/
UFSM, COPTEC e da Secretaria Municipal de Agricultura, juntamente
com o grupo gestor chegaram a um acordo de que a localização deveria
ser em local de fácil acesso para o escoamento da produção, próxima a
redes de água e energia elétrica, visando o melhor funcionamento do
empreendimento.
141
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
FIGURA 3 – MAQUETE ELETRÔNICA DA AGROINDÚSTRIA A SER INSTALADA
Fonte: Grupo SOMAR/UFSM.
Foi escolhida uma área no assentamento Nova Esperança,
próxima a rodovia asfaltada que dá acesso a sede do município (distância
de 350 m), mas para tanto era necessária a cedência do terreno, ainda de
posse do Governo do Estado (trata-se de assentamento estadual), o que foi
feito prontamente por um agricultor assentado com a anuência do órgão
competente (Departamento de Desenvolvimento Agrário da Secretaria
Estadual de Desenvolvimento Rural). Foi destinado um hectare de terra
(10.000 m²) para a instalação da agroindústria.
O processamento da mandioca para sua comercialização embalada
a vácuo e sua transformação em subprodutos, torna-se uma necessidade
diante da dificuldade de comercialização hoje realizada in natura e diante
do volume produzido nos quatro assentamentos do município de Capão
do Cipó. A implantação de uma unidade agroindustrial significava uma
importante fonte de geração de renda, agregando valor a mandioca e seus
subprodutos.
Este processo objetivava ofertar ao mercado três produtos
distintos: mandioca descascada e embalada a vácuo em porções de
consumo para duas pessoas, a mandioca descascada e embalada in
natura, e a mandioca in natura lavada com casca; e ainda, em um
segundo momento, projeta-se a produção de farinha de mandioca, o que
142
PARTE ii
Capítulo 6
depende de aumento na produção e de aquisição de novos equipamentos,
estes já constantes no projeto elaborado. Para viabilizar esta estratégia
de comercialização, estão previstos equipamentos para preservação do
produto (freezers e câmaras frias), além de embaladoras a vácuo.
O grande desafio percebido foi a gestão do processo, o qual
necessita ser um aprendizado continuo e que deverá basear-se na
cooperação e na decisão coletiva. Neste ponto, trona-se fundamental
a assessoria da universidade e demais instituições envolvidas no
planejamento e gestão do empreendimento. Decidiu-se coletivamente
que ao final de cada ano na assembleia da associação seriam feitos os
ajustes de compra e venda para o próximo período, ou seja, depois de
efetivados todos os pagamentos das despesas de operação, transformação
e venda do produto transformado se veria sobre o recurso restante, então
decidindo-se sobre novos investimentos ou distribuição de dividendos
aos produtores ou, ainda, o financiamento da próxima safra.
Debateu-se também a necessidade de projetar-se, futuramente,
uma estrutura adequada para comercialização, sendo previsto a aquisição
de um caminhão frigorífico para fazer o escoamento da produção até os
centros consumidores, sendo que estes recursos viriam através de projetos
específicos para captação de recursos públicos federais e estaduais.
Considerações Finais
Esta experiência se constitui em um trabalho impar na região
em foco e muito tem motivado os produtores assentados e agricultores
familiares tradicionais em apostar na viabilidade do cultivo da mandioca
e sua transformação. Tal experiência tem grande importância na
medida em que passou a figurar como uma importante ferramenta no
desenvolvimento rural deste espaço geográfico e uma ótima alternativa
de renda para estes agricultores, aumentando assim a auto-estima e a
participação dos produtores em processos coletivos de cooperação.
No entanto, as dificuldades de liberação de recursos federais
somadas as deficiências do poder público local, sejam de ordem
administrativa ou de qualificação técnica, bem como, as divergências
143
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
políticas presentes nos espaços políticos locais, impediu que a unidade
de beneficiamento pudesse ter sido concretizada até o momento. Tal
frustração implicou em um desestímulo para que os agricultores se
organizassem em torno da produção da mandioca, apesar de ainda
permanecerem esperançosos na retomada do projeto. No momento,
várias iniciativas acontecem no sentido de viabilizar os recursos para
implantação do projeto, se não em sua totalidade, pelo menos em parte.
A universidade agora em 2014 retoma junto ao poder
público municipal e a organização dos assentados, a discussão de
encaminhamentos que viabilizem a execução do projeto. E para 2015,
espera-se, passado o ano eleitoral, ações concretas neste sentido.
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144
PARTE ii
Capítulo 6
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UBA, p. 1-14. Nov., 2011.
145
CAPÍTULO 7
Produção de farinha de mandioca e de
farinha de tapioca no estado do pará
como oportunidades de negócios para
empreendedores e agricultores na amazônia
Alves2
Moisés de Souza Modesto Júnior1 e Raimundo Nonato Brabo
Introdução
Pessoas em todo o mundo, principalmente aquelas que possuem
perfil empreendedor, possuem o sonho de abrir seu próprio negócio e
conduzir um empreendimento lucrativo. Em 2013, foram constituídas no
Brasil 471.915 empresas (DEPARTAMENTO..., 2013), portanto, estimase que quase um milhão de brasileiros, cerca de 1 a cada 212 pessoas,
tenham realizado seu sonho pela primeira vez ou resolveu abrir outra
empresa em 2013, sem contar os microempreendedores individuais. Essa
estatística contabiliza predominantemente os empreendimentos urbanos
que estão regularizados, ficando de fora milhares de empreendedores
rurais que trabalham na informalidade.
1 Eng.-agrôn. Especialista em Marketing e Agronegócio. Analista da Embrapa Amazônia Oriental. Tv. Dr. Enéas
Pinheiro, s/n, Caixa Postal 48, CEP 66.095-100, Belém, PA. E-mail: [email protected].
2 Eng.-agrôn. M.Sc. em Agronomia. Pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental. E-mail: raimundo.brabo-alves@
embrapa.br.
147
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
148
Empreender e montar o próprio negócio sem planejamento
aumenta os riscos de não sobreviver no mercado. Para quem quer iniciar
uma empresa com maiores condições de êxito, aconselha-se pesquisar
por informações e dados que possam subsidiar sua estruturação, desde o
conhecimento do mercado e suas demandas, passando pelo levantamento
de recursos para viabilização do negócio, escolha do melhor local para
instalação da empresa, entre outros. É preciso investir em planejamento
e em tecnologias de processos para oferta de produtos e serviços
competitivos.
A produção de farinha de mandioca e de farinha de tapioca
apresentam-se com excelente potencial para constituição de pequenos
negócios rurais na Amazônia, porém, ainda são processadas por pequenos
empreendimentos na informalidade, em ambientes denominados no
Estado do Pará de “Casas de Farinha”, que são estruturas produtivas que
processam pelo método artesanal as raízes de mandioca.
De acordo com o Censo Agropecuário Brasileiro de 2006, o Estado
do Pará conta com 67.456 estabelecimentos agropecuários que produzem
mandioca, o equivalente a apenas 8,1% dos estabelecimentos existentes
no Brasil (IBGE, 2006), um percentual muito baixo considerando que
há 22 anos (1992 a 2013) o Pará vem se destacando no cenário brasileiro
como o maior produtor de mandioca do Brasil (IBGE, 2013), com uma
área cultivada de 298.190 hectares e produção de 4.681.102 de toneladas
de raiz em 2013.
Torna-se importante o estudo da viabilidade de farinheiras para
produção de farinha de mesa e de farinha de tapioca onde um número
expressivo de famílias do meio rural paraense vive da produção e do
processamento da farinha e de outros produtos. No caso específico da
farinha de tapioca, sua produção ocorre desde 1940 no município de Santa
Isabel do Pará (CEREDA & VILPOUX, 2003). Em sua maioria, tratamse de produtos com processamento simples e baixo nível tecnológico,
mas que apresentam um potencial de agregação de valor altamente
significativo.
Não é tarefa fácil estimar a rentabilidade de produção artesanal
PARTE ii
Capítulo 7
proveniente da agricultura familiar, sendo difícil afirmar com qualquer
grau de precisão se existe viabilidade econômica dos empreendimentos,
incluindo a remuneração da mão de obra familiar. Portanto, diante deste
ambiente de grande incerteza, tornam-se relevantes estudos econômicos
que resultem em racionalização das atividades para maximizar a
produtividade e minimizar os custos de produção. Estudos de análises
econômica do cultivo da mandioca e de agroindústrias familiares para
determinação da receita bruta, margem bruta e ponto de equilíbrio têm
sido realizados no Estado da Paraíba por Souza et al., (2013) e no Pará
por Alves e Modesto Júnior (2012) e Modesto Júnior e Alves (2013).
O presente trabalho objetiva analisar a rentabilidade de duas
pequenas farinheiras de propriedade individual no Estado do Pará, que
produzem farinha de mesa e farinha de tapioca. Mais precisamente visase identificar os fluxogramas de produção, as receitas operacionais, ponto
de equilíbrio, margem de contribuição, lucratividade e taxa de retorno
dos empreendimentos.
Para isso, o artigo está dividido em seções: a metodologia, por
meio da qual se auferiram os objetivos propostos; os relatos sobre a
produção de farinha de mesa e de tapioca com os resultados obtidos;
finalizando com as considerações finais.
Materiais e Métodos
No empreendimento de produção de farinha de mesa a pesquisa
foi realizada em três etapas: em setembro de 2011, março de 2013 e
junho de 2014. No empreendimento com farinha de tapioca, a pesquisa
também foi realizada em três etapas (setembro de 2010, março de 2013 e
junho de 2014), porém, a avaliação ocorreu quando a farinheira utilizava
processo inteiramente manual em todas as etapas em 2010 (ALVES
& MODESTO JÚNIOR, 2012) e após a introdução no processo de
produção das seguintes inovações: uma cevadeira elétrica para trituração
de massa; uma betoneira elétrica de aço inox para o encaroçamento:
uma plataforma elétrica com peneiras vibratórias para uniformização
dos caroços de tapioca: um ventilador para alimentar a fornalha na
149
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
150
substituição de queima de madeira por semente de açaí; e um forno
mecânico de espocamento do caroço em farinha de tapioca.
O empreendimento de produção de farinha de mesa é
representativo do processo de fabricação artesanal na região Nordeste
Paraense, localizada no Município de Castanhal e a agroindústria de
produção de farinha de tapioca está localizada no Distrito de Americano,
no Município de Santa Isabel do Pará, na Mesorregião Metropolitana de
Belém, cuja unidade produtiva é representativa de mais de 140 existentes
no arranjo produtivo. Estas farinheiras são de propriedade familiar e de
uso individual.
Foram obtidas informações por meio de entrevista pessoal com
os proprietários dos empreendimentos sobre o fluxograma de produção
com as inovações introduzidas no período, os custos de produção de
farinha de mesa e de farinha de tapioca e o preço de comercialização,
características dos empreendimentos, atividade econômica do
proprietário, custos de produção de farinha de mesa, tipo de mão de obra
utilizada, cujos dados foram tratados com recursos de planilha Excel.
Observações visuais e anotações do funcionamento dos equipamentos
introduzidos complementaram as informações.
Os resultados médios dos custos de produção e preço dos
produtos foram submetidos a uma análise financeira durante o
período estudado para determinação das Receitas Operacionais que
correspondem às operações normais de vendas da produção; Ponto de
Equilíbrio, obtido pela razão entre o custo total e o preço de venda do
saco de 60 kg produzidos, que é o momento quando despesas e lucros se
igualam, ou seja, quando o produto deixa de custar e passa a dar lucro;
Margem de Contribuição, gerada pela diferença entre receita operacional
e o custo variável, dividindo-se pela receita operacional em percentagem,
que é a quantia que irá garantir a cobertura do custo fixo e do lucro,
após a empresa ter atingido o ponto de equilíbrio. Lucratividade indica
o percentual de ganho obtido sobre as vendas realizadas e Taxa Interna
de Retorno (TIR) valor que aplicado a um fluxo de caixa, faz com que
os valores das despesas, trazidos ao valor presente, seja igual aos valores
PARTE ii
Capítulo 7
dos retornos dos investimentos, também trazidos ao valor presente e
foi obtida pela razão entre o lucro líquido e o investimento inicial em
percentagem. A TIR expressa em meses significa o tempo necessário para
retorno do investimento inicial, obtido pela divisão entre investimento
inicial e o lucro líquido (MARTINS, 2003).
A produção da farinha de mandioca no Pará
A mandioca é uma cultura pré-colombiana. Quando os
colonizadores portugueses chegaram ao Brasil já encontraram os povos
americanos consumindo a mandioca e a confundiram com o inhame,
tubérculo já então conhecido no continente europeu. O cultivo da
mandioca tem sua origem da cultura indígena, tanto que, o seu consumo
no Pará é mais diversificado que nas demais regiões do Brasil, pois envolve
consumo de farinha de mesa, farinha de tapioca, tucupi, folha, goma
(amido com 45% de umidade) e in natura após cozimento. Somente o
consumo per capita de farinha de mesa na região metropolitana de Belém
é de 34 kg, sendo o mais alto do Brasil e 2,35 vezes maior que o consumo
da região metropolitana de Salvador, que é o segundo maior consumidor
deste produto no país (CARDOSO et al., 2001).
A mandioca foi tão importante para a colonização do país que
sem ela estariam inviabilizadas as grandes navegações, considerando que
a farinha de mandioca passou a ser a fonte alimentar de carboidratos nas
caravelas. Nas Entradas e Bandeiras rumo à conquista do sertão brasileiro,
juntamente com a carne de boi, viabilizou a dieta dos exploradores com
a dupla “carne seca e farinha”, tanto que ficou conhecida como “farinha
velha de guerra”. No Pará é considerada uma cultura tão abençoada
que mesmo sendo cultivada em diferentes níveis tecnológicos, ainda
assim se constitui na mais importante cultura nacional, do ponto de
vista da segurança alimentar. Tanto que para os agricultores familiares
descapitalizados, a última cultura que eles deixam de plantar é a
mandioca. Na pior das condições de cultivo, ainda assim, produz no
mínimo uma tonelada de proteínas e duas toneladas de carboidratos
(ALVES & MODESTO JÚNIOR, 2013).
151
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
O Estado do Pará lidera o ranking nacional de produção de raiz
de mandioca, com participação de 22,05%, seguido pelo Paraná com
18,21%, a Bahia com 8,72%, o Maranhão com 6,24% e Rio Grande do Sul
com 5,49%. Esses estados somam 60,73% do volume produzido pelo País,
em 2013 (IBGE, 2013). É a cultura de maior importância econômica,
social e cultural, chegando a ocupar duas pessoas durante o ano para cada
três hectares cultivados, com estimativa de geração de 200 mil empregos
diretos no meio rural no Estado do Pará.
Praticamente toda a produção de raízes de mandioca do Pará é
consumida na forma tradicional de farinha de mesa, representando assim
um dos principais componentes da dieta alimentar da população. A
produção de farinha ocorre nos “retiros ou casas de farinha” de agricultores
familiares, com infraestrutura rústica, processo artesanal de produção
e na informalidade. Destacam-se dois grupos de farinha classificados
conforme o processo de fabricação: farinha de mandioca d’água e farinha
de mandioca seca, divididas em diferentes granulometrias (fina, média
e grossa). Segundo Chisté e Cohen (2006) a principal diferença entre as
farinhas d’água (farinha de puba) e seca é a existência de uma etapa prévia
de fermentação na produção da farinha d’água, por aproximadamente
quatro dias.
152
O caso de uma farinheira do Nordeste Paraense
A farinheira situada no município de Castanhal possui estrutura
de porte médio, que utiliza processo artesanal de fabricação de farinha
seca (em maior quantidade) e farinha d´água, com instalações rústicas
(Figura 1), entretanto com bom nível de organização das etapas de
produção (Figura 2). A mão de obra é contratada e composta por 12
pessoas, sendo 8 descascadores, 1 lavador que também conduz a raiz
no triturador mecânico, 1 prensador que também executa a etapa de
esfarelamento da massa e 2 torradores.
Em prospecções feitas pelo Pará observou-se a existência de
retiros de farinha com apenas um forno e processo totalmente manual e
artesanal, com capacidade de produção de 3 sacos de farinha/trabalhador/
PARTE ii
Capítulo 7
semana, totalizando 144 sacos de 60 kg de farinha por trabalhador/
ano. Na farinheira pesquisada, representativa do sistema semiartesanal,
observou-se que a capacidade de produção foi de 280 sacos/trabalhador/
ano, cuja diferença está relacionada à escala de produção devido à
introdução de equipamentos mecanizados em algumas etapas de
produção da farinha. Se considerarmos um valor médio de produção
anual dos dois sistemas de fabricação na ordem de 212 sacos/trabalhador
é possível estimar a ocupação de 92.000 pessoas no Estado do Pará,
trabalhando nas agroindústrias e “casas de farinha”, considerando que
a produção de 4.681.102 t de raiz de mandioca foi transformada em
1.170.276 t de farinha no Estado do Pará, em 2013 (IBGE, 2013).
FIGURA 1 – FARINHEIRA DE PORTE MÉDIO PRODUTORA DE FARINHA SECA E
FARINHA D´ÁGUA NO MUNICÍPIO DE CASTANHAL, PA, 2014
Foto: Moisés Modesto.
153
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
FIGURA 2 – FLUXOGRAMAS DE PROCESSAMENTO DA FARINHA DE
MANDIOCA SECA E FARINHA DE MANDIOCA D´ÁGUA NO MUNICÍPIO DE
CASTANHAL, PA, 2014
Recepção de Raiz
de Mandioca
O manual
Descascamento
Imersão em tanque com água
por 15 minutos para lavagem
O
Imersão da raiz com casca em
água, ao ar livre em igarapé
com água corrente
Trituração mecânica das raízes
Trituração mecânica das raízes
Prensagem manual da massa
triturada
Prensagem da massa triturada
deixando 30% de umidade
Esfarelamento mecânico
(desintegrar a massa)
Esfarelamento mecânico
(desintegrar a massa)
Torragem manual
Torragem manual
Peneiraento manual
(grossa, media e fina)
Peneiraento manual
(grossa, media e fina)
Embalagem (saco de 60 kg)
24 horas
Embalagem (saco de 60 kg)
24 horas
Farinha de mandioca
seca pronta para
consumo
Fonte: dados da pesquisa.
154
Recepção de Raiz
de Mandioca
Farinha de mandioca
d´água pronta para
consumo
PARTE ii
Capítulo 7
O investimento para montagem do empreendimento foi estimado
em R$20.580,00 referente à construção de um galpão em madeira com
cobertura de telha de amianto e os seguintes equipamentos: um tanque
em alvenaria para lavagem da raiz; um triturador de raiz de mandioca
com motor a diesel de 90 HP; uma prensa manual para espremer a
massa (Figura 3); um triturador elétrico para esfarelar a massa prensada;
dois fornos para torragem manual da farinha (Figura 4); três cochos
de madeira de lei para recebimento da farinha torrada, peneiras e uma
balança com capacidade de 150 kg. Identificou-se que a capacidade de
produção de farinha de mesa foi constante no período estudado, com
média de 280 sacos de 60 kg por mês. Toda a matéria-prima necessária
para a produção da farinha na ordem de 67,2 toneladas/mês de raiz foi
adquirida pelo empreendimento no valor de R$160,00 em setembro de
2011, R$ 750,00 em março de 2013 e R$ 165,00 em junho de 2014.
FIGURA 3 – PRENSA MANUAL UTILIZADA PARA ESPREMER A MASSA DA RAIZ
DE MANDIOCA, 2014
Foto: Moisés Modesto.
FIGURA 4 – FORNOS DE TORRAGEM MANUAL DA FARINHA DE MESA, 2014
Foto: Moisés Modesto.
155
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
156
O produto final dessa agroindústria segue padrão de consumo
e regulamentação nacional, sendo predominante a farinha seca dos
subgrupos média e fina, classe amarela e tipo 1. A comercialização é feita
de modo coletivo com mais agricultores, que entregam o produto a um
produtor de farinha de mesa com maior capacidade de produção, que se
incumbe de colocar no mercado o produto embalado em pacotes de 1 kg
com código de barra e logomarca.
Os custos operacionais médios mensais da agroindústria de
farinha de mesa nos meses de setembro de 2011, março de 2013 e junho
de 2014 são descritos na Tabela 1. Houve uma breve redução nos custos
fixos, devido à redução da retirada dos sócios (R$ 1.000,00/mês em 2011
e 2013 para R$ 600,00 em junho de 2014), mas as despesas com água, luz,
manutenção e depreciação de equipamentos (R$ 371,50) permaneceram
constantes. No período estudado houve um aumento no custo da mão de
obra direta de 79,07% contra um fator de reajuste de 17,04% do salário,
segundo o Índice Nacional de Preços do Consumidor (IBGE, 2014),
índice este muito utilizado pelo Governo Federal como parâmetro para o
reajuste de salários em negociações trabalhistas.
Em setembro de 2011, o saco de 60 kg de farinha de mandioca
era comercializado ao valor de R$ 66,00, em março de 2013 subiu para
R$ 250,00 e em junho de 2014 caiu acentuadamente para R$ 85,00.
Comparando-se 2011 com 2013 a farinheira teve um lucro líquido
fantástico saindo de R$ 475,65 para R$ 5.848,68. Porém, com a queda
no preço da farinha em junho de 2014, o lucro ficou na ordem de R$
1.628,55. A margem de contribuição aumentou de R$ 1.900,00 em 2011
para R$ 10.335,00 em março de 2013 e se estabilizou em R$ 2.781,00, em
junho de 2014, que representa quanto a empresa dispõe para pagar as
despesas fixas e gerar o lucro líquido.
O elevado lucro líquido obtido pela farinheira em 2013 ocorreu
devido à elevação atípica do preço de mercado da farinha de mandioca
que se iniciou em 2012. Nesse ano a farinha de mandioca foi o produto
da cesta básica que mais elevou seu preço, mais de 90% de aumento
em todo o país (GUNDALINI & SAKATE, 2012), tornando a cesta
PARTE ii
Capítulo 7
básica local a mais cara de todos os estados da federação, considerando
que a farinha é o produto da alimentação básica mais consumido pelo
paraense. De acordo com o Departamento Intersindical de Estatísticas
e Estudos Socioeconômicos (Dieese/PA), o quilo da farinha nas feiras
e supermercados de Belém no período de março 2012 a março de 2013
aumentou de R$ 3,09 para R$ 7,41, um aumento de 139,81%, enquanto a
inflação para o mesmo período ficou em 7,22% (INPC/IBGE, 2014).
Considerando os preços de venda do saco da farinha no período
estudado, o ponto de equilíbrio em setembro de 2011 era de 279,27. Em
março de 2013 caiu para 247,03 ficando estável em junho de 2014 com
267,18, que corresponde à quantidade mínima de sacos de farinha que o
empreendedor deve comercializar por mês para cobrir as despesas fixas
e variáveis. Neste período o retorno do investimento caiu de 72,25 meses
para apenas 6,48 meses, se estabilizando em 23,45 meses, considerando
as taxas de 1,38%,15,43% e 4,27%, respectivamente para os três períodos
estudados.
A redução de mão-de-obra no campo, as obrigações trabalhistas
e encargos sociais, a concorrência com os programas sociais do governo,
a mudança dos agricultores para outras atividades mais rentáveis, a
precária infraestrutura das instalações da grande maioria das casas de
farinha que, associado ao processo de fabricação artesanal, de baixa
escala e baixo rendimento de produção, forçaram a elevação do custo
de produção e influenciaram na redução da oferta de farinha de mesa
e aumento de preço no mercado paraense. Outro fator que pode ter
interferido na elevação do preço da farinha foi o aumento da demanda
pelo produto ocasionada pela duplicação da população urbana paraense,
que, de acordo com os Censos de 1991 e 2010, passou de 2,61 milhões de
habitantes, em 1991, para 5,19 milhões de habitantes, em 2010, enquanto
que a população rural reduziu de 2,57 milhões de habitantes para 2,39
milhões de habitantes, respectivamente (IBGE, 2010). Isso indica que a
demanda por alimentos duplicou e que a mesma população no campo
precisa dobrar a produção para sustentar a população urbana.
157
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
TABELA 1 – RESULTADOS OPERACIONAIS DA AGROINDÚSTRIA DE FARINHA
DE MANDIOCA EM SETEMBRO DE 2011 E MARÇO DE 2013 E JUNHO DE 2014
Discriminação
Setembro/2011
Junho/2014
R$ 1,00
%
mês
R$ 1,00
%
mês
R$ 1,00
%
mês
1. INVESTIMENTO
INICIAL
34.367,85
-
-
37.896,65
-
-
38.182,65
-
-
1.1. Equipamentos e
construção civil
20.580,00
-
-
20.580,00
-
-
20.580,00
-
-
1.2. Outras despesas
4.400,00
-
-
4.400,00
-
-
4.400,00
-
-
1.3. Reserva técnica
3.124,35
-
-
3.445,15
-
-
3.471,15
-
-
2. CUSTOS
18.431,50
-
-
61.756,50
-
-
22.710,50
-
-
2.1. Custos fixos
1.371,50
-
-
1.371,50
-
-
971,50
-
-
2.2. Custos variáveis
17.060,00
-
-
60.385,00
-
-
21.739,00
-
-
2.2.1. Mão de obra
direta
4.892,00
-
-
8.100,00
-
-
8.760,00
-
-
2.2.2. Materiais
diretos
12.168,00
-
-
52.285,00
-
-
12.979,00
-
-
3. RECEITA
OPERACIONAL
18.960,00
-
-
70.720,00
-
-
24.520,00
-
-
3.1. Venda de 280
sacos de farinha
18.480,00
-
-
70.000,00
-
-
23.800,00
3.2. Venda de 240
sacos de raspa
de raiz
480,00
-
-
720,00
-
-
720,00
-
-
4. LUCRO
OPERACIONAL
528,50
-
-
8.963,50
-
-
1.809,50
-
-
4.1. Contribuição
social (10% do
item 4)
52,85
-
-
896,35
-
-
180,95
-
-
5. SUB-TOTAL
475,65
-
-
8.067,15
-
-
1.628,55
-
-
5.1. Imposto de
renda
0,00
-
-
2.218,47
-
-
0,0
-
-
475,65
-
-
5.848,68
-
-
1.628,55
-
-
1.900,00
10,0
-
10.335,00
14,6
-
2.781,00
11,3
-
279,27
-
-
247,03
-
-
267,18
-
-
9. LUCRATIVIDADE
-
9,98
-
-
6,84
-
-
8,82
-
10. TAXA DE
RETORNO / PRAZO
DE RETORNO
-
1,38
72,2
-
15,4
6,5
-
4,27
23,4
6. LUCRO LÍQUIDO
7. MARGEM DE
CONTRIBUIÇÃO
8 PONTO DE
EQUILÍBRIO
(SACOS)
Fonte: dados da pesquisa.
158
Março/2013
-
PARTE ii
Capítulo 7
O desempenho financeiro dessa agroindústria pode melhorar
com aperfeiçoamentos nas etapas de descascamento, lavagem e torragem.
A substituição da torragem manual para a mecanizada, a ampliação dos
tanques de lavagem e melhoria nos fornos de torragem visando economia
de lenha podem melhorar o desempenho dos indicadores financeiros.
A produção da farinha de tapioca no Pará
A farinha de tapioca é um produto genuinamente paraense de
grande aplicação na culinária e bastante consumido com açaí, café e
como sorvete pela população, mas são raras as informações na literatura
a respeito desse produto (GUIMARÃES et al.. 1988).
É um produto obtido tendo a fécula (amido) como matéria
prima, considerada o subproduto mais nobre da mandioca, sendo
empregada desde a indústria de alimentos até a extração de petróleo
(FELIPE et al., 2013). A farinha de tapioca possui característica granular,
coloração branca alva, crocante, elevado teor de amido e baixo teor de
proteína, portanto constituindo-se em um alimento altamente calórico
(Figura 5). Segundo Cereda e Vilpoux (2003), a tecnologia de fabricação
de farinha de tapioca surgiu aproximadamente em 1940, no Distrito
de Americano, município de Santa Isabel do Pará, pelo produtor João
Miguel. Nesse local, havia 23 farinheiras em 1988, das quais apenas 4
produziam goma ou fécula úmida e 19 a farinha de tapioca. Atualmente,
estima-se que existem cerca de 140 fabriquetas de farinha de tapioca.
No município Mojuí dos Campos, recém emancipado na região do
Baixo Amazonas, existe um outro arranjo produtivo local de farinha de
tapioca. As farinheiras apresentam a autonomia de extração da fécula,
não dependendo do mercado do Estado do Paraná e no fluxograma de
fabricação não possui a fase do espocamento, atendendo uma exigência
do mercado local de uma farinha de grãos mais consistentes à mastigação.
159
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
FIGURA 5 – FARINHA DE TAPIOCA PRONTA PARA CONSUMO PRODUZIDA NO
DISTRITO DE AMERICANO, MUNICÍPIO DE SANTA ISABEL DO PARÁ, 2014
5
Foto: Moisés Modesto.
160
Em 2013 a produção nacional de fécula foi de 473,72 mil
toneladas, sendo o Paraná o principal produtor com 70% da produção
nacional. O Pará produziu apenas 1.500 toneladas de fécula, o que
corresponde a 0,3% da produção nacional (ALVES et al., 2014), mesmo
tendo uma capacidade instalada para processamento de 200 toneladas/
dia (FELIPE, 2012). Toda a fécula utilizada na produção de farinha de
tapioca no Distrito de Americano é importada do Estado do Paraná, que
detém 56% das fecularias e concentra 68% da capacidade instalada total
no país (GROXKO, 2011).
De acordo com o Centro de Estudos Avançados em Economia
Aplicada (Cepea-Esalq/USP), o setor atacadista seguiu como principal
comprador de fécula de mandioca em 2012 (25% das vendas totais),
acompanhado pelo setor de massa, biscoito e panificação (18,6 %), papel
e papelão (15,8%), frigoríficos (13,2%), varejistas (7,6%), gerais (5,6%),
outras fecularias (5,2%), indústria química (4,7%), setor têxtil (3,7%) e
exportação com apenas 0,6% (CEPEA, 2013).
O Pará, como maior produtor de mandioca, poderia atender ao
consumo da região norte e exportar possíveis excedentes de produção.
A capacidade instalada é praticamente da única fecularia industrial em
funcionamento com sede no município de Moju, que, por problemas
de logística de coleta de matéria prima (raiz de mandioca) oriunda de
PARTE ii
Capítulo 7
pequenos roçados de mandioca, tem operado sempre abaixo de 20% de
sua capacidade.
O caso de uma farinheira de tapioca do Nordeste Paraense
O empreendedor pertence ao gênero masculino, com 32 anos de
idade, escolaridade de nível fundamental incompleto e atua no ramo de
agroindústria de farinha de tapioca há 12 anos. Antes, era empregado de
serraria no município de Tailândia-PA e aprendeu a atual atividade por
meio de seus familiares e observando o processo de outras agroindústrias
da região. No início, contava com apoio de seus familiares e de mão de
obra contratada atuando na informalidade e no final de 2010 constituiu
microempresa com objetivo de efetuar compra direta da principal matériaprima (fécula) do Estado do Paraná, emissão de nota fiscal e regularização
perante o Ministério do Trabalho e Ministério da Previdência Social.
A farinheira é de instalações rústicas, de piso revestido com
cimento, cercado de grade de madeira de 2 m de altura, estrutura de
madeira roliça, cobertura de telha de concreto, sem divisórias e sem
forração. Essa observação também foi constatada por Ponte (2000) como
característica predominante nas farinheiras do Distrito de Americano.
Na Figura 4 observa-se o fluxograma de produção de farinha de tapioca
em 2010 com todas as etapas feitas por processo manual e o fluxograma
em 2013 com as inovações destacadas em negrito.
A literatura disponível sobre o processamento de farinha de
tapioca é escassa, porém relatos de (PONTE, 2000; ALVES & MODESTO
JÚNIOR, 2012; SILVA et al., 2013) indicam que o produto é fabricado
de forma artesanal e em baixa escala. Cereda e Vilpoux (2003) relatam
que os equipamentos utilizados na produção de farinha de tapioca não
são fabricados em linha, somente por encomenda. Porém constatase que alguns produtores fazem experimentação de adaptação de
máquinas e equipamentos, o que resulta em diferenças de instalações e
equipamentos de uma agroindústria para outra. Foi com esta concepção
que a agroindústria prospectada aperfeiçoou as etapas de encaroçamento
com utilização de betoneira de aço inox (Figura 6) e torragem da farinha
de tapioca em forno mecânico.
161
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
FIGURA 6 – FLUXOGRAMAS MANUAL E COM AS INOVAÇÕES DE FABRICAÇÃO
DE FARINHA DE TAPIOCA FEITA PELA AGROINDÚSTRIA FAMILIAR DO
DISTRITO DE AMERICANO, EM SANTA ISABEL DO PARÁ, 2013
Fluxograma em Setembro de 2010
FÉCULA
Fluxograma em 2013 com as inovações
FÉCULA
Hidratação – 48 horas
Hidratação – 48 horas
Gomificação – 4 horas
horas
Gomificação – 4 horas
horas
Enxugamento
24 horas no verão
7 dias no inverno
Enxugamento
24 horas no verão
7 dias no inverno
Peneiramento Manual
Peneira de Guarumã
Trituração da massa
em Cevadeira Elétrica
Encaroçamento Manual
Peneira de 3 mm
Encaroçamento em
Betoneira Elétrica
Escaldamento Manual
45 minutos
Peneiramento em
Plataforma Elétrica
Classificação
Escaldamento Manual
45 minutos
Descanso para esfriar
24 horas
Classificação
Torragem Manual
20 minutos
Descanso para esfriar
24 horas
Descanso para esfriar
10 minutos
Torragem em Forno
Mecânico
Peneiramento
retirada de impurezas
Peneiramento
retirada de impurezas
Ensacamento
FARINHA DE TAPIOCA
Peneiramento
retirada de impurezas
Ensacamento
FARINHA DE TAPIOCA
Fonte: Alves; Modesto Júnior (2012).
162
Fonte: Dados da pesquisa.
PARTE ii
Capítulo 7
Das mudanças que se configuraram como inovação tecnológica
descreve-se: a introdução de uma cevadeira elétrica (Figura 7) para
trituração da massa (goma), adaptação da betoneira elétrica de aço
inox (Figura 8), normalmente utilizada para bater massa de concreto,
obtendo sucesso no encaroçamento da massa, com a retirada das
aletas de turbilhonamento e peneiramento em plataforma elétrica,
substituindo as etapas manuais do processo que mais absorviam mão
de obra, o encaroçamento manual. A substituição da torragem manual
para espocamento da farinha pela mecanizada (Figura 9) também foi
importante na elevação da produtividade da farinheira.
FIGURA 7 – CEVADEIRA ELÉTRICA UTILIZADA PARA TRITURAÇÃO DA
MASSA (GOMA)
Foto: Moisés Modesto.
163
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
FIGURA 8 – BETONEIRA ELÉTRICA DE AÇO INOX SEM AS ALETAS DE
TURBILHONAMENTO UTILIZADA PARA ENCAROÇAMENTO DA MASSA
Foto: Moisés Modesto.
FIGURA 9 – FORNO MECÂNICO UTILIZADO PARA TORRAGEM E ESPOCAMENTO
DA FARINHA DE TAPIOCA
9
Foto: Moisés Modesto.
164
O investimento feito com equipamentos e construção civil em
2014 foi de R$ 36.475,00. A introdução das inovações aumentou a escala
de produção média mensal da farinheira que passou de 180 em 2010 para
PARTE ii
Capítulo 7
399 pacotes de 14 kg de farinha de tapioca em 2013 e 2014, representando
um aumento de produtividade de 221% com a mesma mão de obra, que
sendo remunerada por produtividade, praticamente dobrou seu salário
mensal. O torrador que recebia mensalmente R$ 580,00 em 2010 passou
a receber R$1.200,00 em março de 2013 e junho de 2014. A evolução de
pagamento da mão de obra (direta dos demais empregados é mostrada
na Tabela 2. Observa-se que as funções desempenhadas pelo encaroçador
e peneirador/classificador tiveram seus rendimentos reduzidos de 2013
para 2014 devido à introdução de equipamentos (betoneira elétrica e
peneira em plataforma elétrica) no processo produtivo.
TABELA 2 – EVOLUÇÃO DO CUSTO COM A MÃO DE OBRA DIRETA PARA
FABRICAÇÃO DE FARINHA DE TAPIOCA NO DISTRITO DE AMERICANO,
MUNICÍPIO DE SANTA ISABEL DO PARÁ, NO PERÍODO DE 2010 A 2014
2010
2013
2014
Função
Quantidade
Torrador
1
580,00
1200,00
1.200,00
Encaroçador
1
480,00
960,00
800,00
Peneirador/
(R$)
1
200,00
720,00
600,00
Embalador
1
480,00
678,00
728,00
TOTAL
4
1.740,00
3.558,00
3.328,00
Classificador
Fonte: dados da pesquisa.
O preço do fardo da fécula (25 kg) aumentou até 38,88% no
período de 2010 a 2013 passando de R$ 54,00 para R$ 75,00, porém
reduziu o preço em 2014 para R$ 65,00, enquanto o preço do fardo da
farinha de tapioca (saco com 14 kg) passou de R$ 65,00 em 2010 para R$
85,00 em 2013, caindo para R$ 80,00 em junho de 2014, representando
aumento de até 30,76%, nos dois primeiros períodos estudados. O custo
operacional mensal da agroindústria de farinha de tapioca está descrito
na Tabela 3.
165
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
TABELA 3 – RESULTADOS OPERACIONAIS DA AGROINDÚSTRIA DE FARINHA
DE TAPIOCA ANTES E DEPOIS DAS INOVAÇÕES INTRODUZIDAS NO SISTEMA
DE PRODUÇÃO. SANTA ISABEL DO PARÁ, 2010 A 2014
Setembro/2010
Discriminação
Junho/2014
%
mês
R$ 1,00
%
mês
R$ 1,00
%
mês
1. INVESTIMENTO
INICIAL
27.932,44
-
-
48.739,93
-
-
52.258,09
-
-
1.1. Equipamentos e
construção civil
17.775,00
-
-
33.075,00
-
-
36.475,00
-
-
1.2. Outras despesas
4.400,00
-
-
4.400,00
-
-
4.400,00
-
-
1.3. Reserva técnica
2.539,31
-
-
4.430,90
-
-
4.750,73
-
-
2. CUSTOS
10.975,13
-
-
29.393,08
-
-
26.264,26
-
-
2.1. Custos fixos
1.478,13
-
3.276,03
-
3.304,36
-
2.2. Custos variáveis
9.497,00
-
-
26.117,05
-
-
22.959,90
-
-
2.2.1. Mão de obra
direta
1.740,00
-
-
3.558,00
-
-
3.328,00
-
-
2.2.2. Materiais
diretos
7.757,00
-
-
22.559,05
-
-
19.631,90
-
-
3. RECEITA
OPERACIONAL
11.825,00
-
-
34.115,00
-
-
32.107,50
-
-
3.1. Venda de farinha
de tapioca
11.700,00
-
-
33.915,00
-
-
31.920,00
-
-
3.2.Venda de farinha
para sorvete
125,00
-
-
200,00
-
-
187,50
-
-
4. LUCRO
OPERACIONAL
849,87
-
-
4.721,92
-
-
5.843,24
-
-
4.1. Contribuição
social (10% do
item 4)
84,98
-
-
472,19
-
-
584,32
-
-
5. SUB-TOTAL
764,89
-
-
4.249,73
-
-
5.258,24
-
-
5.1. Imposto de
renda
0,00
-
-
1.168,67
-
-
1.446,20
-
-
764,89
-
-
3.081,06
-
-
3.812,72
-
-
2.328,00
19,7
-
7.997,95
23,4
-
9.147,60
28,5
168,85
-
-
345,80
-
-
328,30
-
-
9. LUCRATIVIDADE
-
5,08
-
-
4,27
-
-
3,51
-
10. TAXA DE
RETORNO/PRAZO
DE RETORNO
-
2,74
36,5
-
6,32
15,82
-
7,30
13,7
6. LUCRO LÍQUIDO
7. MARGEM DE
CONTRIBUIÇÃO
8 PONTO DE
EQUILÍBRIO
(SACOS)
Fonte: dados da pesquisa.
166
Março/2013
R$ 1,00
PARTE ii
Capítulo 7
O desempenho financeiro melhorou com as inovações no
processo de fabricação da farinha de tapioca e o lucro líquido médio
mensal que era de R$ 764,89 em 2010 passou para R$ 3.081,06 em março
de 2013 e R$ 3.812,72 em junho de 2014, representando um acréscimo
de 498,46%. A lucratividade de 5,08% baixou em 2010 para 3,51%,
mantendo uma boa média percentual de ganho sobre a venda realizada
por uma microempresa. A margem de contribuição de R$ 2.328,00 em
2010 passou para R$ 9.147,60 em junho de 2014, elevando o recurso que a
empresa tem para pagar as despesas fixas e gerar o lucro líquido. O ponto
de equilíbrio que equivalia à venda de 168,85 fardos de farinha de tapioca
(equivalentes a 14 kg ou 100 litros) em 2010 ao preço unitário de R$ 65,00
se elevou para 345,80 e 328,30 fardos ao preço de R$ 85,00 e R$ 80,00 em
março de 2013 e junho de 2014, respectivamente, volume comercializado
para cobrir as despesas fixas e variáveis, que significa dizer que abaixo
desses volumes de produção e preços o fabricante tem prejuízo. A taxa
de retorno do investimento melhorou, passando de 2,74% para 6,32% e
7,30%, reduzindo o retorno do investimento de 36,5 meses, para 15,82
meses e 13,7 meses, em 2010, 2013 e 2014, respectivamente.
Do ponto de vista operacional, alguns ajustes tais como o
deslocamento da matéria-prima por esteiras objetivando reduzir
o manuseio pode aumentar a escala de produção melhorando os
indicadores financeiros e a substituição dos equipamentos de madeira
e ferro por aço inox podem melhorar a qualidade do produto, apesar
da farinha de tapioca produzida em Santa Isabel do Pará já atender aos
padrões da Legislação Brasileira (SILVA et al., 2013).
Com relação à comercialização da produção de farinha de tapioca
36,7% dos empreendedores vendem diretamente para atravessadores e
atacadistas, 49% comercializam para pontos de vendas nas feiras livres de
Belém, 13,3% para supermercados e tabernas e apenas 1% exporta para
outros estados. A capital Belém absorve cerca de 50% de toda a produção,
13% é vendido em Castanhal, 10% em Santa Isabel, 6,67% em Ananindeua
e o restante em menores quantidades para os municípios de Abaetetuba,
167
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Barcarena, Ilha do Marajó, Tucuruí, Santa Maria, Salinas, Bragança e
para o Estado de Fortaleza, CE (ALVES & MODESTO JÚNIOR, 2012).
Lenha: a energia usada na fabricação das farinhas de mesa e de tapioca
No processo artesanal na produção de 280 sacos de farinha de
mesa são gastos cerca de 40 m3 de lenha, no valor total de R$ 1.440,00 em
junho de 2014, correspondendo a 6,34% dos custos totais de produção.
De acordo com Homma (2001), uma das grandes limitações dos atuais
produtores de farinha de mandioca no Estado do Pará se refere ao insumo
lenha, que chega a participar entre 10 a 15% do custo de produção. Esse
autor destaca que há necessidade de políticas para auxiliar os produtores
desse segmento, citando, dentre muitos exemplos, a implantação de
casas de farinha comunitárias (comunitárias) e mecanização parcial do
processo de fabricação de farinha.
De acordo com Lopes (2006), 61,3% dos agricultores de três
comunidades nos municípios de São Domingos do Capim e Mãe do
Rio, no Nordeste Paraense, também utilizam a lenha para fabricação
de farinha de mesa e cocção de alimentos. Em empreendimento de
fabricação artesanal de derivados de mandioca, como o tucupi e a
goma, os agricultores consomem em torno de 6 m³ de lenha por mês,
correspondendo a 5,64% dos custos de produção de 1.440 litros de tucupi
e 680 kg de goma por mês (MODESTO JÚNIOR; ALVES, 2012).
Na fábrica de farinha de tapioca o consumo mensal de lenha
em 2010 era de 14 m3 ao preço total de R$ 420,00. A partir de 2013,
toda a lenha foi substituída por 80 sacos de sementes de açaí ao custo de
R$ 80,00/mês, na geração de energia para os fornos, equivalente a uma
economia mensal de R$ 340,00. Observou-se melhor uniformidade no
aquecimento dos fornos queimando semente de açaí com ventilação
forçada de ar e menor produção de fumaça em comparação com a queima
de lenha usada anteriormente.
O fruto de açaí é proveniente de uma palmeira amazônica e seu
suco é diariamente consumido pela população paraense juntamente com
168
PARTE ii
Capítulo 7
farinha de mesa ou farinha de tapioca, camarão, peixe, entre outros. O
Estado do Pará é o maior produtor de açaí com 110.937 toneladas de
frutos (IBGE, 2012) e a maior parte é processada na cidade de Belém,
capital do Pará, por cerca de 3.000 estabelecimentos que comercializam
o açaí processado, atendendo um consumo diário de 440 mil quilos
de fruto, gerando cerca de 80% de resíduo, o equivalente a 365 t.dia-1
descartado na forma de caroço em céu aberto às margens de ruas e nas
redes de esgotos (FARINHA et al., 2009). Análises químicas do caroço de
açaí feitas por Nagaishi (2007) demonstraram alto teor de carbono fixo
(20,94%) e baixo teor de cinzas (1,47%) com poder calorifico de 4.252
kcal/kg, cujas características são consideráveis e adequadas para uso
como produto energético de diversas formas, destacando-se a elétrica e
carvão vegetal.
A substituição da lenha pelo caroço de açaí foi importante na
redução do custo de produção em razão do preço elevado e da dificuldade
crescente de acesso à lenha pelas restrições ambientais. Segundo o
empreendedor entrevistado, cerca de 10 fábricas existentes no Distrito
de Americano já mudaram a lenha pelo caroço de açaí.
Considerações finais
O empreendimento familiar de fabricação de farinha de mesa
vem se destacando como um grande negócio, pois gera emprego e renda
e atualmente permite o retorno do investimento em apenas 23,45 meses.
A farinheira de tapioca também obteve viabilidade econômica no
período de 2010 a 2014, porém só foi possível devido ao investimento nas
inovações para mudança em diversas etapas do processo de produção
que resultou em aumento da escala de produção. Pois o custo da mão de
obra dobrou de 2010 para 2013 e a matéria-prima aumentou 38,88%. E
o aumento de apenas 30,76% no preço da farinha de tapioca não seria
suficiente para gerar lucro e a empresa teria que fechar suas portas se
não tivesse feito as inovações. As oscilações de preço dos produtos da
mandioca estão correlacionadas com as alterações das áreas de cultivo
que oscilam ao longo dos anos. Quando o preço da farinha se eleva
169
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
muitos agricultores se motivam a plantar, o que eleva a oferta de raiz e o
preço tende a cair, fechando o ciclo de oscilações de preços.
Os indicadores econômico-financeiros do empreendimento
podem melhorar se a matéria-prima (fécula) for adquirida de produção
local, pois o custo do frete seria reduzido. Porém a sobrevivência do
empreendimento irá depender da capacidade do empreendedor adotar
tecnologias que aumentem a eficiência de sua produção.
Outro aspecto relevante para melhorar a eficiência das
farinheiras refere-se à necessidade de investimentos da planta industrial,
em equipamentos de aço inox com maior rendimento de processamento,
padronização das unidades de produção, estímulo para atendimento
das exigências sanitárias na produção, inclusive criando potencial para
o mercado de exportação. Tais investimentos podem ser realizados de
forma gradual de acordo com as situações críticas identificadas nas
etapas ou elos de produção e em função do capital de giro da empresa.
As unidades familiares produtoras de farinha de mesa e de tapioca
deveriam receber a atenção de agentes financeiros visando à oferta de
crédito para investimento e capital de giro.
Agradecimentos
Os autores agradecem à analista da Embrapa Amazônia Oriental,
Narjara de Fátima Galiza da Silva Pastana, pela revisão do resumo em
inglês.
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173
Parte III
Identidade e territorialidade
CAPÍTULO 8
A multitransterritorialidade dos territórios
camponeses da farinha no vale do juruá acre
Cleilton Sampaio de Farias1, César Gomes de Freitas1, Edna
Maria Secundes Cabral2, Cintia Raquel da Costa Ferreira2, Paulo Cesar C.
Lima2, Maria Raquel Oliveira Pinho2, Phamella M. Souza2, Camila Félix2
Introdução
Nesses primeiros anos do século XXI a abordagem geográfica
focalizada no conceito de território tem se expandido significativamente,
se levarmos em consideração o mesmo período do século passado. Com
isso, o próprio conceito que era “restrito” ao espaço dominado, passa a
aderir os aspectos sociais, culturais e econômicos de um povo circunscrito
a certo lugar no espaço geográfico, dando margem a novas interpretações
mais abrangentes.
Diversos são os autores que se propõem a descrever os territórios,
seus processos de construções/criações e os agentes responsáveis pela
1 Docente EBTT do IFAC Campus Rio Branco, Doutorando em Ensino de Biociências e Saúde – FIOCRUZ/IOCRJ, Grupo de Pesquisas “Relações Sociais e Educação – RESOE”.
2 Graduandos em Agroecologia, Instituto de educação, ciência e tecnologia do Acre – IFAC/ Campus Cruzeiro do
Sul.
175
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
176
obra. Contudo, é evidente o caráter relacional e em rede como um dos
princípios das novas abordagens. Além disso, percebe-se uma evolução
no sentido de conceber o território em várias dimensões sejam materiais
e imateriais ou simbólicas.
Nesse contexto, resolvemos conciliar o aspecto da nova
abordagem do conceito de território e das formas de territorialidades
com as características dos municípios de Cruzeiro do Sul e Rodrigues
Alves no Vale do Juruá-AC, onde o cultivo camponês da mandioca para a
produção de farinha e outros derivados possuem extrema importância e
centralidade na formação, organização e identidade territorial.
O que fortalece esta afirmativa é o fato de que nestas localidades
a vida da comunidade local gira em torno do cultivo da mandioca e da
fabricação da farinha. Em certa época do ano as pessoas ficam ocupadas
no plantio da mandioca, que após alguns meses será colhida, depois
processada na “casa de farinha”, transportada em suas embarcações ou
outros meios de transportes e, por fim, comercializadas.
Para dimensionar a importância da farinha para estes lugares, no
ano de 2010 de todos os produtos transportados pelo caminhão de apoio
à produção da Secretária de Agricultura e Desenvolvimento Agrário do
Município de Cruzeiro do Sul, 80,78% corresponde a farinha, ou seja,
23.370 sacas de farinha (50kg), totalizando 1.685,500 toneladas. Os outros
produtos representam, respectivamente, 2.085 sacas de mandioca (50kg)
totalizando 104,25 toneladas, 1.830 sacas de arroz (50kg) totalizando
91,5 toneladas, 570 sacas de laranja (50kg) totalizando 28,5 toneladas e
768 sacas de outros produtos (50kg) (tangerina, coco, goma, pimenta e
verduras) totalizando 38,4 toneladas (CRUZEIRO DO SUL, 2011).
Além disso, no mesmo ano foram transportadas pelos barcos
de apoio à produção da Secretária de Agricultura e Desenvolvimento
Agrário do Município de Cruzeiro do Sul, 11.324 sacas de farinha (50kg),
totalizando 556.2 toneladas, 153 sacas de arroz (50kg) totalizando 7.650
toneladas, 1.148 sacas de milho (50kg) totalizando 57.400 toneladas e
912 sacas de outros produtos (50kg) (tangerina, mamão, goma, feijão e
verduras) totalizando 45.600 toneladas. No transporte fluvial a farinha
PARTE iiI
Capítulo 8
também foi o produto com maior quantidade, representou 83,65% dos
produtos transportados (CRUZEIRO DO SUL, 2011).
Essa prevalência da mandioca e da farinha entre as demais
produções, não significa, necessariamente, apenas uma estratégia
econômica de obter lucro, muito pelo contrário, uma parte da produção
é destinada ao consumo da própria comunidade, que utiliza a farinha
e os seus derivados em “quase” todas as suas refeições. A farinha está
presente na vida dessas comunidades que inclusive empresta o nome para
designar a melhor qualidade de farinha fabricada na região, a “farinha
de Cruzeiro do Sul” que é considerada uma vantagem comparativa, por
também ser produto para exportação.
Para tanto, o problema da pesquisa foi tratado em duas abordagens
intercomplementares: qualitativa com entrevistas direcionadas para
os gestores de órgãos públicos ligados com a produção agropecuária,
tais como: SEAPROF/Cruzeiro do Sul e Mâncio Lima, Secretárias de
Produção de Cruzeiro do Sul e Mâncio Lima, Cooperativas de Produtores
de Farinha e Associação de Trabalhadores Rurais e, quantitativa com a
aplicação de 37 questionários estruturados nas comunidades do Ramal
da Mariana I e II, Comunidade Assis Brasil, Comunidade Pentecoste,
Comunidade Santa Luzia (Ramal I e II), Ramal dos Cardosos, Ramal
Preguiça e Comunidade Belo Jardim.
Para organizar a execução do projeto as ações foram divididas
em três fases: 1ª) levantamento bibliográfico e documental da temática;
2ª) trabalho de campo: entrevistas, questionários e observação e; 3ª)
sistematização de dados e conclusão da pesquisa. Com essas técnicas foi
possível obter as minúcias do objeto de pesquisa.
Assim, considerando a realidade pesquisada apresentamos
os resultados alcançados iniciando pela discussão da “a expressão da
multitransterritorialidade na formação dos territórios da farinha no Vale
do Juruá e na identidade territorial farinheira” e, por fim, trataremos sobre
“as características das multitransterritorialidade e territórios camponeses
da farinha no Vale do Juruá - Acre”.
177
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
178
A expressão da multitransterritorialidade na formação dos territórios
da farinha no Vale do Juruá e na identidade territorial farinheira
O território como a expressão territorializada do poder se
manifesta na forma pela qual foi formado/organizado, que corresponde
a sua territorialidade. Mas, a própria territorialidade, como um senso
de exclusividade ou compartimentação do vivido, é moldada pelas
características exclusivas que compartilha certa coletividade e que se
exterioriza através de símbolos, ou seja, símbolos da identidade, nesse
caso ligados a produção da farinha (RAFFESTIN, 1993).
“A identidade, portanto, não é algo dado, mas é sempre processo
(identificação em curso), que se dá por meio da comunicação com outros
atores (diálogo e confronto). A territorialidade é, nesse caso, expressão
deste processo no cotidiano dos atores sociais” (SOUZA; PEDON, 2007,
p. 135). É dessa forma que se relaciona o território, a territorialidade e a
identidade territorial.
Haesbaert (1997, p. 46) esclarece que as identidades sociais são
produzidas como representações simbólicas da realidade visando a um
reconhecimento social da diferença. Em alguns casos, considerando o
território como produto das relações sociais no decorrer de um tempo
histórico expresso na materialidade e em símbolos, “a simbolização
significa então concebê-lo num processo de apropriação social [...] que
tem a sua própria eficácia, ou seja, um “poder simbólico” que, em parte,
acaba forjando as identidades territoriais” (HAESBAERT, 1997, p. 49 50).
O poder simbólico, invisível por essência, permite obter os
mesmos benefícios daquilo que é adquirido com o uso da força ou poder
coercitivo, por isso se apresenta irreconhecível, sem a distinção daquele
que o exerce, mas, mesmo assim, forma uma rede de aspectos – símbolos
e representações – que espalhados pelo território permitem constituir a
identidade territorial (HAESBAERT, 1997, p. 50).
É dessa forma que a identidade territorial farinheira foi se
formando na região do Vale do Juruá com a construção de símbolos que
foram compartilhados de forma subjetiva. Por isso, o compartilhamento
PARTE iiI
Capítulo 8
desses fatores é o principal componente de formação do território,
permitindo agrupar os atributos internos de cada indivíduo no momento
da territorialização do território da farinha, mais os valores e símbolos
construídos e adicionados no percurso temporal, ou seja, do território
ou territorialidade seringueira. Assim, são dois períodos neste processo:
o ponto inicial e sua identidade territorial e o andamento do percurso,
ou seja, o movimento de sua constituição e as precedentes e permanentes
transformações que vão ocorrendo ao longo da história.
Acredita-se que a ligação com a farinha de mandioca iniciouse como alimento base, quando a região ainda vivia do extrativismo da
borracha e evoluiu para fonte de renda com a crise da borracha. Na época,
a população era composta de imigrantes nordestinos e de indígenas. No
entanto, o ponto inicial de formação da identidade farinheira na região só
ocorreu com a desterritorialização da produção de borracha a partir do
látex nativo da seringueira.
Com a decadência desta atividade, por volta da década de 40
do século XX, acarretada pelo cultivo racionalizado nos seringais de
cultivo nas colônias inglesas na Ásia, a região passou por um período
de decadência e transição até que por volta da década de 1970 mudouse a estrutura econômica regional com a inserção ou territorialização
da agropecuária e como consequência também se mudou os aspectos
socioculturais da região.
Se por um lado, a atividade econômica altera – do extrativismo
para a agropecuária - que estruturava o território, por outro, os atores
permanecem com a sua identidade forjada anteriormente, que constituía
os fundamentos da sociedade desterritorializada e conviverá com os novos
atores que estão se territorializando. Como enfatiza Haesbaert (2007, p.
19) [...] “muito mais do que perdendo ou destruindo nossos territórios,
[...], estamos na maior parte das vezes vivenciando a intensificação e
complexificação de um processo de (re)territorialização muito mais
múltiplo, “multiterritorial”.
A multiterritorialidade eminente se expressará na diversidade
material e simbólica no novo tempo, permanecendo aspectos
179
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
estruturantes e esculturantes da territorialidade anterior mais os aspectos
da nova territorialidade e, por fim, os aspectos transculturais ou híbridos.
Por isso, após a falência do extrativismo da borracha a cultura seringueira
ainda permanecerá, mesmo que em minoria, e compartilhará o mesmo
território dos recém-chegados agricultores e pecuaristas.
A multiterritorialidade implica, assim, a passagem de um
território (ou territorialidade) para outro, assumindo-se novas condições
em momentos diferentes de um mesmo processo T-D-R. Se por acaso
a multiterritorialidade se manifesta com a ênfase no estar-entre, no
efetivamente híbrido, produzido através dessas distintas territorialidades,
o melhor termo para designar este processo é a transterritorialidade. Para
Haesbaert e Mondardo (2010, p. 35):
Transterritorialidade, assim, envolve não apenas o trânsito ou
a passagem de um território ou territorialidade a outra, mas a
transformação efetiva dessa alternância em uma situação nova,
muito mais híbrida. Destaca-se a própria transição, não no sentido
de algo temporário, efêmero e/ou de menor relevância, mas no
sentido de “trânsito”, movimento e do próprio “atravessamento” e
imbricação territorial – não um simples passar por mas um estarentre.
Assim, o espaço do seringal com algumas modificações passou
a ser a fazenda e o mesmo seringueiro passou a ser o agricultor, no
entanto, as memórias do seringal e do seringueiro não foram apagadas
como a mudança, mas à sua identidade foi adicionada fatos e símbolos
novos, fazendo dele um hibrido de seringueiro com agricultor. Por
isso, as referencias simbólicas dos territórios e territorialidades em
trânsito na década de 1970 do século XX, na região, construíram a
multitransterritorialidade ou transterritorialidade que constituiu os
territórios da farinha no Vale do Juruá.
Um dos principais elementos que existia na territorialidade
inicial e que permaneceu na nova identidade multitransterritorial era,
sem dúvida, a alimentação. Grande parte dos atributos e apetrechos que
180
PARTE iiI
Capítulo 8
permeavam os gêneros alimentícios e a fabricação dos alimentos era fruto
da carga cultural carregada pelos migrantes de sua região de origem para
esta região, por exemplo, a fabricação de farinha de mandioca.
Nas entrevistas com os representantes dos territórios,
percebemos que o cultivo da mandioca para a alimentação era um legado
das populações tradicionais e o cultivo para a fabricação de farinha era
uma avanço construído com a apropriação da cultura pelos migrantes
nordestinos que chegaram na região do Vale do Juruá, como pode ser
observado a seguir.
“Essa cultura é uma cultura indígena mais foram os nordestinos
que deram uma grande alavancada na produção de farinha” (José de Souza
Menezes, Fundador da COOPERFARINHA, em 2011). Isso por que a
dinâmica indígena não prevê o lucro, mas, tão somente, a subsistência.
Porém, os nordestinos com a falência da borracha fizeram da farinha de
mandioca uma fonte de renda, aumentando o plantio e a fabricação de
farinha para além da subsistência.
“Eu acredito que essa cultura seja dos índios, porém, os
nordestinos também contribuíram para fortalecer essa cultura” (Anízio
Barreto, Secretário municipal de agricultura do município de Rodrigues
Alves, em 2011).
Historicamente falando, eu não vou dizer isso como registro,
mais é a historia que eu ouvi desde que eu cheguei aqui: que
antes vinha a farinha do Pará que se chamava farinha d’água, da
cultura dos nordestinos ou até mesmo dos indígenas que é um
de seu alimento básico. Então foi trazido para os nordestinos, o
que já existiam que é a cultura dos índios da nossa região (Erni
Dombrowski, Secretário municipal de agricultura e produção do
município de Cruzeiro do Sul, em 2011).
Antes dos nordestinos começarem a desbravar a Amazônia, em
particular o vale do Juruá eles se depararam com uma população
que aqui já existia. Então eu acredito que a origem foi com os
índios, mais com a chegada dos nordestinos foi se melhorando
a prática de como cultivar a mandioca (Aldair Pereira de Lima,
Gerente da SEAPROF em Cruzeiro do Sul, 2011).
181
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
A apropriação da cultura pelos primeiros habitantes da região
deu-se em no momento de crise do sistema de aviamento. Os imigrantes
chegando à região, presos ao sistema de aviamento, sofreram a exploração
do seringalista e ficaram impedidos de exercer parte de sua cultura em
relação ao cultivo de certos alimentos no interior do seringal. Como o
sistema de aviamento3 não era suficiente para fornecer todos os gêneros
alimentícios necessários à dieta do seringueiro, parcialmente era
concedido permissão para o cultivo nas horas de folga de produtos que
não fizesse concorrência com os do barracão. Assim, era possível cultivar
os “roçados”, com localização bem próxima ao “tapiri” do seringueiro para
facilitar o trabalho, que em alguns casos era executado pela companheira
do seringueiro que ficava em casa enquanto ele cortava “seringa”.
Nesses “roçados” eram privilegiadas aquelas espécies que serviam
de base para a alimentação do seringueiro, por exemplo, a mandioca, que
servia como alimento de diversas formas: cozida, para a fabricação de
farinha e, também, para alimentar os pequenos animais da família como
suínos e aves.
Além disso, a cultura da mandioca não requeria muito
conhecimento técnico para o plantio, assim, o pouco conhecimento dos
seringueiros juntamente com a incipiente necessidade de nutrientes no
solo, possibilitou que a mandioca pudesse ser desenvolvida com mais
propriedade, como observamos a seguir.
Então, a mandioca por ser uma cultura onde os produtores
têm uma prática e uma técnica centenária, considerando
que é uma cultura que se adapta em solos ácidos, ela não
é muito exigente em termos de nutrientes. Para manter
mandioca não precisa ter muitos cuidados técnicos,
por esses motivos ela se tornou a cultura de maior valor
econômico. A cultura da mandioca é a cultura que se faz a
farinha da mandioca e é a farinha da mandioca que aquece
a economia do vale do Juruá (Aldair Pereira de Lima,
Gerente da SEAPROF em Cruzeiro do Sul, em 2011).
182
3 Fornecimento aos seringueiros de gêneros alimentícios e utensílios necessários para o trabalho de extração do
látex no seringal (ALBUQUERQUE, 2001).
PARTE iiI
Capítulo 8
Assim, a mandioca fez parte do processo de territorialização da
borracha, e, diante da desterritorialização/falência do seringal surgiu
como a alternativa para o consumo e posteriormente para a renda da
população no processo de territorialização da agropecuária, contudo, a
presença da farinha em todas as fases faz dela um dos principais símbolo
da multitransterritorialidade atual.
[...], a princípio, a farinha há algum tempo atrás era exclusivamente
para alimentação familiar e era uma fonte de renda do excedente
da produção ou então havia desde essa época uma produção
específica para gerar renda para família dentre outras cultura,
exemplo as frútices como o abacate e a laranja [...] (Erni
Dombrowski, Secretário municipal de agricultura e produção do
município de Cruzeiro do Sul, em 2011).
Esses relatos nos mostram o ponto em que a mandioca ganha
centralidade e importância na produção do território e nas vidas das
pessoas nos aspectos econômico, social e cultural. O fato é que o processo
de multiterritorialização/transterritorialização só ganhou força por volta
da década de 70 do século XX, aí sim a agricultura passou a ser a principal
atividade econômica em oposição ao extrativismo da borracha, como
veremos a seguir.
Eu acredito que a farinha se desenvolveu com a perda da borracha.
Os próprios seringueiros desenvolveram o cultivo da mandioca
e a produção de farinha. Então para maioria dos agricultores a
fonte de renda é a produção da farinha (José de Souza Menezes,
Fundador da COOPERFARINHA, em 2011).
Considerando os limites tecnológicos e naturais que a região
apresentava, a mandioca para a fabricação de farinha pareceu, na época,
uma alternativa econômica para a região. Com o passar do tempo,
percebeu-se que a variedade de farinha produzida na região tinha um
sabor inestimável entre as demais, considerada como a melhor da região,
por isso, a produção despontou sendo considerada com uma “vantagem
183
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
comparativa”. Nos diálogos abaixo percebemos a evidencia de sua
importância:
“Eu vejo que a mandioca tem um potencial muito grande na região,
o que já é cultura e tentamos fortalecer cada vez mais essas produções
de farinha” (Anízio Barreto, Secretário municipal de agricultura do
município de Rodrigues Alves, em 2011).
A importância da farinha de mandioca não faz do território uma
forma de monocultura, “é o principal meio de produção, porem não é o
único” (Lauro da Silva Oliveira, Gerente da SEAPROF no município de
Rodrigues Alves, em 2011).
Esses relatos possibilitam a visualização panorâmica do território
da farinha, em especial na questão de sua história e da importância,
expressas pelos representantes da coletividade. Além disso, foi possível
compreender como se forma a multitransterritorialidade farinheira com
o somatório da identidade territorial seringueira mais a territorialidade
agropecuária. Na sequência, passaremos a caracterizar as bases do
território através da apresentação dos seus componentes econômicos,
cultuais e sociais. Assim, poderemos entender com mais subsídios a
importância da farinha de mandioca para esses lugares.
As características das multitransterritorialidades e territórios
camponeses da farinha no Vale do Juruá - Acre
Na segunda parte da pesquisa que realizamos com a aplicação
de questionário, percebemos que a maioria dos entrevistados é do
gênero masculino (59%), na faixa etária de 31 à 40 anos. Além disso,
97% nasceram na cidade de Cruzeiro do Sul por isso possuem uma
forte ligação com a cultura farinheira e possuem família composta por
em média seis componentes. Em se tratando de economia camponesa
(FREITAS; FARIAS; VILPOUX, 2011), essa quantidade de membros se
justifica pela responsabilidade que a família tem na divisão do trabalho
no estabelecimento, sendo necessários muitos membros, principalmente
do sexo masculino, para manter viável a produção.
Em relação à escolaridade apareceu um dado preocupante: grande
184
PARTE iiI
Capítulo 8
parte ou é analfabeto ou cursou o ensino fundamental e não terminou.
Aparecem como causa para este fato a distância das pouquíssimas escolas
existentes e as unidades de produção e a falta de oferta de ensino médio
nas escolas da comunidade.
A renda mensal obtida com a fabricação da farinha fornece em
média um salário por mês para a maioria (92%), enquanto que poucos
conseguem obter dois salários mínimos (8%). Isso ocorre por que
segundo os entrevistados a fabricação da farinha é muito penosa, não
sendo possível realizá-la em todos os dias ou em todos os meses do ano.
Para fabricá-la tem que reunir a família, colher a mandioca e
passar dia e noite empenhada na limpeza, raspagem, moagem e prensa
da massa para retirada do líquido excedente. Do processamento é obtida
quantidade de farinha que será repartida entre o consumo próprio e a
comercialização. A renda obtida financiará a unidade camponesa até
outra “farinhada”, que poderá ser na próxima semana ou mês. Em alguns
casos a renda é complementada por auxílios governamentais.
Entre os principais fundamentos da economia camponesa, a
propriedade da terra e dos meios de produção sempre mereceu destaque,
por nisso residir o poder da liberdade para o camponês. Para Oliveira
(2007, p. 41) a propriedade da terra é um dos elementos estruturais da
produção camponesa, é o local de trabalho e possui sentido amplo:
[...] é na unidade camponesa, propriedade familiar, privada para
muitos, porém diversa da propriedade privada capitalista (a que
serve para explorar o trabalho alheio); na propriedade familiar
se está diante da propriedade direta de instrumentos de trabalho
que pertencem ao próprio trabalhador, é terra de trabalho, é
propriedade do trabalhador, não é, portanto, instrumento de
exploração; nesse particular, três situações podem-se colocar
para o camponês: ele ser camponês proprietário, ser camponêsrendeiro (pagar renda para poder ter acesso à terra), ou ser
camponês-posseiro(recusar-se a pagar a renda e apossar-se da
terra) (OLIVEIRA, 2007, p. 41).
185
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Como característica da economia camponesa, grande parte das
unidades de produção são próprias, ou seja, 73% do total. Possuem de 1
a 10 hectares, caracterizadas como pequenas propriedades. Adquiridas
através da compra do titular (49%), herança (24%) e pela reforma agrária
(21%), dentre outros meios.
Dentre as práticas agrícolas utilizadas nas plantações, as
queimadas ainda prevalecem com 63%. Essa atividade é combatida
pelo poder público, no entanto, na inexistência de outros meios – como
grande parte dos agricultores só dispõe da gradagem para preparar o solo
(54%) - ela passa a ser o mais utilizado (Gráfico 1).
GRÁFICO 1 – PRÁTICAS AGRÍCOLAS UTILIZADAS NAS PLANTAÇÕES DE
MANDIOCA
Fonte: Dado da pesquisa.
A principal atividade produtiva do território é a produção da
farinha a partir da mandioca, no entanto, não é o único, também são
cultivadas outras variedades de frutas, cereais e leguminosas como
atividades que complementam o consumo e a renda da população.
O território é caracterizado pelo desenvolvimento da policultura
como atividade adicional à produção de farinha. Percebe-se que,
como a renda obtida da produção de farinha não possibilita manter o
186
PARTE iiI
Capítulo 8
estabelecimento camponês em tudo (FREITAS; FARIAS; VILPOUX,
2011), a família necessita cultivar outras variedades que se destinarão,
sobretudo, para o consumo próprio. Contudo, em alguns casos essas
variedades também são destinadas para o comércio, principalmente
quando há excedentes.
Dentre as variedades cultivadas encontram-se as hortaliças,
presentes em somente treze unidades e ocupando principalmente
menos de um hectare por unidade. As frutas são cultivadas em trinta e
duas unidades, ocupam predominantemente menos de um hectare por
unidade. Já os cereais mais necessários para a dieta familiar como arroz,
feijão e milho são os que menos são cultivados por unidade camponesa,
aparecendo respectivamente em seis, oito e nove unidades. Esses baixos
valores são justificados pela exigência de insumos que essas culturas
necessitam e pela baixa disponibilidade desses insumos nas unidades. Já
em relação à mandioca a situação é diferente, ela é cultivada em trinta e
sete unidades, ocupando principalmente as áreas no intervalo de um a
cinco hectares, conforme tabela 1.
TABELA 1 – VARIEDADES AGRÍCOLAS CULTIVADAS POR UNIDADE
CAMPONESA (MÊS)
Variedades
Tamanho (ha)
Hortaliças
Frutas
Arroz
Feijão
Milho
Mandioca
Menos de 1
13
21
03
08
06
05
1–5
03
05
02
-
03
29
5 – 10
-
01
01
-
-
03
11 – 20
-
01
-
-
-
-
Total
16
28
06
08
09
37
Fonte: Dados da pesquisa.
A quantidade das variedades colhidas liga-se diretamente à
quantidade plantada. Com a maior área plantada, a cultura da mandioca
fornece mais de 1.000 kg para a maioria dos produtores que a cultivam por
mês. Isso já não ocorre com as outras variedades que são mais utilizadas
para a alimentação interna da unidade. Por exemplo, a produção de arroz
fornece menos de 100 kg para três produtores e mais de 1.000 kg para
outros três produtores, isso indica que para os primeiros a produção é
187
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
para subsistência e para os outros, como é colhida quantidade superior,
pode ser destinada para a comercialização, conforme tabela 2.
TABELA 02 – VARIEDADES AGRÍCOLAS COLHIDAS POR UNIDADE
CAMPONESA (MÊS)
Variedades
Quantidade (Kg)
Hortaliças
Frutas
Arroz
Feijão
Milho
Menos que 100
16
18
03
06
05
Mandioca
1
100 – 200
-
07
-
02
01
4
201 – 300
-
-
-
-
03
4
301- 400
-
01
-
-
-
5
400 – 500
-
02
-
-
-
2
500 a 1000
-
04
-
-
-
2
Mais de 1000
-
-
03
-
-
19
Total
16
32
06
08
09
37
Fonte: Dados da pesquisa.
Quando analisamos a quantidade dessas variedades que são
comercializadas, percebemos que também está na mandioca o produto
mais comercializado. Somente 16,3% dos produtores comercializam
hortaliças, 51,4% comercializam frutas, 10,9% comercializam arroz e 9,0%
comercializam feijão. Enquanto quase não há comercialização das outras
variedades, a mandioca é comercializada por 86,4% dos produtores, em
média de 500 a 1.000 kg por mês.
Essa quantidade de mandioca comercializada não compromete a
produção de farinha, em alguns casos a venda é efetuada com o vizinho
que precisou de mais matéria-prima para finalizar o seu ciclo de produção.
Nesse caso, não se paga em dinheiro em espécie mais em produto, ou
seja, em mandioca in natura.
Além da forte produção de mandioca, a mão-de-obra também é
uma das estruturas do território. Proveniente na maioria de descendentes
de nordestinos e/ou de indígenas, os “farinheiros” guardam, com o passar
dos anos, os segredos que permitem produzir a melhor farinha da região.
Eles conhecem os melhores solos para cultivar a mandioca sem utilizar
técnicas de análise de solo, sabem quando plantar e quando colher se
188
PARTE iiI
Capítulo 8
baseando somente no movimento de translação da terra e utilizam
ferramentas rudimentares para fabricar tamanha iguaria.
Quase não há diferença entre as pessoas que realizam o plantio
da mandioca, que efetuam a colheita, que fabricam e comercializam a
farinha. São basicamente as mesmas pessoas que participaram de todas
as fazes do processo que se repete diversas vezes no decorrer do ano
como um ciclo.
Esses trabalhadores são, em suma, provenientes da própria
família (61%) com faixa etária entre 31 e 40 anos (43,2%), seguidos
pelos parceiros (28%) com faixa etária entre 31 e 40 anos (71,4%) e
complementados por assalariados temporários (11%) com faixa etária
entre 21 a 40 anos (88,8%).
Nesse sentido, a mão que move o ciclo é da própria família, mas,
em alguns casos, quando ainda há muita mandioca plantada em risco
de comprometer a sua qualidade, é realizado um mutirão onde todos
os membros da família são envolvidos, mesmo os que não habitam na
unidade e, também, quando esses não conseguem dar conta, solicita-se
auxílio dos parceiros. Esses são, na maioria das vezes, vizinhos que estão
temporariamente ociosos e que fornecem a sua contribuição em troca
de parte da produção e/ou de recompensa com a mesma atividade na
propriedade dele.
Quando não há disponibilidade de parceiros é que se utiliza a
mão-de-obra assalariada. Isso não é tão comum, principalmente por que
não há condição financeira para tal. Mesmo assim, em casos excepcionais
é realizada a contratação do trabalhador assalariado, o pagamento dele
sairá do lucro da produção, como nesse caso é sempre baixa, no balanço
final a unidade sofrerá prejuízo.
Os farinheiros, em qualquer condição, são em sua maioria do sexo
masculino, seja de origem familiar com 78,3%, assalariado temporário
100% ou parceiro 66,6%. Isso é explicado, pois a atividade requer muito
esforço físico, por isso é dominada por homens. As mulheres são mais
presentes na fabricação da farinha, principalmente na atividade de
raspagem e limpeza da mandioca, conforme gráfico 2.
189
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
GRÁFICO 2 – GÊNERO DOS TRABALHADORES
Fonte: Dados da pesquisa.
Esses homens e mulheres, por terem nascidos distantes das
cidades e por destinarem quase todos os seus tempos para a atividade
agrícola, não conseguiram chegar ou permanecer na escola. Dentre os
trabalhadores da própria família 40,5% são declarados analfabetos,
5,5 não terminaram o ensino fundamental e 54% concluíram o ensino
fundamental. Dentre os temporários e os parceiros também não há
ninguém que começou o ensino médio. Observe que na tabela 3 abaixo
só constam as opções analfabeto, fundamental incompleto e fundamental
completo, pois só foram essas opção encontradas.
TABELA 3 – ESCOLARIDADE DOS TRABALHADORES
Trabalhadores
Escolaridade
Família
Assalariado temporário
Parceiro
Analfabeto
15
02
06
Fundamental incompleto
02
05
11
Fundamental completo
20
-
01
Total
37
07
18
Fonte: Dados da pesquisa.
A baixa escolaridade mostrada acima não influencia na qualidade
da farinha que é produzida e apreciada pela população. Tudo indica que
190
PARTE iiI
Capítulo 8
o conhecimento empírico permite superar a inexistência de técnicas
científicas de plantio, cultivo e colheita, produzindo o sabor especial da
farinha de Cruzeiro do Sul, garantindo a venda por um preço razoável.
A “casa de farinha” é o espaço físico destinado ao processamento
da mandioca. Localiza-se bem próximo a residência da família e quando
não está sendo utilizada, serve também de depósito da própria farinha ou
dos outros produtos cultivados. Predominantemente, a casa de farinha é
de propriedade privada da família (81%), adquirida através da compra
(59,45%) e, dentre os tamanhos encontrados, destacam-se aquelas que
possuem 60m² com 40,5% do total e as com 50m² com 32,4%.
Como no local ainda existe muita madeira as casas de farinha
são quase todas (80,9%) construídas com essa matéria prima, possuem
menos de cinco anos de uso (38%) e entre dez a cinco anos de uso (38%).
Possuem cobertura de alumínio em 76,1% das unidades, sobretudo, por
que esse produto é o mais barato para cobertura. Sem rede de esgoto
em 95,2% das unidades, com a destinação dos resíduos através de valas,
que em muitos casos se direcionam para os igarapés e rios. Possuem
acesso a rede de energia elétrica em 57,1% das unidades, permitindo
a produção durante a noite. São abastecidas principalmente com água
sem tratamento, proveniente de poços. Não possuem tela de proteção em
85,7% das unidades e possuem piso de terra batida (57,1%), conforme
figura 1 abaixo.
FIGURA 1 – CASA DE FARINHA LOCALIZADA NO RAMAL MARIANA II,
CRUZEIRO DO SUL (2011)
Fonte: Cleilton Sampaio de Farias.
191
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
192
É possível notar a condição precária da casa de farinha na
fotografia acima, isso também acontece com as outras que visitamos
durante a pesquisa. É corrente o uso das seguintes atividades nas unidades
de produção: raspagem manual, transporte da mandioca por meio de
“carroça de boi” e forno movido à lenha.
Essas características descrevem bem a situação de rusticidade
que se apresentam as casas de farinha. Grande parte disso implica em
problemas de sanidade, saúde pública, poluição e degradação ambiental,
sendo necessárias correções urgentes para superar esses que acreditam
serem os gargalos do ciclo.
As casas de farinha produzem em média 1.000 kg mensais, que
se destinam para a comercialização e para o consumo. O intermediário
é uma figura muito presente no ciclo da mandioca, por isso a venda
para o mercado interno ocorre em 75,67% dos casos. No entanto, esse
intermediário usurpa a renda da terra produzida pelo agricultor ao
revendê-la ao mercado externo com valor muito maior que o adquirido.
Esse é um dos problemas que impede o desenvolvimento do ciclo, pois
com o agricultor não fica renda suficiente para investimentos na produção.
A produção é escoada principalmente por dois meios: o
rodoviário e o hidroviário. Quando a região passava a maior parte do
ano isolada, por conta das chuvas intensas, entre os meses de setembro
a abril, onde a principal via de ligação com o resto do Brasil, a BR 364
ficava interrompida, o transporte utilizado era o hidroviário. No entanto,
quando se permitia o transporte rodoviário, entre os meses de junho a
setembro, toda a produção que se encontrava estocada era transportada.
Nesse sentido, na estiagem o transporte rodoviário ficava intenso, sendo
responsável pela exportação de 78,3% da produção anual.
Além da produção de farinha, ocorre também a produção de
outros derivados da mandioca, para o consumo e para a comercialização.
A fécula é produzida por 51,3% dos agricultores, no entanto, somente
5,4% desses objetivam a comercialização, ou seja, produzem mais de
1.000 kg por mês, o restante produz por volta de 100 kg por mês somente
para o consumo.
PARTE iiI
Capítulo 8
Outros produtos possuem um valor individual relativamente
alto por isso são fabricados em poucas quantidades para comercialização
mensal, por volta de 100 kg no máximo. O biscoito de goma (fécula),
produzido de forma artesanal é uma iguaria do território, disponibilizado
principalmente para exportação por ter um alto valor comercial, R$ 5,00
por 300 g, é produzido por somente 5,4%, em pequenas quantidades, 100
kg por mês. Isso também acontece com os outros derivados, tais como: a
tapioca produzida por 35,1% em 100 kg mensais, o beiju produzido por
37,8% em 100 kg mensais e o bolo de mandioca produzido por 18,9%
em 100 kg mensais. A baixa produtividade dos derivados se justifica
pela dificuldade de processamento no modo artesanal, no entanto, isso
influencia positivamente na qualidade dos produtos e no valor de venda.
Enfim, essas são as características dos territórios camponesas da
farinha no Vale do Juruá – Acre e de suas multitransterritorialidades.
Espera-se que as informações acima possam ter contribuído para a
compreensão do porquê que esses lugares são assim denominados.
Considerações
As novas abordagens do conceito do território permitem
compreende-lo como espaço material ou imaterial, apropriado ou
dominado. Além disso, também é possível perceber que no território
há uma identidade territorial compartilhada suficientemente para criar
símbolos que inconscientemente são compartilhados por um grupo de
pessoas criando uma forma de territorialidade.
Toda essa discussão conceitual não apareceu neste trabalho por
acaso. Mas era o objetivo concilia-la com as caraterísticas do Vale do
Juruá – AC. Assim, compreendeu-se que o forte apego da população com
a atividade farinheira, acarretou ao longo do tempo a formação de uma
sociedade que compartilha as mesmas “diferenças”, ou seja, os símbolos
que compõem a sua identidade e, que, ao serem fixados e espalhados
pelo espaço limitam e individualizam o território, ou seja, criam a
multitransterritorialidade farinheira. Nela estão incluídos os aspectos
sociais, econômicos e culturais compartilhados através das relações
193
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
internas e externas indicando que o território possui centralidade neste
tipo de produção, podendo ser mencionado como um “território da
farinha”.
Nesse território a produção da farinha de mandioca é fruto do
trabalho familiar camponês, com maior intensidade do trabalhador do
gênero masculino, que possui baixíssima escolaridade e que cultiva a
mandioca em propriedade privada, com os próprios meios de produção.
A produção do setor é apropriada por intermediários que
compram ainda nas proximidades das casas de farinha por um preço
baixo e que revende para outros municípios e estado por um preço mais
alto, apropriando-se da renda da terra que não é contabilizada pelo
produtor.
Mesmo assim, grande parte dos produtores sobrevive
financeiramente somente desse tipo de produção, ainda que cultive
outros produtos para subsistência. Além disso, podemos citar como
ponto positivo a policultura, a pequena propriedade e o trabalho familiar
com o emprego de muitas pessoas.
194
PARTE iiI
Capítulo 8
Referências
ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de. Espaço, cultura, trabalho e violência no Vale do
Juruá – Acre. São Paulo, 2001. 246p. Tese (Doutoramento em História Social). Programa
de Estudos Pós-Graduados em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
– PUC/SP.
CRUZEIRO DO SUL, Secretária de agricultura e desenvolvimento agrário do município
de. Apoio de transporte rodoviário e fluvial para a produção da agricultura familiar. 2011.
FREITAS, César Gomes de; FARIAS, Cleilton Sampaio de; VILPOUX, Olivier François.
A produção camponesa de farinha de mandioca na Amazônia Sul Ocidental. Boletim
Goiano de Geografia. Goiânia, v. 31, n. 2, p. 29-42, jul./dez. 2011.
HAESBAERT, Rogério. Território e multiterritorialidade: um debate. GEOgraphia. Ano
IX – Nº 17 – 2007.
_______. Des-territorialização e Identidade: a rede “gaúcha” no Nordeste.
Niterói: EdUFF,1997.
_______; MONDARDO, Marcos. Transterritorialidade e antropofagia: territorialidades
de trânsito numa perspectiva brasileiro-latino-americana. GEOgraphia. Vol. 12, No. 24
(2010).
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de­­. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e
Reforma Agrária. São Paulo: Labur Edições, 2007, 184p.
RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.
SOUZA, Edevaldo Aparecido; PEDON, Nelson Rodrigo. Território e identidade. Revista
Eletrônica da Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Três Lagoas Três Lagoas MS, V 1 – n.º6 - ano 4, Novembro de 2007.
195
CAPÍTULO 9
FARINHEIRAS NO LITORAL DO PARANÁ: UMA
ANÁLISE A PARTIR DA NOÇÃO DE SISTEMA
AGROALIMENTAR LOCALIZADO - SIAL FARINHEIRAS
Valdir Frigo Denardin1, Mayra Taiza Sulzbach2 e Rosilene
Komarcheski3
Introdução
A noção de Sistema Agroalimentar Localizado (SIAL) pode
contribuir para a construção de um enfoque agroalimentar de base
territorial que permite compreender o funcionamento e organização de
um conjunto de atividades produtivas e sociais no meio rural. Possibilita
pensar estratégias para dinamizar a agroindústria familiar com o intuito
de contribuir para a geração de renda e auxiliar na reprodução social dos
agricultores.
1 Doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela UFRRJ/CPDA. Professor da Universidade Federal do
Paraná – Setor Litoral e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial Sustentável,
PPGDTS/UFPR. E-mail: [email protected]
2 Doutora em Desenvolvimento Econômico pela UFPR/PPGDE. Professora da Universidade Federal do Paraná
– Setor Litoral e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial Sustentável, PPGDTS/UFPR.
E-mail: [email protected]
3 Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pelo PPGMADE/UFPR. Doutoranda no Programa de PósGraduação em Sociologia da UFPR. E-mail: [email protected]
197
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
198
O Litoral do Paraná possui uma área física de 6.057 Km2 entre
o Oceano Atlântico e a Serra do Mar, distribuídos em sete municípios
(Antonina, Guaratuba, Guaraqueçaba, Matinhos, Morretes, Paranaguá e
Pontal do Paraná), sendo Guaraqueçaba o maior, com área de 2.019 Km2
e Matinhos o menor, com área de 117 Km2 (IBGE, 2014). Em termos
populacionais, o Litoral possui 265.392 habitantes, sendo Paranaguá
o município mais populoso, com 140.469 habitantes e Guaraqueçaba
o município que apresenta menor contingente populacional, 7.871
habitantes (IBGE, 2014). As principais atividades econômicas, descritas
por Estades (2003), são a portuária (porto de Paranaguá), a agropecuária
e o turismo de sol e mar.
A região possui a maior área de remanescentes florestais bem
conservados do bioma Mata Atlântica do estado do Paraná, sendo visível
a conservação natural desta região em relação à supressão e fragmentação
de ecossistemas que ocorreu no restante do Paraná. A cobertura vegetal
da região é composta por Floresta Ombrófila Densa (Aluvial, de Terras
Baixas, Sub-Montana e Montana) alterada e primária e por Formações
Pioneiras de Influência Marinha (Restinga), Fluviomarinha (Manguezal)
e Fluvial, as quais compõem o complexo estuarino lagunar do local
(IPARDES, 2001).
A partir da década de 1980 foram criadas diversas Unidades de
Conservação (UCs) na região, que, juntamente à efetivação da fiscalização
ambiental levaram a restrições efetivas quanto ao uso do solo, com vistas
à redução de impactos ao ambiente natural. O litoral paranaense, em
2006, possuía 82% de seu território coberto por UCs. Neste contexto, os
municípios que merecem maior destaque são Guaraqueçaba, Guaratuba
e Antonina, com, respectivamente, 98%, 98% e 85% de suas áreas
protegidas por UCs (DENARDIN et al., 2008).
Entre os produtos cultivados pelos agricultores familiares no
Litoral paranaense, pode-se afirmar, segundo Denardin (2010), que a
produção de mandioca atua como uma “atividade amortecedora” em dois
aspectos: contribui para a segurança alimentar das famílias no meio rural
e apresenta-se como atividade potencial para geração de renda, podendo
PARTE iiI
Capítulo 9
ser comercializada in natura ou industrializada (farinha de mandioca)
entre outros subprodutos.
O artigo tem por objetivo apresentar e caracterizar o Sistema
Agroalimentar Farinheiras (SIAL Farinheiras) no litoral do Paraná. A
questão que norteou a pesquisa foi: como o SIAL Farinheiras no litoral do
Paraná permitiria evidenciar os recursos e ativos genéricos e específicos
do território?
Para atingir tal propósito utilizou-se de informações resultante
de ações de pesquisa-ação realizadas no Litoral paranaense ao longo de
sete anos (2008-2013) por um conjunto de projetos/programa que se
complementam, sendo: projeto Estudo da cadeia produtiva da mandioca
como estratégia para o desenvolvimento da agroindústria familiar no
Litoral paranaense, projeto Reestruturação produtiva de farinheiras
comunitárias no Litoral do Paraná e, posteriormente, pelo Programa de
extensão farinheiras no Litoral do Paraná.
Farinheiras no Litoral do Paraná – SIAL Farinheiras
O litoral Norte do Paraná, que engloba os municípios de
Antonina, Guaraqueçaba e Morretes, possui sessenta e três farinheiras.
O litoral Sul, por sua vez, composto pelos municípios de Guaratuba,
Matinhos, Paranaguá e Pontal do Paraná apresenta setenta farinheiras.
As farinheiras identificadas nestes municípios foram classificadas como
ativas, autoconsumo, inativas e comunitárias (Tabela 01).
As farinheiras ativas caracterizam-se por serem agroindústrias
que produzem farinha para o consumo da família, bem como para
comercialização. As farinheiras de autoconsumo caracterizam-se
por serem agroindústrias que produzem farinha para o consumo
próprio, podendo ser comercializado uma pequena parte, porém em
quantidade inexpressiva. As farinheiras inativas caracterizam-se por
serem agroindústrias que não produzem mais farinha, porém ainda
existem os equipamentos e as instalações. Em sua maioria, as farinheiras
inativas estão em propriedades de pessoas idosas que não possuem
condições físicas para realizar as atividades relacionadas à produção de
199
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
farinha (farinhar). Por fim, as farinheiras comunitárias caracterizamse por serem agroindústrias que foram construídas através de políticas
públicas (Paraná 12 Meses), visando atender a grupos de famílias. São
farinheiras que possuem infraestrutura física construídas em alvenaria e
buscavam atender as exigências da legislação sanitária em vigor na época
(praticamente todas estas unidades estão desativadas).
Litoral Sul
Litoral Norte
TABELA 01 – SITUAÇÃO DAS FARINHEIRAS, QUANTO AO SEU
FUNCIONAMENTO, NO LITORAL DO PARANÁ (2008)
Municípios
Ativas
Autoconsumo
Inativas
Comunitárias
Total
Antonina
8
11
0
0
19
Guaraqueçaba
10
13
3
4
30
Morretes
7
3
2
2
14
Guaratuba
17
27
3
1
48
Matinhos
2
1
0
0
3
Paranaguá
9
1
6
1
17
Pontal do Paraná
1
0
1
0
2
Total
54
56
15
8
133
Fonte: Elaborada pelos autores.
O município de Guaraqueçaba, entre os municípios do litoral
Norte, apresenta o maior número de farinheiras. Nas visitas foram
mapeadas trinta unidades, principalmente nas comunidades da Potinga,
Açungui, Tagaçaba, Tagaçaba de Cima e Pedra Chata. Como parte do
município, de difícil acesso (inclusive ilhas), não foi visitada estima-se que
existe um número igual ou superior de farinheiras ainda desconhecidas.
O diagnóstico inicial permitiu a classificação e localização das farinheiras
no território. Possibilitou, também, identificar alguns problemas que as
unidades produtivas enfrentam.
A noção de SIAL e o dialogo com os recursos territoriais
A noção de SIAL, segundo Muchnik et al. (2008) surge em 1996,
como resultados de pesquisas do Centre de Coopération Internationale
em Recherche Agronomique pour Le Développment (CIRAD-SAR),
200
PARTE iiI
Capítulo 9
realizadas em países da América Latina e África com foco na transformação
dos produtos dos agricultores familiares visando aumentar suas rendas
e contribuir para a alimentação das populações urbanas, por meio dos
recursos locais.
As pesquisas que iniciaram na década de oitenta permitiram
constatar a existência de concentrações espaciais de pequenas empresas
rurais, como exemplo da farinha de mandioca no Brasil e das queijarias no
Equador e concluem, entre outros resultados, que as agroindústrias rurais
permitiam aumentar o valor agregado dos produtos, melhorar a renda
das famílias e criar empregos no meio rural, bem como contribuíam para
a segurança alimentar da população rural e urbana (MUCHNIK, 2006).
Na década de noventa, em meio as discussões sobre questões
ambientais, desenvolvimento sustentável, multifuncionalidade da
agricultura, produção orgânica, entre outros temas, duas noções de SIAL
começam a se sobrepor (Muchnik, 2006, p. 4): o SIAL como um “objeto
concreto, um conjunto de atividades agroalimentares territorialmente
constituídas e visíveis” e o SIAL como “um enfoque, uma maneira de
abordar o desenvolvimento dos recursos locais, ainda que o sistema não
exista como tal”. Nas duas situações o autor menciona que o SIAL pode
constituir uma referência metodológica para a construção e orientação
de projetos de desenvolvimento local. A noção de SIAL foi apresentada
nos trabalhos do CIRAD-SAR como:
Organizações de produção e de serviços (unidades de produção
agrícolas, empresas agro-alimentares, comerciais, de serviços,
gastronômicas...) associados por suas características e seu
funcionamento em um território especifico. O meio, o produto, as
pessoas, suas instituições, seu saber fazer e seus comportamentos
alimentares, suas redes de relações se combinam em um território
para produzir uma forma de organização agroalimentar em uma
escala espacial dada.” (MUCHNIK, et al., 2008, p. 514)
Para Muchnik et al. (2008) existem três estágios de evolução da
noção/conceito de SIAL, no primeiro SIAL se aproximava do conceito
201
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
de clusters ou de sistemas produtivos locais, inspirados pelos distritos
industriais italianos. No segundo a ênfase é dada aos processos de
qualificação territorial dos produtos via certificações de qualidade
territorial. Por fim, no conceito emergem temas como localização/
deslocalização de atividades produtivas, multifuncionalidade das
propriedades e espaços rurais, restrições ambientais e manutenção da
biodiversidade.
O enfoque de SIAL, segundo Muchnik et al. (2008, p. 514), deve
estar pautado sobre as relações homem/produto/território, uma vez que as
“especificidades territoriais” permitem “caracterizar o SIAL, compreender
sua diversidade e sua dinâmica”. Nesta perspectiva os autores avançam ao
mencionar que “é a analise das especificidades territoriais que permite
caracterizar o SIAL, compreender sua diversidade e sua dinâmica” (p.
513). Assim, “a noção de SIAL é demandada como enfoque teórico para
a compreensão de fenômenos em curso de desenvolvimento e como
ferramenta operacional para a orientação de projetos territoriais de
inovação” (MUCHNIK, 2006, p. 10).
O SIAL, segundo Ambrosini et al. (2008) se apresenta como uma
forma particular de Sistema Produtivo Localizado estando associado a
existência de uma concentração espacial de agroindústrias no território4.
Para os autores a concentração permite a valorização de um saber fazer
específico em um território específico, possibilita, também, exercitar
relações de solidariedade e confiança e a acumulação de um patrimônio
cultural para a coletividade. O SIAL, portanto, é uma noção socialmente
construída.
Para Muchnik (2006) os SIALs representam uma forma de
organização das atividades agroalimentares na qual as “dinâmicas
territoriais” possuem um papel determinante para a coordenação dos
atores e o desenvolvimento das atividades produtivas. São para Muchnik
et al. (2008) as especificidades territoriais que permitem caracterizar o
SIAL, compreender sua diversidade e sua dinâmica, merecendo destaque
202
4 Uma discussão que evidencia as distinções entre Distritos Industriais, Sistemas Produtivos Localizados e Sistemas
Agroalimentares Localizados pode ser encontrada em Muchnik et al. (2008).
PARTE iiI
Capítulo 9
três especificidades: a dos homens e de suas instituições, a dos produtos e
dos processos de qualificação associados e a dos consumidores e de suas
culturas alimentares que reconhecem esses produtos.
Especificação de recursos territoriais e desenvolvimento local
O desafio das estratégias de desenvolvimento territorial constituise na apropriação dos recursos específicos do território e promover
especificação ou ativação destes recursos, ou seja, transformar recursos
em ativos específicos.
O território, nesta perspectiva, é uma unidade ativa de
desenvolvimento, que possui recursos específicos, únicos, que não são
transferíveis de uma região para outra. Os recursos podem ser materiais,
como jazidas ou imateriais como o saber fazer, ligado a cultura local. A
valorização dos recursos específicos pode possibilitar ao território uma
renda de qualidade territorial desde que estes passem a ser contemplados
como ativos específicos.
Território dado, segundo Pecqueur (2005, p. 12), é “a porção de
espaço que é objeto de observação. Neste caso, postula-se o território
como pré-existente e analisa-se o que aí acontece.” O autor menciona
que o território dado é sinônimo de território institucional, por exemplo
o município, o estado, a região. Para Flores (2006), o território dado é
definido por uma decisão político-administrativa, é um processo top
down.
O território construído, por outro lado, é produto de um processo
de melhorias, fruto do jogo dos atores e é constatado a posteriori. É o
resultado de um processo de construção social pelos atores (PECQUEUR,
2005). O território construído é um espaço-território que se forma a partir
do encontro de atores sociais, em um espaço geográfico dado, que buscam
identificar e resolver problemas comuns (FLORES, 2008; CARRIÈRE e
CAZELLA, 2006). Para Flores (2006) o território construído é um espaço
de relações sociais, no qual existe um sentimento de pertencimento
por parte dos atores com respeito à identidade construída e associada
ao espaço de ação coletiva local, em que se criam laços de solidariedade
203
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
204
entre os atores. Segundo Carrière e Cazella (2006), um território dado,
cuja delimitação é político-administrativa, pode abrigar vários territórios
construídos.
Os territórios possuem recursos, que segundo Pecqueur (2005,
2006a, 2006b), são fatores a explorar, a organizar, ou ainda, a revelar. Tais
recursos podem ser genéricos e específicos. O autor os considera uma
reserva, um potencial latente ou virtual que pode, se as condições de
produção e inovação tecnológica permitirem, se transformar em ativo.
Os ativos, segundo Carrière e Cazella (2006), são os fatores de produção
em atividade, em uso no processo produtivo. Quando o recurso é
incorporado no sistema produtivo ele passa a ser tratado com um ativo
(PECQUEUR, 2005).
Importante evidenciar a diferenciação entre ativos e recursos
genéricos de ativos e recursos específicos. Os ativos e recursos genéricos
são totalmente transferíveis e seu valor é um valor de troca, estipulado no
mercado via o sistema de preços. Estes ativos e recursos não permitem
que um território se diferencie de forma consistente (duradoura) de
outros, uma vez que eles são transferíveis, ou seja, são transacionados
no mercado. Pecqueur (2005, p. 13) menciona que eles são um “conjunto
dos fatores tradicionais de definição espacial discriminados pelos preços
e que são objetos de um cálculo de otimização”. Para Carrière e Cazella
(2006, p. 34) os recursos e ativos genéricos “são totalmente transferíveis
e independentes da aptidão do lugar e das pessoas onde e por quem são
produzidos”. Os ativos e recursos genéricos não são únicos, eles existem
em outros territórios e não são objetos de diferenciação do território.
Os ativos específicos, por sua vez, possibilitam um uso particular
e seu valor é função das condições de seu uso. Além disso, eles
apresentam um custo de transferência que pode ser alto e irrecuperável.
Segundo Pecqueur (2005, p.14), o ativo específico “possui um custo de
redirecionamento”.
Os recursos específicos, pelo seu caráter de diferenciação,
merecem maior atenção. Pela sua especificidade endógena ao território
eles podem apoiar o desenvolvimento local. Os recursos específicos, ao
PARTE iiI
Capítulo 9
contrário dos recursos genéricos, não são mensuráveis, não são expressos
em preços e não podem ser transferidos como qualquer produto
transacionado no mercado. Para Pecqueur (2005, p.15) a “produção
desses recursos resulta, pois, de normas, costumes, de uma cultura que
são elaborados num espaço de proximidade geográfica e institucional, a
partir de uma troca não mercantil: a reciprocidade”.
Os recursos específicos, segundo esta concepção, só existem
no estado virtual e não podem ser transferidos. Eles resultam de um
acumulo de memória, de uma aprendizagem cognitiva coletiva, surgem
de processos interativos carregados de cultura, de saber local. Quando
conhecimentos e saberes heterogêneos são combinados, segundo
Pecqueur (2005), novos conhecimentos são produzidos.
O processo de “especificação de ativos” pode proporcionar
a diferenciação de um território dos demais e se contrapõe ao regime
de concorrência baseada na produção standard ou de produtos
commodities. Para Pecqueur (2006a), a dinâmica de desenvolvimento
territorial visa revelar os recursos inéditos e é por isso que ela se constitui
uma inovação. Carrière e Cazella (2006, p. 34), por sua vez, mencionam
que a metamorfose dos recursos em ativos específicos “é indissociável
da história longa, da memória social acumulada e de um processo
de aprendizagem coletiva e cognitiva (aquisição de conhecimento)
característica de um dado território”.
O processo de especificação consiste na qualificação e
diferenciação de recursos que os atores locais revelam no processo de
resolução de seus problemas comuns. Para Carrière e Cazella (2006, p.
34), o “ponto máximo de maturação de um território construído consiste
na geração de uma renda de qualidade territorial”.
Elementos constitutivos do SIAL farinheiras
A caracterização do SIAL, segundo Muchnik (2008, p. 518), passa
pela analise das especificidades dos recursos mobilizados: “os produtos,
as técnicas e o saber fazer necessários para implementá-los, as culturas
alimentares, o patrimônio natural e cultural, seus atores, suas atividades
205
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
e suas organizações, assim como rede de instituições do território”.
Para o autor, “especificar os recursos” é um primeiro passo para por em
funcionamento os processos de inovação que contribuem para a fixação/
enraizamento das atividades em um território.
Para possibilitar pesquisa empírica relacionada aos SIALs,
Muchnik (2006, p. 4-5) sugere estruturá-la em quatro dimensões: a
dimensão histórica – permite avaliar o processo de formação do SIAL,
a dimensão institucional – evidência a relação entre os atores, suas
estratégias individuais e coletivas, a dimensão técnica – centrada na
observação, descrição e análise dos saberes e das técnicas utilizadas e
dimensão alimentar – inerente as relações sociais, culturais e econômicas,
entre o produto e o consumidor5. Para o autor os SIALs são diversos
por sua história, por sua organização espacial e por sua organização
econômica e social (MUCHNIK, 2006, p.13).
O enfoque SIAL, segundo Muchnik (2006, p. 16), é uma ferramenta
metodológica que permite analisar as produções agroalimentares locais,
uma vez que evidencia: articulações entre produtores e consumidores,
articulação entre atores e atividades territoriais diferentes (produção,
serviços, turismo) e articulações entre dinâmicas rurais e urbanas.
Os recursos e ativos territoriais inerentes ao SIAL podem ser
agrupados, segundo Ambrosini et al. (2008, p. 3), em três eixos de
análise: a dimensão histórica, a dimensão técnico-teórica e a dimensão
institucional. A dimensão histórica permite “apreender o processo de
formação das experiências investigadas e o sentimento de pertencimento,
bem como sua possível influência no comportamento de cooperação
e de concorrência entre os atores”. Nesta perspectiva, o território é o
lócus de relações sociais que possibilita comportamentos cooperativos
baseados na confiança e as atividades econômicas estão enraizadas
nas atividades sociais, determinando e favorecendo seus resultados. A
dimensão técnico-teórica, por sua vez, se pauta na “observação, descrição
206
5 As dimensões evidenciam, segundo Muchnik (2006, p 10-11), laços históricos através da origem e das referências
indenitárias dos atores; laços materiais inerentes ao tipo de solo, clima, paisagem, técnicas etc,; e laços imateriais
relacionados a imagem do território, sua cultura, seus saberes e tradições etc.
PARTE iiI
Capítulo 9
e análise dos saberes e técnicas utilizadas, bem como no saber-fazer
compartilhado como um ativo da comunidade”. A dimensão técnicoteórica valoriza o saber fazer local ao compartilhar técnicas, patrimônio
coletivo do território, seja em práticas agrícolas ou nos processos de
agroindustrialização. Por fim, a dimensão institucional possibilita analisar
“as relações entre os atores sociais, através de suas estratégias individuais
e coletivas (...)” (AMBROSINI et al.; 2008, p. 3).
As três dimensões acima descritas estão presentes nas perspectivas
técnica (tecnologia, inovação, recursos naturais etc.) e humana (social,
cultural, econômica etc.) apresentadas por Barjolle et al. (1998), bem
como em Lins (2006). As três dimensões acima apresentadas, permitem
uma aproximação entre teoria e campo empírico na analise do SIAL
Farinheiras.
A dimensão histórica do SIAL farinheiras
O cultivo da mandioca e o seu processamento em forma de
farinha era realizado pelos indígenas que habitavam o território.
Relatos feitos por Staden (1999) ao passar pelo litoral Norte do Paraná
(Guaraqueçaba) entre 1548 e 1555 descreve a produção de mandioca
(plantio) e seu processamento na forma de farinha (diferentes tipos e
técnicas utilizadas). Relatos feitos por Saint-Hilaire (1978), do início do
século XIX, também evidenciam a presença da cultura da mandioca e seu
processamento na forma de farinha. O autor mencionou que a farinha
de mandioca produzida no Litoral do Paraná era exportada pelo Porto
de Paranaguá. Martins (1995), que passa pelo Litoral do Paraná entre
os anos 1854 e 1856, corrobora com os escritos de Saint-Hilaire no que
se refere a produção e a exportação da farinha, porém feita em escalas
menores do que a da erva mate, do arroz e da madeira. Por fim, Leandro
(2007) relata a ocorrência de comercialização de farinha de mandioca
no Litoral paranaense e seu excedente comercializado em Curitiba na
segunda metade do século XIX.
A organização das famílias rurais em torno das farinheiras lhes
permitia dialogar com maior frequência e trocar informações, troca
207
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
208
de saberes, sobre a atividade produtiva, espaço no qual o saber fazer é
repassado entre as gerações.
A produção industrial e as regulamentações sanitárias para a
produção e comercialização passam a inibir a venda deste produto. A
construção das farinheiras comunitárias no projeto Paraná 12 Meses,
realizado no inicio da década de 2000, tinha como propósito possibilitar
a produção e a venda da farinha de mandioca dentro dos padrões
recomendados pela vigilância sanitária, nas áreas rurais do litoral
do Paraná. Ao mesmo tempo para que fosse possível o uso coletivo,
os produtores deveriam se organizar para gerenciar e auto-gestionar
a unidade produtiva: organizar escalas de uso, definir a forma de
manutenção dos equipamentos, taxa de contribuição financeira etc.,
ou seja, elaborar coletivamente um termo de uso, regras, da unidade
produtiva. As farinheiras comunitárias, segundo Sachs (2007), podem
proporcionar a produção de meios de subsistência decentes ao passa que
um empreendimento coletivo, possibilita maior equidade na distribuição
de renda.
Independentemente do espaço (farinheira) ser comum para a
produção da farinha de mandioca, para a sua produção com frequência
as famílias se ajudam em mutirões (ou guajus – expressão local). A
farinheira se torna um espaço para confraternização/socialização do
trabalho coletivo. Esta é uma atividade na qual a mulher esta presente,
raramente se observa a produção de farinha sem a sua participação. Neste
espaço saberes e valores identitários são compartilhados, por exemplo
em relação a matéria prima tem-se o diálogo sobre épocas de plantio,
variedades das ramas, tratos culturais e tempo de permanência no solo
para propiciar maior rendimento em farinha.
A pesquisa-ação junto a comunidade proporcionou observar
com relação a transformação da mandioca em farinha (processamento),
trocas de saberes em relação aos cuidados ao descascar a mandioca
(limpeza), tempo necessário de permanência da massa na prensa,
cuidados para controlar o fogo para manter uma adequada temperatura
do tacho, cuidados ao mexer a farinha durante a torra e noção do tempo
PARTE iiI
Capítulo 9
necessário que constituem uma verdadeira arte, a “arte de torrar”.
Saberes que não se encontram em nenhum manual, saberes que não são
repassados por técnicos, no entanto cada agricultor tem sua receita, sua
lógica, sua racionalidade. Os agricultores tem a capacidade de produzir
uma farinha mais fina, mais grossa, mais ou menos torrada. Estes saberes
identitários são, com frequência, compartilhados, seja entre familiares ou
nas relações de vizinhança.
A produção de farinha, nas farinheiras, ocorre graças a um
conjunto de “artefatos”; equipamentos que assumem formatos não
padronizados e usam materiais diversos para sua produção. Como no
passado a madeira era abundante e as restrições legais para sua extração
eram menores, se observa muitos equipamentos para a produção da
farinha construídos com o uso deste material, combinando com o uso do
metal. O saber fazer/reformar/consertar os equipamentos esta presente
entre os mais velhos, como exemplo relata-se um momento vivido para
a reforma de um descascador mecânico para a farinheira comunitária
do Açungui, em Guaraqueçaba. Reunidos em mutirão os agricultores
escolheram a madeira adequada, cortaram de acordo com as medidas
necessárias, mantiveram distâncias e inclinação nas e entre as madeiras
afixadas na parte de metal, ou seja, a partir de suas experiências vividas
reconstruíram um equipamento extremamente útil para a realização de
suas atividades.
Estes relatos se relacionam a história e a cultura deste território,
que se construiu por meio da interação de seus atores. Território como
o lócus de relações sociais inerentes ao conjunto de práticas e saberes
relacionados à produção de mandioca, a construção e manutenção das
farinheiras e seus equipamentos e à produção da farinha. A atividade
de produzir farinha esta enraizada nas relações sociais, determinando e
favorecendo seus resultados.
No Litoral do Paraná fazer farinha representa a continuidade
de uma atividade que os jovens, infelizmente, não estão dispostos a
seguir. Nestas comunidades se observa que quem produz farinha são
pessoas mais velhas, muitas vezes aposentados. A atividade representa
209
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
a manutenção e o resgate de uma cultura local, um saber fazer, expressa
na arte de fazer farinha, farinhar. Atrelada a atividade se observa um
sentimento de pertencimento ao território, “território da farinha”, no
qual se fundam as relações sociais em torno de “mandioca, farinheira e
farinha”, presente no cotidiano das famílias.
A dimensão técnico-teórica do SIAL farinheiras
A dimensão técnica e teórica denota aspectos relacionados
ao uso dos recursos naturais tanto na produção da matéria prima; a
mandioca, bem como no processo de agroindustrialização; a arte de
farinhar. Compreende, também, os equipamentos e técnicas utilizadas na
elaboração da farinha.
Para a produção da matéria prima se faz necessário observar
as características biofísicas do território (tipo de solo, clima, paisagens
etc.), sendo que a relação das atividades produtivas com o ambiente
natural no território é determinante para a “localização” destas, pois não
seriam passíveis de “deslocalização” para ambientes com características
muito distintas. Conforme Cazella et. al (2009, p. 39), “o território é uma
unidade ativa de desenvolvimento que dispõe de recursos específicos e
não transferíveis de uma região para outra”. Sendo o Litoral paranaense
composto por um mosaico de Unidades de Conservação, os agricultores
tiveram que rever suas práticas e locais de cultivo; o uso dos recursos
naturais.
Os produtores de raiz e farinha de mandioca adaptaram suas
produções segundo as normas estabelecidas pela legislação ambiental
vigentes, produzindo em pequena escala e em áreas de pouca declividade,
respeitando as restrições das UCs, mantendo preservadas as áreas de
Áreas de Proteção Permanentes (APPs), e evitando o uso de agrotóxicos.
No Litoral paranaense as etapas do processamento para a produção
de farinha, após a colheita, são: descascamento, lavagem, ralação,
prensagem, esfarelamento, torração e embalagem. O descascamento pode
ser manual ou mecânico. O descascamento manual é realizado com facas
afiadas, tomando-se os devidos cuidados para que não fique pedaços
210
PARTE iiI
Capítulo 9
de cascas sem retirar e para que se retirem os pontos pretos existentes
na mandioca, fatores esses relevantes, pois influenciam na qualidade do
produto final. O descascamento mecânico é realizado em cilindros de
madeira ou metal (ou misto). O cilindro é rotacionado por um motor
elétrico, que faz com que as mandiocas que estão no seu interior sejam
descascadas por atrito contra a parede do cilindro, que possui ranhuras
na parte interna. Nesta fase os resíduos gerados são as cascas e a água de
lavagem.
A ralação pode ser mecânica ou manual. A ralação manual
da mandioca pode ser feita em ralador simples de inox, utilizado nas
residências. No Litoral paranaense, este processo ocorre em algumas
farinheiras de autoconsumo. Há também o método de ralação manual
feito com uma roda fixada por um eixo, em uma estrutura de madeira.
A ralação mecânica, por sua vez, utiliza-se de um motor que rotaciona
um cilindro de madeira revestido com aço cheio de ranhuras. Quando
a mandioca é atritada contra o cilindro, ocorre a ralação da mesma,
resultando em uma massa branca que cai em um recipiente (cocho).
A prensagem, também, pode ser manual ou mecânica. A
prensagem manual ocorrer numa prensa de madeira ou metal. A prensa
de madeira possui uma estrutura com formato de trave de futebol, na
qual na sua parte superior encontra-se uma rosca na madeira que se
encaixa a um parafuso de madeira, denominado “fuso”; é um sistema
de porca de parafuso, porém feito artesanalmente em madeira e em
tamanho grande. Nesta prensa coloca-se a massa proveniente da ralação
em sacos com pequenas perfurações (em alguns casos se utiliza o “tipiti”,
cesto construído com bambu), exercendo pressão sobre os mesmos
para a retirada da água da massa. Este processo é realizado lentamente.
A água liberada é denominada “manipueira”, ou “mandiquera”, como
denominada na Região. A prensagem mecânica tem a mesma lógica de
funcionamento, porém é feita com uma prensa de metal hidráulica, que
faz a prensagem da massa com menor esforço humano.
O esfarelamento consiste em soltar a massa que foi prensada. No
esfarelamento manual abrem-se os sacos que foram utilizados e despeja-
211
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
212
se a massa prensada, que está compactada, em um cocho, geralmente
de madeira, e com as mãos se faz a descompactação da massa. O
esfarelamento mecânico a massa é colocada em uma estrutura de metal
que possui em seu interior hastes, que giram e fazem a desagregação da
massa.
A torração, por sua vez, é realizada em forno (linguagem
local) ou tacho, alimentado por lenha, que necessita que a massa seja
constantemente mexida, processo que pode ser realizado manualmente
ou mecanicamente. Este processo consiste basicamente em retirar a
umidade existente no produto e torrar o mesmo. A massa esfarelada é
colocada em um tacho, com fogo mais alto, para realizar a “vivuia”, como
é denominada localmente, que consiste em fazer uma pré-torração.
Após, a massa retorna ao forno com fogo mais baixo, onde é realizada a
torração até o ponto ideal do produto, reconhecido pelos produtores pelo
cheiro. No processo manual, a massa é mexida com pás de madeira, já no
processo mecânico, a massa é mexida por um agitador de madeira, que
gira rente ao forno, rotacionado por um motor elétrico.
Nas unidades produtivas os dejetos gerados são as cascas, água
de lavagem e mandiquera. As cascas retornam diretamente ao solo ou em
composteiras. A água de lavagem retorna ao meio ambiente. O resíduo
com maior impacto negativo ao meio ambiente do processo produtivo
é a mandiquera. O destino dado a este produto cabe a cada agricultor e
os usos são diversos: inseticida natural (combate de formigas, broca da
bananeira etc.) e herbicida (usado para o controle de ervas daninhas).
Existem outras possibilidades de uso como na alimentação humana ou
produção de sabão, no entanto os agricultores ainda não o fazem não
tradição. A lenha utilizada nos fornos, segundo os agricultores, é retirada
das matas, derivadas de árvores e galhos secos, sema derrubada da
floresta, prática não permitida em UCs.
A estrutura física das farinheiras diverge, podendo ser de
alvenaria, madeira, mistas de madeira e alvenaria, cobertas com telha
de amianto, argila, palha, com ou sem forro, com ou sem paredes
laterais (DENARDIN et al., 2011). Não existe uma homogeneidade de
PARTE iiI
Capítulo 9
equipamentos ou espaço físico destinado à farinheira. Sua construção
depende da disponibilidade de recursos financeiros e de materiais
(madeira, metais etc.) e principalmente o saber fazer, como mencionado
anteriormente, que se altera entre os agricultores nas comunidades/
localidades. A arte de farinhar no Litoral do Paraná deriva-se de um
saber fazer tradicional, cujo público que o demanda reconhece-o pelo
sabor. Neste sentido, o produto é sem dúvida um patrimônio coletivo
deste território como evidenciado por Ambrosini et al. (2008, p. 20): o
“processo de qualificação, ou valorização de um produto, apoia-se num
saber-fazer tradicional, onde o alimento passa a ter um valor identitário,
e o conhecimento público e partilhado de técnicas é visto como um
patrimônio coletivo do território”.
O saber fazer é inerente a todas as atividades, o cultivo da
mandioca, a construção da farinheira e dos equipamentos, o destino e
uso dos dejetos e principalmente o fazer farinha. O segredo, segundo os
agricultores, esta no “torrar” a farinha e cada agricultor menciona que
sua farinha é mais ou menos torrada, mais ou menos fina que a de seu
vizinho, observa-se, portanto, uma resistência natural à homogeneização
de sistemas produtivos, afastando-se da lógica inerente da produção em
larga escala, commodities.
A dimensão institucional do SIAL farinheiras
A dimensão institucional do SIAL Farinheiras considera um
conjunto de elementos relacionados à organização e à cooperação
existente ou não entre os agricultores, bem como relava a presença e a
importância de atores e instituições que de alguma forma influenciam as
atividades inerentes à produção de mandioca e a agroindustrialização da
farinha.
Os agricultores, em sua maioria, possuem suas próprias
farinheiras. No entanto uma prática comum é a participação de familiares
em “guajus”, onde diversos membros da família se ajudam mutuamente,
indicando que mesmo no caso de unidades produtivas individuais a
cooperação em muitos casos esta presente. Outra prática comum consiste
213
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
em emprestar ou alugar a farinheira para familiares e vizinhos mais
próximos com pagamento realizado através da troca de dias de trabalho
ou com produto farinha.
Merece destaque no Litoral do Paraná oito farinheiras
comunitárias construídas através do programa estadual “Paraná 12
meses”. Em 2008 todas estavam desativadas. A partir de tal constatação
desencadeou-se um conjunto de projetos de pesquisa e extensão junto a
Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral que permitiu, em parceria
com os agricultores, reestruturar três farinheiras, duas no município de
Guaraqueçaba e uma em Guaratuba. As ações de extensão se relacionam
ao apoio institucional a atividade produtiva. Nestas unidades um
conjunto de práticas relacionadas ao trabalho coletivo e cooperação foi
desencadeado para recuperar sua infraestrutura física (pintura, telhado,
forro, etc.) e equipamentos.
Entre as instituições que direta ou indiretamente se relacionam a
atividade produtiva da farinha de mandioca que merecem destaque estão
o Instituto Agronômico do Paraná (IAPAR) que fornece capacitações
novas variedades de ramas para os agricultores e a Empresa de Assistência
Técnica e Extensão Rural do Paraná (EMATER). No entanto, com a crise
que afeta estas instituições públicas o apoio técnico tem sido precário e
se faz necessário uma maior intensidade de ações que visam estimular o
plantio e o processamento da farinha. As prefeituras e suas respectivas
secretarias de agricultura são ausentes em termos de atuação. Para piorar
a situação, constata-se no Litoral paranaense uma invasão do cultivo de
palmáceas, reduzindo significativamente a área plantada com mandioca.
A fragilidade das instituições e a ausência de ações não permitem
fazer um diagnóstico favorável quanto ao futuro desta atividade, pelo
contrário, se observa a ausência de jovens nas farinheiras e os agricultores
deixando de cultivar e processar o produto.
Conclusões
Produzir farinha de mandioca faz parte da cultura dos pequenos
agricultores familiares do Litoral do Paraná. O produto é utilizado para a
214
PARTE iiI
Capítulo 9
alimentação diária das famílias, contribuindo para a soberania alimentar,
bem como possibilita a geração de renda com a comercialização. Nas
visitas realizadas aos agricultores que possuíam farinheiras foi possível
perceber que fazer farinha é uma arte que é repassada de pai para filho ao
longo de gerações e a farinha produzida não é homogênea, cada agricultor
produz do seu modo, possui um saber fazer único. A existência de
Unidades de Conservação permite que o produto resultante da produção
no entorno ou mesmo nas áreas de UCs onde a produção é permitida
apresente potencial agroecológico, uma vez que não se recomenda o uso
de produtos químicos em áreas de proteção ambiental.
O SIAL farinheiras foi caracterizado e apresentado a partir das
dimensões histórica, técnico-teórica e institucional. Esse procedimento,
metodologia, permitiu evidenciar os recursos e ativos tangíveis e
intangíveis do território. A farinha industrializada em grande escala pode
ser considerada um recurso genérico, no entanto, quando produzida
pelos agricultores familiares, como produzida no Litoral do Paraná
pode se considerada um recurso e no futuro um ativo do território. Esta
farinha produzida estará condicionada ao saber fazer dos agricultores
locais, tornando-se específico e relacionado ao território.
A dinâmica do desenvolvimento territorial consiste, portando,
em revelar estes recursos. A estratégia de valorização dos produtos com
identidade territorial constitui-se assim na operacionalização do modelo.
Enquanto estratégia, a farinha de mandioca pode vir a se tornar o produto
líder para compor a “cesta de bens” do território (PECQUEUR, 2006b).
Outros produtos derivados da mandioca (biju, chips, pão de mandioca,
berereca etc.) e demais produtos do território (bala de banana, cachaça,
polpa de açaí etc.) podem vir a complementar a cesta de bens.
Por fim, entre os problemas enfrentados no Litoral do Paraná
está a fragilidade das instituições de apoio à organização da atividade
produtiva e ao planejamento de ações pró desenvolvimento territorial a
partir da valorização dos recursos existentes no território, inviabilizando
desta forma a possibilidade de obtenção de uma “quase renda” atribuída
ao território.
215
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
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Capítulo 9
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217
CAPÍTULO 10
A “FEITURA DA FARINHA”: NOTAS ETNOGRÁFICAS DE
UMA FARINHADA NO ALTO SERTÃO DA BAHIA
Andrea Lima Duarte Coutinho1
Introdução
Este texto tem sua origem nas impressões obtidas em momentos
da pesquisa de campo na comunidade camponesa de Lagoa do Saco,
localizada no município de Monte Santo-BA, lócus da minha pesquisa
de mestrado sobre a produção local de farinha de mandioca e sua relação
com a identidade do grupo em questão. Muito do que aqui é exposto
têm sua origem na investigação sobre os variados hábitos alimentares e
nos momentos de leitura de textos, que deram descanso ao levantamento
bibliográfico e fizeram brotar palavras sortidas para qualquer uso e para
qualquer graça. Como nos tempos da escola, os mitos e suas explicações
sobre a invenção das formas, dos conteúdos, das técnicas, das ações,
dos sentimentos, dos potenciais dos homens do Mundo e dos Deuses,
ilustraram o processo de compreensão acerca da diferença entre o
alimento e a comida.
1 Cientista Social e Mestre em Cultura e Sociedade- UFBA. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Ambientais e
Rurais (NUCLEAR)- Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas /Universidade Federal da Bahia. E-mail:
[email protected].
219
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Eis que surgiu a questão: optar por Deméter2 ou Gaia3? Aquela
que ensina a plantar ou A Mãe Terra, propriamente dita? A opção se deu
pelas duas. Poderia ser por Tântalo4 e sua polêmica oferta dos alimentos
aos humanos e o tão célebre e imenso castigo ao qual foi condenado,
por ter desagradado os deuses. Também poderia ser por Cronos, que
em atos de antropofagia e retroalimentação, comia os próprios filhos e
se encantava. Poderia ser. Mas, aqui o elogio está posto especialmente a
Mani5 e as Senhoras que propiciam o alimento. Dessa forma, podemos
220
2 “Deméter ou Demetra (em grego: Δημήτηρ, “deusa mãe” ou talvez “mãe da distribuição”) é uma deusa grega, filha
de Cronos e Reia, deusa da terra cultivada, das colheitas e das estações do ano. É propiciadora do trigo, planta
símbolo da civilização. Na qualidade de deusa da agricultura, fez várias e longas viagens com Dionísio ensinando os
homens a cuidarem da terra e das plantações”. Fonte: http://www.brasilescola.com/mitologia/demetra.htm. Acesso
em: 02 de junho de 2014.
3 “Gaia, a segunda divindade primordial segundo a mitologia grega, surgiu apenas depois de Caos, representando
a Terra. Com uma enorme potencialidade geradora, Gaia gera pontos, montanhas e seu principal filho e posterior
esposo, Urano”. http://www.brasilescola.com/mitologia/gaia.htm. Acesso em: 02 de junho de 2014.
4 “O Suplício de Tântalo: Tântalo, filho de Zeus e de Plota, era rei da Frígia. Muito querido entre os deuses,
freqüentemente era convidado a partilhar das suas refeições no Olimpo. Durante um desses banquetes,
Tântalo abusou da confiança dos deuses roubando-lhes um pouco de néctar e ambrosia, alimentos que davam
a imortalidade, porém um privilégio somente do Olimpo. Tântalo, julgou que também era um deus poderoso
e convidou os deuses para um jantar em sua casa, servindo-lhes como refeição, o seu próprio filho Pélops em
pedaços, para testar a divindade dos deuses. Os convidados deram conta do crime de Tântalo, mas Deméter comeu
o ombro de Pélops. Tântalo foi condenado ao suplício de fome e de sede eternas. Mergulhado em águas até ao
pescoço, quando ele se debruçava para beber água, esta desaparecia. Por cima de sua cabeça, pendiam ramos de
árvores com frutos saborosos, porém o vento retirava do seu alcance sempre que tentava apanhá-los. O aviso
dos deuses ficou na memória de todos: todo ser humano que provar da ambrosia dos deuses seria condenado ao
suplício de Tântalo”. http://consumonobrasil.wordpress.com/2013/05/28/mitologia-grega-o-suplicio-de-tantalo/.
Acessado em: 02 de junho de 2014.
5 “Conta-se que e filha de um chefe indígena chamado de morubixaba apareceu grávida em uma determinada
aldeia. Seu pai (o morubixaba) lhe teria pressionado para que dissesse quem a tinha desonrado. Como ela não lhe
dissera, seu pai, resolveu matá-la como castigo; nessa ocasião crucial aparece um homem desconhecido, branco,
defendendo a menina, dizendo que esta era inocente e que realmente não tivera contato com nenhum homem.
Como o pai convenceu-se de que era mesmo verdade o que a sua filha lhe dissera, deixou que a gravidez prosseguisse.
Nascendo a menina viram que esta era branca, desembaraçada, pois, com poucos meses falava e discorria sobre
tudo. Deram-lhe o nome de Mani. A menina atraiu muitas pessoas, inclusive povos vizinhos, curiosos para ver o
fenômeno da menina que era de raça diferente, tinha o dom da inteligência e sabia coisas fantásticas para a sua
idade. Quando Mani completou um ano de idade, morreu sem explicação aparente. Enterraram-na próximo à casa
de sua mãe. Como de costume jogavam sempre água no lugar onde a menina fora enterrada. Pouco tempo depois
nasceu ali uma planta que eles ainda desconheciam, e deixaram-na crescer. Os pássaros que a comiam tinham
uma sensação de embriaguez, e com isso os indígenas ficaram admirados.Um dia fendeu-se a terra e tiraram o
seu excesso descobrindo, da planta, o tubérculo de sua raiz, no qual, acreditavam, estava representado o corpo de
Mani. Comeram o tubérculo e com ele também fizeram uma bebida fermentada, chamada cauim”. Fonte: Clerot,
Leon F.R. Glossário etimológico dos termos de origem Tupi/Guarani, incorporados ao idioma nacional – Brasília:
PARTE iiI
Capítulo 10
começar a pensar: Os deuses propiciaram o alimento. Os mortais
inventaram a comida.
A comida deve ser definida como o alimento transformado.
A transformação se dá de diversas formas. O início da transformação
está na escolha; o alimento que será transformado em comida passa por
uma série de seleções e combinações que por sua vez, estão contidas em
imensos conjuntos formados pelos arcabouços culturais dispostos. Porque
não transformamos alguns alimentos em comida, mesmo quando estes
alimentos estão disponíveis na Natureza e são passíveis de transformação?
Primeiro porque não foram escolhidos como “comestíveis” e em um
segundo momento por não condizer com o que serve ao gosto: aquilo
que não pertence ao conjunto de aparatos técnicos e simbólicos e que
corresponde aos costumes. Ou seja, o abismo de significados que separa
o alimento da comida é a cultura.
Determinados pratos ou receitas podem definir um costume
alimentar, assim como explicitar características intersubjetivas e públicas
muito mais eficientemente que depoimentos ou enormes tratados. A
comida fala. Fala sobre escolhas, combinações, proibições, emoções,
cotidianos.
A pretensão maior deste texto é realizar uma breve descrição das
relações de trabalho que envolvem o plantio da mandioca e a produção da
farinha na Lagoa do Saco, com o objetivo de desvelar relações pautadas
pela divisão social do trabalho por gênero e geração, como também a
noções de autonomia alimentar e identidade social próprias deste grupo.
Estas relações foram observadas em campo (através de
pesquisa com forte base etnográfica) em uma determinada situação e
um determinado contexto: A Farinhada realizada na Casa de Farinha
Comunitária6 da comunidade de Lagoa do Saco. Para fins de elucidação,
os depoimentos das agricultoras e agricultores entraram como a fonte
de maior informação sobre a divisão das atividades da Farinhada e o
Senado Federal, 2010.
6 Segundo dados da Associação dos Moradores da Lagoa do Saco (entidade gestora da Casa de Farinha),
aproximadamente 90% das famílias da comunidade, utilizam a Casa no período da Farinhada.
221
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
uso da terra. Foram entrevistadas (os) no total, 30 produtoras (es) que
representaram um universo de aproximadamente 300 famílias.
O trabalho na roça: a “labuta”7 da mandioca
Os principais alimentos cultivados na comunidade de Lagoa
do Saco são a mandioca, o milho, a palma e o feijão, por ordem de
importância. Esses alimentos são plantados nas roças (localizadas em
sua maioria, nas serras que circundam o centro da comunidade) e nas
malhadas (localizadas ao lado da casa da família).
A localização do plantio, seja ele na roça ou na malhada diz nos
muito sobre as relações de produção do grupo em questão :o trabalho
da roça é quase sempre uma função dos homens jovens e o trabalho
nas malhadas são de responsabilidade das mulheres da família sejam
elas jovens ou não.8 A malhada é o local de excelência para o plantio
da mandioca, como foi registrado pelos antropólogos Klaas e Ellen
Woortmann, na obra O Trabalho da Terra (1997) realizada entre
camponeses do sertão de Sergipe:
Esta é a terra da mandioca por excelência. Os bairros rurais
(ou municípios) são ricos em malhadas, são ricos também em
mandioca, alimento básico e uma das principais mercadorias
destinadas a feira. A mandioca é consorciada a outros produtos,
basicamente de subsistência, destinados a casa (p.31).
Por questões conceituais e contextuais, torna-se mais apropriado
afirmar que no contexto dessa pesquisa, a mandioca e os outros produtos
são destinados em primeiro lugar à mesa e depois à feira: a mandioca
plantada é quase que exclusivamente direcionada para o consumo interno
das famílias e seu uso se destina tanto às pessoas como aos animais de
criação principalmente os suínos, garantindo a soberania alimentar do
grupo em questão.
222
7 O significado local de labuta está relacionado a trabalho muito grande que requer grande esforço físico.
8 Mesmo existindo uma divisão do trabalho por gênero e geração, deve ser lembrado que caso haja necessidade, as
mulheres podem trabalhar na roça e os homens na malhada. Em anos ideais de chuva, os trabalhos aumentam e a
produção também, a divisão do trabalho é reconfigurada para que as metas sejam cumpridas.
PARTE iiI
Capítulo 10
A forma de acesso à terra na Lagoa do Saco tem como característica
principal a terra própria e a terra arrendada (uma pequena parcela dos
agricultores arrendam terras de parentes); a terra própria pertence a todos
os membros da família que possuam interesse em “trabalhar a terra”.
Quando da divisão desta por herança, geralmente o filho mais novo fica
responsável pela roça da família nuclear. Em caso de migração, o irmão/
filho mais novo (caçula) também fica responsável pela terra dos irmãos e
pelos cuidados com os pais. Ele herda a maior parcela da terra destinada
ao plantio. Geralmente, a terra não é vendida, mas quando isso acontece
o irmão que se manteve na comunidade compra a parcela do irmão ou da
irmã que está ausente.9
Assim, além de geracional, o trabalho na roça ou na malhada é
realizado através de um sistema de rotação de terras e de acordo com
as relações de parentesco: o plantio é realizado de forma consorciada,
a propriedade da família não ultrapassa 5 (cinco) tarefas de terra, o
trabalho é realizado basicamente por mão de obra familiar e é dividido
nas seguintes etapas:
Preparação do solo: é anterior ao plantio e é realizada no período
de novembro a janeiro, posteriormente ao período das “trovoadas” e
anteriormente ao período de longa estiagem. Nessa etapa a escolha pelo
tipo da terra é realizada em um processo de análise do meio: qual o tipo
de terra ideal para plantar mandioca, qual o tipo de terra ideal para o
milho, etc. Nota-se que a presença masculina é majoritária contudo a
presença feminina, principalmente em roças mais próximas do centro da
comunidade não é algo raro de se encontrar. Foi notado que no plantio
das malhadas a presença feminina se faz muito maior.
As refeições consumidas no trabalho da roça são preparadas
pelas mulheres dependendo da distância em que estão localizadas as
plantações, um dos filhos leva a comida para o pai ou para o tio. A comida
nesses momentos deve trazer “força e satisfação”. Os pratos servidos e a
9 O número de membros da comunidade que migram é bastante elevado.Geralmente os irmãos ou irmãs mais
velhos são os que migram. O lugar escolhido é a cidade de São Paulo, por já haver nesta cidade uma rede de apoio
pautada pelo parentesco, vizinhança e a amizade.
223
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
ordem das refeições durante essa fase do trabalho geralmente são:
Carne com cuscuz, café com leite, abóbora cozida, aipim cozido, pão com
ovo > café da manhã
Feijão, farinha, carne (de qualquer animal), cortado de abóbora ou
quiabo, frutas como banana ou melancia > almoço
Café com leite, pão ou beiju > merenda
Feijão, farinha, carne > jantar
Woortmann (1997), salienta a expressão do consumo alimentar
durante o “trabalho da terra” quanto á relação comida- corpo-trabalho:
O alimento considerado forte (feijão com farinha) deve ser
consumido pelo homem, que realiza trabalhos pesados com
maior dispêndio de energia. A comida deve repor a força para
que o homem siga trabalhando. O alimento mais fraco (leite com
tubérculos) deve ser consumido pelo homem quando ele realiza
trabalho mais leve, com menos dispêndio de força, assim como
pelas mulheres e crianças (p. 50).
FIGURA 1 – ALMOÇO NO MOMENTO DA RASPAGEM (FARINHADA DE DONA
CATARINA)
Fonte: Trabalho de Campo. Data: Outubro de 2012.
224
PARTE iiI
Capítulo 10
O plantio e o consorciamento: o plantio é a segunda etapa do
trabalho da roça e compreende os momentos de adubação da terra,
escolha das sementes e mudas, medição para abertura das covas e plantio
consorciado10. Deve ser lembrado que o replante da mandioca é feito a
partir de mudas, chamadas manivas, que são enfiadas nas covas. O ideal
é que o plantio seja realizado, após um período de chuvas pois assim,
segundo os produtores, “o chão estará mais mole e não corre o risco de
quebrar a maniva”.
Nessa etapa dos trabalhos a participação das mulheres e das
crianças é tomada como um “auxílio”. O trabalho feminino e infantil
nesse momento é visto pelos homens (principalmente os mais velhos)
como um trabalho suporte. Percebe-se em conversa com os homens
que a autonomia financeira feminina não é vista como algo positivo. As
mulheres que migram e trabalham na cidade ultrapassam o limite do
status de “mulher”. É como se, por estar longe dos olhos da família e da
comunidade pudesse dirigir o seu comportamento de forma autônoma.
Por outro lado, as mulheres que permanecem na comunidade são vistas
como possuidoras de um status quo secundário ao dos homens.
Na prática, o trabalho da mulher e do homem são complementares;
um depende do outro em um enlace que ultrapassa o que é afirmado
no discurso. O interessante aqui é não considerar a divisão hierárquica
(principalmente no momento das refeições) como um fato que reflete
a inexistência das relações de complementaridade11. Como foi dito,
mesmo sendo o discurso sobre o trabalho baseado na afirmação da
10 Sobre a lógica do consorciamento: “A escolha dos produtos a serem consorciados obedece ao que poderíamos
chamar princípio da alternância (...). O princípio da alternância na combinação de produtos com distintos tempos
de duração, tem ainda outro significado se, ao invés de analisarmos as características de cada planta isoladamente,
as analisarmos em conjunto.Configura-se então uma associação que procura otimizar o aproveitamento do
espaço. Assim, no consorciamento entre milho, feijão e algodão, o cálculo do plantio é realizado de forma tal
que, terminada a maturação do feijão, sua colheita anteceda um pouco o momento de expansão do algodão. Há
portanto, um timing adequado a cada sistema, conjunto de plantas”. (WOORTMANN & WOORTMANN, 1997,
p. 93 e 94).
11 Ellen Woortmann (1991), em pesquisa sobre identidade e gênero em comunidades pesqueiras do Nordeste,
define o conceito de complementaridade atrelado ao trabalho, como “atividades de ajuda recíproca” quando
mesmo onde há uma divisão dos espaços por gênero” havia uma relação de complementaridade onde a ajuda de
um viabilizava o trabalho do outro” (p. 4).
225
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
“masculinidade”, o que é observado na prática é uma inter-relação
complementar das divisões das atividades que determinam o trabalho na
roça. Principalmente no momento do plantio, a presença feminina pode
ser notada de maneira constante. Mesmo que seja vista como “ajuda” sua
importância não deve ser desprezada ou posta numa posição secundária
no momento da análise.
Compreende-se desta forma, a organização do trabalho que
vai desde a idealização das atividades da roça até o momento quando
são servidas as refeições como um movimento espacial e ideológico de
cooperação e “complementaridade”. Em um prévio resumo, “a relação
trabalho-terra- comida” é o que deve nortear qualquer tentativa de
compreensão sobre os hábitos alimentares e identidade de comunidades
camponesas ou tradicionais.
A Colheita: essa etapa se configura como uma atividade diária
e é quando os homens da família (com exceção dos mais velhos e das
crianças muito pequenas) saem todos os dias com o raiar do sol, para
trabalhar na roça. As roças estão localizadas geralmente nos “pé de serra”,
o que requer bastante esforço físico e dedicação intensa. É comum logo
quando amanhece, ver os homens saindo a pé, em burros ou motocicletas
para trabalhar/cuidar das roças. Esse trabalho vai até o meio dia, quando
o sol a pino e a fome fazem com quê eles se recolham as suas casas.
Por outro lado, o trabalho na malhada é uma atividade que envolve
homens e mulheres. A pouca distância faz com quê a participação das
mulheres seja maior, já que elas são também responsáveis pelos cuidados
domésticos, incluindo a feitura da comida servida durante o almoço para
os homens e para as crianças que neste horário, estão voltando ou indo
para a escola.
Após, transcorrido o tempo de cada produção agrícola (milho,
feijão ou mandioca), é realizada a colheita. Nessa atividade também notase a presença de homens e mulheres, principalmente na colheita do milho
e do feijão. A colheita da mandioca (a arranca) trata-se de uma atividade
eminentemente masculina:
226
PARTE iiI
Capítulo 10
Mulher não participa da arranca. Porque se exige muita força no
braço. Tem que ter força no braço. Nem homi fraco ou doente
deve participar na hora de arrancar. Também tem outra coisa...
Puxar a mandioca faz mal pra mulher. Se elas ficarem fazendo
isso, pode fazer mal, depois ela pode ficar com dores ou pode
não poder mais ter filho. Faz mal pra mulher. (Morador, 52 anos,
transcrição de entrevista realizada pela pesquisadora, 2012).
Vê-se que essa atividade também é dividida por gênero e por
geração e os motivos aclamados quase sempre envolvem a noção
local do corpo e da força física. É notável que durante as entrevistas as
respostas dadas pelos agricultores quando perguntados sobre a restrição
da participação feminina em algumas atividades, quase sempre dizem
respeito às limitações físicas das mulheres e a fragilidade dos seus
corpos; essa fragilidade geralmente está ligada a composição do aparelho
reprodutor feminino em especial a presença do útero.
As respostas das mulheres geralmente vão de encontro à resposta
dos homens, como pode-se conferir no trecho abaixo:
A gente não participa do trabalho da roça todo, porque os homens
se ocuparam disso. Além disso, a gente já tem muita ocupação aqui
na casa. Além de pegar água, tem que fazer comida, cuidar dos
menino e cuidar da criação. Não sobra tempo pra esse trabalho”.
Mas se precisar a gente vai. (Moradora, 35 anos, transcrição de
entrevista realizada pela pesquisadora, 2012).
Talvez a contradição observada entre o discurso e a prática
esteja pautada nas transformações da divisão do trabalho por gênero
ocorridas nas últimas décadas. Os novos arranjos nos postos de trabalho
e a emancipação feminina em todo o mundo estão sendo “estranhados”
pelos homens da comunidade. Quem sabe, em futuro próximo esse
estranhamento se transformará em uma ressignificação, pois nota-se que
os jovens que foram abordados possuíam um discurso que atribui bastante
valor ao trabalho feminino. Afinal, na prática cotidiana do trabalho o
que observa-se é uma relação histórica de complementaridade, onde
227
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
mulheres e homens em um esforço de solidariedade, se integram para
cumprir prazos, compromissos e garantir a manutenção e a soberania
alimentar do grupo familiar.
A Casa de Farinha
A Casa de Farinha trata-se de um espaço de sociabilidade, troca
de informações sobre técnicas e se configura como o lócus ideal para a
realização de qualquer análise que trate de reciprocidade, solidariedade
e hábitos alimentares de comunidades camponesas ou tradicionais do
Nordeste do Brasil.
A Casa que aqui se faz referência é a Casa de Farinha Comunitária
da Associação dos Moradores da Lagoa do Saco, utilizada por grande parte
dos produtores e produtoras de farinha de mandioca dessa comunidade e
das comunidades vizinhas. Deve ser ressaltado que, atualmente as casas
de farinha manuais deixaram de ser utilizadas, principalmente pelo alto
custo que acarretam para a cadeia produtiva, concentrando-se dessa
forma todas as atividades na Casa Comunitária.
Durante as Farinhadas essa Casa, fica aberta quase todos os dias.
Suas portas e janelas só se fecham quando todos vão dormir e a farinha
produzida está ensacada e armazenada. Os expedientes de trabalho na
Casa de Farinha começam no horário que começam os expedientes de
trabalho nos escritórios e nas fábricas da cidade, aproximadamente às
8 horas da manhã. Só que a sua finalidade é outra: produzir a comida
mais valorizada e consumida pelo grupo social que ocupa esse espaço,
produção esta que depende da necessidade e do desejo do produtor, pois
enquanto um espaço de sociabilidade e reprodução alimentar, nesse local
se mantém a existência e a manutenção do grupo social em questão.Ele
não se configura apenas como um abrigo e sim como uma estrutura
material onde sentimentos, emoções, discórdias e esperanças são postas
em ação. Nessa estrutura as normas de conduta social e convivium são
estabelecidas ou reconfiguradas (abaixo a representação da casa de
farinha).
228
PARTE iiI
Capítulo 10
FIGURA 2 – PLANTA DA CASA DE FARINHA
Fonte: desenhado pela pesquisadora durante pesquisa de campo, outubro de 2012. Local: Lagoa do Saco, Monte
Santo – BA.
O pagamento do valor do aluguel da casa de farinha, para os
moradores que não são associados, pode ser realizado em dinheiro ou em
farinha; quase todos preferem que o pagamento seja feito em farinha, mas
se não for possível, principalmente pela baixa produção e alto consumo
interno, o pagamento varia de acordo com a quantidade de mandioca
colhida na arranca. Para os associados o pagamento se dá através das
mensalidades (aproximadamente 20 reais)12, pagas à Associação dos
Moradores.
Vale ainda salientar que neste espaço é realizada quase que
diariamente a fabricação de tapioca e beiju13. Esses derivados são
12 Segundo dados da associação, o pagamento é recolhido para que as contas mensais de energia sejam quitadas.
Depois da instalação do maquinário elétrico o valor dessas contas, subiu consideravelmente de 20 reais para quase
200 reais mensais.
13 A tapioca é um granulado derivado da fécula da mandioca, que após ser torrado pode ou não dar origem ao beiju
(do tupi-guarani mbe’yu ‘bolo de farinha de mandioca), que é uma comida de origem indígena tupi-guarani
229
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
vendidos para a CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento) e
destinados ao PAA (Plano de Aquisição de Alimentos) e irão compor
parte da merenda escolar das escolas públicas do município em questão.
A maioria dos indivíduos que participam desta atividade são do sexo
feminino e estão ligadas de alguma forma à Associação dos Moradores14.
Durante a Farinhada, as atividades relacionadas à produção são divididas
gênero.
Abaixo quadro explicativo com a divisão das atividades que
constituem a produção de farinha de mandioca e a divisão por gênero e
espaços relacionados na Casa de Farinha.
QUADRO 1 – A PRODUÇÃO DE FARINHA E DIVISÃO POR GÊNERO DAS
ATIVIDADES
ATIVIDADE
DIVISÃO DO TRABALHO POR GÊNERO
Plantar a mandioca
Atividade masculina com alguma presença feminina
Arrancar
Atividade masculina
Carregar (Carrada)
Atividade masculina
Descarregar
Atividade masculina
Raspar
Atividade feminina com alguma presença masculina (principalmente de idosos e crianças)
Lavar
Trabalho coletivo
Ralar
Atividade masculina com presença feminina
Lavar
Trabalho coletivo
Tirar a goma
Atividade feminina15
Prensar
Atividade masculina
Torrar
Atividade masculina
Peneirar
Atividade feminina e alguma presença de crianças
Fazer a tapioca ou beiju
Atividade feminina
Ensacar
Atividade masculina
Fonte: dados primários levantados em trabalho de campo pela pesquisadora, outubro de 2012.
Local: Lagoa do Saco, Monte Santo – BA.
230
amplamente difundida no Brasil. A goma da tapioca, ao ser espalhada em uma chapa ou frigideira aquecida,
coagula-se e vira um tipo de panqueca, em forma de pastel (ou disco, como em algumas regiões). O recheio varia
de lugar para lugar.
14 Outro fato de grande relevância: Em anos de grande estiagem, como foi o de 2012, a fécula ou a goma utilizada
na feitura dos beijus foi comprada pela Associação através de cooperativas do Estado do Paraná, para que o contrato
com a CONAB, não fosse descumprido.
15 As atividades marcadas dizem respeito à contrapartida doada para as participantes da raspagem. Toda mulher
que participa da raspagem da mandioca, leva um balde de goma para casa. Na maior parte das vezes, essa goma é
PARTE iiI
Capítulo 10
Vale esclarecer informações sobre três atividades mencionadas,
de suma importância na “feitura” da farinha: A arranca que se trata de
uma atividade eminentemente masculina tem início com o raiar do
sol e segue até às 8 horas da manhã, quando a mandioca é carregada
no caminhão (a carrada) e parte para a Casa de Farinha. Participam da
arranca os mesmos homens da família que participaram do plantio, só
que nessa etapa há a inclusão de convidados que podem ser parentes,
aparentados ou vizinhos.
A raspagem: os convidados para a raspagem vão chegando aos
poucos. Os primeiros são homens idosos e mulheres também idosas.
Nesse momento é decidido o tempo que a Farinhada vai durar (a depender
da quantidade de pessoas convidadas e não presentes a raspagem pode
durar mais tempo e isso compromete o tempo de duração da produção
consequentemente a qualidade da farinha produzida).
De acordo com as impressões obtidas no trabalho de campo e
seguindo a linha dos relatos, um dos prováveis motivos do aumento da
presença masculina na raspagem, é a mecanização: após a mecanização
da casa de farinha, os homens mais velhos que não sabem operacionalizar
as máquinas (cevador, triturador, peneira elétrica, forno e prensa), mas
que querem “contribuir na feitura da farinha” se engajam na raspagem
com o objetivo de colaboração16. Esses homens, idosos em sua maioria,
quando não possuem mais a mesma força física e a mesma agilidade para
o manuseio da faca usada na raspagem contribuem para a continuidade
do que aqui é chamado de arcabouço lúdico da Farinhada: contam
histórias de longes tempos, comentam o noticiário da televisão, falam dos
mortos e suas mortes, das dificuldades antigas, das atuais possibilidades,
das secas históricas, fazem relatos da migração e das antigas festas já
extintas na comunidade: O São João, a Festa de Santo Antônio e A Festa
de Santos Reis17.
torrada e se transforma em tapioca ou em beiju. Existe na Casa de Farinha um espaço reservado para a feitura da
tapioca, com forno exclusivo para essa atividade.
16 Cada família extensa produz em média 15 sacas de farinha de mandioca (isso é o que equivale a aproximadamente
100 quilos de farinha por saca), em cada Farinhada anual.
17 Segundo os relatos, essas festas deixaram de existir por diversos motivos: longas estiagens, baixa produção
231
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
No decorrer dessa etapa, alguns negócios são fechados
(venda e compra de animais de criação: porcos, bodes e galinhas) e as
brincadeiras entre os participantes são constantes e vão da escatologia
e erotismo a disputas políticas. Nesse momento alguns preceituários e
algumas normas de “bom comportamento” são postos de lado, ou seja,
são temporariamente esquecidos. Como em uma catarse pública os
participantes esquecem as diferenças entre idades, entre gêneros e tecem
comentários que em outra situação seriam considerados desrespeitosos.
Nesse momento as diferenças são sublimadas e a coesão do grupo é
quase palpável. Paradoxalmente, esse é um momento completo de
extravasamento e estreitamento dos laços sociais.
A torra: é um momento de grande importância na feitura da
farinha, principalmente porque nele é conferido o sabor que a farinha
terá o aspecto (se fina ou grossa) e o ponto de torra (mais torrada, menos
torrada). Essa atividade é realizada por um “especialista em farinhas”
chamado de forneiro. A comunidade conta com 3 forneiros (sendo que
um deles reside atualmente em São Paulo). O ofício de forneiro é passado
de pai para filho, de tio para sobrinho e envolve um aprendizado longo
e um conhecimento grande dos tipos de farinha, das preferências das
famílias e dos diversos sabores que a farinha pode ter. O pagamento do
forneiro é realizado em dinheiro e sua diária custa em média de 50 a
60 reais (essa quantia varia de acordo com a quantidade de mandioca
arrancada, o grau de parentesco com o forneiro e condições financeiras da
família que contrata esse serviço). A atividade do forneiro e a sua inserção
no “sistema de trocas” não deve ser tomada como algo contraditório, pois
não se trata de uma relação mercantil e sim de um saber diferenciado
que, em contrapartida recebe pagamento em dinheiro, pois como sabe-se
a campesinidade não exclui a modernidade e seguindo a linha de estudos
232
agrícola, “desinteresse dos mais jovens”. O São João, está em vias de desaparecimento, sendo essa data marcada
apenas pela presença das fogueiras e dos pratos servidos nas casas das famílias (a festa há aproximadamente 15
anos atrás, era comemorada coletivamente. Os pratos eram servidos em uma grande mesa na frente da Igreja de
Nossa Senhora): pamonha, beiju, canjicas, laranjas, licor, milho cozido, carne de porco ou bode assados. Em anos
como o de 2012, os pratos servidos foram bastante reduzidos, existindo apenas a presença de alguns “para não
passar a data em branco”.
PARTE iiI
Capítulo 10
clássicos da sociologia rural, pode-se afirmar que o camponês nunca
esteve isolado. Pode-se entender mais claramente o status do forneiro a
partir do trecho da entrevista a seguir:
O forneiro é uma mão de obra especializadíssima. Eu não sei
o número de farinhadas que participo quando o ano está bom.
Aprendi esse ofício com meu pai e ele aprendeu fazendo farinha
com a família dele. Como tem poucos forneiros eu sou muito
requisitado, chego as vezes a trabalhar durante a semana toda no
período de Farinhada. As vezes saio daqui e vou torrar farinha no
Salgado e no Engorda. (Morador e forneiro, 40 anos, transcrição
de entrevista realizada pela pesquisadora, 2012).
Mauss (2003), em estudo clássico sobre o sistema de trocas destaca
as motivações sociais para a criação de sistemas complexos e codificados
de trocas e prestações. Para este autor a dádiva é o que pauta e organiza a
lógica social dos diversos grupos humanos. A dádiva é o oposto da relação
mercantil e envolve uma cadeia de troca e reciprocidade. Essa cadeia de
prestações perpassa três elos indissociáveis: dar, receber, retribuir. Esses
elos são tratados como obrigações e a relação entre eles propicia a criação
de laços entre os indivíduos/grupos envolvidos. A doação e retribuição
de valores morais é o que demarca a diferença entre essas trocas:
Trata-se, no fundo de misturas. Misturam-se as almas nas coisas,
misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e assim
as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e
se misturam: o que é precisamente o contrato e a troca (MAUSS,
2003, p. 212).
Pergunta-se o autor: Mas, o que há na coisa dada que tenha que
ser retribuída? Para ele, há parte do doador (o que de fato acontecem são
transmissão de valores). A coisa atua pelos autores. Representa o que o
doador é e seu anima social.
Ademais, essa obrigação se exprime de maneira mítica, imaginária
ou se quiserem, simbólica e coletiva: ela assume o aspecto do
233
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
interesse ligado às coisas trocadas: estas jamais se separam
completamente de quem as troca; a comunhão e a aliança que
elas estabelecem são relativamente indissolúveis. (MAUSS, 2003,
p. 232).
No contexto desta pesquisa a coisa dada é o tempo de trabalho: as
horas gastas nas atividades da arranca, da raspagem e da feitura da farinha.
O consumo da farinha fecha o sistema de dádivas. Que fique claro que a
obrigação se constitui. O que ela não pode ser, a fim de que mantenha a
existência da cadeia da dádiva, é completamente consciente. A retribuição
em horas para a Farinhada, não é proclamada como uma obrigação ou
um pagamento. Ela é representada de forma máxima como uma troca. O
que está em jogo, além da troca de respeitos é a manutenção do convívio
e do elo social. Em conversas com as participantes e os participantes da
Farinhada, presentes no momento da raspagem, percebe-se que aceitar
o convite para participar de uma Farinhada, é um “compromisso”, assim
como partilhar da comida ofertada durante o evento. Não é considerado
“educado” sair da Farinhada sem compartilhar as refeições dispostas no
dia.
O evento da Farinhada
Sobre o conceito de evento aqui se entende o que Max Weber
(2002) define como algo que permanece no imaginário dos indivíduos
após a sua passagem e dá origem a mudanças estruturais no grupo social
em questão: são recortes históricos que reificam fatos sociais.
Sahlins (1990), em adaptação ao conceito weberiano, salienta que
o evento não só modifica o futuro, mas também ressignifica o sentido do
passado para determinado grupo social:
[...] um evento não é apenas um acontecimento característico do
fenômeno, mesmo que, enquanto fenômeno, ele tenha forças e
razões próprias, independente de qualquer sistema simbólico.
Um evento transforma-se naquilo que lhe é dado como
interpretação. Somente quando e apropriado por, e através do
234
PARTE iiI
Capítulo 10
esquema cultural, é que adquire uma significância histórica (...).
O evento é a relação entre um acontecimento e a estrutura (ou
estruturas): o fechamento do fenômeno em si mesmo enquanto
valor significativo, ao qual se segue sua eficácia histórica específica
Somente quando apropriado por e através do esquema cultural,
é que adquire uma significância histórica (SAHLINS, 1990, p. 14
e 15).
Conferir o status de ressignificante ao evento é tratar a mudança
trazida por este como algo que além de conservar os instantes sociais, os
reinventa.
A Farinhada é tomada como um evento, por atribuir a um
determinado recorte de tempo uma dimensão de unidade de um
determinado grupo e a confirmação de laços sociais. Um evento mais
que um acontecimento é um fato social. Sua origem está em um dado
acontecimento, mas sua interpretação é mediada pela cultura. Mesmo
significando mudanças, ressignificando fatos antigos ou reinventando
tradições, o evento não implica em perdas de traços culturais. Muito na
verdade, o evento os reafirma: sua natureza está intimamente ligada à
produção de identidades culturais.
Milton Santos (2002) define o evento como um veículo de uma
ou algumas das possibilidades existentes no mundo. O evento é um
vetor das possibilidades existentes numa formação social. “O lugar é
um elemento obrigatório do evento. Os eventos criam o tempo, como
portadores da ação presente” (p. 144 e 145). A continuidade temporal
de um determinado evento, como é o caso da Farinhada na Lagoa do
Saco, reafirma elementos de relevância da estrutura social do grupo que o
promove. Proporcionar a permanência desse evento é ao mesmo tempo,
proporcionar a unidade do grupo de pessoas em um momento de troca
e reciprocidade, mediado por uma “comida-dádiva” no caso, a farinha de
mandioca.
O caráter desse evento é absoluto e sistêmico: sua ocorrência/
existência depende de muitos fatores, entre eles o desejo de organização.
Trata-se, segundo Santos (2002), de um evento predeterminado, que
235
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
conta com um combinado de ações para constituir sua permanência:
Os eventos não se dão isoladamente, mas em conjuntos
sistêmicos - verdadeiras ‘situações’ – que são cada vez mais objeto
de organização: na sua instalação, no seu funcionamento e no
respectivo controle e regulação. Dessa organização vão depender
a duração e a amplitude do evento (p. 149).
236
Dessa forma, pode-se afirmar que a Farinhada enquanto um
evento é regida por operações, ações e sujeitos. A sua existência é o
resultado de ações humanas em interação. São os acumulados históricos e
culturais que definem a diversificação de algumas de suas determinações,
como também as suas permanências. O evento da Farinhada é por si só,
absoluto, sistêmico e permanente, pois traz em seu conjunto de ações a
reivindicação por unidade desse determinado grupo social.
No contexto desta pesquisa, a mudança (talvez representada pelo
maquinário da casa de farinha) é acompanhada pela continuidade, pois
só ocorre e faz sentido a partir de uma estrutura preexistente: o conjunto
cultural. Dessa forma, pode-se afirmar que mesmo com todas as
transformações pela qual tem passado o evento da Farinhada na Lagoa do
Saco e sua existência trata-se de um exemplo de permanência, justificada
pela solidariedade do grupo e por sua noção particular de soberania
alimentar. As permanências desse evento se mostram principalmente no
armazenamento (após a feitura da farinha), na raspagem e nos momentos
de compartilhamento das refeições: na comensalidade.
A refeição em comum, além de marcar as relações entre os
indivíduos, também as produz. A comensalidade é então responsável pela
familiarização, assim como é produzido por esta. É um fenômeno cultural
de excelência para análises sobre sujeitos coletivos e eventos sociais. A
divisão da mesma mesa proporciona fusão e coesão social. A preparação
e o compartilhamento das refeições durante a Farinhada simbolizam o
ápice de todo esse evento marcado pela troca e pela reciprocidade. Fausto
(2002) define comensalidade como um articulador de um sistema de
identificação:
PARTE iiI
Capítulo 10
Ela tem o caráter de dispositivo geral que serve para pensar a
passagem de uma condição de parentesco a outra e, portanto,
aquilo que aqui é chamado de familiarização (p. 6).
Elias (1994) relaciona a comensalidade a “história dos costumes”
e esta a história do conceito de civilização. Entender o conceito de civilité
atrelado a comensalidade é entender a noção de unificação dos costumes.
O autor parte de um tratado redigido por Erasmo de Roterdã (Da
Civilidade em Crianças, 1530) para analisar o comportamento de pessoas
em grupos e a construção social de gestos, expressões, sentimentos.
Podendo dessa forma a comida compartilhada por todos, ser entendida
como eventual, ou seja, que reafirma e significa momentos de relações
sociais.
As refeições servidas durante a Farinhada formam um conjunto
dos operadores do evento que envolve concomitantemente a intimidade
e a ruptura das distâncias entre os participantes. A intimidade própria
da comensalidade é um “prato cheio” de imbricados códigos sociais; a
comensalidade observada durante a Farinhada da Lagoa do Saco, é aqui
tomada como um evento dentro do evento. Lembrando que são nos
eventos que a comunidade racionaliza as relações sociais (WEBER, 2002).
Dessa forma, os banquetes, acordos solenes que reúnem indivíduos
e, sobretudo, grupos, concretiza-se pela realização de uma refeição
em comum. Esse acordo simboliza a partilha da bebida e da comida,
que constitui a contrapartida material da redação de um contrato. A
refeição une os participantes do banquete. Assim sendo o banquete
deve ser considerado o que há de mais exemplar quando o assunto é
comensalidade. As refeições dispostas durante as atividades da Farinhada
que, tem o almoço como banquete principal, são elas:
Café da Manhã: Café com leite, cuscuz, beiju.
Almoço: Carne assada ou cozida de porco ou galinha, com feijão e
farinha.
237
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Merenda: Arroz doce com leite de licuri18.
Jantar ou café da noite: O mesmo prato servido no almoço ou café com
leite e pão.
Como a comida diz muito do comedor, no caso desses comedores,
a carne é sinal de “satisfação e força19 e entra como prato principal. O
sacrifício de um animal que poderia gerar renda imediata em prol do
evento, diz muito do doador:
Quando se mata um bicho para a Farinhada, é porque você tá
convidando as pessoas pra fazer parte. Tem que ir. Antes isso
era mais fácil. A pessoa que fazia a farinha matava um porco
ou um bode, hoje tá mais difícil. Principalmente com essa seca.
Matar um porco quer dizer muito. Todos se reúnem para comer,
conversar, se encontrar. (Moradora 56 anos, transcrição de
entrevista realizada pela pesquisadora, 2012).
Geralmente não há excedente para a venda. Quando isso acontece,
o “intermediário”, o dono da verdureira (quitanda), realiza a venda para
armazéns da cidade. Vale ressaltar que, o intermediário é um membro
da comunidade e possui relações de parentesco com muitos produtores
de farinha de mandioca. O escoamento da produção, continua dessa
forma, sob o domínio dos produtores. Não foi notado, no discurso dos
moradores nenhum ressentimento no que diz respeito à presença do
intermediário. Bem na verdade esse indivíduo é quase sempre tratado
238
18 Syagruscoronata é uma palmeira nativa do bioma Caatinga que pode chegar a ter 12 metros de altura. É
conhecida popularmente como ouricuri, licuri, alicuri, aricuí, aricuri, butiá, butiazeiro, coco-cabeçudo, coqueirocabeçudo, iricuri, licurizeiro, nicuri, uricuri, urucuriibaenicuri-de-caboclo. Seus frutos são comestíveis e de suas
sementes pode-se extrair óleo vegetal. As fibras das folhas são matéria-prima para a confecção de chapéus e outros
objetos artesanais. Os frutos são amêndoas, e são utilizados na indústria alimentícia para diversos produtos, como
também consumido in natura. As amêndoas têm grande quantidade de óleo, variando em torno de 40%, e são
utilizadas na fabricação de azeite, e o subproduto, originado da prensa dessas amêndoas, na torta do licuri, usada
na alimentação animal. Fonte: www.comidanacabeca.com. Acesso: 20 de junho de 2014.
19 A relação mencionada entre força e satisfação diz respeito à noção de fartura e o ato de comer. Sua concepção
está interligada à satisfação física e à satisfação dos desejos individuais e coletivos. Assim, a noção de fartura, força
e satisfação enquanto uma experiência emocional construída historicamente está intimamente ligada à feitura da
farinha.
PARTE iiI
Capítulo 10
como um facilitador e não como um atravessador. O preço que o
quilo da farinha custará é estabelecido pelo produtor, o pagamento do
intermediário geralmente é feito em farinha ou outros produtos agrícolas.
Sertão, imaginário social e hábitos alimentares: a identidade
produzida
A diversidade de conceitos é o que caracteriza as abordagens que
envolvem a palavra sertão na história da produção artística, acadêmica
e documental em todo o país. Os relatos dos cronistas e viajantes faziam
referência ao sertão como um lugar bárbaro, incivilizado e indomável.
Inicialmente a palavra “sertão” era usada pelos portugueses na designação
da “terra que estava adentro”, longe do mar, lugar inóspito, onde habitavam
indivíduos de costumes bárbaros. Um completo contraponto ao litoral
civilizado. Porém, havia neste lugar algo de promissor à expansão
civilizatória.
Sena (2011), no que denomina de “bipartição” do imaginário
social sobre o sertão, esclarece esse jogo de contradições que envolve a
criação da ideologia nacional:
O sertão nunca foi um polo de uma bipartição apenas geográfica.
Desde o tempo da colônia, o sertão é o outro possível, imaginado
para se opor ao processo de civilização que o conquistador
representa, entendendo-se em contraponto, o sertão como o mais
próximo da natureza. Como outro, o sertão assombra a nação
demonstrando o artifício da civilização brasileira, seu caráter
postiço e inautêntico (p. 13).
Porém, a concepção de Sertão está intrínseca e relacionalmente
ligada ao lócus de quem faz uso do termo. A partir da obra de Euclides
da Cunha (1902), o sertão é tomado como um lugar de expansão e de
devir, do projeto de identidade nacional. A miscigenação não é vista
mais como um problema à construção desse projeto e o que poderá dar
“um norte a nau catarineta brasileira” são as medidas governamentais.
No momento que Euclides da Cunha acusa os governantes de abandono,
239
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
240
retira a culpa do atraso da “degenerescência étnica” sertaneja. O interior
do Brasil toma caráter de existência. O desafio lançado era o de englobar
o sertão a nação brasileira.
Porventura, as especificidades de um termo polissêmico como
sertão, encontra em Guimarães Rosa do Grande Sertão: Veredas (1956),
uma definição primaz no que se refere à noção de identidade sertaneja.
Pode-se observar em sua obra mais que um lugar geograficamente
determinado. O sertão aqui é uma noção, um sentimento de identidade
coletiva, um fio ideológico e sentimental que condiz com a definição
encontrada do que é ser sertanejo na Lagoa do Saco. Ao mesmo tempo
em que trata de particularismos e especificidades a noção de uma
existência sertaneja no campo desta pesquisa possui características que a
identificam com outras noções de sertão.
O sertão mais que um lugar para a implementação de propostas
civilizatórias e uma região geográfica, é uma categoria do inconsciente
coletivo do ser e estar no mundo. O “sentido de sertão” e a noção local
de soberania alimentar no contexto desta pesquisa, como já é sabido,
está intrinsecamente relacionado ao hábito de fazer e comer farinha de
mandioca. E esse sentido é o que opera a identidade cultural do grupo
em questão. A partir desta interpretação a noção de identidade possui
variadas dimensões, entre elas uma dimensão estável que molda gestos,
maneiras, técnicas de trabalho, sensações e sentidos, percepções e modus
operandi de sujeitos e grupos sociais. Por sua vez, a identidade existe
além do discurso. Em sua dimensão estável ela passa a ser experienciada,
produzida. Não só os elementos discursivos criam identidades. Os modos
de fazer são também elementos do que significa o conjunto identitário de
um determinado grupo. No caso desta pesquisa o discurso entra como
uma parte das circunstâncias do ser sertanejo. O aspecto operacional do
ato de fazer e comer farinha encontra na noção de pertencimento do
grupo o respaldo ideológico e simbólico para a sua existência.
A maneira como a memória é operada é por si só um elemento
que demarca a identidade. Por isso, pode-se definir a noção de identidade
naLagoa do Saco como uma identidade produzida: sua existência coletiva
PARTE iiI
Capítulo 10
é observável e relacionada a atos e operações ligados à produção de farinha
de mandioca. Não se trata de uma identidade profissional e sim de um
sentido de sertão. Abrange as concepções filosóficas deste determinado
grupo e é forjada na memória da produção, no aparato tecnológico dessa
produção e no consumo da farinha de mandioca.
Conclusões
Após algumas idas e vindas, pode-se afirmar que a identidade
na comunidade de Lagoa do Saco está intrinsecamente ligada ao gosto
da sua farinha e a maneira como esta é produzida. Após a mecanização
da casa de farinha, muitos dizem que com o alcance de uma dimensão
comercial, essa comida tem se modificado bastante. Antes, “a qualidade
da farinha para fora” era muito parecida com a “qualidade da farinha
para dentro”. Atualmente, esta qualidade (referente ao gosto e ao aspecto)
segue alguns padrões de exigência que engessam e não protegem a feitura
da farinha e seu consumo como um patrimônio.
Algumas respostas encontradas não são conclusivas. Não houve
como aprofundar temas referentes à ocupação do sertão na Bahia e à
quantidade de farinha produzida no município (por ausência de dados).
Espera-se que, outros pesquisadores se interessem em investigar este
vasto campo de pesquisa em trabalhos futuros.
Finalmente, existe a esperança que esta pesquisa possa dar
suporte aos moradores e moradoras da Lagoa do Saco, assim como
a outros farinheiros, espalhados por diversas comunidades do Brasil
para pensar em estratégias de manutenção do acumulado de técnicas
existentes em torno da farinha de mandioca. Espera-se ainda que este
trabalho auxilie no desenvolvimento de políticas públicas que levem em
conta a tecnologia milenar envolvida na feitura da farinha.
Agradecimentos
Agradeço a todas as moradoras e moradores da comunidade
de Lagoa do Saco que possibilitaram a realização desta pesquisa. Em
especial: Samuel, Maricélia e Saulinho (pelo acolhimento especial), Dona
241
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Preta, Dona Bertulina, Seu Zé de Elia, José Nilton e Dona Josefa, que
são todos juntos os donos dessa história. Meus sinceros e emocionados
agradecimentos!
Referências
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CLEROT, Leon F. R. Glossário etimológico dos termos de origem Tupi/Guarani,
incorporados ao idioma nacional. Brasília: Senado Federal, 2010.
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ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Volume 1: Uma História dos Costumes.2 ed. Rio
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MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.
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NEVES, Erivaldo F. Sertão como recorte espacial e como imaginário cultural. POLITEIA:
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WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. (Coleção A obra-prima de
cada autor). São Paulo: Martin Claret, 2002.
WOORTMANN, Ellen F. Da Complementaridade a Dependência: a mulher e o ambiente
em comunidades “pesqueiras” do Nordeste. Série Antropologia/111. UNB: Brasília – DF,
2001.
WOORTMANN, Ellen F.; WOORTMANN, Klaas. O trabalho da terra: a lógica e a
simbólica da lavoura camponesa. Brasília: EDUNB, 1997.
242
PARTE iiI
Capítulo 10
243
PARTE IV
RELAÇÕES ENTRE SOCIEDADE E
NATUREZA
CAPÍTULO 11
FORNOS QUENTES, TERRA VESTIDA
Natalia Ribas Guerrero1
Introdução
Entre estudos e debates que se dedicam a refletir sobre
territorialidades quilombolas, a história do Quilombo Frechal, na Baixada
Ocidental do Maranhão, emerge clássica, seminal. Primeiro grupo
reconhecido pelo Estado como remanescente de comunidade de quilombo
no Brasil2, após o contexto inaugurado pela Constituição Federal de 1988,
Frechal contribuiu, por meio de sua resistência histórica, com as próprias
redefinições conceituais e políticas que possibilitaram a incorporação do
artigo 68 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT),
garantindo que “aos remanescentes das comunidades de quilombos que
estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Não foi um título de terras definitivo, contudo, que coroou a
1 Jornalista e mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP). Endereço eletrônico: nat.
[email protected].
2 O parecer da Fundação Palmares que faz essa caracterização foi exarado em 1992.
245
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
luta pelo território entre os quilombolas maranhenses de Frechal, mas
uma reserva extrativista. Sim, a Reserva Extrativista (Resex) Quilombo
do Frechal, criada em 19923, foi uma alternativa reivindicada diante das
dificuldades em se efetivar a garantia do recém-aprovado artigo 68, e
também diante de uma escalada violenta no assédio do fazendeiro que
visava à expropriação das famílias do povoado. A unidade de conservação
ambiental não coincide, porém, com o território de Frechal apenas, mas
abrange outras ocupações tradicionais, como os povoados de Rumo e
Deserto4. É situação da qual emergem conflitos, quando um território
etnicamente configurado é sobrepesado por elementos da conservação
ambiental, em um modelo de gestão que encontra dificuldades em levar
em conta essa sobreposição – não só em Frechal, mas como política
pública em estágio incipiente de implementação por diversos lugares do
Brasil, destacadamente a Amazônia5.
Ao longo do trabalho de campo, alguns aspectos do modo de vida
dos grupos da Resex mostraram-se particularmente profícuos em revelar
marcos dos processos de territorialização, tensionados entre a ênfase
nas diferenças entre os povoados e ora em sua supressão, o assinalar o
vocabulário partilhado pelos três (Pacheco de Oliveira, 2004). A religião
foi um desses aspectos, como desenvolvido em Guerrero (2011). A
produção de farinha de mandioca remete a outro, como se pretende
explanar neste artigo.
Para isso, retomaremos a trajetória que conduz da Fazenda Frechal
ao Quilombo Frechal e, mais recentemente, à Resex Quilombo do Frechal.
Na sequência, apresentaremos informações sobre as transformações
envolvendo o cultivo da mandioca e a produção de farinha entre os
moradores de Deserto, Rumo e Frechal ao longo dessa trajetória, até hoje.
246
3 Criada, mais especificamente, pelo Decreto n° 536, de 20 de maio de 1992, com 9.542 hectares.
4 Os núcleos de Frechal, Rumo e Deserto eram os principais núcleos da Fazenda Frechal – e, hoje, da Resex
Quilombo do Frechal. Mas a ocupação do território não se reduzia ou reduz a eles (Guerrero, 2012). Há um número
equiparável de famílias em um processo de reconhecimento que se estende há alguns anos. Nesse sentido, ver
Guerrero (2012) e Tassan (2009).
5 Para reflexões sobre a luta que surge entre os seringueiros do Acre nas décadas de 1970 e 1980 e que resultará nas
linhas das reservas extrativistas como política pública, ver Pantoja (1997), Porto-Gonçalves (2003) e Barbosa de
Almeida (2004).
PARTE iV
Capítulo 11
Por fim, sem pretensão de esgotar o tema, indicaremos pontos de contato
entre esses aspectos e os principais desafios que se apresentam aos grupos
em questão.
Fazenda Frechal: da elite latifundiária à autonomia camponesa
Para se aproximar dessa história, é preciso considerar que, antes
de quilombo, Frechal nomeou por mais de um século uma fazenda
situada na Baixada Ocidental Maranhense, de propriedade de tradicional
família latifundiária da região. Com origem na ilha dos Açores, Manoel
Coelho de Souza teria recebido sesmarias no Brasil em 1792 e nelas viria
a formar, entre outras, a Fazenda Frechal.
“Eficiente e conceituado lavrador.” É assim que figura o sesmeiro
fundador nos principais registros historiográficos (Oliveira P., 1980:
12), com suas lavouras de algodão e cana-de-açúcar, propulsoras de
crescimento econômico na freguesia de Guimarães6 – à época, um
destacado polo econômico da Baixada Ocidental Maranhense. A Manoel
Coelho de Souza sucederam-se gerações cercadas pelos elementos de
prestígio que distinguiam as elites latifundiárias – patentes militares,
casamentos intrafamiliares, inserção nas sendas das carreiras jurídicas,
entre outros (Souza Netto, 1976).
Evidente que os efetivos propulsores desse destaque econômico
eram os trabalhadores por trás das engrenagens da fazenda, em grande
parte constituídos por africanos sequestrados e escravizados, como
gravado nas memórias de seus descendentes. Seu Inácio, liderança
quilombola de Frechal, expõe o preço pago por seus ancestrais: “O
estabelecimento era grande e o movimento dos senhores de engenho na
época, a renda deles, o futuro que eles tinham era esse [negociação de
escravos], como fosse hoje gado, uma fazenda de gado”. E conclui: “Então
o negro era valorizado como fosse hoje um boi, um cavalo. E por que o
negro? Porque o negro ajudava eles fazer a fazenda, as casas, trabalhava
pra eles.”
6 A vila de Guimarães é criada em 19 de janeiro de 1758, e posteriormente feita freguesia de São José de Guimarães,
no mesmo ano. É reconhecida como município em 1920 e, em 1961, dele se desmembra o distrito de Mirinzal, onde
hoje se situa a Resex Quilombo do Frechal.
247
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Nas propriedades dos Coelho de Souza, como em outras
paragens maranhenses, o eito das fazendas também absorvia homens
livres – colonos, imigrantes europeus e outros camponeses constituintes
de grupos historicamente invisibilizados e socialmente subordinados7.
Entre trabalhadores africanos escravizados e homens livres agregados
à Fazenda Frechal, encontramos as origens reivindicadas pelos atuais
moradores da Resex: os pretos de Frechal e os caboclos dos povoados
de Rumo e Deserto, principais expressões pelas quais se identificam,
respectivamente.
A pujança dos proprietários da fazenda dá mostras de seu
esgotamento na segunda metade do século XIX, em um processo
vivenciado por toda a província. Até então, toda força de trabalho era
pouca para as fazendas maranhenses, e vigia forte controle sobre essa
mão-de-obra. Com a desagregação das plantations e o endividamento
dos patrões, os trabalhadores escravizados são mais e mais impelidos à
produção de seus meios de vida, com roças próprias e uma apropriação
menos cerceada dos recursos naturais. Seguiu-se, como indicou Berno de
Almeida, “a emergência de uma certa autonomia diante da autoridade do
senhor de escravos, corroendo essa mesma autoridade e enfraquecendo
as formas de imobilização da força de trabalho” (2010: 24).
Essa crescente autonomia estaria na origem de diversos sistemas
de uso comum da terra (Berno de Almeida, 1989), em muitos casos
emergindo daí certas formas de campesinato negro (CCN; SMDDH,
2002). Essa reflexão, a partir de casos do Brasil, inteiro, seria a base de
um processo de ressemantização da noção de quilombo, deslocando-se
o sentido restrito às ideias de fuga e isolamento para se enfatizarem os
tipos de resistência que expressam essa autonomia. As famílias de exescravos de Frechal aquilombam, portanto, a casa-grande em redor da
qual moravam, abrindo com isso caminho para a ampliação da noção
de resistência quilombola e contribuindo com a luta das comunidades
negras rurais de todo o país (CCN; SMDDH, 2002; Berno de Almeida,
248
7 Para considerações adicionais a respeito da historiografia maranhense e a forma que consagra uma agricultura
sem agricultores, ver Berno de Almeida (2008a).
PARTE iV
Capítulo 11
2010: 34; Arruti, 2006: 89-90).
Na Fazenda Frechal, um tema recorrente que marca a dialética da
construção dessa autonomia em meio à perda de poder dos proprietários
é a história da dívida. Nas primeiras décadas já do século XX – após a
Abolição, portanto – os relatos apontam que o neto de Manoel, Arthur
Coelho de Souza, teria contraído uma volumosa dívida, que ameaçava
ser executada à custa da Fazenda Frechal8. Em reação, o fazendeiro
conclamou os ex-escravos do povoado a repassarem integralmente a
produção da lavoura da cana por duas safras (em vez de praticarem a
meação, sistema então vigente nas relações de produção na fazenda),
de modo a reunir o suficiente para saldar a dívida. Com o sucesso da
empreitada, o administrador e sua esposa prometeram legar a terra aos
trabalhadores. “Pagaram a dívida dele. Aí ela [esposa do fazendeiro]
disse que aqui nunca era de ser vendido, era dos pretos dela”, lembra
uma senhora quilombola. Até hoje, uma parte do território da Resex é
conhecida como Canavial Paga-Dívida, uma toponímia que corrobora
a importância do episódio para a memória do grupo enquanto tal.
Escusado dizer, porém, que a promessa dos patrões não se concretizou,
como veremos.
Uso da terra e relações de trabalho: transformações na Fazenda Frechal
A história da dívida convida a refletir sobre os conflitos da
autonomia emergente dos ex-escravos nas transformações das relações de
produção entre os diversos sujeitos sociais da fazenda. Temos registros,
por exemplo, de que os filhos de Manoel Coelho de Souza:
[...] cultivaram, durante grande parte do século XIX, a canade-açúcar, mandioca, algodão, bem como criavam inúmeras
cabeças de gado. Ambos mantinham na localidade de Gepuba
uma movimentadíssima casa de negócios e uma fábrica de cal na
Fazenda Frechal (Oliveira, P., 1984: 36-7).
8 Em alguns desses relatos, esse episódio é envolto em uma ambiguidade temporal, ora situado no século XX, com
Arthur Coelho de Souza, ora remontando ao século XIX, com seu pai, Zezinho Coelho de Souza.
249
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
A mão-de-obra consistia em um significativo contingente de
escravos, complementado por trabalhadores livres – complementação
que rendeu elogios de um jornal da época a Torquato, filho de Manoel e
um dos herdeiros da Fazenda Frechal:
No sul a carestia de brancos absorve insensivelmente os escravos
do norte, e à falta de braços, ao trabalho servil, às terras incultas,
ao processo grosseiro substituem nossos agricultores, à custa
de honrosos sacrifícios, o trabalho livre, os instrumentos
aperfeiçoados, a colonisação, o systema aratorio, e tornam-se
credores da estima publica os nomes do Exm. Sr. José Vieira da
Silva, e Torcato Coelho de Souza [...]. (São Luiz, 1856, grifo meu).
Nos relatos dos quilombolas de Frechal, quando resgatam
memórias transmitidas pelos mais antigos, a violência de alguns patrões
surge inexoravelmente. Castigos e punições são enumerados e sua
lembrança se imbrica a espaços como a cozinha da casa-grande, onde hoje
funciona um centro cultural da Resex. Conta-se que entre as volumosas
pedras de seu assoalho é possível divisar os vãos onde trabalhadores eram
aprisionados, por vezes até sua morte, povoando até hoje o edifício com
visagens dos tempos da dor.
No caso dos moradores dos povoados de Rumo e Deserto, sitos,
respectivamente, a dois e seis quilômetros da casa-grande, as memórias
dão conta de um povoamento que se inicia mais esparso, associado a
algumas famílias mais antigas. “Quando eu me entendi, aqui era só mato.
[...] Que aqui família mesmo, nascida daqui, é Ferreira e Campos. Depois
dessas duas famílias, aí é o Matos. Que são as três famílias, filhos dos
velhos”, relata dona Flor de Sé, com seus 80 anos vividos no povoado de
Deserto. Em Rumo, foi possível ouvir testemunhos semelhantes – e outros
grupos da Resex testemunham também uma ocupação longeva, para além
dos três povoados já reconhecidos como beneficiários da Resex. O que
emerge de forma comum é a memória de um povoamento por homens
livres – caboclos, em contraste aos pretos, como assinalam – em sistema
de agregação (Martins, 1990; Moura, 1986). Assim, tinham o direito de
250
PARTE iV
Capítulo 11
ter sua moradia e roças no interior da fazenda, desde que pagassem aos
proprietários a renda da terra em produto, em uma porcentagem que
variava de acordo com o cultivo – meia, no caso da cana-de-açúcar, e um
paneiro9 de farinha por linha10 plantada, no caso da mandioca.
Além disso, desses povoados se originaram muitos
administradores ou encarregados, ou seja, trabalhadores designados para
coletar esse pagamento entre os outros moradores da fazenda, conferindo
a quantia devida de acordo com o tamanho das áreas cultivadas e atuando,
assim, de forma complementar aos funcionários diretos dos fazendeiros.
Nas palavras de um dos mais idosos moradores de Rumo:
Era medição de terreno, era fazimento de serviço da fazenda.
Tinha os empregados lá da fazenda, mas eles [meu pai e meu
tio] que administravam aqui o Rumo. Quem ia tirar ordem para
roçagem ia tirar direto lá, mas eles que faziam aqui a revisão.
Em Frechal, como indicado, as transformações nas relações
de produção advindas da decaída nos negócios dos fazendeiros é mais
acentuada na narrativa de seus moradores. De ex-escravos, convergiram
para uma variação do regime de aforamento que caracterizava os povoados
vizinhos, pagando aos proprietários em troca do direito de manter as
lavouras familiares de mandioca e outros gêneros alimentícios, bem
como cultivando a cana-de-açúcar em sistema de meação. No entanto,
isso ocorria à luz de um sistema envolvendo expedientes de dominação
pessoal e cultivo de lealdades (Franco, 1998), levado ao paroxismo na já
mencionada “história da dívida”.
O resultado é que, em contraste com a renda em produto por
uma determinada área cultivada paga pelos vizinhos de Rumo e Deserto,
Frechal era cobrado majoritariamente em trabalho. “O foro que nós
pagava, a nossa mão de obra aqui, era a limpeza do sítio, o conserto dos
caminhos, dessa estrada de chão”, relata seu Inácio, esclarecendo que essa
9 Cesto de fibra vegetal utilizado para transporte e armazenamento de produtos agrícolas, frequentemente tomado
como unidade de medida na região norte, equivalendo, em média, a 15 kg.
10 Uma linha, unidade de medida agrária utilizada na região, equivale a 25 x 25 braças, ou aproximadamente 0.30
hectare.
251
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
contrapartida valia para o cultivo da roça de mandioca. “Agora a cana era
na meia”, completa.
Se o cultivo da mandioca estava livre do pagamento da renda em
espécie, isso não significava que a principal base alimentar dos moradores
e de trocas de Frechal estivesse livre de taxação pela sede da fazenda.
Ainda quem explica é seu Inácio, com destaque meu:
Nós não pagava era o foro da roça, da mandioca. Só pagava na
produção da farinha, o aluguel do forno. Se você mexesse um
paneiro, você dava uns dois quilos, mais ou menos assim, era o
aluguel do forno lá. Mas a área que você ocupava, com a roça,
você não pagava. Porque já saía na questão da cana.
252
Os relatos também indicam que havia uma flexibilização na
cobrança envolvendo o cultivo da mandioca e a produção de farinha.
Como explica dona Anailde, “nesse tempo, se a senhora roçasse uma
linha, a senhora dava um paneiro de farinha. E se também não prestasse
[não pagava], porque quando a terra é boa, às vezes uma linha dá 25
paneiros, quando não presta, dá 15, até dois”. A pesquisa mostrou que,
de fato, a ocorrência de pragas como o chamado podrão, que deteriora
a mandioca por excesso de umidade, é frequente na região. No entanto,
talvez valha compreender essa flexibilização à luz da decadência relativa
do poder coercitivo dos patrões, com roupagem de concessão pessoal,
dentro do sistema de dominação e lealdades.
A propósito desse sistema, é interessante observar que a maior
parte dos relatos frequentemente se remete ao período da administração
de Raymunda (Mundoca) Bogéa, na primeira metade do século XX. A
imagem que circula da viúva de Arthur Coelho de Souza é a de uma
administradora enérgica e controladora, que observava de perto os
negócios da fazenda. “A Mundoca era boa, senhora”, declara uma senhora
quilombola de Frechal que foi “pega para ser criada” no casarão pela
fazendeira, que não teve filhos. “Ela era tão boa que quando ela tinha
necessidade de ir pra São Luís, [como] não tinha carro, eles botavam ela
aqui numa rede e levavam ela lá em Guimarães, aí ela ia de barco pra
PARTE iV
Capítulo 11
São Luís. [...] ‘Os pretos dela’, como ela chamava”. Sobre essa prestação
de favor ou serviço, diz de Mundoca um antigo morador de Frechal, José
de Silva, já falecido: “se ela queria buscar um ferro em Pinheiro, ou outra
qualquer coisa, aí cada qual dava uma junta de boi e se ia buscar. Por que
todo mundo usava do canavial” (Carvalho, 2001: 124-5).
Era, em suma, um sistema de relações próximo ao que Martins
descreveu para a moradia de favor, em que se ultrapassam as relações de
trabalho:
[...] a concepção de favor, como prestação pessoal, mas recíproca,
envolve não apenas a produção material, mas a própria lealdade
das partes: a defesa de supostos direitos de propriedade de um
fazendeiro, bem como o abrigo e proteção ao camponês contra a
perseguição policial por um crime cometido (Martins, 1990: 36).
Corroborando que essa correspondia à situação dos camponeses
de Frechal, ainda é seu José da Silva que comenta que Mundoca tinha
“muita consideração com o povo, aqui não entrava polícia, polícia
se quisesse tinha que mandar uma cartinha pra ela ou pra eles, aí ela
mandava levar a pessoa, fazia uma carta e mandava levar, mas eles não
entravam aqui” (Carvalho, 2001: 124).
Esse processo tensionado de resistência, entre autonomia
crescente de produção de meios de vida e configuração do território e
manutenção de lealdades com a proprietária, sofreria uma guinada após
a morte de Mundoca, em 1956. A fazendeira deixa para trás significativas
dívidas junto a sua irmã, Zuleide Bogéa, e não ficam quaisquer registros
de suas intenções de legar a terra ao conjunto de trabalhadores que evitou
a execução da hipoteca da fazenda. O resultado é que, pela primeira vez
em mais de 150 anos, a Fazenda Frechal deixa as mãos da família Coelho
de Souza.
Tratava-se de motivo de preocupação para pretos e caboclos,
especialmente os ex-escravos e descendentes do povoado de Frechal,
que na transação projetavam ameaças à sua ocupação, próxima à sede da
fazenda. À época, um cantor de bumba-boi registrou o temor em uma
253
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
toada, em que se destaca o emprego do possessivo na primeira pessoa do
plural para se referir à fazenda:
Se vender Frechal/ nossa fazenda querida/ se vender Frechal/ nossa
fazenda querida/ fumo nascido e criado/ ela nunca foi vendida/ se
vender para os paulistas/ tamo de esperança perdida/ fumo nascido
e criado/ ela nunca foi vendida/ se vender para os paulistas/ tamo
de esperança perdida.
O último fazendeiro
A venda não tardou, e à esperança restava engendrar a resistência.
Das mãos de Zuleide, a fazenda passaria, em 1969, pelo empresário
descendente de dinamarqueses Adam Von Bülow, até chegar, em 1974,
a Thomaz Melo Cruz11, fazendeiro sergipano radicado em São Paulo.
Iniciava-se ali um conflito que duraria mais de uma década e terminaria
por envolver muitos mais sujeitos dos que os diretamente ligados à
Fazenda Frechal.
Cruz iniciou sua administração dosando continuidades e rupturas,
muito a depender do grupo com quem tratava. “Ele veio dum jeito,
botando muito dinheiro”, lembra uma senhora quilombola de Frechal.
Cruz empregou trabalhadores de todos os povoados nas demandas da
fazenda – medições, cobrança de foro, consertos e reformas. Por outro lado,
cuidando para que isso não significasse qualquer tipo de reconhecimento
sobre direitos territoriais daqueles grupos, o que constituía uma ameaça
a seu próprio direito como proprietário, o fazendeiro fazia questão de
afirmar-se como patrão, mantendo os camponeses como clientes de seus
favores, e não cidadãos de direito. Escola, saúde e até energia elétrica foram
providos por Cruz, afastando a prefeitura de qualquer dever na área.
No caso do povoado de Frechal, Cruz desejava ter o sítio
“limpo”, ou seja, eliminar a ocupação em torno de seu recém-reformado
casarão colonial. Em expediente comum à expropriação de agregados
(Moura, 1986), Cruz ofereceu dinheiro e outros “agrados” para que os
254
11 Na década de 1970, antes de receber as terras das mãos de Adam von Bülow, os negócios de Thomaz iam muito
bem. Em 1964, adquirira o controle acionário da Concreto Redimix, gigante do ramo da construção pesada. A
partir de 1973, o advogado paulista iniciava sua expansão por estados do Nordeste.
PARTE iV
Capítulo 11
moradores deixassem a área. Evidentemente, as ofertas escondiam um
subtexto de intimidação. Se um empresário que ostentava tantos recursos
decidia desocupar uma área de sua fazenda, recusar a oferta poderia
significar riscos maiores. Ao final, algumas famílias deixaram a área, mas
significativa parte delas resistiu12.
Foram muitas e intensas as interferências de Cruz na fazenda.
Com efeito, além da reforma das estruturas antigas da propriedade,
Cruz investiu grandes somas em projetos agropecuários, que consistiram
basicamente na criação de gado e búfalo, além de cultivos variados (CCN;
SMDDH, 1996). Para implantação do plantel bovino, foram empreendidos
novos desmatamentos e moradores denunciaram o fechamento de áreas
de roças em função da abertura de pastagens. As denúncias vão no
sentido de que Cruz pôs abaixo muitos hectares de babaçuais, de cujo
extrativismo da amêndoa muitas famílias complementavam sua renda.
“Isso foi uma grande destruição que ele fez aqui”, lamenta um morador
do Deserto.
Com relação aos corpos hídricos, outros danos foram
relatados. Um deles foi o desmatamento de matas ciliares do rio Uru,
que corta a região, margeando inclusive a sede de Mirinzal. Esses atos
comprometeram atividades de pesca, o que foi agravado pela implantação
de plantel bubalino na várzea, que também impactou o tradicional
plantio de arroz feito pelos moradores. Linhares (CCN; SMDDH, 1996)
lembra que os búfalos colaboram com a devastação dos corpos d’água,
por se alimentarem de plantas aquáticas, como mururu, orelha-de-veado,
mãe-de-camarão, aningapara e junco-de-quina, além do fato de que sua
presença permanente nesses corpos d’água teria causado sérios danos à
fauna aquática.
Sobre plantios, o fazendeiro experimentou o cultivo de pimentado-reino, capim, guaraná e café. “O plantio dessas culturas foi muito
oneroso”, aponta Linhares, engenheiro agrônomo que fez o laudo que
12 Essa divisão estaria na origem do que os moradores de Frechal chamam de “indiretos” – famílias que deixaram
a terra por conta do assédio de Cruz, mas que, posteriormente, retomaram suas roças nos limites da Fazenda
Frechal e, após 1992, Resex Quilombo do Frechal.
255
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
embasaria a defesa jurídica e os pleitos dos quilombolas (CCN; SMDDH,
1996: 99). Além de não lograr êxito econômico, teve como resultado
transformar diversas áreas em capoeira rala, concluía o laudo (Ibid.: 99).
As próprias benfeitorias que Cruz instalava acabavam se
realizando numa chave de hostilidade contra os moradores de Frechal.
Nada mais emblemático do que sua decisão de fazer construir uma pista
de pouso para aviões exatamente por cima do pomar de uso comum dos
moradores, como descreveu Linhares:
Outro ambiente também usado pelo pretenso proprietário foi
um grande e tradicional pomar existente em Frechal, constituído
de várias espécies de fruteiras tropicais. Ali existia um imenso
mangueiral onde as mulheres se reuniam para a quebra do coco
babaçu durante o pique da safra (CCN; SMDDH, 1996: 109-110).
Outro marco no enfrentamento entre Cruz e os quilombolas
foi sua iniciativa de isolar casas dos camponeses do acesso ao rio Uru,
fundamental para diversas atividades cotidianas. “Passava por debaixo do
arame pra vir buscar água aqui no quintal. Que eles vinham buscar água
só aqui no quintal. Aí a turma se ajuntaram, desmancharam a cerca e
tocaram fogo... Aí pronto”, conta uma senhora quilombola. Em uma ata de
reunião da associação de moradores formada no contexto de resistência
ao fazendeiro, assinala-se o quanto essa interferência na organização e
acesso aos recursos por parte dos camponeses representou uma escalada
no conflito, especialmente a partir de 1989. Diz o documento:
Veio 10 (dez) pistoleiros com vários tipos de armas desconhecidas
e derrubaram e queimaram uma casa da viúva Eduvirgens Silva
Carneiro. Neste mesmo dia aproveitaram e cercaram um terreno
onde nossos animais pastavam. Os moradores pediram demais
para eles não ensolasse [isolasse] o terreno[,] mas os mesmos não
concordaram. Tudo isto foi mandado por Tomaz na administração
de Joaquim e José Barbosa e Fernando que era gerente da Redimik
[Redimix] em São Luís. Também fizeram uma cerca no campo
para os animais dos moradores não ir pastar no referido campo,
256
PARTE iV
Capítulo 11
porque só os dele podia comer. Os animais iam até na frente
do sobrado, eles voltavam, para os animais ficar só andando só
no sítio para não comer nada. Nesse período ele cercou todo o
campo e nós ficamos sem a menor condição de manter os nossos
animais que tanto nos ajuda em nossos trabalhos.
Por fim, a intervenção na dinâmica de organização das roças
dos moradores, com alteração do regime de relação de trabalho descrito
anteriormente, é outra marca da resistência. No mesmo documento da
associação de moradores, relata-se a proibição de implantação de uma
roça, por parte do administrador de Cruz, que teria sido respondida
coletivamente pela comunidade. “Foi feita uma roça de um comunitário
por mutirão, porque o administrador José Barbosa embargou o trabalho,
então o povo achou que não podia ser embargada, e se juntaram e fizeram
todo o trabalho da roça”, diz a ata. Em outras palavras, uma prática de ajuda
mútua desenvolvida pelo campesinato negro de Frechal foi utilizada em
um contexto de resposta política a um ataque que, embora recaísse sobre
um morador específico, era compreendido como um ataque à existência
do grupo como um todo.
Seu Inácio também tem relatos a respeito desse período:
Algumas veze eles tentaram querer nos improibir roçar – também,
né?, Roçar devidamente o solo, que eles queriam que a gente
pagasse de uma forma exigida por paneiro. Mas, nesse momento,
a gente lembrou, lembramos, que o nosso antepassado não tinha
costume de pagar o foro dessa forma exigida por paneiro, eles
pagavam o foro era trabalhando no sítio, limpando sítio, essas
coisa... E aí, a gente ainda conseguiu pagar algumas vezes, né?
Quando nós vimos que a gente tava priorizando o latifúndio,
como o proprietário, nesse pagamento de foro, nós desistimos de
pagar, e hoje não se paga mais o foro. Mas nessa época, no período
de 74 a 84, eles tentaram que a gente pagasse, e alguma vez a gente
conseguiu pagar, porque a gente foi esquecido da forma que os
nossos antepassados faziam. Depois a gente lembrou que nós tava
sendo prejudicado e fizemo de uma forma que não pagamo mais,
né? (CCN, SMDDH; 1996: 143).
257
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
258
Diante do fracasso em expulsar todas as famílias dos arredores
da casa-grande, Cruz intensifica expedientes de intimidação e violência,
aprofundando inclusive intervenções nas áreas de uso e moradia do
grupo. Nos povoados vizinhos de Rumo e Deserto, também há relatos de
interferência no território, mas Cruz apostou bastante em elementos de
paternalismo com dominação pessoal, apoiando escola, posto de saúde
etc., angariando apoio de moradores com perfil de lideranças. Com
isso, além de afastar o poder público e, portanto, a legitimidade dessas
ocupações e os correspondentes direitos de cidadania, o fazendeiro
esperava isolar o povoado de Frechal, minando sua força política.
Quando indagados sobre essa aliança com o fazendeiro, que
se estenderia até o desfecho da luta pela terra, moradores de Rumo e
Deserto invocam como justificativa a expressão: “ovo não bate em pedra”.
Em outras palavras, em uma avaliação – não desprovida de exemplos que a
fundamentassem, diga-se de passagem – as lideranças de Rumo e Deserto
não vislumbravam as condições pelas quais uma luta aparentemente tão
desigual desembocaria em um resultado favorável a seus vizinhos, e não
ao rico fazendeiro.
“Na verdade, essas três comunidades vivia dentro da terra. E
sempre Frechal foi os mais maltratados. Na época, porque o doutor Thomaz
queria fazer o centro dele, e queria expulsar eles de lá. Aí foi guerra”,
relata um morador de Deserto. Assim, para uma parte dos moradores
dos outros dois povoados, Cruz não representava uma ameaça a seus
direitos de morada e roça, já que não se encontravam próximos à sede da
fazenda. Ante esse tipo de opinião, elevam-se, em Frechal, algumas vozes
de indignação. Uma mulher quilombola, por exemplo, não tem dúvidas
de que a proteção do empresário às localidades vizinhas ocultava uma
estratégia clássica de divisão para conquista: “Se ele tirasse daqui, os do
Rumo era facinho dele tirar, porque eles eram puxa saco dele. Agora eles
não conseguiram tirar os daqui...” Para essa liderança, portanto, estava
muito claro que a contrapartida do alinhamento ao fazendeiro seria uma
diminuição da articulação política dos povoados vizinhos, falta sentida
caso Cruz decidisse expulsar Rumo e Deserto da terra.
PARTE iV
Capítulo 11
O advento da Resex
Ocorre que, a partir da década de 1980, a luta de Frechal
para permanecer na terra é fortalecida e amplificada por apoiadores,
destacadamente por organizações que já atentavam para as ameaças às
então chamadas comunidades negras rurais. Fundamental mostrouse a rede de apoio propiciada pelo Centro de Cultura Negra (CCN) do
Maranhão, um dos mais reconhecidos grupos do emergente movimento
negro fora do eixo Rio-São Paulo, ladeado com a Sociedade Maranhense
de Defesa dos Direitos Humanos (SMDDH).
Com a inclusão do artigo 68 no Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT), em 1988, despontava no horizonte uma solução
para Frechal, que resistia aos assédios cada vez mais violentos de Thomaz
Melo Cruz. Sucedeu-se, então, um extenso leque de ações que buscava
justificar o direito de Frechal de ser amparada pelo artigo 68. Objetivo,
contudo, que só parcialmente seria atingido.
O reconhecimento veio, mas sem o título de propriedade.
Parecer técnico, exarado em 30 de março de 1992 pela então recémhabilitada Fundação Cultural Palmares (FCP), atribuía a Frechal o
status de comunidade remanescente de quilombo. No entanto, apesar
dessa importante e histórica atribuição – a primeira no Brasil – não
foram emitidos os títulos sobre o território de Frechal, nos termos das
disposições do artigo 68. O início de 1992 trouxe uma alternativa para
solucionar o conflito fundiário em Frechal: a proposta de criação da
Resex Quilombo do Frechal.
O resultado é uma sobreposição: a identidade quilombola, que
articularia o processo de territorialização, é confrontada com um campo
identitário das chamadas populações tradicionais, a quem se destinam as
Resex13. Alterna-se, portanto, a base fundamental do pleito de Frechal,
13 Aqui é importante dizer que nos identificamos com a crítica de autores que apontam a inadequação dos termos
“populações tradicionais” para significar a realidade dos grupos em questão. Em uma análise coerente, Berno de
Almeida (2008b) destaca o processo de mobilização social que emergiu na década de 1980 e que configurou a
ação dos povos da floresta, bem como a atuação das entidades confessionais, que terminariam por consolidar a
reivindicação do termo “comunidades”. Ambos – “povos e comunidades” – seriam revestidos de uma conotação
política, ligada a um princípio de autodefinição, ausente no termo “populações”, que acabou sendo abandonado em
certos contextos. Ou, como descreve o autor, estaríamos diante de um deslocamento em que a noção de populações
259
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
relegando-se a maior ênfase na configuração étnica do território e
depositando-a na perspectiva da conservação ambiental.
O decreto da Resex, porém, não põe fim ao conflito fundiário.
Dois anos mais tarde, ainda na lógica de resistência ao fazendeiro, e
para pressionar o Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama)14 a “promover as desapropriações necessárias”, o
grupo decidiu pela ocupação da superintendência do órgão em São Luis.
Setenta pessoas se deslocaram de Frechal até a capital, entre homens,
mulheres e crianças, onde permaneceram durante 20 dias, ao longo dos
quais se sucederam audiências diárias, sempre com o acompanhamento
próximo de representantes dos órgãos em Brasília. Embora se pleiteasse a
Resex, era o quilombo que se levantava. Nos jornais, viam-se os “negros de
Frechal” lutando pelo “Quilombo Frechal”.
Ao final, a pressão surtiu efeito, foi depositado em juízo o valor
da indenização de Cruz. O ovo batia na pedra. Iniciava-se outro capítulo,
em que os povoados se defrontariam com os desafios de seus processos
de territorialização, buscando termos de controle social sobre os recursos,
seguindo na reelaboração de seu passado e sua cultura, compreendendo
os espaços a ocupar nessa nova relação com o Estado, que por vezes os
define como um campo único, por vezes os obriga a refletir sobre suas
características distintivas, em disputas e diferenciações internas.
A seguir, reuniremos informações sobre o cultivo e a produção da
farinha de mandioca, de modo a relacionar, ao final, esse aspecto do modo
de vida com esses desafios e contradições.
O cultivo da mandioca
Observando as lavouras e despensas dos moradores da Resex
Quilombo do Frechal, entre 2009 e 2010, foi possível relacioná-las a um
conjunto de práticas e elementos, que variavam de um povoado a outro
260
tradicionais é “afastada mais e mais do quadro natural e do domínio dos ‘sujeitos biologizados’ e acionada para
designar agentes sociais, que assim se autodefinem, isto é, que manifestam consciência de sua própria condição”
(ALMEIDA, 2008b, p. 38).
14 Lembre-se que, até a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, em 2007, cabia ao
Ibama levar adiante o processo de criação e a gestão das unidades de conservação federais.
PARTE iV
Capítulo 11
e, inclusive, no interior dos próprios povoados. De modo geral, contudo,
o modo de vida das famílias na Resex se assenta em um consórcio de
agricultura, pesca, extrativismo vegetal e criação de animais. As espécies
mais extraídas na Resex são o babaçu e a juçara, e as criações mais
frequentes são de gado, aves e, mais raramente, porcos. A pesca se dá
majoritariamente no rio Uru, que atravessa os três principais povoados
da Resex.
A mandioca é um dos principais produtos das lavouras da
Resex, o que justifica um destaque para seus múltiplos usos. De sua
massa, derivam-se a farinha d’água, a farinha seca, e a tapioca, elementos
fundamentais à dieta das famílias. Além disso, o excedente da farinha
seca destina-se ao comércio e compra de outros produtos necessitados
pelos camponeses. As sobras do processo de fabrico das farinhas, como
cascas e partes das raízes, por exemplo, ainda também empregadas na
alimentação dos animais de criação – bois, porcos, galinhas etc.
As áreas cultivadas se apresentam em mono ou policultivos, cada
qual associado a uma diferente denominação e a uma distinta porção
do território, envolvendo áreas de apropriação familiar e também em
terras de uso comum. A área em que se implementa um monocultivo de
mandioca – ou mandioca solteira – é conhecida como ligeiro, roçado ou
São João15, e ocorre em lugares afastados dos campos alagáveis do rio Uru,
ou seja, no alto. De outra parte, roça é o nome que leva a área destinada
a cultivos consorciados, em que a mandioca divide espaço com o arroz,
o milho e, com menos volume, as culturas do feijão, maxixe, macaxeira,
quiabo, vinagreira, melancia e abóbora.
Tanto o ligeiro quanto a roça se baseiam quase sempre na coivara
como técnica de cultivo. No caso do primeiro, o corte da capoeira é feito
por volta do mês de agosto, com o plantio em setembro ou outubro. A
partir de seis ou sete meses, já é possível colher a mandioca. Registrou-se
a observação de um tempo de pousio mínimo de cerca de quatro anos
15 Em algumas falas, utiliza-se a denominação “São João” para aludir ao “ligeiro”. Contudo, relatos dão conta de que
esse nome diria respeito a uma prática não mais realizada de efetivar o plantio da mandioca solteira no mês de
junho, daí o nome emprestado às festas de santo tradicionalmente realizadas nesse mês.
261
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
para esses monocultivos de mandioca. A roça, por sua vez, demanda
outros preparativos. Recomenda-se que a vegetação esteja em pousio há
pelo menos oito anos – quanto maior a capoeira, mais substrato para os
cultivos. A derrubada, nesse caso, costuma ocorrer no mês de outubro,
com o plantio nos meses de dezembro e janeiro, após a primeira chuva da
estação, e a colheita, no mínimo, um ano mais tarde.
De modo geral, o consórcio de atividades produtivas das famílias
da Resex se assenta majoritariamente no trabalho de seus próprios
membros, complementado por práticas de ajuda mútua, como o
mutirão16 e a troca de dias, bem como a remuneração por dia de trabalho,
a chamada diária. Há que se considerar, porém, que cada atividade tem
peculiaridades que atraem determinadas formas de organizar o trabalho.
No caso do cultivo da mandioca, as etapas que demandam maior
quantidade de trabalho, como a derrubada e queima, bem como a própria
etapa do plantio, geralmente são desempenhadas em grupos de homens
adultos. Durante a pesquisa, foram registradas trocas de dia, bem como
mutirões, para essas etapas.
Quando o trabalho, apesar de coletivamente despendido,
ocorre em terras de uso comum do território, ele ainda é associado a
determinada unidade familiar, na figura de um de seus membros. Dizse que determinada roça se trata do “trabalho de fulano”, e não “terra
de fulano”. Uma das expressões desse sistema de regras que organizam
o uso da terra e a apropriação dos recursos naturais para práticas
agrícolas é o sistema de balizas. Trata-se de sinalizações, geralmente
na forma de uma cruz, feitas com estacas de madeira para indicar que
determinada capoeira será roçada por um trabalhador no subsequente
período propício. Segundo os moradores da Resex, o sistema é respeitado
e não traz conflitos. Em muitos casos, por se tratar a Resex de uma área
relativamente pequena e pelos arranjos associativos já mencionados, os
262
16 Na Resex, mutirão designa a reunião de trabalhadores unidos por laço de vizinhança e compadrio para
desempenho de determinada tarefa, que pode ser de utilidade marcadamente pública (limpeza de um caminho,
edificação de uma ponte) ou relativa a determinadas unidades familiares. Essa reunião pode configurar uma prática
de ajuda mútua com ou sem intermediação financeira, ou seja, a convocação de trabalhadores pagos pelo seu dia de
trabalho – na diária – também é chamada de mutirão.
PARTE iV
Capítulo 11
locais das roças dos moradores das Resex são de conhecimento de seus
vizinhos. Assim, se determinada área foi roçada por um morador, e este
não refizer a roça no mesmo local nos anos seguintes, ela pode “voltar ao
comum”, sendo integrada às áreas potencialmente disponíveis aos outros
moradores.
A produção de farinha
A obtenção da farinha de mandioca entre os grupos que a têm
com centralidade em sua dieta e trocas econômicas está associada a
tecnologias aprimoradas ao longo de gerações, envolvendo critérios
econômicos, estéticos, morais. Entre os três povoados da Resex Quilombo
do Frechal, foram registradas algumas variações na forma com que
a farinha d’água é fabricada. Após a retirada dos tubérculos das roças
ou roçados, duas técnicas são possíveis. A mandioca pode ser colocada
diretamente em um tanque (de alvenaria ou construído com barragens
naturais em algum corpo d’água) para pubar, ou seja, fermentar, ou ela
pode ser descascada antes disso. O descascamento prévio é efetivamente
mais comum no povoado de Rumo. Segundo seus moradores, isso
propicia que a mandioca fique de molho menos dias, além de render
mais e apresentar mais qualidade quando pronta. A desvantagem ficaria
realmente por conta da mão-de-obra necessária, já que o descascamento
antes da puba é mais lento e difícil. É nesse ponto que a troca de dias
torna a empreitada viável. “Estou tirando três alqueires de farinha aqui.
Se fosse para pagar esse pessoal todo, 2,5 alqueires iam ficar só para isso.
A gente troca dia para aumentar o rendimento”, contou um morador de
Rumo. “Uma mão lava a outra”, resume.
Nenhuma das atividades ligadas ao fabrico da farinha na Resex
foi associada exclusivamente às mulheres, mas algumas foram ditas como
de exclusividade masculina – mexer a farinha no forno seria uma delas.
A própria colheita é caracterizada como um trabalho mais comumente
desempenhado por homens. Em compensação, o descascamento coletivo
envolve pessoas das mais diversas idades, inclusive crianças, quando não
estão em horário escolar.
263
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
264
Com a mandioca descascada e fermentada, a polpa é transportada
para as casas de farinha, para prosseguir em seu beneficiamento, que
inclui moagem, prensa, peneira e torrefação. A primeira das etapas é feita
por meio do caititu, espécie de ralador movido a motor, que homogeneíza
a massa. Na sequência, a mandioca que sai do caititu é prensada para
extração do ácido cianídrico. Finalmente, a polpa que sai da prensa é
peneirada e submetida à torra em fornos a lenha de alta temperatura,
processo que demora horas e demanda um trabalhador especificamente
designado para mexer constantemente a farinha, evitando que queime.
Todos os povoados da Resex contam com casas de farinha, que
podem ser privadas ou comunitárias. O segundo tipo é mais frequente
– nesse caso, qualquer morador tem o direito de utilizar o equipamento,
mediante o pagamento de uma porcentagem da produção, geralmente
baixa e definida no âmbito da associação de moradores. Com as casas
de farinha pertencentes a alguma família, o acesso também costuma ser
franqueado a outros moradores do povoado mediante a cessão de parte
da farinha obtida – apenas, nesse caso, a porcentagem fica ao critério da
família proprietária.
O povoado com maior número de casas de farinha é Rumo –
são quatro privadas e uma comunitária, mais recente. Deserto conta com
quatro casas de farinha, uma comunitária e três particulares, ao passo
que Frechal dispõe de apenas uma casa de farinha, comunitária. Há
algumas diferenças, para além dos números, entre as casas de farinha da
Resex. Em Frechal, a antiguidade do estabelecimento se deixa entrever,
por exemplo, na amplitude da edificação e na espessura de seu forno de
ferro fundido. Já a casa comunitária de Rumo, por sua vez, é a única que
conta com tanques de alvenaria para a fase de puba da mandioca, já que
é costumeira a prática do descascamento antes de colocá-la de molho.
Ainda em Rumo, também podemos encontrar uma prensa centenária,
situada na casa de farinha de dona Roxa. As distinções nos equipamentos,
bem como algumas variações técnicas ao longo dos processos, têm
influência nas características da farinha d’água resultante. Nesse sentido,
há variações no que se refere a critérios de apreciação para consumo
PARTE iV
Capítulo 11
ou venda. Pra vender tem que ser amarelinha, é a fala de muitos. Em
uma casa de farinha, um morador analisava os grãos que saltavam no
forno e dizia, com satisfação: “Essa nem saiu muito branquinha, né? Saiu
moreninha, até, moreninha”.
Nesse ponto, é preciso chamar a atenção para um aspecto
da maior importância a respeito da cultura de mandioca na Resex: as
variedades cultivadas. Sem um estudo sistemático, apenas com relatos
de moradores, foi possível identificar mais de dez variedades manejadas
nas lavouras (milagrosa; três ganchos; baixinha; branquinha; pericumã;
curiçaua; maria-viúva; puê; pixico, ou tixico; paracaná; amarelinha;
joelheira; vinagreira; antonia-roxa).
O caso é que o processo de reprodução da mandioca se dá de
forma vegetativa, mas também de forma sexuada, podendo as sementes
permanecer no solo e dar origem a uma nova variedade – esta, por
sua vez, é avaliada pelos camponeses e, caso apresente atributos
positivamente valorizados, pode fornecer manivas para o próximo
plantio. Esses atributos podem ser de ordem adaptativa ao solo ou a
pragas, com incremento na produtividade média, ou de outra ordem –
dar mais farinha, mais amarela, ou mais saborosa, ou ainda mais propícia
para pessoas com saúde vulnerável, como mulheres paridas, crianças
etc. Há quem utilize exclusivamente uma variedade nos roçados, mas o
consórcio é mais comum.
Maurício Torres, a partir da análise de uma localidade ribeirinha
do alto Tapajós, chama atenção para os significados imbricados nas
variedades de mandioca em grupos camponeses. Esse quadro denotaria
uma construção intelectual de agricultores interagindo com o banco
genético do ambiente: “São sistemas tradicionais de cultivo e seleção
germinados da observação e do manejo cuidadoso da diversidade
genética” (Torres, 2011). Um funcionamento, diga-se de passagem,
passível de observação apenas na agricultura camponesa, uma vez que
a agricultura capitalista se inclina à uniformidade dos cultivos, tomando
para isso a espécie de maior produtividade. Sua conclusão é a de que essa
dinâmica de plantio faz dos grupos que a praticam não apenas agentes
265
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
para estoque e preservação da diversidade de cultivos, mas também
indutores de variabilidade genética. Aponta Torres:
Ainda que todas as variedades de mandioca da Amazônia fossem
depositadas em coleções de germoplasma, o processo evolutivo
que acontece silenciosamente nos roçados como os de Mangabal,
causador do surgimento de novas formas e novos genes, é
insubstituível (2011: 124).
266
Em outras palavras, isso não só reveste esses processos de uma
riqueza geralmente subestimada, como chama a atenção para elementos
indissociáveis – o grupo, o modo de vida, o território. Fala-se aqui de
um manejo associado a conhecimentos também aprimorados ao longo
de gerações e construídos de forma coletiva. Caminhando por áreas de
roças dos povoados, um morador que nos acompanhava não necessitou
mais que um relance para sentenciar a variedade de mandioca cultivada
por outro morador: “É baixinha”. O manejo coletivo se processa também
por uma forma de cooperação relatada pelos moradores da Resex, que
reside na troca de manivas entre grupos de vizinhos e parentes.
Outro ponto importante é a forma com que o manejo das
variedades também compreende preocupações ligadas à saúde dos
membros da família. Se as boas farinhas para venda são unanimemente
as amarelas, dona Anailde, por outro lado, lembra que as variedades que
originam polpas de mandioca mais claras são as melhores para o fabrico
da farinha seca, destinada à preparação de angu a crianças muito novas
ou convalescentes. “Não desmancha a barriga [causa diarreia] de criança
nenhuma”, garante.
A farinha também aparece em circuitos simbólicos, na narrativa
sobre memórias, trajetórias e perspectivas para as famílias. Em um
testemunho de infância, dona Anailde sorria enquanto relembra os ralhos
do pai no processo de fabricação de farinha: “A farinha de verão, que se
fazia em setembro, meu pai botava era mais pra porco. Aí ia fazer farinha
de roça, no mês de maio, farinha nova, pra nós comer. E mesmo nós tinha
preguiça – diz que [preguiça] é pecado, mas criança, né?”, ri. E prossegue:
PARTE iV
Capítulo 11
Se eu tirasse a farinha de manhã no jirau pra almoçar, de tarde eu
não queria subir mais lá. Quem tinha [que subir] era minha irmã,
e ela também era preguiçosa, deixava aberto e vinha aquelas
baratas, assim. Papai ficava bravo. Pegava os paneiro de farinha e
despejava, os porcos comiam.
Outro circuito simbólico em que a produção de farinha aparece
é nos preparativos das principais festas e feriados – carnaval, festas de
fim de ano e as festas de padroeira, que cada povoado celebra em um
período. Nesses momentos, fica evidente a rede de membros da família
que vão trabalhar na cidade e a interdependência mantida em relação aos
que ficam. Como lembra Moura, “não é possível confundir distância com
rompimento. À separação física da família não corresponde a separação
social: quem é parente, ativa, à distância, essa condição” (1988: 28).
Assim, receber ajuda – em dinheiro, em bens de consumo, em
trabalho – desses membros é comum, como ouvimos de muitos. Mas
o sentido contrário também ocorre. E uma de suas expressões são
suprimentos de farinha, seja para uma contribuição econômica mais
essencial para o parente que foi para a cidade, seja para que se mantenham
vivos os laços com a terra, unindo os que ficam e os que se apartam.
A vida na cidade, a esse propósito, é frequentemente caracterizada
como desprovimento, espaço de conhecimentos inutilizados, laços
ausentes, dependência (Torres, 2014). Nas palavras de uma senhora
quilombola: “Na cidade, a gente tem que amanhecer com a mão no bolso
todo dia. Aqui não, se a gente não tem uma farinha, o colega tá mexendo,
a gente vai, pede, ele empresta”. Saber as propriedades de variedades
de farinha, estar inserido em um sistema de relações influenciadas por
parentesco e vizinhança, conhecer a alquimia dos tipos de solo e seu
reflexo na farinha – nada disso acorre ao camponês desterritorializado.
Farinha: expressão da terra vestida
Retomando a trajetória de luta pela terra e os desafios que se
impõem, é preciso registrar que a Resex representou uma conquista
267
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
na luta pelo reconhecimento de direitos territoriais. Foi também
uma solução cuja natureza coadunou com o modo de apropriação do
território, respeitando os paradigmas das terras de uso comum. Nos
anos seguintes, porém, a partir da segunda metade da década de 1990,
a etnicidade quilombola de Frechal e mais recentemente, de Rumo e
Deserto, vai sendo escanteada durante a construção dos instrumentos de
gestão da modalidade, nos marcos da conservação ambiental17.
Quando pensamos em um processo de territorialização
resultando em uma consequente reelaboração da cultura e do passado
(Pacheco de Oliveira, 2004: 20), e nos desafios que a Resex traz, vemos
que os povoados empreendem movimentos distintos, mas articulados
em suas experiências do processo de territorialização.
Ilustro essa conclusão com um exemplo, derivado de uma
discussão ocorrida durante a elaboração do plano de manejo, em
setembro de 2009. Os moradores discutiam, em grupos pequenos,
temas que poderiam ser objeto de algum tipo de intervenção, fosse por
meio da organização dos povoados ou de políticas públicas. Em um
dos grupos, o mote da discussão era o tema “cultura”. Sucedeu-se uma
reflexão marcada pela enumeração de elementos partilhados e por uma
valorização das expressões desses elementos em cada um dos povoados.
Moradores de Deserto e Frechal disputaram por algum tempo o prestígio
de ter manifestações culturais em festas afamadas pela região. Quando
viram que os moradores de Rumo estavam mais silenciosos, alguém
perguntou, um tanto jocosamente: “mas Rumo não tem cultura?”. Ao
que foi contestado com veemência pela presidente da associação de
moradores: “Você não diga uma coisa dessas”. E prosseguiu: “Por acaso
a gente fala igual ao pessoal de Deserto, hein?” Um murmurinho não
muito convencido ainda se fazia ouvir. Mas dali sai o trunfo: “Nunca
268
17 As discussões de gestão da Resex em torno do uso dos recursos, provocadas pelo Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio), não partiam, segundo visto no período da pesquisa, de um esforço
para reconhecimento da apropriação do território pelos povoados, para identificação do manejo e do uso que já
eram tradicionalmente feitos. Não há um esforço consistente, calcado em discussões e produção de conhecimento,
no sentido de incorporar as distintas dinâmicas identitárias dos grupos, seus espaços de tomada de decisão, os
circuitos de poder à gestão do território (Guerrero et. al., 2011).
PARTE iV
Capítulo 11
mais que eu vi ninguém pôr mandioca na água sem o couro!” Eis que
uma etapa do processo de fabricação da farinha de mandioca é invocada
como diacrítico cultural, em um contexto que tinha, afinal de contas, um
pano de fundo político e remetia às relações de poder assimétricas entre
os grupos a cargo da gestão territorial da Resex.
Por outro lado, a ênfase na união dos três remete à ideia, que
surgiu mais cedo para uns grupos que outros, que a ocupação do
fazendeiro negava a ocupação que ali tinha se desenvolvido ao longo de
quase um século após a derrocada dos patrões. Esse confronto é bem
representado na fala de dona Flor de Sé, de Deserto, quando fala da
chegada de Thomaz Melo Cruz e do que encontrou, de modo geral, na
fazenda inteira: “Quando ele fez esse negócio, ele não achou a terra nua,
ele achou a terra vestida”. A escolha de palavras é muito evocativa. Existe
uma diferenciação clara entre dois campos, entre quem veste a terra e
quem faz dela um negócio18.
No entanto, terra vestida não é uma terra na qual encontramos
um aglomerado de pessoas homogêneas. Vestir é um ato de cultura por
excelência, e são várias as formas de vestir a terra – como o são os moldes
e fazendas de tecido. Nesse sentido, a produção de farinha surge como
expressão desse vocabulário partilhado, de pertencimento ao campo
dos que vestem a terra, e, por outro, como palco para se assinalarem as
diferenças entre os povoados, como parte de sua estratégia de resistência
e disputa de perspectivas políticas, seja com o fazendeiro, seja com o
Estado, na forma da Reserva Extrativista.
Agradecimentos
Agradeço às famílias de Deserto, Rumo e Frechal, pela acolhida e
paciência durante os contatos em campo. Gostaria de sublinhar também,
e com muita gratidão, a importância das observações de Mauricio Torres
e Maria Luiza Camargo ao longo dos trabalhos que embasaram este artigo.
18 Oposição que remete ao contraste entre terra de trabalho e terra de negócio, tal qual desenvolvido em Martins
(2004).
269
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
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PARTE iV
Capítulo 11
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271
CAPÍTULO 12
A PRODUÇÃO DE FARINHA DE MANDIOCA EM
GUARAQUEÇABA- PR: ENTRE SUSTENTABILIDADE,
INTERAÇÕES E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS
Rosilene Komarcheski1 e Valdir Frigo Denardin2
Introdução
As discussões sobre sustentabilidade emergem com força em
meados da década de 1960, quando a atenção de cientistas, do poder
público e da sociedade civil é convocada para a denúncia da eminência
de uma crise ambiental que despertava em âmbito global. Esta chamada
de atenção teve o reforço de uma série de informes publicados com vistas
à denúncia da crise e da realização de eventos que propiciassem o debate
sobre a questão, promovessem a visibilidade da crise e possibilitassem a
tomada de decisões sobre o futuro das relações entre sociedade e natureza
no planeta – com ênfase especial sobre o que diz respeito aos graves danos
ambientais promovidos pelo modelo de industrialização que vinha sendo
1 Doutoranda em Sociologia (UFPR), Bolsista CAPES.
2 Doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (UFRRJ), Professor do Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Territorial Sustentável (PPGDTS/UFPR).
273
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
adotado pelos países.
A partir da realização do primeiro grande evento global sobre
a questão ambiental, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Humano, em 1972, em Estocolmo – Suécia, é proposto, por Maurice
Strong – Secretário Geral da Conferência, o termo “ecodesenvolvimento”,
que foi então devidamente conceituado por Ignacy Sachs, em 1973, como:
(...) um estilo de desenvolvimento que, em cada ecorregião,
insiste na busca de soluções específicas para seus problemas
particulares, levando em conta não só dados ecológicos, mas
também os culturais, bem como as necessidades imediatas como
as de longo prazo (2007, p. 64).
Nesse contexto, a partir da luz lançada sobre a questão ambiental,
iniciam-se mudanças estruturais em diversos espaços da vida social,
quando a natureza passa a ser observada por novos e renovados olhares
e a questão ambiental começa a atravessar novos campos. Assim ocorre,
por exemplo: a intensificação da organização e das ações do movimento
ambientalista; a firmação de acordos e protocolos ambientais em nível
internacional; a criação e o avanço da legislação ambiental nos países;
a criação de ministérios de meio ambiente e outros órgãos ambientais,
etc. Do mesmo modo, transformações profundas ocorreram no campo
científico, de onde passam a emergir novas áreas voltadas à compreensão
dos fenômenos sociais e naturais que envolvem a complexidade
apresentada pela questão ambiental.
O ponto culminante da visibilidade que alcançou a questão
ambiental em âmbito global se deu com a realização da Conferência
das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992,
no Rio de Janeiro – Brasil. Nesse momento se consagra a proposição
do “desenvolvimento sustentável”3 como caminho para o futuro do
planeta de maneira ambientalmente equilibrada, socialmente justa e
274
3 O “desenvolvimento sustentável” resultou de estudos e discussões promovidos pela Comissão das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), criada para este fim, sendo divulgado/publicado em 1987
pelo Relatório Nosso Futuro Comum e institucionalizado na Conferência de 1992.
PARTE iV
Capítulo 12
economicamente viável, definida pelo Relatório Nosso Futuro Comum
como processo que permite satisfazer as necessidades da população
atual sem comprometer a capacidade de atender às gerações futuras
(CNUMAD, 1991).
Assim se consagra também a visibilidade de que se faz necessário
e urgente (re)estabelecer relações entre a sociedade e a natureza de
maneira ambientalmente saudável, desde a teoria até a prática. Contudo,
a operacionalização da sustentabilidade socioambiental tem se dado
entre uma diversidade de situações que envolvem interações e conflitos
entre sociedade e natureza, onde parcelas da população acabam sendo
privilegiadas em função do uso dos recursos naturais em detrimento de
outras. A proposta do ecodesenvolvimento dos anos 1970, como definida
por Sachs, trazia em seu bojo uma preocupação com as particularidades
das distintas regiões do Planeta [ou “ecorregiões”], especialmente com
as realidades vividas pelos países então chamados “não desenvolvidos”.
Nela, o autor propõe que se considerem as particularidades destes países
em todas as suas dimensões (cultural, social, econômica, ambiental,
territorial e política), de modo que os “projetos de desenvolvimento”
pudessem ser pensados também de forma particular a cada realidade
(2007). Contudo, o desenvolvimento sustentável, como firmado em
1992, acabou por promover uma generalização da proposta que não
prevê as peculiaridades regionais, o que tem implicado, na prática, na
homogeneização de políticas ambientais, que, por sua vez, têm promovido
disparidades socioeconômicas e ambientais entre os povos.
Para Enrique Leff (2009), a noção de desenvolvimento
sustentável foi sendo difundida e vulgarizada até se tornar parte do
discurso oficial e da linguagem comum. Assim, as discussões que
giravam em torno da crise ambiental na década de 1970, as quais
indicavam a necessidade de limitar o crescimento em prol da proteção
da natureza, foram se deslocando até o ponto em que, a partir da década
de 80, a contradição entre crescimento e meio ambiente fosse diluída
pelo discurso neoliberal (ibidem). Sachs (2007) aponta também que o
economicismo ainda constitui a corrente dominante de pensamento, no
275
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
276
qual a economia comanda as ações e aparece como meio para dirimir os
problemas socioambientais existentes.
Desse modo, as mudanças promovidas pela emergência da
questão ambiental têm sido refletidas nos mais variados espaços da vida
social, porém, de forma distinta para cada grupo. Tais mudanças implicam
num custo muito elevado para uma parcela específica da sociedade, se
tornando bastante oneroso, por exemplo, para populações de agricultores
familiares. É nesse sentido que se propõe o presente trabalho, através do
qual busca-se problematizar a sustentabilidade socioambiental em duas
comunidades rurais do município de Guaraqueçaba, região norte do
litoral do Estado do Paraná.
Açungui e Potinga são duas comunidades guaraqueçabanas
que têm a produção de farinha de mandioca na base de sua reprodução
socioeconômica e cultural, contando com cerca de 180 habitantes cada
uma. Situadas em meio à maior extensão contínua de Mata Atlântica
ainda preservada do país (IPARDES, 2001), estas comunidades abrigam
uma rica biodiversidade presente nas florestas da região. Em conjunto,
abrigam ainda a riqueza ancestral da tradição que envolve a produção de
farinha de mandioca.
As famílias que vivem em Açungui e Potinga são vítimas de
um processo de precariedade socioeconômica – uma vez que acabaram
à margem do desenvolvimento capitalista – e os impactos das limitações
sobre o uso da terra gerados através da implantação de políticas de proteção
ambiental na região. Assim, o presente trabalho traz como objetivo
central apresentar um panorama geral sobre o contexto socioambiental
que envolve a produção de farinha nas comunidades e, a partir daí,
identificar os principais pontos de interação e de conflitos presentes nas
relações socioambientais locais para, então, promover uma discussão
sobre implicações, limites e possibilidades de um “desenvolvimento
sustentável” na região.
A realização da pesquisa se deu através de um trabalho de
observação participante desenvolvido em parceria com a equipe de
um projeto de extensão universitária que atua junto às comunidades,
PARTE iV
Capítulo 12
durante o período de 2011 a 2012. Nesse processo de pesquisa foram
também entrevistados representantes de 19 famílias – somadas as duas
comunidades – com quem aplicaram-se questionários semiestruturados
que versavam sobre o tema em questão.
Na sequência, o texto resultante do estudo se apresenta
basicamente em três fragmentos interconexos, de modo que cada um
representa uma dimensão da sustentabilidade, assim desenhadas: a
dimensão sociocultural; a dimensão socioeconômica; e a dimensão
socioambiental. Desse modo, conferiu-se à dimensão social um caráter
transversal, entendendo que esta perpassa todas as demais dimensões
e é delas parte constitutiva, ao mesmo tempo em que atua como eixo
dialógico e integrador entre todas as dimensões. Para Ignacy Sachs, a
dimensão social merece especial destaque frente às demais dimensões da
sustentabilidade – a econômica e a ecológica – por ela compor a própria
finalidade do processo (2009).
A dimensão sociocultural da sustentabilidade: a cultura como lócus
de compreensão das relações socioambientais
Guaraqueçaba abriga muitas famílias de pequenos produtores
rurais e pescadores artesanais, dentre as quais um contingente considerável
tem suas bases social, cultural e econômica fundadas em atividades
que envolvem a produção de farinha de mandioca, que se realizam
com formas de organização e produção assentadas de modo particular
sobre o seu território. Características como estas levam o município a
ser considerado um patrimônio cultural importante, abrigando ainda
remanescentes da “cultura tradicional caiçara”4 (IPARDES, 1989).
Com 7.871 habitantes, o município tem a maior parcela destes
(5.188) vivendo no meio rural e dos seus 2.315 Km² de extensão 66%
é considerada área rural (IBGE, 2007). Tendo como limites territoriais
Campina Grande do Sul e Antonina, a Oeste, e Paranaguá, ao Sul,
Guaraqueçaba abriga diversas comunidades rurais, que se distribuem por
4 Termo de origem tupi-guarani, população caiçara deriva da miscigenação de povos e culturas entre indígenas,
portugueses e antigos escravizados negros que habitaram a região litorânea do Paraná, São Paulo e sul do Rio de
Janeiro (ADAMS, 2000).
277
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
todo o seu território, dentre as quais se encontram Açungui e Potinga.
Estas localizam-se às margens da PR 405, estrada de principal acesso
das comunidades à sede de Guaraqueçaba e ao município de Antonina
(FIGURA 1).
FIGURA 1 – LOCALIZAÇÃO DE AÇUNGUI E POTINGA, GUARAQUEÇABA – PR
Fonte: Adaptado de Kassebohemer (2007, adaptado de IPARDES,1989).
278
PARTE iV
Capítulo 12
A faixa etária média dos 19 entrevistados (responsáveis pelas
farinheiras) é de 59 anos de idade, sendo que 12 deles possuem mais de 60
anos. Todos os produtores e seus cônjuges nasceram em Guaraqueçaba,
sendo a maioria na mesma comunidade em que vive até hoje. O tempo
de permanência das famílias na região diz muito sobre o seu sentido
de pertencimento ao local, o que desencadeou nos grupos que formam
as comunidades o estreitamento de laços que envolvem as relações de
parentesco e vizinhança entre os indivíduos, além de contribuir para o
fortalecimento da própria identidade dos grupos em questão.
A tradição que envolve o cultivo da raiz e o fabrico da farinha
de mandioca teve início com os povos indígenas, que já desenvolviam
a atividade antes da chegada dos colonizadores portugueses no Brasil.
Relatos de Staden (1999) retratam o processo de produção de farinha
realizado por tupiniquins na região ainda no período de 1548-1555,
enquanto que e Saint-Hilaire (1978) indica a existência da exportação
do produto pelo Porto de Paranaguá já no início do século XIX.
Remanescente desta tradição, a produção de farinha de mandioca é
realizada historicamente por muitas famílias em Guaraqueçaba, onde
foram identificadas mais de 30 farinheiras (DENARDIN et al. 2011).
A organização dos agricultores em torno da produção de
farinha reflete uma série de elementos particularmente representantes
da identidade cultural local. O plantio e a colheita da raiz foram
historicamente envoltos em mutirões e festividades entre as famílias,
com a realização do tradicional fandango caiçara – e todo o seu ritual
composto por músicas, danças, instrumentos musicais e as relações
sociais que se davam no festejar da finalização dos mutirões. Parte
desta tradição, no caso da produção de farinha em Açungui e Potinga,
parece ter desaparecido recentemente, especialmente por conta de novas
práticas e crenças religiosas adotadas por uma parcela significativa da
população local, que acabam inibindo a realização da festividade que
envolvia o mutirão5.
5 Relatos dos entrevistados indicam que a realização de mutirões e, conjuntamente, do tradicional fandango
caiçara, se dava com intensidade até a década de 1970, momento que coincide com a chegada de igrejas protestantes
279
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
Em ambas as comunidades se verifica que praticamente em todos
os quintais existe uma farinheira de propriedade e uso familiar. Estas
farinheiras possuem elementos em comum que lhes conferem caráter
peculiar, como, por exemplo, a rusticidade com que se apresentam
a arquitetura das unidades produtivas (FIGURA 2) e os artefatos
(FIGURA 3) utilizados na produção de farinha. Os artefatos utilizados no
processamento da farinha guardam em si a memória material da tradição
de fazer farinha na região, sendo confeccionados pelas mãos de poucos
membros das comunidades, os quais são guardiões do saber tradicional
do ofício. A memória material desta tradição encontra-se viva nos
artefatos utilizados nas etapas de elaboração do produto, que, ao longo
do tempo, se transformou em ícone da identidade cultural local do litoral
do Paraná. Segundo Denardin et al. (2011), cada etapa do processamento
de farinha inclui manejo e artefatos que são herdados de geração em
geração, mantendo assim viva a tradição envolta na produção de farinha
da população local.
FIGURA 2 – VISTA EXTERNA DE FARINHEIRA FAMILIAR EM AÇUNGUI
Fonte: acervo dos autores, 2012.
Legenda: a farinheira, destacada com o círculo na figura, encontra-se anexada à residência da família.
280
na região. Os entrevistados também informaram que a religião seguida por muitas famílias locais na atualidade
inibe a prática de danças e festejos tradicionalmente realizados nas comunidades.
PARTE iV
Capítulo 12
FIGURA 3 – BOLANDEIRA (EQUIPAMENTO UTILIZADO PARA RALAR MANDIOCA)
Fonte: acervo dos autores, 2012.
\
Contudo, nem todas as farinheiras familiares encontramse atualmente em uso nas comunidades, sendo que, por motivos
diversos, alguns produtores deixaram de utilizá-las, o que coloca em
risco a continuidade desta tradição bem como a memória material
nela envolta. Um destes motivos é o não enquadramento das unidades
produtivas familiares locais nas normas de padronização sanitária dos
estabelecimentos, as quais são previstas em âmbito nacional pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Assim, foram instaladas
uma farinheira comunitária em Açungui e outra em Potinga, as quais
são destinadas ao uso público e coletivo das famílias ali residentes,
tendo sido implantadas por uma política pública estadual e que têm sido
restauradas com o apoio de um Projeto de extensão universitária6 de
modo a obedecerem a padronização estabelecida pela ANVISA.
Nesse sentido, impõem-se, no mínimo, duas situações diante
das comunidades e que as inserem necessariamente num [novo]
processo acentuado de transformação sociocultural: de um lado, com
o acesso a farinheiras adequadas à padronização sanitária, as famílias
6 As farinheiras comunitárias foram instaladas nas comunidades através de um Programa do governo do Estado do
Paraná, em 2000, intitulado “Paraná 12 meses”. A restauração e adaptação destas unidades produtivas está sendo
realizada com o apoio do Programa de Extensão Universitária da UFPR “Farinheiras no Litoral”.
281
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
passam a ter a possibilidade de dar continuidade à produção de farinha
e, consequentemente, à sua reprodução socioeconômica através desta
atividade, uma vez que a comercialização do produto é favorecida por um
processo de produção que possibilita a certificação de qualidade exigida
pelo mercado convencional. Porém, por outro lado, o uso das farinheiras
comunitárias se apresenta então como alternativa praticamente exclusiva
para a produção de farinha de mandioca às comunidades, colocando em
risco a continuidade de práticas tradicionais utilizadas pelas famílias, ou
seja, o risco do fim de um saber tradicional, o “saber fazer” da farinha local.
Assim, independentemente da adoção ou não do uso de uma farinheira
comunitária pelas famílias, a tradição da produção de farinha encontrase gravemente ameaçada, onde o modo de produção tradicional passa a
ser solapado pela produção convencional impulsionada pelas demandas
homogeneizantes do mercado capitalista7.
De todo modo, a instalação e o uso das farinheiras comunitárias
têm promovido novas e renovadas formas de relações sociais entre os
indivíduos dos grupos em questão. A farinheira de Açungui, após
a restauração, tem sido utilizada com sucesso pelas famílias, tendo
despertado inclusive uma movimentação de ações inédita na comunidade.
Em primeiro lugar, ao serem consultados sobre a possibilidade da
reforma da farinheira (em 2009), todos os membros da comunidade se
mobilizaram em prol da reforma, sendo que as famílias participaram
ativamente de todo o processo, desde a realização de reuniões para
deliberar sobre o que haveria de ser feito até a realização de mutirões
para o trabalho manual que a reforma exigia. A partir da melhoria nas
condições da instalação da farinheira os produtores têm demonstrado
maior entusiasmo com a atividade e, ainda, alguns deles que haviam
cessado a atividade sentiram-se estimulados a retomá-la.
A Associação de Moradores de Açungui, criada há cerca de 12
anos para possibilitar a implantação da farinheira pelo Estado do Paraná,
foi retomada vigorosamente após o início do processo de reforma da
282
7 As demandas do mercado convencional passam pela padronização de produtos e modos de produção, onde
desconsideram-se saberes particulares enraizados na tradição local.
PARTE iV
Capítulo 12
farinheira, a qual teve suas pendências colocadas em ordem, o ingresso
de novos membros e a retomada das reuniões com assiduidade e
comprometimento dos integrantes. Nesse processo, as mulheres da
comunidade acabaram conquistando espaço de destaque, assumindo as
funções da coordenação da Associação e levantando pautas propositivas
e inovadoras para a comunidade. Além disso, a mobilização que tem se
dado em torno da farinheira comunitária e da Associação tem propiciado
o vislumbre de novas possibilidades de ações pela e para a comunidade,
como novas atividades agrícolas e mercantis e acesso a fontes de
financiamento, por exemplo.
Enquanto isso, a comunidade de Potinga encontrava-se ainda
em processo de restauração, mas à medida em que as transformações
têm ocorrido concretamente na comunidade vizinha – de Açungui – os
moradores de Potinga sentem-se mais entusiasmados e dispostos a seguir
os seus passos. Até o momento desta pesquisa (2012), a comunidade
havia também retomado as atividades da Associação de Moradores de
Potinga, promovendo reuniões frequentes e vislumbrando possibilidades
de ação a partir dela que poderiam beneficiar a comunidade. A retomada
da Associação se deu também através da possibilidade de reforma da
farinheira comunitária, sendo que já haviam realizado mutirões para a
reforma e a farinheira estava quase pronta para uso, necessitando apenas
de alguns pequenos reparos e da avaliação e emissão da licença da
ANVISA para o seu funcionamento legal.
As famílias e Açungui e Potinga se veem imobilizadas diante da
forma como estas transformações socioculturais se processam, a partir
de uma racionalidade distinta que a das comunidades. Tem-se aí, então,
um conflito de distribuição cultural, o qual se dá entre os saberes locais
arraigados em tradições e modos de vida particulares e o conhecimento
técnico-científico que fundamenta as diretrizes políticas; entre o modo de
vida local com sua racionalidade temporal-espacial própria e a velocidade
e ferocidade do sistema capitalista hegemônico; entre a economia local
com base em trocas e no autoconsumo, e a economia de mercado.
Para Arturo Escobar (2005), os conflitos de distribuição cultural
283
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
se originam nas diferenças de poder associado com valores e práticas
culturais particulares, que:
No provienen de la diferencia cultural por sí misma, sino de la
diferencia que esta diferencia marca en términos de control sobre
la definición de la vida social: quién – cuál perspectiva cultural –
define las normas y los valores que regulan las prácticas sociales
relacionadas, por ejemplo, con las personas, las economías y las
ecologías; quién controla la producción del conocimiento, la
concepción de la propiedad, etc. (p. 130).
Desse modo, ao serem lentamente incorporadas pela lógica
homogeneizante do sistema capitalista, as comunidades produtoras
de farinha vão perdendo a riqueza cultural presente no modo de vida
e consequente modo de fazer farinha particulares destas populações,
que também se ligam estreitamente às formas de relação que estas
desenvolvem com a natureza. Para Enrique Leff (2009), a cultura possui
um efeito mediador entre as relações sociais dos grupos com a natureza,
as quais são representadas pelos processos produtivos destes grupos.
Segundo o autor:
(...) a organização cultural regula a articulação entre processos
ecológicos e processos históricos; a materialidade da cultura
inscreve-se na racionalidade produtiva dos grupos indígenas e
das sociedades camponesas, gerando um efeito mediador entre a
produção e o meio ambiente (ibidem, p. 102).
O efeito que a cultura exerce como mediadora das relações
entre sociedade e natureza pode ser entendido, em situações extremas,
aqui em duplo sentido. De um lado, vê-se a relação degradante que o
modelo de desenvolvimento capitalista tem estabelecido a partir de
modos de uso e apropriação da natureza, onde esta aparece na forma
de “recursos” naturais [matéria-prima] e de depósito de resíduos. Por
outro, numa perspectiva em que se consideram outras racionalidades,
284
PARTE iV
Capítulo 12
a natureza pode ter um papel central na realização de atividades
cotidianas se configurando como parte integrante do meio onde se dão
as relações sociais e econômicas, onde se cultua e reproduzem tradições,
ou seja, a natureza como bem comum. Nas comunidades estudadas a
natureza aparece na forma de vários elementos inerentes a atividades
cotidianas, existindo, por trás da produção de farinha, por exemplo, uma
racionalidade própria destas comunidades que as fazem conviver com
o meio de maneira mais íntima e harmoniosa do que a forma como se
processa o desenvolvimento capitalista hegemônico.
Na proposta de ecodesenvolvimento de Sachs, a dimensão
social incorpora duas ordens: a social e a cultural, inerentemente
interconectadas. Segundo o autor, com esta dimensão busca-se alcançar,
prioritariamente, a redução das desigualdades sociais; a autonomia e a
endogeneidade; e o equilíbrio entre tradição e inovação (2007). Nesse
sentido, o processo homogeneizante que tem incorporado a produção
de farinha em Açungui e Potinga desconsidera formas alternativas de
desenvolvimento local que não compactuem com o modelo capitalista,
inibindo assim as comunidades de construírem coletivamente suas
próprias formas de desenvolvimento e seus próprios destinos, a partir de
sua racionalidade e saberes próprios. Coíbe-se assim a autonomia local
e a consequente possibilidade de um desenvolvimento endógeno, onde a
inovação aparece como dada pelo sistema e acaba solapando a tradição
e, assim, não se apresenta como prioridade a redução de desigualdades
sociais e sim a padronização técnica e cultural.
A dimensão socioeconômica da sustentabilidade: a economia local e a
reprodução sociocultural
Dotado de características indiscutivelmente rurais, Guaraqueçaba
tem sua produção agrícola baseada no cultivo de banana, mandioca,
arroz e palmito, onde a mandioca ocupa lugar de destaque. Dos 527
estabelecimentos agrícolas recenseados (IBGE, 2007), existem 171
unidades em que se realiza a produção de mandioca no município.
Andriguetto Filho (2004) verificou que o modelo de agricultura
285
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
desenvolvido em Guaraqueçaba é basicamente tradicional, com baixo
nível tecnológico, baixa diversidade e baixa inserção no mercado.
Os indicadores socioeconômicos do município encontram-se
muito abaixo da média do Estado, como o Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH), por exemplo, que situa o município na posição 396
entre os 399 municípios do Paraná (IBGE, 2007). Outro indicador que
se destaca é o Produto Interno Bruto (PIB) de Guaraqueçaba, que se
configura como o 5º menor do Paraná, situando-se muito abaixo do PIB
nacional (ibidem).
Dentre os entrevistados, 16 haviam produzido farinha de
mandioca no período de realização da pesquisa. A média anual da
produção destes foi de 3.400 Kg/produtor, o que rendeu um lucro médio
anual de R$ 3.500,00/produtor, ou seja, em torno de R$ 289,00 ao mês.
A renda obtida com a comercialização de farinha produzida representa,
em média, 30% do total da renda mensal familiar, atuando assim como
complemento essencial à economia das famílias locais. Outras atividades
rurais realizadas pelos produtores que complementam a renda das
famílias são: produção de banana, de palmeira real, de pupunha e de
arroz, principalmente. Depois da farinha de mandioca, a banana é o
produto com maior percentual na composição da renda familiar, seguido
da palmeira real.
A composição da renda é complementada em alguns casos com
valores recebidos pela realização de trabalhos externos, mas nenhum dos
produtores trabalha como assalariado. O que se configura como renda
fixa mensal nas famílias é o valor recebido por aposentadorias, sendo que
apenas 3 dos produtores não tinham em sua família alguém que recebia
o benefício durante a pesquisa, o que indica a dependência econômica
local deste auxílio. Considerando que o meio rural do município possui
valores de empregos formais inferiores aos do meio urbano, conforme
dados do IPARDES (2010)8, a situação de emprego e renda no campo
guaraqueçabano é preocupante.
286
8 O número total de empregos formais no município é de cerca de 695, dos quais a maior parcela (475) se
concentram em atividades vinculadas à administração pública.
PARTE iV
Capítulo 12
A comercialização da farinha é realizada nas próprias
comunidades, na sede do município e em comércios dos municípios
próximos de Antonina e Paranaguá. A demanda pelo produto é
abundante na região, porém os produtores enfrentam sérios problemas
de comercialização no mercado formal, por motivos como a falta de
transporte e de licença sanitária do produto. O transporte de farinha
até os centros de comercialização é realizado predominantemente
através do pagamento a terceiros, sendo que apenas 5 dos entrevistados
possuem veículo automotor e outros 4 deixaram de comercializar fora
das comunidades por falta de transporte. Assim, tem-se outro empecilho
que é o fato de o custo do transporte encarecer o valor do produto final,
implicando na redução da competitividade do produto local com o de
outros municípios e regiões do estado que são ali comercializados.
Somado aos problemas anteriores, a produção de farinha nas
comunidades sofre ainda com a carência de mão de obra e de maquinários
agrícolas, o que tem implicado para 13 dos entrevistados na carência
de raiz de mandioca para a produção da farinha e em dificuldades no
processamento da raiz. Assim, a série de problemas enfrentados pelos
produtores para a produção de farinha tem levado alguns deles a deixarem
a atividade e a outros tantos tem implicado na redução da produção.
A situação se agrava quando se trata da escolaridade nas
comunidades estudadas, onde nenhum dos entrevistados concluiu o
ensino médio da educação básica, 16 não tiveram estudo algum e apenas
3 concluíram apenas a 4ª série primária, sendo o grau de escolaridade
dos seus cônjuges semelhantemente reduzido. Contudo, este quadro
muda radicalmente em relação aos filhos dos produtores, onde a maioria
concluiu o ensino médio e alguns até curso superior. A particularidade
deste índice elevado de escolaridade entre os filhos dos produtores
encontra-se no fato de que estes, em sua maioria, não residem mais
nas comunidades, tendo migrado massivamente nos últimos anos para
centros urbanos de cidades próximas, como Paranaguá e Colombo, por
exemplo.
Todos os familiares que migraram para o meio urbano são filhos
287
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
288
de produtores que partiram em busca de estudo, trabalho e renda, ainda
jovens. Nas 19 famílias foi identificado um total de 127 indivíduos, dos
quais 63 (de 16 famílias) migraram para o meio urbano nas últimas
décadas. Permanecem no meio rural, predominantemente, idosos,
alguns poucos jovens que vêm dando continuidade ao trabalho agrícola
realizado pelos pais e pessoas que ainda não atingiram a idade adulta.
Nota-se então uma íntima relação entre os índices de escolaridade
dos familiares e a migração dos jovens para centros urbanos, denotando
que o município não tem lhes proporcionado os acessos necessários,
especialmente no que diz respeito à educação, trabalho e renda. Abre-se
aí mais um fator socioeconômico agravante para as comunidades, uma
vez que as condições locais têm inviabilizado a permanência das novas
gerações no campo.
No que diz respeito à dimensão econômica, mais uma vez as
comunidades de Açungui e Potinga acabam se vendo submetidas aos
pressupostos do sistema capitalista hegemônico, que lhes impõe a lógica
do mercado competitivo, onde desconsideram-se as particularidades
do território a que estas populações pertencem. O baixo rendimento
econômico gerado pela comercialização de farinha, por exemplo, não é
suficiente para a realização de investimentos nas unidades produtivas que
permitam a adequação tecnológica dos equipamentos de cultivo agrícola
e das unidades de produção e a aquisição de meios de transporte para
o produto. Assim, as comunidades necessitam desenvolver estratégias
de desenvolvimento que sejam apropriadas ao local e que tenham
como premissa fundante a racionalidade sociocultural desta população,
de modo a considerar outros valores e outras formas de economia ali
praticados.
Além dos impactos de ordem distributiva, a racionalidade
econômica vigente é responsável pelo progressivo processo de
degradação ambiental, acompanhado de uma distribuição social desigual
dos custos ecológicos. Nesse sentido, Sachs (1986, p. 181) indica que a
sustentabilidade econômica “deve ser viabilizada mediante a alocação e
o gerenciamento mais eficiente dos recursos e de um fluxo constante de
PARTE iV
Capítulo 12
investimentos públicos e privados”. A sustentabilidade econômica implica
na eficiência de seus sistemas econômicos (instituições, políticas e regras
de funcionamento), para assegurar continuamente melhorias sociais de
modo equitativo, quantitativa e qualitativamente (ibidem).
Nesse sentido, mesmo que para garantirem sua permanência
no campo e sua reprodução socioeconômica e cultural as comunidades
tenham que desenvolver mecanismos que as possibilitem a realização de
um desenvolvimento endógeno, faz-se necessária uma maior atenção do
poder público para a realidade e necessidades locais. Na proposição de
políticas públicas, como a que implantou as farinheiras comunitárias em
Açungui e Potinga, por exemplo, devem ser consideradas as peculiaridades
socioculturais e econômicas territoriais para otimizar a sua eficiência e,
ainda, não causar danos à vida destas populações. Além disso, para que
um desenvolvimento apropriado a tal realidade efetivamente se realize, é
necessário também que as políticas públicas executadas na região sejam
contínuas e integradas, de modo a dialogarem e serem compatíveis entre
si e, juntas, mais eficazes para a resolução de problemas das comunidades.
A dimensão socioambiental da sustentabilidade: a reprodução
sociocultural e a proteção ambiental entre interações e conflitos
Desde a década de 1980 têm sido criadas diversas unidades de
conservação (UCs) no litoral paranaense, as quais totalizam atualmente
34 unidades distribuídas entre os 7 municípios, o que representa mais
de 80% da área total do território9 (FIGURA 4). A indiscutível riqueza
ecológica conferiu à região o reconhecimento pela UNESCO de
Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (LIMA et al., 1998). Apesar de se
enquadrarem em diferentes categorias de manejo, as UCs acabam por
estabelecer no território inúmeras restrições legais sobre a ocupação e
o uso do solo. Somado a isso, tem-se também muito presente na região
as Áreas de Preservação Permanente (APPs), às quais cabem rigorosas
9 Em 2006 haviam 31 UCs no litoral do Paraná, que ocupavam, ao todo, 82% deste território (DENARDIN &
LOUREIRO, 2008). Em 2012 foi criada uma nova UC na região, a Reserva Biológica Bom Jesus, em 2013 foi criado
o Parque Nacional da Ilha dos Currais, e, em 2014 foi criada o Parque Nacional de Guaricana, elevando o número
de UCs para 34 (IAP, 2014; ICMBio, 2014).
289
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
restrições sobre áreas de beiras de cursos d’água e de encostas e topos de
morro (LEI Nº 4.771, 1965); e, ainda, as áreas de Reserva Legal, que devem
ser protegidas em todas as propriedades10. Desse modo, a efetivação da
conservação ambiental implicou em um necessário redimensionamento
das formas de realização de atividades produtivas em todo o município
de Guaraqueçaba.
Entre os municípios do litoral paranaense, Guaraqueçaba é o
que possui a maior extensão territorial protegida ambientalmente, sendo
que 98% de sua área é ocupada por UCs, que são: Estação Ecológica de
Guaraqueçaba, Parque Nacional do Superagüi e Reserva Biológica Bom
Jesus, de Proteção Integral11; e APA (federal) de Guaraqueçaba, ARIE do
Pinheiro e Pinheirinho, RPPN Salto Morato e Reserva Ecológica de Sebuí,
estas de Uso Sustentável (IAP, 2014; ICMBio, 2014). A Área de Proteção
Ambiental (APA) de Guaraqueçaba é a maior destas, correspondendo
à quase totalidade do território do município (DIBAP, 2007, apud
DENARDIN & LOUREIRO, 2008).
O cenário natural guaraqueçabano é dotado de características e
peculiaridades que o levam a se configurar como uma área de relevante
importância global no contexto da conservação da natureza. Contudo,
esta vasta riqueza abriga uma série de atividades desenvolvidas no
ambiente rural que conferem a tradição cultural local, a qual se vê
ameaçada diante de tensões socioambientais desencadeadas pelo novo
contexto de conservação estabelecido na região. Dentre estas atividades
encontra-se a produção da raiz e da farinha de mandioca, a qual insere-se
no quadro socioambiental conflituoso do ambiente rural regional.
290
10 As áreas de Reserva Legal são definidas, no caso do bioma Mata Atlântica, como uma porção de 20% de área
coberta por vegetação nativa, a ser delimitada em cada propriedade, além das APPs existentes no local. A vegetação
da reserva legal não pode ser suprimida, podendo apenas ser utilizada sob regime de manejo florestal sustentável,
de acordo com princípios e critérios técnicos e científicos (Art. 16º, LEI 4.771, 1965).
11 As unidades de conservação são diferenciadas conforme o grau de restrições de uso estabelecidas. Assim, se
dividem, basicamente, em dois grupos, ou categorias de manejo: de Proteção Integral, onde o uso da área é
altamente restrito; e de Uso Sustentável, onde é permitido o desenvolvimento de atividades, porém, com algumas
restrições. Estas ainda se subdividem em outras, seguindo o mesmo padrão de restrições (SNUC, 2000).
PARTE iV
Capítulo 12
FIGURA 4 – MAPA DE USO DO SOLO DO ESTADO DO PARANÁ (2005-2008)
Fonte: Adaptado da base cartográfica do Instituto de Terras, Cartografia e Geociências do Paraná (ITCG), 2010
(apud IPARDES, 2010).
Legenda: a área circulada apontada na figura representa o litoral do Paraná, que, no mapa, encontra-se destacada
como a maior área coberta por floresta original em conjunto com toda a área de restinga do Estado.
A produção de raiz de mandioca nas comunidades estudadas
é realizada em pequena escala, sendo utilizados em média 2,5 alqueires
áreas totais para cultivo nas propriedades, que, por sua vez, abarcam um
total de cerca de 8 alqueires cada uma. O cultivo é realizado em áreas
baixas, respeitando as restrições das UCs e mantendo preservadas as
APPs, sem o uso de agrotóxicos. A geração de resíduos provenientes da
produção de farinha também é reduzida, sendo que os produtores, em
sua maioria, têm os reutilizado nos próprios cultivos agrícolas.
Do processo de agroindustrialização da farinha de mandioca
resultam, basicamente, os seguintes resíduos: cascas da raiz de mandioca,
geradas pelo descascamento; manipueira (ou mandiquera), gerada a
partir da prensagem da raiz ralada; bagaço (ou raspa), gerado a partir
do esfarelamento da raiz, após a prensagem. A manipueira é utilizada
pelos produtores em geral, principalmente, com duas finalidades: como
291
FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
292
biofertilizante (para enriquecimento de solos); e como bioherbicida
(defensivo agrícola utilizado para o controle de pragas nas plantações).
Após ser devidamente dosada e diluída, a manipueira é comumente
utilizada em cultivos de banana, para eliminação de pragas que afetam
as produções. A raspa é utilizada na alimentação animal, especialmente
de galinhas. E a casca é geralmente triturada e retorna aos solos de
cultivo da raiz como fertilizante natural. Desse modo, tendo em vista a
riqueza natural e a proteção ambiental da região, a produção de farinha
de mandioca em Guaraqueçaba tem caminhado para uma adaptação
do sistema produtivo a este contexto – desde o plantio da raiz até o
processamento da farinha em si, demonstrando o cumprimento da
legislação ambiental e dando indícios de uma vocação ecológica dos
cultivos agrícolas e agroindustrialização local.
Guaraqueçaba, se configurando atualmente como a região
mais bem preservada do Paraná, é também pouco urbanizada e pouco
industrializada, o que favorece o cumprimento dos objetivos da
conservação da natureza. A proteção de áreas naturais traz inúmeros
benefícios à vida na Terra em todas as suas formas e a existência de áreas
verdes é necessária para a manutenção da qualidade de vida da sociedade
humana como um todo. Por outro lado, reduzindo a escala de observação
a regiões como as comunidades aqui estudadas, vê-se que a proteção legal
de florestas, da forma como tem sido operacionalizada, traz também
consigo sérias limitações à reprodução socioeconômica e cultural da
população de produtores de farinha.
A falta de regularização fundiária das terras é recorrente
entre os produtores locais, o que implica ainda em dificuldades de
acesso a incentivos à realização de atividades rurais pela ausência
de documentação das áreas. Em Açungui e Potinga o acesso à água é
completamente improvisado pela própria população, sendo inexistente a
ação pública tanto para a distribuição como para o tratamento da água. E
o acesso à madeira, para uso combustível nos fornos que torram a farinha
e para reformas de residências e farinheiras, também tem sido dificultado
pelas restrições ambientais. Além disso, a criação das UCs na região tem
PARTE iV
Capítulo 12
implicado ainda na redução drástica do tamanho das áreas disponíveis
para o cultivo agrícola e, assim, algumas práticas tradicionalmente
realizadas pela população local, como o pousio, por exemplo, tornaramse inviáveis.
A produção de raiz de mandioca realizada em Guaraqueçaba
contrapõe-se à agricultura modernizada, que utiliza grande carga de
insumos tóxicos prejudiciais tanto à natureza quanto à saúde humana
e que sustenta, ainda que indiretamente, desigualdades socioambientais
em grande medida. Contudo, ainda assim, esta atividade vê-se ameaçada
pela dificuldade de acesso aos recursos naturais promovida pela política
ambiental. Cabe então uma reflexão acerca do paradoxal modelo de
desenvolvimento sustentável executado na região, onde as populações
de produtores de farinha de Açungui e Potinga sofrem restrições à
realização desta atividade em função da proteção ambiental global. Ou
seja, enquanto espaços urbanizados e industrializados são poluídos
e degradados pela população neles residente e por quem usufrui dos
produtos e bens de tais espaços, os habitantes de Açungui e Potinga se
veem limitados na sua reprodução socioeconômica e cultural. Nesse
sentido, “abre-se um debate não só pela injustiça distributiva do sistema
econômico, mas pela distribuição ecológica, entendida como a repartição
desigual dos custos e potenciais ecológicos” (LEFF, 2001, p. 36).
Nesta concepção de desenvolvimento sustentável sob a qual
Açungui e Potinga encontram-se sujeitas prioriza-se a dimensão
ecológica da sustentabilidade em detrimento das dimensões social,
cultural, econômica e territorial. Assim, comprimidas entre este modelo
de desenvolvimento “sustentável” e a ferocidade com que avança o
desenvolvimento capitalista, restam poucas possibilidades a estas
comunidades, que, como já indicado, acabam tendo suas gerações mais
recentes migrando massivamente para centros urbanos em busca de
sobrevivência. Desse modo, ocorre em Guaraqueçaba o que Teixeira
(2005) intitula de “naturalização do social”, onde a dimensão social do
desenvolvimento “sustentável” acaba sendo suprimida pela dimensão
ecológica estrita. Ou seja, prioriza-se a conservação da natureza (em
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FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
âmbito global) em detrimento da reprodução socioeconômica e cultural
da população local.
A participação social e política dos grupos em questão poderia
se configurar como um espaço de mobilização e transformação positivas
das comunidades, seja no sentido de permitirem a busca coletiva de
formas de adaptação ao modelo de desenvolvimento sustentável imposto
à região, que os viabilizassem garantias de reprodução socioeconômica e
cultural, seja no sentido de possibilitarem um enfrentamento mesmo do
próprio modelo, onde pudessem dar voz às suas necessidades e anseios
coletivos no que diz respeito ao modo de vida local. Mas a participação
social e política em Açungui e Potinga têm sido realizada recentemente
somente através das associações de moradores, especialmente em torno
da produção de farinha nas farinheiras comunitárias. É inexistente,
por exemplo, a participação em conselhos gestores (como o da APA de
Guaraqueçaba), na prefeitura e na câmara municipal, o que denota uma
fragilidade política estrutural nas comunidades.
294
Conclusão
Através das transformações socioculturais que têm ocorrido
nas comunidades de Açungui e Potinga podem-se elencar alguns
elementos oriundos de uma cultura [capitalista] hegemônica que
passam a ser incorporados localmente. Isso pode ser notado, por
exemplo, no “abandono” – de certa forma imposto – de práticas coletivas
tradicionais como a realização do mutirão e do festejo do fandango; na
inserção da padronização das unidades produtivas segundo normas
nacionais; na necessidade do aprendizado de novas práticas coletivas e
compartilhamento de espaço em função destas normas; dentre outras
tantas transformações que se processam nesse conjunto. Todas estas
transformações recentes que ocorrem nas comunidades estudadas podem
ser estendidas a um contexto mais amplo da sociedade, uma vez que
denotam possuir um fundo comum a muitas realidades na atualidade:
se configuram como situações em que a ordem do capital e do sistema
hegemônico tem sido imposta sobre modos de vida tradicionais.
PARTE iV
Capítulo 12
Segundo a gama de motivos apontados e as inter-relações que se
estabelecem entre eles, a produção de farinha por si só não tem garantido
a sustentabilidade econômica das famílias que desenvolvem esta
atividade, apesar de atuar como complemento essencial à composição
da renda familiar. Porém, isso não se dá exclusivamente por conta da
dinâmica econômica interna local, tendo uma relação íntima com a
dinâmica da economia regional e, em última análise, mais uma vez, se
relaciona com as imposições das demandas do mercado capitalista, no
qual a concorrência de preços e a padronização são imperativos maiores
que o valor agregado contido em um produto com identidade territorial
como a farinha de mandioca produzida em Açungui e Potinga.
As políticas de conservação da natureza executadas em
Guaraqueçaba seguem os moldes do modelo de desenvolvimento
sustentável indicado no Relatório Nosso Futuro Comum. Assim, as
UCs criadas na região não servem apenas para a proteção de recursos
naturais para a população local, mas se configura como um bem comum
da humanidade, que deve ser preservado para as presentes e futuras
gerações. Contudo, na escala local, esta política de proteção ambiental
têm subsidiado injustiças socioambientais, na medida em que limitam
o acesso a recursos naturais pela população residente nas comunidades
e, de certa maneira, acabam contribuindo para a compressão destas
comunidades pelo sistema capitalista hegemônico.
A participação social e política também indica fragilidades entre
os próprios produtores e comunidades, o que os têm causado empecilhos
tanto quanto à manutenção da atividade de produção de farinha local
como ao desenvolvimento de possibilidades de desenvolvimento local de
modo geral. Por outro lado, o associativismo nas comunidades visitadas,
que tem relação direta com as farinheiras comunitárias, se configura como
um tipo de inovação sociopolítica local, desenvolvida endogenamente,
onde os produtores têm experimentado possibilidades de fortalecimento
coletivo da produção de farinha e meios de manutenção da reprodução
socioeconômica local.
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FARINHEIRAS DO BRASIL
Tradição, Cultura e Perspectivas da Produção Familiar de Farinha de Mandioca
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